ensaio geral
- do uma historia uma historia do teatro teatrorecord record consolacao consolacao --
OtAvio Fernandes Nadaleto OtAvio Fernandes Nadaleto 1
sumario agradecimentos
prefacio
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posfacio
120
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referencias bibliograficas 2
126
um. america dois. o rio
10 26
- . enfim, record: da tres radio aos espetaculos quatro. rumo a
1966 58
cinco. prepare seu
coracao -
76
seis. roda-viva 3
40
96
agradecimentoS
A meus pais, Antônio e Cleide, por me darem a vida e fazerem tudo que estivesse a seu alcance por mim. Tudo o que me tornei, devo a vocês. Obrigado por me transmitirem o amor de vocês pela música brasileira, que hoje levo comigo. A Bárbara, minha irmã, pela eterna inspiração e pelo carinho. Se consegui colocar neste livro metade do amor que você dedica a seus pacientes, certamente terei feito um bom trabalho. A meu avô, Oswaldo, minha maior motivação para escrever esta reportagem. Que você se recupere da melhor forma possível. Eu te amo e te admiro. A toda minha família. Vocês são a razão de meu viver. Sem a força de vocês, nada seria possível. A meu orientador, professor Renato Levi Pahim, por todos os ensinamentos. Sua ajuda foi fundamental e enriquecedora. Termino este trabalho o tendo como mentor e amigo. Ao querido professor e coorientador, Ivan Vilela, por todo o conhecimento, pela paciência e prontidão. Seus ensinamentos foram os primeiros a estimularem este livro. A meus colegas de curso, pela companhia durante estes anos. Vocês fizeram cada segundo desta jornada valer a 4
pena. Em especial, destaco os queridos Gabriel Lellis, Dimitrius Pulvirenti, Maria Beatriz Melero, Anaís Motta, Victoria Salemi, Maria Alice Gregory, Ana Helena Baptista Rodrigues, Gabriela Romão, Fabíola Costa e todos os “jors13”. A meus colegas da Agência EFE, pela compreensão e apoio quando mais precisei. Isadora Camargo, Fabio Manzano, João Victor Escovar, Cecília Delgado e todos os demais: vocês são grandes profissionais. É uma honra trabalhar com vocês. A meus companheiros de moradia, agradeço o conforto e as risadas que me trouxeram equilíbrio durante este percurso. Em especial, destaco Luiz Paulo Oliveira, Luiz Guilherme Sabino, Camila Schmidt, Marcela Mendes e Murillo Chapina. A todos os entrevistados deste livro. Este trabalho é, antes de tudo, para vocês. Obrigado por compartilharem suas histórias comigo: Solano Ribeiro, Alberto Helena Júnior, Zuza Homem de Mello, Elizabeth Ribeiro Azevedo, Antônio Ricardo Soriano e Antônio Galdino Grillo. A Camila Berto Tescarollo, por aceitar este projeto e fazer um belíssimo trabalho de revisão e diagramação. Perdão por todos os inconvenientes. A TV Record, Folhapress, Rádio Cultura Brasil, Acervo Iconographia, Zuza Homem de Mello e Funarte, pelas imagens e pelo auxílio à pesquisa. E a outras tantas pessoas que estão em minha vida e merecem estar citadas neste trabalho. Milena Martins, Thiago Castro, Carolina Oliveira, Júlia Pellizon, Vick Amorim, Odhara Caroline Rodrigues, Marco Cardoso e Alessandra Fragata: obrigado pelas conversas, cervejas e pelos momentos compartilhados. 5
prefacio 6
Caía a tarde feito um viaduto em uma quinta-feira de inverno inesperadamente quente. O trânsito considerável que se formava na rua da Consolação anunciava o fim do dia de trabalho para tantos. Já passavam das cinco da tarde quando, após hesitar, finalmente adentrei em uma das muitas lojas de iluminação enfileiradas nesta que é uma das mais importantes rotas de tráfego da capital paulista. A Lustres Yamamura foi inaugurada em 1972 e domina quase um quarteirão inteiro ao longo do lado par da via. Autointitulada a “maior megastore do setor”, ela se orgulha de seu catálogo com mais de 18 mil produtos e de suas outras três filiais: uma na zona norte da capital, outra em Campinas e uma última em São Bernardo do Campo. A qualidade do ar ia de “regular” para “ruim” nos relógios públicos. Com o estômago castigado por um café barato tomado às pressas, sentei-me no saguão de atendimento para aguardar uma gerente que fora a uma consulta médica, mas que – prometiam – iria me atender. Ela não apareceu. Em seu lugar veio Paulo Henrique, do setor de marketing. Para alguém pego de surpresa por um jornalista com uma solicitação dessas que não aparecem todos os dias, Paulo recebeu-me bem. Conversamos por alguns instantes, trocamos contatos e logo nos despedimos. No dia seguinte, formalizei o encontro num e-mail ainda pela manhã: Olá, Paulo! Tudo bem? […] Como expliquei, estou escrevendo um livro sobre o Teatro Record da rua da Consolação, que funcionou entre os anos de 1959 e 1969 […].
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Paulo nunca respondeu nem esse nem os outros e-mails que lhe enviei nas semanas seguintes. Foi preciso procurá-lo por telefone para dar prosseguimento ao pedido. Quem caminha despretensiosamente pela região nem desconfia, mas, de fato, o local hoje dominado pelo verde e preto da Yamamura abrigou, na década de 60, a programação da TV Record. Diversos dos nomes mais importantes da cultura brasileira passaram pela emissora: Chico Buarque, Elis Regina, Jô Soares, Hebe Camargo, Chico Anysio… A Record contava com uma verdadeira constelação de estrelas, e, durante os anos em que funcionou, seu teatro na rua da Consolação se tornou um dos polos mais relevantes do show business brasileiro, sediando, inclusive, o II Festival da Música Popular Brasileira da TV Record, famoso pelo embate entre as canções “A Banda” e “Disparada”. Na época, TV, rádio, música, jornalismo, vida noturna e outras áreas estavam tão próximas que talvez possuíssem mais semelhanças que diferenças. Ronnie Von, por exemplo, de quem meus 23 anos só me permitem recordar como apresentador de TV, cantou pela Record. Já Nelson Motta, hoje jornalista do Grupo Globo, era também letrista e chegou a vencer um festival com sua canção “Saveiros”. Tal simbiose, vale ressaltar, não se restringia somente às pessoas. Nos prédios e espaços de antigamente também é possível notar essa coexistência de múltiplas modalidades culturais. Com efeito, o próprio Teatro Record Consolação possuía uma história profundamente ligada ao ramo do entretenimento antes de ser adquirido pela empresa. Foi teatro, cinema e até mesmo um rinque de patinação. Recorrendo a pesquisas, documentos de época e ao relato daqueles que vivencia8
ram e estudaram esse período, é possível saber mais sobre um passado pouco conhecido, que remete à passagem do século XIX para o XX. Através de memórias – por vezes confusas em meio à neblina do tempo, sujeitas sempre a múltiplas versões – busquei contar neste livro a história de um local que hoje não existe mais. Pelo menos não fisicamente. Talvez a maior inquietação que move este trabalho seja justamente esta: em outro recorte temporal, quantas histórias não se ambientaram nos locais mais ordinários que preenchem nosso cotidiano? Quantas vidas não mudaram de rumo exatamente aqui? Quantas emoções não foram vividas neste mesmo pedaço de chão? Aos que agora se debruçam sobre estas páginas, boa leitura.
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um America 10
Entre os anos 1800 e o início dos 1900, o Rio de Janeiro concentrou iniciativas em termos de lazer e cultura após a chegada da família real. A cidade que se tornou capital colonial em substituição a Salvador viu surgirem escolas, museus, academias militares, jornais, bancos e outros aparelhos necessários ao funcionamento social pretendido pela Coroa. Entre eles estiveram a criação da Real Escola de Ciências, Artes e Ofícios e a construção do Real Teatro de São João, representando algumas das primeiras tentativas da realeza de se produzir cultura formal em suas terras ao oeste de Greenwich. Até então, a atividade musical brasileira podia ser classificada em duas categorias. A primeira era a oficial, ligada à corte e que valorizava a música religiosa e europeia. Já a segunda vertente era a popular, composta principalmente por grupos de negros que aprenderam a tocar algum instrumento e que eventualmente eram designados para se apresentar em festividades, um símbolo de riqueza para a aristocracia da época. Após um certo congelamento durante o período regencial (1831-1840), quando D. Pedro I renunciou ao trono, a segunda metade do século XIX representou, nas palavras do historiador Eric Hobsbawm, um período revolucionário nas artes populares, embora esse fato tenha passado despercebido daqueles observadores eruditos ortodoxos mais esnobes.1
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HOBSBAWM, Eric J. História social do jazz. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990,
p. 59.
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O Brasil que emergiu como república em 1889 ainda estava castigado por um modelo colonial que priorizou a exportação de produtos agrícolas e concentrou suas atenções nas áreas litorâneas. Próximo da independência, a população era de aproximadamente 5,34 milhões de habitantes, sendo 70% escravos, negros alforriados, índios e mestiços.2 Pobre e marginalizada, essa população logo tratou de demonstrar sua criatividade e riqueza cultural. A nobreza não conseguiu impedir que as camadas populares “nacionalizassem” o que vinha de fora, como a polca, ritmo binário que veio da Boêmia, e a valsa, surgida na Áustria, com compasso ¾. A presença de profissionais liberais, com destaque para os barbeiros, também foi fundamental nesse momento, no qual houve uma injeção de autenticidade nos ritmos executados no Brasil. Deste “caldo cultural”, que envolve as “bandas de barbeiros” e sua correspondente rural, as “bandas de fazenda” (escravos), emergiu o choro, que seria um modo tipicamente carioca de se interpretar polcas, valsas e modinhas. Música indiscutivelmente brasileira que tinha como instrumentos base flauta, violão e cavaquinho. *** O cenário em São Paulo era bastante diferente. O status de capital não se refletia em muitas regalias à cidade. Em seus primórdios, era uma vila isolada sobre uma colina. Chama a 2
AMARAL JÚNIOR, José de Almeida. Chorando na garoa: Memórias musicais de
São Paulo. São Paulo: Livronovo, 2013, p. 30.
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atenção, porém, a transformação do local em um centro da cultura caipira. Diria José de Almeida Amaral Júnior que Ao fim do século XVIII, com a exaustão do ciclo minerador e seus desdobramentos, a antiga área de trânsito dos velhos paulistas atrás de silvícolas e fortunas entra em decadência e resta, então, uma população dispersa, retomando formas arcaicas de vida e subsistência, uma economia familiar.3
Um marco na história da cidade foi a fundação do curso jurídico junto ao convento franciscano, em 1827. Graças aos estudantes, uma nova vida tomou conta da cidade, que viu surgirem repúblicas, cafés, tavernas, livrarias e outros pontos de encontro para a “intelectualidade” que emergia. Mas isso ainda foi insuficiente para dar relevância econômica à capital. Somente o café estimulou o desenvolvimento paulistano de forma vigorosa e definitiva. Embora a mercadoria fosse negociada no porto de Santos, era São Paulo que sediava as instituições credoras e investidoras. Entre outros fatores, a cafeicultura levou a uma explosão demográfica da cidade: entre 1836 e 1872, a população cresceria assustadores 43%,4 passando de aproximadamente 22 mil habitantes para mais de 31 mil. Com a maior autonomia dada aos estados após a proclamação da República, o caminho estava aberto para São Paulo despontar como metrópole nas décadas seguintes. Enquanto isso não ocorreu, as opções de lazer seguiram escassas. O circo era uma delas, e as festas populares, sobre3
Ibid, p. 144.
4
Ibid, p.147.
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tudo as ligadas à cultura caipira, era outra. A partir dessas festas – familiares ou religiosas – foi possível estudar o desenvolvimento da música que era tocada em São Paulo à época. Não só ela: a dança também tem um papel importante nesse momento. Uma das primeiras manifestações de que se tem notícia após a fundação da vila é o cururu, fusão da cultura indígena com a branca, similar a um canto de desafio. O catira (ou cateretê) foi outra delas. Esses ritmos tinham na viola caipira um elemento central. Anos depois, após a metade do século, entrariam em cena os carnavais de salão, nos quais estariam presentes as polcas, modinhas, valsas e os lundus. Aqui, a divisão entre a linha erudita/religiosa e a popular que se viu no caso da música do Rio de Janeiro também se fez presente: até a metade dos anos 1800, a maioria das obras copiadas para a Catedral da Sé, vista como local de “música séria”, ligava-se à música religiosa europeia. Muitos dos músicos de São Paulo da época eram egressos da Faculdade de Direito. Além da canção erudita, com o tempo eles também demonstraram interesse pelas serestas ou serenatas. Em geral, os conjuntos que as tocavam eram compostos por flauta, cavaquinho, violão e clarineta, formação bastante similar à dos grupos de choro. O gênero predominou na cidade até o desenvolvimento da cafeicultura e a chegada dos imigrantes. Foi quando o erudito, importado da Europa, voltou a concentrar as atenções. As famílias ricas contratavam professores de dança para as filhas. O número de pianos e de pessoas que o tocavam cresceu. As bandas civis e militares se multiplicaram. A sanfona tomava o lugar da viola. 14
Em 1892, apareceria o primeiro fonógrafo na capital. Era a modernidade que chegara. O cinema engatinhava; o futebol estava por aqui desde 1888, trazido por Charles Miller. Em 1914, surgiria o Grupo Carnavalesco da Barra Funda, cujos desfiles eram embalados por choros e modinhas. Entre os instrumentos, flauta, flautim, sax, sax-tenor e clarineta. Sem a preocupação de criar registros, esses cordões faziam música em prol da coletividade. São Paulo estava longe ainda daquelas relações que já se estabeleciam no Rio de Janeiro, com músicas feitas para serem tocadas e cantadas apenas durante o carnaval e difundidas através dos fonógrafos.5
*** Ainda com o caráter de novidade no Brasil do início do século XX, o cinema começou a fazer suas primeiras aparições sob a denominação de “fotografia acelerada” e logo passou ocupar os teatros de São Paulo. Na época, as salas da cidade se concentravam principalmente nas ruas do centro. Os primeiros exibidores de cinema, portanto, também se encontravam na região, mais especificamente na área conhecida como “Triângulo”, composto pelas ruas 15 de novembro, São Bento e Direita. Tal distribuição geográfica não vem do acaso. Era no Triângulo que circulava grande parte do dinheiro da capital 5
MORAES, José Geraldo Vince de. Sonoridades paulistanas. Rio de Janeiro: Fu-
narte/Ministério da Cultura, 1997, p. 109.
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paulista. Nele concentravam-se o comércio de atacado e varejo, as sedes de empresas e bancos, os cafés e também os teatros, notoriamente o Santana e o Politeama. É bastante lógico que os empresários que primeiro investiram no cinema buscassem as regiões mais badaladas para divulgar seu produto. Com o tempo, os exibidores também passaram a ocupar parques e praças públicas, como a praça da República, mas os teatros ainda seguiam disparados como os locais prediletos entre o final do século XIX e início do século XX. Nesse período, o número de filmes estrangeiros exibidos em São Paulo saltou de nove em 1896 para 190 em 1905.6 Investir em cinema despontava como possibilidade de obter retorno financeiro. Foi nesse cenário que, em 1908, o italiano Alfio Ornello Reina ergueu uma casa na rua Angélica – paralela à Consolação e que futuramente viria a ser promovida a avenida –, e um provável parente, José Reina, fez o mesmo na rua Maceió – pequena via de apenas um quarteirão, prolongamento da Matias Aires depois do cruzamento com a Consolação. São Paulo ainda estava longe de ser a megalópole que se tornaria nas décadas seguintes, mas já dava passos rumo a esse destino. Um deles foi a abertura da avenida Paulista, em 1891. Logo quando surgiu, passou a concentrar as luxuosas casas de famílias burguesas. O aumento no número de carros também seria um indicador do “progresso” de São Paulo. A proximidade da riqueza da Paulista a obras como o Cemitério da Consolação estimularam o desenvolvimento 6
SOUZA, José Inácio de Melo. Salas de Cinema e história urbana de São Pau-
lo (1895-1930): O cinema dos engenheiros. São Paulo: Editora Senac, 2016, p. 61.
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da rua homônima. Durante muito tempo a via foi somente uma trilha erma, formada sobre o “Caminho para Pinheiros”, como era chamada a rota entre a Vila de Piratininga e o Aldeamento de Nossa Senhora dos Pinheiros, existente desde o século XVI. Com tempo a Consolação e suas redondezas passaram a abrigar ferrarias, armazéns, oficinas e outros serviços de que pudessem necessitar os ricos moradores da Paulista. Não demoraria muito até os empresários perceberem que o entretenimento também se encaixava nessa categoria – e que ofertá-lo na região era sinônimo de lucro. Ainda perdendo para o Rio de Janeiro em matéria de divertimentos, o circo, como já foi dito, era uma das escassas alternativas de lazer na cidade. Alguns deles passaram pela Consolação, levantando suas tendas de espetáculos em um terreno baldio na esquina com a rua Fernando de Albuquerque. O Circo Piolim e os Irmãos Albuquerque foram apenas alguns dos nomes que se apresentaram no início do século. E foi bem à frente desse espaço que, em 11 de agosto de 1911, Alfio solicitou a construção de um cinema no número 324 da Consolação, entre as ruas Maceió e Coronel José Eusébio, outra curta via que ligava a Angélica à Consolação, quase à altura da Fernando de Albuquerque. A princípio, a Diretoria de Obras e Viação de São Paulo (DOV) não aceitou o pedido por problemas no projeto, mas, após algumas modificações, a construção foi autorizada em 14 de setembro. O local foi inaugurado no dia 4 de novembro daquele ano. Nascia o Cine ou Teatro América. O espaço era um barracão comprido e estreito, com cerca de 9 metros de frente e entre 28 a 30 metros de fundo, to17
talizando uma área inicial de 261 metros quadrados, que possuía dois andares de lugares para público.
