Breve breu escritos sobre literatura e cinema

Page 1


josé juva

BREVE BREU escritos sobre literatura & cinema

1ª Edição

Olinda 2014


FICHA TÉCNICA Capa Germano Rabello Fotografia de capa Henrique Ogata Edição, revisão e diagramação josé juva ______________________________________________________________

JUVA, José. Breve Breu – escritos sobre literatura e cinema. Olinda: Macaco Encruzilhada, 2014. 183 p. E-book. ISBN 978-85-914545-3-2 1.

Literatura

e

Cinema

ensaios

I.

Título

__________________________________________________________

Disponível para download gratuito no site dos Outros Críticos: www.outroscriticos.com Fale com o autor: jose.juva@hotmail.com


NOTA

Palavras são respirações, sopros, sombras. São sonhos que precisam e devem ser partilhados. Os textos reunidos neste “breve breu – escritos sobre literatura e cinema” nasceram para outras instâncias: blogs, disciplinas acadêmicas, oficinas de crítica. Circularam e encontraram seus leitores. Como rizomas, se espalharam, se ramificaram, se infiltraram, se embrenharam em caminhos insuspeitos, deambularam sem mapas, sem rotas. E assim, sopraram papos nos ouvidos de quem estava próximo. Tantas pernas para tantas trilhas distintas, estes textos também ficaram quietos, um pouco descansando à sombra, recuperando fôlego para novas caminhadas. Pois foi, então, para mobilizar estes escritos em outras deambulações, reencontrando antigos leitores e cativando outros que sequer suspeitavam de suas existências, que resolvi reuni-los neste volume. Eis, aqui, uma espécie de confraria, uma roda de conversa, em que os textos, antes espalhados, agora se encontram, para trocar ideia entre si e bater papo com quem deixar a visão chegar e tiver ouvidos para perceber suas melodias e ruídos. Os pés na grama inventam sendas: escrituras renovadas em outras recepções. Aqui recomeça uma viagem para a encantação. Aqui se renova o fôlego, aqui se reinstaura o mistério do diálogo: palavras são cartas assobiadas e entregues pelo vento.


SUMÁRIO Nota .......................................................................................... 03 A poesia é o vinho da visão ..................................................... 06 Com a alma encharcada de uísque, poemas e histórias da vida subterrânea .............................................................................. 10 Os animais e os minérios da memória .................................... 14 Bruce Lee e os livros que não li .............................................. 19 Depois de ler, depois de ver, depois de ouvir ......................... 23 Se perguntarem por mim: fui à praia parir poemas ............... 29 Quatro leituras do feminino e outras milhões embutidas ...... 35 Aqui, além ................................................................................ 37 Espaço, E s p a ç o, E s p a ç o, E

s p

a

ç

o ............. 39

Eppur si muove ........................................................................ 41 Febre do rato: poesia, cinema e libertinagem ........................ 44 Vicente Franz Cecim & as fábulas do imaginário rebelde: literatura, imaginário e utopia na invenção de Andara ......... 46 Depois de tomar algumas garrafas de uísque Blake Label ...... 86 Beckett vai ao cinema: comentários sobre a ponte entre palavras, imagens e sons ........................................................ 90


Antropologia intuitiva e raridade – notas de leitura de “O Papalagui” ......................................................................... 107 Deboche, desvio e desvario: Luther Blissett e a literatura da guerrilha psíquica .................................................................. 121 A minha mãe é um peixe: a poesia de Humberto Ak’Abal .... 140 Um bêbado cheio de artimanhas: Charles Bukowski e o mundo do trabalho ............................................................................. 156 RADAR – Origens dos textos ................................................. 180


A POESIA É O VINHO DA VISÃO “Escreve com sangue e aprenderás que sangue é espírito” Friedrich Nietzsche

Uma árvore cujas raízes mergulham no inferno e os galhos alcançam o céu – conectando nove mundos. Uma respiração, um contínuo movimento de sístole/diástole, as imaginações sagradas e lúdicas e as perambulações dos macacos nus. Um poema é uma criatura ancestral, selvagem, permanente gravidez fora do tempo e, simultaneamente, uma gravura inscrita na pele do cotidiano, uma planta semeada e colhida no terreno da história. No princípio era o precipício: o xamã dançava e cantava e voava e mergulhava e urrava e pintava. E as visões saltavam aos borbotões, mediadas por sua voz de pássaro e tigre. Um poema é um cavalo. O transporte para os abismos, a passagem para as montanhas cósmicas, a porta para o lado escuro do riso, a escada para o estômago do imprevisto. Um poema é tudo isto. Um poema não é nada disto. Esta não é uma coluna retilínea: não procure aqui a região cervical, a torácica, a lombar e a pélvica. Também não tente colocar cargas verticais sobre esta coluna. Talvez seja mais interessante pensar nesta coluna como uma estrutura formada pela união dos órgãos sexuais das flores das orquídeas. Você pode se afastar um pouco do computador agora. Vá até a geladeira e pegue uma garrafa de vinho, tome pelo menos uns dois ou três copos, tome um pouco de ar, tome nota.


Agora entramos na parte em que eu esqueço o chá de cogumelo cozinhando no pequeno fogareiro do quintal, desço da árvore e tento um contato mais ordinário contigo: bom dia, boa tarde, boa noite! Depois de pensar e andar e pensar e andar, tudo isto ao mesmo tempo, decidi que neste primeiro texto para este espaço aqui no Outros Críticos (que irei ocupar neste primeiro semestre de 2012) abordaria tangencialmente as alimentações mútuas entre a vida e a literatura, entre a poesia e a existência. Com a tranquilidade do verbo em primeira pessoa, com o nervosismo do trânsito sanguíneo que pinta a vivência e a escrita, poderei trazer para cá alguns autores estimados, poderei delirar sobre as origens da criação poética posta em movimento pela ação xamânica, poderei recordar e poderei fingir reminiscências, poderei dizer que o rei não pode, seja lá o que for. Outro salto, outra visão. Revejo os três livros que encontrei um dia na biblioteca da escola, durante o ensino médio, e que passaram a ser companhias, antes e depois das partidas na quadra de futebol de salão: Jeremias Sem-Chorar, de Cassiano Ricardo, Livro de Sonetos, de Vinicius de Moraes e Toda Poesia, de Ferreira Gullar. Estes livros foram cordas por onde subi árvores mágicas, gatilhos para territórios de criação e encantamento; eles marcaram para mim uma diferença fundamental no entendimento sensível sobre a relação entre o mundo e a escrita, entre as palavras e as coisas, entre os objetos e os nomes. A partir dali, eu ouvia o rio correr. E passava a modular as músicas que o vento me soprava, registrava as canções cujos ruídos eu podia ouvir escapando por meus poros. Era divertido ler a escrita erótica/afetuosa de Vinicius e imaginar suas investidas amorosas, a palavra salvando a noite de um homem contra a solidão.


Com Cassiano Ricardo, o meu estranhamento e entusiasmo diante do profeta com olho de vidro, incapaz de chorar. Jeremias Sem-Chorar, de 1965, é um canto irônico e triste sobre os desvãos da cidade moderna, o automatismo crescente, o embotamento das sensibilidades, as pessoas tragadas pela velocidade da voragem paranoica. O livro-poema é um sonho profético a respeito da vida em desequilíbrio. Como um aperitivo mínimo, aponto a precisão lúcida e ácida num trecho do poema “sete razões para não chorar”, que abre o livro: “Uns mataram a sede / no suor dos outros / e eu fiquei sem água / nem sal”. Com Gullar, horas lendo e relendo o João Boa-Morte, os poemas de Dentro da Noite Veloz – e a sensação de urgência de um posicionamento de contraposição frente às agruras sociais, a poesia como fagulha para a rebeldia, via de mão-dupla entre os ideais e o comportamento, entre as utopias que nos fazem caminhar e a fome diária. O cardápio não é a refeição, o poema não é a sopa: mas aponta possibilidades de bonança. Só não fique olhando para o dedo que aponta, mesmerizado. Esta questão que envolve a ideia de uma arte engajada pode ser pensada como nos cantos de invocação dos deuses, na magia de preparação para a caça ganhando corpo no xamã. As narrativas mágicas, as atualizações dos mitos não eram um impedimento à ação. Ao contrário, constituíam fortes elementos catalisadores de energias e vontades, estimulantes para a ação coletiva e também reinvenções da jornada de volta, a partilha do alimento do corpo e da alma.


Para mim, o exercício de invenção, o magma da criação poética não é um vapor estéril que se desvanece no jogo com palavras, que se fia numa clausura que procura construir uma estrutura entretida com seu umbigo. Uma loucura destas não me encanta, não canta. Antes, a poesia como cura: de si mesmo e do mundo. Antes, a poesia como um sonho profundo e a vigília com o nono olho fecundo. Antes, a poesia como uma sensibilidade paleolítica, um sabre fatiando a carne do futuro, um olho andarilho deambulando pela carcaça do contemporâneo. E um pulso ferido que sonda as coisas do outro lado, como disse Garcia Lorca. A poesia é o vinho da visão. Volto a ouvir o chiado do bule, o chá está pronto.


COM A ALMA ENCHARCADA DE UÍSQUE, POEMAS E HISTÓRIAS DA VIDA SUBTERRÂNEA “abandonar tudo. conhecer praias. amores novos. poesia em cascatas floridas com aranhas azuladas nas samambaias. todo trabalhador é escravo. toda autoridade é cômica. fazer da anarquia um método & modo de visa. estradas. bocas perfumadas. cervejas tomadas nos acampamentos. Sonhar Alto.” Roberto Piva

Estivesse vivo, Henry Charles Bukowski estaria com noventa e um anos – provavelmente bebendo bons copos de uísque com um pouco d’água, ganhando e perdendo dinheiro nas apostas das corridas de cavalo, vociferando contra os mortos-vivos que perambulam pelos supermercados, que trabalham nas agências bancárias, que vão e vêm pelas avenidas intermináveis e ensolaradas prenhes de garotos sorridentes e estúpidos e senhoras piedosas. Minha memória é uma plantação repleta de gafanhotos e eu não lembro como tomei conhecimento da obra do velho Buk. Um lampejo de lembrança indica que a obra dele veio junto com alguns companheiros de viagem, outros livros de Jack Kerouac, Allen Ginsberg, Lawrence Ferlinghetti, Henry Miller, Anaïs Nin. As primeiras leituras dos textos do velho safado (dirty old man) foram, a um só tempo, um mergulho vertiginoso no abismo de dores e misérias da condição humana, calcado no registro inventivo e ferino dos devaneios e deambulações de bêbados, prostitutas, trabalhadores braçais, etc. pelas carcaças da realidade, bem como uma corrida com sorriso largo provocado aqui e ali por diálogos deliciosamente nonsense, frases rápidas e


certeiras, telegramas surreais de uma alma anárquica encharcada por um cinismo filosófico e por um ceticismo debochado – alma carregada de uma ternura atormentada, capaz de rir de si mesma e estender seu riso sobre tudo, sobre o absurdo partilhado na vida cotidiana (penso aqui numa cena do filme A guerra do fogo: quando os sujeitos estão apreensivos, com medo de um ataque rival, e também entediados, e um deles joga uma pedra na cabeça do outro, ao que todos começam a rir efusivamente, enquanto o sujeito atingido coloca a mão no ferimento, vê o sangue, e também desata numa risada fragorosa). As leituras foram se sucedendo, um volume foi se sobrepondo ao outro, e livro após livro o encanto e o prazer desdobrado pelas costuras de histórias simultaneamente hilárias e melancólicas ia se afigurando como um pequeno diamante banhado em sangue. A escrita visceral de Bukowski construiu uma imagem corrosiva, ácida e lúcida do artista quando miserável, pleno de compaixão irreverente por toda sorte de vagabundo (e ele próprio um grande e entusiasmado vagabundo, apesar de dezenas de empregos sem sentido e passageiros, apesar do serviço nos correios por anos, um vigarista iluminado pela sabedoria não-domesticada pelo trabalho/tripalium), bebedor sob o signo da solidão num quarto escuro de uma pensão ou hotel barato, camarada obsceno/transcendental datilografando delirantemente a intimidade desconcertante dos espíritos e corpos atravessando uma estação no inferno e seguindo a jornada de trepadas e bebedeiras visionárias. E aqui é oportuno salientar certa interpretação ressentida que toma as narrativas e poemas do velho safado como mera transposição da biografia para o papel – acepção claramente apoiada na ideia subliminar de que a arte deve ser uma engenharia empenhada na


construção de uma torre de marfim, um empenho contra a vida, o vivido. Certamente de caráter extremamente autobiográfico, as criações de Bukowski constituem um ensaio de aproximação de si mesmo para acercar-se do mundo e dos homens, uma elaboração criativa da vida como campo de experimentação poética, alargando as margens de manobra para uma escritura “manchada de vinho”, ultrapassando os regimes da tradição e as expectativas sociais e inventando a literatura como chave de possibilidades para o autoconhecimento e para a compreensão do outro, a literatura como um amálgama entre vida e palavra, respiração e leitura, músculos e performance poética, etc. Uma escritura poética mamífera. Os ensaios - “Essais”, tentativas, testes, etc. - de Michel de Montaigne ou alguns slogans do poeta Roberto Piva - “não acredito em poeta experimental sem vida experimental”, “escrevo com o que sobrou da orgia”, podem servir de pistas para indicar, nos textos de Charles Bukowski, o sentido da filigrana composta por uma biopoética. Ou podemos saquear um trecho ilustrativo do próprio Buk: “(...) para muitos, a poesia deveria dizer apenas coisas seguras ou mesmo nada, pois a poesia é um mundo seguro e um caminho seguro para essas pessoas. A delicadeza de sua poesia reside em falar apenas sobre aquilo que não importa. A poesia no mundo deles é como uma conta bancária. (...)”. Ou como registrou no título de dois ensaios, Bukowski escreve “em defesa de um certo tipo de poesia, um certo tipo de vida, de um certo tipo de criatura com sangue nas veias que um dia morrerá”, antes registrando “um ensaio errante sobre a poética e a vida visceral escrito ao longo de seis cervejas (grandes)”.


Termino este pequeno artigo, escrito ao longo de quatro lapadas de cana, duas garrafas d’água e vinte pitangas, numa manhã de sábado, olhando para os livros de bolso do Fanfarrão do Absoluto, o velho Bukowski, que deixei em cima da mesa do computador. Tenho comigo: Cartas na Rua, Misto-Quente, Factótum, Notas de um velho safado, Ao sul de lugar nenhum, Hollywood e Pulp. Outros dois, emprestados por um amigo: Mulheres e Pedaços de um caderno manchado de vinho. Dos poucos livros de poemas de Buk em português não tenho nenhum. Torço pela empreitada de algum editor bêbado e de um tradutor chapado: publicar em português volumes da poesia completa, pelo menos uns dois calhamaços, do vidente depravado e sincero Buk. Eles popodem começar colhendo palavras por aqui: http://authenticbukowski.com/manuscripts


OS ANIMAIS E OS MINÉRIOS DA MEMÓRIA “Ver uma corruíra num arbusto, chamá-la de “corruíra” e continuar caminhando é (conferindo-se auto-importância) não ter visto nada” Gary Snyder “Quando um homem não admite que é um animal, ele é menos do que um animal. Não mais, porém menos”. Michael McClure

Nove animais: lobo, porco, cavalo, camaleão, cágado, pata, abutre, gerifalto, homem. Ruminando ideias para esta coluna, remoendo o tutano para trazer para cá apontamentos, notas, epifanias de um trickster, estava com vontade de relembrar Hermann Hesse e o encantamento, o arrebatamento que a leitura de suas obras me provocou, uns sete anos atrás. Sidarta, O lobo da estepe, Demian, Knulp, A arte dos ociosos, entre outros, foram leituras provocativas, instigantes. Mas o desejo esbarrou na memória e eu continuei mordendo pensamentos, rabiscando na mente possibilidades. E daí, voltamos como um oroboro para o princípio: nove animais. Tomei uma ilustração de Hesse cindido entre lobo e homem como partida, gatilho para escrever sobre nossas ambivalências a partir das voltas da mente e do corpo sobre a condição da nossa humana animalidade e nossa relação com as alteridades animais – ampliando o espectro para a presença dos animais na literatura em outras paragens. Espalhando alguns livros sobre a mesa, assim chegamos ao primeiro animal: o lobo.


Caso tivesse alguma grana para editar um livreto, umas mil cópias ou mais, de algum autor incisivo e fundamental para a sondagem e compreensão da vida em suas vísceras mais vermelhas, recortaria e mandaria imprimir o tratado do lobo da estepe, trecho visionário e iluminado, para distribuição nos engarrafamentos, nas filas dos bancos, nos ônibus lotados, etc. O tratado começa com palavras diretas e certeiras, uma zarabatana ancestral, cuja seta ressoa na nuca: “Era uma vez um certo Harry, chamado o Lobo da Estepe. Andava sobre duas pernas, usava roupas e era um homem, mas não obstante era também um lobo das estepes. Havia aprendido uma boa parte de tudo quanto as pessoas de bom entendimento podem aprender, e era bastante ponderado. O que não havia aprendido, entretanto, era o seguinte: estar contente consigo e com sua própria vida” (Tratado do lobo da estepe – O lobo da estepe, Hermann Hesse - 1927). Depois do lobo, porcos e cavalo: Napoleão, Bola-deNeve, Sansão. Você vai (re)ler A revolução dos bichos, de George Orwell, numa vertigem desenfreada. Sátira da busca pelo poder e a burocratização da alma na revolução soviética, o livro pode ser lido como metáfora crítica para condições variáveis de temperatura e pressão. Estão ali o sujeito ensandecido pelo domínio, o indivíduo idealista, o trabalhador alheio aos dentes afiados da vida: “trabalharei mais ainda”, repete o cavalo Sansão ao longo da fábula. Além destes, está ali também o corvo Moisés, com a promessa de uma montanha de açúcar. Com sutileza e ironia, Orwell construiu uma obra deliciosamente cáustica, corrosiva e debochada. Passemos aos camaleões.


Com o livro Jardim de Camaleões – a poesia neobarroca na América Latina, o poeta Claudio Daniel organizou um painel variado com algumas vozes que compõem certo modo de estar e apreender o mundo, ao invés de um movimento definido. Poetas da escritura como tatuagem, de convergências, aproximações e diferenças integram a seleção do livro. Nomes como o do uruguaio Eduardo Milán, do cubano José Kozer, do argentino Néstor Perlongher, do peruano Reynaldo Jiménez indicam faces multicoloridas e camaleônicas da poesia latino-americana. Pincemos aqui e ali alguns versos, como convites para a leitura: “e gritava sou feliz, não tenho nada / uma tanga cobre minha nudez”; “Tudo tão leve e ao mesmo tempo tão quente, tão exausto. Nos amolece com sua imensidão o céu como um casaco celeste”; “Nossa oração ao abismo é o mesmo risco do nascido”. Metamorfose: camaleão se transforma em cágado. O escritor e crítico literário Edmund Wilson, dos clássicos O castelo de Axel e Rumo à estação Finlândia, nos conta uma história de euforia e frustração em O homem que atirava nos cágados, presente no livro Memórias do condado de Hecate. Quando filhotes de patos selvagens são mortos por cágados, no lago da propriedade do senhor Asa M. Stryker, este não hesita em tomar o partido dos patos. O conto é uma fábula interessante sobre as maneiras e procedimentos dos humanos em relação aos outros seres da teia da vida. Fica patente a fragilidade, a debilidade das escolhas humanas nos seus sonhos de demiurgo. Outra vida tem uma pata junkie.


Em Fup, Jim Dodge nos conta a história de uma pata obesa e incapaz de voar, que depois de ser resgatada de um ataque de um porco-do-mato (em que ela estava fucked up, daí o nome), passa a viver com Jake, um velho viciado em jogos e fabricante de uma poderosa bebida (Velho Sussurro da Morte) e Miúdo, o seu neto. Ao contrário da sorte dos cágados, a pata vive com mimos, celebrando seu apetite com panquecas, queijo, milho, cascas de cebola e tudo mais que lhe dessem. A vivência partilhada entre as três personalidades traz força e singeleza para uma breve história de teor incomum, divertida. Jim Dodge compartilha uma fábula sobre as possibilidades do respeito mútuo e as alegrias dos pequenos absurdos da vida. Tomando a cena de assalto, O Gerifalto: “O amor é nu. É forma e sobressalto. / No azul desta avenida verde-cana / entre mulher e cão, um lobo e asfalto, / um gerifalto passeia sua doidice.” O Gerifalto reúne a obra poética de Celso Luiz Paulini. Há muito lá para ser lido e relido, plenitude de quem ouviu o duende e torce e retorce as imagens do mundo interior e exterior. Paulini é um poeta elegantíssimo, de versos decisivos: “eu sei é azul / azul sereno / mas o teu / no meu brando olhar / me põe extremo”. Acompanham o Gerifalto outros animais, outras dúvidas, outros delírios e você pode até perguntar pelo Abutre (ou consultar o Gil Scott-Heron). E o homem, bem. Segundo Paulini, o homem:


Não pasta. Morde às vezes. Outras vezes, manso se declina Na gama vária de angústia e aflição. Tem no chão os pés. Na cabeça estrelas o atormentam Pois que não sabe (é mártir) Onde pousar o coração”.


BRUCE LEE E OS LIVROS QUE NÃO LI “Quis tam avidus librorum helluo (quem é tão glutão por livros), quem consegue lê-los? Como há pouco, teremos um vasto caos e confusão de livros; somos oprimidos por eles, nossos olhos doem de tanto ler, e os dedos de folhear.” Robert Burton

Numa batida relâmpago em minha estante de livros, recolhi treze volumes que ainda não li – por razões diversas. Que sejam eles e não outros agora sobre a mesa do computador, prestes a pontuar as idas e vindas desta coluna, é um misto de acaso e vontade. Sendo parte do acervo, todos estavam na estante e chegaram a isto depois de terem sido adquiridos por mim: seja pelo tema, ou para desdobrar o interesse produzido por uma obra anterior do mesmo autor, pelo desejo de adensar incursões apenas sugeridas noutras paragens, entre outras motivações. Ao escolher escrever sobre livros não lidos, situo-me num terreno de impressões, conduzo-me por uma região ainda imaginada e deixo escorrer por aqui alguns apontamentos produzidos de improviso e algumas visões gestadas numa memória de bastidores, de fugazes elementos de potência que possibilitaram que sejam estes livros e não outros. Pensemos nisto como um exercício de antecipação de uma chuva estranha: olhar para o céu perscrutando seus movimentos, desfiando e desafiando as estruturas e códigos celestes para uma leitura que faça coincidir o intuído e o vivido. Andemos agora sob esta chuva estranha, procurando apreender vetores de força e imaginação incrustados nestes livros não lidos, nesta literatura em suspensão.


Corpo e alma – notas etnográficas de um aprendiz de boxe, de Loïc Wacquant, confiscou minhas retinas e pôs meu cérebro a remoer possibilidades de viagem numa jornada de entendimento e percepção da produção de corpo e mente de boxeadores a partir do relato de experiência (“participação observante”) na existência de um cientista social, ele próprio um dos sujeitos envolvidos nesta forja. Wacquant, para compreender a realidade social, inscreveu-se num clube de boxe de um bairro do gueto negro de Chicago. Corpo e alma ... é uma espécie de romance de formação, um registro intelectual e afetivo dos três anos que o autor dedicou aos treinos de boxe – tendo, inclusive, disputado lutas oficiais. A arte de viver para as novas gerações, de Raoul Vaneigem, sempre perambulou pelas minhas listas de livros para serem lidos, desde que tomei ciência dele numa época de mergulho nas doutas sandices do grupo situacionista. Abro o livro fortuitamente, para recortar um trecho: “(...) a violência mudou de sentido. Não que o rebelde tenha se cansado de combater a exploração, o tédio, a pobreza e a morte: o rebelde simplesmente resolveu não combatê-los mais com as armas da exploração, do tédio, da pobreza e da morte. Já que a primeira vítima de tal luta é aquele que se compromete em desprezar sua própria vida. O comportamento suicida se inscreve na lógica de um sistema que tira seu proveito do esgotamento gradual da natureza terrestre e da natureza humana.” Menos hermético que o Guy Debord, penso. Minha imaginação desenha Vaneigem com os dentes rangendo, procurando no caos as possibilidades de um futuro mais mamífero e prenhe de alteridades.


As Elegias de Duíno, do poeta tcheco Rainer Maria Rilke, estão entre as obras mais sutis, agudas, sublimes e provocadoras que já li. “Os vivos cometem o erro de distinguirem todas as coisas demasiado bem”. Sob o impacto da leitura dos poemas de Rilke, atravessei rapidamente as Cartas a um jovem poeta. E em seguida, consegui numa feira de livros usados Os Cadernos de Malte Laurids Brigge. E ainda não li este romance. Até comecei a percorrer algumas anotações do Malte, suas ruminações da existência, da morte e a ideia de que a visão não é um dom inato. Ao contrário, um exercício de invenção, buscado e cultivado ao longo de toda vivência. Mas tropecei em sei lá o quê, e deitei o livro de lado. Talvez ainda esteja procurando meus olhos para lê-lo. Foi no finado sítio rizoma.net que li a primeira vez sobre o “neomítico herói do povo” Luther Blisset – “qualquer um pode ser Luther Blisset, basta adotar o nome Luther Blisset. Seja você também Luther Blisset!”. De saída, boas gargalhadas com suas operações de cavalo de Tróia no sistema de mídias corporativas, seus esquemas debochados de fraude e criação artística, suas conspirações dadaístas no coração das cidades. A “situação aberta” do nome Luther Blisset (nome múltiplo, máscara, persona mítica, assinatura para uma multidão sem nome, etc.) empreende uma delirante ação e análise de noções tão caras ao ocidente, tais como a identidade, o valor, a verdade e a individualidade. Estou aqui com o livro da Guerrilha Psíquica em mãos, colhendo aqui e ali frases divertidas, facas críticas da sociedade de consumo e espetáculo. Apesar do sepukku (suicídio ritual japonês), Luther Blisset ainda sorri. Não demora e inicio o percurso na brenha cômica e ácida do melhor jogador de futebol de todos os tempos, Luther Blisset.


