Foto: Bruna Rafaella Ferrer
“As ruínas do Recife: da cidade do sonho à catástrofe” Ana Luiza Andrade (UFSC) 1
“No ponto onde o mar se extingue e as areias se levantam cavaram seus alicerces na surda sombra da terra e levantaram seus muros do frio sono das pedras. Depois armaram seus flancos: trinta bandeiras azuis plantadas no litoral. Hoje, serena, flutua, metade roubada ao mar, metade à imaginação, pois é do sonho dos homens que uma cidade se inventa.” (Carlos Pena)
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I. A cidade: do sonho à catástrofe A partir da leitura teórica de textos benjaminianos, kafkianos e freudianos, pensar as transformações pelas quais passam as cidades, paisagens, materiais e objetos em extinção, à modernidade (da manufatura à indústria, do campo à cidade, da casa à rua, do público ao privado etc.) constitui um exercício de memória que precisa ser valorizado. Os mundos perdidos do ceramista Brennand1, assim como os objetos perdidos do escritor uruguaio Felisberto Hernández2, a casa em ruínas de Clarice Lispector3 ou a cidade em ruínas de Antonio José Ponte4, assim como a Buenos Aires de Cosarinsky5, ou até as mencionadas por Sebald6 são também fragmentos de sonho, ruínas da catástrofe causada pelo progressismo capitalista: se, por um lado essas ruínas eram peças esculturais ou pedaços perdidos de totens oriundos
1 ANDRADE, Ana Luiza. “Ruinas de mundos perdidos: a estética residual de Brennand”. Revista de Estudos Literários Brasileiros Contemporãneos, nº 40 - brasília, julho/dezembro de 2012. 2 HERNÁNDEZ, Felisberto. “El Balcón” in La Casa Inundada y otros cuentos. Ediciones del Sur, 2003,p.27. 3 LISPECTOR, Clarice. “A Mensagem”, in Felicidade Clandestina. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1981,p.135. 4 PONTE, Antonio Jose. Un arte de hacer ruínas y otros cuentos. Prólogo, bibliografia y notas de Esther Whitfield. Mexico:FCE,2005,pp. 21-30,pp.56-73.
COSARINSKY, Edgardo. Vodu urbano. Buenos Aires, 2000. 5
6 SEBALD, W.D. Os Anéis de Saturno: Uma peregrinação Inglesa. Trad. João Marcos Macedo. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.
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de uma outra civilização... ou ainda, de um corpo humano orgânico (ou do corpo de um livro encadernado), na pós-modernidade elas são, como sua memória, resíduos mercadológicos, lixo industrial, restos de um progressismo sem limites que vai do monumento ao fragmento, da arte que se equilibrava através da harmonia e da proporção, à que se desequilibra, tendendo tanto ao desmesurado como à desmonumentalização, tanto à disseminação como à desrazão. A vocação das ruínas, segundo Marc Augé, citado por Antonio José Ponte em seu “Un parentesis de ruínas” (La Fiesta Vigilada7) acontece num momento em que tudo conspira para nos fazer crer que a história terminou e que o mundo é um espetáculo em que se encena o dito fim; nesse momento devemos voltar a dispor de tempo para acreditar na história. As ruínas se achariam relacionadas com uma reserva de tempo suficiente para sustentar um credo. Voltar às ruínas seria desligar-se da velocidade, regressar ao passado com o fim de recuperar a confiança perdida em algum ponto. Georg Simmel chamou as ruínas de “tragédia cósmica”8. Já Maria Zambrano, também citada por Ponte, sustentou que as ruínas constituem uma tragédia sem autor, ou mesmo cujo autor é simplesmente o tempo. Antonio José Ponte confessa ter tropeçado com as ruínas ao voltar à Havana depois de uns anos de exílio, e, principalmente, se torna por isso ruinólogo ao ter então reconhecido que tinha voltado à Havana com o fim de se arruinar. O ruinólogo se torna um espião, aquele que é fascinado pelo sonho e pela catástrofe implícita nas ruínas que, portanto, se mostram em sua arquitetura torturada9. E de
7 Ponte, Antonio Jose. La Fiesta Vigilada. Barcelona: Anagrama,2007,p.161. 8 PONTE, Antonio Jose APUD Georg Simmel. La Fiesta Vigilada. Barcelona: Anagrama,2007,p.143. 9
PONTE, Antonio Jose. La Fiesta Vigilada, p. 163.
