“Diários de Otsoga”: o querido mês de Agosto passado em confinamento e com o tempo virado do avesso ★ ★ ★ ★ ★ observador.pt/2021/08/19/diarios-de-otsoga-o-querido-mes-de-agosto-passado-em-confinamento-e-com-o-tempovirado-do-avesso
O novo filme de Miguel Gomes e Maureen Fazendeiro, “Diários de Otsoga”, tem alguns pontos de contacto com outro do realizador, “Aquele Querido Mês de Agosto” (2008). Ambos decorrem em Agosto, a certa altura, “realidade” e ficção encontram-se e confundem-se, e cultivam ambos o metacinema. Mas as semelhanças ficam-se por aqui, porque ao contrário daquele, “Diários de Otsoga” é um filme com os movimentos radicalmente tolhidos, em que os seus autores (que também assinaram o argumento, com Mariana Ricardo) quiseram reproduzir, simulando-a, a experiência do confinamento, fechando-se com três atores (Crista Alfaiate, Carloto Cotta e João Nunes Monteiro) e com os técnicos numa quinta na zona de Sintra. A fita é também contada ao contrário, em cronologia invertida, começando pelo fim e acabando no princípio, com a história das três personagens enclausuradas a transformar-se gradualmente na do dia-a-dia da rodagem em conjunto. E incorpora peripécias e situações que não estavam no argumento e foram acontecendo ao longo dos 22 dias da filmagem – incluindo a possibilidade do nascimento prematuro do bebé de Maureen. Este deve ser o primeiro filme que tem embutida a possibilidade da sua interrupção, devido a um problema com a gravidez de uma das autoras. E que levou a um hiato de autogestão,
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pois o trio de atores ficou a tomar conta do estaminé enquanto Miguel e Maureen, simultaneamente realizadores e “personagens”, iam à médica, e rodaram algumas cenas, uma das quais ficou na montagem final. [Veja o “trailer” de “Diários de Otsoga”:]
Watch Video At: https://youtu.be/4lI6IP1NW0M
“Diários de Otsoga” não é o primeiro filme a ser virado de cabeça para baixo. O checo Oldrich Lipsky fê-lo na sua comédia “Happy End” (1966), que começa com o protagonista a ser guilhotinado e acaba com o seu nascimento; Gaspar Noë também recorreu a ela, e muito controversamente, em “Irreversível” (2002), para contar a violação da personagem de Monica Bellucci e os factos em seu redor; e em “5×2: Cinco Vezes Dois” (2004), François Ozon usou a mesma técnica para documentar, em cinco tempos, a desintegração de um casal, abrindo com o divórcio e terminando com o dia em que se conheceram, em Itália. [Veja uma entrevista com os realizadores:]
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Watch Video At: https://youtu.be/SI9ayLE7heM
Miguel Gomes e Maureen Fazendeiro não o fizeram por brincadeira, capricho, afetação ou gosto pela complicação desnecessária. Foi a maneira que encontraram para expressar, e transpôr para imagens, a perturbação na perceção da passagem do tempo e do normal fluir do quotidiano, causada pela pandemia e pela obrigação do confinamento. E ao fazê-lo, “abrem”, dia-a-dia, o filme para a vida e para a interação das pessoas, revelando cada vez mais coisas sobre o seu fabrico, e sobre o convívio entre todos aqueles que estão ali encerrados a rodá-lo ou a ajudar na manutenção, e até integrando acontecimentos espontâneos e inesperados, em vez de se reduzir às relações das personagens enclausuradas. “Diários de Otsoga” é muito mais sobre aquele conjunto de pessoas naquela quinta, do que sobre um qualquer banal enredo envolvendo um trio de confinados. A pertinência formal e narrativa deste trocar das voltas à linearidade temporal, enquanto reação a uma anormalidade que nos afetou individual, social e coletivamente, e a sua repercussão em termos de vivência humana, impedem que “Diários de Otsoga” seja um inconsequente, estéril e pretensioso exercício de desconstrução espertalhufa, dobrado de metacinema umbiguista feito com e para uma clique de amigos. Mas é também o tipo de experiência cinematográfica que funciona só uma vez.
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