À sombra da jurema encantada, de Sandro Guimarães, é o resultado das investigações que o autor desenvolveu no mestrado em antropologia na Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Instigando uma reflexão sobre o culto da jurema e o encontro deste conhecimento indígena com o universo da umbanda e do catimbó dentro da região de Alhandra, na Paraíba, Sandro aponta para os legados míticos e simbólicos inscritos nesta prática religiosa. Foi num poema do Roberto Piva que encontrei a menção ao culto e, por sorte, tempos depois este livro chegou às minhas mãos. Evoé, a beberagem sagrada da jurema, em potência, narrada nesta investigação, possa alterar as rotas de percepção embotadas pelo cotidiano da engrenagem cinza do capital. Agora a chuva estranha se transforma numa tempestade. Correndo em campo aberto, posso ver alguns títulos, nomes que pairam por alguns segundos diante de minha vista e somem, produzindo fumaça (ou talvez apenas derrube os livros da mesa, conseguindo gravar na argila da mente informações básicas). E assim, anoto na pupila: O homem que era quinta-feira, de G. K. Chesterton; Teresa Filósofa, um clássico da literatura erótica, do século XVIII, de autoria desconhecida; O naufrágio do Titanic, de Hans Magnus Enzensberger; O homem que falava de Otávia de Cádiz, do peruano Alfredo Bryce Echenique; Mario e o mágico, de Thomas Mann; As confissões de Max Tivoli, de Andrew Sean Greer; A vida breve, do uruguaio Juan Carlos Onetti; O primeiro homem, de Albert Camus. Um décimo quarto livro, não visto na chuva, nem sobre a mesa? O Tao do Jeet Kune Do, de Bruce Lee.


DEPOIS DE LER, DEPOIS DE VER, DEPOIS DE OUVIR “(...) eu posso abrir os olhos para a lua aproveitar o medo das nuvens mas o céu roxo é uma visão suprema minha face empalidece com o álcool eu sou uma solidão nua amarrada a um poste” Roberto Piva

Pedro Tamen, poeta português, publicou um livro intitulado Depois de Ver, parte do título que joguei ali em cima, pra nortear esta coluna. Os poemas do livro, baseados no princípio de écfrase (grosso modo, técnica retórica de transcriação de uma representação visual para uma representação verbal), foram escritos após o contato do autor com diversas pinturas – quadros servindo como fagulhas para a criação poética. Intuitivamente, bem antes do contato com o conceito de écfrase, também incorri na prática da escrita “depois de ver”, tateando aspectos, pontilhando problemas e apontando soluções estéticas que, simultaneamente, remetessem para o trabalho visual que serviu como gatilho, bem como funcionasse autonomamente, deslindando novos sentidos. A literatura se espalhando e respirando outros ares e linguagens. O cinema, por seu turno, vez ou outra, suga algumas questões da literatura, apropriando-se de suas narrativas. Alguns debates pós-sessão indicam descontentamento de uns, deslumbre de outros, pelos modos como o diretor recriou a atmosfera das histórias literárias, às vezes verdadeiros monumentos no inconsciente coletivo. Por vezes, mais salutarmente, segue-se com a distinção entre as duas linguagens e suas maneiras distintas de apresentar e representar a natureza das coisas da vida.


Com uma pequena tempestade de nomes, caminhemos por uma senda multicolorida de experiências fílmicas que partilham do princípio depois de ler – baseadas, adaptadas, livremente inspiradas na literatura. E estendendo a lógica afetiva de tal simbiose, sempre pensei nas possibilidades de um instigante contrafluxo entre a literatura e o cinema (uma literatura depois de ver). Elenco a seguir algumas possibilidades deste trânsito, numa lista mezzo improvisada, mezzo articulada racionalmente. Entram aqui filmes que bebem na fonte dos livros e logo depois, possíveis livros que beberiam o elixir de filmes. Dos filmes que me lembrei de trazer para cá, integrantes desta seara de filmes que adaptam obras literárias, os mais antigos são de 1971: Laranja Mecânica e Decameron. Stanley Kubrick, na recriação de Laranja Mecânica, do Anthony Burgess, e Pier Paolo Pasolini, no desdobramento da vertigem ágil do Decameron, de Giovanni Boccaccio, apresentam obras densas, violentamente sedutoras, quase descoladas das experiências literárias originais – algum tempo sutil depois de ver. Outros filmes conseguem resultados de autonomia similares, mesmo em praias tão distintas quanto as da animação Fritz, the cat (tradução de Ralph Bakshi, de 1972, para o universo junkie de Robert Crumb) e a comédia pop Alta Fidelidade, dirigida por Stephen Frears em 2000, “depois de ler” o livro homônimo do Nick Hornby. Alguns resultados são tão certeiros, tão fortes, que projetamos, como numa visão de retrovisor, as imagens da película para o texto. Pensemos aqui no caso de O homem duplo (2006), segunda experiência com a técnica da rotoscopia, do diretor Richard Linklater, para a ficção científica de terror policial do Philip K. Dick.


É uma experiência complicada, um exercício de vontade delicada ler o texto sem as pálpebras cobertas “rotoscopicamente” depois de ver o filme. Em muitas ocasiões, os filmes acabam servindo como motor para a redescoberta de livros, ou para a indicação de obras que pairavam no ar modorrento das pilhas de lançamentos e bobagens, ou ainda servindo para ultrapassar barreiras linguísticas, antecipando traduções de obras e agindo como uma introdução. Este elemento “pedagógico” é presente no filme End:Civ, de Franklin López. Lançado no ano passado, a produção é uma reelaboração do pensamento do ativista ambiental Derrick Jensen, principalmente do livro Endgame (ainda sem tradução portuguesa). Sem esgotar as possibilidades de discussão ao redor da ideia do percurso destrutivo do ambiente natural provocado pela civilização humana ao longo do tempo, o filme elabora um painel variado e bem fundamentado das mazelas e flagelos que a civilização tem perpetrado no coração vivo da natureza. Alguns filmes ainda estão na minha lista de espera. Este é o caso do Almoço Nu, incursão do David Cronenberg, em 1991, pelo cenário drogadito de William S. Burroughs. Outros saíram dela recentemente, caso de Mutum, de Sandra Kogut, adaptado da obra Canto Geral, de João Guimarães Rosa. Mas ainda não li este canto geral e fiquei apenas com a vastidão silenciosa que a diretora espraiou pela película, torcendo a mente para ir ao texto imaginado de Rosa. Com Sidarta (1972, direção de Conrad Rooks) a situação foi desastrosa. Hermann Hesse é um dos escritores de que mais gosto e Sidarta (1922) certamente é o livro dele que mais reli.


Sempre pensei nas possibilidades de uma adaptação genial, algo que remetesse ao filme Zen, de Banmei Takahashi, por exemplo. Mas, depois de ter descoberto a existência da criação do Conrad Rooks, vasculhado na internet, baixado e visto o filme, restou uma impressão de algo diluído, uma garapa insuportável e nada salutar. Não se trata aqui de pensar fidelidade ao texto ou algo que o valha. Mas as interpretações, a fotografia, as locações, as arestas do roteiro, nada sequer próximo de um bom filme. A experiência me deixou com um pé atrás para outro achado que acreditei fecundo: O lobo da estepe, adaptação livre do diretor norte-americano Fred Haines, de 1974, para o romance homônimo do Hesse. Ainda não me joguei, não deixei a visão chegar e encontrar o lobo e o homem numa projeção de cinema. Talvez logo menos. Não tenho notícia de um contrafluxo cinemaliteratura, obras literárias recriadas do coração das películas. Penso que seria um excelente exercício, inclusive para pensarmos no estatuto descentralizado que a literatura ocupa num tempo vertiginoso de imagens. Segue uma lista provocadora, de livros que eu gostaria muito de ler, escritos por sei lá quem, num jorro depois de ver. Um destes livros, talvez o mais divertido, bizarro e nonsense, seria Americanos Feios, recriação da série de desenho animado Ugly Americans (2010), de Devin Clark. Outras pérolas, talvez gestadas por um escritor romeno, seriam Gato preto, gato Branco (1998), de Emir Kusturica e Quem está cantando aí? (1980), de Slobodan Sijan.


Adoraria ler as peripécias dos grupos envolvidos nos filmes, esticando suas ações, seus perfis psicológicos, desdobrando intuições, aumentando caminhos percorridos, tudo por fazer dentro do movimento de um casamento arranjado embebido na música cigana (Gato...) e de uma viagem, verdadeira odisseia, num ônibus movido a lenha e improviso (Quem...). Aguardo com curiosidade a possibilidade de germinação destes fluxos. Um movimento de escritores depois de ver. E assim poderíamos ler as histórias: de um grupo de jovens, assaltantes bissextos de farmácias, financiando seus movimentos de vida (Drugstore Cowboy, de Gus Van Sant); de um taxista “lúcido e louco”, misantropo perambulando na noite (Taxi Driver, de Martin Scorsese); do sonhador insone, deambulando de sonho em sonho, sem vigília (Waking Life, de Richard Linklater); das fissuras e abismos entre natureza e cultura, o macaco cientista (A natureza humana, de Michel Gondry); das variações em torno de vários táxis ao redor do mundo as trocas e encontros inusitados entre motoristas e passageiros (Uma noite sobre a terra, de Jim Jarmusch); de um liquidificador filósofo, cúmplice de assassinato (Reflexões de um liquidificador, de André Klotzel) e de um inventor nos grotões do Brasil obcecado pela ideia do perpetuum móbile/movimento perpétuo (Kenoma, de Eliane Caffé). E após estas idas e vindas entre literatura e cinema, esta conversa, este exercício depois de ler e depois de ver, não custa indicar as possibilidades (já testadas em alguns caminhos) inscritas depois de ouvir. Estes são os mojobooks, livros baseados no universo de discos. Faz tempo que vi a ideia vingar por aqui, em terras brasileiras, mas não acompanhei desde então.


Fiquei apenas mastigando a ideia de escrever alguma coisa depois de ouvir o Bryter Layter, disco de 1970, do Nick Drake. Algum livro chamado Aurora Amanhã, ou então Claridade na garganta do futuro. Nem sei, continuo ouvindo o disco, talvez o livro saia um dia. Enquanto isso, mandem para mim o que vocês criarem depois de ler, depois de ver, depois de ouvir.


Se perguntarem por mim: fui à praia parir poemas “(...) Sento sem pensamentos perto da estrada de troncos Chocando um novo mito Olhando as salamandras O último caminhão já se foi (...)” Primeiro Canto do Xamã – Gary Snyder

Resolvi espalhar por aqui uma série de divagações, apontar sendas e bifurcações todo tempo; resolvi espalhar uns poemas – frutos que já trouxe pra perto e outros que ficarão mais próximos nos próximos meses. Olho para a mesa e faço um mapeamento dos nomes que deixei sobre a mesa: Gary Snyder, Michael McClure, Roberto Piva, Rodrigo Petrônio, Allen Ginsberg, Ferreira Gullar e uma coletânea de outros tantos nomes, organizada pelo Claudio Daniel e o Frederico Barbosa. Vou aqui fechar os olhos e tomar um livro aleatoriamente e anotar o que diz. E assim vem até mim (e agora até vocês) este poema do Snyder: Como a poesia chega a mim Ela vem tropegando por sobre os Seixos à noite, fica Acuada fora do Alcance da minha fogueira Vou ao seu encontro no Limite da luz. Gary Snyder será um dos autores cuja obra eu pesquisarei para interpretar a irrupção das imagens da natureza e do sagrado na poesia – junto com trabalhos de Dora Ferreira da Silva e Leonardo Fróes.


Conheci a obra dele ao me debruçar sobre a poesia do Roberto Piva e sua torrente de literatura embebida em literatura e vida. Grande divulgador do zen-budismo na América do norte, Snyder foi um dos mais importantes poetas da geração beat. Mergulhemos noutro poema. Agora o autor escreve Quanto aos poetas: (...) O primeiro Poeta da Água Ficou no fundo por seis anos. Recoberto de algas. A vida em seu poema Deixou milhões de minúsculos Rastros diferentes Se entrecruzando pela lama. (...) Michael McClure, outro nome da beat, poeta de olhar atento para a poesia como respiração e atenção à galeria de mamíferos, sujeito da leitura de poemas para leões e dos poemas tântricos fantasmas, escreveu: Point Lobos: Animismo É possível meu amigo Que se eu tivesse uma grande barriga O lobo sobrevivesse da gordura Mascando vagarosamente (...)


Deixando os beats de lado por hora, pois ainda volto com algo do Ginsberg, tomo o Toda Poesia, do Gullar, nas mãos, para deixar os olhos correrem soltos para pescar algum poema para cá. Gullar foi um dos primeiros poetas de quem tive notícia, ainda perambulando pela biblioteca da escola. E surge o poema Internação, uma das coisas mais delicadas e doidas e vivas que já li: Ele entrara em surto E o pai o levava de Carro para A clínica Ali no Humaitá numa Tarde atravessada De brisas E falou (depois de meses Trancado no Fundo escuro de Sua alma) Pai, O vento no rosto É sonho, sabia? Desde que li que “o vento no rosto é sonho”, reiteradas vezes o verso ficou girando na cabeça, como uma memória da pele, nos instantes em que o vento passava por mim. Algo semelhante ao que aconteceu/acontece com o poema/mantra/música do Walter Franco: “tudo é uma questão de manter: a mente quieta, a espinha ereta e o coração tranquilo.”. Outra boa surpresa veio na caudalosa e visionária poesia de Rodrigo Petrônio, que já nem lembro como fui dar conta da existência.


Em seu Pedra de luz, podemos ler a gestação mítica, a fricção entre o poeta e o mundo: No sentido da terra I Se eu abro meu pulso para uma estrela e a chuva em coro vem arar meu dorso. Se procedo liquido da boca da madeira e por ela canto o canto circular de um morto. (...) Não sou o guardião dessa terra anônima. Apenas nomeio o que a mão não toca. Encarno o que a lava não sonha. E cumpro as estações que nosso olhar nos veda. E para trazer para perto o Leminski, ainda que indiretamente, vejamos agora Leminskiana, do poeta e antropólogo baiano Antônio Risério (autor de livros instigantes como Textos e Tribos e Oriki Orixá): Querido enigma: Estou bêbado. Vou, como se diz, Pisando nas asas. Paro numa estrela E sorteio o mar. Mas estranho - e muito – O meu e o teu Linjaguar.


Este poema está na antologia Na virada do século – poesia de invenção no Brasil, organizado pelo Claudio Daniel e pelo Frederico Barbosa. Outros bons nomes aparecem por lá (Arnaldo Antunes, Carlito Azevedo, Glauco Mattoso, entre outros.). E Roberto Piva, um dos poetas inventores, um dos experimentais (com vida experimental) indispensáveis para visões mais libertárias e mágicas sobre a literatura brasileira, comparece nesta breve coluna com um trecho do poema Meteoro: (...) Eu apertava uma árvore contra meu peito Como se fosse um anjo Meus amores começam crescer Passam cadillacs sem sangue os helicópteros Mugem Minha alma minha canção bolsos abertos Da minha mente Eu sou uma alucinação na ponta de teus olhos. O crítico Alcir Pécora, organizador das obras reunidas de Roberto Piva indica a proximidade, o fluxo, um viés mais beat na poesia de Piva neste período, neste primeiro surto de publicação do poeta – com Paranoia, donde extrai o poema Meteoro e Piazzas. Além do diálogo com os norte-americanos vagabundos iluminados da beat, podemos encontrar conversas de Piva com Walt Whitman e Fernando Pessoa, bem como com Blake, Rimbaud, Hart Crane, Mário de Andrade, Murilo Mendes, Jorge de Lima. E no que tem de verso longo, enumeração caótica, discurso não-linear carregado de imagens de estranhamento, Piva é um criador também leitor, também interlocutor de Allen Ginsberg.


Leiamos o Salmo Mágico, do autor do Uivo: Porque o mundo está à beira do abismo e ninguém sabe o que virá depois Ó fantasma que minha mente persegue de ano para ano Desce do céu para esta carne trêmula Colhe meu olho fugitivo no vasto Raio que não conhece Limites – Inseparável – Mestre Gigante fora do tempo com todas as suas folhas caindo – Gênio do Universo – Mágico do Nada onde nuvens vermelhas aparecem (...) Com estes poemas espalhados por aqui, posso ir até à praia. Deixar a visão chegar, com a espinha ereta, o coração tranquilo, com o vento no rosto e a mente quieta, observando os meteoros, as pedras de luz que desvelam os enigmas do sentido da terra, inventando a fogueira e a lama, antecipando os mergulhos na água. Fui à praia, mas antes escrevi este bilhete que deixei pendurado no olho esquerdo do furacão da alma mordida por vespa: há um imenso trabalho para a boca vegetal da loucura: comboio de corças incendiadas deusas cuspindo gafanhotos sobre os dorsos dos tigres imigrante chinês traduzindo poemas anarquistas italianos bolas de gude feitas de pequenos sóis palhaço ancestral revirando as cinzas da fogueira de ossos gnu guardando gravetos na gaveta do inverno.


Quatro leituras embutidas

do

feminino

e

outras

milhões

Focando a vida de algumas mulheres podemos ter as metáforas para compreendermos o universo de milhares, milhões de outras mulheres. E é esta a força das histórias das protagonistas do programa INTERNACIONAL 2 – QUATRO MULHERES, da IV Janela Internacional de Cinema. Uma jovem adolescente em sua jornada de iniciação e encontro com os espíritos do vodu haitiano, outra garota às voltas com os estranhamentos e as transformações provocadas pelo turbilhão de hormônios da adolescência, uma mulher adulta deslocada numa festa com cinco garotos em seus vinte e bem poucos anos e, finalmente, uma mulher criada na força de se travestir, atendendo os desejos sexuais de um sujeito moribundo. Ousado, simultaneamente perturbador e delicado. Este é Fourplay: San Francisco, de Kyle Henry. Somos lançados num recorte do trabalho de uma drag, atendendo sexualmente no ambiente doméstico um sujeito em estado vegetativo, auxiliado por máquinas – ele se comunica pelo piscar de olhos. Depois de conversar com a esposa do sujeito, a drag vai para o quarto, onde o homem vive, sobre a cama. Sodomia, felação, podolatria – cabe tudo na entrega sincera da drag para animar e confortar o sujeito, que fica sempre com um ar de riso no rosto. No sexo distante do cotidiano e da ortodoxia, o homem reencontra as possibilidades para assegurar que permanece jorrando vida. “Você é uma máquina de sexo, baby. Está vivo.”, diz a drag.


Calcado numa estética experimental, num registro documental sutil, Sève, de Louise Botkay, acompanha o despertar do relacionamento de uma jovem haitiana com o mundo mítico e espiritual. Banho de ervas, danças, incensos. A garota recebe em sonhos o espírito de Marassa – este espírito representa o andrógino primordial, sendo apresentado também nas figuras do casal de gêmeos Mawu e Lissa. Temas como a fertilidade, a doçura, a bravura e a força giram diante dos olhos do espectador, amparados na vivência de iniciação da jovem. Frágil e pouco eficaz, Girl, de Fijona Jonuzi, conta a história de uma mulher adulta deslocada numa festa com cinco garotos por volta dos vinte anos. O filme amortece o espectador, também deslocado neste sobrevôo superficial sobre os silêncios constrangedores que envolvem as gerações. Junior, curta realizado por Julia Ducournau é um experimento maduro. Atrai o espectador com uma narrativa permeada de assombros, lirismo, desconforto – como numa cena em que a garota revira profundamente a pele das costas. A jovem protagonista é insegura em relação ao corpo e às transformações típicas da idade – algo similar à estrutura da fábula do patinho feio. Embora o tema seja demasiadamente conhecido, o curta constrói uma assinatura própria ao traçar no corpo da jovem e no ambiente que a cerca, se utilizando de fortes materializações visuais das metáforas, as mudanças e transtornos por que passa. A garota fica bonita, quase irreconhecível, mas tem de aprender a lidar com gosmas que saem de seu corpo e encharcam o quarto. Para o espectador e para a personagem, a certeza de que é preciso voltar-se sobre si e encarar as próprias inseguranças para encontrar a sabedoria de uma vida autêntica.


Aqui, além.

Puxar e soltar os fios do novelo da memória, puxar e soltar os corpos em movimento ao nosso redor, puxar e soltar as palavras e as imagens para dar conta das loucuras e dores do amor e do desamor, das incompreensões em diálogo. O programa de curtasmetragens BRASIL 6 – PUXANDO E SOLTANDO, da IV Janela Internacional de Cinema de Recife, agarra olhares transeuntes e libera as mentes dos espectadores para vagarem por um sonho coletivo numa tentativa de tatearem e descobrirem intimamente o que o desejo e o afeto conseguem trazer para perto de nós e o que queremos, permitimos ou aceitamos que a vida arraste para longe. A diretora Mariana Porto, em Zenaide, costura o depoimento de sete mulheres a respeito das relações de poder e afeto, discutindo o casamento como uma estratégia de sobrevivência. Zenaide, um dos curtasmetragens do projeto Olhares Sobre Lilith (adaptações de várias realizadoras sobre o livro de poemas As Filhas de Lilith, de Cida Pedrosa), desdobra a narrativa do poema: uma mulher se casa aos vinte anos, em 1964, como quem compra uma bicicleta. Entrelaçando as declarações das entrevistadas, também casadas por volta dos vinte anos, Mariana Porto constrói a imagem de uma mulher questionadora das convenções sociais – como a obrigação do casamento e da procriação. Já no curta-metragem Oma, de Michael Wahrmann, as relações entre o realizador e sua avó, personagemtítulo, servem como fio condutor para a narrativa. O filme é calcado numa estética precária, operando a linguagem de um vídeo doméstico, gravado em visitas do diretor à sua avó.


O sujeito fala espanhol, a avó fala alemão. Ela não escuta, ele não entende. O curta-metragem caminha por uma navalha tênue, entre o registro da história íntima da família e o uso descabido e despropositado da avó como um personagem, até certo ponto, caricato. A perspectiva adotada elabora um plano de embotamento do sujeito, onde transparece uma estratégia não partilhada, uma hierarquia entre quem detém o controle da narrativa (o realizador) e quem está à deriva (a avó, Oma). Uma Primavera, de Gabriela Amaral Almeida, repisa o tema das interações entre mãe e filha, destacando o instante em que a prole se afasta da larga área de influência materna. Uma história em linha reta: aniversário de treze anos da filha, num piquenique, nenhum amigo por perto, nem o pai. A mãe dorme e quando acorda a filha não está por perto. Algum espectador com dislexia pode embarcar no suspense. Mas o jogo previsível já havia sido estabelecido. E, quando a mãe fica procurando a filha pelo parque, já sabemos que ela está ficando com um garoto. E é o que a mãe avista. Na Sua Companhia, de Marcelo Caetano, é uma ficção sobre o universo jovem homossexual, a partir do olhar de um professor da rede pública que gosta de filmar seus parceiros. Espraiado numa estética da pornografia amadora, o curta-metragem lança um olhar sobre os fetiches, as idas e vindas do amor e do sexo. A animação Céu, Inferno e Outras Partes do Corpo completa o programa, com a história de um cão abandonado por sua amada cadela. O personagem entra, então, numa viagem metafórica e literal do despedaçamento de si: fatiar o coração, bater o cérebro no liquidificador, passar a ferro o rosto, perder os dentes, embalado por Loucura, de Lupicínio Rodrigues.


Espaço, E s p a ç o, E s p a ç o, E s p a ç o

Você, leitor, tem conhecimento sobre qual é o seu espaço? O programa de curtas-metragens BRASIL 2 – O MEU ESPAÇO, da IV Janela Internacional de Cinema de Recife, mostra realizadores que desdobram, cavam ao redor, constroem e conquistam um espaço próprio. Filmes diferentes em seus anseios e gêneros, com variadas preocupações e soluções estéticas para refletir a respeito da noção de espaço, as películas compartilham a atenção às urgências do conhecimento de si e sobre o lugar do sujeito no mundo e também os limites e os atritos deste sujeito com os outros e com o ambiente ao redor. Acercadacana, de Felipe Peres Calheiros, é um filme certeiro. Com fôlego curto, mas intenso, faz um recorte da história de luta de Maria Francisca pelo reconhecimento de posse de seu sítio contra as ameaças do Grupo Petribu, forte grupo econômico do setor canavieiro. Dona Maria é um personagem denso, e o filme consegue captar a todo instante sua alma afirmando e reafirmando seu direito legítimo ao espaço, a permanência de seu vínculo com o sítio de sua família. Em Monja, dirigido por Breno Baptista, acompanhamos a história de uma mulher solitária numa cama de casal. Em seu apartamento, ora se esparrama no chão, enquanto tenta ligar um ventilador quebrado, ora se abandona vagarosamente na banheira. A solidão ecoa, é espessa, e não arrefece nem mesmo quando a mulher encontra um parceiro para um sexo casual. Ela volta a estar só numa cama de casal, enquanto o sujeito dorme num colchonete no chão.


Com o curta-metragem A Janela (Ou Vesúvio), de Leonardo Amaral e João Toledo, a questão do espaço procura a identificação de uma fronteira entre o cotidiano e a realidade midiática. A televisão orienta a percepção do mundo. Ao olharem por uma janela da casa, um jovem e um senhor escutam a guerra. E o quarto se transforma num acampamento provisório para os feridos por essa crueldade diária. Em O Hóspede, da dupla Anacã Agra e Ramon Porto Mora, uma ficção científica simultaneamente bem-humorada e apreensiva, a visita de um alienígena a uma pensão do interior da Paraíba instaura o conflito, amplamente costurado no suspense e na curiosidade diante do desconhecido, sobre os espaços reservados ao anfitrião e ao visitante. Com bela fotografia e uma trilha acertada, o filme dialoga inteligentemente com as convenções do gênero, criando um trabalho com voz própria. A problemática espacial recebe um tom intimista e divertido em Os Sapos, de Clara Linhart. A película nos põe em contato com um casal, sem compromisso formal (sabemos depois), em uma casa no sítio, perto de cachoeiras e de sapos. Por um pedido do sujeito, outra mulher, uma antiga amiga de conversas esporádicas na internet, aparece na casa – o que provoca fissuras no frágil relacionamento entre a “capitã” e o “sargento”, como o casal se nomeia. Para o espectador, rindo com as voltas na história, parece ecoar a todo instante a idéia de que não há espaço para os três.


Eppur si muove

Movimento, ato de mover ou de se mover. Entre outras coisas, os filmes do programa Internacional 1 – Sinfonias Industriais de Cinema, da IV Janela Internacional de Cinema do Recife, compartilham alguns sentidos possíveis evocados pelo vocábulo movimento. Os deslocamentos de um homem, flanando pela urbe e se misturando às máquinas de um parque de diversões; as crianças se espalhando pelas ruas da cidade, criando jogos e rituais; uma família se preparando para realizar uma noite inesquecível com uma discoteca móvel; uma jovem perambulando através dos sonhos e dos metrôs; um suave deslizar pelos espaços de uma construção em ruínas, englobando simultaneamente múltiplos elementos metereológicos. As dezenas de crianças que tomam conta dos sítios da cidade, em New London Calling, de Alla Kovgan, criam uma atmosfera permeada pelo lúdico. Não vemos nenhum carro em trânsito, nenhum sujeito correndo atrasado para o trabalho, ninguém preocupado atravessando os cenários da cidade. Apenas um turbilhão multicolorido de crianças e adolescentes se divertindo, criando e recriando relações entre si e entre eles e o ambiente urbano. O espectador talvez sinta vontade, um tanto nostálgica, de fluir entre os personagens para despreocupadamente divertir-se, instaurando outras possibilidades de vivência para o corpo na trama da cidade. Já em Enterprise, de Mauricio Quiroga, acompanhamos a trajetória de um sujeito carregando um boneco maior que ele mesmo, ganhando ruas e esquinas, indo ao encontro de um parque de diversões.


