Céline Devaux num tête-à-tête a três
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Vasco CâmaraEla e ele, Jeanne e Jean, nomes que pedem mesmo um tête-à-tête. Mas como é uma comédia, a improbabilidade do encontro exibe-se gigante. Veja-se o voo Paris-Lisboa, cidade onde ele (Laurent Laffite, poço de surpresas) vive depois da sua depressão e onde ela (Blanche Gardin, impecável de aspereza) chega para “arrumar a casa” depois do falecimento da mãe — sem ter assumido, quanto mais tratado, a sua depressão.
São dois mas são três. Porque anda sempre com Jeanne a sua voz interior, tal e qual um fantasma (com existência desenhada) no filme. E assim a comédia clássica, de uma inteligência fina de escrita, brilhante na rapidez e na síntese, faz um número de acrobacia: uma screwball comedy da mente.
Primeira longa-metragem de Céline Devaux, que ela escreveu, realizou e desenhou, Toda a Gente Gosta de Jeanne atreve-se a organizar uma conversa de uma cineasta e desenhadora consigo própria, isto é, com o cinema, com a BD e com a ilustração, pondo a falar uma paisagem mental, interior.
Com Toda a Gente Gosta de Jeanne a francesa Céline Devaux escreveu um filme para Lisboa. Cidade onde testemunhou “os últimos momentos de uma ilusão europeia”. A “crise”... Guillermo Vidal
Quanto à paisagem exterior, Lisboa, o filme é igualmente justo, certeiro e elegantemente clássico: faz desaparecer qualquer vestígio de turismo do olhar e devolve aos lisboetas a cidade que eles andam a ignorar.
Os diálogos entre Jeanne [Blanche Gardin] e o irmão [Maxence Tual], quando ela precisa de dinheiro, são curtos mas pode-se compreender tudo o que se passou entre eles. Essa síntese era o artesanato da comédia clássica americana.
Cresci com os filmes que utilizavam esse artesanato. Eram os filmes da minha adolescência que ia ver ao cinema. Não são filmes que quereria ver hoje, mas são filmes que chegavam à emoção de forma extremamente rápida. Uma vez posto isso em marcha, podíamos contar tudo o que quiséssemos. E vi isso tanto em comédias românticas anglosaxónicas como em Alain Resnais. Havia a mesma capacidade em impor uma personagem dizendo “esta personagem existe e agora vais ficar com ela”. Tudo através da arte do diálogo: uma frase chegava para fazer compreender o passado de alguém, e uma blague para instalar a relação entre as personagens.
Uma frase chega para tudo explicar, sem precisarmos de explicação. Essa é uma das grandes alegrias do cinema: encontrar amigos porque alguém foi capaz de os escrever.
Tenhoumarelaçãomuitoromanescacomaexperiênciadavida.Eporissotenhoa necessidadedetudosaberedetudocontaraomesmotempo.Comonavida.Temosuma experiênciaúnicaqueéfragmentadaemváriasemoções,emváriaslembranças”
Essa base clássica é depois ocupada por entidades alienígenas: vozesfantasma que transformam qualquer tête-a-tête em coisa a três. E trazem para dentro do plano um mundo mental.
Penso que recuso o contrato do cinema. Não consigo aceitar os constrangimentos que todos temos enquanto realizadores de ir procurar a narrativa a todo o custo. Claro que toda a gente já quebrou essa relação. Mas tenho uma relação muito romanesca com a
experiência da vida. E por isso tenho a necessidade de tudo saber e de tudo contar ao mesmo tempo. Como na vida. Temos uma experiência única que é fragmentada em várias emoções, em várias lembranças. Isso é o épico, a aventura da vida. Tenho necessidade de encontrar a densidade de cada situação. Acontece algo à personagem, ela vê isto, mas escuta aquilo...
Pensei em Woody Allen, no dispositivo, que teve um cume em Annie Hall, de se dirigir ao espectador. Comentava ou destruía cada sequência, psicanalisando-a. No seu caso, o que se passa na cabeça da personagem é também imagem, através de desenhos.