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não provocar o ânimo para sua recuperação, a arquitetura terá iniciado sua conversão em ruínas10. Em Havana se pode contemplar o cenário de um bombardeio que nunca houve; os edifícios, em sua queda, flutuam como em uma “estática milagrosa”11. As linhas de uma paisagem sonhada convivem com o pássaro imaginário como com uma cidade misteriosa, imagem que se desfaz drasticamente no final do romance de Osman Lins Avalovara. Assim descreve Lins a cidade em sua deterioração: Contemplo a Cidade, radiosa e insulada, sobre o canavial, contemplo as águas imóveis, os palácios brilhantes como quartzo, as colunas muito altas e, de súbito, como se estivesse nas mãos de um pássaro de plumagem sedosa e multicor, e, soprando-a, descobrisse no pássaro um animal escamoso, minado de piolhos, pústulas e vermes, a Cidade, sem nada perder da pompa visível, revela o seu asco, a sua doença, suas camadas maléficas, até aqui dissimuladas. 12
A contaminação desta cidade sonhada, vista nas “camadas maléficas” de uma “realidade distópica” se torna sintomática de uma desintegração endêmica das formas culturais na modernidade tardia. Ela é pressentida em 1973, ano em que se publica Avalovara, quando o mundo estava ainda sob os efeitos da Guerra Fria. Muito a propósito da deterioração urbana, Susan Buck-Morss observa que nesse então a “cultura do lugar” foi convertida em artigo de consumo, e os sonhos se divorciaram do espaço da cidade13. O cubano Antonio José Ponte ao retratar a desintegração de Havana com seus buracos ou espaços sem lugar lembra a linguagem do caruncho de Bruno Zeni, que a define
PONTE, Antonio Jose. La Fiesta Vigilada, p. 176. 10
PONTE, Antonio Jose. La Fiesta Vigilada, p. 176.
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LINS, Osman . Avalovara. Pref. Antonio Cândido. São Paulo: Melhoramentos, 1973,p.410.
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BUCK-MORSS, Susan. “La Ciudad como mundo de ensueños y catástrofe” in Leituras do Ciclo. Orgs. Ana Luiza Andrade, Maria Lucia de Barros Camargo e Raul Antelo. Ilha de Santa Catarina: ABRALIC/Editora grifos,1999,pp.275-285.
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como uma “revelação do tempo escancarado” ou “(a anatomia escancarada do tempo)”. De fato, Ponte abre espaço à subterrânea Tuguria a possibilidade de existir desde a palavra “tugurización” que quer dizer degeneração, deterioro, empobrecimento. Observa pertinentemente Rodrigo Lopes de Barros sobre o texto de Ponte que o “tugur é um tipo de nômade e o nomadismo é difícil em uma ilha tão pequena. A ilha e aquilo que na verdade torna o nomadismo impossível. Ao caminhar, sempre se depara com o oceano, então para os tugures, que não podem deixam a ilha, a única alternativa é cavar”.14 Nas notas sobre o conto, Esther Whitfield esclarece sobre a cidade de baixo: La ciudad está ligada a lo subterráneo en una relación que, debiendo ser simbólica, cada vez se vuelve más parasitária. Lo subterráneo se nutre de la ciudad de arriba, pero al mismo tiempo la cerca, erosionando sus fundamentos. Tuguria socava la ciudad visible al perpetuar la ilusión de uma estructura sustentable mientras que, de hecho, la hace cada vez mas precária. Tuguria es un no-lugar peligrosamente cercano a la utopia. Es una alternativa laboriosamente construída a la animada ciudad de arriba que, en su misión por preservar el pasado como ideal, drena la vida del ruinoso original. 15
Como a Havana antiga se prostitui precisamente em sua utopia revolucionária, de acordo com “Un arte de hacer ruínas” de Ponte, a Recife antiga, sonhada por Joaquim Cardozo, Carlos Pena, Bandeira, Mauro Mota, João Cabral, Osman Lins, junto com tantas outras cidades, hoje se revelam não-lugares de ruínas perigosamente próximos à utopia que as engendrou enquanto cidades, e ao mesmo tempo muito distantes dela quando, ao tentar preservar um passado glorioso, tira-
LOPES DE BARROS, Rodrigo.”Havana: a cidade como catástrofe em Antonio José Ponte.” Alea, vol 12, n.2, julho-dezembro, 2010, pp.257-268. 14
PONTE, Antonio Jose. Un arte de hacer ruínas y otros cuentos. Prólogo, bibliografia y notas de Esther Whitfield. Mexico: FCE, 2005, pp.27 e 56-73.
