O Design Gráfico no Brasil: J Carlos e a Revista o Malho issuuu

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OS RÁPIDOS TEAM

Organização e Projeto Gráfico





SUMÁRIO 8 12 15 16 18 30 32 37 38 40 42 48 50 52 54 56 58 60 62 68 72 78 82 86 90 95 96 98 108


PREFÁCIO

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O presente volume é o resultado de uma minuciosa pesquisa sobre o artista, designer e publicitário carioca José Carlos de Brito e Cunha (Rio de Janeiro, 18 de junho de 1884 — Rio de Janeiro, 2 de outubro de 1950), ou como era mais conhecido J. Carlos. Ainda sobre a pesquisa, ela foi focada no período em que J. Carlos trabalhou na revista O Malho, que criada em 1902, foi ter o auxilio do ilustrador em 1920 quando já era bastante popular. Por abordar parte da vida de um talentoso ilustrador O Design Gráfico no Brasil - J. Carlos e a Revista O Malho é ricamente ilustrada com trabalhos do artista e nesse aspecto pode se notar primoroso trabalho gráfico. Complementando esse material o livro ainda vem em conjunto de um livreto com outras obras de J. Carlos, composta de capas, charges, caricaturas entre outros. Perfeito para colecionadores. Introduzido ao conhecimento do leitor a vida de J. Carlos segue-se uma análise da revista O Malho e as alterações sempre benéficas que a revista sofreu quando sob sua direção. Aqui podemos ver o lado Designer Gráfico do artista e sua sensibilidade para contornar os problemas que a revista apresentava em sua estrutura bem como seu profundo conhecimento do público consumidor que incluíam entre eles, analfabetos e semianalfabetos.


Importante para o leitor entender o Brasil naquele momento, durante a década de 20 e desta forma compreender um pouco mais sobre a revista O Malho, seu conteúdo e a visão que J. Carlos tinha sobre determinados assuntos. Dessa forma o leitor encontrará um capitulo bastante descritivo sobre vários aspectos do país que influenciavam o conteúdo d’O Malho e como eles eram retratados por J. Carlos. E então se encerra o período de J. Carlos n’O Malho (bem como a própria revista por algum tempo). Os assuntos políticos, o principal tema da revista, acabam por decidir seu destino quando ela se posiciona contra Getúlio Vargas. Aqui podemos acompanhar as capas e charges que ilustraram a revista nessa intensa fase política bem como o desenrolar da história do Brasil nesse período. Os ‘personagens’, J. Carlos, O Malho e o Brasil se complementam em um todo nesse livro. Tamanha relevância de assuntos recebe aqui o digno tratamento que merecem e para aqueles que de alguma forma, estudo, curiosidade ou puro lazer tenha chegado até este livro, saiba desde já que não vai se decepcionar.

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APRESENTAÇÃO

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Em 1902 era publicada a primeira edição d’O Malho, a revista contava em seu conteúdo com um forte caráter político e suas capas chamavam atenção com as charges ilustradas por grandes artistas. Em 1922 J. Carlos faria parte do time editorial do grupo Pimenta e Melo, atuando como diretor gráfico d’O Malho bem como das outras revistas do grupo. J. Carlos fez muito mais do que charges para a revista, chegou mesmo a retrabalhar importantes aspectos na estrutura visual d’O Malho, elevando a revista a um novo patamar gráfico, mais moderna e acessível para seu público-alvo diversificado. Mesmo décadas depois de encerrada sua publicação a revista ainda causa deslumbramento em quem por acaso visitar suas páginas, seja através de edições digitalizadas disponíveis na internet ou de alguma rara edição física encontrada em sebos. Surgida à oportunidade da criação do livro O Design Gráfico no Brasil, crucial foi a escolha do tema J. Carlos n’O Malho. O esforço aqui presente teve como intuito compartilhar a experiência quando do contato com a revista O Malho e o profissional J. Carlos, por isso o livro contém uma grande quantidade de imagens que por si só já contam uma grandiosa história sobre o talento que contemplou o Brasil no início do século XX.


Quanto ao conteúdo textual, a busca foi por certa abrangência de informações e não poderia ser diferente, pois há muito o que se falar desse ‘recorte’ da história do Brasil. E para que não se tornasse algo confuso o livro foi criteriosamente dividido em capítulos que tratam da trajetória de J. Carlos como chargista e seus primeiros trabalhos no ramo editorial, sua atuação na revista O Malho como diretor de arte e conclui com o fim de sua carreira na revista bem como o fim temporário desta. O Design Gráfico no Brasil - J. Carlos e a Revista O Malho foi pensado como um item de colecionador desenvolvido com materiais resistentes de primeira linha, um belo acabamento gráfico e forte apelo visual, mas mais do que uma peça de enfeitar estante o livro pretende instruir o leitor sobre seu conteúdo de forma clara e objetiva como nenhum outro fez antes dele.

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I - A TRAJETÓRIA

A Serviço da Imagem

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Chamam atenção a vivacidade e o prazer com que toda uma geração de artistas cariocas mergulhou na pluralidade de experiências propostas pela modernidade da década de 1920. Seduzidos pelas transformações sociais dessa época de ebulição e atentos aos avanços tecnológicos no meio editorial, Bastos Tigre, Olavo Bilac, Lima Barreto, Benjamim Costallat, João do Rio, nas letras, e, na área gráfica, Julião Machado, Raul Pederneiras, K. Lixto, J. Carlos, dentre outros, trabalharam na colaboração e na criação dos principais semanários ilustrados de grande circulação, escrevendo e diagramando as revistas, produzindo os anúncios comerciais, e desenhando as charges políticas. Esses artistas souberam unir arte e tecnologia numa atuação fundamental para a modernização do parque gráfico brasileiro: O ilustrador subsidiou a produção periódica, por vezes em atuação mais importante que o próprio redator. Profissional do momento, a serviço da imagem, sua presença era imprescindível, fosse por reproduzir as novas técnicas ou por qualificar a publicação com seu traço, garantindo colocação no mercado. [MARTINS, 2001, p. 184]


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Mais interessados em dialogar com a cidade do que em teorizar sobre a modernidade artística, não tiveram dificuldade em encontrar um lugar para a arte no novo cenário urbano, criando uma linguagem gráfica moderna e ao mesmo tempo popular. Os impressos em geral e as revistas ilustradas em particular ocuparam um lugar estratégico na assimilação do processo modernizador. Fragmentadas e sintéticas, elas pertenciam ao novo espaço/tempo criado pela modernidade, e por isso se tornaram um de seus principais veículos culturais. Suas páginas coloridas atenuavam, com humor, ironia, deboche e sensualidade, a angústia provocada pelas transformações sem precedentes ocorridas tanto na esfera urbana quanto no mundo privado. Saúde, moda, turismo, favelas, automóveis — nada escapava aos olhos agudos de seus colaboradores. Por meio de charges, artigos e crônicas, interpretavam e questionavam os acontecimentos ao mesmo tempo em que reverenciavam as novidades, anunciando com graça e requinte as mercadorias cujo consumo seria uma das características da era que se inaugurava.


I - A TRAJETÓRIA

J. Carlos Ilustrador e Chargista

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O Malho foi a mais interessante Revista Ilustrada da República Velha, não só por sua permanente intervenção humorística na política do país, como também pela qualidade dos chargistas que reuniu durante sua longa existência. Fundada em setembro de 1902 pelo jornalista Luís Bartolomeu, foi a partir de 1904 com o trabalho de Agostini que a revista ganha consistência política e importância cultural. Além dele, três gerações de grandes chargistas passaram por suas páginas, como J. Carlos, K. Lixto, Raul Pederneiras, Crispim do Amaral, Helios Seelinger, J. R. Lobão, Leônidas Freire, Gil, Alfredo Storni, Vasco Lima, Augusto Rocha, Alfredo Cândido, Yantok, Loureiro, Luís Peixoto, Théo, Del Pino, Guevara, Nássara e Di Cavalcanti: Dela pode-se dizer que foi a única revista de caricaturas a reproduzir na república os grandes tempos de suas congêneres do segundo reinado, nada poupando aos adversários, como no caso da Campanha Civilista, combatendo Rui Barbosa, e na Revolução de 30, ridicularizando os candidatos da Aliança Liberal. [LIMA, 1963, p. 146] José Carlos de Brito e Cunha – J. Carlos – o mais talentoso artista desse período – é o grande personagem do terceiro momento de amadurecimento da charge. Filho ilustre dessa sociedade emergente, suas delicadas melindrosas são uma síntese de temas e preocupações que a charge terá como objeto preferencial na República Velha. Durante uma rica e ininterrupta produção no campo do humor gráfico, J. Carlos desenha charges, caricaturas e ilustrações, mas, sobretudo, cria enorme quantidade de tipos fictícios, rompendo as limitações que a mão pesada de uma razão ortodoxa ditava, até então, como condição única de inteligibilidade para o traço da charge. Cabe a J. Carlos dar início à transição desse seu traço acadêmico na Monarquia, para o traço “brasileiro” que começa a se desenvolver na República Velha. Ele é o primeiro chargista a ignorar os limites da anatomia humana, distorcendo, entortando, inventando curvas e quebrando formas ao sabor de sua pura imaginação criativa. É possível dividir sua obra em três fases distintas e singulares: o criador de tipos fictícios, o chargista/caricaturista e o ilustrador. Como inventor de personagens imaginários, J. Carlos fixa, mas, sobretudo, idealiza a burguesia dos salões e das confeitarias elegantes da cidade, bem como o lazer e o cotidiano de sua restrita classe média:


Há um aspecto na obra de J. Carlos que não pode ser esquecido e merece, sobretudo, ser realçado com a maior ênfase – a carioquice, ou, como queiram, seu carioquismo. Ele foi incontestavelmente um eterno e insistente enamorado desta cidade que lhe serviu de berço, vindo a tornar-se através de seu inimitável lápis o crítico ameno, compreensível e malicioso de seus habitantes nos seus usos e costumes e, mais particularmente, o fixador galante e exaltado da gracilidade feminina de suas conterrâneas que nele viam, entre outras coisas, um criador de figurinos a que elas prazerosamente se submetiam. [COTRIM, 1985, p. 72]

Imagem da esquerda: capa da primeira edição d'O Malho. Imagem da direita: Primeira capa produzida por J. Carlos para a revista, no ano de 1904.

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I - A TRAJETÓRIA

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Criar tipos fictícios exige técnica, precisão de traço e domínio de formas. Entretanto, se é verdade que a charge trata de conflitos políticos entre sujeitos reais, é lícito supor que esse “desvio” do traço de J. Carlos, que agora contempla, prioritariamente, personagens imaginários está ancorado numa dificuldade de representação do povo como parte, digamos, de uma mesma sociedade. Já vimos que a “sociedade imaginária” na qual vivia a aristocracia no século XIX excluía o povo de um “lugar” social e de um rosto específico que o identificasse. Se na Monarquia ele “não existia” como indivíduo singular, na República é a sua singularidade como sujeito – preto, mestiço, mulato – que é separada e negada. É como se a Abolição tivesse despejado povo “demais” na sociedade, de modo que cabe agora imaginar bonecos fictícios que ocupem o lugar desse povo real e excessivo. Assim, nessa sociedade “sem conflitos”, J. Carlos cria pretos bons malandros, sambistas tocadores de pandeiro, mendigos narigudos com sacos nas costas, dandies, melindrosas, janotas, deliciosas figuras, sem dúvida, mas idealizadas na medida certa para um mundo de ficção, uma realidade faz-de-conta. Uma sociedade que idealizava a si própria como francesa não ia assumir, afinal, um povo “colorido” como o nosso.


O “problema” com os tipos fictícios de J. Carlos – se queremos assumir uma atitude crítica e de reflexão sobre eles – é o de não serem “reais”, pelo menos, não no sentido em que conferimos “realidade” aos tipos, igualmente fictícios, criados por Norman Rockwell (famoso ilustrador da revista Post que retratou o cotidiano e os tipos singulares do povo americano por mais de 50 anos). A diferença entre eles está no fato de que os personagens de J. Carlos carecem de “veracidade”, talvez, porque não existisse entre criador e criatura a identidade e aceitação que havia entre o americano e seu povo. Como chargista, a atuação de J. Carlos não é original e se perde em personagens imaginários e cenas fictícias, como era típico da charge do período. Ao contrário dos chargistas da Monarquia, não há dúvida de que J. Carlos se sentia mais confortável no mundo da fantasia, excetuando-se, grosso modo, as charges que produziu durante as guerras mundiais na capa da Careta, típicas charges “de consenso”, uma vez que a guerra politiza a sociedade e os chargistas de então, como não poderia deixar de ser, manifestam-se a seu respeito. J. Carlos foi, como chargista, “vítima” de sua classe que não “via” o povo com o qual cruzava nas ruas, “vítima” de seu temperamento afável e avesso a polêmicas, e “vítima”, finalmente, de um processo geral de despolitização a que a charge esteve sujeita durante toda a República Velha. A respeito dessa inquebrantável amabilidade de J. Carlos, diz Álvaro Cotrin: “Seu lema poderia ter sido: incapaz de agredir”. Em geral, os chargistas da Monarquia não produziram caricaturas, engajados que estavam na transformação política da sociedade – a caricatura, como já vimos, descontextualiza e “despolitiza” os sujeitos que reproduz. De fato, ela é um exercício formal de afetividade entre criador e criatura, um gênero mais afeito à exaltação que à crítica, um traço superficial, que não aprofunda sentimentos, não desnuda emoções. Ela é em geral – a não ser quando, modernamente, inserida no interior de uma charge – um desenho de humor leve e também amável, uma transgressão da anatomia humana que provoca o riso,tornando mais semelhante omesmosujeitofictícionomesmosujeitoreal. Assim, coube à geração de J. Carlos reintroduzir e afirmar esse gênero entre nós, trazendo um pouco de amenidade ao desenho gráfico de humor. A rigor, entretanto, ele não foi um caricaturista, estando suas reproduções mais próximas do que se chama – um tanto impropriamente – de portraits-charges, como se nota no Olavo Bilac ou no Pinheiro Machado, por ele “retratados”. Por outro lado, beneficiando-se de inovações técnicas na impressão gráfica, e seguindo os passos de Bordalo Pinheiro e Julião Machado, J. Carlos é o grande capista da República Velha, o sofisticado ilustrador de livros e revistas como Fon-Fon, Careta, Ilustração Brasileira, Kosmos, O Malho, mas, sobretudo, da Para Todos, onde trabalha de 1927 a 1931.

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Imortalizada por J. Carlos, a "melindrosa", ĂŠ uma mulher jovem, elegante, feminina, criada entre ingenuidade e ousadia, e que surgia com a modernidade do sĂŠculo XX.


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Figuras tĂ­picas da cidade do Rio de Janeiro como sambistas e foliĂľes de carnaval, eram personagens recorrentes no trabalho de J. Carlos. Eram representados sempre com muita alegria, vivacidade, leveza e autenticidade.


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O autor retratava a persona dos brasileiros e suas diversas facetas. Seu traço ilustrou a urbanização do país, e com isso a formação de uma população carente e excluída da sociedade.


I - A TRAJETÓRIA

Se não foi o nosso Norman Rockwell – deixando de reproduzir os traços reais e singulares de nosso povo – seu trabalho se equipara ao dos melhores affichistes europeus, não sendo exagero comparar

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seu traço ao de Toulouse-Lautrec – a não ser que se considere um lápis menos nobre que um pincel – quando faz com o tema do carnaval, Pierrots e Colombinas, o que o francês fez com o picadeiro de um circo, os cabarés de Montmartre e os palcos do Moulin-Rouge. Entretanto, ao contrário de França e Alemanha, não temos tradição na arte de affiches, sendo surpreendente, portanto, que J. Carlos tenha inovado tanto, como quando antecipa a Pop-Art e a Art Déco nas capas da Fon-Fon e Para Todos. Como criador de tipos e bonecos fictícios, chargista ou caricaturista, como crítico ameno de modos, manias e maneiras da cidade, J. Carlos – a não ser por sua técnica e inesgotável fonte criativa – não se sobressai diante de seus pares. É no campo da ilustração que se evidencia o artista maior, pois é como ilustrador que seus trabalhos permanecem como o que de mais criativo já foi produzido nessa área. Entretanto, no escasso e restrito universo da produção cultural de então, não havia um mercado de arte que viabilizasse qualquer investimento nesse tipo específico de atividade. A precariedade e a timidez dessa incipiente atividade não viabiliza, aqui, uma arte gráfica especializada, diversificada e sofisticada. Enquanto na Europa e Estados Unidos affiches são produzidos por “pintores”, aqui são feitos por “desenhistas” como atividade secundária, sem retorno pessoal, sem repercussão cultural e sem respaldo comercial. No exterior, a propaganda, como affiche, é uma manifestação artística por si mesma, um estilo valorizado, exposto em museus e galerias, como um “Mucha”, um “Beardsley”, um “Hirschfeld”, um “Steimberg”, comercializados mundo afora. Entre nós, entretanto, essa expressão maior e madura da arte de J. Carlos ainda permanece ignorada e pouco valorizada. De resto, toda a sua produção gráfica, sem exceção – da sinhá dengosa a melindrosa fogosa – desenvolvida ao longo de cinquenta anos de trabalho no campo do grafismo de humor – tipos, bonecos, personagens, charges, caricaturas e ilustrações, desenhos a bico-de-pena, aquarelas, guaches e aguadas – permanece incorporada ao patrimônio de nossa cultura, como legado de sua arte e inesgotável talento.


