Festival do Rio: um mapa para o tesouro da maratona cinéfila c7nema.net/artigos/item/107839-festival-do-rio-um-mapa-para-o-tesouro-da-maratona-cinefila.html 11 de dezembro de 2021
O Festival do Rio decorre de 9 a 19 de dezembro 11 de Dezembro, 2021 Publicado por Rodrigo Fonseca Iniciado na quinta-feira com uma sessão para convidados de “Madre Paralelas”, o Festival do Rio conseguiu driblar as dificuldades inerentes ao gradual sucateamento da cultura brasileira, imposto pelo governo Jair Bolsonaro, e tirou do papel a sua 23ª edição, com 90 longas-metragens e 20 curtas, das quais a maioria integra a seleção competitiva pelo troféu Redentor. Mas há muitos títulos estrangeiros, incluindo potenciais candidatos ao Oscar. Ilda Santiago, diretora do evento, preparou ainda uma retrospectiva de Wong Kar-Wai e uma mostra de filmes de culto franceses relacionados a uma exposição dos 70 anos da Cahiers du Cinéma, organizada em parceria com o realizador Cavi Borges e o crítico Fabrício Duque. Confira as apostas do C7nema:
‘TITANE’, de Julia Ducournau (França): Com uma bilheteira internacional estimada em 4,5 milhões de dólares, a produção ganhadora da Palma de Ouro de 2021 rechaçou espectadores de gosto conservador com o seu radicalismo no mergulho em um “existencialismo biológico” e no flirt com a cultura dos ciborgues, o que justifica uma venda tímida de bilhetes, estimada em 303,6 mil pagantes, na sua pátria. Mas há que o considere “o” filme do ano. Este controverso exercício de género da diretora de “Raw” lembra Cronenberg em sua reflexão sobre o corpo como usina de pulsões existenciais. Na Croisette, houve gente a sair das sessões quando Alexia (a brilhante Agathe Rousselle) bate o próprio rosto contra um lavatório, a fim de deformar o nariz. Deformar-se é parte da reinvenção pela qual a personagem há de passar quando se assume, sem culpa, como serial killer, dando um ponto final à existência de homens que passam dos limites na aproximação a ela e dando um adeus a mulheres que não reagem aos seus carinhos furiosos como espera. E ela mata usando um pau paracabelo como arma. Mas é a segunda transformação pela qual passa. A primeira acontece na infância, quando um acidente rodoviário impõe a instalação de uma placa de titânio na cabeça. E um ciclo contínuo de metamorfoses de um pássaro que não se deixa engaiolar, numa metáfora potente do empoderamento feminino.
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‘VIVXS!’, de Claudia Schapira, Roberta Estrela D’Alva e Tatiana Lohmann (Brasil): Eis um ímã de troféus, na seara das curtas, derivado de um dos eventos brasileiros de maior relevância internacional na luta pela inclusão social: a Festa Literária da Periferia (FLUP). A partir das inquietações debatidas nesse festival de poesia, prosa e ensaio nasceu esta metafísica da ocupação de uma cidade assombrada pelo racismo. Em um encontro diaspórico, poetas de diferentes partes do mundo se reúnem no Cais do Valongo, o maior porto de escravizados da História da Humanidade. Na companhia de ancestrais guardiões, com um visual de Exu e de pombajira, interpretados por Estrela D’Alva e Saul Williams, prestam homenagens aos povos da rua e proclamam, mais uma vez, que as vidas e a vozes negras importam. Lohmann assina a vertiginosa montagem do filme. ‘PETITE MAMAN’, de Céline Sciamma (França): “Pequena Mamãe” vai ser a tradução literal deste concorrente ao Urso de Ouro de 2021 no Brasil. Pequenininho (70 minutos) e silencioso, este drama da realizadora de “Portrait de la jeune fille en feu” (melhor guião em Cannes, em 2019) é um filme COM crianças e SOBRE as crianças que moram dentro de qualquer alma adulta. Logo, é um filme sobre rituais de passagem, sobre crescer. Só que o verbo doer é conjugado de maneira menos angustiante, e mais lúdica, quando fotografado com o realismo de Claire Mathon. Aos 8 anos, Nelly (Joséphine Sanz) sabe que a sua mãe vai se afastar, para resolver alguns problemas, deixando ainda mais oca a casa de campo da sua avó, que acaba de morrer. Às vésperas de partir daquele mundo de matas verdes, ela conhece outra menina (Gabrielle Sanz), que, não por acaso, tem o mesmo nome da sua mãe: Marion. Ali começa um jogo de projeção e uma afirmação da sororidade. ‘MEDIDA PROVISÓRIA’, de Lázaro Ramos: Esperava-se que o primeiro trabalho do astro de “Madame Satã” (2002) como realizador fosse se tornar “a” atração do SXSW 2020, até que veio a pandemia e passou o evento de Austin para o online. Meses depois, festivais na Europa e nos EUA se abriram a esse estudo sobre o racismo estrutural, batizado internacionalmente com o título “Executive Order”. A sua argamassa é a peça “Namíbia, Não”, de Aldri Anunciação, encenada sob a direção de Lázaro no Rio, em 2011. O filme arrancou elogios da crítica europeia em sua passagem pelo Festival de Moscovo e ganhou prémios de roteiro nos EUA e na Espanha. A trama se passa em um Brasil distópico, onde as populações negras do país são condenadas a abandonar o país e serem levadas para África, o que leva um advogado (Alfred Enoch), uma médica (Taís Araújo) e um jornalista (Seu Jorge) a reagirem a uma legislação racista. Tem participação de Emicida e tem Adriana Esteves no papel de uma vilã que traduz muitas das bestialidades da burocracia brasileira. ‘VENICE BEACH, CA.’, de Marion Naccache (Brasil, França): Um doloroso (mas necessário) olhar sobre os EUA sob a perspetiva da solidão e da resiliência. É um ensaio sobre o abandono, coproduzido por Ailton Franco, diretor da mostra Curta Cinema. A sua narrativa parte de um outono na famosa praia de Los Angeles, na Califórnia. Todas as manhãs, entre 5h e 9h, o nascer do sol é filmado. Quando o dia começa, os sem-teto, os verdadeiros habitantes da praia, acordam. Asua rotina diária é simples. Todos os dias, o mesmo ritual se repete: ao despertar, os moradores de praia têm que arrumar imediatamente os seus pertences e levá-los para o outro lado do calçadão. Eles têm direito