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ram a sua vida original, consumindo-as. Para Osman Lins, isso aparece na ambientação consumista de sua última “novela”, onde uma profética morte das civilizações se contrasta à morte cotidiana de uma cultura turística de consumo.16 Na verdade, o tempo escancarado se faz na revelação de um futuro do passado das ruínas. Em “Mensagem”, conto de Felicidade Clandestina, de Clarice Lispector, há uma casa imóvel e serena, mas “uma casa quebrada, como diria uma criança. Era grande e alta como as casas ensobradadas do Rio antigo”. Era uma “casa sem olhos” que inspira o medo de um “passado vazio” nos adolescentes que a avistam. Eles ainda não tinham vivido o suficiente para entender que a “angústia” da casa vinha precisamente por ela ser “uma potência antiga” na iminência de desabamento, parecendo até estreitar-se com a tensão temporal entre passado e futuro que provocava: Mal falassem, e a casa desabaria. O silêncio de ambos deixava o sobrado intacto. Mas, se antes eles tinham sido forçados a olhá-lo, agora, mesmo que lhes avisassem que o caminho estava livre para fugirem, ali ficariam, presos pelo fascínio e pelo horror. Fixando aquela coisa secular e já esvaziada de sentido, aquela coisa do passado. Mas e o futuro?! O Deus, dai-nos o nosso futuro! 17
Se neste conto se pode ler o peso de um Rio antigo prestes a desabar pela visão de adolescentes com sede de futuro, em João Cabral é a catástrofe urbana do Recife que surge num poema intitulado “Volta a Pernambuco”, em que ele constata: “As cidades se parecem/ nas pedras do calçamento/das ruas artérias regando/faces de vário
LINS, Osman. “Domingo de Páscoa” Org. Ana Luiza Andrade; Ana Luiza Andrade et al. , tradução. Florianópolis: Ed. Da UFSC,2013. 16
LISPECTOR, Clarice. “A Mensagem”, in Felicidade Clandestina. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1981, p.135. 17
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cimento,/ e no entanto/todas lembravam o Recife,/este em todas se situa,/ em todas em que é um crime/ para o povo estar na rua,/ em todas em que esse crime,/ traço comum que surpreendo,/pôs nódoas de vida humana/ nas pedras do pavimento”.18 Em seu “Uma Evocação do Recife”, João Cabral lembra que, no Recife, até os anos quarenta, as linhas do bonde eram como “os dedos da aranha”: “Ninguém falava de seu bairro/ mas desses dedos espalmados/ que as linhas de bonde varavam/ e a seu lado cristalizavam.” “O Recife de então se espalha /aonde o levavam suas garras,/se esgueirando entre as línguas secas/ que a maré entre os dedos deixa:/ ao onde que, ausente das letras,/ está presente como mangues/ de olhos de água cega, estanques,/ que em pesadelo estão presentes/ no sono de todo recifense19. João Cabral abre espaços de “línguas secas”, de “olhos de água cega” numa paisagem de mangues enquanto ruínas naturais. Mas as ruínas do “Cais do Apolo” do Recife eram literárias, pois neste cais se “fazia literatura,/com muito beber de cachaça/ e indiferentes prostitutas./” e era “de dia, todo do comércio,/de noite, de Rimbaud, das putas.” “Antes foi cais de mar e rio/(no fundo era um cais de maré),/ hoje é cais de terra aterrada/ (onde as barcaças, Chevrolets)”. No registro das mudanças, que se fazem na passagem moderna do natural ao industrial e do campo à cidade (das barcaças aos chevrolets), ele fecha o poema com a diferença atual: “Hoje, no que foi Cais do Apolo/ literatura não há mais:/ melhor para a literatura/ que sem entreluzes se faz”.20
