Não é a velha comédia à portuguesa, é o Natal segundo Bruno Aleixo

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Não é a velha comédia à portuguesa, é o Natal segundo Bruno Aleixo publico.pt/2022/12/22/culturaipsilon/noticia/nao-velha-comedia-portuguesa-natal-segundo-bruno-aleixo-2032350 Mário Lopes

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É como o Conto de Natal de Dickens, mas sem a lição de moral e sem a Inglaterra vitoriana. Uma peça mais para juntar a este universo em permanente construção criado por Pedro Santo e João Moreira.

Foto O Natal do Bruno Aleixo é o segundo filme dedicado à personagem revelada em 2008 DR

É como o Conto de Natal de Dickens, mas o Scrooge deste O Natal do Bruno Aleixo, com estreia esta quinta-feira, está em coma depois de um acidente rodoviário em Coimbra e os médicos, com a ajuda de família e amigos, tentam acordá-lo através de recordações marcantes, traumáticas, de natais passados. E, ao contrário do original, este Scrooge chamado Bruno Aleixo não é um ser desprezível que se redima no final. “O Scrooge era execrável, o Aleixo é um gajo normal, com as suas manias, os seus 'rabujos'. Na verdade, nunca se sabe bem se ele odeia assim tanto o Natal”, diz ao PÚBLICO Pedro Santo, que assinou com João Moreira a realização do filme. Santo e Moreira são os criadores deste universo humorístico inesperado e inimitável, golpe de asa que fez de uma bizarra galeria de personagens, colocadas na região centro e permanentemente ocupadas a falar de tudo e de nada, como se fala de tudo e de nada nos cafés de todas as localidades portuguesas, um retrato memorável de um país e seu temperamento. Como cabeça de cartaz, Bruno Aleixo, inicialmente um ewok, transformado em cão por cirurgia plástica (culpemos George Lucas), bairradino nascido em Coimbra e com raízes familiares no Brasil, dado à boa comida, a tradicional, e leitão acima de tudo, cidadão 1/3


rezingão, desconfiado, manhoso quanto tem oportunidade, adepto do desenrascanço, alguém que sabe tudo sobre tudo, ou melhor, que sabe falar com propriedade (a sua, inabalável) sobre o que quer que seja e que se recusa a perder uma discussão. A acompanhá-lo, o ponderado Busto, que é, precisamente, um busto de Napoleão, Renato Alexandre, o eterno universitário em Erasmus com rosto de Monstro da Lagoa Negra, o velho amigo Homem do Bussaco, figura hirsuta de linguajar agressivo e impenetrável sem legendagem, ou o doutor Ribeiro, médico que uma bizarra doença tornou invisível. “São bonecos estranhíssimos, mas nada daquilo nos é estranho. É o tipo de conversas que podemos apanhar num café ou que podemos ter com a nossa avó”, dizia João Moreira ao PÚBLICO em 2020.

Um drink sobre o Muro de Berlim O Natal do Bruno Aleixo é então como o Conto de Natal de Dickens, mas sem a lição de moral e sem traços de Inglaterra vitoriana. É a velha comédia à portuguesa, não essa em que estão a pensar, mas esta, sem par e sem descendência, que nasceu há década e meia quando Aleixo nos apareceu no YouTube apresentando com peculiar pronúncia (Bairrada meets Brasil) uma série de inesperados conselhos de vida. Enquanto o culto alastrava país fora e se estendia ao Brasil (O Natal do Bruno Aleixo teve antestreia, em Outubro, na Mostra Internacional de Cinema de São Paulo) seguiram-se mais vídeos na internet, talkshows, rubricas na rádio, séries televisivas. No início de 2020, estreou O Filme do Bruno Aleixo, falso biopic em que Aleixo e a sua galeria de personagens eram interpretados por Adriano Luz, Rogério Samora, Gonçalo Waddington ou José Raposo. O Natal do Bruno Aleixo é uma viagem ao passado do personagem, que ilumina traços biográficos desconhecidos (natais na infância, na Bairrada e no Brasil, na juventude e em casa dos sogros nos anos 1980, entre amigos e cartadas no presente) e que mostra Bruno sob uma luz que não conhecíamos até agora. “Ele tem sempre muito ascendente, e aqui vemo-lo em situações de fragilidade”, diz Pedro Santo. Aleixo, o homem que sai sempre por cima – nas apostas, nas teimas, nas discussões —, sente-se, por exemplo, peixe fora de água, inseguro, em casa dos sogros, o que faz irromper questões de classe quando ele, habituado aos seus Natais bairradinos — "muita gente, tudo a comer à balda, tudo a comer, o que é ali, de facto, o essencial" —​se vê isolado entre a família “coimbrinha”, betinha, da então mulher — "menos gente, tudo muito solene, um drink e falar do Muro de Berlim". Pedro Santo explica que, quando abordados por Luís Urbano, da produtora O Som e a Fúria, para se aventurarem em nova película, tendo este sugerido um filme natalício, “o arquétipo do Dickens pareceu bom ponto de partida, sobretudo pela questão onírica, os sonhos”. Há uma dimensão prática envolvida. “Temos sempre que arranjar um subterfúgio técnico qualquer para pôr o Aleixo nestas empreitadas maiores, porque a nossa animação é um campo-contra-campo de imagens quase paradas”. Neste caso, em

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contraste com o primeiro filme, foram dispensados quase totalmente os cenários e os actores reais, substituídos por sequências de animação criadas por autores como João Alves ou Rafael Hatadini, entre outros.

Foto Bruno Aleixo num Natal da sua infância DR

O resultado é uma peça que se acrescenta a um universo em permanente construção, puzzle desdobrado nas mais diversas plataformas, e uma história clássica devidamente subvertida aos desígnios deste imaginário cuja aparência bizarra – falamos, afinal, de ewoks, monstros, bustos – é fachada para algo tremendamente familiar. Reconhecemos, afinal, aquelas manhas, aquelas tiradas, as referências à cultura popular dos últimos 40 anos. Neste caso, com o valor acrescentado de estarmos perante um retrato, esse que se forma nas entrelinhas do que vemos e ouvimos, que foge ao padrão de um país demasiado centralizado. “Não é uma luta constante, mas de vez em quando vem à baila a questão dos sotaques. Como Lisboa agrega os meios de comunicação, o sotaque acaba por uniformizar-se como padrão. Nós nunca fizemos isso.” As personagens de Bruno Aleixo, nascidas em Coimbra, em Condeixa ou em Óbidos, “não vão passar a dizer ‘vermalho’ e ‘coalho’ só porque se ouve mais. Isto continua a ser uma empreitada pequena, de nicho, mas ajudará a descentralizar algumas ideias”, defende. Pode ser empreitada de nicho, mas a obra criada até agora e a forma como se vai inscrevendo na memória popular, diz-nos que o seu alcance será maior do que aparenta. Temos como prova novo filme a estrear, novo tomo dessa velha comédia à portuguesa segundo Bruno Aleixo.

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