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Capa da revista Fon-Fon ilustrada por J. Carlos representando a festa do carnaval.

Revista Para Todos, edição do ano de 1926. Em muitas de suas composições, J. Carlos criava ornamentos florais e orgânicos, que se relacionavam com o movimento artístico Art Nouveau.


As capas da revista Para Todos, não eram vinculadas a acontecimentos específicos, desta forma J. Carlos pode aperfeiçoar o uso do parque gráfico, rodando quatro capas por vez. No carnaval de 1927, criou quatro capas que juntas contam uma história.

Na primeira capa, Colombina se deixa seduzir por Arlequim, enquanto Pierrot desolado assiste a tudo. Na segunda, Pierrot olha perplexo para Arlequim morto à sua frente. Á direita presenciamos a fumaça saindo do revólver do criminoso caído ao chão.

Na ilustração da terceira capa vemos circundada a cabeça do Arlquim sendo carregada em uma bandeja por sua amante Colombina, que dança alegremente nos ombros do seu Pierrot. Na quarta capa o diabo varre, entre serpentinas e confetes, os

tolos Pierrot e Arlequim. Ao lado, sem nenhum medo de ser varrida por aquele diabo que conhece bem, uma Colombina assiste a cena com ar de desdém.



I - A TRAJETÓRIA

Outra Faceta

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Com seu traço inconfundível, J. Carlos foi um dos maiores cronistas visuais de sua época, formando junto com os ilustradores Raul e K. Lixto, segundo Herman Lima e Nássara, a “Santíssima Trindade” da primeira metade do século xx. Seu talento e capacidade produtiva fizeram com que percorresse esse período através de mais de 50 mil desenhos, traçando, nas palavras de Cássio Loredano [2002, p. 121]: um gigantesco painel que cobre a República Velha e o Estado Novo, duas guerras mundiais, Dentre-guerras, a guerra espanhola e, depois, o início da Guerra Fria, tudo o que aconteceu em meio século com a planta do Rio de Janeiro, a substituição da regata pelo futebol na paixão nacional, as transformações das modas no vestuário e no mobiliário, nos costumes e o advento dos edifícios, do automóvel, da cozinha a gás, do cinema e da televisão etc., etc,


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J. Carlos foi, em sua época, o melhor exemplo de um designer moderno, demonstrando uma capacidade de síntese e elegância impressionantes, mesmo para os parâmetros de hoje. Trabalhou em estreita proximidade com as novas tecnologias gráficas e fotográficas, projetando revistas, livros, cartazes, montando exposições. Sua esfera de atuação — abrangendo caricaturas, charges, ilustrações, letras capitulares, adornos, vinhetas, logotipos, desenhos infantis e de publicidade em nada difere daquela dos designers gráficos europeus de sua época, transcendendo, como estes, os limites do campo ao incluir a produção de cenários e figurinos para teatro, esquetes de humorismo gráfico e mesmo esculturas. Curioso observar que enquanto El Lissitzki ou Rodchenko pertencem inequivocamente à história do design gráfico, J. Carlos figura em nossa história unicamente como caricaturista.


I - A TRAJETÓRIA

Trajetória profissional

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Poucos, pouquíssimos artistas nos deram a oportunidade de acompanhar a trajetória de seu amadurecimento artístico como o fez J. Carlos. O fato de ter-se formado na prática, no cotidiano das redações - como quase todos de sua época - nos permite ter uma visão privilegiada da evolução de seu trabalho desde seu primeiro desenho publicado em 1902 até a sua morte em 1950. Acolhido aos 8 anos por Raul e K. Lixto na redação d’O Tagarela, no ano seguinte já fazia sua primeira capa. Ali começava, segundo Loredano [2002, p. 32, 36, 44]: a longa colaboração, a simbiose, a perfeita interação entre o lugar, os atores e seu maior cronista. A cidade via seu retrato amável, e, num narcisismo bem seu, se apaixonava pelo autor. Em 1908, aos 24 anos, foi convidado pelo jornalista e empresário Jorge Schmidt, dono da editora Kosmos, para atuar como ilustrador exclusivo de seu próximo lançamento editorial, a Careta, destinada a fazer concorrência a O Malho como revista ilustrada de circulação nacional, voltada para o cenário político nacional e internacional. Entre 1908 e 1921, J. Carlos foi o ilustrador da Careta, produzindo algo entre dez e vinte desenhos por número.

Capa da Revista Careta de 1919.


Ao longo dos anos em que colaborou na Careta, J. Carlos fez a crônica visual dos principais acontecimentos de sua época e das transformações de nosso cenário urbano, político e mundano, registrando e criando modas e costumes. Imortalizou em seus desenhos personagens como a melindrosa e o almofadinha. Se O Tagarela e A Avenida, semanários nos quais trabalhou nos primeiros anos, podem ser vistos como uma fase de formação, a Careta parece ter servido como uma verdadeira especialização. Nesse extraordinário laboratório, ia aprofundando e desenvolvendo seu conhecimento técnico do parque gráfico, explorando as novas tecnologias e apurando ainda mais seu traço. Com assinantes em todo o país, a Careta levava o resultado desse processo para ser visto e admirado em todo o território nacional, mostrando o Brasil ao Brasil. Em 1918, Pimenta de Mello, dono de um dos maiores parques gráficos da época - a Pimenta de Mello e Cia. - comprou do deputado Luiz Bartholomeu de Souza e Silva a empresa “O Malho S.A.”, responsável pela publicação dos semanários ilustrados Para Todos, Ilustração Brasileira, O Malho, Leitura Para Todos, Tico-Tico e seus respectivos almanaques. Segundo o pesquisador Orlando da Costa Ferreira [1994, p. 414], a partir daí “cresceu ainda mais esta cadeia de revistas brasileiras, a mais brilhante que o país já teve em todos os tempos”. Com um maquinário capaz de seduzir qualquer designer, as oficinas da Pimenta de Mello e Cia. imprimiam revistas, livros, mapas, bilhetes para a loteria federal, além de terem produzido, em 1926, a primeira revista brasileira em offset, a Cinearte, que veio integrar as publicações do grupo. No mercado competitivo das revistas, a qualidade do artista gráfico era muitas vezes o diferencial necessário para aquecer as vendas de determinado semanário. Decidido a ampliar seus negócios e ciente da enorme repercussão obtida pelos desenhos de J. Carlos na Careta, Pimenta de Meio convidou-o em 1922 para dirigir, junto com Álvaro Moreyra, o conjunto de publicações da empresa recém-adquirida.

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I - A TRAJETÓRIA

Entre 1922 e 1931, anos em que conviveu com Pimenta de Mello, J. Carlos foi diretor de arte de todas as revistas do grupo. Foi nesse momento de sua vida, em plena maturidade artística e já possuidor do amplo conhecimento técnico adquirido na Careta, que atuou mais marcadamente como designer gráfico. Cada uma das revistas tinha uma história pregressa distinta e um público -alvo diferente. Criando ou aprimorando para cada uma delas um projeto gráfico preciso, J. Carlos testou ao extremo suas habilidades, o único aspecto recorrente nesse processo foram os desafios: inovar e ao mesmo tempo manter a identificação com o público, introduzir as mudanças desejadas no ritmo certo, garantindo assim sua assimilação.

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Através da análise gráfica de duas revistas do grupo Pimenta de Mello, O Malho e Para Todos, podemos observar a atuação de J. Carlos em vários aspectos, como na adequação ao público a que se dirigiam. Embora possuíssem áreas de tangência, as duas revistas circulavam por espaços diferentes. O Malho era encontrado nas ruas, nos bares, nas barbearias e, eventualmente, em casa. Para Todos parece, como o próprio nome indica, ter tido circulação irrestrita, chegando a ingressar nas arenas mais recônditas do universo feminino: dos salões e lojas de moda aos quartos das mocinhas. Podia igualmente estar nas mãos de uma moça de família, de uma cocotte ou de um almofadinha. Tratando de cinema, música, teatro e elegância, ia do espaço público ao privado, da rua ao sonho mais secreto, povoando o imaginário de uma geração. Como as outras revistas do grupo, ambas viajaram pelo Brasil, divulgando moda e hábitos e estabelecendo uma cultura que constitui hoje um precioso testemunho da época.