Cortes e fachada do América em 1914. (Grupo Edificações Particulares, OP.1914.001.466, AHMWL)
Acredita-se que o local foi arrendado pouco depois, uma vez que os anúncios do cinema dos anos 1912 e 1913 se referem ao local como “Biógrafo Variedades” ou “Cinema Biograph” e divergem quanto à gerência e ao proprietário. O nome empregado chama a atenção para duas peculiaridades da época. A primeira delas em relação ao termo “biógrafo”, que corresponde a um sistema de projeção de filmes que era co18
mum naquele período. O Variedades (o nosso América) não era o único a destacar a técnica: o Biógrafo Lumière, por exemplo, que remonta ao mesmo período, era considerado um dos melhores estabelecimentos do tipo para essas exibições. A segunda questão diz respeito à palavra “variedades”. Os teatros do início do século não se restringiam a peças dramatúrgicas. Somente isso não era suficiente para conquistar o público. Eles investiam em teatro de “variedades”: música, dança, teatro de revista… e cinema. Eram essas as apresentações que davam o tom de época. Curiosamente, o futuro Teatro Record Consolação também faria seu sucesso não com a dramaturgia, mas graças às variedades: balé, humor, programas de rádio e sobretudo música. *** Entre os pesquisadores que mais conhecem os espaços teatrais de São Paulo está Elizabeth Ferreira Cardoso Ribeiro Azevedo, do Departamento de Artes Cênicas da Universidade de São Paulo (USP). Ela reuniu dados a respeito de 172 locais utilizados para apresentações na capital paulista entre os anos de 1763 e 1930 e criou biografias para eles em seu projeto Inventário da cena paulistana. Elizabeth explica que, apesar de já haver atividade teatral no Brasil, com peças sendo adaptadas para nossa realidade, montadas em nosso território com atores brasileiros, foi somente com a proclamação da República que surgiu uma produção sistematizada mais próxima do que seria um teatro brasileiro. “A partir da independência você tem uma produção dramatúrgica mais constante e que passa a ser entendida como a 19
expressão dessa nova nação que está se construindo. Ela tinha inclusive uma função na construção dessa identidade a partir do século XIX. Não é à toa que o Estado investiu dinheiro nisso. É o período em que o Estado tá se construindo. Ele vai construir outras instituições: a Escola de Belas Artes, o Instituto Histórico Geográfico, para criar um passado pro Brasil… Há toda uma construção e o teatro é parte disso”, explica Elizabeth. A professora esclarece que, como era produzido por grandes empresários internacionais, o teatro de variedades buscava uma menor dependência da palavra, pois a ideia era que esses grupos percorressem o mundo, entrando em contato com diferentes públicos e sem ter grandes problemas com o idioma. “É um tipo de espetáculo que vai juntando muitos atores, artistas… É muito variado. É ainda teatro, mas tem muitos outros gêneros misturados.” *** Em 1914, o Cine América passou pela primeira de diversas reformas, expandindo sua área para 324 metros quadrados. Dois anos depois, São Paulo teria sua primeira legislação exclusiva para salas de cinema. Essa medida impôs uma série de exigências aos exibidores, como a necessidade de isolar o prédio para evitar a propagação de incêndios, a construção em alvenaria, a plateia com capacidade fixa para evitar superlotação, a vedação da sala de projeção com ferro, a retroprojeção no lugar da projeção junto à saída da sala e a indicação luminosa das saídas de emergência. Com a nova legislação, a DOV faria vistorias nos espaços cinematográficos. Na época dirigido pela “Empresa Médici e 20
Putone”, o América seria duramente criticado. O engenheiro José de Sá Rocha afirmaria que É inacreditável como neste local se conseguiu encaixar um cinema com plateia, frisas, camarotes e balcões. É bem de ver que num espaço de 8 ou 9 metros de largura, uma casa de espetáculos nessas condições é contrária a tudo quanto há de mais rudimentar quanto às condições de segurança, comodidade e facilidade de movimento.7
Alfio Ornello Reina, proprietário original, retomou a posse do imóvel em 1918 e solicitou uma nova reforma para adaptar o América às exigências da legislação de 1916. A ideia foi frustrada por um primeiro parecer do DOV, segundo o qual o América incorria em uma série de infrações, sendo necessárias muitas alterações adicionais. Houve uma batalha de projetos, e só após a emissão de diversos pareceres por diferentes engenheiros a planta de reforma foi aprovada. Ficou acertado que a frente do cinema teria 7,3 metros, ficando com 621 metros quadrados de área para plateia e 511 metros quadrados para os camarotes. A lotação estabelecida foi de 34 lugares nas frisas, 256 na galeria e 512 na plateia. ***
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SOUZA, José Inácio de Melo. Inventário dos espaços de sociabilidade cinemato-
gráfica na cidade de São Paulo: 1895-1929. Associação Amigos do Arquivo Histórico de São Paulo. 2014. Disponível em: http://arquiamigos.org.br/bases.cine.htm
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Mais ou menos no mesmo período, os frequentadores do Cine América não desconfiariam de que uma criança acostumada a se sentar nesses lugares – e nascida no mesmo ano em que surgiu a legislação dos cinemas na cidade (1916) – se tornaria uma das maiores escritoras brasileiras. No número 8 da alameda Santos, próximo à esquina com a Consolação, Ernesto Gattai alugou em 1910 uma casa “espaçosa, porém desprovida de conforto” para sua família. Ali, Zélia Gattai viveria toda sua infância e parte de sua adolescência com os pais e outros quatro irmãos.
Portão lateral do América. (A Capital, 19 mar. 1913, p. 1)
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Em seu livro de memórias Anarquistas, graças a Deus, ela conta de suas idas ao América, sobretudo às quintas-feiras, quando havia uma “soirée das moças”, que pagavam apenas meia-entrada. Sua mãe levava a ela, a sua pajem e às irmãs para o que representava o ponto alto de suas semanas. Em tempos de cinema mudo, os responsáveis por trazer emoção à “fotografia acelerada” eram as orquestras, sendo a do América composta por piano, violino e flauta. Uma das violinistas do cinema, Carmela Cica, foi inclusive vizinha de Zélia. Tais grupos, porém, nem sempre demonstravam um amplo repertório, como conta a escritora: Ano entra, ano sai, o repertório dos músicos era sempre o mesmo. Os primeiros acordes do piano, do violino ou da flauta anunciavam ao público o gênero da fita a começar.8
As sessões de cinema do América eram abertas com documentários de atualidades, exibindo o que houve de mais importante ao longo da semana. Chamado de “natural”, eles não despertavam interesse algum dos mais jovens, que comemoravam seu fim com gritos de “Graças a Deus!”. A grande quantidade de crianças a comentar e reagir aos filmes é sempre destacada por Zélia. Em seguida vinham as exibições de comédia, como filmes de Charles Chaplin, as séries de drama, os filmes de velho-oeste e, por fim, os dramas românticos. Com o cansaço batendo, a sala se esvaziava à medida que os filmes eram trocados.
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GATTAI, Zélia. Anarquistas, graças a Deus. Rio de Janeiro: Record, 2003, p. 66.
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*** Uma observação interessante feita pela escritora em suas memórias é que o Cine América “só exibia filmes velhos, reprises”. Coincidência ou não, o cinema era considerado ultrapassado para a década de 20: acredita-se que o mesmo projetor era usado desde 1911 até o decênio seguinte. Mesmo a transição para o cinema falado tardou a alcançar o América – mudança que ceifaria o emprego de Carmela, vizinha de Zélia, e de uma série de músicos: Alguns cinemas do centro da cidade já haviam inaugurado a novidade; filas enormes formavam-se às suas portas. O América, como sempre atrasado, fechara para reforma e adaptação dos aparelhos de som.
Programação do América em 1927, com longas-metragens, curtas-metragens e seriados. (O Estado de S. Paulo, 4 dez. 1927, p. 25)
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A forma como os espaços de lazer se transformaram ao longo do tempo serve também para suscitar reflexões a respeito das mudanças que nossa sociedade enfrentou – para o bem e para o mal. Um caso bastante ilustrativo contado pela professora Elizabeth diz respeito aos sanitários: “Uma anedota é que vai havendo reformas para acrescentar banheiros de mulheres, porque elas começam a frequentar esses espaços e portanto é preciso ter banheiro para as senhoras. É um reflexo do público que está frequentando esses lugares”, conta. No caso específico do América, os sanitários renderam dores de cabeça aos seus proprietários. Zélia se lembra do “malcheiroso toalete” com “a torneira da pia quase sempre entupida”. O grande imbróglio, no entanto, envolveria o sanitário masculino. Em 1923, a DOV exigira que o cinema instalasse mais mictórios além dos três que já possuía, dando um prazo de 15 dias para a realização do melhoramento. Os proprietários recorreram: em vez dos quatro novos mictórios exigidos pela municipalidade, pedia a redução para somente dois. Afinal, segundo o próprio recurso, trata-se de “uma casa pequena e pouco frequentada”. Também foi pedido um prazo maior: de 15 para 40 dias. Recusado. A planta original prometia haver seis mictórios, quando na realidade só se viam três. O DOV não abriria mão de mais quatro mictórios, os três restantes e um extra. Em 24 de abril daquele ano, uma nova vistoria. Havia seis mictórios. Além de desrespeitar a planta original, o América não cumpriu as exigências da fiscalização, acrescentando somente três aparelhos, um a menos do que o pedido. Não há informações sobre punições ao cinema pelo ato.
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doisorio 26
Fachada do Cine Rio. (Revista Acrópole)
Após sua fase “mambembe”, na qual ocupou sobretudo ambientes teatrais, não tardou até o cinema crescer e conquistar seus próprios espaços. Em 1914 havia 16 teatros funcionando em São Paulo, sendo que alguns deles eram próprios para cinema e recebiam apresentações teatrais apenas ocasio27
nalmente.1 Pouco mais de uma década e meia foi o tempo necessário para o cenário se inverter por completo: em 1930 era o cinema que predominava, ano no qual havia somente oito teatros na capital frente a 22 salas de cinema.2 “Isso ocorre porque o cinema é uma forma industrial de arte. Ela é reproduzível: você faz várias cópias do mesmo filme e isso barateia o ingresso. Inclusive o teatro teve que se adaptar a isso criando espetáculos mais curtos e baratos, para ocupar mais vezes os teatros”, diz Elizabeth. Outro destino partilhado por esses dois tipos de arte foi a busca por público. Concentrar-se no centro não mais era suficiente para manter os negócios. Foi preciso migrar para atingir uma audiência diferente, que, embora não pudesse pagar tanto por um ingresso, compensava o rendimento em volume de espectadores. Opera-se, então, uma popularização do cinema e do teatro. A partir disso surgem salas em bairros populosos, que cresceram às margens da linha do trem, como o Brás e a Mooca. A estrutura dessas casas, porém, seguiu precária até 1921, que foi o prazo dado para que todos os cinemas pré-1916 se adequassem à legislação vigente na cidade, que, por meio de diversas medidas, tentava criar padrões de segurança e conforto para os exibidores, acabando com os barracões improvisados. Em 1939, o Cine América tinha capacidade para 987 espectadores, sendo 150 nas frisas e camarotes, 744 na plateia e 93 nos balcões. Foi a última configuração da sala de que se 1
MAGALDI, Sábato; VARGAS, Maria Tereza. Cem anos de teatro em São Paulo.
São Paulo: Senac, 2001, p. 60. 2
Ibid., p. 120.
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tem conhecimento. As descrições do espaço o tinham como “velho” e “ultrapassado” justamente em uma região que começava a ganhar mais cinemas luxuosos para atender o rico público que lá circulava e consumia. A Consolação foi uma rua privilegiada com o movimento “centrífugo” dos cinemas. Em 1942, uma outra casa, o Cine Astúrias, criado dez anos antes e que também funcionava na Consolação, número 467, foi fechada. Sob o comando do empresário Paulo Barreto de Sá Pinto, fundador da Empresa Cinematográfica Paulista, se tornaria o sofisticado Cine Ritz. Sá Pinto foi um dos principais atores da transformação dos cinemas de barracões exibidores para espaços grandiosos e elegantes após 1920. O Ritz foi sua primeira casa de exibição, seguido pelo Marabá, República, Olido, Paulistano, Bristol e Liberty. Inspirado nos faraônicos movie palaces norte-americanos, seus frequentadores costumavam utilizar até mesmo traje social completo, com terno e gravata. Esse foi o cenário no qual o América fechou suas portas, em 1946. Nos próximos seis anos, o espaço funcionaria como um rinque de patinação homônimo ao teatro. Não tardaria, porém, até que reabrisse suas portas como um novo cinema, reestruturado e melhorado: o Cine Rio.
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Notícia da mudança do Cine América para o Cine Rio. (Revista Cine Repórter)
*** A década de 20 não só foi um marco para o cinema de São Paulo devido ao fim do prazo para a regularização às leis de 1916, mas também pelas investidas comerciais da Metro-Goldwyn-Mayer (MGM ou apenas Metro). Foi nesse período que a empresa estadunidense abriu uma série de salas no Rio de Janeiro e na capital paulista, que ficaram conhecidas pela alta qualidade de seus serviços. A estratégia fez parte de um projeto de escoar o grande volume de suas produções inaugurando cinemas em todo o mundo. No Brasil, assim como nos EUA, a construção da maioria dessas salas ficou a cargo de poucos engenheiros e arquitetos. Aqui, elas foram atribuídas aos escritórios de Robert R. Prentice e do engenheiro, arquiteto e urbanista Adalberto Szilard. Este, vale destacar, foi um nome de respeito da arquite30
tura brasileira do século XX, sendo um dos responsáveis pelo projeto da estação Central do Brasil, construída no Rio de Janeiro em 1937. O “Leão”, como ficou conhecida a empresa graças a seu mascote, de fato apostou alto para abocanhar mercados. Sua primeira sala no Brasil foi a Metro-Passeio, no centro do Rio de Janeiro, inaugurada em 1936 com 1821 lugares. Em São Paulo, a companhia debutou dois anos mais tarde com o Cine Metro da avenida São João, número 791, uma das salas mais luxuosas a funcionar no Brasil até hoje. Atualmente o edifício abriga uma igreja evangélica. Embora não levasse o nome da companhia, o Cine Rio era da cadeia da Metro. Ele teve, porém, mais autonomia em relação à MGM desde seu projeto, que não foi feito pelos responsáveis tradicionais, e sim pelos arquitetos Gilberto Muylaert Tinoco e Ibsen Pivatelli.
Interior do Cine Rio. (Revista Acrópole)
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A reforma do espaço aproveitou somente a cobertura e as paredes laterais do edifício do Cine América. Atrás da plateia foi construído um mezanino, e o ambiente foi estrategicamente econômico em relação a elementos decorativos, de forma a não criar um local sobrecarregado de adornos. Os arquitetos que planejaram o Cine Rio priorizaram o uso de materiais plásticos, o que facilitou muito a limpeza e conservação do espaço. Na fachada, além do letreiro com o nome da casa, buscou-se representar o perfil do Pão de Açúcar.
Decoração do Cine Rio. (Revista Acrópole)
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Os antigos assentos de madeira do América foram substituídos por confortáveis poltronas estofadas da empresa Brafor. Em uma edição do periódico Cine Repórter do ano de 1952, pode-se ler o anúncio que a marca fez do uso de seu produto no Cine Rio: […] os espectadores […] não têm regateado aplausos às poltronas do Cine Rio – poltronas macias, confortáveis, amplas, anatômicas e sem ruídos […].3
A administração da casa ficou a cargo da Exibidora Sul Americana Ltda., cujos proprietários eram José Defina e Nicolino Somma. Ao longo da década de 50, inúmeras pessoas teriam sua vida marcada pelos filmes ali exibidos. Vale lembrar que a televisão só seria comercialmente inaugurada no Brasil em 18 de setembro de 1950 e ainda assim levaria algum tempo para se consolidar. Durante os anos 50, o cinema era uma das poucas alternativas de lazer disponíveis em larga escala. Daí vem sua enorme relevância e seu poder como meio de comunicação que marcou uma geração. *** Uma importante função desenvolvida pela pesquisa acadêmica tem sido a de preservar materiais sobre nosso passado de forma a nos auxiliar em sua compreensão. 3
Cine Repórter Semanário Cinematográfico. São Paulo. 1952. Disponível em http://
memoria.bn.br/pdf/085995/per085995_1952_00857.pdf.
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Mas essa missão não é exclusivamente sua. Uma quantidade significativa de informações relevantes que se tem a respeito de São Paulo, por exemplo, existe graças a uma série de blogs e sites que estimulam um certo sentimento nostálgico em relação à cidade. Alguns deles, bastante expressivos, conseguem apoio do poder público, que aposta neles como estratégia para desenvolver afetividade pela história urbana. O site São Paulo minha cidade é exemplo de uma das iniciativas da prefeitura paulistana nesse sentido, vinculada à Secretaria de Turismo do município. Nesse nicho, um portal bastante respeitado é o Salas de cinema de São Paulo. No formato de blog, ele se presta a fazer um inventário dos espaços cinematográficos tanto da capital paulista como do interior. Além de se basear em bibliografias consagradas, conta com a colaboração de nomes respeitados do cinema brasileiro, como o crítico Rubens Ewald Filho, e de importantes jornalistas, como Heródoto Barbeiro. O criador do blog é um pesquisador autônomo chamado Antonio Ricardo Soriano. Ele trabalha como bibliotecário no Colégio Dante Alighieri e nas horas vagas – quando não está assistindo a filmes – se dedica à sua paixão por cinema. Caminhando contra o vento pela avenida Paulista, fui a seu encontro para descobrir o que poderia me contar sobre o Cine Rio. Com o saudável – porém inconveniente – hábito de chegar demasiadamente cedo para compromissos, aguardei nosso encontro tomando uma Coca-Cola à sombra das árvores da praça Alexandre de Gusmão, a um quarteirão do colégio. Era uma tarde ensolarada e o local era povoado por pombas, pais com carrinhos de bebês e jovens – menores de idade, talvez – fumando cigarros mentolados. 34
Após a burocracia para entrar no colégio, que chega a intimidar com tanto luxo, Ricardo, nome pelo qual prefere ser chamado, fez questão de ressaltar que o blog não é seu “ganha-pão” e que não se considera um “especialista” em cinema. “O especialista é aquele cara que você faz a pergunta e ele tem tudo na memória, como se fosse uma enciclopédia ambulante. Eu não cheguei a esse ponto, estou longe disso. Me considero um pesquisador”, adverte. Ricardo é um cinéfilo irrecuperável. Na década de 80, frequentou muitos cinemas de rua e se apaixonou por um deles: o Cine Comodoro. De início, pensava fazer um blog somente sobre a sala predileta, mas suas pesquisas renderam tantos frutos que ele expandiu o projeto e hoje conta com fichas técnicas de mais de 900 salas. Após muito trabalho – envolvendo dores de cabeça e crises de ansiedade –, ele decidiu receber o público interessado por suas pesquisas. “Eu sempre achei que meu trabalho não estava completo. Mas agora que já se foram dez anos do blog decidi atender o pessoal: os estudantes, os jornalistas…” Segundo ele, fui um dos primeiros afortunados a poder entrevistá-lo. O Salas de cinema de São Paulo cumpre a solidária função de auxiliar quem esteja pesquisando sobre cinema sem cobrar nada em troca. Foi o meu caso. Ricardo até narra que suas pesquisas já serviram para corrigir informações imprecisas divulgadas pela mídia e assimiladas mesmo por proprietários de estabelecimentos. “Um tempo atrás precisei corrigir o site do Belas Artes porque um jornalista colocou na internet que o cinema era o antigo Cine Ritz. Isso ficou fixado na internet, a informação 35
se multiplicou. Eu precisei pegar meus documentos comprobatórios e enviar para o André [Sturm, proprietário do Cine Caixa Belas Artes]. O Belas Artes era o antigo Cine Trianon. O Ritz ficava do lado, ele foi demolido na ampliação da Consolação. Foi difícil, mas eu consegui uma foto com o Cine Trianon e o Ritz do lado”, esclarece Ricardo. No local do Cine Ritz há hoje uma unidade das Lojas Pernambucanas. *** O Cine Rio, nosso protagonista do momento, foi inaugurado no dia 7 de outubro de 1950, às oito da noite, com uma sessão do filme Romance carioca (Nancy goes to Rio, no título original). O público principal da sala eram jovens dos Jardins e de Higienópolis, pertencentes à alta sociedade da época. “Gente de bem”, dizia-se. Entre seus assíduos frequentadores estariam alguns dos futuros empregados do Teatro Record Consolação, que teriam a juventude marcada sobretudo pelos musicais da Metro.