Com uma fotografia em preto e branco, uma montagem de som alucinante, o filme explora as fusões entre o corpo humano e a máquina, os arrebatamentos provocados pela fricção entre os movimentos humanos e as vertigens das velocidades mecânicas. Podemos fazer associações com outras realizações, como o Ballet Mécanique, de Fernand Léger, por exemplo. Electric Light Wonderland, de Susanna Wallin, apresenta uma família (um pai e dois filhos) se preparando para a realização de sua noite de discoteca móvel, com a profusão de luzes e formas. Aqui o movimento diz respeito tanto ao exercício de preparação da festa, quanto aos ritmos internos dos garotos do filme, mergulhados numa jornada interior evocando as falas da festa por vir. O filme sugere mais coisas que as explicita e é na maior parte do tempo monótono. Movimenti Di Um Tempo Impossibile, do coletivo italiano Flatform, é um delicado registro de invenção do espaço de uma ruína com uma temporalidade atravessada simultaneamente por neve, chuva, neblina e vento. Os quatro elementos são contemporâneos deste tempo mítico, surreal, lírico, costurados aos movimentos musicais da trilha, um quarteto de Maurice Ravel. O filme é uma fantasia sutil, apontando para o terreno onírico de apreensões mágicas da vida. O trânsito confuso entre memória, sonho e realidade é a carta na manga de Cat Effekt, da dupla Gustavo Jahn e Melissa Dullius. O filme arremessa o espectador numa torrente de imagens delirantes, com as quais não é possível constatar hierarquias entre o mundo da vigília e do sonho. A jovem protagonista deambula por Moscou, se entrega a certos acontecimentos magnéticos, que se repetem, e se recriam com pequenas modificações.


Cat Effekt é uma invenção lisérgica interessada numa percepção não planificada dos fluxos da vida. Pode jogar o espectador numa terra que este já tenha visto em sonho ou, ainda, ser uma porta aberta para as sensações multicoloridas vividas num chá de cogumelos das cinco horas da tarde.


Febre do Rato: poesia, cinema e libertinagem

O escritor surrealista André Breton afirmava que “a poesia se faz na cama como o amor”. Numa paráfrase mais aguda, o poeta Roberto Piva declarava que “a poesia é uma fascinante orgia ao alcance do homem”, incluindo a recíproca de que “a orgia é poética”. Reiterando estes apontamentos e tecendo outros, o diretor pernambucano Claudio Assis, em Febre do Rato, longa-metragem exibido na noite de abertura da IV Janela Internacional de Cinema do Recife, explora as fricções entre o corpo e a palavra, entre o gesto comportamental e o jorro lírico, entre as irrupções do desejo e os cercos do cotidiano múltiplas camadas de significados possíveis de serem apreendidos nas quase duas horas de filme. Febre do Rato apresenta recortes em preto e branco da vida do poeta Zizo, interpretado por Irandhir Santos. Zizo, um sujeito performático, pontua os momentos vividos com amigos, parentes e desconhecidos com a capacidade de incêndio e de sublime da palavra poética: recita poemas em churrascos, dirige poemas aos amigos como o casal Pazinho (Mateus Nachtergaele) e a travesti Vanessa (Tânia Moreno) - e, principalmente, distribui o fanzine que dá nome ao filme, bradando no sistema de som de uma variant. Claudio Assis, com Febre do Rato, manifesta a idéia de que a arte pode ser um dispositivo de libertação psicológica, uma possibilidade de cura e guerrilha que faça frente ao cerceamento das liberdades e ao esmagamento e à padronização das vontades.


Agenciados no terreno fértil da poesia, a nudez, o lúdico, a embriaguez e o irracional ampliam os entendimentos e as sensações sobre a prática política, sobre a necessidade de posicionamentos diários dos sujeitos no rio da existência, confundindo propositadamente as fronteiras entre vida e arte. Zizo, na sua jornada rumo ao desregramento de todos os sentidos faz-se vidente (como preconizou Rimbaud), torna-se veículo de sensibilidades libertárias, congrega as vozes de homens e mulheres que deliberadamente, deliciosamente subvertem os comportamentos estabelecidos e sustentados na moral hegemônica. Assim podemos ler as sugestões das trepadas coletivas, a traição com a mulher do vizinho numa caixa d’água, as masturbações na máquina de xerox e na posse dos poemas do fanzine, o desejo de contemplar a garota desejada urinando, a cannabis sativa geradora de momentos ternos de sociabilidade, etc. E mesmo morto pela polícia militar, tendo sido jogado ao Rio Capibaribe, Zizo permanece infiltrado, entranhado ao corpo dos personagens envolvidos por sua vida. Embora desigual, ligeiramente repetitivo e diluído em seus movimentos finais, Febre do Rato consegue entrelaçar instantes geniais a um conjunto de visões provocadoras, construindo a imagem de um Recife delirante, que está além das fábulas das fronteiras entre o feio e o belo, entre o sublime e o escatológico, entre a poesia e a vida.


Vicente Franz Cecim & as fábulas do imaginário rebelde: literatura, imaginário e utopia na invenção de Andara

A literatura do escritor paraense Vicente Franz Cecim se afigura como um exercício de invenção do sonho, como criação de dimensões mágicas e brechas na realidade, como confusão de instâncias aparentemente opostas como o sono e a vigília, o chão do cotidiano e o espaço onírico. Uma literatura que não atribui diferenças entre o natural e o sobrenatural. Literatura mutante para a reinvenção

da

utopia.

O

autor,

jogando

com

o

entrecruzamento de gêneros (prosa, poesia, ensaio, anotações de viagem), se lança numa escritura capaz de criar (e se mover por) fraturas no real. Uma imagem pode nos

aproximar

dos

dispositivos

geradores

e

da

mentalidade que preside o universo ficcional de Cecim: literatura, cópula entre o visível e o invisível. Vicente Franz Cecim se dedica, desde 1979, à invenção de sua obra única Viagem a Andara oO livro invisível – livro não-visível donde extrai seus livros visíveis. Por hora, o autor publicou quinze obras. As publicações vão delineando, traçando o território mítico e místico de Andara, permeado de criaturas mágicas e


humanas, terreno para o exercício permanente de diálogo do

autor

com

comunidade

filósofos,

sem

poetas

diferença

e

místicos

ontológica

entre

numa seres

humanos, animais ou plantas. A lógica que preside Andara é uma lógica não-linear, não-cartesiana. Em Andara, Cecim faz o Verbo delirar, faz o Logos dançar com Moria, a loucura. Andara é uma região-metáfora da vida, transfiguração originária da Amazônia. De acordo com a definição do autor, Andara é a Amazônia. Nasceu a partir da natureza amazônica, mas uma Amazônia sonhada, transfigurada em uma dimensão que simboliza toda a vida. Quero dizer, desde o que vemos, as coisas ao nosso redor, até o que não vemos, mas pressentimos. Os livros que escrevo, os chamados ‘livros visíveis de Andara’, são sempre convites a viajar além, até o invisível1.

Ou ainda: Andara é uma região imaginária, toda ela onírica, que eu criei, ou que quis se criar através de mim, de qualquer maneira: que eu sonhei, mas sua matéria prima é a Amazônia, a Floresta Sagrada onde eu nasci, com suas águas, seus peixes, suas aves, seus insetos, seus animais, suas árvores.2

Existem muitos caminhos, muitas leituras possíveis para se acercar de Andara, várias sendas e trilhas para percorrer, inúmeros trechos para ir adentrando no espaço desta floresta sagrada. Para dar conta desta “literatura fantasma” nosso percurso crítico-analítico irá


enfocar o texto do manifesto Flagrados em delito contra a Noite (manifesto Curau), de 1983. E, dentre as obras visíveis de Andara até agora publicadas, iremos examinar o

texto

ficcional/poético

do

livro

Ó

Serdespanto,

publicado em 2001. Pensamos que a análise da escritura do manifesto e da criação ficcional possibilitará a realização de uma leitura com um duplo viés, uma jornada interpretativa que segue caminhando simultaneamente nos caminhos de uma bifurcação: interpretar e compreender o território poético/mítico de Andara e o imaginário desta região (através da presença de símbolos, imagens e narrativas que lhe configuram e dão forma) assim como deslindar os posicionamentos do autor em relação à ideologia do capitalismo contemporâneo, situando a Weltanschauung (visão de mundo) do autor em relação ao mundo natural, de maneira geral, e à sua região (Amazônia) em particular. A ideia é compreender os posicionamentos que apresentados no texto do manifesto Curau (escritura consciente, declaração de uma tomada de posição por parte

do

autor)

e

perceber

se

(e

como)

estes

posicionamentos podem ser lidos na construção poética


de

Ó Serdespanto.

Atentaremos, também, para os

significados utópicos e míticos inscritos na ficção poética. Em resumo, pretende-se averiguar o diálogo entre a escritura do manifesto e a criação poética, verificando os mecanismos

que

informam

estas

textualidades,

averiguando de que modo estes textos se relacionam. Assim, poderemos situar a maneira como Ó Serdespanto incorpora,

realiza

os

significados

e

características

apresentadas no manifesto - o caráter contestador, utópico,

transgressivo

e

confrontador

da

ideologia

capitalista presentes no texto do manifesto Curau, principalmente no que diz respeito às formas de relação do homem com a natureza e, mais especificamente, com a Amazônia. Para empreender tal feito precisamos, antes, nos deter num pequeno percurso teórico para discutir e precisar nossa ideia a respeito da questão da ideologia e também a relação desta com o conceito de visão de mundo (Weltanschauung). O conceito de ideologia é múltiplo, passível de inúmeras variáveis e abordagens. Para alguns autores a ideologia aparece como equivalente à ilusão, falsa consciência – a ideologia seria uma concepção idealista na qual a realidade é invertida e as ideias aparecem como


motor da vida real. Outros teóricos a definem como qualquer doutrina sobre a realidade social que tenha vínculo com uma posição de classe. Podemos, ainda, definir a ideologia como uma determinada consciência social, materialmente sustentada, afastando-a da noção recorrente de ilusão. Conforme as palavras da filósofa Marilena Chauí, (...) o discurso ideológico é aquele que pretende coincidir com as coisas, anular a diferença entre pensar, o dizer e o ser e, destarte, engendrar uma lógica de identificação que unifique pensamento, linguagem e realidade, para, através dessa lógica, obter a identificação de todos os sujeitos sociais com uma imagem particular universalizada, isto é, a imagem da classe dominante. Universalizando o particular pelo apagamento das diferenças e contradições, a ideologia ganha coerência e força porque é discurso lacunar que não pode ser preenchido. (Chauí 1997:3)

Aproximando-nos das análises do sociólogo Karl Mannheim3, podemos compreender a ideologia como um conjunto de idéias e representações que se orientam para a

estabilização/legitimação/reprodução

da

ordem

estabelecida. A ideologia assim entendida e definida tem um caráter conservador, servindo à manutenção do poder das classes dominantes. Como contraparte da ideologia, as utopias são, ao contrário, idéias, representações e teorias que aspiram outra realidade, uma realidade ainda inexistente.


As utopias têm uma dimensão crítica, de negação da ordem social existente – as utopias se orientam para a ruptura da ordem estabelecida e para a invenção de novos arranjos sociais. Deste modo, as utopias têm uma função subversiva, rebelde e revolucionária. Segundo o sociólogo Zygmunt Bauman, em A utopia na era da incerteza: Para conduzir a imaginação humana à prancha de desenho em que se esboçaram as primeiras utopias, era necessário um rápido colapso da capacidade auto-reprodutiva do mundo humano – um tipo de colapso que entrou para a história como nascimento da era moderna. (Bauman 2007:103)

Acompanhando as metáforas propostas por Bauman, num mundo pré-moderno podemos identificar as ações humanas com a figura do guarda-caça (cuja lógica e tarefa seriam a preservação de um “equilíbrio natural”, desmontando as interferências humanas). Por seu turno, a atitude do jardineiro se ajusta melhor como metáfora e prática da visão moderna: o jardineiro presume que seu serviço determina certa ordem do mundo. Os jardineiros são construtores de utopias, projetam sobre o mundo a imagem

ideal

que

criam

subjetivamente.

Segundo

Bauman, na contemporaneidade estes símbolos cederam espaço à figura do caçador:


Se hoje se ouvem expressões como “a morte da utopia”, “o fim da utopia” ou “o desvanecimento da imaginação utópica”, borrifadas sobre debates contemporâneos de forma suficientemente densa para se enraizarem no senso comum e assim serem tomadas como autoevidentes, é porque hoje a postura do jardineiro está cedendo vez à do caçador. Diferentemente dos dois tipos que prevaleceram antes do início do seu mandato, o caçador não dá a menor importância ao “equilíbrio” geral “das coisas”, seja ele “natural” ou planejado e maquinado. (Bauman 2007:104-105)

Assim, o discurso ideológico do capitalismo global que estimula a competição, o individualismo e uma lógica de consumo, destruição e descarte - noções que constituem a figura do caçador, enquanto metáfora -, procura invalidar, impedir a constituição e a emergência de práticas

e

dominação

posturas em

que

escala

ameacem

planetária.

o O

exercício

de

guarda-caças

(encarnação das lógicas de um mundo encantado, prémoderno, mítico) e o jardineiro (compreensão de uma subjetividade que opera com uma razão fluída, não estanque, projetando ideais sobre “o mundo real”) são sufocados pela proliferação de caçadores (materialização e perpetuação de uma lógica predatória que atua numa paisagem

natural

convertida

em

mercadoria,

transformada em coisas a serem consumidas, caçadas). Ao analisar os modos como o escritor Vicente Franz Cecim confronta a ideologia do capital e reinventa e propõe em sua literatura formas libertárias e utópicas de


relacionamento com o mundo natural e entre os homens, trabalharemos com a idéia de que a ideologia perpassa as diversas instâncias da vida social, permeando diversos campos (artes, filosofia, direito, política, economia, etc.), sendo sempre um discurso proferido a partir de um lugar, um discurso localizado e comprometido com determinado

tempo,

espaço,

civilização,

sociedade,

classe, etc. Deste modo, podemos entender a ideologia como uma dinâmica da vida dos indivíduos e das sociedades

e

grupos

humanos

a

ideologia

se

configurando como uma presença matreira, sorrateira. O reconhecimento da ideologia como um discurso localizado nos ajuda a perceber as contradições, as lutas, os conflitos sociais, os embates ideológicos. Ou seja, permite a compreensão da existência de uma arena social, um campo de forças pontuado por contraposições entre variados sujeitos e projetos (de classe, de sociedade, de civilização) – assim impossibilita o jogo de apagamento das diferenças em nome de uma suposta identidade universal. A discussão do conceito de ideologia, dentro deste quadro conceitual, ganha outra dimensão, se torna mais fértil se acrescentarmos a noção de Weltanschauung (visão de mundo).


Esta noção pode auxiliar no esclarecimento das diferenças, do confronto e do jogo de forças que se realiza entre

a

literatura

de

Vicente

Franz

Cecim

(e

os

posicionamentos estéticos e políticos do autor) e a mentalidade e valores hegemônicos do capitalismo global – a afirmação do racionalismo, a relação de dominação da natureza, o desencanto do mundo, etc. Focalizaremos os lances deste embate em duas frentes (fronts): nas palavras do manifesto Curau e na construção poética de Ó Serdespanto. O campo de batalha que se apresenta é habitado por um escritor e a invenção de sua literatura contra valores e

representações

(re)produzidas

e

impostas

pelo

capitalismo e sua visão de mundo hegemônica, imperial. Depois desta deriva teórica, podemos iniciar à análise do manifesto, para em seguida realizar a interpretação da ficção poética. A frase de abertura do manifesto já expõe o

tom

de

confronto:

“Vítimas

de

uma

sociedade

violentamente gerada pelos mais evidentes padrões de colonização, nossas chances de mudá-la começam na visualização da face oculta de quem nos fez isso”4. Cecim

inicia

sua

campanha

(para

além

aproximação do mundo da publicidade, lembremos as

da


reverberações militares da palavra) identificando as presenças, os atores do embate entre sociedades e mentalidades (povos invasores VS. povos invadidos). De um lado, os agentes da invasão colonial. De outro, os sujeitos mantidos sob a égide dos valores de outrem, mantidos sob a vigilância constante dos aparelhos repressivos da invasão. Vicente Franz Cecim tem a consciência de que a região amazônica possui um antigo histórico de invasões e domínio. O processo de invasão e ocupação da floresta é assim descrito por Darcy Ribeiro: O delta do Amazonas constitui uma das áreas de mais antiga ocupação européia no Brasil. Já nos primeiros anos do século XVII ali se instalaram soldados e colonos portugueses, inicialmente para expulsar franceses, ingleses e holandeses que disputavam seu domínio, depois como núcleos de ocupação permanente. Esses núcleos encontrariam a base econômica na exploração de produtos florestais (...) que tinham mercado certo na Europa e podiam ser colhidos, elaborados e transportados com o concurso da mão de obra indígena, farta e acessível naqueles primeiros tempos. Estas condições marcariam o desenvolvimento da colonização da Amazônia dentro dos estreitos limites da economia mercantil extrativista. (Ribeiro 1977:21)

De acordo com Cecim, é preciso perceber a face oculta dos agentes da colonização: a visualização dos sujeitos da invasão colonial, o escrutínio da questão da colonização e seus

dispositivos

de

violência

aparecem

como

possibilidade para a mudança, possibilidade para a invenção de novos arranjos sociais.


Segundo Cecim, esta visualização precisa retroceder e se espraiar por diversas direções, começando por enterrar o mito que propaga a falência do ocidente cartesiano, racional. Assim o autor nos escreve: Historicamente, a História vista com outro olho, não essa de a prioris infalíveis, mas uma de navegações freqüentemente sem leme e em rumo incerto, historicamente, a falência do Ocidente culto instituído, aristotélico e cartesiano, pragmático enfim, tem sido uma crença estúpida, contagiosa e exportada para os quatro cantos magros do mundo, num dos quais nos incluímos, embora devamos estar solidariamente em todos eles: uma crença que afirma que só os dias despertos existem, sendo todo o resto fantasma, isto é: a parte dos sonhos. Aí se instala o reduto central da opressão, desse Ocidente auto-suficiente e, em decorrência, rancoroso, reduto que as nossas confrontações libertárias com o colonialismo devem atacar cada vez mais.5

O alvo dos ataques (“confrontações libertárias”) é preciso: o colonialismo (o capitalismo) e a rancorosa visão de mundo que lhe sustenta – a crença férrea na noção de razão e progresso: “a parte desperta”. A ideologia do capital oprime e busca inviabilizar a invenção e o sonho de

outros

arranjos

sociais,

de

outras

formas

de

desenvolvimento humano, procurando impedir, tolher as possibilidades de transformação do real a partir de outras visões, de registros diversos da realidade. A visão de mundo capitalista busca obstruir e mitigar imaginários rebeldes e combativos que busquem a realização de um projeto diverso do desenho capitalista para o mundo e


para os povos. Vicente Franz Cecim reconhece o embate que se desenrola nas franjas do projeto racionalista e sabe que neste jogo de discursos sobre o real é preciso tomar de assalto as instâncias criadoras de novas realidades, as plataformas instituidoras do real. Assim o imaginário se configura como instrumento de mobilização e de reconfiguração da realidade. Para Cecim, o imaginário traduz a possibilidade da reinvenção e da deserção da imagem imposta à região Amazônica pela visão hegemônica do capitalismo. Cecim sabe que o real é sensível, fluído, móvel, passível de remodelagens constantes: “Mas nós, aqui, entre peixes, sonhos

e

homens,

nesta

Amazônia

em

transe

permanente, sabemos, ou deveríamos saber, que é preciso tocar o coração de Aquiles do real, ali onde ele é sensível e impaciente espera de um acontecimento total que o transfigure”6. A literatura e o imaginário podem auxiliar no processo de transfiguração do real se forem tomados como instrumentos mobilizadores da invenção e da liberdade. A literatura e imaginário se convertem em elementos preciosos no confronto entre a visão de mundo capitalista e a visão de mundo posta em questão por


Cecim e sua prosa delirante. A literatura cria (e se move por) espaços fraturados da realidade, se insinuando e se locomovendo através de regiões obscuras do cotidiano. Neste movimento, Cecim afirma que a literatura suscita o terror e o receio dos sujeitos que parasitam as instâncias de poder da ordem estabelecida: a literatura e o imaginário vão construindo fábulas rebeldes. Estas fábulas provocam o terror ocidental perante as dimensões imaginárias do ser humano, o terror ante a possibilidade da mudança. Cecim lança questões a respeito desta fobia para em seguida respondê-las: Onde se oculta, e como se dissimula, o medo ocidental? Sua recusa sistemática da dimensão imaginária humana? (...) Esse medo, vulnerável a um olhar sem véus, revela-se: trata-se, quando observado sem reservas nem admiração inocente, de uma engrenagem que, atualmente, e cada vez mais, de repetição em repetição histórica, gira ao contrário: se antes permitiu ilusões reconfortantes, hoje, ela despedaça o próprio ocidental – e faz dele sua vítima mais imediata, não esqueçamos isso – carente como ser dado ao mundo social – apesar de uma civilização de bem-estar material – e como projeto de ser – nunca totalmente alienável – na destinação secreta que o põe, no ritual das ontologias indiferentes às deformações da História, e apesar das consolações religiosas do Ocidente, desabrigado num cemitério de ossadas morais, estéticas, políticas – estas, também um fêmur roído até a fronteira das cerimônias sociais já sem sentido. O medo do Ocidente culto é o medo do Ocidente às revoluções. De qualquer espécie. Poéticas ou políticas, ou à aliança dessas duas formas de luta. O medo do Ocidente às fábulas do imaginário rebelde é a mais evidente declaração de desprezo desse Ocidente pela realidade.7


Vicente Franz Cecim entende que o capitalismo e seu projeto

racionalista

se

desenvolvem

a

partir

de

dispositivos de alienação da realidade e de mecanismos de domínio e controle social. A ideologia do capital legitima a opressão e procura apaziguar as diferenças num processo que busca ocultar as contradições e divergências entre as visões de mundo, entre classes sociais

distintas,

entre

variados

projetos

de

desenvolvimento dos seres humanos e das civilizações, entre

mentalidades,

unificando-as

num

discurso

hegemônico, dominante – reunidas num império abstrato e bruto, transnacional. Em sua busca por totalidade, em sua ânsia de estender a dominação, o sistema capitalista opera distorções e projeta visões supostamente límpidas e neutras sobre o real, criando a imagem de um mundo em equilíbrio, sem contrastes. Vicente Franz Cecim acusa esse movimento como negação do real: (...) esse Ocidente nega o real, sob o álibi de recusar o sonho em nome de uma realidade que, de fato, é vazia e inexistente, porque mero artifício engenhoso engendrador de uma forma de dominação que se quer estável e permanente, certeza e reafirmação da manutenção perpétua de um poder. O medo ocidental culto é o medo dos imperialismos da Razão, e sua base econômica e totemicamente moral, às possibilidades históricas e estéticas da África, da Ásia, do Oriente Médio e da América Latina.8


O autor reconhece que os mecanismos de reprodução da

ordem

“manutenção

social

capitalista,

perpétua

de

os um

dispositivos poder”

de

estão

intrinsecamente relacionados com as produções de uma determinada visão de mundo a respeito da realidade. O capital opera por meio da geração de conceitos e formas específicas de apreensão da realidade, fazendo com que as possibilidades de criação de múltiplos discursos (as possibilidades históricas e estéticas da África, da Ásia, do Oriente Médio e da América Latina de que fala o autor) se reduzam a uma esfera prevista e, de alguma maneira, determinada pelos centros de poder do imperialismo ocidental (particularmente euro-americano). O sistema capitalista opera uma lógica que se espraia nas diversas instâncias da vida social ao redor do planeta. Esta diluição, este movimento de criação, circulação e infiltração da visão de mundo capitalista nos mais variados rincões do mundo se processa a partir de um sem número de plataformas políticas, econômicas, culturais, etc. De acordo com Vicente Franz Cecim, o engano dos movimentos de confrontação com a lógica do capital reside na desatenção em relação às estratégias de dominação perpetradas pelo capitalismo ventiladas e difundidas a partir da Cultura:


O equívoco das lutas anti-imperialistas circunscritas à confrontação política e econômica é, tem sido, ignorar que o projeto de permanência do imperialismo ocidental, projeto liderado pelos imperialismos europeu e norte-americano, inclui estratégias mais vastas e invisíveis, que utilizam a cultura - a Cultura, exprime melhor - e todas as suas ramificações, previamente envenenadas com um curare entorpecedor das culturas do Terceiro Mundo, tolhendo na nascente sua afluência e sua chance de uma ação nativa libertadora.9

Tendo em mente o projeto ideológico de manutenção da ordem estabelecida pelo capitalismo, o projeto de dominação

e

imposição

de

uma

visão

de

mundo

apaziguadora e alienante a partir dos fluxos culturais, o autor afirma que a criação de uma literatura construída com as (e também criadora das) fábulas do imaginário rebelde

passa

pela

compreensão

deste

processo

fraudulento, destes mecanismos da farsa. É preciso um imaginário consciente do jogo de forças entre os poderes do capital (e do império da razão) e as energias da imaginação. Cecim nos diz, através do manifesto, que “Será compreendendo que, do outro lado do Atlântico e mais acima dos Trópicos, se encena uma farsa, essa, que regiões de fome e de visões como a Amazônia terão direito, um dia, fatalmente, a um solo próprio e à convivência com suas raízes.”10 Para o autor é de fundamental importância neste embate entre as hordas da razão e do imaginário a aproximação


dos sujeitos humanos com as fontes culturais da própria região,

a

conexão

socialmente Amazônia.

com

as

compartilhadas A

possibilidade

experiências pelos de

vividas

habitantes libertação

e

e da de

autodeterminação dos povos da região amazônica reside na luta contra as imagens impostas, forjadas pelos discursos dominantes. Segundo Cecim, “só a fábula insurrecta

cravada

na

vida

resgatará

estética

e

historicamente a Amazônia dessa miragem: o padrão colonizador imposto a ela. E, também, da falsa existência que tem sido a nossa até então.”11 Para

este

escritor,

a

rebelião

da

literatura

funcionará como um contra-discurso à ideologia do capital se estiver intimamente associada às demandas por justiça e liberdade. A ruína do imperialismo da razão será produzida por um imaginário que não se furte ao confronto contra as torrentes discursivas e culturais dominantes. Se a razão moderna busca subordinar o poético ao verossímil e procura submeter ao princípio de realidade a escritura poética12, Cecim se firma na crença de que a poesia é o lugar da insubordinação, da invenção, da prática ontológica e política de afirmação de fábulas rebeldes.