18 NETO, João Cabral de Melo. Poemas Pernambucanos, Recife: Nova Fronteira/Centro Cultural José Mariano, 1988, pp.37-38. 19 NETO, João Cabral de Melo. Poemas Pernambucanos, p.183. 20 NETO, João Cabral de Melo. Poemas Pernambucanos, p.178.
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II. Paisagens com cupim Mas, mesmo manchada por crimes violentos, assim como no poema que celebra o “Beco da Facada”21 em nódoas de cidade arruinada, nenhum destes poemas chega à minúcia barroca do efeito decadente como “Paisagens com cupim”22. Aqui João Cabral parece brincar com as “identidades arraigadas na terra”, como diria Marc Augé com relação às cidades francesas hoje. João Cabral vai curto-circuitar o contexto dos monumentos que dão testemunho das paisagens mais conhecidas do Recife, e vai tratar de uma “reorganização do espaço”, através deste longo poema de “paisagens com cupim” cavando subterraneamente “um fosso entre o presente da paisagem e o passado ao qual ele faz alusão”.23 Mas no seu processo de escavação, ele descobre “novas” pai-
NETO, João Cabral de Melo. Poemas Pernambucanos, p.210.
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NETO, João Cabral de Melo. Poemas Pernambucanos, p.45.
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AUGÉ, Marc. Não Lugares Introdução a uma antropologia da supermodernidade. Trad. Maria Lucia Pereira. Campinas, SP: Papirus, 1994, p.65.
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sagens, como a do canavial. O poema é dividido em 10 partes, e cada uma delas contendo quatro estrofes, o poeta entra na filigrana da contaminação do cupim e seus danos nas cidades, nos canaviais, seja na mata, seja no litoral. A princípio, coloca em oposição as cidades (Recife e Olinda) e seus materiais: na construção, o cimento do Recife “cai na água isento” dos “bichos do mar, seus cupins” e a alvenaria de Olinda constituída de pedras naturais, irregulares, de “tijolo-farelento” apesar de anunciar “um perfil duro”, a Olinda Baixa é vulnerável pois “se mistura com o mar na praia:/que é por onde se vão infiltrar/ em seu corpo os cupins do mar.” De fato, a Olinda Baixa, como a Tuguria de Ponte, seria equivalente à cidade submersa que cria os parasitas corrosivos da cidade de cima. A brecha, a mistura e o disfarce, vias de contaminação /desmanche/ esfarelamento/ corrosão, “tudo parece encorajar/o cupim, de cana ou de mar.” Porém, a semelhança atua como disfarce, no caso “o mar disfarçado em maré” que ao se misturar com o rio, “vai de água parda” ao trazer “úmidos bichos de fruta”, ou “cupins de fome enxuta”. Outro contraste atuante é o do seco contra o molhado, palha e carne: a secura das vilas entre coqueirais, “aldeias leves de palha” que se modelam como tais pelo cupim, “têm as cavernas das esponjas/das pedras pomes, das madeiras/que o mar abandona na areia.” Novamente, adentrando “as cavernas das esponjas”, os cupins modelam “as pedras pomes” tal qual no escavar cidades submersas, o esburacado se fazendo em superfície mole ou dura, ou que antes mole, endurece. Há, no entanto, que lembrar aqui nesse procedimento duplo ou híbrido uma marca cabralina definitiva 10