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Programa inaugural do Cine Rio. (Revista Cine Repórter)
Quem talvez tenha sido mais impactado por eles foi um rapaz com vocação para o rock e apaixonado por audiovisual. Ele primeiro tentaria uma carreira de ator nos anos 50, tendo de fato atuado em algumas das montagens mais importantes do teatro brasileiro. Não chegou, contudo, a colecionar um currículo longo como ator: os ventos o levariam a 37
trabalhar mais intensamente com música, ramo em que foi um dos mais importantes nomes do Brasil. Não exatamente se apresentando, mas sim produzindo e aconselhando. Ele foi responsável por intervenções decisivas na trajetória de artistas como Caetano Veloso, Gilberto Gil e Geraldo Vandré e chegou a viver um breve – porém intenso – romance com Elis Regina. “O Cine Rio passava filmes musicais da Metro, né? E eu era fã, assisti todos os musicais da Metro que pude”, narra brevemente Solano Ribeiro. Mesmo que de forma não intencional, ele faz um excelente trabalho de “não divulgação” de sua idade pela internet e em seu livro. Também não gosta que o tratem por “senhor”. “É por questão de respeito”, explico. “Me respeite me tratando por você.” Achei melhor não lhe perguntar sua idade. Solano ingressou em 1957 na Escola de Artes Dramáticas (que futuramente se vincularia à USP) e alternou a carreira de ator com ensaios e apresentações de sua banda de rock, The Avalons. Uma de suas primeiras atuações foi em Morte e vida Severina, texto de João Cabral de Melo Neto. “A Cacilda [Becker] optou por fazer o espetáculo no Teatro Natal, que existia na praça Júlio Mesquita. Ele tinha duas salas: a azul e a rosa. O espetáculo foi na sala rosa enquanto na azul tinha essas coisas bem pornochanchada mesmo. E ali com um ingresso o cara entrava no teatro e ia pra sala que quisesse. De repente, aquele sujeito que esperava ver um monte de vedete de perna de fora entrava e via aquela coisa super séria, com cenografia do Flávio Império, uma coisa pesada”, recorda ele em meio a risos. Terminada a temporada, Solano foi convidado por Augusto Boal, do Teatro de Arena, para substituir Flávio Mi38
gliaccio na peça Eles não usam black tie, de Gianfrancesco Guarnieri, até hoje um marco na dramaturgia brasileira. Migliaccio se desentendera com Boal por questões políticas e deixou o elenco. “Ele me deu o script e eu perguntei quando a gente ensaiava. ‘Ensaio?’, ele falou. ‘Não. A gente estreia amanhã em Porto Alegre.’ Ou seja: eu tive uma noite pra decorar o texto. Depois substituí o Flávio Migliaccio também no Chapetuba Futebol Clube, uma peça do Oduvaldo Vianna Filho”. Seu último personagem no Teatro de Arena seria na peça Testamento do cangaceiro, de Chico de Assis, da qual Solano se enche de orgulho para comentar. E não é para menos: a montagem marcou a estreia do ator Lima Duarte no teatro. “Eu contracenava com o Lima Duarte. Imagina a responsabilidade!” O Teatro de Arena teve uma função primordial na formação do Solano que, futuramente, seria o diretor dos grandes festivais de MPB da TV Excelsior e, depois, da Record. Até hoje ele guarda simpatia pelo espaço que ainda funciona em São Paulo na rua Doutor Teodoro Baima, 98, próximo à praça Roosevelt. Antes disso, porém, é necessário entender como o Cine Rio tornou-se – finalmente – o Teatro Record e como era o funcionamento deste em seus primórdios.
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-
tres
enfim, record da radio aos espetaculos 40
O Teatro Record Consolação. (Acervo pessoal de Zuza Homem de Mello)
Os anos 50 não foram os melhores para a MGM e para o resto de Hollywood. Em 1948, por ordem da Suprema Corte dos EUA, os cinco principais estúdios (“The Big Five”) foram obrigados a se desfazer de suas salas de exibição, condenados por práticas monopolistas. O caso ficou conhecido como “Estados Unidos vs. Paramount Pictures” (código 334 U.S. 131). Embora só leve o nome da Paramount, ele incluía também 41
as gigantes MGM, Warner Bros., 20th Century Fox e RKO Pictures, bem como as menores Universal Studios, Columbia Pictures e United Artists. No caso da MGM, a ação inclusive desdobrou-se em um processo independente (“Estados Unidos vs. Loew’s Inc.”, código 371 U.S. 38, ano de 1962). A ação representou um duro golpe sobre as arrecadações da MGM e dos outros estúdios. Muitas das salas foram fechadas e alguns filmes tiveram problemas para ser finalizados. É difícil calcular até que ponto a medida afetou os espaços da Metro no Brasil. Mas a decisão do governo norte-americano não foi o único fator a golpear o mercado cinematográfico nacional no período correspondente. Com o desenvolvimento da televisão em nosso território, aquelas pessoas que tinham no cinema uma das poucas alternativas de lazer passaram a ter uma opção a mais. Esses espectadores, então, minguaram de forma significativa: se em 1951 o público anual do cinema na cidade de São Paulo foi de aproximadamente 58,763 milhões (para uma população próxima aos 2,2 milhões de pessoas), em 1960 esse número se reduziu para 44,5 milhões (para uma população estimada em 2,8 milhões de habitantes).1 Essa era a realidade à qual estavam submetidas as salas de São Paulo, incluindo obviamente o Cine Rio. Durante a mesma década de 50, a Rádio Record, com seu pequeno auditório na rua Quintino Bocaiuva, era líder de audiência, sustentada principalmente por seus programas musicais, estrelados por nomes como Inezita Barroso, Isaurinha 1
SIMÕES, Inimá. Salas de cinema em São Paulo. São Paulo: Secretaria de Esta-
do da Cultura de São Paulo, Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo, 1990, p. 105.
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Garcia, Nelson Gonçalves, Silvio Caldas e muitos outros. Na época, esses musicais se concentravam de acordo com gênero e horário. Logo cedo, com o cantar dos galos, vinham as modas caipiras na própria Record (PRB 9). Durante o dia predominavam os tangos da Rádio Cruzeiro do Sul, bem como as big bands e artistas americanos veiculados pela Excelsior. Por fim, a madrugada era preenchida pelo “Midnight” da Cultura, com mais músicas americanas em discos 78 rotações. Comandada por Paulo Machado de Carvalho (pai), a Record fez sua estreia na TV em 27 de setembro de 1953.2 Ela foi somente a terceira emissora de TV a operar em São Paulo.3 De sua sede, que ficava na avenida Miruna, próxima ao Aeroporto de Congonhas, o canal 7 transmitia seus programas, mas sem um elemento importante: a presença de espectadores. Para o “marechal da vitória”, como era chamado o Dr. Paulo, isso não demorou a se tornar um incômodo. Ele acreditava profundamente que era o público que dava vida às produções e que tê-los no estúdio seria uma grande vantagem para a emissora. 2
Brasil, 1953. O IBGE ainda não mapeava as emissoras de TV. Entre 11 e 43 mil te-
levisores. 55 milhões de habitantes (ver ref. bibliográficas, item 4). 3
Antes de se integrar definitivamente ao sistema mundial de comunicação via sa-
télite com as estações de Tanguá (RJ) e Itaboraí (RJ), em 1969, a transmissão televisiva era feita via micro-ondas VHF. Elas tinham um alcance limitado, o que forçava a instalação de repetidores de sinal, que captavam essas ondas e as retransmitiam de forma a levar o sinal para pontos mais distantes do centro emissor. A distância entre essas estações de retransmissão costumava variar entre 32 a 96 km (ver ref. bibliográficas, item 10). Dessa forma, as redes de televisão na época eram somente locais.
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A solução encontrada por ele se deu através de sua ligação com o esporte (tão marcante que o Estádio do Pacaembu até hoje leva seu nome). A Federação Paulista de Futebol (FPF), hoje com sede na Barra Funda, aceitou sediar a transmissão dos programas de auditório da Record em seu teatro que ficava na avenida Brigadeiro Luiz Antônio. De lá, eram veiculadas produções exclusivamente radiofônicas – como “Histórias das Malocas” – e outras que eram simultaneamente veiculadas na rádio e na TV, como o show semanal da Ângela Maria e o programa da Maysa. Todas ao vivo e em preto e branco. Em seu início, a TV herdou muito do formato radiofônico. Um programa musical da época era pouco mais que um estúdio com o artista e só. Não havia um cenário muito trabalhado nem um formato mais complexo. Isso só seria superado em meados dos anos 60, após uma primeira experiência com os festivais de MPB, quando nasceriam “O Fino da Bossa” e “Jovem Guarda”, por exemplo. O sucesso alcançado com a programação no auditório da FPF foi tamanho que logo ficou pequeno. Foi então que o Dr. Paulo resolveu adquirir um espaço maior. O local escolhido foi justamente o Cine Rio. Nesse momento, nascia, de fato, o Teatro Record Consolação. Para comandá-lo, o Dr. Paulo nomeou seu filho Paulinho Machado de Carvalho, então diretor da Rádio Record, e manteve seu outro filho Alfredinho na direção da TV. *** Silêncio. De repente: “PÁ”. O ponto eletrônico é acionado. 44
Uma voz metálica soa ao ouvido. “Canal 3, pro cantor que vai cantar no microfone 2.” “Testando… O.k.” Na hierarquia da técnica de som, o cargo de “plugador de microfone” provavelmente esteja ao rés do chão. “Acima de mim tinha todo mundo”, ele lembra. Podia não aparentar, mas o futuro guardaria um posto melhor para Zuza Homem de Mello dentro da TV Record. O nome de batismo, José Eduardo, há décadas foi deixado para trás. Aos 83, ele exibe disposição e memória invejáveis mesmo comparado a um jovem e ainda desenvolve diversos projetos ligados à música. A entrevista que me concedeu, esclarece, foi excepcional (o que só aumentou o nervosismo de minha parte). Com o decorrer da conversa, porém, tratou de me acolher e tratar como igual, apesar de minha pouca idade e meu semiamadorismo se comparado a seu inesgotável saber musical. Zuza teve um papel privilegiado no desenvolvimento do Teatro Record Consolação e da música popular brasileira. Ele foi engenheiro de som do canal 7 e assistente pessoal de Paulinho Machado de Carvalho. Foi o responsável por trazer ao Brasil grandes nomes da música internacional e por garantir o áudio impecável da emissora nos festivais de MPB e programas musicais. Com fala bem articulada, enfatizando bem os erres, contou que sua paixão por música vem desde muito jovem. Na faculdade, chegou ao segundo ano de engenharia mas já como contrabaixista profissional. Nunca terminou o curso: mudou-se para Nova Iorque e estudou música na Juilliard School e na School of Jazz, onde foi aluno de Ray Brown, importantíssimo contrabaixista na história do jazz. 45
No período que esteve no exterior, Zuza adquiriu conhecimento como estagiário da Atlantic Records e pôde fazer muitos contatos. Voltou ao Brasil preparado como poucos e penou como muitos para encontrar trabalho. “Eu não consegui emprego de cara. Eu tinha estudado na melhor escola de música dos Estados Unidos mas não adiantava nada, não levavam em conta. E eu já tinha sido jornalista nessa época, tive a experiência de escrever uma coluna sobre jazz, semanal, que durou uns três anos. Mesmo assim, nada. Portas fechadas. Só na TV Record que consegui esse trabalho praticamente de operário: plugador de microfone no estúdio da avenida Miruna, perto do aeroporto.” Quando a Record percebeu o desperdício que era mantê-lo nessa condição, Zuza foi promovido a técnico de som e passou a liderar a equipe que fazia esse trabalho no Teatro da Consolação. Na altura do número 1992, Zuza encontrou sua segunda casa. Poucos conhecem o Teatro e suas histórias tão bem quanto ele. Frequentador do espaço desde os tempos do Cine Rio, ele destaca, porém, que foram necessárias diversas mudanças antes do local ser reaberto. “Eu fui algumas vezes ver os filmes da Metro lá no Cine Rio. Na época começaram a surgir os cinemas de bairro. Os primeiros eram na rua Augusta, como o Majestic e o Paulista. Então era uma novidade porque os cinemas eram na Cinelândia Paulista, na região da avenida São João com a Ipiranga. Quando começaram a existir cinemas de bairro, passei a ir aos da região em que eu morava, no Paraíso. Quando foi adquirido pelo Dr. Paulo ele sofreu várias reformas em todos os aspectos”, relembra. 46
*** De fato, as alterações foram diversas. A sala de projeção do antigo Cine Rio foi adaptada para o controle de áudio, justamente onde Zuza e sua equipe trabalhariam mais intensamente. Ela possuía uma ampla janela de vidro duplo, mesa de som Gates, com oito canais, um rack, mesa de manutenção e uma pequena cabine de locução para eventuais intervenções.
Plateia do antigo Cine Rio; ao fundo ficaria a sala de projeção, adaptada para abrigar a técnica de som. (Revista Acrópole)
A entrada do antigo cinema e sua bilheteria foram desativadas. Os espectadores entravam pelo edifício ao lado, com uma nova bilheteria simples, de vidro, com uma pequena janela retangular. 47
“Não tinha muito espaço lá fora. Você entrava e já estava no saguão de entrada. E na lateral é que ficava o teatro. Era um teatro pequeno. Eu acredito que, com toda sua lotação… uns 500, 600 espectadores”, estima Solano. Também foi necessário instalar um poço de orquestra no local e fazer alterações no palco, para comportar apresentações maiores. “O palco não tinha urdimento na época. Então foi feito um urdimento à altura pra poder subir os cenários verticalmente [a 6 metros] e ter mais camarins”, detalha Zuza. Com o conhecimento trazido de sua temporada nos Estados Unidos, Zuza convenceu Paulinho de Carvalho, diretor do teatro, a conceber o Teatro Record Consolação em semelhança ao Radio City Music Hall, de Nova Iorque. A partir dessa inspiração, foram construídas passarelas laterais no teatro que seriam largamente utilizadas nos espetáculos. “Se fosse um show com muitos participantes, coristas, modelos – e isso existia no Teatro Record, eram espetáculos grandiosos –, você pode rodear o público, que além de ter o palco pela frente tem nas laterais pessoas que participam do show, como é no Radio City.” Mas não foram as mudanças na estrutura que se tornaram o aspecto marcante do Teatro Record, e sim a qualidade de seu som. De fato, Zuza Homem de Mello foi responsável por implementar uma série de ousadas modernizações tecnológicas que garantiram a vantagem em relação às concorrentes. A TV Tupi chegou a adquirir um cinema para ser seu teatro também. Era o já citado Cine Ritz, de Paulo de Sá Pinto, que também ficava na Consolação e que foi marcante na fase de sofisticação dos cinemas da rua. 48
Em suas experiências sonoras, Zuza novamente recorreu à inspiração do Radio City. Na época, o Teatro Record recebia alguns espetáculos de balé que eram intercalados com apresentações musicais, criando assim o inconveniente de ter de lidar com pedestais e microfones que precisariam entrar e sair do palco entre as apresentações. “Isso não acontecia no Radio City. Lá os microfones desapareciam. Sumiam no palco. Aí o balé trabalhava à vontade. Depois ia entrar um cantor… Prrrrrrr. O microfone vinha do chão”, detalha. Após uma conversa com o chefe do departamento técnico da TV Record, um português conhecido como “Seu Spencer”, foi construído um motor que era controlado por Zuza da sala de som. “Eu acionava com o maior cuidado pra não abrir o microfone. O motor fazia barulho, então eu só abria depois que ele estivesse no ponto máximo de altura.” A Record possuía o que havia de melhor na época em termos de equipamento sonoro, o que alavancava a qualidade de seus programas musicais. “Era fácil fazer música lá”, afirma Solano Ribeiro. “Eu tinha uma máquina de reverb, então eu dava brilho nas vozes dos cantores… Eu tinha equipamentos que os outros não tinham e se tivessem não sabiam como trabalhar. Embora se comparados com os dos dias atuais parece coisa infantil, porque eu tinha oito canais. Oito, só”, conta Zuza. Dentre as inovações feitas pelo técnico, uma das mais importantes foi a colocação de um microfone para captar a reação da plateia aos programas. O que, segundo ele, nenhuma outra emissora tinha. 49
“Eu passava pro telespectador a sensação de que ele estava no Teatro Record. Nas outras emissoras, quando tinha programa ao vivo, você não ouvia as palmas do público que aparecia. Com isso, a Record teve uma vantagem flagrante.” Foi esse microfone que captou as palmas e a torcida nos grandes festivais. E também as vaias, que foram um dos elementos mais marcantes desses programas. Não se pode esquecer que os festivais eram transmitidos ao vivo, durante uma ditadura civil-militar que tentava abafar qualquer princípio de manifestação. Foi um aspecto fundamental do ponto vista simbólico, pois mostrava a força do público, mas um pesadelo na ótica da organização, que tirava o sono de qualquer técnico de som. Além dos programas musicais, o Teatro Record concentrava também outros tipos de produções, como as humorísticas. A principal delas era a “Família Trapo”, que também movimentou um esforço da Record em função do áudio. No programa, Zuza conta que escondia os microfones entre os objetos de cena de forma previamente combinada com os atores. O espectador que assistia pela TV não via os aparelhos. Também havia um técnico localizado no poço da orquestra com um microfone direcional de haste longa captando as falas. *** Apesar de pertencerem à mesma rede, o Teatro Record e o estúdio do aeroporto tinham equipes autônomas e independentes. Cenaristas, guarda-roupas, iluminadores, sonorizadores, contrarregras, orquestra, maestros, corpo de baile… Basta50
va o caminhão de transmissão encostar na rua da Consolação, como nos jogos de futebol, que tudo estava feito. Em 1961, o canal 7 adquiriu o prédio localizado à direita do teatro por conta da demanda por espaço que só crescia. Lá instalaram-se escritórios, salas de ensaio, de costura, guarda-roupas… e um apartamento. Nele vivia Paulo Charuto, funcionário muitas vezes confundido com seu chefe, o homônimo Paulinho de Carvalho (condição da qual o empregado se aproveitava para tirar vantagens quando possível). Era nesse prédio onde, instalada no terceiro andar, trabalharia a equipe produtora dos vindouros festivais e programas musicais. Lá também ficava a sala do empresário Marcos Lázaro, responsável por alguns dos maiores nomes musicais da época, sendo Elis Regina a principal estrela. Sua figura foi indispensável para o show business brasileiro. A primeira fase marcante do Teatro Record foi o período dos shows internacionais. Entre 1959 e 1962, diversos dos mais importantes artistas internacionais marcaram presença na rua da Consolação. Roy Hamilton, em 1959, foi o primeiro deles, sendo sucedido por nomes como Ella Fitzgerald, Sarah Vaughan, Sammy Davis Jr., Dizzy Gillespie, Buddy Rich, Charles Aznavour e Tony Bennett, entre outros.
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Ella Fitzgerald em apresentação no Teatro Record em 1960. (Folhapress)
Zuza, que acumulou o cargo de assistente de Paulinho Machado de Carvalho, era quem negociava com os agentes para trazer essas estrelas. Naqueles anos, fez viagens frequentes aos Estados Unidos para se reunir com agências como a William Morris e a General Artists Corporation (GAC). Os contratos eram fechados com vários meses de antecedência, sendo parte do cachê pago no ato e o restante acertado no Brasil, tudo em dólar. Os espetáculos, também transmitidos na TV, deram ao canal 7 uma ampla liderança na audiência, chegando a 58% em meados dos anos 60, contra 25% da Tupi e 8%
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da Excelsior.4 Era difícil competir com tal esquadrão. Os destaques das concorrentes foram apresentações de nomes como Julie London e o guitarrista Les Paul, cujo nome seria eternizado num modelo de guitarra. A presença no Brasil de grandes nomes como esses marcaram toda uma geração e causaram grande influência nos rumos musicais da cultura brasileira. O próprio Solano Ribeiro, que seria peça fundamental nos grandes festivais da Record, foi espectador assíduo desses shows. “Quando o Paulinho convidava os artistas, ele fazia um ‘esquenta’. Quem fazia a produção era o Abelardo Figueiredo. Ele era muito bom como programador de casas de espetáculos e fazia o show que antecedia os artistas internacionais. Um dia ele me convidou pra apresentar o meu conjunto lá. A gente foi o esquenta da Brenda Lee, do The Ink Spots, do Frank Lemon… Vários artistas. Foi uma possibilidade que tive de conviver com a produção de artistas internacionais”, esclarece Solano. Com o tempo e a inflação crescente, porém, o valor do dólar americano passou a subir vertiginosamente em relação ao cruzeiro, moeda vigente na época. Em 1963, a moeda americana bateria 1.005 cruzeiros.5 Era cada vez mais difícil para a Record trazer grandes nomes internacionais. As cotas de patrocínio, negociadas e pagas em cruzeiros, não supriam os custos. À época, a cadeia de lojas Eletroradiobraz era uma das patrocinadoras mais frequentes. 4
MELLO, Zuza Homem de. A Era dos Festivais: Uma parábola. São Paulo: Editora 34,
2003, p. 100. 5
Ibid., p. 105.