Para Cecim, a imagem da Amazônia imposta pelo padrão colonizador será estilhaçada por um processo cultural que seja consciente do conjunto de estruturas que formam, sustentam e possibilitam a execução deste mesmo padrão. Juntamente à consciência das estruturas que formam o discurso dominante sobre a região e os povos da Amazônia, Cecim sabe que é preciso identificar, localizar as bases para engendrar um projeto autêntico de

independência

histórica

e

estética,

política

e

econômica - que se encaminhe para além das franjas do império da razão e do capital. O autor sabe que a identificação/determinação destas bases é problemática e, então, interroga-nos sobre a possibilidade de encontrar este “chão autêntico”: “Mas onde está esse subsolo real, o autêntico chão que servirá de base a essa independência histórica e estética, assim exigida com ênfase? Enquanto ignorarmos isso, esse solo fértil, nem ênfase nem Cultura nos levarão um passo adiante.”13 De acordo com o escritor, para a identificação do “solo fértil” que permitirá a independência da região amazônica e para a construção de um projeto que fuja à órbita do sistema capitalista e se contraponha à sua visão de mundo

é

necessário

realizar

o

despojamento

dos

discursos e imagens impostas à Amazônia pelo capital.


É preciso realizar um sacrifício: “(...) é inevitável que, para saber, será preciso um sacrifício cultural: o sacrifício dessa cultura a que nos habituaram e nos habituamos, será preciso romper tabus, negar-se a velhos cultos.”14 O

manifesto

de

Vicente Franz

Cecim

expõe

a

necessidade inevitável e vital de modificar e renovar os hábitos, encontrar/inventar as brechas para a mudança social: transformar a literatura numa ferramenta de reinvenção da vida, num campo para a imaginação utópica de novos regimes sociais, regimes dialógicos e distantes da hierarquia imposta e sustentada por valores forjados pelo olhar estrangeiro15. De acordo com Cecim, a consciência deste processo faz com que o real se converta num espaço aberto, num laboratório permanente para as práticas de reinvenção dos arranjos sociais. O escritor nos informa que é necessário desconfiar das suposições e determinações a respeito da realidade: “(...) ao suspeitar desse real manifesto em torno de nós, todas as possibilidades de modificá-lo se escancaram. Esse real à nossa

volta

é,

na

Amazônia,

socialmente,

a

transplantação da realidade forjada pela cultura do dominador, herança a que nos forçam.”16


Para lançar fora esta herança, segundo o autor do manifesto Curau, é preciso realizar

a tradução e

apreensão da realidade amazônica numa linguagem própria, construída e calcada no imaginário da região. De acordo com Cecim, a importância e a eficácia do imaginário nesta batalha contra o capital e contra o império da razão aumentam, pois o autor reconhece a impossibilidade de travar este embate utilizando as mesmas armas do colonizador: Ante a constatação inevitável da nossa carência material em resistir a esse colonizador com armas idênticas às dele, porque somos, irmãos, muito pobres, e ante a constatação de que isso seria repetir seus erros e reafirmá-los como valor – quando o nosso projeto é uma reinvenção cultural, uma revalorização da vida – ante essas constatações, e a par de um esforço de independência política e econômica, não temos o direito de negar-nos a nossa arma mais eficaz, imediatamente: o Imaginário, esse poder de que os nossos dominadores seculares, exaustos de sonhar, vêm abrindo mão.17

O confronto com a lógica do capitalismo contemporâneo, segundo Vicente Franz Cecim, deve vincular as formas de lutas políticas e poéticas. Para o autor, o imaginário e o político, faces de um movimento comum de invenção e de auto-regulação do território amazônico, se traduzem na perspectiva lúdica de um jogo: Juntamente com a mobilização de uma operação política, então, é preciso pôr em movimento também uma operação mágica. Esta: para além do real que me é dado pelo mundo, e, sobretudo, se esse real está deformado pelas marcas de uma dominação alheia a mim, restame o recurso de um jogo. E nesse jogo descubro e me repito, até o


último alento: A História, a minha história, só terá realidade quando eu me apossar dela pelo meu imaginário de homem e região.18

Vicente Franz Cecim afirma a existência de uma violenta riqueza vital presente no imaginário da região amazônica e sabe que a aproximação deste acervo desdobra a consciência necessária para a negação da noção

de

fatalidade

histórica,

gera

a

percepção

fundamental para a negação da imagem imposta pelo padrão

colonizador.

Se

o

Ocidente

escolheu

como

tradição a Grécia lógica dos “pós-pré-socráticos”, Cecim se

orienta

pela

aproximação/reinvenção

da

região

amazônica e seu imaginário e, num canibalismo cultural, lança mão de heranças libertárias que se oponham, resistam ao império da razão ocidental. Assim, na região de Andara podem conviver citações do zen, filósofos alógicos, místicos, animais míticos, etc. Essas aflorações de canibalismo cultural se misturam às referências regionais que por sua vez são interpretadas num painel mitológico pessoal, subjetivo, próprio do escritor. Só assim, segundo o autor, é possível “fazer a região valer como alegoria do real inteiro”19. Porém Vicente Franz Cecim alerta-nos sobre os usos alienantes da cultura popular por parte de alguns criadores “cultos”, sujeitos praticantes de um regionalismo superficial que


se apoia em gestos repetidores da apropriação da cultura da região numa chave, num padrão dominante, do colonizador. Por isso, declara: Nosso nascimento como região depende de uma morte? Sim. Da nossa morte como miragem de região. E, por isso, e para isso, então, temos: Posição: contra o regionalismo e ao mesmo tempo por uma revolução de região, só o mito e o delírio poderão alguma coisa. E todos os sentidos advertidos contra os engodos de uma História feita contra nós, por dominadores contra dominados. (...) Nossa História só terá realidade quando nosso imaginário a refizer, a nosso favor.20

Vicente Franz Cecim, com o manifesto Curau, expõe as perspectivas para uma literatura que rearticule as fábulas do imaginário rebelde; uma literatura que se comprometa com a criação de uma região poética e politicamente auto-determinada; uma literatura capaz de reorientar o senso de realidade e produzir homens críticos, lúcidos e míticos; uma literatura que se desdobra no interior e na invenção dos territórios da região amazônica. No manifesto Curau, Cecim defende que a literatura se rearranja como um mecanismo de percepção do discurso ideológico da dominação e torna possível flagrar os homens em “delito contra a Noite”. A idéia de literatura contida no manifesto permite perceber a operação ideológica de perpetuação do poder centralizado e opressor do capitalismo: a literatura possibilita


iluminações cósmicas e mágicas para enxergar as brechas, fraturas, fissuras no corpo do império da razão. Vicente Franz Cecim expõe claramente a continuidade das idéias apresentadas no manifesto: A essência das exigências que fiz a mim mesmo, antes de fazê-las a outros, contidas no primeiro Manifesto, continua intocável: trata-se, ainda, e disso se tratará sempre, da expansão do imaginário amazônico. Tem sido ele, o Imaginário da região, a minha única companhia na solitária aventura estética e espiritual que é a Viagem a Andara, esse percurso claro-escuro entre as coisas que são e as coisas que não-são, que, tendo se iniciado a partir da hipótese Andara=Amazônia, chegou à inversão dessa hipótese originária, e atingiu o ponto, sem retorno, em que já se dá, atualmente, a formulação: Amazônia=Andara. Pois durante a viagem, Andara cresceu, além de si e além de mim, e se expandiu em região-metáfora da vida ela toda, inteira, da terra ao céu, das serpentes às asas mais vastas, para bem além das coisas que a visão humana já não alcança, e apenas pré-sente, se territorializando como Lugar de Todos os Lugares.21

Feita a análise dos meandros que constituem as afirmações e a visão de mundo de Vicente Franz Cecim no que constitui o texto “Flagrados em delito contra a Noite – manifesto Curau”, podemos, agora, identificar de que maneira a ficção poética de Ó Serdespanto mobiliza o imaginário e articula as posturas e exigências contidas no manifesto. Já de início, Cecim afirma a aproximação entre o sujeito da escritura e o texto, identificando também as relações entre a literatura e o real. Nesta aproximação entre o real e a literatura, entretanto, Cecim não busca aprisionar a força e a capacidade criadora da


linguagem poética, nem se fia na expectativa de uma literatura como mera operação de cópia, de tradução exata da realidade. O autor afirma com lucidez as forças próprias

da

literatura

e

do

imaginário,

suas

transgressões fundadoras e inventivas, ao mesmo tempo em que sabe que estas forças, este movimento não se enclausura num mundo isolado, plenamente descolado do real: (...) alguém vive, alguém escreve / Esse é o ponto de partida, o ponto de chegada. (...) A vida. E, nela, alguém, que escreve. / E o que escreve, o Livro, é a Ponte, entre a vida-lá / e o vivendo a vida aqui, em mim: alguém, que escreve. / O Livro é a vida? Não, o Livro não é a vida. É a / outra vida. / Mas sendo a outra vida é / a vida num rumor que se arrasta paralelo, ao lado dela. (Cecim 2006:9-10)

Logo em seguida, Cecim lança uma interrogação a respeito da utilidade da literatura e das motivações para o exercício de criação poética do escritor e declara poeticamente um uso ontológico e político para a literatura: “Para que serve então a vida-escrita? / - É um instrumento, para ver, tentar abrir, dobra a / dobra, / insistindo, / a vida real / E por que alguém escreve? / Para isso, o que foi dito acima, tentar abrir, / dobra a dobra, insistindo”. (Cecim 2006:10) A escritura poética de Ó Serdespanto busca se revestir de um caráter libertador, utópico. Cecim


reconhece e pratica uma literatura capaz de mobilizar mentalidades e aguçar a percepção a respeito das deformações e opressões que o discurso ideológico do capital impõe. A literatura, esta “vida-escrita”, se traduz como dispositivo de percepção crítica do mundo, como um discurso de aproximação da realidade, numa postura não-linear, não-cartesiana, não ancorada no Logos, mas pesquisando as obscuras e férteis regiões do delírio e do devaneio. Nesta espécie de prólogo, de declaração de princípios, Cecim se aproxima do horizonte de algumas declarações

feitas

em

entrevistas.

Vejamos

esta

afirmação: Eu projeto à minha frente uma Utopia libertária. Eu sonho com uma literatura além da literatura, como Nietzsche sonhava com um homem além do homem. Por isso prenuncio o advento de uma Literatura Fantasma. (...) A literatura praticada como ontologia, a palavra praticada como vida. Sonho com esse algo que terá poderes mágicos, imensos poderes, capazes de transpassar as Aparências do Real.22

A criação poética de Vicente Franz Cecim se lança como

um

monstro

mítico

gerador

de

fábulas,

se

alimentando das “aparências do Real”, mas indo além. Praticando a literatura como ontologia e a palavra como vida, Cecim realiza uma escritura mágica e inventiva. Andara (a Amazônia), em Ó Serdespanto, recupera a dimensão de um mundo encantado, onírico, prenhe de


significados cósmicos. A fabulação reverbera a busca ontológica

do

ser

humano

e

suas

permanentes

indagações a respeito do estatuto do universo, da relação entre os seres, da possibilidade do conhecimento, dos limites da razão, das reservas imateriais e simbólicas da humanidade. Com Ó Serdespanto Cecim confunde, embaralha, justapõe

diversas

instâncias

e

discursos

sobre

a

realidade numa mesma interrogação; Ó Serdespanto reverbera a indagação filosófica numa literatura onírica. O próprio título do livro - e do personagem do relato da fábula - aponta para o conceito gerado na filosofia grega, o Thaumatzein. A investigação filosófica se inicia com o Thaumatzein – o ato de olhar, de admirar e se espantar com o mundo. O

início

encaminha

da

rumo

jornada às

em

entranhas

Ó

Serdespanto da

invenção

se de

significados, numa voragem de sentidos imemoriais que serão contados por diversos entes (árvores, irmã-ave, pássaros) ao longo do caminho, como num sonho, num filme de devaneio. O espanto com o mundo, a relação com as múltiplas variáveis de significados do real começa a tomar forma. A escritura de Ó Serdespanto é permeada


por visões, viagens, vertigens. A história se insinua em sonhos: – Consciente de que a vida é sonho, na horizontal, / paralelo ao horizonte, / quando já ia anoitedescendo tudo outra vez pela linha do horizonte, então ouvi a minha respiração de leve / alento erguer um pássaro para o alto. / E era eu mesmo me sendo menos, para ver do alto / a minha vida. E com asas. (Cecim 2006:14)

O sonho do sujeito lírico da escritura fabular de Ó Serdespanto começa nestes termos: Toda vez que um homem perde as asas, é isso o / que acontece / O osso Pai o deserda. / Ouçam, entendam, foi o que aconteceu àquele / homem / Aquele homem, então / Sem asas, ele vinha, já que as perdera, e vindo pelo caminho trazia os braços atados por uma corda a / serpente corda ao corpo / Viesse ele vindo assim por caminhos de terra pois / já não tinha asas para os caminhos do ar, / entendem? / Entenderão. (Cecim 2006:23)

Numa espécie de deglutição do mito bíblico de queda do paraíso, Cecim cria a situação fabular de homens que perdem as asas – a responsabilidade sobre a perda das asas não fica clara, não se pode estabelecer uma relação entre causa e efeito, o que se sabe, ou melhor, o que se conta (o sonho de “Serdespanto”, a fábula que lemos) é a história deste homem por “caminhos de terra”. Num registro que procura confundir as fronteiras entre o autor e o sujeito lírico/personagem, Cecim inicia a história deste homem por caminhos de terra.


Ou seja, enfoca a trajetória no deserto do real deste ser que era, a pouco, habitante de mundos, plataformas cósmicas, antigo viajante de “caminhos do ar”. Cecim vai entrecruzando, em sua narrativa poética, diversas

instâncias

espaciais

e

temporais.

Assim,

simultaneamente, o sonho do sujeito lírico se traduz, para nós, como fábula. E a fábula vai se desdobrando e se reinventando pelo caminho: Serdespanto está ouvindo suavemente a voz da sua irmã-ave em sonhos. / Ah irmã das dormências / Que diriam vocês de ter uma irmã assim? / Mas de repente estremece, se resistia, uma última / resistência foi vencida. Pois o que sua irmã-ave quer é / libertá-lo da pedra dura da razão / ou enlouquecê-lo / É? / Sim. Já que no sonho ela o faria ver agora uma grande árvore falando. / E no sonho que ele tem, / e na fábula que vocês estão lendo, / depois de ter visto aquele homem vindo de mãos / atadas no corpo, / ele veria essa árvore / e veria que quem contava a história do homem que / vinha no caminho / era uma árvore / e a contava, a árvore, a uns homens / como eu a estou contando a vocês. (Cecim 2006:30-31)

Cabe destacar neste trecho a maneira como se insinua uma relação dialógica com a natureza e como o autor se posiciona por uma imaginação que se liberte da “pedra dura da razão”. Ao contrário da visão de mundo perpetrada pelo capitalismo, onde as florestas são vistas como “reservas de madeira”, em Ó Serdespanto a floresta recupera seu poder mágico como espaço de sabedoria. Se para a visão de mundo capitalista “a natureza, ainda


quando a ambição humana se volta contra ela, continua a ser um objeto” (Dean 1996:22), na fábula utópica de Cecim a árvore conta uma fábula e a natureza aparece como uma entidade real que se relaciona com o homem. Assim,

em

Ó

Serdespanto,

Cecim

propõe

uma

reorientação do comportamento humano em relação ao mundo natural. Em sua prosa delirante, a Amazônia recupera as dimensões míticas e a imagem de terra-mãe (Terra Mater) pode retornar. Cecim indica aos leitores claramente que a fábula é “para fazê-los sonhar”, completando: “diz-se disso, também: literatura” (Cecim 2006:33). No movimento seguinte, continuando a história professada pela boca da árvore, Cecim registra: Andara ah / Onde mais poderia se ver uma árvore como aquela, / de braços longos, humanos? / Pois era hora do crepúsculo pois as sombras se / instalando entre nós, misturando mais o real e o / sonho. Diz-se disso: loucura de estar vivo / Quem agora passasse por ali, olhando veria / aqueles homens sentados envolvidos pelos braços longos da / árvore, que como filhos ouviam a sua voz de galhos. (Cecim 2006:34)

A escritura de Cecim realiza a inversão mágica de uma lógica de destruição. Se poucas décadas atrás, na região amazônica, a maneira mais simples de provar que a terra se destinava ao uso produtivo era derrubando a floresta, a cena poética criada por Cecim reivindica uma aproximação e uma horizontalidade ontológica entre os


homens e a floresta, entre os humanos e os outros seres. Cecim cria uma cena em que os homens se relacionam de modo mais orgânico e intuitivo com o mundo natural. Em Andara, a percepção mítica do ambiente natural se ancora numa compreensão da importância vital, na necessidade ontológica da existência da floresta sagrada, para além de argumentos centrados na espécie humana. Esta visão que informa a escritura poética de Cecim vai ao encontro da consciência de que (...) o avanço da espécie humana funda-se na destruição de florestas que ela está mal equipada para habitar. A preservação de florestas deve, portanto, basear-se em algo além do argumento do autointeresse cultural, ambiental ou econômico; talvez em uma concepção de interesse que apenas se poderia definir por um autoconhecimento mais perspicaz e uma compreensão mais profunda e filosófica do mundo natural. (Dean 1996:24)

Diferentemente do sujeito moderno, ancorado em sua

racionalidade,

perambulando

por

um

mundo

despossuído de significados cósmicos, os homens da fábula, os homens em Andara ouvem a voz professada pela boca sagrada e mágica da árvore, a realidade se transmuta num campo aberto para a inserção de significados cósmicos: “– Homem sem ternura, então diria a árvore. / E prosseguisse: / - Era assim que mais tarde o chamariam aqueles / que o veriam passar, / quando o dia já tivesse nascido. Pois durante toda / a noite ele


teria andado apenas pelos desertos que / trazia dentro de si, e ninguém o viu”. (Cecim 2006:35) Em Andara, nesta fábula contada/sonhada através do espanto, a transcendência se irmana numa imanência radical. As relações entre os diversos seres e entre o acima

(sobrenatural/transcendente)

e

o

abaixo

(natural/imanente) se dão a partir de envolvimentos mútuos, fluxos dialógicos. Cecim, numa citação de Hermes Trimegisto - deus da escrita e da magia -, identifica a igualdade entre o que se processa no “Alto” e aqui se passa “Embaixo”. Com a invenção de Andara, Cecim busca realizar a fusão entre o mundo natural e o sobrenatural. Porém esse processo acontece de maneira gradativa, com a invenção de porções e mais porções de terrenos mágicos, com a caminhada por trilhas e trilhas na floresta sagrada em seus movimentos orgânicos. Cortando a fábula contada pela árvore, os homens se lançam em hipóteses de céus humanos: - Havia um deus nas nuvens olhando isso, / enquanto tudo isso acontecia? / Perguntasse um dos homens /- Não, dizia um outro, pois se aquele homem que / chegara ou animal ou espírito, ele próprio talvez fosse o / deus / - Ou era um anjo? / se perguntavam, misturando suas três vozes / os homens que como filhos ouviam. E esqueciam a voz da árvore, / só ouvindo as suas. Subiam aos céus em hipóteses humanas (...) A impaciente árvore. E agora ela dizendo: / - Ouçam as histórias da terra, esqueçam os céus / - Ouçam, ouçam: as raízes humanas (...) Se diz que desde então aquela árvore nunca mais falou. Árvore sem boca. Aparentemente, só árvore outra vez. (Cecim 2006:43)


Vicente Franz Cecim cria uma literatura propiciadora de desnudamentos do comportamento humano em relação ao mundo natural. Através da fábula contada pela árvore e do registro da reação humana de procurar uma transcendência fechada, sem contato com o mundo orgânico, Cecim insinua o processo de esvaziamento de significados

do

mundo

natural

operado

por

uma

racionalidade intransigente. Max Weber, ao analisar este processo, escreveu que A intelectualização e a racionalização crescentes não equivalem, portanto, a um conhecimento geral crescente acerca das condições em que vivemos. Significam, antes, que sabemos ou acreditamos que, a qualquer instante, poderíamos, bastando que o quiséssemos, provar que não existe, em princípio, nenhum poder misterioso e imprevisível que interfira com o curso de nossa vida; em uma palavra, que podemos dominar tudo, por meio da previsão. Equivale isso a despojar de magia o mundo. (...) O destino de nosso tempo, que se caracteriza pela racionalização, pela intelectualização e, sobretudo, pelo “desencantamento do mundo” levou os homens a banirem da vida pública os valores supremos e mais sublimes. (...) Só nos pequenos círculos comunitários, no contato de homem a homem, em pianíssimo, se encontra algo que poderia corresponder ao pneuma profético que abrasava comunidades antigas e as mantinha solidárias. (Weber 1993:30 e 51 – grifos do original)

Cecim busca, em Ó Serdespanto, a confecção de cantos que traduzam o trânsito entre o ambiente físico e o espaço onírico e rearticule as possibilidades estéticas e políticas de um imaginário permeado por referências e invenções de um território sagrado (a floresta amazônica). Empenhado na criação de uma literatura que atue no sentido de recompor os significados cósmicos do mundo,


que recrie os significados entranhados nos espaços da vida orgânica, em franca oposição à racionalidade hermética que configura e sustenta a visão de mundo do capitalismo global, Vicente Franz Cecim elabora uma poética que reoriente os comportamentos humanos em relação com a natureza e com os outros homens. Na composição estética de Ó Serdespanto, a terra recupera a imagem materna. Cabe ao homem se permitir um contato pacífico e fecundo com a floresta: “Canta a mãe de Serdespanto do fundo da terra, a / úmida terra, seus rios submersos, / embrulhando-se contra o frio do mundo em seus / lençóis de água, / no fundo da casa / Ouviremos essa canto?” (Cecim 2006:85) O

sujeito

lírico

de

Ó

serdespanto,

depois

de

caminhadas visionárias pelo território do sonho e pelo deserto do real, depois de vertigens e contatos com espíritos animais e vidências, depois de ouvir as canções e fábulas orgânicas e cósmicas se desfaz e retorna ao pó. Cecim, neste momento da sua escritura, aventa a hipótese do humanovegetal: “Das cinzas, ele quisesse renascer um novo ser, a carne, o livro / Canta o grão, o que restou de Serdespanto. Ouçam, ouçam / pois se dando o escandaloso acontecimento de / um homem renascendo em árvore, diz-se disso: O humanovegetal.” (Cecim 2006:128-129)


Esta configuração de um corpo simbiótico, mítico, repercute a idéia do autor a respeito das extremas e íntimas conexões entre o humano e os diversos seres e ambientes do mundo natural. Vicente Franz Cecim tece, numa

operação

lúdica

e

crítica,

uma

narrativa

fragmentada, uma história de sonhos, atravessada por mitologias.

Devorador

e

ampliador

de

significados,

alquimista de um verbo que delira, Cecim realiza, em Ó Serdespanto, uma escritura utópica, amiga das visões e das vertigens. A escrita poética de Ó Serdespanto ventila e recria as posições do autor por uma luta permanente contra a ideologia do capital e contra a opressão de uma racionalidade perpetrada pelos centros de poder do capitalismo global. A literatura de Cecim se empenha na afirmação e na construção da liberdade histórica e estética, da independência política e poética da região (mítica e concreta) de Andara/Amazônia. A escritura poética de Cecim procura realizar incursões táticas no real para sabotar a lógica que preside o império da razão. As concepções, idéias e práticas políticas e estéticas de Vicente Franz Cecim presentes no texto do manifesto e na

ficção

de

Ó Serdespanto

vão

ao

encontro

diagnóstico realizado pelo físico Fritjof Capra a respeito

do


do estado de coisas na contemporaneidade informada pela visão de mundo do capital: Na sociedade capitalista contemporânea, o valor central – ganhar dinheiro – caminha de mãos dadas com a exaltação do consumo material. Uma corrente infinita de mensagens publicitárias reforça a ilusão das pessoas de que a acumulação de bens materiais é o caminho que leva à felicidade, o próprio objetivo da nossa vida. Os Estados unidos projetam pelo mundo o seu tremendo poder para conservar condições favoráveis à perpetuação e à expansão da produção. O objetivo central do seu gigantesco império – com um poderio militar impressionante, um extensíssimo serviço secreto e posições de predomínio na ciência, na tecnologia, nos meios de comunicação e no mundo artístico – não é de aumentar o território, nem o de promover a liberdade e a democracia, mas o de garantir que o país tenha livre acesso aos recursos naturais do mundo inteiro e que todos os mercados permaneçam abertos aos seus produtos. É assim que a retórica política norte-americana passa rapidamente da noção de “liberdade” para a de “livre comércio” e “mercado livre”. O livre fluxo de bens e capital é identificado com o elevado ideal da liberdade humana, e o consumo material desenfreado é retratado como um direito humano básico – até mesmo, cada vez mais, como uma obrigação ou um dever. (Capra 2002:269)

Vicente Franz Cecim, em Ó Serdespanto, configura as fábulas do imaginário rebelde num regime de criação progressiva e constante de espaços para novos modos de ação no mundo. A literatura amplia as margens do sonho, sendo campo fértil para a radicalização de uma utopia libertária: a fecunda e pacífica reinvenção da relação entre homem e natureza numa chave mítica e mágica. Porém, o autor reconhece que este processo caminha lentamente atravessando obstáculos e entraves, derrubando discursos ideológicos e furando bloqueios


cognitivos de uma percepção embotada por séculos de dominação: “Ah como é lento este aprender a semelhança / entre a pata do animal e o gesto humano”. (Cecim 2006:131) Para Cecim, Andara é uma região mutante, de permanente mudança. No território mítico de Andara, Cecim enxerga a possibilidade de construção de uma nova mentalidade que confronte a prática e o discurso da racionalidade do capitalismo global. Em Andara, a possibilidade do espanto se renova, os ouvidos podem escutar os sussurros de fábulas cósmicas, os olhos podem

se

entregar

ao

mergulho

profundo

e

à

contemplação e contato com as “flores visionárias do ar”. A escritura poética de Cecim se inicia e termina nas andanças pelo espaço vital da floresta sagrada. Andara, a obra aberta de Cecim, é a invenção contínua de uma mitologia e de um imaginário insurrecto calcado na região amazônica e suas sombras. Em Andara, (...) estão recém-nascendo, sempre, os Fantasmas / do nosso imaginário. Os sentidos da mão que toca também / é um fundo velhíssimo, o arcaico, lodo do fundo / de rio da vida imensa, onde germinam materiais, mas / como matérias, que ainda estão fazendo a viagem entre a / vida visível e a vida invisível, / e vice-versa? Os percursos de retorno à Origem Invisível?. (Cecim 2006:278-279)


Vicente Franz Cecim compõe, nas duas textualidades examinadas neste ensaio, um vasto painel de idéias e visões de um imaginário rebelde. O autor pratica uma escritura que quer a fusão do natural e do sobrenatural; quer a relação dialógica entre os humanos e os outros seres; busca o contato íntimo e cósmico do homem com a sua região, sua territorialidade; uma literatura que se desdobra nas geografias interiores e na visão da vastidão de fábulas utópicas e libertárias que ainda aguardam a invenção e a partilha no coração do real. Com o manifesto Curau e Ó Serdespanto Vicente Franz Cecim permanece habitando a fronteira entre o visível e o invisível, entre o ser social e o ser mítico. Cecim vai gradualmente compondo e recompondo a imagem de Andara e da Amazônia numa filigrana onírica, mágica, única.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BAUMAN, Zygmunt. A utopia na era da incerteza in Tempos líquidos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2007.