no devir-massapê da pedra e no devir–pedra do massapê.24 Mas em “Paisagens com cupim”, na zona da mata, “também minadas por marés (ora de cana) pelos pés” o mesmo dano sorrateiro se verifica nas cidades do canavial, estas que notavelmente “imitam no estilo, no jeito, /casas de cupim, cupinzeiros.” Portanto, o cupim se propaga aí em “cidades paralelas” à cidade, onde a desproteção é maior, formando uma diferente paisagem do canavial pois ela não possui o metal, e muito menos o alumínio para limpar as suas carnes, palavra usada por Cabral, como os das fábricas de Moreno ou Paulista; nestas “existem matemáticas” onde bateu a “máquina sadia” “embora feia, em série, fria.” Aí a máquina sadia não dá combate ao cupim, pois “nelas motores vivos batem,/que sabem que enquanto funcionem/nenhuma ferrugem os come.” Portanto, o trabalho do cupim no canavial é intenso, onde “tudo se gasta mas de dentro:/ o cupim entra os poros, lento,/e por mil túneis, mil canais,/ as coisas desfia e desfaz.” Pior, lá “a vida está toda bichada./Bichada em coisas pouco densas,/coisas sem peso, pela doença.” Aí a construção da ruína se prolifera pois enquanto bichadas as coisas se transformam mais rapidamente em outras: na “carne rala” da “bucha e do pau-de jangada,/Até a natureza puída,/porém inchada, da cortiça.” Finalmente, o próprio poeta atua como um cupim quando, em seu trabalho de ruinólogo, corrói o poema com seu sarcasmo: “Eis o cupim fazendo a vez do mestre-de-obras português: finge robustez na matéria
Andrade, Ana Luiza. “Açúcar: poeira, pólvora, poesia” in Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea, n.21. Brasília, jan-jun, 2003. 24
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carcomida pela miséria. Eis os pais de nosso barroco, de ventre solene mas oco e gesto pomposo e redondo na véspera mesma do escombro.”
No meio do poema, estas duas estrofes desmascaram os disfarces dos próprios materiais poéticos propriamente na antecâmara do desabamento. Assim o ruinólogo constrói engenhosamente aos modos do cupim como num trompe-l’oeil: ao descrever meticulosamente seu trabalho, atua contra si mesmo, penetrando em sua matéria poética, subvertendo-a, tornando-a oca, enquanto ela própria se dá a ver como paisagem de um barroco “fingido” porque modernista, ao denunciar a falsidade colonial. Mas se poderia até acrescentar com maior precisão: mais barroco, por ser tão fingido.
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III. A linguagem do caruncho Coincidentemente, a partir do ciclo biológico do cupim Bruno Zeni, jovem artista curitibano, mostra que as transformações do bicho parecem ser tão drásticas quanto as mudanças que ele causa: o alpiste vira casquinha, a madeira migalha, o muro branco, barranco, o rostinho de tafetá , maracujá. As marcas do tempo coincidem a uma linguagem de caruncho, precisamente aquela que faltava aos adolescentes ante à visão da casa sem olhos de Clarice, linguagem de “explicitação da subjugação do homem à intempérie, a possibilidade da contemplação do fracasso, do nítido fracasso, do fracasso ele mesmo, do nítido. Nada mais nítido”.25 Interessante observar então que, ao utilizar-se precisamente desta linguagem de caruncho, em “Noivado”, Osman Lins testava
ZENI,Bruno. “Ciclo Biológico do Copim”; “Linguagem do Caruncho”. In Azougue, Desterro, 1997, pp.3-4.