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Capa da Revista Para Todos de 1927. A modernização do Brasil e principalmente da cidade do Rio de janeiro, também era pauta para criação e desenvolvimento de trabalhos do autor.

Edição de 1927 d'O Malho, com ilustração de sambistas e foliões.



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II - O MALHO

Análise Gráfica d’O Malho

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A um só tempo tradicional e moderna, popular e engajada, primando pela qualidade gráfica e de seus colaboradores, anunciava-se, nas páginas da Para Todos de 1926, “a, revista de maior tiragem no Brasil”: Moça, olha “O Malho”! E realmente a moça olhou, comprou e leu, verificando ser “O Malho” o ‘leader’ dos semanários ilustrados do Brasil, cheio de tradições gloriosas, que de semana em semana remoça na graça satírica das suas ‘charges’, na apresentação da mais completa reportagem fotográfica, nas diversas seções, comentando os casos da atualidade. Todos os sábados “O Malho” oferece aos seus milhares de leitores os acontecimentos dos últimos dias, em nítidos “clichés”; caricaturas de J. Carlos, Luiz Peixoto e outros notáveis artistas; um artigo sobre o momento político, notas da semana, crítica teatral, dados a respeito da avicultura e pecuária; retratos grafológicos, charadas, xadrez, música; a caixa d’O Malho, colaboração dos poetas novos, etc., etc., etc. Sempre na defesa das classes populares, a velha revista vive do povo e para o povo!


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Criado em 20 de setembro de 1902 por Luiz Bartholomeu, o semanário O Malho contava com a colaboração escrita de Olavo Bilac, Emílio de Menezes e Bastos Tigre, bem como o traço dos maiores caricaturistas da época: Raul, K.lixto, Yantok, Nássara, Theo, Figueiroa e Guevara [SODRÉ, 1998, p. 301]. Revista de grande importância no cenário político da época, sua relação com o público encontrava-se já bem estabelecida quando J. Carlos a assumiu em 1922. Para termos uma ideia mais clara da complexidade do desafio então enfrentado, é preciso considerar que, além de ser uma revista cujo repertório textual e gráfico estava sedimentado no público há vinte anos, J. Carlos estava deixando de ser o ilustrador exclusivo de sua principal concorrente, a Careta, na qual trabalhara durante treze anos.


II - O MALHO

Cores

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Impressas em duas, eventualmente três cores, as capas d’O Malho tratam dos principais assuntos políticos da semana por meio de charges desenhadas por J. Carlos. Com forte conteúdo simbólico, sua plena compreensão exige do leitor conhecimento da situação política do país. Nas charges, bonecos ou ‘calungas’ — como eram chamados — costumam representar as principais figuras da política, agrupamentos sociais como o Jeca ou o Tio Sam, ou ainda figuras alegóricas como o Ano Velho e o Ano Novo. Há uma clara predominância de personagens masculinos. A presença feminina fica restrita à condição de alegoria, representando conceitos abstratos como a paz, a anistia e a pátria, ou a política, a imprensa e a retórica. O vermelho está presente em todas as capas d’O Malho e aparece sempre associado a cores frias — verde, azul ou preto —, preenchendo o logotipo ou ocupando as áreas mais pregnantes da imagem. Vibrante e chamativa, é uma cor facilmente associada à oposição política, além do quê, devia dar à publicação o devido destaque no ponto de venda.

Diferentes logotipos utilizados na revista. O segundo, passou a ser adotado a partir de 1927.


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Algumas capas d'O Malho onde nitidamente é possível observar a intenção de J. Carlos em desenvolver suas composições obtendo ênfase em duas cores somente, vermelho e azul.


II - O MALHO

Capas

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Nas capas de 1922 as charges são desenhadas dentro de um retângulo delimitado por um fio vermelho ou azul. Essa margem funciona como uma moldura, separando o espaço da representação do resto da capa. Em seu interior, o mundo dos calungas, o lado de lá; do lado de cá, o espaço vivido por nós humanos, menos ágeis e divertidos. Em 1927, J. Carlos rompe essa moldura, texto e imagem vão aos poucos se integrando, o desenho passa a sangrar nas laterais, ganhando ares de uma fita de cinema. O rodapé é mantido, reservado às legendas, serve ainda para que J. Carlos brinque com a fronteira entre os dois mundos. Ele é a ponte que faz conexão com o “mundo de lá”. Graças a ele, pode acontecer de um calunga escorregar para o lado de cá, nos provocando, como quem diz: “se nós saímos, talvez vocês possam entrar”.


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Capa de 1927, após J. Carlos excluir a moldura que era recorrente na revista.

Edição de 1922, quando a revista ainda utilizava o recurso gráfico da margem com o retângulo.


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Capas d'O Malho no ano de 1922.


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Edições de 1927. Com o novo recurso utilizado por J. Carlos, a composição da capa se tornou algo mais "livre" e se comunicava de forma mais dinâmica com o leitor da revista.


II - O MALHO

Materiais

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O miolo da revista é composto por 64 páginas, incluindo a folha da capa, com formato de 23 x 32 cm. Dois terços das páginas são impressos em papel jornal a uma ou duas cores, e um terço é impresso em papel couché, a uma, duas, ou até três cores. As folhas em papel jornal trazem texto e desenhos a traço; nelas não há meio-tom ou fotografias. Já as páginas em papel couché trazem as matérias ilustradas, as reportagens fotográficas, os anúncios mais caros e os desenhos de página inteira. O emprego de mais de uma cor fica restrito aos desenhos e anúncios. A encadernação utilizada é do tipo canoa, muito comum em revistas semanais de baixo custo por ser a forma mais simples, rápida e barata.

O elemento da fotografia presente n'O Malho era destinado às matérias de reportagem, e eram impressos em papel couché.


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Acima, exemplo de página dupla impressa no papel jornal. A maior parte do miolo da revista era produzida com esse tipo de material.

Dentro da revista, alguns anúncios publicitários ganhavam destaque e eram impressos em papel couché colorido.


II - O MALHO

Público-alvo

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Como mostra Mônica Pimenta Velloso no artigo inédito “Sensibilidades modernas: as revistas literárias e de humor no Rio da Primeira República”, as revistas populares lidavam com uma ampla faixa de público: desde a classe média letrada, mas não necessariamente intelectualizada, até os analfabetos e semianalfabetos das camadas populares. Essa situação constitui mais um desafio projetual para J. Carlos: como não assustar os menos afeitos às letras e despertar-lhes a curiosidade sem, no entanto, perder o público familiarizado à leitura? Seja nos logotipos internos ou no texto corrido, o desenho é a linguagem escolhida para equacionar, na justa medida, essa questão. Chama a atenção, nesse sentido, o fato de que tanto O Malho quanto Para Todos apresentam duas páginas “editoriais”, em lugares diferentes, que trazem na parte superior o cabeçalho com os dados de cada número. A primeira, no inicio da revista, é composta por texto em duas ou três colunas e um pequeno desenho a traço. A segunda abre as páginas em papel couché. Contendo uma charge legendada, uma caricatura ou um poema ilustrado, nesta a presença do texto apenas complementa a informação gráfica. A primeira é para ser lida, a segunda para ser vista uma solução bastante democrática. Ilustrações, charges e desenhos de J. Carlos sempre eram carregadas com certo teor de crítica política e social, e a linguagem que ele se comunicava com o leitor, era sempre direta e precisa, graças a seu detalhado traço e seu foco na imagem.


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A Ilustração acima com seu teor político, mostra como o chargista priorizava o elemento da imagem dentro de seu trabalho, utilizando o texto de forma complementar. A intenção era disseminar a informação com o objetivo de chegar para a maior categoria de público que fosse possível.


II - O MALHO

Mancha gráfica

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Nas páginas em que há maior volume de texto, o desenho quebra a resistência a ele permeando-o, brincando com sua materialidade, dando pistas sobre o que há em seu conteúdo. Revela-se assim um recurso visual eficiente para dar leveza e agilidade à mancha tipográfica. Há ainda páginas em que a mancha está disposta em torno de um desenho maior, como na edição de 21 de junho de 1927, em que vemos a caricatura do deputado Waldomiro Magalhães, “Principe da sympathia”, cercada por um texto que versa sobre o personagem. Ressalte-se um detalhe gráfico curioso: as colunas recuam em ângulo reto em torno do retrato, formando um quadrado branco dentro do qual se situa o desenho, à exceção do canto inferior direito, onde a mancha acompanha linha a linha a curva do pescoço e da gravata, formando um “paletó de letras” que veste o deputado. Sutil e ousada, tal diagramação cria uma página harmônica e convidativa, sobre a qual os olhos deslizam sem dificuldade. Tal nível de sofisticação na relação entre tipografia e imagem, muito comum nos dias de hoje, não era, em absoluto, frequente nessa época em lugar nenhum do mundo.