CAPRA, Fritjof. As conexões ocultas: ciência para uma vida sustentável. São Paulo: Cultrix, 2002.

CECIM, Vicente Franz. Ó Serdespanto. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2006.

CHAUÍ, Marilena. Cultura e Democracia: o discurso competente e outras falas. São Paulo: Cortez editora, 1989.

DEAN, Warren. A ferro e fogo: a história da devastação da Mata Atlântica brasileira. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.

RIBEIRO, Darcy. Os índios e a civilização. Petrópolis: Editora Vozes, 1977.

WEBER, Max. Ciência e Política: duas vocações. São Paulo: Cultrix, 1993.


NOTAS 1

Texto disponível em:

http://cecimvozesdeandara.blogspot.com/search?update d-min=2008-01-01T00%3A00%3A00-08%3A00&updatedmax=2009-01-01T00%3A00%3A00-08%3A00&maxresults=23 Acesso em 25/01/2010 2

Texto disponível em:

http://cecimvozesdeandara.blogspot.com/2009/06/entr evista-vicente-franz-cecim-o.html Acesso em 25/01/2010 3

cf. MANNHEIM, K. Ideologia e Utopia. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1982. 4

Flagrados em delito contra noite – manifesto Curau. Texto disponível em: http://cecimvozesdeandara.blogspot.com/search?update d-max=2009-07-14T05%3A28%3A00-07%3A00&maxresults=7 Acesso em 25/01/2010 5-11

cf nota 4.

12

cf. LIMA, Luiz Costa. 1989. O Controle do Imaginário: razão e imaginação nos tempos modernos. Rio de Janeiro: Forense Universitária. 13-14

cf. nota 4.


15

Em relação à representação da Amazônia a partir do olhar forasteiro veja-se, por exemplo, o estudo de Klondy Lúcia de Oliveira Agra sobre o livro Amazon Town, de Charles Wagley. Disponível em: http://www.bocc.ubi.pt/pag/agra-klondy-traducaorepresentacao-amazonia.pdf 16-18

19

cf. nota 4.

Texto disponível em:

http://cecimvozesdeandara.blogspot.com/2009_07_01_a rchive.html Acesso em 25/01/2010 20-21

22

cf. nota 4.

cf. nota 2.


Depois de tomar algumas garrafas de uísque blake label

Primeira garrafa: Shakespeare, Pessoa, Blake, Plath. Alguma poesia da experiência: a experiência da poesia. Derrubo copo após copo e vou ruminando, reunindo, revirando, remoendo imagens sobre os poemas e os poetas em questão. Copo após copo e sigo minando os campos seguros da mente, da ordem lúcida: a experiência urgente do poema interrompe as freqüências do cotidiano e lança – como um lança-chamas? – luzes sobre meus movimentos-por-aqui, ou o que chamamos de existência. (r)Existo como um animal estranho em diálogo permanente com tudoaomeuredor, numa conversa com todos e todas: todocorpoquercontato. As palavras dos outros animais estranhos me dizem dos deslocamentos, dos percursos, das sendas, das trilhas na vida: as palavras dos outros me dizem das palavras dos outros: o ouro do outro: a experiência no mundo. Alguma ponte frágil entre eu e tu, via linguagem: nos peitos o poente do sentido e a aurora do significado. Eu e tu. Segunda garrafa: Hamlet se pergunta: “ser ou não ser?”, Pessoa nos diz, grita “não sou nada”. Eu fico perdido entre não ter asas e não saber nadar. A imagem de Montaigne surge como um assombro, como o som de um assobio: ele me diz que fala do que conhece melhor = fala de si. Não sei bem se o caso é de conhecimento. Talvez seja mais pertinente dizer apenas: falar, sem espanto ou milagre, do abismo, de dentro pra fora, do eu, do ego, da pele, dos poros. A poesia (o texto criativo) é a experiência do flerte com o ambiente e com as pessoas, a poesia é o esfregar-se na carcaça do mundo, a poesia é a construção de um canto de pássaro sem pássaro.


Ou um corpoemáquina. O poema, a confissão, a escrita com vida (biografia) é a procura da possibilidade da partilha do sensível. A poesia é incomunicável, a experiência é incomunicável. E deliciosamente e absurdamente o mais delicado contrário: a poesia é a orgia, a comunhão, a participação, o entredois. Terceira garrafa: as visões do rio, o ruído do rio. Ouço tudo que roço, todo som tem pele. Visões da garota que se matou e o poema da garota que se matou. Sidarta quis morrer e ouviu o rio: Ôm, Ôm, Ôm, Ôm, Ôm, Ôm, Ôm. A respiração de Brahman. A vigília, o sono e o sonho. A linguagem do absoluto, do universo: o infinito deitado. A garota se matou. Carne e osso, não há nada lá. Somente o devaneio da visão, apenas o devaneio que rasga o véu de maia e nos diz que estamos lá onde não há nada ou apenas um passo antes do abismo. A conexão com o outro, a conexão consigo, a não-conexão, a confusão, a fusão, o são. O sim e o não. O não. Como no koan do imperador que sonha ser borboleta e da borboleta que sonha ser o imperador. A lucidez de quem está para morrer, a morte de quem não delira. Como a sabedoria da pele e a corrupção do tempo. Os animais estranhos e o desajuste: tatear o lugar no mundo, a (r)existência do sentido e a vertigem do desencanto. O poema da garota que se matou e a experiência da garota que se matou, a cristalização da garota numa fotografia e a voz da garota numa fita magnética. A garota não está aqui. Outra garota virá. Eu não estarei aqui. Outro garoto virá. E. Quarta garrafa: Uma garota dormindo. Outra entra no quarto em silêncio, na ponta dos pés. Elas se comunicam, um diálogo silencioso, como dois animais que, como dois animais quando. Escrevo um poema, escavo um poema. E logo a poesia bate asas e cria mundos.


Leio um poema e rapidamente a poesia ri e fica muda. A poesia é uma orgia, um êxtase: um caroço da experiência na membrana verde do espaço. Leio Blake: energia é eterna delícia. Blake vê o infinito numa flor selvagem. Eu vejo Blake num copo de uísque e observo animais que buscam o rumo de árvores com frutas alcoólicas. O animal sem nome pintou poemas nas paredes de Lascaux. Ele viu animais. Um velho xamã pinta seu tambor cósmico e me diz do frio, do rio e do raio. O xamã toca o tambor e uma águia mítica paira acima de sua cabeça. Um homem moderno cata uma gravata e uma pedra paira acima de sua cabeça. O poema fala da pedra e da águia. Eu vejo os dois animais no espelho (eu e tu), vejo todos eles e imagino meus ossos. No bar, uma garota sorri enquanto escrevo e derrubo outro copo. À noite, falamos de Pessoa, de Blake, Shakespeare, Plath. À noite não falamos e. A poesia é o jogo, a engenharia construindo pontes, a carne habitada, o orgasmo. A garota diz que já subiu uma montanha enquanto sobe em mim. Depois lê um poema sobre a montanha: projeto meu rosto com pedras. E de repente a experiência de subir montanhas me parece com um respirar ofegante. A poesia e a experiência da poesia. O rio de palavras destes animais. Rio da palavra destes animais enquanto escrevo e rio de mim mesmo. Um poema, mesmo. A experiência, mesmo. E o silêncio: alguma imaginação. Algumas garrafas de uísque dizem o mundo que leio num poema asteca, como um vadio animal estranho. Blake, Pessoa, Shakespeare, Plath estão mortos. A experiência de Blake, Pessoa, Shakespeare, Plath está morta e renasce: tempo mítico, cosmogonia, via linguagem. O poema, o corpo do pouco que permanece por aqui, entre os lírios que ainda não foram queimados pelo tempo, entre os leões que nos arranham os estômagos por dentro.


Ponte, parte: poema do parto: a turva visão do que foi, do que o tempo rói, a revisão do que dói. A minha experiência no mundo. Ou ficar mudo. Ou tudo. Ou tu. Absolutamente eu e tu, em tudo. E no nada. Nonada. Andada em bando. Quando? Não sei e ando, ando, ando, lendo e revirando os ossos da experiência do bando, os que viram a carcaça e já riram, sumiram nus. Enquanto não morro, ando. No bando, com sol, chuva ou nublando as nossas cabeças com o como, o porquê, o quando. Nu, ando.


Beckett vai ao cinema: comentários sobre a ponte entre palavras, imagens e sons

O irlandês Samuel Beckett (1906-1989) se espalhou por diversas plataformas e paragens: escreveu contos, novelas, poesias, ensaios, peças, além de criações para rádio, televisão e um roteiro cinematográfico. Prêmio Nobel de literatura em 1969, o autor é conhecido mundialmente por suas obras dramáticas, que se vinculam ao que se convencionou denominar teatro do absurdo (termo cunhado por Martin Julius Esslin, numa obra homônima). Numa conversa com Roger Blin, diretor de várias de suas peças, o irlandês disse: “Não sei mais o que fazer com os personagens. Não posso mais escrever romances. Ainda tenho algo a dizer no teatro, mas sempre na mesma direção.” (Beckett 2005:205) E esta direção, este algo a dizer, parece apontar para uma dimensão de agonia e desespero, um dedo na fratura existencial, o sentido da repetição e diferença da falta de sentido e a comunicação da impossibilidade de comunicação – ao mesmo tempo em que existe espaço para o riso, como se diante do caos e das ruínas irrompesse uma gargalhada que não desconhece as agruras. Neste ensaio, iremos interpretar o diálogo, as relações, as afinidades eletivas possíveis de serem percebidas no trânsito da transposição para o cinema do texto da peça emblemática de Samuel Beckett: Esperando Godot (escrita em 1949). Esta adaptação faz parte do projeto Beckett on film, realizado entre 2000 e 2002, concebido por Michael Colgan, diretor artístico do Dublin’s Gate Theatre, e levado a cabo por ele e Alan Moloney, para as emissoras de televisão RTÉ, da Irlanda, Channel 4, da Inglaterra e o Conselho de Cinema da Irlanda.


Com o projeto, todas as dezenove peças do dramaturgo (com exceção da primeira e não encenada Eleutheria) foram transcriadas na linguagem cinematográfica, ancoradas no imaginário do autor (a partir das fricções da visão de diferentes diretores, atores, etc.). Antes de partimos para o mergulho no fluxo teatro < > cinema calcado no universo de Beckett, tomemos uma pequena afirmação do norte-americano Michael LindsayHogg, que dirigiu a adaptação de Esperando Godot: [In Waiting for Godot] Beckett creates an amazing blend of comedy, high wit and an almost unbearable poignancy in a funny yet heartbreaking image of man's fate. With the camera, you can pick those moments and emphasise them, making Beckett's rare and extraordinary words all the more intimate.1

Ao longo deste ensaio, teremos a oportunidade de conferir em que medida as escolhas de Michael LindsayHogg reenergizam as misturas de humor e a pungência do destino humano desolador indicados por Beckett em seu mar de palavras e nas peripécias de imobilidade de seus vagabundos à espera de Godot. Antes de deixarmos os olhos correndo sobre a ponte de palavras, sons e imagens do universo de Samuel Beckett, neste jogo de transposição e tradução midiática, iremos traçar um pequeno percurso de aproximação de alguns entendimentos teóricos. Recolheremos algumas reflexões sobre os processos de adaptação, sobre as relações humanas com as imagens e símbolos, as possibilidades de leituras destes códigos visuais, entre outros tópicos que possam nos auxiliar na interpretação dos diálogos estabelecidos entre a obra de Samuel Beckett e sua apropriação na película. Comecemos com apontamentos sobre nossa animalidade simbólica, indicada pelo filósofo alemão Ernst Cassirer: O homem não vive dentro de um universo puramente físico, mas sim em um universo simbólico. Língua, mito, arte e religião (...) são os vários fios que compõem o tecido simbólico (...). Qualquer progresso


humano no pensamento e na experiência fortalece este tecido (...). A definição do homem como animal racional não perdeu nada do seu valor (...), mas é fácil perceber que tal definição é uma parte de um todo. Pois lado a lado com a linguagem conceitual há uma linguagem do sentimento, lado a lado com a linguagem lógica ou científica existe a linguagem da imaginação poética. De início a linguagem não exprime pensamentos e ideias, mas sentimentos e afetos. (Cassirer 1997:47-49)

No riso e na perplexidade dos personagens de Samuel Beckett, talvez encontremos uma visão ácida, uma compreensão mais problemática da questão da linguagem e entendimento da existência; talvez encontremos aí a residência, a matriz das possibilidades de fruição do vazio, do gaguejar, do balbuciar, da falta de sentido, em suma, do absurdo. Já não apenas um problema puramente físico ou meramente simbólico, mas um trauma pleno, ontológico. Beckett, com noção acurada, sabe das idas e vindas dos problemas com a linguagem e seus tentáculos para abarcar o real. Podemos intuir, no que se desprende da torrente de palavras nos textos do autor, que ele não procura qualquer coisa que assegure, valide as passagens de todo dizer da potência ao ato. Dito de outro modo, Beckett realiza um desmonte da linguagem, e se empenha em desvelar os abismos de nonsense que permeiam toda atribuição de sentido, mostrando que o universo simbólico humano está esvaziado, operando com a linguagem um jogo que demonstra a inexistência de um chão seguro para nossos passos. E é nesta força do absurdo que o texto de Beckett ganha vitalidade e se torna um poder renovado para provocar rumor. A linguagem, em Beckett, é linguagem sobre linguagem, uma fala sobre a impossibilidade de falar, ou de fazer-se compreender. Segue o caminho contrário dos que entendem a linguagem


(...) como aquilo por meio do que os seres humanos ordenam “o caos do mundo”. Segundo esta visão, a inteligência humana floresce através da faculdade, supostamente excepcional, da linguagem, e com ela impõe uma rede de categorias a um universo desordenado. Acredita-se que quanto mais objetiva e racional for a linguagem, mais acurado será esse exercício de se conferir ordem ao mundo. A linguagem é considerada por alguns como uma matemática imperfeita, e a ideia de que a matemática pode até mesmo suplantar a linguagem foi acalentada; esta ideia ainda colore o pensamento comum de muitos tipos de engenheiros e, possivelmente, de alguns matemáticos e cientistas. Mas o mundo – ordenado conforme suas próprias normas inescrutáveis (de fato, um tipo de caos) – é tão complexo e vasto, tanto em macro como em micro escalas, que permanece para sempre impremeditável. Como a previsão do tempo, para usar um exemplo consagrado. E consideremos a própria mente que engendra estas reflexões: apesar de anos de pessoalidade, continuamos imprevisíveis até para nós mesmos. (Snyder 2005:269)

Beckett tece filigranas de palavras, linguagem móvel, fantasma, um comboio de búfalos percorrendo os interiores instáveis, de puro deslize, dos vazios de sentidos intercambiáveis – materializa poeticamente as desventuras em busca do Ser (e da existência) e as agonias da jornada da vida em busca de compreensão do deserto do real. Na corrente dos devaneios circulares, nos espirais de delírios de seus personagens, Beckett parece imiscuir um símbolo opaco, um vestígio de mito, além das capacidades “matemáticas” da razão e seu sonho de domínio pleno – mas também aquém das investidas numa renovação de sentidos alegóricos. Sobre a presença do imaginário na vida humana e suas extrapolações das fronteiras da razão, Mircea Eliade afirma que O pensamento simbólico não é uma área exclusiva da criança, do poeta ou do desequilibrado: ela é consubstancial ao ser humano; precede a linguagem e a razão discursiva. O símbolo revela certos aspectos da realidade – os mais profundos – que desafiam qualquer outro meio de conhecimento. As imagens, os símbolos e os mitos não são criações irresponsáveis da psique; elas respondem a uma necessidade e preenchem uma função: revelar as mais secretas modalidades do ser. (Eliade 1991:8-9)


Na linguagem dobrada sobre linguagem, rarefeita, dos textos de Samuel Beckett, podemos perceber a potência do estático, a energia do imóvel, a força que transcende o movimento e instaura uma espécie de axis mundi. Mas este centro do mundo, ao invés de fornecer significados, orientar percursos, situar os sujeitos numa ordem universal, traduz problemas e crises, aponta para questões angustiantes com o intento de, em seu torneio de quase mutismo e na outra ponta de palavras cuspidas por fragmentos e repetições, encontrar e desvelar as modalidades do ser que se debate e se revira, cavando significados numa terra estéril. A vertigem de palavras, sons, as imagens evocadas no fluxo textual de Samuel Beckett redimensionam as noções de história, narração, trabalhando com dispositivos, formas, estruturas que comunicam resíduos de nossos lamentos, nosso vazio partilhado. Com cacos de linguagem, que se repetem e retomam seus giros num tempo além do tempo e num espaço impossível de precisar, Beckett criou, deu forma ao balbucio de afetos e pensamentos possíveis, além de toda orientação ou demanda por ações, reações. Segundo Gilles Deleuze “é a fórmula de Beckett: mais vale estar sentado que de pé, e deitado que sentado.” (Deleuze 1992:73). Um comentário de Deleuze a respeito do cinema moderno pode nos auxiliar a entender estas situações de imobilidade no universo de Beckett: É impossível se contentar em dizer que o cinema moderno rompe com a narração. Isto é apenas uma consequência, o princípio é outro. O cinema de ação expõe situações sensório-motoras: há personagens que estão numa certa situação, e que agem, caso necessário com muita violência, conforme o que percebem. As ações encadeiam-se com percepções, as percepções se prolongam em ações. Agora, suponham que um personagem se encontre numa situação, seja cotidiana ou extraordinária, que transborda qualquer ação possível ou o deixa sem reação.


É forte demais, ou doloroso demais, belo demais. A ligação sensóriomotora foi rompida. Ele não está mais numa situação sensóriomotora, mas numa situação óptica e sonora pura. É um outro tipo de imagem. (Deleuze 1992:70)

E ainda: (...) já não se acredita tanto na possibilidade de agir sobre as situações, ou de reagir às situações, e no entanto, não se está de modo algum passivo, capta-se ou revela-se algo intolerável, insuportável, mesmo na vida mais cotidiana. (...) Ora, quando se está assim diante de situações ópticas e sonoras puras, não é apenas a ação e portanto a narração que desmoronam, são as percepções e afecções que mudam de natureza, porque passam para um sistema inteiramente diferente do sistema sensório-motor próprio ao cinema “clássico”. (...) a nova imagem óptica e sonora remete a condições exteriores ocorridas depois da guerra, nem que sejam os espaços em ruína ou desativados, todas as formas de “perambulação” que tomam o lugar da ação, e por toda parte a ascensão do intolerável. Uma imagem nunca está só. O que conta é a relação entre imagens. (...) Ao invés de um prolongamento linear tem-se um circuito em que as duas imagens não param de correr uma atrás da outra, em torno de um ponto de indistinção entre o real e o imaginário. (Deleuze 1992:70-71)

É a perambulação ao redor do umbigo, o giro sobre o próprio eixo, as voltas e voltas num círculo de eterno retorno que constituem a passagem do tempo puro nas obras de Beckett. É uma linguagem sem duplo, suficiente, plena, ao mesmo tempo em que é carregada de silêncios. “Aqueles que ficam perplexos com o “significado” da peça podem pelo menos extrair algum conforto da certeza do autor de que ela “significa o que diz, nem mais nem menos””. (Beckett 2005:212) Este comentário sobre a recepção de Esperando Godot, seguido da indicação da inexistência de alegorias e sentidos ocultos além da linguagem direta e sem rodeios, pode ser estendido às demais produções do autor. Alberto Manguel, comentando nossa relação com as imagens e os sentidos da existência, afirma:


As imagens que formam nosso mundo são símbolos, sinais, mensagens e alegorias. Ou talvez sejam apenas presenças vazias que completamos com o nosso desejo, experiência, questionamento e remorso. Qualquer que seja o caso, as imagens, assim como as palavras, são a matéria de que somos feitos. (Manguel 2001:21)

Em Beckett, a experiência de estar-no-mundo (o dasein de que fala Martin Heidegger) é exercício de criação, desejo e espanto para, nos vãos do ventre da linguagem, gerar imagens para o nada e contemplar e completar o vazio das imagens, um fluxo contínuo de cápsulas de ideias, fragmentos e partículas de pensamentos ou sombras de pensamento, sobras de sentimentos e percepções, a narrativa da ausência de narrativa, uma existência coagulada num pensamento gago que fala dentro de um aquário. Sendo assim, não é muito pertinente discutir se em Godot, por exemplo, falase da ausência de deus ou de fundos alegóricos sobre o pós-guerra ou outras leituras similares. Interessa-nos, no terreno limitado destas ruminações, orientar nossa análise sobre as linguagens envolvidas no circuito de respiração de Esperando Godot (o texto da peça e o filme adaptado da mesma). Assim, ao invés de focarmos apenas na preservação da temática ou da história, deteremos nossa atenção sobre os próprios modos das linguagens envolvidas. Distantes também de julgamentos que se sustentem na busca de noções como “fidelidade” na adaptação do texto da peça para a película. De acordo com Thaís Diniz a análise da adaptação concentrava-se na busca de equivalências, isto é, no sucesso com que o cineasta encontrava meios cinematográficos para substituir os literários. Assim começou-se a procurar os recursos fílmicos com funções paralelas às da obra literária. Entretanto, essa mantinha seu lugar privilegiado, pedra de toque para a avaliação do filme. (Diniz 2005:14)


Robert Stam, também refletindo sobre este processo de valorações e leituras das adaptações de obras literárias para o cinema, afirmou a respeito que houve mudanças nas posturas e chaves de interpretação utilizadas pelos críticos: (...) passaram de um discurso moralista sobre fidelidade ou traição para um discurso menos valorativo sobre intertextualidade. As adaptações localizam-se, por definição, em meio ao contínuo turbilhão da transformação intertextual, de textos gerando outros textos em um processo infinito de reciclagem, transformação e transmutação (...). (Stam 2008:234)

E aponta que ainda podemos falar de adaptações bem sucedidas ou não, mas agora orientados não por noções rudimentares de “fidelidade”, e sim pela atenção dada a respostas dialógicas específicas, a “leituras”, “críticas”, “interpretações” e “reescritas” de romances-fonte, em análises que invariavelmente levam em consideração as inevitáveis lacunas e transformações na passagem para mídias e materiais de expressão muito diferentes. (Stam 2008:22)

Neste jogo, nesta aproximação entre o texto dramático e a apreensão e metamorfose fílmica, Linda Hutcheon indica que o que está envolvido na adaptação pode ser um processo de apropriação, de tomada de posse da história de outra pessoa, que é filtrada, de certo modo, por sua própria sensibilidade, interesse e talento. Portanto, os adaptadores são primeiramente intérpretes, depois criadores. (Hutcheon 2011:43)

E é a análise comparativa da criação de Beckett apropriada para o campo audiovisual por Michael Lindsay-Hogg que iremos colocar sob nossos olhos agora, depois destas circunvoluções teóricas que situaram os territórios em que iremos nos mover daqui em diante.


Recortemos do nosso terreno em inspeção a cena de abertura do primeiro ato de Esperando Godot, seguida de um still do filme: Estrada no campo. Árvore. Entardecer. Sentado sobre uma pedra, Estragon tenta tirar a bota. Faz força com as duas mãos, gemendo. Para, exausto; descansa, ofegante; recomeça. Mais uma vez. Entra Vladimir. ESTRAGON (desistindo de novo) Nada a fazer. VLADIMIR (aproximando-se a passos curtos e duros, joelhos afastados) Estou quase acreditando. (Fica imóvel) Fugi disso a vida toda. Dizia: Vladimir, seja razoável, você ainda não tentou de tudo. E retomava a luta. (Encolhe-se, pensando na luta. Vira-se para Estragon) Veja só! Você, aqui, de volta. (Beckett 2005:17)

Vejamos a seguir um instantâneo da película:

Figura 1 – Still do filme Esperando Godot, dirigido por Michael Lindsay-Hogg

Podemos notar, já de início, rearranjos das marcações para os atores que existem no texto da peça, mas deixam de orientar a execução da cena no filme. Ao invés de Estragon (sentado, à direita, na imagem acima) sozinho no palco, tentando tirar as botas para só depois “entrar” Vladimir (de pé, à esquerda, na imagem acima), no filme o primeiro frame é um plano fechado nos pés de


Estragon, às voltas com as botas e, logo em seguida, num plano aberto, aparece Vladimir na estrada e Estragon sentado sobre uma pedra. Somos apresentados aos dois personagens e ao cenário gradualmente, passando de um plano detalhe (nas botas) para um plano aberto que engloba a paisagem, com sua árvore única e os dois personagens. Apesar das sutilezas nas gradações dos planos, no filme existe uma dinâmica maior, um tanto mais de celeridade. O texto das falas de Vladimir e Estragon, por seu turno, permanece praticamente o mesmo – inclusive a definitiva fala de abertura: “Nada a fazer”, espécie de chave que se repete indefinidamente ao longo da espera por Godot. Esperando Godot é uma espécie de fábula da imobilidade e da falta de sentido da vida humana. A peça tem cinco personagens: Estragon, Vladimir, Pozzo, Lucky e um garoto. O cenário: uma curva de estrada, lugar indefinido, no entardecer, perto de uma árvore. Dois atos, repetições-com-diferença. E Godot sempre ausente, indefinidamente ausente. Como indica Fábio de Souza Andrade, no prefácio: “Estratégia para camuflar a mínima margem de ação das personagens, os diálogos reduzemse a rotinas que encobrem a dificuldade de passagem do tempo”. (Beckett 2005:9) No filme, os diálogos são a condução das mudanças de planos, se tornam uma costura, um fio de sentido dentro do emaranhado de nonsense que pulsa no coração do texto. E além do texto funcionar como um trilho torto, uma margem mínima de segurança, um corrimão na beira do abismo, as estruturas formais incrustadas no texto possibilitam entendimentos, comunicação (o leitor ou espectador se joga no preenchimento dos ocos e vazios, vai cobrindo com algum sentido as aparentes falas disparatadas). Segundo Fábio de Souza Andrade:


(...) Nesta peça em que a simetria imperfeita, forma particularmente cara a Beckett, encarna-se numa multiplicação de duplos ligeiramente discrepantes (dois atos, dois dias, dois pares – Didi e Gogô, Pozzo e Lucky) (...) A natureza mecânica e danificada do tempo (...) é atravessada num ritmo movimentado na superfície, mas pobre de mudanças. (...) A repetição de situações e ditos garante a unidade estrutural da peça, em que a fala profética da abertura – “Nada a fazer” – retorna regularmente, lembrete paradoxal tanto da necessidade de preencher o vazio, quanto da inocuidade deste esforço. (Beckett 2005:9-11).