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A Record tentou amenizar o problema fazendo temporadas teatrais, sobretudo teatro de revista e shows humorísticos, que ficavam em cartaz por algumas semanas. Extremamente baratas, essas apresentações lotavam o teatro e foram o ponto de partida de nomes como Chico Anysio. “Eu me lembro que o José Vasconcelos, por exemplo, chegou pra propor um show no Teatro Record com uma mão atrás e outra na frente. Ele não tinha onde cair morto. Na primeira semana não veio ninguém. Mas o show era bom. Na segunda semana, misteriosamente lotou o teatro. Esse “misteriosamente” pode ser explicado: chama-se boca a boca. Ao final da temporada ele tinha cinco ou seis automóveis de último ano. Ele não tinha mais onde botar automóvel”, relembra Zuza. O jovem Solano Ribeiro foi um dos que foram assistir ao espetáculo de José Vasconcelos. “Eu assisti umas dez vezes. Além de ser muito engraçado eu já conhecia as piadas e já ria antes”, conta. Essas peças, porém, eram pouco significativas em termos de audiência televisiva. Não fazia sentido repetir o mesmo show diversas vezes na TV, portanto os espetáculos rendiam uma única exibição. Só com a adaptação completa de alguns dos programas da rádio para a TV que esse tipo atração se tornou interessante para as emissoras. Um exemplo de programa que sofreu essa migração foi “A Escolinha do Professor Raimundo”. Idealizado em 1952 por Haroldo Barbosa para a Rádio Mayrink Veiga (ERP), o programa, que já tinha o nome com o qual se consagrou, só seria televisionado em 1957 pela TV Rio, após ser levado à emissora por Chico Anysio. 54
Assim, pode-se dizer que o Teatro Record se desvinculou da TV em termos de assiduidade nos idos de 1963. Isso permitiu que a TV Excelsior crescesse e disputasse a liderança de audiência.
Show de bossa nova no Teatro Record, em 1963. (Folhapress)
Utilizando sua fortuna construída por meio de transações de compra e venda de café, Mário Wallace Simonsen deu à luz a TV Excelsior, canal 9, em 9 de junho de 1960. Inaugurada com um show que contou com Dorival 55
Caymmi, Dick Farney, João Gilberto e muitos outros, a emissora faria uma devassa no mercado de estrelas nos próximos anos, seguindo um ambicioso projeto de se tornar uma rede nacional de televisão: Manoel Carlos (hoje na Globo), Lima Duarte, Boni, José Vasconcellos… A Excelsior apostava alto sob o comando de Edson Leite, narrador de futebol e diretor da emissora responsável pelas contratações. O ponto final da era dos shows internacionais, porém, viria com um erro grosseiro da Record. Em 1963, Eddie Elkefort, agente da GAC, produtora de músicos de Nova Iorque com quem o canal 7 se relacionava, ofereceu Duke Hazlett para apresentação, um artista cuja voz e aparência se pareciam muito com as de Frank Sinatra. Anunciado como “o grande astro que finalmente viria ao Brasil”, a expectativa para sua apresentação pautou todos os cadernos de cultura da época. No dia 31 de março, minutos antes da meia-noite, a apresentação começou. A silhueta do cantor surgiu e passou a cantar. Era “The Voice”, pensaram todos. Fim da primeira música. O relógio passava da meia-noite, marcando o início da madrugada de 1º de abril. A revelação é feita: não era Sinatra. A imprensa não perdoou e tampouco o fizeram os espectadores. Se entre 1963 e 1964 a Excelsior caiu nas graças do público com seus programas nacionais, as temporadas internacionais da Record de 1964 tiveram desempenho pífio. As pesquisas Ibope evidenciavam o desequilíbrio: em novembro de 1964, a Excelsior tinha 43,3% da audiência
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contra 25,7% da Record.6 Três meses depois, os números do canal 7 caíam para 24,6%.7 A Record estava em queda livre. Algo precisava ser feito para reverter o cenário catastrófico no qual se encontrava. A saída viria sobretudo graças a um Solano Ribeiro contrariado, que naquela época saíra da rival Excelsior com experiência de sobra e um projeto ousado.
6
MELLO, op. cit., p. 105.
7
Ibid.
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quatro rumoa1966 58
A realização de festivais musicais envolvendo competitividade – isto é, pressupondo a existência de “vencedores” – tornou-se frequente no Brasil durante os anos 30. Eles aconteciam principalmente em terras cariocas e eram voltados para músicas de carnaval. A primeira grande realizadora desses eventos foi a Casa Edison do Rio de Janeiro, responsável por gravar os discos Odeon. A edição inaugural de seus festivais se deu em 18 de janeiro de 1930, no Teatro Lírico, e a canção vencedora foi “Dá Nela”, de Ary Barroso, cantada por Francisco Alves. A revista O Cruzeiro também realizaria um concurso semelhante no mesmo ano. Outros acontecimentos seguintes confirmariam a tendência. Em 1932 o carnaval foi oficializado pelo governo carioca. Dessa forma os concursos viraram parte das festividades e passaram a ser promovidos pelo Departamento de Turismo da Prefeitura do Distrito Federal (vale lembrar que o Rio de Janeiro era então a capital brasileira). Anos depois, em 1959, Tito Fleury, radialista, ator e ex-marido de Cacilda Becker, faria uma viagem à Itália da qual jamais se esqueceria. Lá conheceria o Festival di Sanremo, idealizado pelo floricultor Amilcare Ribaldi. O evento teve sua primeira edição entre os dias 29 e 31 de janeiro de 1951. A estreia só ocorreu graças à intervenção de Pier Busset, diretor do cassino da cidade, e ao maestro Giulio Razzi, da RAI, rede de comunicação italiana. Ainda tímida, a edição foi vencida por Nilla Pizzi. Em 1954, o Sanremo foi transmitido pela televisão, um avanço que possibilitou que o festival exercesse um papel imprescindível na música local anos depois, a partir de 1958, quando Domenico Modugno se sagrou vencedor. 59
O projeto de Sanremo é interessante sobretudo pela questão geográfica. Como se passa em uma cidade pequena – porém charmosa –, tudo na região gira em torno da música durante e mesmo alguns dias antes e após o evento. No mundo do cinema, o Festival de Cannes, na França, é similar. Fascinado, Tito levou para casa uma cópia do regulamento. Procurou a TV Paulista, canal 5, para tirar o projeto do papel. Recusado. Seguiu, então, para a Record do Dr. Paulo Machado de Carvalho (pai), quem ele conhecera em um almoço com o então governador paulista Jânio Quadros. Paulinho pai se interessou. Com divulgação do jornal Última Hora e da Rádio Record, o festival anunciou que buscava canções, sambas, valsas, maxixes e afins. Mais de 300 obras foram inscritas. Para selecionar as 21 finalistas, foram feitas quatro eliminatórias, duas das quais realizadas no Teatro Record Consolação. Seguindo o modelo de Sanremo, a finalíssima seria no Guarujá, em dezembro de 1960, no Grand Hôtel La Plage. Apesar de contar com a participação de bons compositores, como o vencedor Newton Mendonça e sua “Canção do Pescador”, da alta sociedade e da imprensa, a audiência foi pequena e não sobraram registros do evento. Nessa época ainda era raro haver programas gravados. O videotape só começou a ser usado no Brasil em abril de 1960 (sete meses antes do festival, portanto). Antes disso, a única alternativa para gravação era utilizando película cinematográfica, mais cara. Além disso, muitas dessas memórias se perderam devido a decisões da própria emissora. “Algumas das fitas dos grandes programas musicais foram apagadas pelos técnicos e por orientação da direção da 60
Record pra gravar futebol em cima da mesma fita que continha as gravações”, criticou Zuza. O festival de 1960 ficou à margem do esquecimento. Melancólico, em seu livro Zuza Homem de Mello diria que A grande desvantagem foi a escolha dos intérpretes. Certamente, aquelas mesmas canções chegariam muito além nas vozes de outros cantores. Faltou cantor, faltou cantora.1
Anos depois, o jovem Solano Ribeiro e sua equipe tratariam de não deixar o erro se repetir. *** O ano de 1959 seria marcante para a MPB pelo lançamento do álbum “Chega de Saudade”, de João Gilberto. Era o nascimento da bossa nova. Com ela – mas não exclusivamente – operou-se uma transformação espontânea na música brasileira como poucas vezes se viu e que se refletiria em diversos setores após o início dos anos 60. Um deles eram os festivais de bossa nova que invadiram os teatros. Em São Paulo o precursor foi o “A Bossa Nossa”, realizado no Auditório Ruy Barbosa, do Mackenzie. Nele, tocaram nomes como Claudete Soares, Alaíde Costa, Baden Powell, Geraldo Vandré, Vinicius de Moraes e o próprio João Gilberto. A partir deste encontro surgiria a série conhecida como “Show da Balança”. Meses depois seria vez do Centro Acadêmico Horácio Lane, da engenharia do 1
MELLO, op.cit., p. 30.
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Mackenzie, organizar o “Cancioneiro do Brasil”, que não foi exatamente de bossa nova, mas sim com a velha guarda: Cartola, Ataulfo Alves, Jacob do Bandolim, Cyro Monteiro e Aracy de Almeida. O Clube Pinheiros também realizaria investidas similares. A programação musical das rádios foi outra vertente ativa em que se pôde notar mudança. Radialistas atualizados – destacadamente os da Rádio Bandeirantes e da Excelsior – sabiam o que despontava nos bares, gravadores e no boca a boca. Nesse momento, a bossa nova teve papel fundamental. Destaca Zuza Homem de Mello que O sucesso nacional de “Desafinado” com João Gilberto […] fora denotado em 1959, quando o Pica-Pau [Walter Silva, da Rádio Bandeirantes] parecia estar empenhado numa campanha política, de tanto que repetia e elogiava o disco.2
Na TV, a Excelsior foi a que mais apostou na bossa nova durante seu início. Após o fiasco do falso Frank Sinatra da Record, o canal 9 assumiu a liderança em audiência em 1963. Em seu teatro, arrendado em 1960 da Sociedade de Cultura Artística, pôs no ar alguns dos programas musicais que ajudaram a moldar o gosto da época. É interessante notar como a Excelsior, localizada na rua Nestor Pestana, estava próxima de um pouco do que havia de melhor em termos de bares e boates. Esses espaços foram outros agentes fundamentais na consolidação das mudanças musicais que operavam. 2
MELLO, op. cit., p. 33.
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Nos arredores da praça Roosevelt havia, por exemplo, A Baiúca. O local era frequentado por músicos internacionais como Dizzy Gillespie e foi o berço do foi o berço do Zimbo Trio – formado por Luís Chaves, Rubinho Barsotti e Amilton Godói – e de Marisa Gata Mansa. Próximo a ele estava o Farney’s, do famoso músico Dick Farney. Por lá passaram ninguém menos que Buddy Rich e seu grupo, que vieram ao Brasil pela TV Record. Posteriormente, o bar foi adquirido pelo pianista Djalma Ferreira e rebatizado de Boate Djalma. Atravessando a Roosevelt ficava o Stardust. Um Hermeto Pascoal bastante diferente, ainda no início de carreira, marcou presença na casa, cujo concorrente direto era o Cave, onde Johnny Alf e Aracy de Almeida costumavam fazer apresentações. Nas proximidades estava também o bar do Hotel Claridge, da Nove de Julho, que em 1962 se tornaria Hotel Cambridge. Dick Farney esteve por lá antes de ter seu próprio bar. Um pouco mais distante havia o Lancaster, da rua Augusta, que abrigaria os futuros precursores da jovem guarda, e também o Juão Sebastião Bar, próximo da Maria Antônia. Segunda casa dos alunos do Mackenzie e da Faculdade de Filosofia da USP, era comum encontrar Claudete Soares por lá, cantando sentada sobre o piano. A música brasileira dos anos 60 era, desta forma, primordialmente boêmia. *** O final da década de 40 foi fundamental para o teatro na cidade de São Paulo. Em 1948, surgiram o Teatro Brasileiro de 63
Comédia (TBC) e da Escola de Arte Dramática de São Paulo (EAD), dois dos espaços mais importantes da história da dramaturgia nacional. O TBC surgiu da iniciativa do industrial Franco Zampari. Ele transformou um espaço na rua Major Diogo, número 311, em um teatro de 365 lugares com palco profundo, no qual os grupos amadores poderiam se apresentar em sistema de rodízio. Essa foi sua forma agradecer ao país que tudo lhe proveu. A imprensa da época, que cobrava por uma dramaturgia renovada e de qualidade, abraçou o projeto, fazendo boas críticas. Logo no início da década de 50 o TBC se profissionalizou. Diversas companhias emergiram de lá, encenando peças europeias consagradas, mas que tardavam a chegar ao país. Já a EAD foi criada por Alfredo Mesquita, que na década de 30 foi responsável pelo Grupo de Teatro Experimental. Acreditando ser necessário zelar por um maior preparo técnico dos intérpretes, Mesquita convocou alguns amigos para ajudá-lo na empreitada que, de início, não era oficial. Em um início errante, a EAD transitou por diversos espaços. Começou funcionando no Externato Elvira Brandão para depois se mudar para o segundo andar do TBC. Em 1952, a instituição inaugurou um pequeno espaço na rua Maranhão mas não tardou até que se mudasse novamente, dessa vez para o Liceu de Artes e Ofícios, na avenida Tiradentes. Foi só em 1968 que, por fim, a EAD se vinculou à Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP), de onde nunca mais saiu. Após passar a primeira metade do século XX à sombra das companhias do Rio de Janeiro, o TBC e a EAD colocaram 64
São Paulo no centro do que havia de mais inovador em termos de teatro. Foi uma mudança de paradigma. Contudo, o TBC, que antes fora responsável por uma renovação estética na dramaturgia nacional, não evoluiu da reprodução de modelos europeus. Da necessidade que se apresentava de “abrasileirar” os palcos, surgiu, em 11 de abril de 1953, o Teatro de Arena. Egresso da EAD, José Renato dirigiu Esta noite é nossa, de Stafford Dickens, como o primeiro trabalho do Arena. A novidade chamou atenção. Além da proposta que valorizava o produto nacional, a fórmula de colocar os atores no centro da sala, circundados pelo público, foi considerada inovadora pela imprensa e agradou ao público especializado. Nos anos seguintes o Arena consolidou um elenco estável, mas não ficou imune a adversidades. Em 1957, à beira de encerrar suas atividades, José Renato decidiu montar uma peça de um dos membros do grupo. Chamava-se Eles não usam black tie, de Gianfrancesco Guarnieri. Tratando dos problemas sociais causados pela industrialização em meio a reivindicações trabalhistas, foi um êxito completo, tanto que retornou aos cartazes após o fim da temporada. Nos anos seguintes, os diretores do teatro acharam por bem mudar a linha de atuação, uma vez que julgavam já haver consolidado a posição do autor brasileiro. Primeiramente empreendeu-se o projeto de nacionalizar os clássicos. Com êxito, essa fase duraria alguns anos até a chegada do momento que mais nos interessa: o ciclo musical. Dele participaria intimamente nosso conhecido egresso da EAD: Solano Ribeiro.
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Teatro de Arena. (Acervo Funarte – Gilson Camargo)
Em meados dos anos 60, tornou-se hábito se apresentarem, às segundas-feiras, cantores e músicos em um espetáculo que ficou conhecido como “Bossa Arena”, produzido justamente por Solano e pelo jornalista Moracy do Val. Em seguida vieram “Opinião”, cuja estrela maior era Nara Leão, 66
“Tempo de Guerra”, com Maria Bethânia, além de “A Criação do Mundo Segundo Ary Toledo” e “Arena Canta Bahia”, com Gilberto Gil, Caetano Veloso, Gal Costa e Tom Zé. Os shows mais elaborados do período foram “Arena Conta Zumbi”, de Boal e Guarnieri, com música de Edu Lobo, e “Arena Conta Tiradentes”, também da mesma dupla de diretores, mas com música de Theo de Barros, Sidney Miller, Caetano Veloso e Gilberto Gil. As produções do Arena que mais ajudam a explicar os festivais de MPB, entretanto, foram as “Tardes de Bossa”. Parceria entre o já conhecido Moracy do Val e Franco Paulino (também jornalista), o espetáculo nada mais era que um grande jam session (isto é, quando os músicos improvisam). O que parecia despretensioso acabou se desdobrando em reuniões particulares nos apartamentos de diversas personalidades da época e gerou o movimento “bossa paulista”. Escreve Solano Ribeiro em seu livro: Como motivação promocional, usaram a frase infeliz de Vinicius de Moraes, “São Paulo é o túmulo do Samba”, um desabafo que o poeta disparou ao se apresentar no Cave, incomodado a certa altura pelo comportamento mal-educado de um frequentador um tanto quanto tocado pelo álcool.3
Em nossa conversa, Solano explica que a bossa paulista deveria ser uma espécie de contraponto à dominação carioca em São Paulo. 3
RIBEIRO, Solano. Prepare seu coração: A história dos grandes festivais. São Paulo:
Geração Editorial, 2003, p. 47.
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“Os cariocas vinham aqui e deitavam e rolavam, né? Faziam show, ganhavam dinheiro nos teatros, nas boates e tudo. Mas a gente falou: ‘Não, pera aí, aqui também tem gente! Vamos desenvolver essa turma’. Então tudo começou com reuniões informais. Alguém oferecia a casa e aí cada um levava uma garrafa, levava uns salgadinhos, a gente ficava fazendo música”, relata. O passo seguinte para ele foi a produção das “Noites de Bossa”. Elas aconteciam no mesmo Teatro de Arena e eram uma extensão aberta ao público da música que era produzida nas reuniões da bossa paulista. Esse projeto rendeu contatos e experiência que o credenciaram para voos maiores. No caso, possibilitados pela TV Excelsior. “A cidade de São Paulo era muito provinciana. Se você ia em um restaurante chamado Giggeto, na Nestor Pestana, na frente da TV Excelsior, cê encontrava todo mundo: artistas, jornalistas, publicitários… Era o ponto de encontro. Um dia, jantando lá, passa o Boni e me pergunta se eu queria trabalhar na Excelsior. Eu até ri e falei: ‘Não, não tenho muita vontade, não’. Mas depois falei: ‘Uai, por que não?’. E ele me chamou para fazer coordenação de programação”, conta Solano. Fazendo um pouco de tudo – desde plugar cabos até comandar os programas caso o apresentador faltasse – Solano manteve a Excelsior no ar. Sem estudar TV ou jornalismo – cursos que não existiam na época – ele passou a compreender profundamente o funcionamento de uma emissora. “Foi a minha escola. Naquela época cê aprendia fazendo e eu tive a oportunidade de conviver com grandes profissionais de televisão, fundamentalmente o Boni, mas depois muitos outros. Não teve ninguém pra dizer ‘olha, é assim’.” 68
Conciliando o canal 9 com o Teatro de Arena, Solano logo se tornou produtor musical da emissora. Além da vocação para a música, ele já tinha o know-how das produções do Arena e dos “esquentas” para os shows internacionais da Record. Entre os primeiros projetos musicais na Excelsior ele realizou as “Noites de Bossa Paulista”. Foram três gravações no teatro da emissora, que mais tarde teriam um patrocinador. O teatro lotou e a Excelsior registrou alguns pontos de audiência. Sentindo que podia mais, Solano sonhou alto. Com uma cópia do Festival di Sanremo, começou a desenhar uma versão à brasileira do evento. Daí nasceria o projeto do I Festival da TV Excelsior, realizado em 1965. Um ano antes, porém, um evento mudaria profundamente os rumos do Brasil e traria sérias consequências para o cenário das artes em especial. *** Primeiro de abril de 1964. Sob o pretexto de realizar uma “reconstrução econômica, financeira, política e moral do Brasil” e combater a força que “se dispunha a bolchevizar o País”, as Forças Armadas assumiram o controle dos mecanismos de Estado. Em outras palavras, começava uma sangrenta ditadura que culminaria em 434 mortos e 210 desaparecidos.4 Pessoas sendo presas, tentando fugir do país e outras ingressando na luta, na resistência e na clandestinidade. 4
Comissão Nacional da Verdade – Relatório – v. I – Capítulo 3, 2014.