O desenho para mim é o meio rei, absoluto. É a liberdade total. Quando descobri Woody Allen, senti-me exasperada ao ouvi-lo falar; depois passei a amá-lo. Não compreendi porque é que me exasperava. Talvez não estivesse ainda em contacto com a minha depressão [risos]. Não percebia porque é que aquela pessoa era assim tão interessante. Depois percebi que impor a catarse é algo de muito bizarro: “Vou-te mostrar como sou, no interior, no exterior, e tu vais aceitar o que te digo”. Com o desenho isso é feito de forma universal, porque a personagem fantasma não se parece com ninguém.
Como se a voz fosse eco do espectador. Como se o fantasma dissesse algo por nós.
Espero que sim. A voz interior é uma coisa misteriosa. Quando tenho dúvidas sobre algo que fiz, a voz que oiço não é a minha, é um rumor, algo que é lancinante, que é mais angustiante do que a minha própria voz.
Ele fez as pazes com a sua depressão; ela não...
É o triunfo da depressão, o seu filme. [Risos]
Vejamos o caso de Jean, que começamos a achar que é uma coisa e que se torna outra, uma surpresa. Há uma pacificação nele, porque assumiu a sua depressão, ao contrário de Jeanne.
Jean [Laurent Lafitte] nasce do desejo de criar uma personagem que eu gostaria de ser. Uma espécie de revolta contra a ideia de que temos de ser produtivos a todo o custo — mesmo nos metiers mais livres. “Hoje tem de sair algo de mim, tem de aparecer um produto”. Ele está num niilismo muito pacificado e feliz depois de ter vivido o pior. Não tem necessidade de produzir para existir.
A depressão é uma palavra que mete medo: a sensação de que podemos ser contaminados pelas pessoas deprimidas ou ansiosas. Mas a depressão é algo tão comum, que se não falamos dela, é como se não falássemos da vida. Entre a ligeira angústia e a bipolaridade há todo um espectro de possibilidades em relação ao que podemos sentir como seres humanos.
Toda a Gente Gosta de Jeanne
Realização: Céline Devaux
Actor(es): Blanche Gardin, Laurent Lafitte, Maxence Tual, Nuno Lopes
Para que o filme funcionasse precisava de várias coisas dos actores: que interpretassem de forma sóbria e que houvesse ternura. É um filme que fala de coisas duras e que é suposto ser engraçado. Quando se fala de coisas duras e é suposto ser-se engraçado, aparece o cinismo, com piadas sobre a morte, sobre o planeta. Isso é idiota para mim como humor.
Sendo um filme sobre a invasão por parte do espaço mental, é simultaneamente um filme próximo de corpos e de lugares. Como uma screwball comedy mental, na verdade.
Para mim o graal é o verdadeiro trágico alojado no slapstick. Buster Keaton dá-me vonta de chorar. Quando era criança angustiava-me. O mesmo com Charlie Chaplin. É a miseen-scène, supostamente engraçada, do desespero.
Comecei a escrever e a personagem de Jeanne estava com dificuldade em existir. Não conhecia Blanche Gardin, mas admirava o seu trabalho. Ela é em França uma celebridade do stand up. Tem um jogo de cena preciso, muito sério, mexe-se pouco. Comecei a escrever para ela, sabendo que lhe iria propor um papel que raramente lhe propõem em que ela fala pouco, em que chora. Normalmente as pessoas contratam-na porque ela é conhecida e para fazer o que ela faz em palco. Escrevi para ela. Se ela não aceitasse ao menos teria uma personagem. Mas aceitou. Era preciso então encontrar um acólito. E que esse acólito fosse muito técnico e com vontade de interpretar uma personagem maculina que no início pensamos ser algo tóxica. Lauren Laffite aceitou pelo argumento e pala vontade de trabalhar com Blanche.
Curiosa a forma como evocou Buster Keaton e depois falou de Blanche: há uma impassibilidade de clown nela também. Mas agora a co-podução: é um campo propício a ratoeiras, com actores e personagens que existem para cumprir quotas. Ora, nada disto é o seu filme. Com o olhar sobre Lisboa passa-se o mesmo que com o diálogo entre os irmãos: em poucas cenas está tudo dito sobre a cidade hoje. Aquele plano da mulher à janela que é a última habitante do prédio. Conhecia Lisboa? Sim, e reencontrei Lisboa e os meus amigos durante a crise. Tornei-me amiga de pessoas da minha idade nos últimos momentos de ilusão europeia. Fo uma revelação política. È diferente de ler no jornal “austeridade em Portugal” ou “crise na Grécia” e ter a experiência. Eu, que vinha de um país em que se falava de austeridade mas onde ninguém a sentia, entrava em contacto com pessoas da minha idade em que isso era factual. Escrevi desde o início para Lisboa. Queria falar da relação com o território europeu. Queria falar desse momento um pouco triste que foi passar da acessibilidade à viagem para os que não tinham muito ao facto de serem eles depois a destruírem as cidades. O que começou por ser uma democratização incrível, tornou-se algo de trágico.