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a humanidade/desumanidade dos insetos transpondo-a para um de seus personagens: um funcionário exemplar, Mendonça, que é noivo de Giselda há trinta anos. Comparado aos insetos que ele examina na repartição, onde eles agem de maneira a contaminar os vidros, Mendonça termina kafkianamente a agir como eles aos olhos de Giselda, ela própria bichada pelo caruncho do tempo de espera pelo noivo. Giselda percebe nele o proliferar-se a partir de suas próprias ações repetitivas, como nas várias fotos em que ele aparece para ela, ora “ardoroso e sensível” (aos 17) ora como um bicho morto (aos 60). Como os cupins de João Cabral, ou os tugures de Ponte ao propiciar a queda de um edifício apenas exercendo uma sombra leve, os parasitas que invadem os formigueiros, de Lins, são como Mendonça, “degradam as colônias invadidas, segregando um mel que não nutre as formigas, embriaga-as”.26 Contrariamente, a ação das vespas nesta narrativa é de uma determinação obstinada: as vespas envenenam os porcos do mato e levam-nos para seus ninhos, paralisados. Suas larvas alimentam-se apenas de caça grossa e viva. Se, depois de haver aberto um túnel, sepultar o porco, depois os ovos entre seus espinhos e fechar o túnel, encontrar à entrada um bicho igual ao que acaba de deixar, abrirá novamente a galeria, voltando a fechá-la quando vir o porco sepultado e novamente a abri-la ante o porco insepulto, repetindo este jogo até cair de fadiga, incapaz de perceber que existe um animal enterrado e um outro sobre a terra.
Não surpreende, após entender a estupidez obstinada destas larvas que elas possam ser escravizadas como de fato o foram, pelo artista francês Hubert Duprat que as utiliza contemporaneamente para
LINS, Osman. “Noivado” In Nove, Novena. SP: Melhoramentos, 1975, p.191. 26
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fazer joias enganando-as ao oferecer-lhes material, fazendo-as crer que fabricam seus próprios casulos. Suas casas ricamente decoradas com materiais como ouro, pérolas, pedras preciosas e brilhantes, podem ser comparadas aos ovos decorados do famoso joalheiro Fabergé.27 Luciane Garcez explica que as larvas Tricópteras são animais muito antigos no planeta. Segundo uma pesquisadora da Academia Russa de Ciências, são insetos que vêm se desenvolvendo ao longo de séculos de evolução, uma das quais foi a construção de seu casulo, também chamado por alguns de “casa-móvel”. Entre os casulos, os mais antigos descobertos em grande número foram na Ásia Central e pertencem ao período Jurássico tardio. Sua construção é de certa maneira grosseira e primitiva – não muito meticulosa em sua montagem com areia, fragmentos de plantas, conchas, pedaços de ossos de peixes, grãos de diversos formatos e etc. Com o tempo, conforme seu instinto construtor se tornou mais complexo e se desenvolveu, a larva aprendeu a construir casulos cada vez mais diversificados e bem-feitos. Por seu aprendizado ter durado dezenas de milhões de anos, a larva aprendeu a utilizar não somente uma variada gama de materiais, mas também a arranjá-los de diversas maneiras, seguindo um método preciso. O fato é que criar a partir do oco, do vazio, do não-lugar, similar a uma arte de fazer ruínas ou de fazer ficção a partir do residual, é criar como o bárbaro, a partir de túneis escavados de outra cidade, é criar como os tugures de Ponte ao construírem suas casas-móveis, portáteis, sejam eles casulos, mucambos, cupinzeiros, ou mesmo ci-
GARCEZ, Luciane. Hubert Duprat e a poética do revestimento. UDESC: CEART (Programa dePós-Graduação em Artes Visuais) Dissertação de mestrado Orientadora Prof. Sandra Makowiecky, Florianópolis, 2009. 27
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dades no canavial. Quando se pensa agora no artista ceramista Francisco Brennand com peças que, semelhantes a essas larvas em sua determinação pela sobrevivência, parecendo imitar uma reprodução orgânica ab ovo, porém ao homenagearem figuras heroicas literárias como que salvas de uma catástrofe, é como se elas se erguessem como ruínas fragmentárias de lendas antigas, ou de paraísos perdidos.