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Como consequência, o Teatro de Arena esvaziou-se. Quando Guarnieri, Boal e outros membros se dissiparam, Solano teve que lutar para mantê-lo vivo. “O Teatro de Arena tinha um contrato com o proprietário que não o permitia ficar 30 dias sem apresentações, senão seria cancelado. Eu não podia deixar que o Teatro de Arena fechasse, então fiz um espetáculo lá que foi o Lennie Dale Bossa & Balanço. Foi um puta sucesso, se você considerar que foi um espetáculo em um teatro de 150 lugares”, explica. Ainda não era o Brasil do AI-5, que, entre outras medidas, suspenderia o habeas corpus e consolidaria a tortura e o assassinato como políticas de Estado. Mas para muitos o clima já era de tensão e medo. Isso significa que, embora o golpe tenha sim impactado a produção cultural, a censura só agiria mais intensamente após 1968. Um panfleto de 1969 do Sistema Nacional de Informação (SNI) mostra como a sociedade civil seria orientada de forma a evitar a influência de produções subversivas: 3 – Aprenda a ler jornais, ouvir rádio e assistir TV com certa malícia. Aprenda a captar mensagens indiretas e intenções ocultas em tudo o que você vê e ouve. Não vai se divertir muito com o jogo daqueles que pensam que são mais inteligentes do que você e estão tentando fazer você de bobo com um simples jogo de palavras.5
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NAPOLITANO, Marcos. “A MPB sob suspeita: A censura musical vista pela óti-
ca dos serviços de vigilância política (1968-1981)”. Revista Brasileira de História, v. 24, no 47, pp. 103-126, 2004.
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“No meu festival da Excelsior já tinha acontecido o Golpe de 64. Eu nunca tive problema de censura, mesmo porque as empresas eram poderosas e as pessoas respeitavam, sabiam que nunca a gente ia fazer nada que fosse absurdamente agressivo, então eu nunca tive muito problema em relação a isso”, lembra Solano. De fato, os militares mantiveram relações tortuosas com a mídia durante seu período no poder. Com um projeto de nação centrado no crescimento econômico a partir da industrialização, eles levaram a cabo diversas modernizações tecnológicas e uma ideia de “unir o Brasil”, de alcançar a “integração nacional”. Como meio para concretizar tal união, os ditadores utilizaram principalmente a televisão, a partir da qual difundiam sua ideologia e estimulavam a produção brasileira de bens de consumo. Dessa forma, foram distribuídos subsídios e licenças para a importação de materiais e equipamentos a veículos que compactuassem com o projeto ditatorial. Em 1967, com o novo Código Brasileiro de Telecomunicações, as concessões para novas emissoras também dependeriam da aprovação dos militares, mais um instrumento de barganha que lhes permitiu colocar seus planos em prática. Notoriamente, a Rede Globo foi uma emissora que se favoreceu muito desse projeto. Seu período de maior crescimento foi justamente sob as restrições impostas pelo AI-5 e também após a queda da TV Excelsior, desmantelada pelo Estado. Através de suas relações com o grupo norte-americano Time-Life (futuramente consideradas ile71
gais), o canal adquiriu conhecimento técnico e dinheiro para crescer ainda mais. Outra parte do projeto militar envolvia fazer com que a mensagem transmitida pelas emissoras alinhadas aos generais chegasse ao maior número de pessoas possível. Isso foi alcançado por meio de políticas de crédito para a aquisição de televisores, que puderam ser parcelados em até 36 meses. Consequentemente, a venda dos aparelhos que transmitiam em preto e branco cresceu 24,1% entre 1967 e 1979, e os com sistema de cores tiveram aumento de 1.479% entre 1972 e 1979.6 Como parte das modernizações tecnológicas, o Estado garantiu a instalação de novas tecnologias, como estações de satélites, ampliação da rede telefônica e linhas de micro-ondas. Para regular e controlar o setor de comunicações, foi criada a Empresa Brasileira de Telecomunicações (Embratel) em 1965 e o Ministério das Comunicações dois anos mais tarde. E para controlar a indesejada subversão havia a censura, cada vez mais ativa. “A censura passa a agir no festival de 1967. Agora lembre-se que ela era efetuada antes da música ser apresentada. ‘Tá aqui a música que vai ser cantada, pode passar?’. ‘Pode’ ou ‘Não pode.’ A censura não era no teatro. Tanto que foi um monte de coisa… Aquela música do Gil [‘Ensaio Geral’] poderia ter sido censurada. Se fosse um ano depois, possivelmente ela seria”, explica Zuza. Embora não tivesse mais o “sangue fervendo” (em suas próprias palavras) como na juventude, Zuza diz que sem6
MATTOS, Sérgio. A televisão no Brasil: 50 anos de história (1950-2000). Salvador:
Editora PAS – Edições Ianamá, 2000, p. 102.
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pre foi contrário à ditadura, mesmo anos antes, durante o governo Vargas. “Na época do Getúlio eu fui com meu pai na Faculdade de Direito assistir uma fala do Carlos Lacerda. Isso foi no começo de 1954. Eu saí de lá com vontade de ir pro Rio e matar o Getúlio. E na verdade, um pouco depois, em agosto de 1954, eu e mais dois amigos fugimos de casa na madrugada e nosso plano era ir pro Rio de Janeiro se integrar às forças rebeldes que estavam a fim de derrubar o Getúlio.” Armados de nada além de suas convicções, os jovens deixaram bilhetes para seus pais e se encontraram na praça Oswaldo Cruz, no bairro do Paraíso. Dali tomariam um ônibus da Viação Cometa rumo ao Rio. O plano, porém, não saiu como o esperado. “Estávamos em uma padaria, que estava com o rádio ligado. Deveria ser umas cinco da manhã quando sai a seguinte notícia: ‘O presidente Getúlio Vargas acaba de se suicidar’. Nós ficamos com cara de desenxabido, cada um voltou pra sua casa e nenhum de nós foi pro Rio derrubar o Getúlio. Isso é típico da idade, eu não tinha completado 21 anos”, conta Zuza em meio a risos. Com um governo militar em seus primórdios (descrito por Solano como “em banho-maria”) ocorreu o I Festival da TV Excelsior, em 1965. *** Os diretores da Excelsior logo aceitaram o projeto para um festival de música. Entre as mudanças que Solano propôs em relação a Sanremo, a principal foi que, na edi73
ção brasileira, quem deveria inscrever as músicas seriam os compositores, e não as gravadoras. Isso evitava que estas tivessem demasiado poder sobre o evento. Uma mudança crucial, porém, deixou Solano desgostoso. Lívio Rangan, diretor de marketing da Rhodia, pressionou para que o festival fosse itinerante, e Solano, que queria que tudo ocorresse no Guarujá, teve de ceder. Seriam três fases eliminatórias: uma no Guarujá, uma em São Paulo e outra em Petrópolis. A final ocorreria no Rio de Janeiro. Solano fez questão de vigiar todas as etapas de perto, participando desde a montagem do júri até convidando pessoalmente os compositores, seus amigos, a se inscreverem. Os intérpretes também foram escolhidos a dedo, de forma a evitar que o baixo engajamento que quase condenou ao esquecimento o festival da Record de 1960 se repetisse. Além de cantores consagrados, como Agnaldo Rayol, Cauby Peixoto, Elizeth Cardoso e Orlando Silva, Solano apostou em iniciantes: Wilson Simonal, Geraldo Vandré, Claudete Soares… e nos dois em quem ele mais confiava: Elis Regina e Jair Rodrigues. Mesmo na liderança à época, a audiência do I Festival da Excelsior não foi das maiores.7 O que não significa que não tenha deixado um legado gigantesco. A vencedora “Arrastão”, de Edu Lobo, foi defendida com maestria por Elis Regina, que levou o público ao delírio. Embora já tivesse alguma projeção antes de 1965, foi graças a “Arrastão” que Elis despontou como uma das prin7
Brasil, 1965: 29 emissoras de TV. Entre 1,6 e 2,3 milhões de televisores. 81 mi-
lhões de habitantes (ver ref. bibliográficas, item 4).
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cipais artistas da época. Em maio, mês seguinte ao festival, a gravação em estúdio da música já estava à venda, com arranjo de Luiz Eça. De 1965 em diante, todos os festivais teriam no público uma personagem fortíssima, capaz tanto de exaltar os músicos como de fazê-los chorar. E os programas musicais também mudaram. Somente um estúdio simplório com o artista, que era o formato tradicional, não bastaria. Faltava vida. Faltava gente. Elementos que, nos anos 60, a Record soube trabalhar como ninguém. Não à toa a emissora retomaria a liderança da rival na segunda metade daquela década.
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prepare seucoracao -
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Dezembro de 1965 chegou trazendo consigo o calor e o Natal. Na Excelsior, ocorria a tradicional confraternização de fim de ano. Foi quando Solano Ribeiro aproximou-se do diretor Edson Leite para conversar amenidades e lhe transmitir seus votos de boas-festas. “Eu perguntei: ‘E o próximo festival?’. Ele respondeu: ‘Como assim? Já tá tudo certo’. Eu falei: ‘Certo? Mas ninguém falou nada comigo. Como é que vai ser?’. ‘Uai, vai ser patrocinado pela Rhodia.’ ‘E a estrutura dele?’. ‘Bom, nós vamos ampliar um pouco. Vamos fazer em Ouro Preto e Salvador também.’ E eu falei: ‘Mas quem vai dirigir esse festival?’. O cara riu e disse: ‘Você’. E eu falei: ‘Eu? Não. Esse não é o meu festival. Esse é o festival do Lívio Rangan. Então eu vou embora’. E naquela hora eu fiz o meu pedido de demissão”, recorda Solano. Já no primeiro festival Solano foi contrário a dividir a sede do evento entre São Paulo, Petrópolis e Guarujá. Expandir para mais duas cidades estava fora de cogitação. Foi a gota d’água. Para o canal 9, a saída de Solano não pareceu representar um grande problema. Significava mais liberdade para atender às demandas de seu patrocinador. O cineasta Roberto Palmari, amigo de Lívio Rangan, assumiu seu lugar e dirigiu, em 1966, seu único festival. Mas ocorre que o status da TV Excelsior após o Golpe de 64 se alterou drasticamente. Mário Wallace Simonsen, dono do grupo comercial que comandava a emissora, era favorável às medidas reformistas adotadas por João Goulart, taxadas de “comunistas” pelos generais e que foram a justificativa para a tomada do poder. Isso gerou uma série de intervenções do Estado na emissora. 77
Em 1965, com a morte de Simonsen, em Paris, a direção da TV Excelsior foi partilhada entre Edson Leite, Alberto Saad, Octavio Frias de Oliveira e Carlos Caldeira Filho. Em seguida, o canal 9 foi impedido de negociar suas ações de São Paulo, que então foram penhoradas e adquiridas pelo Banco do Brasil. Já as ações da emissora no Rio foram sequestradas pelo governo e caíram nas mãos de Carlos Lacerda, então governador. A motivação para a interferência estatal foram “infrações ao Código Brasileiro de Telecomunicações”. Somada a essa crise política houve também uma crise financeira. Na tentativa de expandir a produção de novelas, Wallinho Simonsen, diretor-superintendente e filho de Mário Wallace, arredou os estúdios da Companhia Cinematográfica Vera Cruz. Os aluguéis atrasaram e os salários também. As demissões e ações de despejo que vieram em sequência eram previsíveis. No final dos anos 60 ainda houve um incêndio no arquivo de reportagens, nos departamentos de contabilidade e recursos humanos da emissora, localizados na rua da Consolação, número 279. Em 1970, Wallinho Simonsen anunciou a venda da TV, mas as autoridades federais impediram o fechamento do negócio. O “enterro” da Excelsior foi dramático como blues antigo. *** Com aguçada visão empresarial, Solano era experiente e tinha contatos. Não demorou até que outra emissora se interessasse em tê-lo na equipe: era a Record de Paulinho Machado de Carvalho (filho), que passou a investir pesado nos programas musicais. 78
“Naquela época existia um protocolo entre as empresas de comunicação que nenhuma poderia querer um profissional da outra enquanto ele estivesse contratado. Eu fiquei liberado. Nessa mesma época, o Paulinho de Carvalho tinha investido muito nos musicais. Toda a música brasileira praticamente tava lá [na Record], da velha guarda inclusive. Ele perguntou se eu queria fazer um festival na Record e eu falei: ‘Bom, mas hoje em dia é o melhor lugar pra se fazer um!’. Aí eu pude impor as minhas condições pra fazer o festival na Record”, explica Solano. De fato, a Record investiu muito na música entre 1964 e 1965. O festival da Excelsior de 1965, em que “Arrastão” foi a canção vencedora, tornou-se referência em termos de programa musical, mas quem se aproveitou mais desse momento não foi o canal 9, e sim a Record. Antes mesmo do final daquele ano, quase todos os grandes nomes da música fecharam contratos de exclusividade com o canal 7: Edu Lobo, Nara Leão, Baden Powell, Lennie Dale, Chico Buarque, Nelson Gonçalves, Maria Bethânia, Agnaldo Rayol, Jorge Ben, Cyro Monteiro… Em outras palavras, a base da música popular brasileira da época estava na Record. Em 21 de abril de 1965, a mais importante voz do período também se tornaria única da empresa de Paulinho Machado de Carvalho: Elis Regina. Ela estava acertada com a TV Tupi, bastava apenas que o canal assinasse seu contrato. Isso só não ocorreu porque os diretores de lá se recusaram a permitir que uma cantora ganhasse mais do que eles. Paulinho não viu problemas em pagar o que Elis merecia e acertou com ela por 6 milhões de cruzeiros mensais. Uma fortuna. E uma aposta. 79
“O Paulinho arriscou tanto que, quando contratou a Elis Regina a peso de ouro, ele não sabia direito o que ia fazer com ela”, lembrou Zuza. De fato, pairava a dúvida: depois de pagar uma fortuna, o que fazer com Elis? A solução encontrada pela equipe da Record foi uma mistura de referências em outros eventos musicais. O primeiro deles ocorreu em março de 1964. Apaixonado por MPB, o jovem Horácio Berlinck Neto, aluno da Faculdade de Direito da USP, organizou um festival estudantil com artistas como Zimbo Trio, Alaíde Costa, Sérgio Mendes, Jorge Ben, Claudete Soares e muitos outros. O nome era tão bom que resolveu registrar: “O Fino da Bossa”. No ano seguinte, por intermédio do produtor João Evangelista Leão, Horácio se juntou à equipe da Record, que quis recriar seu show para a TV. O formato seria espelhado nas três noites de shows produzidos por Walter Silva dois dias após o festival de MPB da Excelsior de 1965. Na ocasião, ainda no embalo da vitória de “Arrastão”, Elis Regina subiu ao palco do Teatro Paramount, da avenida Brigadeiro Luiz Antônio, para as apresentações que depois inspirariam o disco “Dois na Bossa”. Com ela, se apresentaram o Jongo Trio e Jair Rodrigues. De início, pensava-se escalar Baden Powell para acompanhar Elis e o Jongo Trio no programa, mas o “crioulo”, como era conhecido Baden, estava em temporada na Boate Cave. Bem cotado entre os músicos da época, Jair assumiu seu lugar. Extremamente carismático e dono de uma voz poderosa, Jair ficou falado no meio musical em parte graças a um amigo: três anos antes, ele foi aconselhado pelo baterista do Djalma, Antônio Galdino Grilo (mais conhecido como Nino), a tentar a sorte na casa. 80
Curiosamente, Nino, que também é doutor em letras, vive em Jaú (SP), cidade onde nasci e fui criado. Entre muitas outras atividades, ele dá aulas de redação, das quais fui aluno. Em 2014 pude entrevistá-lo rapidamente para o programa “Universidade 93.7”, da Rádio USP, a respeito de Jair Rodrigues. “O Jair foi pro Djalma Ferreira porque eu levei. Ele cantava em uma boate horrível, ganhava mal pra burro. Eu levei ele para um lugar onde ele iria ganhar bem e ser visto, que era o Djalma. Foi onde ele foi visto pelo diretor da Philips, o Alfredo Borba”, lembrou Nino. Desta forma, estava montado o time que revolucionaria os programas musicais de televisão. “O Fino da Bossa” estreou em 19 de maio de 1965. Gravado dois dias antes da transmissão, teve como convidados Nara Leão, Baden Powell, Cyro Monteiro, Edu Lobo, Manfredo Fest Trio e Maria Odete. Bastaram dois meses para que se tornasse o carro-chefe da programação da Record. Inicialmente exibido às 22h10 das quartas-feiras e depois às 19h40, o ingresso para as gravações custava cinco cruzeiros e dava direito a acompanhar um desfile de aquecimento não televisionado. Com múltiplas atrações, dois apresentadores e a plateia lotada, “O Fino da Bossa” deu dinamicidade aos musicais em TV. Após seu estrondoso sucesso, o produtor Glauro Couto procurou a Record para emplacar uma nova atração, desta vez priorizando outro público e outros músicos. Nascia o “Bossaudade”. Após a repentina morte de Glauro, Manoel Carlos, a essa altura já fora da Excelsior, assumiu a produção junto com Tuta (irmão de Paulinho) e Nilton Travesso. O “Bossaudade” também era apresentado por uma dupla, no caso Cyro Monteiro e Elizeth Cardoso. Transmitido às 81
22h10 das quartas-feiras com reprises aos domingos, o programa de estreia teve como convidados Aracy de Almeida, Dalva de Oliveira, João Dias, Jacob do Bandolim e… Elis Regina, que mais uma vez cantou “Arrastão”. Em 1966 a Record consolidou os programas musicais como os principais de sua programação, e o festival que estava por vir seria a cereja do bolo. ***