Vejamos como as coisas se passam no momento em que irrompem em cena os personagens de Pozzo e Lucky. Primeiro, recortemos um trecho do texto: Um grito terrível ressoa, bem próximo. Estragon larga a cenoura. Ficam paralisados, depois correm para a coxia. Estragon para a meio caminho, retorna, pega a cenoura, enfia-a no bolso, precipita-se em direção a Vladimir que o espera, para de novo, retorna, pega a bota, depois corre para junto de Vladimir. Abraçados, cabeças nos ombros, fugindo da ameaça, esperam. Entram Pozzo e Lucky. O primeiro conduz o último, servindo-se de uma corda passada ao redor do pescoço, de modo que, a princípio, apenas Lucky é visível, seguido pela corda, longa o bastante para que ele chegue ao meio do palco antes que Pozzo deixe a coxia. Lucky carrega uma mala pesada, uma banqueta dobrável, uma cesta de provisões e um casaco (sobre o braço); Pozzo, um chicote. (Beckett 2005:46)

E agora observemos a imagem congelada do instante em que surgem Pozzo e Lucky no filme.


Figura 2 - Still do filme Esperando Godot, dirigido por Michael Lindsay-Hogg

Cada linguagem guarda e expõe suas potências e possibilidades de uma maneira peculiar. Ao invés de oculto na coxia do teatro, como indica o texto de Beckett, no filme, um plano da própria curva da estrada funciona como elemento que nos oblitera a visão de Pozzo, depois que ouvimos, vindo de fora do quadro em cena (um diálogo entre Vladimir e Estragon), alguns gritos e estalos do chicote. Sobre a realização da passagem do texto ao filme, Umberto Eco anota que passando para outra matéria, se é obrigado a impor ao espectador do filme uma interpretação, lá onde o leitor do romance era deixado muito mais livre. Nada impede que, usando os próprios meios, o filme recupere a ambiguidade antes ou depois daquela cena, lá onde o romance, ao contrário, era mais explícito. Mas isso implica, justamente, uma manipulação que seria arriscado designar como uma tradução. (Eco 2007:388)

Tanto existe uma leitura de Michael Lindsay-Hogg de Esperando Godot, envolvida em sua adaptação cinematográfica, como os leitores e espectadores vão também preenchendo os significados, as apropriações, as torções, as afinidades e distâncias entre a obra na plataforma do texto dramático e seu fluxo na película.


Entramos em contato com um palimpsesto, cuja intertextualidade da adaptação faz ressoar a lembrança de outras obras, inclusive nas repetições com diferenças, nos desvios vistos no processo do texto para o filme. Segundo Wolfgang Iser O texto é composto por um mundo que ainda há de ser identificado e que é esboçado de modo a incitar o leitor a imaginá-lo e, por fim, a interpretá-lo. Essa dupla operação de imaginar e interpretar faz com que o leitor se empenhe na tarefa de visualizar as muitas formas possíveis do mundo identificável, de modo que, inevitavelmente, o mundo repetido no texto começa a sofrer modificações. Pois não importa que novas formas o leitor traz à vida: todas elas transgridem – e daí, modificam – o mundo referencial contido no texto. (Iser 2002:107)

O filme de Michael Lindsay-Hogg preserva as estruturas de repetições assimétricas do texto de Beckett, reconfigura os modos de engajamento nesta história onde “nada acontece em dois atos”, sintetiza na própria gramática do cinema as evoluções do texto, desviando de algumas marcações, transpondo praticamente intocados os textos da peça para o filme. O diretor nos oferece uma imagem formatada por sua leitura de Esperando Godot (do lugar, ainda que desconhecido, com seu tom de azul e cinza e sua estrada desolada ladeada de pedregulhos, dos personagens – vale destacar que os atores do filme já haviam encenado a peça anteriormente -, etc.). Apesar disto, permite ao espectador, no contato com o universo desta fábula ontológica, encontrar a atmosfera aturdida, crítica, a insidiosa presença e ação do nada, da agonia sem nome, do vai e vem no vazio. É exemplar das operações conduzidas ao longo da adaptação a sequência da passagem do fim do primeiro ato para o início do segundo ato. No texto o autor deixa uma marcação após as falas de Vladimir e Estragon:


“ESTRAGON Então, vamos embora? VLADIMIR Vamos lá. Não se mexem. Cortina.” (Beckett 2005:107) No filme, o fade out substitui a função de corte entre o primeiro e o segundo ato, efetuada pela cortina. As potências narrativas do cinema são um ponto convergente com a literatura e a dramaturgia. E mesmo para dar conta desta história sem história, desta pasmaceira repleta de eventos banais que constitui Esperando Godot, o cinema permanece um campo artístico capaz de expressar a natureza infernal da temporalidade cíclica de Godot, apto em comunicar-nos as desventuras destes dois vagabundos perdidos nesta jornada de desesperança e precariedade, envoltos na solidão partilhada, tragados numa trama de incomunicabilidade, nesta fábula que não progride. Sobre esta leitura de Esperando Godot como fábula, Günther Anders afirma que Beckett (...) destrói tanto a forma quanto o princípio até então característicos das fábulas: agora a fábula destruída, a fábula que não mais segue adiante, tornase a representação adequada da vida estagnada; sua parábola sem significado sobre o homem ocupa o lugar da parábola do homem insignificante. (...) Se ela renuncia a relatar uma ação, o faz apenas porque a ação que descreve é a vida desprovida de ação. Se desafia a convenção ao não oferecer história alguma, o faz por descrever o homem eliminado da, e desprovido de, história. (Beckett 2005:213-214)

Nos ajuda a compreender o universo de Esperando Godot o conceito de cena total como define Leda Martins: O tempo, o espaço e a ação acumulam uma significação única numa totalidade absoluta e compacta. O passado e as causas das transformações tornam-se secundários. Importa a situação em si, independente do que aconteceu ou acontecerá, num tempo e espaço auto-referenciais, emblemas de uma descontinuidade que irrompe no palco e o atravessa vertiginosamente. (Martins 1991:69)


A transposição fílmica de Esperando Godot, realizada por Michael Lindsay- Hogg, mantém o clima doido e doído das existências de Vladimir e Estragon, de quem seguimos sem saber de onde vieram e pra onde vão, mas que continuam juntos, atados às suas experiências, vivendo a angústia e as pequenas brechas de riso juntos, um ao lado do outro, discutindo, brigando, atônitos e distraídos. Agindo com poucos planos, com poucos movimentos, num cenário constante e escasso de informações, Michael Lindsay-Hogg transcria no cinema este ciclo de Sísifo, esta arena de repetições enquanto se espera Godot. Como podemos observar neste frame abaixo, Vladimir e Estragon permanecem suspensos num tempo isolado, próprio. Aqui e ali, especulam sobre se suicidarem, partilham cenouras e nabos, se espantam e dialogam com Pozzo e Lucky, se atormentam com o menino de recados informando, mais uma vez e quem sabe ao infinito, que Godot virá amanhã. Cogitam ir embora, mas voltam a esperar.

Figura 3 - Still do filme Esperando Godot, dirigido por Michael Lindsay-Hogg


Assim como Beckett foi seu próprio tradutor, recriando no inglês o texto original em francês e nós traduzimos em imagens mentais os fragmentos de vida de Vladimir e Estragon no ato de leitura – feito também realizado pelos diretores que encenaram a peça, tradução e interpretação também efetuada por espectadores e críticos – Michael Lindsay-Hogg realizou uma leitura crítica do universo estático e perturbador de Esperando Godot. A história da falta de história, a acidez distribuída em fragmentos de pensamentos, tudo se acumula e cria significados, inclusive dobrados sobre o questionamento da própria linguagem. É uma leitura possível e o filme repercute: Nada a fazer. Então, vamos embora. Vamos lá. Não se mexem. Cortina. Fade out. Nota 1 – Lindsay-Hogg, Michael. Depoimento do diretor na página do projeto Beckett on film Disponível em: http://www.beckettonfilm.com/plays/waitingforgodot/sy nopsis.html Acesso em 31/07/2012


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BECKETT, Samuel. Esperando Godot. São Paulo: Ed. Cosac Naify, 2005. CASSIRER, Ernest. Ensaio sobre o Homem. São Paulo: Martins Fontes, 1997. DELEUZE, Gilles. Conversações. São Paulo: Editora 34, 1992. DINIZ, Thaís Flores Nogueira. Literatura e cinema: tradução, hipertextualidade e reciclagem. Belo Horizonte: Faculdade de Letras da UFMG, 2005. ECO, Umberto. Quase a mesma coisa. Rio de Janeiro: Editora Record, 2007. ELIADE, Mircea. Imagens e símbolos – ensaio sobre o simbolismo mágico-religioso. São Paulo: Martins Fontes, 1991. HUTCHEON, Linda. Uma teoria Florianópolis: Editora da UFSC, 2011.

da

adaptação.

ISER, Wolfgang. O jogo do texto. In: COSTA LIMA, Luiz. (Coord.) A literatura e o leitor: textos de estética da recepção. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2002. MARTINS, Leda Maria. O moderno teatro de QorpoSanto. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 1991. SNYDER, Gary. Re-habitar – ensaios e poemas. Rio de Janeiro: Azougue editorial, 2005. STAM, Robert. A literatura através do cinema. Realismo, magia e a arte da adaptação. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2008.


Antropologia intuitiva e raridade – notas de leitura de “O Papalagui”

Aquele que furou o céu. Esta seria uma tradução literal para o termo samoano papalagui. Interpretações menos diretas apontam para os sentidos de “estrangeiro”, “branco”, “forasteiro”. O Papalagui – comentários de Tuiávii, chefe da tribo Tiavéa, nos mares do sul é o título que o escritor alemão Eric Scheurmann utilizou, em 1920, para a publicação de uma série de discursos supostamente recolhidos de um chefe tribal nativo de Samoa sobre a civilização europeia. Falamos “supostamente” para atentar para a controvérsia sobre a autoria do livro. Alguns autores afirmam que Eric Scheurmann recebeu adiantamento de uma editora para escrever uma história “nos mares do sul”. Eric visitou Samoa, na época colônia alemã, em 1914, tendo saído de lá para os Estados Unidos por conta da eclosão da Primeira Guerra Mundial. Scheurmann teria escrito na América do Norte este “diário de viagem de ficção”. Elementos que auxiliam esta interpretação são as publicações de outros dois livros de Eric: Paitea e Ilse – uma história dos mares do Sul, de 1919, e Dois tipos de sangue – um romance dos mares do Sul, de 1936. Apesar destes e de outros indícios, não há consenso na definição da obra O Papalagui como um livro de ficção de Eric Scheurmann ou como realmente uma compilação de narrativas breves de Tuiávii, vertidas para alemão, realizadas num empenho etnográfico intuitivo levado a cabo por parte do nativo samoano. Em todo caso, a recepção da obra assentou-se, largamente, num pacto de leitura de uma antropologia intuitiva, de uma visão nãoocidental sobre o mundo europeu.


É assim que o livro consta em vários lugares, de sites de editoras às estantes de livrarias. Para os propósitos deste breve ensaio (argumentar ao redor da ideia de raridade do texto do Papalagui), deixaremos de lado, a partir de agora, as polêmicas que envolvem a autoria da obra, focando o texto em si e sua recepção como vetores para uma leitura peculiar do empreendimento raro desta antropologia às avessas, realizada a contrapelo, no sentido diverso do usual (ao invés de um europeu debruçado sobre ideias e práticas culturais de povos tradicionais, um sujeito – real ou fictício -, integrante destes povos, lendo a cultura europeia). Uma obra como O Papalagui permite leituras variadas. Interessa-nos aqui encontrar os dispositivos que erigem e estruturam o texto dentro de uma classificação, abarcado pelo conceito de raridade. E aqui apontamos não para certa escassez da obra, mas para sua importância. Como ilustração, não custa lembrar que o exemplar sobre o qual nos debruçamos para deixar irromper este ensaio tinha pelo menos outros cinco pares para lhes fazer companhia, apenas na biblioteca do Centro de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal de Pernambuco. A dificuldade de acesso ao texto não é um dos critérios possíveis para interpretarmos O Papalagui como um livro raro. Ao adotarmos a ideia de raridade incrustada no texto, entendemos que não falamos de uma realidade objetivamente verificável. Não podemos dizer que um livro é raro da mesma maneira como afirmamos que sua capa é verde ou que ele se encontra dentro da mochila. Sabemos que ao considerar, dentro da noção de raridade, o texto do Papalagui como importante, adotamos uma perspectiva, eivada de um gesto político e subjetivo – o que não quer dizer completamente arbitrário.


E esta perspectiva não figura, por direito natural, por princípio, num patamar superior a qualquer outra. Por isto, iremos aventar razões para a nossa leitura do Papalagui como um livro/texto raro. Iremos elencar e recortar alguns elementos que dão forma a totalidade da visão de mundo posta em circulação pelo texto do Papalagui – procurando situar os modos como esta visão de mundo pode ser considerada rara dentro do circuito da lógica do capitalismo tardio. Comecemos recortando um trecho da introdução de Eric Scheurmann em que o alemão situa a publicação dos textos do Papalagui: “Jamais Tuiávii pretendeu editar para a Europa estas falas ou discursos; nem mandar imprimi-los de forma alguma, porque se destinavam, exclusivamente, aos seus compatriotas polinésios. Se, contudo, sem que ele o saiba e, decerto, contra a sua vontade, comunicaremos ao mundo europeu que lê as falas deste nativo, é porque estamos convencidos de que para nós, brancos instruídos, pode ser útil conhecer a forma como nos vê, a nós e a nossa cultura, um indivíduo estreitamente ligado à natureza. Com os olhos dele ficamos sabendo como nós mesmos somos, de um ponto de vista que nos é impossível assumir. Podemos, principalmente os fanáticos da civilização, achar que é ingênua a maneira como ele pensa; talvez pueril, ou mesmo tola. Mas aqueles que forem sensatos e humildes terão, ao refletir, de concordar com muito do que diz Tuiávii; e terão de auto-criticar-se porque a sua sabedoria não provém da erudição mas da simplicidade que é divina.” (Scheurmann 2003:9)

Um ponto de vista impossível de assumir. Aqui podemos intuir que o texto ecoa uma história subterrânea, de uma voz a que se prestou (se presta) pouca atenção, uma visão de mundo que extrapola as circunscrições dos povos que vivem sob o legado das culturas grega e judaica acrescidas dos desdobramentos variados dos romanos a entusiastas norte-americanos das máquinas de produção do capitalismo.


Ainda que envolta numa aura que nos permite perceber nuances da ideia do bom selvagem, Samoa talvez como um refúgio, um refrigério para uma vivência que se experimenta, cotidianamente, dentro dos limites das práticas e ideias da mentalidade racionalista, podemos perceber nas narrativas imagéticas sobre a cultura do papalagui um exercício de contraposição deste cenário citado anteriormente a um de jogo de forças, de devires e potências alegadamente mais folgados e espontâneos na vida samoana. Daí a importância de se compreender os eixos que articulam a leitura, que informam os discursos de Tuiávii sobre a existência dos europeus (corpo, roupas, habitações, dinheiro, tempo, profissão, cinema, jornal, etc.). Iremos empreender leituras destes tópicos, procurando deslindar os sentidos sutis que se acoplam ao exercício de Tuiávii (personagem ou pessoa) nesta antropologia intuitiva. Nesta jornada de visões sobre a cultura ocidental, podemos averiguar a irrupção de certas configurações que escapam aos quadros do horizonte de expectativas ocidentais, apontando para possibilidades de vivências insuspeitas. Uma dimensão fundamental nesta leitura é a maneira pouco usual de perceber os corpos (principalmente se considerarmos os sujeitos debaixo de uma tradição cristã de transcendência fechada, mortificação da carne, etc.), forma que forja uma compreensão de nosso corpo mamífero capaz de gerar fluxos de experiência mais íntima e menos problemática, esquizofrênica, enfim, menos jogada na cisão entre mente e corpo: “A carne é um pecado, segundo diz o Papalagui, porque o seu espírito é grande, é o que ele pensa. O braço se ergue, à luz do sol, para atirar, é flecha do pecado; o peito, sobre o qual palpitam as ondas do respirar, é habitação do pecado; os membros com que a moça convida para a siva (dança nativa), são pecadores.


E também os membros que se tocam para fazer seres humanos, alegrando a vasta terra, são pecaminosos. Tudo que é carne é pecado. Um veneno existe em todos os tendões, malicioso, que salta de um homem para outro. O espetáculo da carne, por si só, é suficiente para envenenar quem a contempla, intoxicá-lo, corrompêlo e torná-lo tão abjeto quanto aquele que se deixa ver. É o que proclama a moral sagrada do homem branco.” (Scheurmann 2003:15)

Antes de comentarmos este jogo de forças entre a leitura do corpo numa chave negativa (“a moral sagrada do homem branco”) contra uma leitura mais amena, dois trechos recortados do filósofo francês Michel Onfray, do seu Tratado de Ateologia, onde comenta as associações sistemáticas que os monoteísmos realizam entre o corpo e a impureza, podem nos servir de amparo e desdobramento destas questões. Diz o autor: “Corpo sujo, sem asseio, corpo infectado, corpo de matérias vis, corpo libidinal, corpo malcheiroso, corpo de fluidos e líquidos, corpos doentes, corpos de mortos, de cães e mulheres, corpos de dejetos, corpos de sujeiras, corpo sanguinolento, corpo fétido, corpo sodomita, corpo estéril, corpo infecundo, corpo detestável... (...) Quem, entre as almas simples, pode querer amar uma carne terrestre pecaminosa quando a esperança de um anticorpo paradisíaco se apresenta como uma certeza admirável a todo crente que se dobra às lógicas lícito/ilícito segundo o princípio puro/impuro? Quem?” (Onfray 2007:59-60)

E ainda: “A carne ocidental é cristã. Inclusive a dos ateus, dos muçulmanos, dos deístas, dos agnósticos educados, criados ou formados na zona geográfica ou ideológica judeo-cristã... O corpo que habitamos, o esquema corporal platônico-cristão que herdamos, a simbólica dos órgãos e sua funções hierarquizadas – a nobreza do coração e do cérebro, a trivialidade das vísceras e do sexo, neurocirurgião contra proctologista... -, a espiritualização e a desmaterialização da alma, a articulação de uma matéria pecaminosa e de um espírito luminoso, a conotação ontológica dessas duas instâncias artificialmente opostas, as forças perturbadoras de uma economia libidinal moralmente apreendida, tudo isso estrutura o corpo a partir de dois mil anos de


discursos cristãos: a anatomia, a medicina, a fisiologia, decerto, mas igualmente a filosofia, a teologia, a estética contribuem para a escultura cristão da carne.” (Onfray 2007:34-35)

É justamente a vivência de uma visão oriunda de uma zona geográfica e ideologicamente diversa da episteme cristã que permite a Tuiávii uma compreensão da realidade ressentida e circunscrita do corpo europeu calcada no estranhamento e a leitura da moralidade de “suicídio do corpo” como um problema aberrante, antinatural, desviante da respiração mamífera. Ao contrário do papalagui, para Tuiávii não existe uma contraposição entre o espírito e a carne, não há uma guerra particular, uma fissura, uma peleja entre o homem refinado e o lobo da estepe. Das análises de Tuiávii podemos intuir um amor pela carne terrestre ao mesmo tempo em que esta acolhe e reverbera paragens do Grande Espírito. A disposição e o desfrute dos corpos no ambiente insular, o não-cerceamento de cabeças com chapéus, de braços e pernas com roupas e mais roupas deixam os nativos abertos para experiências mais vívidas de seus corpos, sem o constrangimento e as formalidades que engessam o comportamento das pessoas no mundo dito civilizado. Longe de uma apologia do nudismo, a narrativa de Tuiávii sobre os corpos e as roupas na Europa, aponta que ao invés de garantir mais tranquilidade, a proibição, as interdições e circunscrições do vestuário do papalagui atuam numa força inversa: “É porque o corpo das mulheres e moças se cobre tanto que os homens e rapazes desejam ardentemente ver-lhes a carne, o que é natural. Noite e dia, pensam nisso, falam constantemente nas formas do corpo das mulheres e moças, como se fosse grande pecado aquilo que é natural e bonito, só devendo ocorrer na maior escuridão. Se eles deixassem ver a carne à vontade, poderiam pensar em outras coisas; e os olhos não revirariam nem a boca diria palavras impudicas quando encontrassem uma moça.” (Scheurmann 2003:19)


E completa: “Mas a carne é pecado, é do aitu (espírito mau)? Existe ideia mais tola, amados irmãos? A crer no que diz o Branco, deveríamos querer, como ele, que a nossa carne fosse dura como a rocha do vulcão, sem a bela quentura que vem de dentro. No entanto, alegramo-nos porque a nossa carne encontra o sol; as nossas pernas mexem-se como o cavalo selvagem, sem tanga que as amarre, nem pele que as contenha e não nos preocupamos com que coisa alguma caia da nossa cabeça. Alegramo-nos ao ver a virgem que mostra seu corpo bonito ao sol e à lua. Tolo, cego é o Branco, que não sente o prazer verdadeiro, ele que precisa cobrir-se tanto para evitar se envergonhar.” (Scheurmann 2003:20)

É com “a bela quentura que vem de dentro” que os nativos se movem nos ambientes das ilhas. Ao invés de cobrirem-se num gesto que tenta evitar os corpos, lidos com vergonha ou qualquer sentimento de cárcere e imobilidade – aqui é impossível não pensarmos na narrativa bíblica sobre Adão e Eva e todo o desdobramento do ato de transgressão: o casal se torna ciente da nudez, se envergonha e arranja “roupas” com a pele de animais. Esta narrativa de culpa e obediência não consegue encontrar terreno fértil na mentalidade samoana. Enquadrar os corpos e normatizá-los, discipliná-los numa camisa de força psíquica e material da episteme cristã não é uma tarefa fácil e a moral do homem branco prenhe de interdições sobre o corpo é vista como uma tolice. E outro apontamento, desta vez sobre outra “habitação” além do corpo, ajuda a lermos as ideias e práticas culturais samoanas nas entrelinhas, no que se esconde nas entrelinhas das críticas a sociedade europeia: “O Papalagui mora, como o marisco, numa casca dura; e vive no meio de pedras, tal qual a escalopendra entre fendas de lava, com pedras em volta, dos lados e por cima. A cabana em que mora parece com um baú de pedra em pé, com muitos compartimentos e furos.


(...) Quase todas as cabanas são habitadas por mais pessoas do que as que moram numa só aldeia samoana; por isto, tem-se de saber exatamente o nome da aiga (família) que se quer visitar. Cada aiga tem para si uma parte especial do baú de pedra, ou em cima, ou embaixo, ou no meio, à esquerda, à direita, ou mesmo na frente. E cada aiga não sabe nada da outra, nada mesmo, como se entre elas não houvesse um muro de pedra mas, sim, Man ono, Apolima, Saváii (três ilhas do grupo de Samoa) e numerosos mares. É muito comum nem saberem o nome umas das outras; e se se encontram no buraco por onde entram e saem, cumprimentam-se de má vontade, ou resmungam qualquer coisa, tal qual insetos hostis, dando a impressão de estarem zangadas por terem de viver perto umas das outras.” (Scheurmann 2003:23)

Cabanas de pedra, multidão de desconhecidos como insetos hostis. Estas imagens apontam as dimensões problemáticas enxergadas por Tuiávii nos modos de habitar dos europeus e nas maneiras como se relacionam entre si. Tendo em mente a distinção clássica de Ferdinand Tönnies entre sociedade e comunidade, podemos dizer que Tuiávii reprova a sociedade europeia no que esta tem de aridez e distância dos laços afetivos e emocionais que orientam a vida em comunidade. Ao invés de tempo dedicado a uma sociabilidade calcada no lúdico, no exercício imaginativo (como a dança, os recitais de poesia, etc.), Tuiávii vê os rostos carrancudos, os ranzinzas completamente alheios aos vizinhos e a qualquer demonstração gratuita de afeto. Uma reflexão de Michel Onfray, presente em Teoria da Viagem – poética da geografia, nos auxiliará a entender a leitura de Tuiávii sobre as ideias de vizinhança, habitação e sobre a suposta cisão que o papalagui pretende efetuar entre cultura e natureza: “Como conviver com o lugar da residência eleita, com os hábitos, o ritual, as referências? De que maneira reatar, no artifício e segundo os princípios da cultura, com as forças comportamentais apontadas pela etologia? Que relações mantêm a casa e a toca, a superfície de um apartamento e o território marcado pelos dejetos de um animal? Qual a proximidade entre o que se passa atrás da porta, após girar a


chave ao regressar, e a disposição troglodita de um mamífero terrestre?” (Onfray 2009:86)

É no entre-lugar, na fissura, na brecha entre “a casa e a toca” que parece se instalar a investigação de Tuiávii. Ao falar nos baús de pedra e nas multidões que ocupam estes baús, indicando o descontentamento com que se relacionam os sujeitos que habitam estes locais, Tuiávii insinua um desenho proporcionalmente oposto na vivência dos grupos sociais samoanos. Os quase cem anos que separam a publicação do Papalagui de nossos dias não atenuaram os elementos que informam o texto de Tuiávii e são alvo de sua crítica. Pelo contrário, os condomínios atuais que mais se assemelham a bunkers e as individualidades líquidas nos permitem pensar a dimensão peculiar da crítica do nativo samoano e sua incompreensão fundamental e arejada das relações sociais europeias. Ou melhor, sua compreensão imaginativa de uma vida mais eroticamente apreendida e mais espontaneamente vinculada aos processos e temporalidades do mundo natural permite ler as anomias da sociedade europeia com uma clareza que indica notavelmente uma esquizofrenia partilhada pelos papalaguis, moídos nos dentes do trabalho, no cotidiano invadido de rituais sociais cada vez mais desprovidos de qualquer sentido ou energia, descolados da plenitude de uma respiração mais animal e animada e menos raciocinada e esquemática. Além das narrativas sobre o corpo e as habitações, o conceito de tempo é outro elemento presente no texto de Tuiávii fundamental para percebermos as sutilezas das visões de mundo sugeridas e desencadeadas pela antropologia intuitiva do samoano, infiltrada na torrente crítica em torno das leis e afetos que orientam e conduzem as vivências dos papalaguis.