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IV. A visão das sereias As sereias de Brennand, antes do canto homérico de beleza irresistível de outrora, parecem refletir, em suas carrancas de boca escancarada, a paisagem de uma Recife arruinada por guerras e enchentes, e depois de quase cinco séculos de escravidão, uma violência brutal. Lê-se em Volney (1790) o que elas poderiam dizer: Aqui, [disse comigo mesmo,] aqui floresceu noutro tempo uma Cidade memorável: aqui foi a Sede d’um poderoso Império. Sim, nestes lugares agora despovoados, já uma multidão laborioza deu alma a seu circuito, e gente cheia de nobre fogo e actividade girava nestas estradas hoje solitárias. Nestes muros onde reina um triste silencio retumbavão sem cessar os brados dos industriozos habitantes, decididos com affinco às Artes; as acclamações, os gritos d’alegria as vozes dos convivas nos festins! Estes mármores amontoados formavão palácios regulares; estas columnas abatidas ornavão a magestade dos templos; estas galerias derribadas afformoseavão as praças publicas (...) Mas que resta de tantas 17
maravilhas? Que subsiste desta Cidade famoza? Um lúgubre e lastimozo esqueleto! ... Desta vasta dominação que nos ficou? Uma lembrança vã e obscura? ... Ao concurso ruidozo que se atropelava de baixo destes pórticos que succedeu? A solidão da morte! ... O silêncio dos túmulos substituiu o murmúrio das praças públicas! Mudou-se em horrível pobreza a opulencia desta Cidade admirável!28
As sereias de Brennand ficam hoje no Parque das Estátuas em frente ao Marco Zero da cidade do Recife, precisamente numa cinta de pedra rodeada pelo mar, e o impacto de sua visão faz lembrar as sereias monstruosas observadas pelos viajantes colonizadores logo que avistaram o Novo Mundo como Paraíso, como registrou Sergio Buarque de Holanda, assim como da referência que Blanchot faz ao futuro em O Livro Por Vir através, precisamente do canto das sereias, como um “Re-encontro do Imaginário” alusivo às metamorfoses de cantos vindouros e já acontecidos no discurso.29 Das ruínas da cidade ergue-se o lamento do canto das sereias enquanto tais, e precisamente através das figuras híbridas em metamorfose de Ovídio, elas são mediadoras de um olhar navegante há quinhentos anos. E no entanto, seu hibridismo volta, na literatura, com imagens como as de um escritor como Osman Lins (“boisanjos” em “Retábulo de Santa Joana Carolina”, “elefantes alados” em “Pentágono de Hahn”, o menino-centauro em “Pastoral”, e muitas outras). Através de Brennand, as híbridas sereias se inscrevem no metal azinhavrado deste parque mirante da cidade no meio do mar, no ano 2000, data de aniversário do descobrimento. O desejo que elas suscitam, o de ser pouso para voos desconhecidos, coincide com o observado por Blanchot: é o mesmo do de
VOLNEY,C.-F.-C. de. As Ruinas ou Meditação sobre as revoluções dos impérios (1791). Livremente traduzida em vulgar por Pedro Cyriaco da Silva. H.Garnier, livreiro-editor Rio de Janeiro/Paris, 1911, pp.46-47.
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29 BLANCHOT, Maurice. Le Livre à Venir. Paris: Editions Gallimard, 1959, pp.9-37.