O elemento da imagem dentro da mancha tipográfica, era um recurso recorrente .


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Vinhetas

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Para recriar os logotipos que nomeiam as seções internas, J. Carlos recorre novamente ao desenho, associando os títulos a vinhetas bem humoradas que completam seu significado. Na seção “Álbum de Oedipo”, por exemplo, o logotipo anterior à sua intervenção faz uso da coruja e da esfinge, representando respectivamente o conhecimento e o impasse edipiano. Tais referências eruditas tinham uma assimilação restrita, já que dificilmente pertenceriam ao repertório de todo o público leitor d’O Malho. Ao redesenhá-lo, J. Carlos troca o tipo inicial por outro com características mais modernas desenho fortemente geometrizado, ausência de serifas e grande variação na espessura das hastes. Coruja e esfinge são igualmente substituídas por um boneco careca que bate na própria cabeça com um martelo (vinheta simbólica d’O Malho), tendo na outra mão um saca-rolhas gigante pronto furá-la. Por meio do humor, J. Carlos permanece fiel à proposta, ao passo que se mantém dentro de um repertório comum a todos os leitores.

Antes e depois de J. Carlos ter modificado e modernizado a vinheta da seção "Album de Edipo".


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Outras vinhetas que compunham a revista. Em todas as chamadas há um nível de interação entre a imagem e o texto.


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Soluções gráficas

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Os procedimentos gráficos adotados no que concerne à relação entre tipografia e desenho d’O Malho têm em comum uma forte preocupação com as possíveis limitações de conhecimento do leitor. Outro exemplo interessante são as palavras cruzadas. Tendo em vista a amplitude do público-alvo, devemos levar em conta a intenção didática que estas certamente possuíam, aumentando o vocabulário de boa parte dos leitores. Mas para que isso acontecesse era necessário fazer o leitor morder a isca, aceitar o desafio, pois se parecessem muito sérias, complicadas, poderiam intimidar. Com seus quadradinhos sempre inseridos de forma curiosa em um desenho gaiato, as palavras cruzadas brincam com a ideia de peso e leveza revelando uma vez mais o potencial do desenho como mediador entre o leitor incipiente e as letras.


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As palavras cruzadas eram incorporadas em diversas charges: estruturas de homens, mulheres, animais e objetos. Assim desenvolvia se de forma divertida o vocabulรกrio dos leitores da revista.


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Fotografia

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Nas páginas d’O Malho a fotografia está presente, sobretudo na forma de “reportagens fotográficas” sobre grandes aventuras ou notícias policiais e esportivas. Chama atenção o dinamismo obtido na diagramação das páginas. Na figura da página ao lado, por exemplo, vemos uma página dupla sobre o jogo Flamengo x São Cristóvão. Na parte superior, dois calungas (provavelmente figurões dos clubes) se encaram, e seus olhares se cruzam sobre duas fotografias: a torcida e o time vencedor: Flamengo 2 x 1. Na metade inferior da página vemos uma faixa horizontal composta por quatro “instantâneos do match”, abaixo da qual temos uma grande foto da torcida. A disposição dos instantâneos lado a lado passa ao leitor a dinâmica dos jogos criando uma pequena sequência. Para completar, sobre as fotos, no centro da página, um pouco mais à esquerda, escapando dos grampos da revista, um jogador imenso chuta em nossa direção. Percebe-se que ele é a ampliação recortada de um dos jogadores na fotografia à qual se sobrepõe. Seu pé e sua mão ultrapassam levemente o fio que envolve as fotos. Com isso, a figura do jogador fica ressaltada na página, reduzindo a imagem de fundo à sua real bidimensionalidade. Com uma diagramação no mínimo ousada, a figura da parte inferior mostra uma outra reportagem sobre futebol. No centro, sobre fundo branco, vemos um goleiro agachado com a bola nas mãos. Em volta dele quatro fotografias inclinadas criam um losango. Superpostas, à direita e à esquerda, outras imagens mostram detalhes da torcida, criando uma massa homogênea. No entanto, o calcanhar do pé direito do goleiro foi cuidadosamente colocado em baixo da fotografia. Este pequeno detalhe transforma a massa homogênea numa cortina de imagens e o losango numa janela, através da qual vemos o jogador.


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II - O MALHO

Temas d’O Malho

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Eis preenchida a lacuna. Com os vinte primeiros e os vinte últimos anos da carreira de J. Carlos já pelo menos minimamente tangenciados, faltava saber da década do meio. Se os períodos pré-Careta e Careta (1902-1921 e 1935-1950) já tinham sido inventariados graças a um financiamento da prefeitura do Rio em 1995, continuava a curiosidade quanto à etapa d’O Malho. Como teria coberto o grande jornalista os anos 1920 com a importância fundamental que eles têm na História do Brasil? Ali se estabelece o lugar do samba na vida nacional, com o primeiro registro em disco no final da década anterior; e a devoção ao futebol, depois do triunfo de 1919. Em 1922, acontecem a Semana de Arte moderna em São Paulo, a fundação do Partido Comunista e o levante dos 18 do Forte de Copacabana. Há em seguida o 5 de julho de 1924 e a marcha da Coluna Prestes. Artur Bernardes governa quase que o tempo todo com Estado de sítio, enquanto o Sertão serve de cenário para a estrapolias do cangaço. A década, incomparável em matéria de trepidação, se encerra com a revolução de 30 despachando a república dita velha, corrompida de nascença por pecados originais anteriores à sua proclamação, 41 anos antes. Pois bem, o material que emergiu das páginas de O Malho reservava surpresas que começarão a deitar alguma luz sobre esta quadra um tanto sombria da trajetória fora isso luminosa do artista.


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Pouco mais ou menos de 1200 desenhos produziu J. Carlo, O Malho em 9 anos. A média, dois ou três trabalhos por semana, é muito baixa se comparada, por exemplo, da Careta, em que houve mesmo o número radical da semana do carnaval de 1915, com a bobagem de trinta e um desenhos seus. Mas é que ele agora não tinha mãos a medir nem que dos cotovelos lhe saíssem os quatro antebraços da Shiva Vinadhara e ele pudesse parar o tempo sem parar de trabalhar. Desenhando para dez publicações, o homem estava investido ainda das atribuições de conceber o novo design gráfico de todas elas, bem como semanalmente supervisionar lhes as diagramações página a página. A respeito da qualidade, nesse período, não há novidade. J. Carlos mantém na década de 20 a mesma alta forma atingida o mais tardar em 1918, com a grande cobertura que fez do fim da Guerra para a Careta. Com que belos desenhos ele brinda aqui os públicos infantil e feminino através das páginas do Tico-Tico e Para Todos. Mas é n’O Malho que se passa algo muito estranho. Quem comprava O Malho, Qual era o público, J. Carlos estava falando com quem? Mais importante: quem ele estava ouvindo? Pois ele foi (quase) o tempo todo transmissor e receptor, e sua obra é normalmente resultado dessa troca, desse diálogo com o público.


II - O MALHO

O Rio de J. Carlos

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O início do século XX marca a instauração definitiva da ordem capitalista no Brasil. A cidade do Rio de Janeiro, capital da República, sofre então uma série de mudanças que buscam transformar a velha cidade colonial e escravista numa metrópole cosmopolita, com estrutura urbana e hábitos cotidianos similares a Paris. A cidade passa por inúmeras tentativas de modernização e higienização do espaço público que afetam o dia-a-dia do carioca. Para as classes dominantes, trata-se de ajustar as camadas populares aos padrões de uma nova realidade instaurada pelo trabalho livre e pela primazia do capital. As manifestações populares são tratadas como sinônimos de atraso e barbarismo e ao poder público cabe a tarefa de submetê-las a rígidos padrões de controle. A década de 1920 é exemplar da contradição e da interação entre a cidade que se moderniza no início do século - e se pretende europeia - e aquela que palpita na cultura peculiar de suas ruas. E a velha tensão que Noel Rosa expressou com maestria, quando disse que o samba não tem tradução no idioma francês. Poucos observadores dessa realidade foram tão atentos e precisos como J. Carlos nas páginas d’O Malho. Está tudo retratado pelo talento do artista e a perspicácia do cronista; os atropelos do secretário de saúde Clementino Fraga com os mosquitos transmissores de doenças tropicais, o excesso de impostos, o descaso com a zona portuária, a péssima qualidade dos serviços públicos, o descalabro dos transportes coletivos e a elevação das tarifas dos trens da Leopoldina. O lápis do artista acusa ainda o despejo de famílias de baixa renda em nome da modernização do espaço urbano e ironiza as enchentes que azucrinam o carioca. Como uma espécie de profeta do caos que nos dias de hoje se concretiza, J. Carlos investe contra um dos símbolos da modernização dos anos 20, o automóvel. O alerta dramático — Cidade tomada por carros! — e o protesto contra a Inspetoria de Matas e Jardins, que derruba árvores em nome do progresso, é espantosamente atual e faz imaginar o que desenharia o artista se testemunhasse a cidade hoje, sitiada e submisssa aos automóveis e suas buzinas ensurdecedoras.