Se para o nativo samoano não há mais tempo do que o disposto pelo Grande Espírito, impossível de mensurar, calcular, dividir, cronometrar, organizar em sentidos estanques e definidos a princípio por uma medida humana, um tempo incapaz de ser retido ou controlado, ele observa que para os papalaguis o tempo é visto de uma maneira patológica: “Digo que deve ser uma espécie de doença porque, supondo que o Branco queira fazer alguma coisa, que se coração queime de desejo, por exemplo, de sair para o sol, ou passear de canoa no rio, ou namorar sua mulher, o que acontece? Ele quase sempre estraga boa parte do seu prazer pensando, obstinado: “Não tenho tempo de me divertir”. O tempo que ele tanto quer está ali, mas ele não consegue vê-lo. Fala em uma quantidade de coisas que lhe tomam o tempo, agarra-se, taciturno, queixoso, ao trabalho que não lhe dá alegria, que não o diverte, ao qual ninguém o obriga senão ele próprio. Mas, se de repente vê que tem tempo, que o tempo está ali mesmo, ou quando alguém lhe dá um tempo – os Papalaguis estão sempre dando tempo uns aos outros, é uma das ações que mais se aprecia – aí não se sente feliz, ou porque lhe falta o desejo, ou está cansado do trabalho sem alegria. E está sempre querendo fazer amanhã o que tem tempo para fazer hoje.” (Scheurmann 2003:50)

E ainda completa destacando a ansiedade com que o papalagui fiscaliza e racionaliza a contabilidade da própria idade (de seu próprio tempo): “Todo Papalagui é possuído pelo medo de perder o seu tempo. Por isso todos sabem exatamente (e não só os homens, mas as mulheres e as criancinhas) quantas vezes a lua e o sol saíram desde que, pela primeira vez, viram a grande luz. (...) Ter tantos anos significa ter vivido um número preciso de luas. É perigoso esta maneira de indagar e contar o número das luas porque assim se chega a saber quantas luas dura a vida da maior parte dos homens. Todos prestam muita atenção nisso e, passando um número muito grande de luas, dizem: “Agora, não vou demorar a morrer”. E então essas pessoas perdem a alegria e morrem mesmo dentro de pouco tempo.” (Scheurmann 2003:50-51)


Esta espécie de ressentimento, de amargura ontológica que Tuiávii encontra nos modos europeus de experimentar a temporalidade de maneira preocupada e numa tentativa de controle é uma disposição de espírito, um dispêndio de energia que contamina as demais atividades e projetos que ocupam o horizonte dos papalaguis. E ganha força e se consolida de maneira tão sorrateira e unívoca que acaba por englobar territórios tão distintos quanto o espaço da vida prática do mundo do trabalho e o abismo sem fundo do pensamento e da imaginação humana. Podemos observar e absorver isto dos trechos que apresentamos adiante: “É raro ver um Papalagui que ainda salte, que pule como criança, depois que fica adulto. Pelo contrário, quando anda, arrasta o corpo, como se alguma coisa entravasse seu movimento. O Papalagui disfarça, nega esta fraqueza, dizendo que correr, pular, saltar não são decentes para um homem importante. Hipocrisia: é que seus ossos estão duros, sem movimento e seus músculos não tem mais animação porque a profissão os fez sonolentos e mortos. E a profissão é também um aitu que destrói a vida; um aitu que ao homem insinua bonitas coisas mas lhe chupa o sangue.” (Scheurmann 2003:73)

E ainda: “A única coisa capaz de curar os doentes de tanto pensar seria esquecer e expulsar os pensamentos. Mas eles não fazem isso ou só pouquíssimos; a maior parte leva na cabeça um fardo, um fardo que fatiga o corpo, tira as forças, envelhece antes do tempo. (...) Não devemos, nem podemos fazer coisa alguma que não nos torne mais fortes de corpo, mais alegres e melhores de espírito. Precisamos, e isto é o mais importante, evitar tudo quanto nos prive de alegria de viver, de tudo que nos obscureça o espírito, lhe tire a luz clara, e faça a cabeça brigar com o corpo. O Papalagui, por sua maneira de viver, nos prova que pensar sem parar é doença grave que muito diminui o valor do homem.” (Scheurmann 2003:92)


Ao apontar críticas sobre o que considera equivocado na visão de mundo (e na vivência prática) carrancuda, no modo de perceber, apreciar e atuar dos papalaguis no mundo da vida, Tuiávii preenche as entrelinhas de seus discursos – poderíamos dizer, suas premissas, o lugar de onde emergem suas compreensões – com alegria de viver e jorro lúdico. Para o samoano existe um espaço vital para as dimensões imaginativas da vida humana e suas demandas pela felicidade e satisfação dos prazeres e os contatos necessários com as presenças dos outros seres da teia da vida e suas paisagens distantes dos cenários áridos das vastas urbes e suas tecnologias de sucatas. Sobretudo, as narrativas do Papalagui permitem um vislumbre de uma experimentação biográfica mais propensa ao exercício mamífero das potencialidades humanas que a corrida desenfreada e cega instigada e fustigada pelos dentes ideológicos e bélicos do capitalismo tardio. Um jorro de visão lúcida, rara no seio de discursos, na seara de ideias do mundo europeu de modo tão incisivo que quase um século depois os recados de Tuiávii permanecem com frescor e podem servir de mote para uma leitura rara da realidade contemporânea, ainda mais esquizofrênica e caótica que a descrita e criticada pelo samoano. Os comentários de Tuiávii, lidos no bojo de nosso tempo, encerram alguns dispositivos indispensáveis para uma reformulação rebelde e revolucionária para vidas mais autênticas e arranjos sociais mais honestos e sinceros. Ao formular uma crítica de eixos determinantes da vida social e individual dos papalaguis (as ideias e os usos do corpo, os modos de convivência e habitação, a percepção do tempo, a unilateralidade da profissão e a atividade desenfreada da razão, entre outros), as narrativas de Tuiávii indicam que é possível arejar a abafada e claustrofóbica vivência urbana.


Longe de ser raro pela construção de um discurso complexo ou por questões técnicas (como dificuldade de acesso ao texto), O Papalagui – comentários de Tuiávii, chefe da tribo Tiavéa, nos mares do sul é uma escritura rara na medida em que podemos ler as invenções de uma voz ancestral (ainda que talvez filtrada no olhar do próprio papalagui Eric Scheurmann, seja no papel de ficcionista ou como compilador). Ao forjar uma antropologia intuitiva do modo de vida ocidental, ao que contrapõe por sugestão outro mundo possível, outros arranjos sociais e individuais, os comentários de Tuiávii (personagem ou pessoa) são raros numa leitura que consegue captar dentro da escritura (e nas direções que extrapolam o texto e são insinuados na narrativa) os pilares que escapam ao tempo e aos limites das circunstâncias de produção do texto, conseguindo atentar para as muitas premissas que constituem o fôlego verdadeiro da visão crítica sobre o mundo ocidental. A escritura da antropologia intuitiva sobre o papalagui é rara ao tempo em que possibilita ao leitor um estranhamento, uma esquisitice imprescindível ante a corrente hegemônica da lógica cultural do capitalismo tardio (e seus valores judaico-cristãos, brancos, masculinos, heterossexuais, etc.). A raridade dos comentários de Tuiávii reside num exercício de liberdade de percepção, numa atividade sensível de desconstrução do senso comum e num jogo de energias que abre um território criativo para a emergência de comportamentos e ideias distintas dos modelos aguardados no horizonte de expectativas do ocidente.


Num mundo pré-colapso pós-industrial (tragédias sociais e ambientais, etc.), a escritura exercitada por Tuiávii adquire peculiaridades que lhe tornam uma estratégia potente para o desmonte de ideias facilmente assimiláveis como naturais na vida social e psíquica dos papalaguis (o império do “deus” trabalho, as supostas vantagens da máquina desenfreada da razão, o acirramento das especializações e a corrida vertiginosa contra o tempo – que podemos ver claramente numa eterna busca pela juventude -, etc.). Os comentários sobre o papalagui são raros de tal modo que ainda suscitam surpresas e iluminações, permitindo aos seus leitores fortuitos o encontro de campos textuais de uma compreensão do mundo contemporâneo carregada de clareza e sensibilidade. Só não é raro encontrarmos aos montes os sujeitos que seguem no rebanho, na multidão de contentes, a que serviria plenamente a carapaça do papalagui com todas as suas patologias decorrentes.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ONFRAY, Michel. Teoria da Viagem – poética da geografia. Porto Alegre: L&PM, 2009. ___________________. Tratado de Ateologia. São Paulo: Martins Fontes, 2007. SCHEURMANN, Eric. O Papalagui: comentários de Tuiávii, chefe da tribo Tiavéa, nos mares do sul, recolhidos por Erich Scheurmann. São Paulo: Editora Marco Zero, 2003.


Deboche, desvio e desvario: Luther Blissett e a literatura da guerrilha psíquica

“Qualquer um pode ser Luther Blissett, basta adotar o nome Luther Blissett. Seja você também Luther Blissett!”. Este convite delirante, emergente na década de noventa do século passado, a partir da Itália, tornou-se uma das ideias mais corrosivas e provocadoras da contemporaneidade – procuraremos demonstrar ao longo deste ensaio em que medida consideramos as práticas e ideias de Blissett corrosivas e provocadoras. Nosso intento com este ensaio não é exatamente deslindar todos os meandros obscuros, todas as idas e vindas, aparições e desaparições do neomítico herói do povo Luther Blissett no seio das comunidades libertárias e das práticas contestatórias do regime capitalista e suas vigas de sustentação. Sabemos de antemão que se nos movermos com a expectativa de capturar, abarcar num conceito apaziguador a figura irônica de Luther Blissett, estaremos nos lançando num poço sem fundo, atraindo toda sorte de prestidigitador para nos desorientar no percurso de aproximação da trajetória caótica e perturbadora do nome múltiplo Luther Blissett. Nossa motivação é mais modesta: realizaremos uma interpretação das ações e da literatura “cavalo de Tróia” de Blissett, tomando por objeto de leitura uma das dezenas de materializações de Luther Blissett no mundo, o livro Guerrilha Psíquica (que reúne material do Luther Blissett Project, grupo mais organizado no seio da comunidade aberta que adota o pseudônimo), editado no Brasil pela coleção Baderna, da editora Conrad.


Guerrilha Psíquica é uma compilação de textos de gêneros variados surgidos em ocasiões diversas: manifestos, panfletos, quadrinhos, entrevistas de rádio, inclusive trechos escolhidos de outros livros, como Mind Invaders, por exemplo. Deixaremos de fora de nosso horizonte de preocupações outros escritos, a exemplo de Q – O caçador de hereges – um misto de romance histórico e de aventuras com manifesto anarquista e tratado de amor e filosofia. Para realizar a crítica literária de um dos empreendimentos ensaísticos de Blissett, realizaremos também derivas para longe do texto, trazendo para nossa reflexão a movimentação da figura do autor no que ela carrega de questionamento às noções ocidentais tão arraigadas quanto identidade, individualidade, valor e verdade. E também espalharemos nosso olhar sobre outras obras e autores que consideramos afins às visões que constituem e informam o projeto Luther Blissett. E agora, sem receio de cair em contradição e com alguma liberdade para quase tropeçar na tentação de enquadrar a figura de Luther Blissett num esquema explicativo, passaremos em revista alguns dados fundamentais sobre esta persona, para situar o leitor neste emaranhado de linhas de fuga das banalidades cotidianas e possibilitar uma percepção desta filigrana de planos de sabotagem e diversão mítica contra o capitalismo tardio. Deixemos que Luther Blissett (quaisquer das pessoas que tenha assumido a máscara) fale sobre Luther Blissett: Luther Blissett é, sim, a experimentação artística, midiática, intelectual, urbanística...em uma palavra, espetacular, que vocês amam citar, mas é também tudo isso que geralmente vocês ocultam. Luther Blissett é uma seita sem líderes nem hierarquias, na qual nenhum membro conhece o outro, na qual tudo pode acontecer, porque ninguém decide no lugar do outro.


Cada coágulo temporário de personalidade de Luther Blissett basta a si mesmo, não precisa entrar em contato com nenhum outro...e se isso acontecer, quem realmente entrou em contato? Somente outra pessoa que afirma ser Luther Blissett: isso me torna invencível. Quem sou? Quantos sou? Qual é a minha atividade principal? Isso nem eu sei. No Estado de Emergência, sou a única verdadeira emergência da qual vale a pena se ocupar. Será o pânico, e ninguém jamais poderá confessar nada. (Blissett 2001:259)

Luther Blissett é um nome múltiplo (em termos gerais, uma técnica de comunicação e guerrilha, um nome, uma assinatura partilhada por várias pessoas, para diferentes propósitos e com a potência da confusão: assinatura de um escritor, autor de um terrorismo poético, fonte de imprensa, artista desaparecido, ex-astro do rádio, etc.), um pop star aberto, uma máscara, um novo mito de herói popular adotado e compartilhado por centenas de agitadores culturais ao redor do mundo. Luther Blissett é o exército aparente de um só sujeito, é uma turba desperta e pronta para dançar caoticamente que constitui os órgãos, vísceras e espírito de Luther Blissett, e este vai se infiltrando improvisadamente pelas brechas do poder, tanto nos espaços “intelectuais e virtuais” quanto, principalmente, no mundo da vida, no chão do cotidiano. Blissett joga com as possibilidades do desvio, se aventura com as energias do lúdico para ultrapassar os limites impostos (éticos, econômicos, bélicos, etc.) pela ordem social instituída e assim alcançar uma dimensão de agito e frenesi que permitam um novo arranjo das vivências e da vida social. Foi esta dimensão dionisíaca, de uma revolução que sabe dançar, que inspirou e animou uma infinidade desconhecida, rizomática, dispersa de mulheres e homens em rincões distintos do planeta (do Oiapoque ao Mississipi, de Bolonha ao Laos, etc.) a adotarem em suas estratégias e rebeliões da vida cotidiana a assinatura mítica, a vestirem a máscara de


trapaceiro contente de Luther Blissett e aumentarem os circuitos e os fluxos de intriga, de festa e sabotagem contra as ações e comunicações físicas e psíquicas da ordem capitalista global. Um trecho recolhido da anarquista de origem russa Emma Goldmann talvez nos ajude a traçar uma dimensão histórica neste jogo de sombras do exercício da individualidade: (...) outro fator que obriga os governos a um conservadorismo cada vez mais reacionário é a desconfiança inerente que eles têm do indivíduo, o temor da individualidade. Nosso sistema político e social não tolera o indivíduo com sua constante necessidade de inovação. É, portanto, em estado de “legítima defesa” que o governo oprime, persegue, pune e às vezes mata o indivíduo, sendo ajudado por todas as instituições cujo objetivo é preservar a ordem existente. Ele recorre a todas as formas de violência e é apoiado pelo sentimento de “indignação moral” da maioria contra o herético, o dissidente social, o rebelde político, maioria essa em quem se inculcou desde séculos o culto do Estado, educada na disciplina, na obediência e na submissão à autoridade e no respeito a ela, cujo eco se faz ouvir em casa, na escola, na igreja e na imprensa. (Goldman 2007:36)

Escrito na altura dos anos quarenta do século passado, o texto indica os dentes do Estado sobre a carne dos sujeitos. Blissett sabe, com alguma sagacidade, que as corporações multinacionais – que tragam há muito a vitalidade e o poder efetivo dos estados nacionais – encontraram no estímulo das distinções um motor para o consumo (pensemos aqui nos nichos de mercado, nacos específicos de tudo que se possa imaginar). E assim, o que hoje pode aparentar um fomento das diferenças e inovações individuais, dos anseios legítimos de cada um, se torna um mecanismo de previsão, controle e dispositivo de disciplina das multidões solitárias: um chicote, um cabresto contra as pessoas.


É assim que a figura de Luther Blissett mostra o entendimento da necessidade de acolher, numa uniformização esquizofrênica, a variedade de pessoas e sonhos, cedendo espaço às contradições e recusando, na prática, as trilhas construídas pela lógica do domínio capitalista. Sem nome próprio (além do múltiplo Blissett), sem possibilidade de rastreamento, cerceamento das liberdades individuais. Os indivíduos somem sob a máscara midiática de Luther Blissett, ao mesmo tempo em que conquistam campos para avançar: no comportamento, na alimentação, na literatura viva, entre outros recortes da existência. Os milhares de Blissett agem como se realizassem a intuição de Piotr Kropotkin, quando este anota que além de nossa própria vida, vivemos um pouco da vida dos outros e da humanidade. Em verdade, nossa vida é um pouco o reflexo daquela: não comemos, não passeamos, não abrimos os olhos à luz, não os cerramos para dormir sem ter as provas inumeráveis de nossa íntima ligação com uma multidão de nossos semelhantes que trabalham conosco e para nós, com os quais cruzamos a cada instante e que podemos considerar, de alguma forma, como parte de nós mesmos, como membros de nossa existência. (Kropotkin 2007:50)

Luther Blissett é a humanidade, semelhante a si mesmo na mesma medida em que é em tudo estranho a si mesmo. E é na sombra de um mito irrefreável, na torrente de “sensibilidades antiautoritárias atuantes” reunidas na imagem mágica de Luther Blissett, que se inicia um movimento simultaneamente nos mares da internet e nos campos do real (e mesmo complicando estas fronteiras, debochando de seus limites ontológicos). O golem surrealista Luther Blissett sabe na superfície espalhada de seus muitos poros que é preciso cortar as rotas de alimentação do capital, trazendo a indisciplina, a


multidão, o desejo e o sonho para as táticas de movimentação no palco espetacular da vida ordinária, televisual, de hiperconsumo, info-entretenimento e catástrofe ecológica, entre outras peripécias da vida contemporânea. Blissett registra que “com a identidade perdida, o ataque pode chegar de qualquer lado, inesperado. Tudo passa a ser Imprevisível. Portanto, perigoso para os que devem vigiar e punir.” (Blissett 2001:81). Diante do ritmo e modo de vida imposto aos indivíduos pelas sociedades capitalistas, Blissett aposta na recuperação do maravilhoso e do surpreendente, acumulando forças de resistência à lógica que conduz o rebanho para a máquina de moer carne. Blissett traz para seus escritos e seus gestos comportamentais a noção básica de que não basta mover-se oculta e rapidamente num território distante das instâncias de poder. Ao contrário, é preciso ser célere e anônimo, ao mesmo tempo em que não se asfixia na clandestinidade: (...) o rebelde que entra na clandestinidade, protótipo mítico de Luther Blissett, corre o grave risco de tornar-se funcional para a lógica paranóica do poder. O bosque, de fato, nunca está próximo dos muros do castelo. Para separá-los há pastos e campos, estradas e rios. O bosque é distante, separado do burgo, exatamente como o inimigo quer que seja. Não devemos nos iludir: entrar na clandestinidade não é suficiente. O poderoso sempre vai procurar delimitar e circunscrever a base estratégica dos inimigos, para tornar sua estratégia menos eficaz e insidiosa. (Blissett 2001:43-44)

É ciente da capacidade de apreensão, resignificação e aniquilamento operado pelas indústrias do poder e do espetáculo contemporâneo que Blissett se cerca de uma variedade de táticas de guerrilha psíquica, um acervo composto por sua permanente capacidade de infiltração, surpresa, improviso, simultaneidade e fragmentação num


embate decidido e divertido contra as disciplinas heterodeterminadas, controladas, planejadas pela ordem social hegemônica do capitalismo tardio. Sobre a questão da disciplina, aponta Nedd Ludd que Uma sala de aula só “funciona” porque os corpos dos alunos, isto é, os alunos, estão disciplinados a se disporem de uma determinada maneira. E assim é em todos os espaço-tempos na sociedade, de um teatro, passando por um exército, um show de rock ou a locomoção pelas ruas. A indisciplina do corpo em um determinado espaçotempo, ordenado sob uma disciplina específica, pode levar o sujeito muitas vezes à prisão ou ao hospício. O “delito” e a “loucura” são algumas das criações que a nossa sociedade reservou para os corpos indisciplinados. Manifestantes que transformam seus corpos em catapultas, que atiram pedras em barreiras num espaço que exige outra disciplina (ou uma disciplina), quebrando a rotina e a tranquilidade dos que dirigem e comandam a economia e a política, demonstram (pelo menos em certo período e espaço) a ausência daquilo que mantém as coisas em ordem e o capitalismo em vigor: a disciplina. (Ludd 2002:14)

E ainda esclarece: As ruas não são o local determinado no capitalismo para corpos atirarem pedras e nem serem barricadas, e não são o local para enfrentamentos econômicos e políticos: as mesas de “negociações” e o parlamento são os espaços na nossa sociedade para isso. O sinal dado aos homens no poder por esta auto-organizada indisciplina em massa, a “agitação das massas”, é de que as pessoas começam a não se posicionar mais nos lugares estabelecidos e a não se comportar mais do modo necessário para a continuidade do sistema, por motivo de um desejo, aspiração ou reivindicação. O sinal dado pela indisciplina em massa, que enfrenta o delito e a loucura (a marginalidade), assusta e pressiona muito mais os que estão no poder do que outras formas de manifestação, por ser já um rompimento com a disciplina do sistema, antecipando a imagem de um rompimento total. (Ludd 2002:14)

Luther Blissett é uma multidão de corpos e mentes indisciplinadas, sabedoras das maquinarias do espetáculo, leitores e praticantes de situações (e situações abertas, como o nome múltiplo indica).


E para sua estratégia de locomoção não interessa satisfazer-se em ocupar o espaço virtual, o cenário alternativo, as ondas da contrainformação, da clandestinidade. Luther Blissett está nas ruas, perambulando no teatro contemporâneo em tempo real, acompanhado por milhões de câmeras de vigilância que não apreendem, entretanto, seu verdadeiro rosto, que é sua máscara, sua presença mítica que desafia à lógica e o bom senso. Não há tempo a perder com Identidades Únicas Impostas, nem com a maratona multicolorida de quinquilharias de extermínio e produção de sucata. Não há razão para confinar o avatar Luther Blissett num domínio do campo das ideias, num vetor de teorizações e confortáveis recusas de gabinete ao estado atual das coisas. Blissett é uma “virada pop”, uma teoria bêbada e grouchomarxista que ganha corpo no mundo em múltiplos veículos (médiuns) do mito: Luther Blissett confia em uma filosofia prática, mas desdenha e boicota o estudo da lógica como o feito nas universidades ou em outras instituições autoritárias. O Projeto Luther Blissett deve ser experimentado na rua e implica a criação contínua de estilos de vida libertários, não abstrações teóricas vendidas como “crítica radical”. O capitalismo domina as coisas e as pessoas, nomeando-as e descrevendo-as: “Você é um Eu”. “Não, eu não quero mais ser um Eu, quero ser infinitos Eus!”. O nome coletivo destrói os mecanismos de controle da lógica burguesa. Sem possibilidade de classificação, o poder não pode impor identidades pré-cozidas e prédigeridas, nem colocá-las umas contra as outras. Pavlov morre com seus sininhos de merda. (Blissett 2001:124)

Blissett observa e recebe as visões das engrenagens, maquinarias (mas também as sinapses nervosas, as transmissões mentais) que movem a sociedade capitalista. E, embora mais aparentado aos desertores da Internacional Situacionista, explicita pontos de contato com a leitura da sociedade do espetáculo, como registrou Guy Debord:


Toda a vida das sociedades nas quais reinam as modernas condições de produção se apresenta como uma imensa acumulação de espetáculos. Tudo o que era vivido diretamente tornou-se uma representação. As imagens que se destacaram de cada aspecto da vida fundem-se num fluxo comum, no qual a unidade dessa mesma vida já não pode ser restabelecida. A realidade considerada parcialmente apresenta-se em sua própria unidade geral como um pseudomundo à parte, objeto de mera contemplação. A especialização das imagens do mundo se realiza no mundo da imagem autonomizada, no qual o mentiroso mentiu para si mesmo. O espetáculo em geral, como inversão concreta da vida, é o movimento autônomo do não-vivo. (Debord 1997:13)

O nome Luther Blissett foi retirado de um jogador homônimo de origem jamaicana, que jogou no futebol inglês pelo modesto Watford e foi depois contratado pelo clube italiano Milan. Mas esta pode ser talvez apenas mais uma peça, mais um chiste pra desviar atenção da grande mídia, embaralhar os caminhos da origem ou apenas uma divertida e despretensiosa piada posta em circulação por algum Luther Blissett. Para compreendermos um pouco mais a figura de Blissett, lancemos mão de mais um trecho: Por que centenas, milhares de pessoas resolvem adotar o mesmo pseudônimo, compartilhar – não sem oposições – a mesma reputação, para assinar/reivindicar ações político-culturais, performances, escritos teóricos ou de ficção e, em geral, “obras do engenho”? Qual é a razão do sucesso do nome “Luther Blissett” tanto na World Wide Web quando no mundo “real”, nas ruas das cidades europeias, na mídia impressa, praticamente em todo lugar? (...) Há anos Luther continua deixando deslocados os observadores e pondo em crise todas as definições que não são diretamente geradas pela praxe de quem escolhe adotar o nome. Entre as muitas características do pensamento e da ação de Blissett, aquela que talvez cause mais perplexidades é a crítica feroz, violenta, do conceito de “Indivíduo”, entendido como primeiro sujeito do direito burguês (“Homem Egoísta”, definiu-o Karl Marx). Em nome de que esse conceito é continuamente escarnecido, vilipendiado, curto-circuitado, levado ao paradoxo? (Blissett 2001: 15-16)


A resposta de Blissett aponta tanto para um coletivismo, uma tribo nômade associada intuitivamente, quanto para a apologia da divisibilidade do singular, uma espécie de apologia ao sentimento esquizofrênico, com rastros notáveis de Gilles Deleuze e Félix Guattari. Blissett é, simultaneamente, o sumiço e a emergência de uma miríade de sujeitos, desaparição da individualidade em torno de uma máscara de luta comum, irrupção de um dispositivo, uma estratégia de luta contra os aparatos de vigilância e punição, uma tática ninja contra os aparelhos ideológicos e materiais do estado e as redes de interesse e força do capital. Blissett é o malabarista das bolas ninjas de fumaça, apostando numa revolução cotidiana que dê conta do maravilhoso. E as diversas e diversos Luther’s Blissett’s envolvidos neste projeto de entrelaçamento da revolução coletiva com a rebeldia individual, de interesse a todos e todas que se recusam a uma vida diminuída, esmagada e se movimentam por uma vida vigorosa, fértil, sem fronteiras entre as demandas do pão e da poesia, sugerem conhecer que com a economia de consumo absorvendo a economia de produção, a exploração da força de trabalho é englobada pela exploração da criatividade cotidiana. Uma mesma energia arrancada do trabalhador durante suas horas na fábrica ou nas horas de lazer faz rodar as turbinas do poder, que os detentores da velha teoria lubrificam beatamente com a sua contestação formal. Aqueles que falam de revolução e luta de classes sem se referirem explicitamente à vida cotidiana, sem compreenderem o que há de subversivo no amor e de positivo na recusa das coações, esses têm na boca um cadáver. (Vaneigem 2002:31)

E Luther Blissett, quase desnecessário dizer, não zela pela contestação formal, daí a energia criativa desencadeada por uma torrente de sujeitos irmanados no mito do “Grande Timoneiro Inexistente” e envolvidos na invenção de novos gestos, tramando uma mitopoese:


Nossa opinião imodesta é que não se pode entender o “comunitarismo” de Blissett sem partir do conceito de “mitopoese”, criação de mito. (...) Não foi necessário reunir nenhum comitê central. Simplesmente, decidiu-se (essa forma impessoal teve repercussões definitivas, pois deu forma a todas as ações seguintes) usar o potencial da nova mídia e seu impacto iminente sobre aquelas tradicionais, com a finalidade de lançar um novo “produto”, uma mercadoria intangível, imaterial: um mito de luta comum a todas as tribos e comunidades de rebeldes. Esse mito deveria inserir-se em um cenário de revoluções memoráveis, definido pelas ecocatástrofes cada vez mais frequentes, pelo fim tumultuoso da ordem mundial bipolar e – last but... – pelo aparecimento do assim chamado “trabalho imaterial” pós-fordista e pela ampliação da Rede. (Blisset 2001:16-17)

E ainda: Mitopoese: “Construção do mito”. Utilizar as lendas urbanas, as técnicas de intelligence, as estratégias publicitárias, mas se desviando de tudo isso com o intento de criar uma reputação, um personagem – no começo “virtual”, depois, cada vez mais real. (...) Mitopoese, dizíamos: saquear e readaptar um patrimônio bastante antigo de mitos e arquétipos comuns a todas as sociedades humanas, em seguida recomposto na arte e na cultura de massa. Encontrar umas figuras tópicas, remontando ao cinema, aos quadrinhos e à literatura serial, para depois produzir suas sínteses, baseadas no máximo denominador comum: uma “reputação” entendida como obra aberta, “remanipulável” constantemente, baseada no maior número possível de “retoques” e intervenções subjetivas. (Blissett 2001:17)

E é com a máscara do mito Luther Blissett que várias pessoas passarão a operar diversos pequenos golpes contra o sistema estabelecido de mídia, consumo, economia de mercado e afins. É possível reconhecer no espectro de táticas e engenhos de Luther Blissett incorporações da deriva, da psicogeografia e do détournement (desvio) situacionista, a selvageria e o cinismo dada, articulações e rizomas de fluxus e arte postal, ação direta punk, etc.