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Ulisses em relação às sereias de quem se distancia, o mesmo que fica entre Ahab de Melville e a baleia, e o mesmo de Proust e o tempo do discurso, respectivamente: uma metamorfose entre criador e criatura, entre tempo e espaço, e, agora mais precisamente, uma metamorfose que se justifica na tensão moderna entre um mundo de sonho e a catástrofe.30 Não por acaso, o artista Brennand, tendo explorado esta sua atração temporal pelas ruínas como indícios de uma glória passada que recorda o futuro, utilizando-a como fonte de inspiração estética para quem vê a beleza na decadência, assim se expressa sobre a barbárie: Gauguin, de uma certa forma, prefigurava o terceiro mundo. Entre outras coisas ele dizia sob o ponto de vista estético: Nunca os gregos. Quando ele dizia Nunca os gregos ele queria dizer apenas jamais os gregos clássicos. Ele não estava falando da Grécia arcaica e muito menos de Creta. Ele dizia, antes o Egito, antes a Africa, a Cambógia, a Oceania... enfim, ele estava falando na barbárie no bom sentido.31
Para concluir, pensando sobre as ruínas circulares borgianas em que um homem sonha outro que sonha outro que sonha outro, infinitamente, aqui também as cidades modernas que se constroem, seja uma sobre a outra, seja uma dentro da outra, seja mesmo em linhas diagonais ou paralelas, analogamente à Tebas de taipa de Euclides ou às cidades do canavial de João Cabral, elas o fazem a partir das cidades litorâneas, na superação do sonho. Mais ainda, elas atuam em cumplicidade com o cupim acompanhando seu ciclo biológico
Placa de metal e os dizeres: Sereias-Nesta sentinela avançada do Atlântico/ Cinco sereias olham o tempo/ Cora, Severina, Justina, Marina, Alberta/ Cada uma é um século/Assim 500 anos de descoberta/Alí tão perto uma coluna branca/ Tenta ser o pouso dos vôos desconhecidos.
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BRENNAND, Francisco. Transcrição das falas do artista do filme Brennand O Demiurgo 19171971. Produção Trade Comunicação/produção artística LIS Produções, câmera Marcelo Miranda, eletricista Ronaldo Silva, trilha sonora Fernando Visão e Fernando Batata, Mario Lucio Brandão Filho (produtor executivo), editor Marcio Miguel, assistente de direção Gustavo Brandão, direção Feli Coelho e Celso Giovani. www. mundodasmidias.com.br
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de transformação: mudam rapidamente, e se ocupam de suas novas paisagens na bárbara invasão de não-lugares, a partir das brechas ou dos vazios da catástrofe anterior. Ou seja, criando através da destruição dos grandes discursos, das grandes paisagens, das obras mestras, literárias, monumentais. Sua imediata obrigação, como diria Borges, é o sonho.
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V. Ocupação Estelita Como a Havana antiga em sua utopia revolucionária, de acordo com “Un arte de hacer ruínas”32, a Recife antiga, inventada por Joaquim Cardozo, Carlos Pena, Bandeira, Mauro Mota, João Cabral, Osman Lins, assim como tantas outras cidades, hoje revelam-se não -lugares de ruínas perigosamente próximos à utopia que as engendrou enquanto cidades, e ao mesmo tempo distantes dela quando, ao tentar preservar um passado glorioso, tiram a sua vida original, no ato de consumi-la. Por isso ao ocuparem o do Cais José Estelita, estes jovens tugures, no melhor sentido da palavra, em seu sonho, a partir das brechas da catástrofe progressista que se abateu sobre a cidade, preenchem estes espaços abandonados e os transformam; porém, não mais para
Ponte, Antonio Jose. Un arte de hacer ruínas y otros cuentos. Prólogo, bibliografia y notas de Esther Whitfield. Mexico:FCE, 2005, pp.21-30, pp.56-73.
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restituí-la a um contexto esvaziado de especulação imobiliária que apaga os rastros de qualquer sonho; e sim no sentido de buscar uma ressignificação, a partir da memória que retorna ao sonho mais antigo. E esta memória tem a ver com uma tradição que vem do açúcar poesia, poeira, pólvora33 - tradição que move o espírito revolucionário de verdadeiros amantes da cidade.
ANDRADE, Ana Luiza. “Açucar: poeira,pólvora,poesia. Estudos de Literatura Brasileira Contemporanea, n.21, Brasilia: 2003. 33
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