Cinco portugueses e uma Lisboa-fantasma no regresso do Festival de Cannes

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Cinco portugueses e uma Lisboa-fantasma no regresso do Festival de Cannes publico.pt/2022/05/16/culturaipsilon/noticia/cinco-portugueses-lisboafantasma-regresso-festival-cannes-2005914 Vasco Câmara

Cultura-Ípsilon Exclusivo Cinema

Até ao próximo dia 28, a 75.ª edição do maior festival de cinema do mundo fará entrar em cena Cristèle Alves Meira, Tiago Guedes, Falcão Nhaga, João Pedro Rodrigues e João Gonzalez. E há também a Lisboa da francesa Céline Devaux.

O primeiro filme português a entrar em cena na 75.ª edição do Festival de Cannes, que esta terça-feira se inicia, será Alma Viva, de Cristèle Alves Meira. Passará logo no segundo dia, secção Semana da Crítica, território já antes frequentado pela luso-francesa de 39 anos, porque aí foram exibidas as suas curtas-metragens Campo de Víboras, em 2016, e Invisível Herói, em 2019. Mas também é uma estreia, Alma Viva: é uma primeira longametragem na história da cineasta. É o filme que Cristèle foi preparando com as curtas. O ponto de chegada de anteriores incursões a um território que chama “seu”, Trás-os-Montes, origem familiar e viveiro de figuras transgressoras, personagens femininas fiéis aos seus fantasmas. A história de uma miúda, Salomé, que num dos seus regressos a Portugal, vinda de França, para passar férias com a avó (e encurtamos aqui razões), é apontada na aldeia como bruxa. Quem interpreta Salomé é a própria filha da realizadora, Luna Michel. Juntando tudo, a energia brutalista do filme, o olhar sobre a transmissão familiar como coisa infernal, a dimensão fantasmática e íntima, catártica mesmo, são coisas vigorosas. Uma das matérias que a realizadora molda de forma impressionante é humana e selvagem: o elenco, mistura de profissionais (Ana Padrão, por exemplo) e não profissionais. Seguir-se-á, no festival, Restos de Vento, de Tiago Guedes, 50 anos, filme produzido por Paulo Branco e com Albano Jerónimo como protagonista (será exibido no sábado, dia 21, em sessão especial, fora de concurso). Repete-se a equipa de A Herdade, e com ela permanecemos no interior de Portugal e com a violência das tradições.

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No dia 24 aglomeram-se os outros três portugueses de Cannes 2022: as curtas Mistida, de Falcão Nhaga (Cinéfondation), e Ice Merchants, de João Gonzalez (Semana da Crítica), e a longa Fogo-Fátuo, de João Pedro Rodrigues (Quinzena dos Realizadores). Falcão, 22 anos, acaba de ser premiado no IndieLisboa com o Grande Prémio da CurtaMetragem. O seu filme, produção da Escola Superior de Teatro e Cinema, foi seleccionado para a Cinéfondation, panorama das escolas de cinema de todo o mundo. Mistida filma uma deslocação no espaço: um filho ajuda uma mãe com as compras, no caminho de casa. Mas a conversa entre essa mãe, imigrante guineense (Bia Gomes), e esse filho (Welket Bungué) tem o fôlego de uma viagem no tempo. A experiência é íntima e simultaneamente política. Mistida é uma comovente homenagem a um património de ilusões e sofrimento. Há outra curta portuguesa em Cannes, Ice Merchants, de João Gonzalez, 26 anos. É o terceiro filme de um realizador faz-tudo, ilustração, música, cinema, mas o primeiro fora do seu currículo escolar. Segue-se a The Voyager (2017) e Nestor (2019) e continua a edificação de um edifício obsessivo, feito de paisagens impossíveis, paisagens a que só a animação chega. É a história de um pai e de um filho que todos os dias se atiram de páraquedas, do alto do precipício na montanha onde se equilibra a sua casa, para venderem gelo na aldeia, cá em baixo. É já um (belo) corpo de cinema: a imagem e o som, a animação e a performance musical, paisagens mentais ásperas e intrigantes. Finalmente, Fogo-Fátuo assume-se, no genérico, como uma fantasia musical de João Pedro Rodrigues, 56 anos. Faz sentido, pelo mozartiano divertimento que o realizador nos oferece, juntando Caravaggio e Greta Thunberg, republicanos e realistas, covid-19 e incêndios nas florestas, o musical e a ficção científica, 2011 e 2069, uma dança entre Alfredo e Afonso, bombeiros de origem social oposta e cor de pele diferente. Mas o que comove é o seu aspecto de breviário, como um pequeno livro da liturgia do cinema do realizador de O Fantasma, em que o corpo é o lugar da pureza e da anarquia. Isto também significa que, sendo um divertimento, uma fantasia, Fogo-Fátuo não suspende nem o rigor formal, nem a contemplação. Pelo contrário, trabalha-os apurando os sentidos, olhando-se ao espelho num embevecido jogo erótico.

Lisboa sem clichés Cristèle Alves Meira, Tiago Guedes, Falcão Nhaga, João Pedro Rodrigues, João Gonzalez... mas também uma Lisboa-fantasma por via da francesa Céline Devaux e da sua primeira-obra, Tout le Monde Aime Jeanne (sábado, dia 21, Semana da Crítica). É uma co-produção, entre a francesa Les Films du Worso e a portuguesa O Som e a Fúria. Se se pode admirar o transtorno ciclotímico do filme e da sua personagem, uma francesa, afogada em dívidas e deprimida, que vem a Lisboa encerrar os assuntos da mãe falecida e vender o seu apartamento, e ainda se, por extensão, não se pode deixar de considerar impecável a aspereza de Blanche Gardin, a intérprete dessa Jeanne de que toda a gente gosta(va), pode também usufruir-se Tout le Monde Aime Jeanne como um festivo glitch, uma voluntária anomalia no sistema estético das co-produções, quando países, cenários e cidades (e actores) são utilizados para preencher quotas multinacionais. 2/3


Foto Blanche Gardin, a Jeanne do filme de Céline Devaux DR

Havendo, sim, actores de diferentes nacionalidades, o belo filme de Devaux não aliena a sua estranheza, a sua idiossincrasia (é um filme “escrito, realizado e desenhado” por ela), não abdica de uma conversa consigo própria, isto é, com o cinema, com a banda desenhada e com a ilustração (de novo: é um filme “escrito, realizado e desenhado” por ela), para pôr a falar uma paisagem mental, interior. O retrato de Lisboa é pontilhista, difuso. Não cabem nele clichés. Justo, por isso, na sua fantasmagoria.

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