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J. Carlos retrata a urbanização do Rio de Janeiro de forma crítica, e em muitas capas ele mostra os problemas evidentes que ocorrem dentro da cidade.

Entre os graves problemas urbanos estão o transtorno relacionado à higienização e saúde pública e o descaso com as populações menos favorecidas.


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Na década de 20, já é retratada a formação de favelas na cidade, e a relação política social que este fato está inserido.

Com a modernização e o crescimento urbano, ficou evidente que o cenário não era favorável para o alto número de carros que surgiam na cidade. O artista ilustrou a situação precária que diversas ruas e avenidas sofriam, e a lentidão para o desenvolvimento de melhorias no espaço.


II - O MALHO

Carnaval

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J. Carlos gostava do carnaval e entendia o significado dos dias de Momo para o carioca. A necessidade de se escapar dos problemas no trabalho, dos aborrecimentos com o poder público, das dívidas a pagar e das mazelas miúdas do cotidiano está retratada com inegável simpatia pelo lápis do artista. O folião que se despede da rotina na sexta-feira e retorna, alquebrado, na quarta-feira de cinzas, é personagem constante dos desenhos que ilustram a festa. A cidade, diga-se de passagem, vivia, desde o século XIX, o carnaval com tremenda intensidade. No início da República, por exemplo, o governo do Marechal Floriano Peixoto transferiu o carnaval de fevereiro para junho de 1892, com o argumento de que o verão era mais propício à propagação de epidemias. A população não se fez de rogada; brincou em junho e se esbaldou em fevereiro, num carnaval extraoficial. Antes que o hábito de dois carnavais por ano se consolidasse, o governo recuou e, em 1893, a festa voltou a ser realizada no verão. Na década de 1920 houve uma tentativa de alguns carrancudos membros do Conselho Municipal da cidade de extinguir o tríduo carnavalesco, em virtude dos distúrbios gerados pela festa. Para J. Carlos, os homens do poder estavam sendo imprudentes. A multidão, enfurecida, seria capaz de derrubar bastilhas para garantir a manutenção da folia. O projeto de extinção da festa não vingou. Aconteceu exatamente o inverso. O carnaval foi, em 1927, oficializado como feriado na cidade do Rio de Janeiro. O carioca agradeceu e o caricaturista apoiou a medida.


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O traço de J. Carlos testemunhou a paixão e o crescimento da cultura carnavalesca no país. Ilustrações, charges e capas d'O Malho representavam com exuberância e vivacidade a festa que ocorria nas ruas. Porém, o artista não deixava de lado seu questionamento crítico, e em diversos momentos ele integra os dois temas.


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II - O MALHO

O Brasil por Exemplo

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Um desavisado que voltasse, por um milagre qualquer. ao Brasil da década de 1920, ficaria provavelmente assustado com a quantidade de problemas que assolavam o país naquele momento. O espanto seria maior ainda ao se constatar que muitos daqueles problemas continuam, ainda hoje, marcando a vida nacional. O caricaturista, patriota vigoroso, insistia em três pontos que maculavam o Brasil e deveriam ser combatidos com afinco: o analfabetismo, os altos impostos e a corrupção política. Numa terra caracterizada pela riqueza do solo, abundante em gêneros agrícolas diversos, o artista indaga, com comovente pertinência sobre a ausência de escolas e deixa um recado ainda não inteiramente compreendido pelos brasileiros; não há como se construir um país digno sem a universalização do ensino de qualidade e a moralização do exercício da política.


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Nestas Ilustrações que compunham a parte interna da revista, percebe-se que J. Carlos deixava visível o seu descontentamento frente ao descaso que a educação pública sofria no país.


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II - O MALHO

Futebol

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A década de 1920 foi crucial para a afirmação do futebol como um esporte popular no Rio de Janeiro. A realização do Campeonato Sul-Americano na cidade em 1919 foi de grande importância, ocasião em que a Seleção Brasileira conquistou o seu primeiro título internacional. A final do torneio, realizada no estádio das Laranjeiras, sede do Fluminense Futebol Clube, terminou com a vitória do Brasil sobre o Uruguai pelo apertado escore de 1x0. O placar do jogo acabou inspirando um famoso choro de Pixinguinha em homenagem ao triunfo dos brasileiros. Em 1922 o Brasil foi novamente campeão da América do Sul. Jogando mais uma vez nas Laranjeiras, a seleção derrotou o Paraguai no jogo derradeiro por 3x0 e ficou com a taça. O carioca comemorou com intensidade similar aos festejos pelo triunfo de 1919. Foi na década de 1920 que o Clube de Regatas Vasco da Gama começou a revolucionar a prática do futebol na cidade, já então caída de amores pelo jogo. Até o início dos anos 20 as equipes eram formadas, majoritariamente, por atletas oriundos da elite. O Vasco quebrou essa regra e conquistou o título carioca de 1923 com um time que contava no elenco com negros e operários. A vitória vascaína gerou reações dos clubes elitistas, que argumentaram que o Vasco não poderia mais disputar o certame carioca enquanto não tivesse um estádio próprio. Em 1927 o Vasco inaugurou o estádio de São Januário, com a presença do presidente da República, Washington Luís. Construído com o auxílio da imensa colônia portuguesa do Rio de Janeiro, São Januário foi, até a inauguração do Pacaembu, em 1940, o maior estádio de futebol do Brasil. Atento observador da cidade e cronista privilegiado de um país que se transformava com extrema rapidez, não escapou a J. Carlos o rápido processo de popularização que o futebol experimentou nos anos em que trabalhou n’O Malho.


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Junto com a cultura do samba e do carnaval, J. Carlos também participou e retratou o crescimento da paixão pelo futebol da população brasileira.


II - O MALHO

Lábaro Estrelado

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J. Carlos sempre acreditou na utilidade de seu trabalho como um instrumento capaz de colaborar com a educação cívica do país. O respeito aos símbolos nacionais e a necessidade de se estimular o amor pela pátria foram valores constantemente difundidos pelo artista; basta atentar para a recorrente presença da bandeira brasileira em diversos desenhos. Era necessário fortalecer na população o conhecimento e o respeito aos símbolos republicanos — o brasão, o hino, a bandeira e a admiração aos heróis nacionais. Em se tratando, além do mais, de um país com um contingente significativo de analfabetos, a utilização de recursos visuais como elementos de educação patriótica não podia ser desconsiderada. Em 1922, por exemplo, o Congresso analisou a possibilidade de se extinguir as bandeiras dos Estados da federação em nome da permanência apenas do pavilhão nacional. J. Carlos manifestou-se favorável à bandeira única, que deveria ser constantemente destacada como um símbolo de união e integração entre todos os brasileiros. Por uma dessas ironias do destino, foi Getúlio Vargas, personagem retratado de forma ácida pelo chargista, que decretou o fim das bandeiras estaduais em 1937, durante a ditadura do Estado Novo; período em que a liberdade de imprensa foi sepultada no Brasil e o lápis do artista teve que se voltar para assuntos alheios à política interna. Válido ressaltar o carinho que J. Carlos devotava a Portugal e a constância com que chamava a atenção, em sua cruzada cívica, para os laços que deveriam unir os conterrâneos brasileiros e os amigos portugueses. Filho de pai português, fato que sem dúvida fundamentava a admiração filial pelo país ibérico, demonstrou entusiasmo pela conquista dos aviadores lusos Sacadura Cabral e Gago Coutinho, autores, em 1922, da primeira travessia aérea do Atlântico Sul. Aclamados em Portugal e no Brasil, Sacadura e Coutinho mereceram do caricaturista uma bem-humorada comparação com Pedro Alvares Cabral.


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Em certas capas da revista, a bandeira nacional era explorada na composição juntamente com a figura de uma mulher, representando a pátria ou a república.