O primeiro passo de Solano para começar a organizar o festival da Record de 1966 foi montar uma equipe competente para ajudá-lo. Instalada no segundo andar do prédio anexo ao Teatro Record Consolação, a equipe era composta pela secretária Marilu Martinelli, pelo assistente Renato Corrêa de Castro e por um assessor, que ficou a cargo da divulgação do festival. Esse assessor era Alberto Helena Júnior. Crítico musical e apaixonado por samba, o jornalista já tinha experiência com produção de eventos musicais. Foi ele o responsável por, em 1961, organizar aquele festival musical do Mackenzie, o “Cancioneiro do Brasil”. Helena é um jornalista da velha guarda por excelência. Chegar até a bucólica cidade de Ibiúna (SP) para entrevistá-lo não foi das tarefas mais fáceis. Porém as horas passadas conversando em sua belíssima casa de pedra que mais parece um castelo renderam muitas risadas e ótimas histórias. A primeira delas foi sobre sua chegada à Record, que é mais um desses causos que mostram a proximidade entre música e jornalismo no século passado. Entre um cigarro e outro, Helena me contou que escrevia sobre música para o Jornal 82
da Tarde em meados dos anos 60. A equipe ainda preparava a edição zero quando foi anunciado que haveria um show de João Gilberto no Teatro Record. “Eu era muito amigo do Chico Buarque, que inclusive acabou sendo meu padrinho de casamento. Ele queria trabalhar no jornal. Eu falava com o Mino Carta, que era o diretor [de redação], pra contratá-lo e ele ficava me enrolando. Então combinei com Chico, que vivia na noite, que pagaria 100 paus pra ele e falei: ‘Vai escrevendo, vai pegando as informações da noite, vai me passando e eu vou mostrando pro Mino Carta pra ele te contratar’. O Chico era estudante de arquitetura, mas gostava muito de escrever”, conta. Como “informante”, um dos primeiros furos de Chico foi quando descobriu, por meio de sua irmã Heloísa, a Miúcha, namorada de João Gilberto, que o baiano não iria mais se apresentar no Teatro Record. Helena telefonou para Miúcha. Do quarto de hotel, falando baixo para não acordar João, que dormia ao fundo, ela confirmou e disse que os dois iriam para a Bahia. “O João, com as manias dele, dizia que a mão tinha caído e não dava pra fazer. Eu disse: ‘Pera aí, faz o seguinte: segura ele e vamos lá pra casa do seu pai à noite que eu quero fazer uma entrevista com ele’”, prossegue Helena. À noite, na companhia de um fotógrafo, ele encontrou João, Miúcha, Chico e toda a família. “Eu perguntava: ‘E aí, João?’, e ele falava assim: ‘Tem muita coisa escura no ar’. E parava. A gente conversando, não sei o que… Daí a pouco eu virava pra ele: ‘João, e aí, vamos conversar? Eu queria fazer uma entrevista com você’. E ele sempre falava: ‘Há muita coisa escura no ar’. E parava”. 83
Após a insistência do fotógrafo para irem embora e as repetidas tentativas de entrevistar João, Helena conseguiu. Mas o que parecia um sucesso não tardou a se tornar um pesadelo. “Eu fiz um texto falando da importância do João no mundo do jazz. O editor achou que não era suficientemente impactante e mandou refazer. O cara refez com praticamente todas aquelas coisas das manias do João mas botando na boca da Miúcha! E uma foto dela, de pernas cruzadas, e a legenda: ‘Essa é a mulher que vive com João e suas manias. Filha de Sérgio Buarque de Holanda’. Pô! Então o Sergião ligou pra ‘Deus’, que era o Júlio Mesquita Filho, dono do jornal, reclamando. A Heloísa [Miúcha] me ligou e disse: ‘Como você faz isso, você é tratado como filho aqui em casa’. Eu respondi: ‘Olha, não foi eu que escrevi essa matéria que saiu. Só tem uma alternativa: tô dizendo pra você que tô de saída do jornal’. Eu joguei o jornal na cara do Mino Carta e disse: ‘Cês vão toma no…’ e fui embora. Deixei o jornal. E fiquei desempregado.” Não tardou, porém, para que Solano o convidasse para trabalhar na Record. Nunca como contratado, sempre na base do cachê. Helena então passou a ser assessor do festival de 1966. Ele fazia a parte de divulgação e também produzia pequenos programas musicais que eram inseridos nos horários de divulgação do evento, sobre a história da MBP. A série chegou a receber o Prêmio Governador do Estado. Helena, que ficou conhecido por sua carreira no jornalismo esportivo (hoje ele trabalha comentando futebol na Rede Gazeta), me contou o que de fato originou a criação do programa “Jovem Guarda”, outro musical de sucesso da Record. Ao final de nossa entrevista, ele já havia me alertado que bastaria eu sair pela porta que ele certamente se recordaria de al84
guma boa história. Dito e feito. Um dia depois de nossa conversa ele me narrou a seguinte anedota por e-mail. “A Record, nos anos 50 e 60, vinha liderando as transmissões ao vivo do futebol em São Paulo. Uma das criações do Tuta, filho do Dr. Paulo e diretor de TV, era uma câmera posta na beira do gramado que captava imagens das torcidas. Certo domingo, ela focou a tribuna de honra do Pacaembu, onde um cartola famoso estava ao lado da amante. A mulher do dito cujo viu pela TV e foi aquele perereco!”. Como resultado, a FPF, na segunda-feira seguinte, proibiu as transmissões de jogos ao vivo pela TV sob o argumento de que elas “roubavam público dos estádios”. “Tuta tinha uma semana pra resolver o que colocar no ar no lugar do futebol. Inventou, então, a ‘Jovem Guarda’, que virou uma febre de audiência, com o trio Roberto Carlos, Erasmo e Wanderléa. A partir daí, pelo que me lembro, o Teatro Record virou moda e acabou absorvendo toda a programação da Record na época.” Embora não saiba a respeito da anedota do cartola da FPF, Zuza confirmou a informação do veto às transmissões televisivas de futebol tanto em entrevista como em seu livro. *** O anúncio do II Festival da Música Popular Brasileira, com patrocínio do sabão Viva, foi feito pela primeira vez em 29 de janeiro. Nele, 36 canções seriam selecionadas para três eliminatórias, das quais sairiam 12 finalistas. Todas as etapas seriam em São Paulo, no Teatro Record Consolação. O prêmio para o vencedor seria inicialmente de 20 milhões, com mais 10 milhões para o segundo lugar, 5 para o terceiro, 3 85
para o quarto, 2 para o quinto e uma viagem à Itália para a melhor letra. Ao final, o prêmio para o primeiro lugar foi aumentado para 30 milhões. Diferentemente do festival de 1965, no qual eram inscritas partituras, em 1966 também foram aceitas fitas das gravações. Ao todo foram 2.635 candidatas, que foram avaliadas no salão da Escola Santa Helena, pertencente à mãe de Alberto Helena. Compuseram o júri o maestro Júlio Medaglia, o roteirista e diretor da Record Raul Duarte, o produtor Roberto Corte Real e o psicanalista Roberto Freire. Ao piano, executando as partituras, César Camargo Mariano. As músicas eram divididas em quatro grupos: as melhores, que competiam para vencer, as que tinham boas chances para as eliminatórias, as que mereciam repescagem e as que tinham um bilhete só de ida para o lixo. Para evitar favorecimentos, ninguém da comissão sabia quem eram os autores das músicas. Ficaram de fora canções de Adoniran Barbosa, Ataulfo Alves, Toquinho e Dori Caymmi. O próximo passo importante a ser cumprido foi formar um júri. Neste momento, o contraste entre Solano e Alberto Helena foi importante para dar equilíbrio ao júri. Solano era muito ligado ao rock, enquanto Helena era apegado ao samba e à tradição. Por fim o júri ficou da seguinte maneira: os cinco membros do grupo de avaliação (Júlio, Raul, Roberto Real, Roberto Freire e César), os jornalistas Sílvio Túlio Cardoso, Luiz Guedes, Franco Paulino e Alberto Medauar, os compositores Mário Lago e Paulo Vanzolini e o jornalista e compositor Denis Brean. A parte mais simples talvez tenha sido conseguir os intérpretes – fundamental para o sucesso de um festival. A maio86
ria já estava contratada pela Record. O que poderia atrapalhar seria como dividir as canções entre eles. Geraldo Vandré, por exemplo, ficou inseguro quando soube que Jair Rodrigues, sambista e brincalhão, defenderia “Disparada”, canção com forte teor crítico. Mal sabia que a performance de Jair seria um dos pontos altos do festival daquele ano.
Elza Soares se apresenta no II Festival da TV Record. (Folhapress)
*** Era por volta das sete da manhã de um sábado, 29 de julho de 1966, quando as primeiras chamas foram pressentidas. Um incêndio consumia o estúdio da TV Record em Moema, próximo ao Aeroporto de Congonhas. O setor técnico central e os estúdios A, 2, 3 e 4 foram completamente destruídos. Oito monitores, cinco racks, dois 87
geradores de sincronismo, duas câmeras Marconi, diversos rolos de videotape, gravadoras de VT, transmissores de micro-ondas… Tudo reduzido a cinzas. O arquivo de fitas, estimado entre 310 a 320 rolos que continham gravações de shows internacionais, programas musicais e jogos das Copas do Mundo de 1958 e 1962, foi destruído. Prejuízo estimado na casa dos bilhões de cruzeiros. Ao O Estado de S. Paulo, Paulinho Machado de Carvalho disse estranhar o incidente. Segundo ele, toda a instalação elétrica estava desligada na hora em que as chamas tiveram início. Ao jornal, Salvador Muller, comandante interino do Corpo de Bombeiros declararia: Dizer que os incêndios verificados nos últimos dias foram provocados por terroristas seria forçar a situação, pois estamos atravessando uma época em que são normais os incêndios.
Na tentativa de conter as chamas 200 bombeiros foram enviados ao local. Dono de uma chácara a apenas 100 metros do estúdio, Paulinho Machado de Carvalho chegou a ceder 80 mil litros d’água de sua piscina particular para serem utilizados pelo efetivo formado por homens da 1a, 2a, 3a e 5a zonas da corporação.
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Jornal O Estado de S. Paulo do dia seguinte ao incĂŞndio. (Acervo EstadĂŁo)
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“Imediatamente tudo foi transferido pro Teatro Record. Então eles pegaram o tal prédio que tinha do lado que virou tudo pequenos estúdios pra TV poder ir pro ar diretamente do Teatro Record. Isso foi um perereco, era uma loucura”, lembra Zuza. De início, Solano temeu que o incidente fosse prejudicar o andamento do festival. Paulinho fez questão de afastar a hipótese. A Record sequer saiu do ar durante o incêndio, embora tenha sido necessário alterar a grade de programação. Com a intensificação do uso do teatro para transmissões, foi preciso abrir mão do rigor técnico do estúdio, recorrendo a um processo bastante rudimentar, conforme recorda Solano. “[No estúdio] a temperatura tinha que estar em 17 graus, não podia fumar, não podia isso e aquilo… E ficava tudo dentro de um ônibus na rua, com toda a poluição da rua da Consolação e com temperaturas daquelas que o ar-condicionado não dava conta”. Ainda assim, o canal 7 estava em um momento de ótimos resultados, fruto de seus musicais. Com a mudança total para o Teatro Record Consolação, todos os programas ganharam a presença do público, o que foi visto como qualidade. “O incêndio, na verdade, fez com que a Record mudasse um pouco a postura de seus programas e deu muita vibração a eles, muita vida”, avalia Solano. O festival resistiu. E no final das contas não foi o incêndio que pautou o segundo semestre de 1966, mas sim uma acirrada disputa entre duas canções que tocaram profundamente a sensibilidade dos brasileiros.
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*** Preza o bom jornalismo que o repórter estude bastante e elabore uma pauta consistente antes das entrevistas. Às vezes, dependendo do grau de preparo, é possível inclusive prever respostas e assuntos que sairão da boca do entrevistado. Com Alberto Helena não foi diferente. Quando lhe perguntei sobre o festival de 1966, foi possível ver a mudança no tom da voz e a emoção estampada em cada palavra conforme as respostas caminhavam na direção de uma história específica. “Tem uma passagem, que até ontem eu estava sendo entrevistado na Cultura e me lembrei, do momento em que a gente teve ciência da música ‘Disparada’, do Geraldo Vandré e do Theo. É uma coisa impressionante! A sensação que transmitiu pra gente… Eu fiquei extasiado. Nós estávamos no fusquinha do Vandré… Tava o Vandré na direção, o Solano, eu e o Luiz Vergueiro. Em frente ao Juão Sebastião Bar. E aí ele começou a cantar. Puta, rapaz, era um negócio… Era Guimarães Rosa com moda de viola! Uma obra-prima que pegava desde as raízes mais profundas brasileiras e se adiantava no tempo, muito mais moderno do que hoje nós temos aí. Foi um impacto muito grande”, lembrou ele coçando o braço, como quem tenta conter um arrepio. Desde a primeira eliminatória, iniciada às 22h10 do dia 27 de setembro e terminando pra lá da meia-noite, “Disparada” surgiu como uma das favoritas, emocionando público e competidores. Contrariando quem considerava a viola caipira um instrumento ultrapassado, Solano sugeriu a Vandré que desse atenção para a música sertaneja. O conselho parece ter surtido efeito. 91
Belíssimas canções concorreram em 1966. “Ensaio Geral”, do baiano Gil, cantada por Elis Regina; “Canção para Maria”, de Paulinho da Viola e Capinam, também defendida por Jair; “Um Dia”, de Caetano Veloso, interpretada por Maria Odete, e diversas outras. Mas a grande concorrente de “Disparada” foi uma marchinha bucólica, ambientada em uma cidadezinha charmosa, que despertou o carinho de muitos brasileiros: “A Banda”, de Chico Buarque, na voz de Nara Leão. Com uma estrutura harmônica simples, a música conquistou o bom humor e a simpatia do público. A rivalidade saudável foi contagiante. Por onde se passasse, perguntava-se se o sujeito que vinha lá se ele era um “bandido” ou um “disparado”. “‘A Banda’ e ‘Disparada’ dividiram o auditório. O pessoal torcia, virou FlaFlu, Corinthians e Palmeiras. Foi a primeira vez na minha vida que eu vi o povo na rua discutindo estética, cultura. Como o brasileiro discute futebol na padaria, cê parava na banca de jornal e o pessoal estava discutindo: ‘Ah, mas a ‘Disparada’ é mais revolucionária!’, e o outro dizia: ‘Mas ‘A Banda’ é mais brasileira, mais raiz!’. Então você tinha essa discussão, que nunca houve antes nem depois”, explica Helena. Na noite da grande final, realizada em 10 de outubro, quem não tivesse a sorte de ter uma entrada para o Teatro Record certamente estaria em casa vendo pela televisão. Alguns teatros e cinemas da capital até fecharam suas portas, seguros de que não haveria público. Não se falava de outra coisa que não do festival. Por sorteio, “Disparada” deu início à competição. Vestindo um terno vermelho, Jair Rodrigues subiu ao palco 92
acompanhado pelo Trio Marayá para fazer história. Sua performance foi enérgica, contagiante e arrancou gritos de “já ganhou” da plateia. “A Banda” foi a sexta canção da noite. Nara Leão trajava uma blusa de seda brilhante com gola rulê, saia prateada e sapatos baixos, também prateados, quando chegou para cantar. Como nas eliminatórias a voz de Nara ficou encoberta pelos instrumentos, Chico foi convencido a acompanhá-la na voz e violão, o que foi um presente para o público que se encantou com o casal. Sorridente em seu smoking, Chico foi recebido com flores de suas colegas de faculdade. O que veio depois pouco animou o público. Elis Regina chegou até a ser vaiada. Só se queria saber logo quem venceu e ouvir as reapresentações de Jair e da dupla Chico e Nara. Os jurados votavam. Crescia a expectativa. Paulinho Machado de Carvalho suava frio, temendo que o público depredasse o Teatro Record caso fosse contrariado. Finalmente o resultado: “A Banda” vencera por sete a cinco. Roberto Freire foi até Paulinho entregar o resultado. O que veio em seguida jamais foi confirmado por Chico, porém tanto Zuza quanto Solano narram o ocorrido em seus livros: Chico se recusava a vencer. Ameaçou devolver o prêmio se ganhasse. Os jurados ficaram surpresos. O que fazer? Depois de muitos debates, foi decidido pelo empate. Chico aceitou dividir o prêmio. “A Banda” e “Disparada” dividiram o primeiro lugar e “Ensaio Geral” foi alavancada ao quinto lugar. Quando Randal Juliano anunciou o resultado, foi uma catarse: aplausos, vaias, gritos e cartazes. Nem a noite fria e chuvosa era capaz de conter a enorme euforia. Somente 93
Caetano se mostrou insatisfeito. Em seu livro, Zuza conta que ele dizia abertamente: É ridículo que um festival termine com a música de Gil em quinto lugar! Foi a coisa mais importante feita até hoje na arte popular brasileira.1
A repercussão do festival de 1966 foi estrondosa.2 Um sucesso de audiência. Rendeu poemas, programas de TV, discos, livros… Poucas vezes se viu algo parecido. Em 29 de outubro os vencedores receberam seus prêmios. Chico ficou com 15 milhões de cruzeiros enquanto Theo e Vandré ficaram com outros 15. Jair foi o melhor cantor e Caetano recebeu o prêmio de melhor letra. No dia seguinte ao festival, a Philips venderia mais de 10 mil cópias do disco com “A Banda”, cantada por Nara Leão (que incluía também “Ladainha”, por Gilberto Gil e Capinam). Ao final do mês, já seriam mais de 100 mil, disputando com a versão de Chico, gravada pela RGE. No mesmo ano, Chico lançaria seu primeiro álbum de estúdio. O disco com “Disparada”, da Philips, saiu com atraso devido a pendências burocráticas. Vendo a Philips lançar LPs com as músicas tocadas em seu festival, a Record logo tratou de criar seu próprio selo, o “Artistas Unidos” (AU). Como nenhuma das gravadoras possuía todos os intérpretes originais, elas tiveram que usar substitutos para algumas músicas. 1
MELLO, op. cit., p. 139.
2
Brasil, 1966: 30 emissoras de TV. 2,3 milhões de televisores. 83 milhões de habi-
tantes (ver ref. bibliográficas, item 4).
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O que ocorreu no Teatro Record em 1966 foi histórico. Seu eco eternamente será sentido na música popular brasileira. Com tamanho impacto, a expectativa para os festivais seguintes só tendia a crescer. Para o bem e para o mal, o que veio em seguida também teve um estrondoso impacto.
