Vidas secas no Curtas Vila do Conde em português

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Vidas secas no Curtas Vila do Conde em português publico.pt/2022/07/14/culturaipsilon/noticia/vidas-secas-curtas-vila-conde-portugues-2013682 Jorge Mourinha

Cultura-Ípsilon Exclusivo Cinema

As Sacrificadas, Pê, O Teu Peso em Ouro, Heitor sem Nome: quatro filmes portugueses entre o autoral e o narrativo.

Foto Marcello Urgeghe é um hipnotizador misterioso na nova curta-metragem de Sandro Aguilar DR

Uma das coisas que costumam marcar significativamente a curta-metragem que se faz em Portugal (e não só) – e da qual o Curtas Vila do Conde, a par de outros festivais, é testemunha – é o lado de “curta de autor”, em desprimor da “curta do meio”, de apelo mais popular. Ou seja, o prolongamento no formato curto da linguagem autoral que caracteriza, para o bem e para o mal, muito do cinema nacional que faz o circuito internacional de festivais. São por isso bem-vindos no concurso nacional do Curtas quatro filmes que não abdicam da vontade de falar a um público mais alargado sem por isso perderem uma dimensão elíptica que se ajusta que nem uma luva ao tamanho pequeno. A surpresa é As Sacrificadas, da luso-suíça Aurélie Oliveira Pernet. Não é uma estreia mundial – passou no Festival de Roterdão – mas surge na competição do Curtas com especial e perturbante actualidade, pois os incêndios rurais de Verão são o seu pano de fundo. Mas o que verdadeiramente interessa neste filme, como o título aliás o anuncia, é outra coisa: a sensação de vidas perdidas, desperdiçadas, pelo simples facto de serem vidas de mulheres, através da história de uma filha “sacrificada” por ter de tomar conta da mãe doente, e das tensões (internas e externas) que isso cria.

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Foto As Sacrificadas aborda o peso da condição das cuidadoras informais DR

Como madeira seca que a mínima faísca ou fagulha corre o risco de incendiar, também as mulheres deste filme, sistematicamente minimizadas por um patriarcado suspeito, são bombas-relógio sempre à beira de explodir, filmadas de modo directo e sem complacências, com a sobre-excelente presença de Tânia Alves a transportar às costas este retrato de mulher que está a deitar fora a sua vida. Uma outra bomba-relógio é o cancro diagnosticado a Pê, personagem que dá título à primeira realização da actriz Margarida Vila-Nova, num argumento em co-autoria com Edgar Medina e inspirado num conto de Pedro Martins. Pê é o sempre excelente Adriano Luz (que é também uma inquietante presença secundária em As Sacrificadas), que sabe logo no primeiro plano do filme precisar de quimioterapia e de uma cirurgia de alto risco.

Foto Adriano Luz é o protagonista de Pê, estreia de Margarida Vila-Nova na realização DR

O que se segue, contado com segurança e elegância, é um cruzamento de tempos, entre os últimos dias de um homem que põe em ordem os seus assuntos e a visita da filha à casa para tratar das heranças. A morte não costuma ser um tema muito explorado no cinema português, e o modo como Margarida Vila-Nova o faz é recomendavelmente solto e sem complexos – com um pequeno rasgo na escolha de Chico Buarque e do seu Vai passar para fechar a história. Chico Buarque, aliás, marcou presença noutra curta competitiva: Heitor sem Nome, com a qual Vasco Saltão sucede ao altamente recomendável Ave Rara, que encerra igualmente ao som do cantautor brasileiro. Aqui, a opção recaiu sobre Deus lhe pague, 2/3


particularmente apropriado a esta história de um pobre vigia quinhentista e do seu burro que fazem uma “viagem fantástica” aos dias de hoje. Faz pensar, obviamente, em Robert Bresson, mas é um filme mais disperso do que Ave Rara, e mais negro (para não dizer mais convencional) no modo como explora o destino aparentemente imutável dos oprimidos e explorados.

Foto Heitor Sem Nome dr

Há ainda que falar do bem-vindo retorno à narrativa de Sandro Aguilar, o mais consistente dos exploradores nacionais da curta-metragem. O Teu Peso em Ouro, o título que estreia no Curtas, é um magnífico objecto que marca o reencontro do seu cinema elíptico e atmosférico com uma dimensão narrativa mais límpida, num misterioso triângulo entre um hipnotizador misterioso (Marcello Urgeghe), um doente ansioso (João Pedro Bénard) e uma mulher sedutora (Isabel Abreu). De uma sensualidade particularmente táctil e envolvente, O Teu Peso em Ouro afasta-se das abstracções que preenchem muitos dos trabalhos mais recentes do cineasta para se cruzar com a narrativa mais legível de Mariphasa, confirmando que ainda existem surpresas a revelar num cinema que julgávamos já estar perfeitamente cristalizado. Uma bela adenda a uma recomendável selecção portuguesa para os 30 anos do Curtas. Pê passa no programa 12 da Competição Internacional esta sexta-feira às 20h30, voltando a ser exibido no programa 5 da Competição Nacional, este sábado, às 16h. O Teu Peso em Ouro pode ainda ser visto no programa 2 da Competição Nacional, sexta-feira, às 16h; As Sacrificadas e Heitor sem Nome terão nova exibição no programa 3, esta sexta, às 20h.

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