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de dormir junto aos prédios, mas, quando amanhece, têm que ir para a areia. Neste bairro plural, por onde passam corredores, turistas, garis, artistas e policias, as vozes do “povo das calçadas” expressam suas visões de mundo. ‘UNDINE’, de Christian Petzold (Alemanha): Cerca de um ano e 10 meses após a sua esteia na Berlinale 2020, este drama metafísico segue inédito em telas brasileiras, onde seu realizador ganhou uma recente retrospectiva via MUBI. A sua protagonista, Paula Beer, foi ovacionada na capital germânica ao conquistar o Urso de Prata de melhor interpretação feminina pela sua atuação. Petzold ainda ganhou o prémio da crítica, dado pela Federação Internacional de Imprensa Cinematográfica (Fipresci), a uma saga que fala de gentrificação em relação ao passado arquitetónico das cidades alemãs. Paula vive uma historiadora recém-abandonada pelo amante. Entre andanças para desopilar o peito, ela esbarra com um escafandrista (Franz Rogowski) com quem vai mergulhar fundo no querer, numa trama que evoca o mito da sereia. ‘CAFI’, de Natara Ney e Lírio Ferreira (Brasil): Num registo de afeto, uma das maiores montadoras do cinema brasileiro une forças ao realizador de “Árido Movie” (2005) para promover um estudo de tradições culturais pernambucanas. Esse estudo se faz em forma de um retrato do fotógrafo recifense Carlos Filho, o Cafi, que durante 40 anos dedicou-se a registrar grande parte dos acontecimentos da dança, teatro e da música popular brasileira. Gravações, shows, turnês e ensaios de importantes artistas passaram pelas lentes de Cafi. Tudo registado de maneira intimista e poética. Cafi também assinou imagens que ilustram mais de 300 capas de discos e encartes. RIFKIN’S FESTIVAL, de Woody Allen (Espanha, EUA): No Brasil, o novo Woody Allen estreia como “O Festival do Amor”. Por lá, produções como “Midnight in Paris” (2011) e “To Rome… With Love” (2012) somaram mais de um milhão de bilhetes vendidos cada uma. Dada a fidelidade histórica do público do Rio de Janeiro com o realizador de “Manhattan” (1979), possivelmente esta comédia de tons românticos – sobre paixões não correspondidas, o tema dele por excelência – há de driblar a cancel culture que hoje condena o realizador ao ostracismo. Ambientada no norte da Espanha, durante o Festival de San Sebastián, a trama acompanha as confusões do crítico de cinema Mort Rifkin (Wallace Shawn) ao perceber que a sua mulher, a publicista Sue (Gina Gershon), está encantada por um prepotente cineasta, Philippe (Lois Garrel). Com a sua cultura cinéfila vasta, Rifkin passa em revista cenas de clássicos como “Citizen Kane” (1941) e “Persona” (1966), com direito a uma bergmaniana participação de Christoph Waltz. ‘A VIAGEM DE PEDRO’, de Laís Bodanzky (Brasil – Portugal): A aclamada realizadora de “Como Nossos Pais”, lançado no Panorama de Berlim em 2017, retorna à realização de longas-metragens, após uma carreira na política cultural à frente da SP Cine, numa trama protagonizada por Cauã Reymond, que passa-se numa viagem de barco, da volta do D. Pedro I para a Europa. Ele foi praticamente expulso do Brasil, durante uma grande crise política e pessoal. É nisto que a cineasta mergulha nesse universo interior do monarca. Ao ser homenageada em Gramado, com o troféu honorário Eduardo Abelin, Laís disse ao C7 que fez “um filme de personagens, que fala muito mais do Pedro do que exatamente do D. Pedro I”. 3/4
‘BELFAST’, de Kenneth Brannagh (Reino Unido): Há uma expressão tipicamente brasileira, “cantou pra subir”, que é usada para pessoas que se livraram de algum fantasma que as emperrava a vida, como era o caso do espectro de Shakespeare sobre a carreira de Brannagh como cineasta. O bardo ficou para trás nas suas atuais (e bemsucedidas) escolhas. Selecionadas com uma precisão cirúrgica, de modo a estabelecer conexão com a dramaturgia, as canções de Van Morrison que inundam a banda sonora de saudosismo são um acerto a mais na narrativa do diretor de “Dead Again” (1991) e de “Hamlet” (1996). Há, sim, um gosto de uma formatação genérica nesse seu novo trabalho, com conexões um tanto quanto forçadas com as cartilhas de “How Green Was My Valley” (1941), “Hope and Glory” (1987) e mesmo o pouco citado “Dream House” (2002). Mas o seu visual arrebatador, no equilíbrio de matizes do preto e branco e do requinte dos enquadramentos, que suplanta o sabor de “já vi isso aí”, no canto da boca. E o charme com que Ciarán Hinds interpreta um avô batuta para o menino Buddy (Jude Hill), o alter ego de Branagh, humaniza uma narrativa que segue as angústias de uma família – narradas pelo olhar do caçulinha – achatada por um esboço de guerra civil armado em sua vizinhança.
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