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II - O MALHO

Economia

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A visão de J. Carlos sobre a situação econômica do Brasil nos anos de 1920 é marcada pela ideia de que o país é constantemente prejudicado pelos poderosos e escusos interesses dos Estados Unidos e da Inglaterra, as maiores potências do mundo capitalista do pós-guerra. Válido lembrar que as primeiras décadas do século XX foram marcadas pela adoção, por parte dos Estados Unidos, da doutrina big stick, política externa baseada no princípio de que os interesses norte-americanos na América Latina devem ser defendidos de todas as formas possíveis, inclusive pelo uso da força militar. As economias de Brasil e Inglaterra eram velhas conhecidas desde, pelo menos, o início do século XIX. Foi em 1810 que o Príncipe-Regente D. João assinou os “tratados de aliança, amizade, comércio e navegação”, estabelecendo que produtos britânicos passassem a entrar em portos brasileiros pagando tarifas alfandegárias privilegiadas. A percepção, portanto, de que nossos males provinham de poderosos interesses internacionais que, prejudicavam o Brasil, é bastante corrente nos anos de 1920. J. Carlos não escapou dela. Ilustrativa dessa visão de um país refém de poderosas forças externas é a charge em que Tiradentes, o mártir republicano, é retratado na forca enquanto mãos norte-americanas e inglesas seguram um boticão. No lápis do artista, o herói é a representação de todos os brasileiros, enforcados pelas dificuldades econômicas do dia-a-dia e vítimas dos interesses internacionais que atentam contra a soberania do país desde tempos remotos.


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A imagem do "Tio Sam" como representação dos Estados Unidos, era utilizada com frequência. Esteriótipos de personagens eram ilustrados para os principais países do planeta.

O Brasil era retratado diversas vezes por um personagem que já era constante na revista O Malho: o Jeca, figura "caipira" e representante do "povão" brasileiro.


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II - O MALHO

Internacional

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A década de 1920 não é especialmente marcada, nos traços de J. Carlos, pela preocupação com o contexto político internacional, ao contrário da produção das décadas de 1910 e 1940, quando a postura pacifista do desenhista manifestou-se amiúde contra os horrores das guerras mundiais. Nos raros desenhos sobre a política internacional dos anos de 1920, J. Carlos acerta na mosca em uma previsão e se equivoca profundamente em relação a um outro ponto. Falemos primeiro do acerto. Com impressionante poder de observação, o chargista aponta para a futura ocorrência de um novo conflito mundial, que será causado dessa vez pelo revanchismo alemão. Arguto analista, J. Carlos percebeu que as humilhações impostas à Alemanha no final da Primeira Guerra Mundial, estabelecidas pelo Tratado de Versalhes, acabariam levando os germânicos a desenvolver um sentimento de vingança que estaria na raiz de um novo conflito de proporções generalizadas. Foi de uma exatidão assombrosa. Chegou até mesmo a acertar o ano, 1939, em que o novo conflito explodiu. Por outro lado, manifestou grande simpatia pela ascensão do fascismo italiano, chegando a saudar os camisas pretas e lamentar a ausência de um Mussolini no Brasil. Já na década seguinte, percebeu a natureza totalitária do governo italiano, tornou-se um crítico severo e constante do regime implementado pelo Duce. Há que se considerar, sem que isso esconda ou justifique de alguma forma a simpatia inicial do artista pelo fascismo, que Mussolini havia conseguido recuperar a economia italiana da crise profunda que o país vinha experimentando desde o final da Grande Guerra. Em um país devastado por crises constantes como o Brasil - a década de 1920 foi especialmente tormentosa para o país — não foram poucos os que viram no dirigente fascista um exemplo de líder político, nacionalista e incorruptível, capaz de propor soluções para os problemas mais graves da época.


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Capa d'O Malho de 1928, aonde J. Carlos evidencia a sua simpatia pela Itรกlia e pelo seu governo.


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III - O FIM

Testamento dos Vencidos

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O emblemático ano de 1922, que assistiu à eclosão do tenentismo, a fundação do PCB e aos títulos do América e do Corinthians nos campeonatos de futebol do Rio de Janeiro e de São Paulo, foi marcado também pela realização da Semana de Arte Moderna, na capital paulista. O evento expressou a expectativa de uma geração de artistas dispostos a transformar a arte brasileira e adequá-la, de forma soberana, aos movimentos estéticos e Filosóficos que despontavam no início do século XX e propunham a ruptura com a tradição. Todos esses acontecimentos, protagonizados por tenentes oriundos das classes médias, operários, artistas e intelectuais, deixavam evidente que a estrutura do poder oligárquico, adequada a um Brasil rural recém-saído da monarquia e do regime escravista de trabalho, encontrava-se historicamente próxima do esgotamento. Neste ano começa a trajetória de J. Carlos n’O Malho, tornando o chargista testemunha e cronista dessa história. No cenário político, em 1926, o governo de Washington Luís Pereira de Souza deixava claro que a política do café-com-leite entoava seu canto de cisne. Comparado a presidência de Arthur Bernardes, sacudido pelos levantes tenentistas, o governo de Washington Luís, parecia sangrar um mar de tranquilidades: o tenentismo estava aparentemente desarticulado, o operariado devidamente reprimido e a normalidade constitucional restaurada após os quatros anos de estado de sítio do período Bernardes. A campanha sucessória iniciada em 1929 reverteria, porém, essa aparente calmaria. Desde o início do ano, o presidente dava indícios de que romperia enfim o acordo com Minas Gerais em relação a indicação do candidato oligárquico. Argumentando que precisava de alguém capaz de continuar sua política econômica ortodoxa e baseada na contenção


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do crédito, Washington Luís estava disposto a apostar na candidatura do presidente de São Paulo e ex-líder da maioria no congresso, Júlio Prestes. O preço do café a essa altura do campeonato, já apresentava sinais da queda que se tornaria dramática após o crack da Bolsa de Nova York, em outubro. Quando a candidatura de Júlio Prestes foi confirmada, recebeu o apoio d’O Malho e de J. Carlos. O caricaturista, aliás, tinha mesmo uma percepção profunda das coisas da política. Em 1927, quando só um doidivanas ousaria apostar na ruptura entre São Paulo e Minas, o artista desenhou o Jeca dizendo a Prestes que ele ganharia uma casa; nada menos que o Palácio do Catete. O fato é que Minas Gerais reagiu pessimamente à apresentação oficial, em junho de 1929, da candidatura de outro paulista a presidência. O presidente de Minas, Antônio Carlos de Andrada, dava como certo seu nome para o posto e considerou-se traído. J. Carlos ironizou a ruptura entre as oligarquias e o sentimento dos mineiros com uma charge alusiva ao projeto sobre o divórcio apresentado pelo jurista Celso Bayma. A partir daí, o clima eleitoral esquentou de vez. Minas Gerais aproximou-se do Rio Grande do Sul e da Paraíba e foi formada a oposicionista Aliança Liberal. Os candidatos de oposição à chefia do governo e à vice-presidência seriam o gaúcho Getúlio Vargas e o presidente da Paraíba, João Pessoa. O Malho imediatamente condenou a candidatura de Vargas, e J. Carlos, especialmente, espezinhou com constância, durante meses, o mineiro Antônio Carlos, que para ele seria o verdadeiro mentor da oposição a Júlio Prestes.


III - O FIM

A oposição de J. Carlos

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O artista fez de tudo; colocou Antônio Carlos no inferno; desenhou o mineiro, um homem de hábitos refinados, em trajes de cangaceiro; enterrou o político; colocou-o como um homem impotente no quarto de uma dama da noite e referindo-se à charge em que dizia que Júlio Prestes ganharia o Catete como casa, apontou como futura moradia do mineiro a cadeia. Em outro desenho, além da opção da cadeia, J. Carlos indicava a possibilidade de Antônio Carlos ir parar no hospício. A chapa de Vargas apresentou-se com uma plataforma de ruptura com os princípios oligárquicos. Prometia adotar o voto secreto, coisa que Antônio Carlos já havia feito em Minas Gerais, legitimar o voto feminino, proposta apresentada pelo então deputado paulista Costa Machado, estruturar leis de garantia ao trabalho, e nada menos que anistiar os tenentes rebeldes de 1922 e 1924, naquela altura presos ou exilados. A eleição ocorreu no dia primeiro de março de 1930, em plena sexta-feira da véspera do carnaval. Júlio Prestes foi eleito com mais de um milhão de votos, contra cerca de 700 mil sufrágios dados a Getúlio Vargas. A Aliança Liberal, acusando a ocorrência de fraudes, não reconheceu a derrota. Enquanto Getúlio parecia disposto a enfiar a viola no saco e aceitar o resultado, os aguerridos Oswaldo Aranha, João Neves da Fontoura e Lindolfo Collor, todos gaúchos e membros, como Vargas, da chamada “geração de 1907”, ano em que os quatro se formaram em direito na mesma turma, falavam em revolução. J. Carlos sempre foi um defensor da legalidade, pacifista, muito conservador e profundamente desconfiado de quarteladas ou coisa que o valha. Usou o lápis para criticar, com humor, os anseios rebeldes de gaúchos e mineiros e clamou pelo respeito ao resultado eleitoral. Chamou atenção, isto sim, para fraudes que teriam ocorrido no Rio Grande do Sul, onde Vargas teve quase 300 mil votos e Júlio Prestes apenas 982; desenhou Vargas como um sapo esmagado pela pedra dos votos do vencedor: colocou um Getúlio surrado num ringue; satirizou, como insanos, Neves da Fontoura e Oswaldo Aranha, e continuou a implacável campanha contra Antônio Carlos.