Sylvie Pialat [produtora francesa] conhecia Luis Urbano [produtor português]. Eu conhecia-o dos filmes que ele produzia. Eles têm uma maneira de trabalhar semelhante. Cheguei devagarinho, atenção, cinefilia portugesa!, cheguei intimidada, fiz o meu trabalho, atenta aos bairros em que o filme se passava, verifiquei bem tudo o que escrevia — por falar em Woody Allen: ele escreve belos diálogos, mas o que ele fez com as cidades europeias… o síndrome do filme de turista.
Desenhos… desenha. Qual é a voz do desenho para si?
Quando estou a rodar com pessoas, penso sempre que elas são mais competentes do que eu na suas competências. Confio-lhes algo para que elas desenvolvam os seus talentos em algo que não sei fazer. A música, a interpretação, a imagem. Sei o que quero, mas o que é belo para mim é estar em colaboração. Quando desenho, isso já é a minha matéria. Estou sozinha. É um momento de fabricação e de reflexão que é único. Tenho o privilégio de poder continuar a fabricar o meu filme depois do tempo do plateau. Desenho para mim, desenho para outras pessoas, mas o momento em que gosto mesmo de desenhar é quando desenho para fazer um filme. As ideias mais fortes vêm-me quando sei que essas imagens vão mexer. Escrevo desenhando.
A voz do filme, o seu humor, áspero, é a sua? Sim.
Podia estar no filme, como Woody Allen?
Os actores são extremamente corajosos por se colocarem numa situação de extrema vulnerabilidade e confiança. Dizendo: dou-te tudo o que sou, o que interpreto, mas não tenho a mínima ideia do que vais fazer com isso, como vais montar. Acho isso de loucos. Tenho admiração enorme por eles. Não me vejo metida nisso. Já a voz é outra coisa. Dirigimo-nos a alguém mas escondemo-nos. Por um acaso de circunstâncias foi a minha voz. Devia ser a de Blanche, mas como ela é uma personagem pública, se tivesse sido a sua voz, funcionaria como um comentário exterior ao filme. Eu tinha gravado a minha voz com o telefone durante a montagem, para fazer avançar o filme, muito relaxada, porque não era suposto ficar, e como estava muito relaxada, funcionou.
Há um retrato seu no filme, uma autoficção?
Não sei se minha voz faz do filme um retrato meu...
Falo da voz já não em sentido literal, mas como espaço mental. É a sua cabeça?
Perguntam-me muito isso. Mas acho que o fazem porque raramente estamos dentro da cabeça de uma mulher, com este nível de intimidade.
Não, no meu caso é uma questão de formas, de construção: estamos dentro de um espaço mental e sendo um filme escrito, realizado e desenhado por si…
Quero contar o que se passa na cabeça de uma mulher. Como sou uma, utilizo a minha experiência — e de outras mulheres que conheço. Meti ali o meu humor, a minha experiência e a de outras pessoas, e meti ali ficção. Não estou lá só eu, não se trata só de autoficção. Podemos falar de autoficção mas não de autodescrição. Porque contei das coisas de que mais medo tenho. Mas são coisas que não aconteceram. O que acho engraçado hoje no cinema é que cresci num cinema popular em que os homens tinham a possibilidade de ser muitas pessoas, grosseiros, sérios, amorosos. As mulheres eram apenas uma ou duas. Ora, a vida interior das mulheres é muito aventurosa, passam-se muitas coisas, mas tudo coberto por um véu sagrado: a dor, a vergonha do que elas vivem fisicamente, uma sexualidade misteriosa. Mas hoje isso está a mudar. E essa mudança passa por coisas ultragrosseiras. Está-se com os homens no seu medo de serem frágeis, de não serem sexualmente performativos... está-se com eles nas suas inquietudes. Mas com as mulheres, ou é secreto ou é revoltante. Esse lado aventureiro, há a vontade de contar essa divertida navegação.