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seis
roda-viva 96
O festival de 1966 foi um sucesso de audiência e representou o ponto máximo do Teatro Record Consolação. Todo o caminho percorrido com os programas musicais se consolidou na noite em que “A Banda” e “Disparada” dividiram o público e empataram em primeiro lugar. Lutando para sobreviver diante de uma grave crise, a Excelsior também realizou a segunda edição de seu festival naquele mesmo ano, que ficou ofuscado diante do sucesso do evento da concorrente. “Porta Estandarte”, de Geraldo Vandré e Fernando Lona, foi a canção vencedora, que seria lançada como LP em junho de 1966, pela gravadora Chantecler. Naquele mesmo ano, Vandré voltaria ao estúdio em novembro para gravar seu terceiro LP, “Cinco Anos de Canção”, pela Som Maior. “Na comparação eles perderam. Primeiro pelo fato de fazer o festival itinerante. Segundo porque eu estava com um elenco muito melhor. Os compositores, eles preferiam dar a música pra mim do que pra Excelsior. Eu tinha o aval dos compositores, eles acreditavam e confiavam no meu trabalho”, avalia Solano. Ainda em 1966 surgiu o Festival Internacional da Canção (FIC). Idealizado por Augusto Marzagão, o evento seria futuramente oficializado pela Secretaria de Turismo do Estado da Guanabara (RJ). Inicialmente com transmissão da TV Rio, o FIC depois migraria para a Globo. A canção vencedora do primeiro FIC foi “Saveiros”, de Dori Caymmi e Nelson Motta. Procurado para essa reportagem, a equipe de comunicação de Nelson Motta afirmou via redes sociais que
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[…] o Nelson não pode aceitar convites para trabalhos universitários porque são tantos os pedidos e se fizesse para um teria que fazer para todos … e não faria outra coisa na vida …rsrs […]. (sic)
Por conta do sucesso de público e da superlotação do teatro da Consolação após o incêndio em Moema, o canal 7 decidiu realizar o festival do ano seguinte no Teatro Paramount. Inaugurada em 1929, a luxuosa sala da avenida Brigadeiro Luiz Antônio foi o primeiro cinema da América do Sul a exibir, em 1958, um filme falado: Alta traição (The patriot), de Ernst Lubitsch. Com cerca de 2 mil lugares, o local foi arrendado pela Record em 1967 e passou a ser conhecido como Teatro Record Centro. Hoje ele é o Teatro Renault, com área de 5,5 mil metros quadrados e capacidade para 1.530 espectadores. O mesmo ano ainda seria marcado pelo lançamento de um disco cujo impacto poucas vezes foi igualado na história da música popular. Quem quer que estivesse próximo a uma vitrola no momento em que sua agulha tocasse a superfície de “Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band”, dos Beatles, dificilmente ficaria indiferente. Era o rock mostrando o que possuía de melhor. Entre os compositores que participaram do II Festival da TV Record, o disco atingiu especialmente dois deles: Caetano Veloso e Gilberto Gil. Nos anos que se seguiram, a dupla comporia, junto a Gal Costa, Nara Leão, Tom Zé e outros, um grupo bastante particular da MPB: os tropicalistas. Com estética eclética, impossível de ser definida em padrões absolutos, o movimento defendia uma música livre, por vezes experimental e antropofágica, ao agregar múltiplos elementos à cultura brasileira. 98
O rock foi um deles, mas nem todos o receberam de braços abertos. Havia quem o considerasse um símbolo do “imperialismo yankee” que se insinuava por nossa música. Houve inclusive protestos contra tais influências, cujo maior viria a ser conhecido como “O Protesto contra as Guitarras Elétricas”. Alberto Helena nunca gostou de rock, mas se viu obrigado a tolerá-lo. Após o festival de 1966, ele e Solano tinham expectativas de que surgissem novos programas musicais envolvendo os artistas que despontaram naquele ano. Mas Paulinho Machado de Carvalho quis apostar em uma atração com Ronnie Von. Solano se negou a fazê-lo. Já Helena, que seguia trabalhando na base do cachê, aceitou. “Era pra ser ao vivo do Teatro Record, antes da ‘Jovem Guarda’. Só que eu não podia utilizar nenhum conjunto, grupo, banda ou cantores que fizessem parte permanente das demais produções musicais da Record. Eu falei ‘Porra, como é que vamos fazer?’”, lembra Helena. Por indicação de um amigo, ele convidou um grupo de jovens que à época era pouco mais que uma banda de garagem para participar do programa. O nome do conjunto era confuso até para quem gostava de rock e falava inglês: The Six Sided Rockers. “Eles eram ajeitados. Divertidos, sabe? Era um refresco trabalhar com eles, eram molecões. E eles tinham um nome em inglês, comprido… Quando os incorporei no programa, o Ronnie Von falava muito: ‘Ah, nós estamos na época dos mutantes e tal…’. Daí eu falei: ‘Bom, então esse grupo vai chamar ‘Os Mutantes’, acabou. Muito mais fácil’. E ficou”, recorda
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Helena.1 A referência a “mutantes” que Ronnie tanto repetia vinha do livro O império dos mutantes, ficção científica do escritor francês Stefan Wul que também havia encantado Arnaldo Baptista, baixista do grupo.
A torcida no III Festival da TV Record. (TV Record)
Liderados por Arnaldo, Rita Lee e Sérgio Dias, o grupo teve participação determinante no III Festival da TV Record,
1
O nome The Six Sided Rockers foi adotado somente na formação já com Rita Lee
e Sérgio Dias. Segundo o livro A divina comédia dos Mutantes, de Carlos Calado, o grupo primeiramente mudou de nome para O’Seis e em seguida para Os Bruxos. Só então seriam rebatizado para Os Mutantes por sugestão de Alberto Helena, história confirmada por Calado.
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de 1967.2 Aquela edição é considerada a mais diversificada em termos musicais. Chico Buarque e o grupo MPB4 competiam com “Roda Viva”. Caetano inscreveu “Alegria, Alegria”, descrita por ele no documentário Uma noite em 67 como “uma marchinha antiquada de Lisboa”, executada por ele e acompanhado pelos argentinos do grupo de rock The Beat Boys. O segundo colocado naquele ano foi Gilberto Gil, com “Domingo no Parque” que, no arranjo de Rogério Duprat, misturava orquestra, berimbau e o rock dos Mutantes. A música reconta o triângulo amoroso entre João, José e Juliana por meio de uma letra cinematográfica. A grande vencedora, porém, foi “Ponteio”, de Edu Lobo e José Carlos Capinam, um baião acelerado com forte mensagem política (“Quem me dera agora eu tivesse a viola pra cantar”). Os três LPs da Philips que continham as 36 canções semifinalistas dos festivais, com praticamente todos os artistas originais, foram muito procurados, em especial os de Caetano Veloso (pela Philips, e que naquele ano lançaria seu primeiro álbum de estúdio), Chico Buarque (RGE) e Roberto Carlos (Philips). Assim como “Arrastão” e “Disparada”, venceu mais uma afronta à ditadura, que já naquele festival começou a olhar mais atentamente para a música.
2
Brasil, 1967: 41 emissoras de TV. Entre 2,3 e 3,2 milhões de televisores. 86 mi-
lhões de habitantes (ver ref. bibliográficas, item 4).
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Edu Lobo e Marília Medalha apresentam “Ponteio”. (TV Record)
Exercida pela Polícia Federal, a censura trabalhava sob as ordens de Judith de Castro Lima, chefe da Censura Federal. Todas as letras que não passavam por seu crivo deveriam ser alteradas. Cabia aos funcionários da Record se virarem para convencer os compositores a mudarem suas obras. *** Ainda em 1966 a equipe de Solano Ribeiro teve uma baixa na equipe do III Festival da TV Record: Alberto Helena. Com o sucesso de “Disparada”, o jornalista convenceu Marcos Lázaro e Paulinho Machado de Carvalho a contratar Geraldo Vandré. A ideia era lhe dar um programa ho102
mônimo à sua canção e ampliar o espaço da música sertaneja na TV. “O Paulinho falou assim: ‘Helena, cê vai arrumar encrenca, esse cara é maluco’. E eu: ‘Não, deixa comigo, vou resolver’. E convenci os dois. Eles assinaram um puta de um contrato com o Geraldo Vandré, o Trio Maraya, o Quarteto Novo e tal.” Na reunião que definiria o projeto, porém, Helena sentiu que mesmo tendo idealizado o programa teria pouco espaço para trabalhar. “O Marcos Pereira [publicitário e ex-Secretário de Cultura de Pernambuco] revelou como seria o esquema de produção. Tinha o Fernando Faro que ia cuidar da direção de TV, o Solano, que era o diretor-geral, o outro ia cuidar de não sei do quê… Quando terminou, tinha uns sete, oito caras na produção e eu falei: ‘Escuta, e a putinha aqui, como é que fica? Porra, eu que armei esse esquema todo!’. E eles: ‘Não, nós vamos dar um jeito…’. Eu falei: ‘Não, cês vão dar um jeito na puta que os pariu’. Eu era muito bravo naquele tempo…”, contou ele em meio a risos. Após um primeiro programa cheio de problemas, Solano foi à casa de Helena e o convidou para ser produtor da atração. Ele auxiliaria no contato com músicos mais antigos, com quem possuía bastante intimidade. Como precisava do emprego, Helena aceitou e voltou a trabalhar na Record. O show “Disparada” era gravado nas madrugadas, após a meia-noite, e ainda assim lotava o Teatro Record. No terceiro programa, performaria o cantor Ataulfo Alves, à época já com idade avançada, e também haveria um monólogo de Vandré. Enquanto não chegava a hora dos convidados entrarem, eles aguardavam nas coxias. 103
“O Vandré era muito complicado. E o Ataulfo tava lá de pé, coitadinho… Já tava há quase uma hora lá, o velhinho. O Solando tava dirigindo a gravação e eu tava sentado na plateia. Aí ele me chamou e falou: ‘Pô, Helena, eu tô com uma dor de cabeça fodida. Assume aí’. Eu falei: ‘Tá bom’. Peguei o script, subi no palco… e o Geraldo não acertava [o monólogo]. E voltava, e não gostava, e tinha que ter um som que não vinha na hora certa… Um pé no saco.” Diante da situação, Helena conversou aos cochichos com Vandré propondo gravar a parte de Ataulfo antes, para poder liberá-lo e depois seguir com o monólogo. Com o microfone ligado e o teatro lotado, Vandré teria respondido: ‘Eu quero saber uma coisa, quem é que tá dirigindo esse programa? É o Solano Ribeiro ou é você?’. “Eu, que estava com os scripts, joguei na cara dele e disse: ‘É a puta que te pariu, seu filho da puta’. E desci. Fui embora. Fui demitido. Encontrei o Marcos Lázaro lá fora, que falou: ‘Ê, Helena, você sabe…’. E eu: ‘É, eu sei, mas foda-se’.” No dia seguinte, quando foi retirar seus pertences da Record, reencontrou alguns conhecidos: Fernando Faro, Solano Ribeiro… e Vandré. “Eu entrei, cumprimentei o Faro, fui pegar minhas coisas e não olhei na cara do Vandré. Aí ele disse: ‘Não vai me cumprimentar?’. E eu: ‘Eu quero que cê vá pra puta que te pariu!’. Decidiram resolver as desavenças no braço. Foram para a rua. “Eu desci a escadinha desse prediozinho que tinha do lado do Teatro e tava aquela multidão na porta. Eu dei a volta por trás da multidão e fiquei esperando. Ele veio por trás de mim e me deu um soco na cabeça. Quando eu virei ele correu. Ah, rapaz… Eu fui no barzinho ali do lado e fiquei espe104
rando. Falei: ‘Ele vai sair e na hora que sair, vai apanhar’. E o [Fernando] Faro ficou lá do meu lado dizendo: ‘Pô, Baixo, e o Pelé…’, tentando mudar de assunto. Uma hora ele saiu. Ah, rapaz… Eu parti pra cima dele, comecei a dar-lhe porrada. E naquele tempo se usavam uns cinturões largos, aqueles da jovem guarda. Ele querendo tirar o cinturão pra bater em mim e eu dando porrada. Ele virou de costas e eu dava o pé na bunda dele, mas ficava com medo de jogar ele nos vidros do teatro, que era todo envidraçado, e quebrar aquela merda. Aí eu falei: ‘Olha aqui, onde eu te encontrar, você sai. Se eu entrar num bar e você estiver, você vai sair que cê vai apanhar. Se tiver na rua, atravessa que tu vai apanhar. Onde eu te encontrar você vai apanhar, filho da puta’.” Após o incidente, Helena foi para a Bandeirantes por indicação de Marcos Lázaro. Ele foi substituído por Milton Faria no cargo de assessor do festival. O programa “Disparada” durou apenas três meses no ar. *** Terminado o festival de 67, iniciaram-se as reclamações. Primeiramente, um grupo de estudantes, liderado por Paulo Campos Filho e Amaro Moraes e Silva, contestou a escolha do júri que compôs as eliminatórias. Acreditavam que havia boas músicas que nem sequer foram para a repescagem e mereciam ser ouvidas. Muito contrariado, Paulinho Machado de Carvalho aceitou abrir as portas do Teatro Record Centro para o que ficou conhecido como “Festival dos Excluídos”. No dia seguinte, a manchete do Jornal da Tarde resumiu a tônica do evento: “O júri tinha razão”. 105
Outra reclamação foi que o último festival havia deixado o samba de lado. Quem encabeçou a reivindicação foram alguns dos cariocas que frequentemente participavam das produções da Record, como o jornalista Sérgio Cabral. Desta forma, ficou acordada a realização da Bienal do Samba, que deveria prestigiar o ritmo brasileiro por excelência. “Eu fui júri e foi sensacional, teve músicas extraordinárias. Na final, havia uma dúvida entre uma música do Chico, que era ‘Bom Tempo’, e ‘Lapinha’, do Baden Powell e Paulo César Pinheiro. E eu tava em dúvida entre os dois. Aí o Franco Paulino, que era crítico de música popular no Última Hora, virou pra mim – ele costumava me chamar de Crioulo, porque eu gostava muito de samba: ‘Porra, Crioulo, não tem dúvida: vamos votar no Crioulo, pô!’. O Crioulo era o Baden Powell. Aí votamos no Baden Powell, na ‘Lapinha’, que era interpretada pela Elis Regina”, recorda Alberto Helena. “Lapinha” foi a canção vencedora. Mas a maior herança da Bienal do Samba foi em relação ao público. Em 1967, a plateia já havia aterrorizado os artistas. Sérgio Ricardo foi vaiado e não conseguiu terminar sua canção na final. Gilberto Gil, embora muito aplaudido, quase não foi tocar, paralisado de medo da audiência. Segundo o depoimento de Chico de Assis para o documentário Uma noite em 67, Telé Cardim, assídua frequentadora dos festivais, chegou inclusive a se fantasiar de vaia: um vestido com a letra “U”, representando a desaprovação da torcida. Os festivais se tornaram um espaço em que o povo se fazia ouvir como em poucas circunstâncias era possível durante a ditadura. Portanto, em 1968 foi introduzido o siste106
ma de voto popular. A canção preferida pelo público receberia uma honraria à parte, distinto do prêmio do júri especial. O tal júri popular era composto por 14 equipes de sete membros, totalizando 98 jurados. Metade das equipes estaria no interior e a outra metade na capital, com sede em clubes desportivos. Além de São Paulo, as cidades escolhidas foram Santos, Campinas, Ribeirão Preto, Guaratinguetá, Bauru, Araraquara e ABC (concentrado em Santo André). O voto seria feito por telefone. O estranhamento em relação a esse formato foi grande. Na imprensa, já havia quem dissesse que os festivais da Record chegavam a seus últimos dias. De qualquer forma, 1968 aconteceu.3 “São, São Paulo Meu Amor”, de Tom Zé, foi vencedora no júri especial e “Benvinda”, de Chico Buarque, no júri popular. “Em 1967 nós colocamos o que seria o embrião do tropicalismo. E o festival de 1968 foi praticamente todo tropicalista. Não tinha mais ninguém vestido normalmente, a não ser o Chico [Buarque] e o MPB4. O resto era meio que fantasia”, explica Solano. De fato 1968 foi o ano em que a tropicália ocupou mais espaço. Não só no festival da Record, mas também III Festival Internacional da Canção também. Naquela ocasião, Gilberto Gil e Caetano Veloso, que inscreveram respectivamente “Questão de Ordem” e “É Proibido Proibir”, foram duramente vaiados. “Vocês estão por fora! Vocês não dão pra entender! Mas que juventude é essa?! Vocês jamais conterão ninguém”, chegou a berrar Caetano. 3
Brasil, 1968: 40 emissoras de TV. 3,2 milhões de televisores. 89 milhões de habi-
tantes (ver ref. bibliográficas, item 4).
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*** A finalíssima do IV Festival da TV Record se deu em 9 de dezembro de 1968. 13 de dezembro, quatro dias depois, um baque: decretado o Ato Institucional número 5. Por meio dele, o presidente da República – eleito indiretamente por um colégio militar – tinha poderes para, sem necessitar de aprovação judicial: decretar o recesso do Congresso Nacional; intervir nos governos estaduais e municipais; cassar mandatos de parlamentares; suspender os direitos políticos de qualquer cidadão por dez anos e – o mais cruel de todos – suspender a garantia do habeas corpus, instrumento que assegura o direito de liberdade a um cidadão acusado. Em seu preâmbulo, consta que a medida foi tomada, entre outros motivos, para conter “atos nitidamente subversivos, oriundos dos mais distintos setores políticos e culturais” que tentavam destruir a “Revolução” de 1964, a qual outorgou à nação “instrumentos jurídicos” para sua “defesa, desenvolvimento e bem-estar de seu povo”. Na prática, a ditadura brasileira chegara a seus dias mais sombrios. Não tardou para que os artistas estivessem sob ataque. Caetano Veloso e Gilberto Gil foram presos – sem nem sequer haver acusação formal – e em seguida se exilaram na Inglaterra. Vandré tornou-se foragido e fugiu do país sob disfarce. Chico Buarque acordou com a polícia batendo em sua porta na véspera de Natal, obrigando-lhe a depor no Ministério do Exército. Foi para a França fazer uma apresentação e acabou se refugiando na Itália. Edu Lobo e Carlinhos Lyra partiram para os Estados Unidos. 108
O clima era tenso e poderia piorar. Sentindo isso, Solano, que sempre foi muito próximo dos artistas e outras personalidades, precisou decidir rapidamente o que faria de seu futuro. Ele poderia em breve também ser alvo dos militares. “A situação foi de certa maneira engrossando. Política. Nesse clima eu senti que seria um calhorda se fizesse o festival, pra fazer de conta que tá tudo bem. Então eu falei: ‘Eu não tenho a menor condição de fazer um festival com a atual conjuntura política, eu vou embora’. Inclusive pretendo até sair do Brasil, como fiz algum tempo depois”, explica ele. Seu caminho foi, primeiramente, a França, onde comandou a delegação brasileira no Mercado Internacional do Disco e Edições Musicais (Midem). Com ele foram Elis Regina, Edu Lobo, Wilson Simonal, Os Mutantes e Rogério Duprat. Em seguida, Solano passou diversos anos na Alemanha trabalhando como produtor de documentários e reportagens. Outro que não tardou a sair da Record foi Zuza Homem de Mello. Já descontente com os moldes do festival de 1968, ele procurou Paulinho para acertarem as contas e dizerem até logo. “É curioso, Otávio. Eu tenho um certo… pressentimento de quando eu devo sair de um lugar. Eu saí da Jovem Pan quando achei que deveria sair e saí da TV Record quando achei que deveria sair.” E assim Zuza também se foi. Mas não sem antes se tornar quase um hóspede da sala de espera de Paulinho Machado de Carvalho, juntamente a Adoniran Barbosa. “Nós nos demitimos juntos e frequentamos aquela sala de espera durante aproximadamente um mês todo santo dia, aguardando a conversa com o Paulinho. Ele não queria nos receber. Nós ficávamos na sala de espera uma, duas horas. ‘O 109
Dr. Paulinho disse que não pode hoje, amanhã ele recebe’. Aí voltávamos os dois, cada um pra sua casa e no dia seguinte lá estávamos nós”, relembra. Sem alguns dos grandes responsáveis por seu sucesso, a Record perdeu força. O IV Festival da TV Record, de 1969,4 foi uma bagunça: seguindo a tendência dos programas de debate que surgiram no final da década de 60 (como o “Quem Tem Medo da Verdade?”, da própria Record), as músicas apresentadas naquele ano eram submetidas a um “tribunal” cuja função era exclusivamente gerar polêmicas. Havia “promotores” e “advogados de defesa” que deveriam expor suas opiniões ao vivo. O resultado foi lastimável. Segundo o próprio Paulinho Machado de Carvalho, em depoimento a Zuza Homem de Mello, O balão dos festivais já estava murcho desde 1968 e a Record já pressentia que esse modelo de programa estava em declínio.5
*** 28 de março de 1969. Quatro horas da manhã. Queima o Teatro Record Consolação. O terceiro incêndio na emissora em menos de três anos, se considerado o incêndio de janeiro do mesmo ano, que destruíra a torre de transmissão da Record na avenida Paulista.
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Brasil, 1969: 51 emissoras de TV. Entre 3,2 e 4,5 milhões de televisores. 92 mi-
lhões de habitantes (ver ref. bibliográficas, item 4) 5
MELLO, op. cit., p. 365.