De todos os desenhos do período, um particularmente impressionante é o que traz Getúlio Vargas entrando na capital da República ao lado de seu interlocutor diplomático; um revólver. O companheiro do gaúcho na hora extrema, vinte e quatro anos depois. O pacifismo de J. Carlos intui, com assombrosa antecedência, o que a história comprovaria dramaticamente em agosto de 1954, quatro anos depois da morte do próprio desenhista. Em junho de 1930, o vice-presidente da chapa da Aliança Liberal o paraibano João Pessoa, foi assassinado em uma confeitaria na cidade de Recife. Torcendo completamente os fatos, os adeptos da revolução armada usaram o crime, cometido por razões ligadas a política interna para incendiar o país. Lindolfo Collor, deputado pelo Partido Republicano do Rio Grande do Sul, acusou publicamente o governo Washington Luís pelo assassinato. Em seu famoso discurso, bradou da tribuna da câmara “Caim, que fizeste de teu irmão? Presidente da República, que fizeste do presidente da Paraíba?” O crime, na verdade, está ligado a uma disputa política na Paraíba entre o grupo de João Pessoa e os partidários do coronel José Pereira - aliado do ex-governador João Suassuna (pai do escritor Ariano Suassuna) - e chefe político da cidade de Princesa, no sul do estado. Disposto a enfraquecer o inimigo, João Pessoa bloqueou então a fronteira entre a Paraíba e Pernambuco, cortando o comércio entre Princesa e Recife, mais próximo da cidade do que a capital paraibana e principal fonte de renda do município. O governador determinou que todos os negócios entre os dois estados fossem feitos pelo porto de Cabedelo. Sentindo o golpe, Zé Pereira organizou, em fevereiro de 1930, uma tropa com dois mil jagunços e proclamou a independência de Princesa. Os líderes da Aliança Liberal, que acabara de perder as eleições presidenciais, acusaram o governo Washington Luís de estimular a revolta de Zé Pereira para justificar uma intervenção militar na Paraíba.

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III - O FIM

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Durante o conflito, aliados de João Pessoa invadiram, na capital do Estado, o escritório do jornalista João Dantas, afilhado político do coronel Zé Pereira e um dos responsáveis pelo fornecimento clandestino de armas e munições aos rebeldes de Princesa. Encontraram cartas que Dantas trocara com sua amante, a professora primária Anayde Beiriz. As cartas, tremendamente picantes para um nordeste conservador e machista, foram divulgadas no Diário Oficial do Estado! Anayde caiu em desgraça e Dantas fugiu da Paraíba, indo passar uma temporada na casa de parentes, em Olinda, Pernambuco. Algum tempo depois, João Pessoa fez uma visita de cunho político a Recife. No dia 26 de julho de 1930, enquanto tomava o chá das cinco na confeitaria da Glória, na Rua Nova, ponto onde se encontrava a elite política local, foi abordado por um homem que, segundo testemunhas, disse apenas: “Sou João Dantas, a quem tanto humilhaste”, e disparou três tiros à queima-roupa no presidente baiano. O crime transformou-se em assunto nacional. Os aliados de Pessoa ganharam as ruas da Paraíba, saqueando diversas lojas e incendiando casas de inimigos do líder assassinado. A cadeia pública foi invadida e cerca de duzentos presos foram soltos. O legislativo, imediatamente, aprovou a mudança do nome da capital do Estado, antes Cidade da Paraíba, para João Pessoa e a incorporação à bandeira estadual, do lema “Nego!”, a resposta que o paraibano dera a Washington Luís quando este lhe pediu que apoiasse Júlio Prestes contra Getúlio Vargas. Anayde Beiriz, pivô involuntária dos acontecimentos, suicidou-se pouco depois. João Dantas apareceu morto na cadeia; a versão oficial de suicídio é até hoje contestada. A Aliança Liberal passava a ter um poderoso capital político, o mártir capaz de justificar a ação armada contra os paulistas.


O golpe para impedir a posse de Júlio Pestes foi, finalmente, consumado no final da tarde de 3 de outubro de 1930, com sublevações em quartéis no Rio Grande do Sul, em Minas e nos estados do nordeste. Três semanas depois, a resistência das tropas legalistas era derrotada e Vargas chegava ao poder. No mesmo ano, um golpe de estado ocorrido na Argentina derrubava o presidente Hipólito Yrigóyen e movimentos de rebeldia explodiam no Peru, com a recente fundação da Aliança Popular Revolucionária Peruana (APRA) de Victor Haya de La Torre, e na Bolivia, que pouco depois travaria contra o Paraguai a sangrenta Guerra do Chaco - disputa por territórios na fronteira entre os países. Assustado com as insurreições armadas latino-americanas, J. Carlos apostava na solução legalista para resolver o impasse brasileiro. O Malho, que se manteve apoiando a legalidade e defendeu fervorosamente o governo de Washington Luís e a posse de Júlio Prestes, foi empastelado por partidários da Aliança Liberal. Impressiona como o jornal não dimensionou as chances de sucesso do movimento das oligarquias dissidentes apoiadas pelas camadas médias urbanas, e fez a aposta errada. As últimas charges de J. Carlos para a revista reafirmam seu compromisso com soluções legalistas, a crença em um país unido e o horror a qualquer tipo de ruptura estabelecida pela força das armas. Apenas após a constatação da irreversibilidade do levante — e como quem não desejasse dar murro em ponta de faca — publicou em Para Todos..., revista pertencente à empresa O Malho S.A., uma capa saudando a revolução e uma galeria de retratos dos revolucionários de 30. Era pouco para convencer os partidários de Vargas; os ventos do poder mudaram de rumo e o chargista, tão arguto em suas impressões, daquela vez percebeu tarde demais. Sem saber, desenhou, naqueles conturbados anos de crise, uma espécie de testamento dos vencidos.

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J. Carlos presenciou e ilustrou o Golpe de 1930 desde sua origem até a sua concretização, evidenciando sua insatisfação com o cenário político desde o início.


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Ilustração do ano de 1930, com Getúlio Vargas ao lado de seu "interlocutor diplomático".


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Edições d'O Malho poucos meses antes do Golpe de 30, e consequentemente, pouco tempo antes da saída de J. Carlos da revista.


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Em outubro de 1930, J. Carlos cria o que seria a sua Ăşltima capa para a revista O Malho.


O Malho foi empastelado e, segundo Nélson Werneck Sodré, incendiado. Voltaria depois de um tempo a circular, mas já sem força nenhuma e, desde logo, sem J. Carlos.

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BIBLIOGRAFIA CARDOSO, Rafael. Impresso no Brasil (1808-1930). Rio deJaneiro: Verso Brasil, 2009. ___.O Design Brasileiro - Antes do Design. São Paulo: Cosac Naify, 2005. ESTEVES, Ricardo. O Design Brasileiro de Tipos Digitais - A Configuração de um Campo Profissional. São Paulo: Edgard Blucher, 2010. 110

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Cássio Loredano é caricaturista e pesquisador. Desenhista de O Estado de S. Paulo e públicou o livro O Vidente Míope - J. Carlos n'O Malho. Julieta Sobral é designer gráfica e pesquisadora. Publicou textos e livros sobre J. Carlos, entre eles O Desenhista Invisível. Luiz Guilheme Sodré Teixeira foi um especialista em iconografia e pesquisador da Fundação Casa de Rui Barbosa, autor do livro O traço como texto: A história da Charge no Rio de Janeiro de 1860 a 1930.

Formato: 21 x 23cm Mancha: 17,4 x 20,2cm Fontes: Bressay/Objektiv Editora Folha Seca 1ª edição: São Paulo, 2016 Nesta edição, respeitou-se o novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa PROJETO GRÁFICO OS RÁPIDOS TEAM:

Douglas Dimas João Victor Rosa Lucas Dutra Mioto






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