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Jornal O Estado de S. Paulo no dia seguinte ao incĂŞndio. (Acervo EstadĂŁo)
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Os bombeiros chegaram às 4h30, mas faltou água na Consolação. Os carros-tanque chegaram meia hora depois. Ao todo, cerca de 80 homens trabalharam na ocorrência, segundo o jornal O Estado de S. Paulo. Somente por volta das 8h30 o fogo foi contido. Zuza saíra da Record semanas antes do incêndio. O canal 7 era praticamente sua segunda casa, tanto que o engenheiro de som não teve pressa para retirar seus discos, fotos e outros pertences do local. “Eu falei: ‘Ah, na semana que vem eu venho aqui retirar isso’, que tava no meu armarinho lá na [área] técnica. Foi tudo pro beleléu. Tinha uma foto minha com o Sammy Davis Jr… Várias fotos com artistas que perdi. Foi logo depois que eu saí, não foi um mês depois. Pegou fogo em tudo, não sobrou nada. Nada.” Solano reagiu de forma diferente. Com perfil estritamente profissional, ele conta que não se deixou abalar pelo incêndio. “Eu não tenho muita ligação com o imóvel, nem com o teatro e nem com as coisas que lá aconteceram. O único lugar que eu criei realmente uma ligação mais afetiva foi o Teatro de Arena, que existe até hoje. Até hoje eu olho pra ele com muita simpatia e de uma maneira muito agradável. Os outros não porque eram empresas grandes, tudo no seguro… Não tinha problema financeiro”, explica Solano.
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Fachada do Teatro Record após o incêndio. (Folhapress)
De fato, nem o próprio Paulinho Machado de Carvalho pareceu se abalar com a tragédia. O jornal O Estado de S. Paulo deu conta de que ele chegou ao local do incêndio às 5h05 e que se limitou a sorrir diante do incêndio. Alguns artistas e funcionários da Record, como Marcos Lázaro, Ronald Golias e José Vasconcellos quiseram dar algum dinheiro para ajudar na reconstrução. O jornal afirma que chegou a se juntar 80 mil cruzeiros novos no ato do incêndio. Paulinho recusou, dizendo que não achava justo receber o dinheiro deles e que a emissora poderia arcar com o prejuízo. Segundo ele:
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Minha única preocupação é saber o que eu vou fazer daqui a dez minutos, para manter a televisão no ar. […] A Record não se assusta mais com incêndios, porque esse não foi o primeiro e nem será o último.
O caso nunca foi devidamente esclarecido, sobretudo se consideradas as circunstâncias dos diversos incêndios em sequência. Os bombeiros não quiseram dar informações no momento da ocorrência. O tenente Sanches teria dito: Vocês do Estadão só sabem meter o pau nos bombeiros. Qualquer coisinha e estão vocês dizendo que os bombeiros chegaram atrasados.
Ele recomendou procurarem o coronel Dagoberto. Estava em reunião e não foi encontrado. Segundo o mesmo jornal, o vigia do teatro, Luiz Roga Gonçalves de Araújo ligou diversas vezes para o plantão até ser atendido. Os vizinhos também perderam tempo buscando ajuda sem obterem resposta. Aquele era o fim do Teatro Record Consolação. Foi de cinzas seu enxoval. Viveu apenas um festival.
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Os destroços do Teatro Record. (Folhapress)
A bilheteria tambĂŠm foi destruĂda pelas chamas. (Folhapress)
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*** O Teatro Record Consolação nunca foi reconstruído. Um clube de jazz chamado Opus 2004 surgiu em seu lugar nos anos seguintes. “Eu frequentei a Opus 2004 por causa do Nelson Ayres, que se apresentava lá regularmente. Era uma vez por semana e eu ia toda a semana. Lá conheci uma outra namorada, devo isso à Big Band do Nelson Ayres. E adorava, do Opus 2004 eu tenho essa lembrança muito favorável, muito alegre, muito boa”, recorda Zuza. Procurado para esta reportagem, Nelson Ayres não respondeu ao pedido de entrevista, mesmo após o encaminhamento de sua equipe de mídias sociais. A Opus 2004 funcionou na Consolação até os anos 90, quando se mudou para o centro. Quem assumiu seu lugar foi a Lustres Yamamura, que já tinha sua loja na Consolação mas se expandiu incorporando o terreno em que antes esteve o teatro. Para esta reportagem, pedi – insistentemente – uma entrevista com o proprietário da loja. Paulo, o funcionário do setor de marketing da loja com quem troquei e-mails e telefonemas, se limitou a dizer que “não dá”. “Toda vez que eu passo defronte do Yamamura – de dia, de noite, sem exceção – eu dou uma olhada pro lado e falo: ‘Aqui era o Teatro Record’. Pra mim, a fachada do Yamamura não existe. A cena que eu vejo é a fachada do Teatro Record. E foi um período muito bom porque eu tive um grande chefe. Nem sempre isso acontece na vida das pessoas, às vezes você trabalha forçado, odiando a pessoa que te comanda e por vários motivos não consegue sair dessa… Mas eu tive, nesses dez anos da Record, essa pessoa maravilhosa que foi o Pauli116
nho Machado de Carvalho, de quem fui amigo até o final da vida”, lembra-se Zuza. O Teatro Record Consolação remonta a uma época em que São Paulo ainda era uma cidade quase provinciana. Era comum ver tanto Paulinho, dono da emissora, como seus funcionários pararem seus carros na rua – o patrão, uma Mercedes-Benz; dos outros, o Fusca era o preferido. “Eu tenho saudade da mocidade, como todo mundo. Mas não tenho saudade da ditadura militar, era um horror. Você vivia sempre apavorado e indignado com as coisas. Os amigos que eram mortos, os amigos que sumiam… Enfim. Todo esse clima. Cê ia dormir e não sabia se iam bater na sua porta e te levar preso”, explica Helena. Solano Ribeiro, por sua vez, prefere olhar para frente a ficar cultivando um sentimento nostálgico de um passado que não voltará. Ele é um crítico dos moldes que a indústria fonográfica tomou no Brasil. Atualmente, ele tem um programa na Rádio Cultura Brasil, no qual procura divulgar novos artistas. “Eu não tenho saudade, acho sempre que a fila tem que andar. Quando as pessoas falam pra mim: ‘Ah, mas nessa turma nova eu não tô vendo o Caetano, não tô vendo o Gil, não tô vendo o Chico’, eu falo que você tem que olhar pro Caetano, o Chico e o Gil não agora, mas quando eles vieram pra mim com um violãozinho e falaram: ‘Olha, eu tenho uma musiquinha aqui’. Esses novos caras precisam ser desenvolvidos. Eles talvez façam um trabalho mais importante do que o Caetano, o Gil e tudo mais, se tiver disposição”, critica. Independente de qualquer nostalgia, o tempo permitiu que se enxergassem os fatos ocorridos no Teatro Record Consolação como eventos históricos fundamentais. Se, à época, era 117
possível prever que tomariam tais proporções é uma questão que gera discussão. Alberto Helena e Zuza garantem que sim. “Eu não tinha a menor dúvida”, cravou Zuza. “A prova está que eu guardava as fitas. Quer dizer, se eu guardava é porque eu achava que aquilo era precioso. Aquilo iria ser um documento de áudio, na medida do possível, que mostraria como foi. Eu sempre soube que era importante.” Ele guardou diversas gravações de artistas se apresentando pela Record durante seu período como engenheiro de som. “Eu sempre tive um viés, assim… de observar. Por profissão, você tem que entender o seu tempo. Eu sabia que aquilo era um momento histórico. Porque é difícil você juntar uma geração, sabe, como foi a dos anos 30, com Noel, Lamartine, Cartola… Todo aquele povo, e depois essa geração dos anos 60. É difícil juntar essa turma, esse mesmo time em um mesmo período”, avalia Helena. Já Solano é mais pragmático. Ele me disse que daria a mesma resposta que deu a Renato Terra, um dos diretores do documentário Uma noite em 67, ao lado de Ricardo Calil. “Naquele tempo eu só queria fazer um bom musical de televisão. A gente não tinha a menor ideia de que tava fazendo uma coisa que ia ter a repercussão musical, televisiva e política que teve. Realmente a ideia era fazer um bom musical de televisão, com um critério e com uma certa filosofia – inclusive política –, mas nunca esperando que houvesse respostas com o tamanho das que acabaram vindo. Que a gente tava fazendo uma coisa de sucesso, a gente sabia. Mas que aquilo ia ter a repercussão e a consequência que acabou tendo a gente não tinha a menor ideia. Nem eu, nem ninguém”, finaliza Solano. 118
Seja como for, o Teatro Record Consolação foi um símbolo do momento em que a arte brasileira enfrentou a morte de peito aberto. Hoje, ele existe somente na memória daqueles que o frequentaram. As músicas ali executadas continuarão sendo ouvidas, talvez não em uma vitrola, mas em um smartphone. De forma diferente, seguirão dando o tom de romances e brigas, alegrias e tristezas. De vidas, enfim. “As canções da época jovem fazem parte das memórias das pessoas. ‘Ah, eu me lembro dessa música! Nessa época tava assim ou tava assado, não sei o quê…’. A música está ligada a essa fase romântica e também a episódios chatos de lembrar. Faz parte. Você pode não lembrar exatamente que livro você estava lendo quando você conheceu a Fulana, mas a música tá lá! ‘Ah, a nossa música é aquela. A gente adorava a nossa música!’. A música tem essa força de alimentar a alma, de alimentar o ser, a lembrança, o passado. E alimenta o presente também”, finaliza Zuza.
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posfacio 120
Às vezes, a condição de jornalista nos presenteia com a possibilidade de vivenciar certas situações especiais, daquelas que dificilmente nos esqueceremos. Foi assim, naquele mês de fevereiro, em que parti para Foz do Iguaçu (PR) cobrir um grande evento de agronegócio e, de quebra, conhecer as Cataratas do Iguaçu. Dei sorte. Já em terras paranaenses, em meio a um jantar, comentei sobre o projeto deste livro com uma colega jornalista que nos acompanhava, ainda incerto sobre ele. E, como naquelas coincidências dignas do cinema, ela me diz que é filha de Alberto Helena Júnior. Justamente alguém fundamental para a história dos festivais. “Fale com meu pai, ele vai adorar contar suas histórias.” Obrigado, Alessandra. Daí em diante, assumi que aquele contato fora o point of no return no quesito de incentivos para colocar as ideias no papel. Mergulhei de cabeça nesse universo que sempre me encantou. Até o dia da entrevista, nunca me senti plenamente seguro de que de fato dominava o tema a ponto de conseguir debater sobre ele com alguém do tamanho (metafórico e literal) de um Alberto Helena Júnior, quem já admirava pela carreira no jornalismo esportivo. Porém, com um coração de ouro, ele me acolheu e me contou suas histórias como quem se abre para um amigo. Em um dado instante, porém, uma sentença lhe escapou. Naquele momento, estávamos falando sobre a cantora Nara Leão. “Eu me lembro que uma vez a Nara Leão – uma mulher maravilhosa – naquele ‘Dois na Bossa’ que a gente fazia no Rio… veio lá o censor. E ela ia cantar ‘Carcará’, e 121
ele resolveu não permitir. Ela peitou, foi lá, cantou e disse: ‘Ó, pode me levar presa!’. O cara ficou sem jeito, porque ela era uma figura doce. Mas ela tinha umas coisas… Ela era dura de molejo!… Teve uma vez… Ah, não. Essa não vou falar [risos]”. Foi aí, e só a partir daí, que me dei conta de algo: por mais que eu possa estudar, por mais que eu possa perguntar, sempre haverá histórias sobre as quais podemos jamais saber. Chegar a essas narrativas, escavar o cotidiano para chegar à informação é o trabalho jornalístico por excelência. É aí, nos detalhes que são deixados de lado, que pode haver uma grande história. Esta reportagem traz boas histórias. Algumas delas pouco conhecidas, como o desejo de Chico Buarque de ser jornalista. Ou a ingênua fuga de Zuza Homem de Mello para o Rio de Janeiro. Ou a luta livre de Alberto Helena Júnior e Geraldo Vandré. São elas que precisamos encontrar. E poder ouvir, ler e pesquisar sobre elas durante alguns meses que precederam este texto foi um enorme prazer. Me sinto honrado com a oportunidade. Outro momento marcante deste trajeto foi quando me desloquei para a Fundação Padre Anchieta para entrevistar Solano Ribeiro. Em nossas primeiras amenidades trocadas antes da conversa oficial, ele me perguntou: “E o que um jovem de 23 anos tá fazendo pesquisando festivais?”. Foi um comentário tão inofensivo que me colocou em um lugar no qual antes não me havia colocado. “É verdade. Não vivi nada disso. Por que escolhi estudar algo que não vivenciei de fato?”. 122
Difícil. Hei de convir que, provavelmente, a única vivência que eu tenho em comum com essas pessoas seja a vivência do álcool, onipresente entre o segmento jovem de qualquer geração. O mesmo álcool que agora, inclusive, leva adiante estas palavras e que talvez me proporcione uma leve emoção por finalmente concluir este livro. Nem por isso, entretanto, acredito que devesse me abster de escrever. Foi sobre este tema que acreditei que melhor poderia contribuir com jornalismo no momento em que deixo as fileiras desta Escola de Comunicações e Artes (ao menos agora). Eu acredito neste trabalho. Ele me deixa feliz. De qualquer forma, aqui, mais importante do que aquilo em que eu acredito é aquilo em que minhas fontes acreditam. Não à toa foram elas que me propuseram as grandes reflexões deste trabalho. “Os caras falam em multiculturalismo, né. Que multiculturalismo é esse? Eu quando era menino no Brás, porra, saía da escola na hora do almoço. Ia pra casa a pé, e as casas naquela época não tinham jardim, então geralmente era a sala de jantar já com a janela aberta dando pra rua. E você ia ouvindo… Passava uma casa e estava tocando música hebraica, na outra estava tocando música árabe, na outra estava tocando música italiana, na outra, música espanhola, na outra, francesa, na outra, tango, na outra, música brasileira… Quer dizer, porra! Pra música espanhola, você tinha programas no rádio. E por quê? São Paulo era uma cidade basicamente de imigrantes, e tinha que atender a ela! E você via que havia uma música típica da Itália, havia uma música típica da Espanha, havia uma 123
música típica da Argentina, havia uma música típica do Brasil… Hoje tudo é uma coisa só. Então que multiculturalismo é esse?”, questionou-me Alberto Helena. Não soube responder. Outra pessoa que me fez pensar foi Ricardo, o pesquisador autônomo de cinema que também trabalha como bibliotecário. Uma vez que cresci na era dos cinemas de shoppings, nunca me perguntei sobre o espaço dos cinemas de rua nos dias de hoje, como era o nosso conhecido Cine Rio. Ele fez interessantes pontuações quando avaliou que: “Se criou um nicho específico para esses cinemas [de rua] e isso é muito legal. Temos agora salas específicas para o cinema não-exclusivamente hollywoodiano. Aqui nesta região [avenida Paulista], esses cinemas predominam”. Mas talvez a mensagem mais otimista tenha vindo justamente do criterioso Solano Ribeiro. “É preciso olhar pras transformações que estamos presenciando. Hoje o veículo de comunicação mais importante é o celular. Então é mais importante a música no celular. Só que a internet é algo tão pulverizado que é muito difícil você criar um movimento musical a partir da internet. Cê vai ter exemplos… E agora tá tendo um aí, o ‘Despacito’, com bilhões de visualizações, como teve aquele coreano lá… Tem fenômenos pontuais, mas não tem concentração. Você tem que olhar, sim, as novas mídias, as novas possibilidades, porque esse é um fenômeno que aconteceu em pouquíssimos anos. Eu que fui testemunha dessa transformação. Hoje em dia não existe uma atividade que não tenha o seu computador na frente. Ou seja, esta pessoa tá ligada em um universo gigantesco. 124
Isso é evolução, nós temos é que encontrar, dentro desses meios, os nossos caminhos”, sacramenta. Sim. Se encontrar. Difícil, porém importante. Como mortais, seguimos tentando. E tentando. Alguma hora vai. E, quando for, “o Rancho do Novo Dia/ o Cordão da Liberdade/ e o Bloco da Mocidade/ vão sair no carnaval”.
Otávio Fernandes Nadaleto São Paulo, 1o nov. 2017
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19. MORAES, José Geraldo Vince de. Sonoridades paulistanas. Rio de Janeiro: Funarte/Ministério da Cultura, 1997. 20. NADALETO, Otávio Fernandes. “Universidade 93,7 – Músicos e músicas do Brasil – Programa 1” [Entrevista em áudio – de 22’25” a 25’26”]. Rádio USP FM, 15 maio 2015. Disponível em http://bit.ly/2hd41QP. 21. NAPOLITANO, Marcos. “A MPB sob suspeita: A censura musical vista pela ótica dos serviços de vigilância política (1968-1981)”. Revista Brasileira de História, v. 24, no 47, pp. 103-126, 2004. 22. RAMOS, Roberto. A ideologia da Escolinha do Professor Raimundo. Porto Alegre: EdiPUCRS, 2002. 23. RIBEIRO, Solano. Prepare seu coração: A história dos grandes festivais. São Paulo: Geração Editorial, 2003. 24. Salas de cinema de São Paulo: Resgate histórico dos cinemas de São Paulo. Disponível em http://salasdecinemadesp2.blogspot.com.br/. 25. SIMÕES, Inimá. Salas de cinema em São Paulo. São Paulo: Secretaria de Estado da Cultura de São Paulo – Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo, 1990.
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26. SOUZA, José Inácio de Melo. Inventário dos espaços de sociabilidade cinematográfica na cidade de São Paulo: 1895-1929. Associação Amigos do Arquivo Histórico de São Paulo. 2014. Disponível em: http://arquiamigos.org. br/bases/cine.htm. 27. ______. Salas de cinema e história urbana de São Paulo (1895-1930): O cinema dos engenheiros. São Paulo: Editora Senac, 2016. 28. TERRA, Renato; CALIL, Ricardo. Uma noite em 67. DVD. Rio de Janeiro: VideoFilmes, 2010.
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Foto de capa: O Teatro Record Consolação. (Acervo pessoal de Zuza Homem de Mello)
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Trabalho de conclusão do curso de comunicação social com habilitação em jornalismo apresentado ao Departamento de Jornalismo e Editoração da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (CJE-ECA-USP). Orientação: Prof. Dr. Renato Levi Pahim Coorientação: Prof. Dr. Ivan Vilela Revisão e diagramação: Camila Berto Tescarollo Fontes: Minion Pro, Slim Joe e Big John Dezembro de 2017 133
quantas histórias não se passaram nos locais mais banais de nosso cotidiano?
Dono de uma das melhores estruturas de som do país durante os anos 60, o Teatro Record Consolação foi destruído por um incêndio e jamais reconstruído. Em Ensaio geral: Uma história do Teatro Record Consolação, o leitor é convidado a conhecer mais sobre o local que foi a casa do canal 7 durante dez anos, tornando-se um dos mais importantes polos da música, da televisão e do show business no Brasil. Neste livro-reportagem, buscou-se construir uma narrativa para o espaço desde os tempos em que era apenas um barracão cinematográfico frequentado por Zélia Gattai. Em meio a momentos cômicos e histórias de bastidores, acompanhamos sua trajetória até os dias de hoje, momento em que abriga uma loja de iluminações. Contendo entrevistas com pessoas que vivenciaram o auge do teatro, estas páginas são, antes de tudo, uma exaltação à memória. “Prepare seu coração/ pras coisas que eu vou contar.”
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