Este caldeirão de referências de vanguarda e mobilizações sociais ganha um rosto que simultaneamente forja unidade e fragmentação, agrupa ataques de corações e mentes aos modos de reprodução das ideologias dominantes, ao mesmo tempo que dispersa numa rede complexa, autônoma e anônima uma série de pequenos “cavalos de Tróia”, grãos de areia nas engrenagens da ordem mundial do dia. Retomemos a ação “horrorista”, na primavera/verão de 1994, em Bolonha: (...) um grande número de cartas de cidadãos, indignados pelo achado de entranhas de animais em lugares públicos, chega aos jornais locais de Bolonha. Ônibus, parques públicos, estacionamentos parecem ser o lugar privilegiado dos misteriosos semeadores de miúdos. (...) Algumas semanas depois, enquanto as cartas e as sinalizações continuam sem parar, no happening dos jovens de Comunhão e Liberação, dentro dos Jardins Margarida, são encontrados um cérebro de bezerro e um coração suíno, pendurados em um anzol, com um cartaz misterioso trazendo a escrita: “Novosibirsk está queimando!”. E assim nasce o fenômeno que os jornalistas batizam de “Horrorismo”. Páginas e páginas de crônicas locais são preenchidas por pareceres de notórios docentes de história da arte, sociólogos, psicólogos, e outros virtuosos. Somente no final do verão a reconstrução completa dos acontecimentos será disponibilizada por um tal de Luther Blissett. O horrorismo não existe, os únicos atos horroristas foram os dois acima descritos. As cartas publicadas nos jornais, que relatavam os achados das entranhas na cidade eram todas falsas, escritas pelos próprios horroristas. Prova geral de sistema: o que você pode fazer com alguns selos e um pulinho no açougue. (Blissett 2001:28-29)

Nesta ação é possível identificar as nuances de deboche que embriagam as atividades culturais de Luther Blissett e aprender um elemento fundamental, um dispositivo chave para a aproximação das manifestações e intervenções de Blissett no torvelinho das circunstâncias do espetáculo: a guerrilha-midiática e arte da comunicação-guerrilha.


Mais do que se configurar como uma alternativa ou uma contraposição às Grandes Mídias das Corporações Multinacionais, Blissett procura preencher os espaços e fluxos das próprias corporações, adotando as estratégias indicadas na Arte da Guerra, de Sun Tzu, sobre os cheios e os vazios, ocupando os ambientes da própria máquina do sistema, a corroendo por dentro, operando a partir de seus mecanismos, postos a funcionar numa desregulamentação e num modo imprevisto. Luther Blissett não nutre falsas perspectivas a respeito dos sujeitos que compõem e informam o estado das fileiras da ordem instituída, nem se erige como um portador de novas verdades; Blissett cuida, enfim, de não cuspir para cima nem caducar e se transformar num tropeço para si mesmo: A guerrilha midiática não quer revelar a “verdade mais verdadeira” que os grandes mass media escondem de nós: a condição preliminar para essa prática de guerra é o abandono da recriminação e de toda a teoria do Grande Irmão, vale dizer, aquela que vê os agentes que gerenciam os meios de comunicação de massa como espertos e eficientes “desinformantes do regime”. (...) A guerrilha midiática não serve nem para demonstrar a natureza mentirosa da mídia. Todos sabem que ela mente, é senso comum, aliás, é “papo de ônibus”. (...) A guerrilha midiática é (...) o abandono da recriminação e a adoção de um retrovírus, uma prática lúdica que exorciza, enquanto tal, a desinformação praticada pelos mass media, redimensionando, aos nossos olhos, seu poder. (...) A guerrilha midiática não é somente uma maneira de se apropriar novamente da informação, no sentido de roubar espaço ao sistema midiático “oficial”, ou de demonstrar a deformação das notícias por ele exercida. Ela é a realização de um jogo de artimanhas recíprocas, uma forma de envolvimento da mídia em um trauma impossível de se captar e de se entender, uma trama que provoca a queda da mídia, vítima de sua própria prática. Arte macial pura: utilizar a força (e a estupidez) do inimigo, voltando-a contra ele. (Blissett 2001:27-28)


Vejamos outras operações e sabotagens de Luther Blissett e aproveitemos para captar as nuances que orientam esta literatura experimental (vida e literatura compondo um sistema de retroalimentação) na(s) vida(s) do jogador de futebol mais onipresente e debochado da história do esporte. Passemos e passeemos com os olhos sobre as histórias que envolvem os golpes que podemos resumir grosseiramente como o desaparecimento do ilusionista Harry Kipper, a vida, a obra e a morte do artista sérvio Darko Maver e a compilação esquizofrênica e desvairada de textos para o livro net.generation, editado pela empresa italiana Mondadori. Comecemos por Kipper. Numa articulação espalhada entre Bolonha, Údine e Londres, Luther Blissett disperso em todos os pontos, envia informes sobre o desaparecimento do artista inglês Harry Kipper à redação do programa de televisão Quem o Viu?. A equipe do programa se deslocou entre estas cidades, ouviu os amigos de Kipper, visitou os lugares frequentados pelo artista, conheceu sua casa, suas obras. Tudo iria bem para o programa, perseguindo audiência e resolvendo mais um caso de desaparecimento, não fosse um lance: (...) Harry Kipper nunca existiu, tudo era falso, tratava-se de uma “fraude” atuada entre Bolonha, Údine e Londres por um grupo transnacional de pessoas unidas pelo uso da mesma sigla: Luther Blissett. O mesmo que, poucos dias depois, reivindicará a peça, desvelando seus bastidores aos jornais nacionais. (Blissett 2001:30)

Este jogo de sombras, estas surpresas e reviravoltas acompanham não apenas as narrativas de Blissett, como se imiscui em suas práticas, deixando seus gestos prenhes de novidades, astúcias. Os casos Darko Maver e net.generation são ainda mais emblemáticos no esquema de divertidas trapaças de Luther Blissett.


A máquina de ilusões Darko Maver foi um “cavalo de Tróia” contra o sistema de arte mundial. Em parceria com o grupo 0100101110101101.org, Luther Blissett criou e disseminou a figura tresloucada de Darko Maver, artista sérvio polêmico conhecido por suas obras violentas (fetos humanos, mãos decepadas, cenas de crime, etc.) envoltas numa estética hiper-realista. E quando dizemos que os grupos 0100101110101101.org e Luther Blissett criaram e disseminaram a figura de Darko Maver não usamos uma imagem, mero pretexto argumentativo. Maver (sua biografia, suas obras e textos críticos sobre elas, etc.) foi uma bola de neve infiltrada no campo das artes visuais. Com a ação Darko Maver, o suposto artista sérvio, Luther Blissett conseguiu enganar o sistema de arte mundial e expor seus mecanismos de julgamento e mérito (como fez Duchamp, com o “Urinol”). A aparição de Maver, sua prisão e morte culminaram com retrospectivas, homenagens póstumas e análises acuradas, tendo inclusive recebido destaque na 48º Bienal de Veneza. Darko Maver se tornou um símbolo de resistência envolto em brumas, até que surge o relato dos bastidores da peça, que desmonta as engrenagens. Com o título de “A grande fraude da arte – você já teve a sensação de estar sendo enganado?”, Luther Blissett e o grupo 0100101110101101.org trazem a público as etapas de construção, disseminação e assimilação de Maver no circuito de arte mundial: Eu declaro ter inventado a vida e os trabalhos artísticos do artista sérvio Darko Maver, nascido em Krupanj em 1962 e morto na penitenciária de Potgorica em 30 de abril de 1999. (...) Darko Maver foi um artista politicamente incorreto, suas performances eram indigestas; ainda assim ele estava pronto para ser absorvido no sistema da arte. Seu trabalho, uma vez propriamente homogeneizado e privado de sua força expressiva, estava pronto para passar através do caminho canônico que liga galerias, exposições, o mercado da arte


e finalmente leva à paz eterna do museu, ápice de um processo anestésico, de desarmamento e esterilização, um processo que a arte sempre sofreu. O museu é um templo transparente onde a arte é celebrada, falsificada e degradada, tal como a prisão degrada a vida tornando-a irreconhecível. E o teorema, uma vez mais, se prova exato: um artista (uma identidade), um estilo, os trabalhos... e o sistema está pronto para absorver tudo e transformar a vida em bens de consumo. (...) tudo isso não vai acontecer a Darko Maver. Por que Darko Maver não existe! Por que seus trabalhos não existem! Darko Maver, nome real de um conhecido criminologista esloveno, é uma criatura da mídia. Estudado em detalhes para penetrar a resistência do sistema da arte, um novo cavalo de Tróia, Darko Maver não falhou. No momento de sua reciclagem - destino inevitável de qualquer pensamento/ação, mesmo a mais extrema e radical, sob o capitalismo - quando suas mãos já estavam atadas, ele desapareceu, revelando todo o seu potencial1.

Neste documento de seis páginas são deslindadas as artimanhas para a criação do personagem e suas obras, o processo de prisão, a identificação das fontes das imagens das obras (retiradas de sítios de internet com material de cenas de assassinato, etc.), exposições e críticas, a morte e, finalmente, o mito. Com um sorriso cínico e debochado no rosto, os grupos podem indicar as fragilidades do sistema artístico mundial. A literatura envolvida (resenhas, críticas de arte, releases, o documento em que os grupos assumem a autoria do “atentado” Darko Maver, etc.) e as ações desencadeadas apontam a estratégia de Luther Blissett de sabotar o capital se divertindo. E não foi diferente com o golpe na editora italiana Mondadori e a edição do livro net.generation: Em 1996, a editora Mondadori lança um livro assinado por Luther Blissett, intitulado net.generation. O organizador, um tal de Giuseppe Genna, explica na introdução como conseguiu contatar o Múltiplo e receber o material com que construiu o livro: foi por via telemática, recebendo instruções enquanto a obra era elaborada. No mesmo dia em que o volume é distribuído nas livrarias, nas páginas de La Republica e de Il Manifesto, Luther Blissett reivindica uma das maiores peças de sua carreira: o grande golpe na editora Mondadori.


(...) Giuseppe Genna estava circulando há um tempinho nos meandros da rede, frequentando grupos de discussão, visitando sites, etc., em busca de Blissett. (...) Blissett resolve usá-lo como cavalo de Tróia para pregar uma peça na editora. (...) começa a enviar-lhe um péssimo material recuperado por aí. Documentos tirados da rede e plagiados até ficarem irreconhecíveis, textos escritos por adolescentes totalmente bêbados, redações escolares sobre as novas tecnologias, falsas entrevistas, e assim por diante. Genna, envaidecido, apresenta o livro à Mondadori, que o publica (...). O livro já sai “queimado”, e venderá mais por ser um golpe exemplar do que por ser um texto de Blissett. (Blissett 2001:31-32)

Luther Blissett é o empenho pela sabotagem, por uma revolução divertida, por novos arranjos sociais que não se imobilizem no trauma das grandes narrativas. Ao contrário, dilui-se, infiltra-se pelas brechas do poder, jogando com as regras e instrumentos estabelecidos pelo atual estado de coisas, cuidando para que o jogo possa ser esgarçado aqui e ali, distorcido, corroído, desviado, deturpado, etc. Ao invés de uma guerra contra o sistema, fácil de localizar e erradicar, uma guerrilha psíquica, máquina fantasma se movendo por milhares de corações e mentes lúcidas e lúdicas. Pois Blissett não desconhece que o radar do poder é atuante e alerta e os sujeitos encontram-se sob constante vigilância. Como aponta o situacionista Raoul Vaneigem: O que é o devidamente certamente matemática, abscissas e 2002:98)

indivíduo para um sistema autoritário? Um ponto situado na sua perspectiva. Um ponto que ele reconhece, mas reconhece somente por meio da em um diagrama no qual os elementos, colocados em ordenadas, lhe atribuem o lugar exato. (Vaneigem

Blissett não está no lugar exato, Blissett não está no lugar errado. Blissett está aqui e ali, quase onipresente, sem interesse por grandes teorias e conspirações, tomadas de poder e movimentações na arena política partidária. Blissett se move nas ruas, numa literatura ágil que engloba os relatos e reivindicações de suas


peças, como também amplia o campo de recusas fundamentais dos modos de vida do capitalismo contemporâneo e suas teias de tédio. Luther Blissett é um furacão improvisado por muitos sopros e não podemos garantir (nem foi nossa pretensão), no estreito espaço deste ensaio, esgotar as possibilidades de leituras e atualizações de suas ações e escritos. Resta-nos afirmar que a literatura da guerrilha psíquica é uma literatura feita com sangue, não apenas para ser lida, mas reinventada nas apropriações e deambulações de cada um e de todos e todas na existência. Luther Blissett é um grito, uma canção, um poema, uma multidão de alegres formigas construindo os territórios do presente debaixo das barbas do poder. Este ensaio pode ser inclusive mais uma peça do famigerado Blissett, desta vez transfigurado na figura de um pacato e desconhecido ensaísta. Por fim, ouçamos, uma vez mais, a voz de trovão do maior goleador do futebol de todos os tempos: Subiremos uma nova ponte de corda, cavalgaremos um novo abismo e encontraremos novas situações, novas correntes de afeto, novos medos!!! [3 vezes Aleluia!] É esse movimento que Luther Blissett chama amor, irmãos e irmãs. É sobre aquela ponte, arqueada rumo ao possível, que AMAMOS. Não nos “refugiamos” no amor, não nos “consolamos” com o amor, encontra-se o amor quando o tempo vacila desde suas fundações, e mais uma vez, sentimos o eco do grito de nascimento abrir seu caminho das brumas! (...) Somente derrotando o medo do medo nos aproximamos do amor; nada mais fácil do que apavorar aqueles convencidos de que sua identidade deve ser “defendida” e que não se deve aventurar sobre a ponte, mas sim, eleger como “Pátria” e patrulhar a última extremidade de terra antes da perambeira. Os novos donos de escravos sabem disso, e é por isso que dão tanta importância à identidade: para impedir que os escravos fujam, desafiando o abismo, nascendo para uma vida nova, com os sentidos maravilhosamente despertos, todavia inebriados de felicidade e de potência! (...) Nossa capacidade de amar depende de como andamos pela ponte, não ao alcance da meta; em nós amasse o fato de sermos transição e pôr do sol. (Blissett 2001:216 )


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BLISSETT, Luther. Guerrilha Psíquica. São Paulo: Conrad Editora do Brasil, 2001. DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997. GOLDMAN, Emma. O indivíduo, a sociedade e o estado e outros ensaios. São Paulo: Hedra, 2007. KROPOTKIN, Piotr. O princípio anarquista e outros ensaios. São Paulo: Hedra, 2007. LUDD, Nedd. Urgência das ruas – Black Block, Reclaim the streets e os dias de ação global. São Paulo: Conrad Editora do Brasil, 2002. VANEIGEM, Raoul. A arte de viver para as novas gerações. São Paulo: Conrad Editora do Brasil, 2002. Nota 1 – 0100101110101101.ORG e LUTHER BLISSETT. 2000. A GRANDE FRAUDE DA ARTE - Você já teve a sensação de estar sendo enrolado? Disponível em: http://pt.scribd.com/doc net Acesso em 27/07/2012

/46875547/Artefato-Rizoma-


MINHA MÃE É UM PEIXE: A POESIA DE HUMBERTO AK’ABAL

A palavra Guatemala tem origem no termo Quauhtlemallan, do náhuatl – do grupo de línguas e dialetos pertencentes ao ramo asteca - e significa “lugar com muitas árvores”. É deste lugar que vem o poeta Humberto Ak’abal, cujos poemas agrupados no livro Tecedor de Palavras, antologia bilíngue em português e quiché, com poemas selecionados pelo poeta Affonso Romano de Sant’Anna, são objeto de nossa atenção neste ensaio. Humberto Ak’abal, poeta-índio com ar de xamã, filho e neto destes técnicos do êxtase, integrante da comunidade indígena maia-quiché de Momostenango, escreve no idioma quiché e também é responsável por verter para o espanhol a tradução dos seus poemas. Já foi traduzido para diversos idiomas, entre os quais inglês, francês, alemão, japonês, etc. Ao determos nosso olhar sobre as sendas apontadas na jornada poética de Humberto Ak’abal, recolhendo suas visões incisivas e certeiras, de um lirismo simultaneamente perturbador e delicado, poderemos entrar em contato com sensibilidades para além do cânone ocidental. Poderemos, ainda, verificar uma torrente de imagens e histórias mobilizadas a partir das memórias coletivas dos povos nativos que o poeta transfigura de modo a estabelecer diálogos pertinentes para a compreensão do presente. A atenção aos poemas de Humberto Akabal possibilita uma leitura das redes de relações e ideias que escapam ao horizonte de expectativas hegemônicas da racionalidade capitalista, além de propiciar um vislumbre nos desvãos do imaginário de sujeitos ancestrais.


Nossa caminhada entre a poesia de Humberto Ak’abal possibilitará uma compreensão do ato poético como um dispositivo de investigação e entendimento da realidade – e ainda, permitirá que compreendamos como se processa a elaboração da identidade do poeta (e por desdobramento, da comunidade e do lugar de onde fala). Há uma espécie de campo de forças, cujo magnetismo é expresso por uma questão colocada pelo ensaísta Édouard Glissant, em Introdução a uma poética da diversidade: “como ser si mesmo sem fechar-se ao outro, e como abrir-se ao outro sem perder-se a si mesmo?” (GLISSANT 2005:28). Partamos agora, pois, ao terreno das construções poéticas de Humberto Ak’abal, de modo a percebemos como o poeta agencia o imaginário, reelaborando questões, arriscando respostas, ousando um diálogo prenhe de significado entre uma sensibilidade ancestral e um mundo de seduções e desejos contemporâneos. Tomemos como exemplo o poema Caminho ao contrário, ilustração deste complexo diálogo que o poeta estabelece com as narrativas e experiências (históricas, míticas) anteriores à sua existência, uma espécie de nota ou alerta sobre os modos de deambulação, recriação, saque, exercício magmático da palavra poética a partir da memória (filigrana difusa entre o pessoal e o coletivo): Caminho ao contrário De vez em quando Caminho ao contrário: É a minha maneira de lembrar. Se caminhasse só para a frente, Poderia contar-te Como é o esquecimento. (AK’ABAL 2006:17)


O poeta parece nos insinuar que a sedução por novidades está num poço longínquo do tempo ancestral tempo entranhado ao presente. A visão poética intricada numa estratégia da memória como fomento da alegria e da compreensão, o ato poético como comemoração, fazer lembrar em conjunto, tornar presente, fazer nascer na carne do instante histórico um cristal de transcendência, incutir no cotidiano reverberações míticas. A um só tempo, Ak’abal apresenta uma aposta na força da palavra poética como semente capaz de transtornar situações, revirar esquemas mentais, ideias e costumes. Reelabora materiais oníricos e demandas vitais do imaginário - a membrana verde do espaço, este lugar etéreo e sanguíneo partilhado pelos indivíduos num dado espaço, num certo tempo - que se infiltram na escritura, a impregnam e a constituem, ativando uma movimentação estética e política: a poesia como configuração existencial que embaralha as instâncias da vida interior e comunitária, da vida sonhada e desperta, e atua na troca de saberes e visões de mundo entre diferentes populações. Caminhando ao contrário o poeta erige a memória como um mecanismo de combate lírico, um dispositivo capaz de trazer para as tensões do presente novas camadas de significado, a partir do cotejo com experiências anteriores e vislumbres de possibilidades futuras. Conforme registra Glissant: “O passado não deve somente ser recomposto de maneira objetiva (ou mesmo subjetiva) pelo historiador. Deve também ser sonhado de maneira profética, para as pessoas, comunidades e culturas cujo passado, justamente, foi ocultado” (GLISSANT 2005:102-103).

Neste processo, a fundamental. Segundo Luckmann:

linguagem tem um papel Peter Berger e Thomas


A linguagem usada na vida cotidiana fornece-me continuamente as necessárias objetivações e determina a ordem em que estas adquirem sentido e na qual a vida cotidiana ganha significado para mim. Vivo num lugar que é geograficamente determinado; uso instrumentos, desde os abridores de latas até os automóveis de esporte, que têm sua designação no vocabulário técnico da minha sociedade; vivo dentro de uma teia de relações humanas, de meu clube de xadrez até os Estados Unidos da América, que são também ordenadas por meio do vocabulário. Desta maneira a linguagem marca as coordenadas de minha vida na sociedade e enche esta vida de objetos dotados de significação. (BERGER & LUCKMANN 2010:38)

E ainda: Devido a esta capacidade de transcender o “aqui e agora”, a linguagem estabelece pontes entre diferentes zonas dentro da realidade da vida cotidiana e as integra em uma totalidade dotada de sentido. As transcendências têm dimensões espaciais, temporais e sociais. Por meio da linguagem posso transcender o hiato entre minha área de atuação e a do outro, posso sincronizar minha sequência biográfica temporal com a dele, e posso conversar com ele a respeito de indivíduos e coletividades com os quais não estamos agora em interação face a face. Como resultado destas transcendências, a linguagem é capaz de “tornar presente” uma grande variedade de objetos que estão espacial, temporal e socialmente ausentes do “aqui e agora”. (BERGER & LUCKMANN 2010:58)

Estenderíamos esta reflexão incluindo a poesia como um mecanismo extremamente importante na catalisação, no fomento de transcendências, agenciando pontes e encontros insuspeitos, mobilizando aproximações de ordens diversas. Humberto Ak’abal, poeta guatemalteco, descendente dos maias, faz reverberar a paisagem mental e física do lugar e das pessoas da comunidade de que faz parte, trazendo para o mundo inteiro, ao menos em potência, os rizomas que dizem respeito ao modo de percepção entranhado a esta paisagem de onde fala, mas que a ela não se restringe.


A poesia de Humberto Ak’abal, em sua imaginação lírica, é uma ação pelo diálogo, para trazer à luz, para partilhar uma história viva que esteve ocultada. A memória, no bojo da imaginação poética, ao invés de ficar restrita numa imobilidade nostálgica, é um empenho pela ação (bem como pelo conhecimento, compartilhamento, relação). Esta ideia aproxima-se do que o filósofo Henri Bergson afirmou em Matéria e Memória: No que concerne à memória, ela tem por função primeira evocar todas as percepções passadas análogas a uma percepção presente, recordar-nos o que precedeu e o que seguiu, sugerindo-nos assim a decisão mais útil. Mas não é tudo. Ao captar numa intuição única momentos múltiplos da duração, ela nos libera do movimento de transcorrer das coisas, isto é, do ritmo da necessidade. Quanto mais ela puder condensar esses momentos num único, tanto mais sólida será a apreensão que nos proporcionará da matéria; de sorte que a memória de um ser vivo parece medir antes de tudo a capacidade de sua ação sobre as coisas, e não ser mais do que a repercussão intelectual disto. Partamos, pois, dessa forma de agir como do princípio verdadeiro; suponhamos que o corpo é um centro de ação, um centro de ação somente, e vejamos que consequências irão decorrer daí para a percepção, para a memória e para as relações do corpo com o espírito. (BERGSON 2006:266-267)

Humberto Ak’abal, entre outras lembranças capazes de agir no presente, recorda e aponta os vínculos do poeta com a figura ancestral do xamã, indicando que a comunidade reconhece o empenho (lírico e físico) na frequente massagem psíquica e corporal que os poemas desencadeiam entre seus membros - o poeta como mediador extático dos movimentos da memória e da história e da imaginação ancestral e sagrada. Assim registra no poema Ele sabe:


Ele sabe O vento não pode Interromper um sonho. A noite se ilumina Para o pensamento. Eu moro aqui, Mas penso Acolá. E meu povo sabe disso. (AK’ABAL 2006:71) Mais que sonho, este é um devaneio. O poeta, atento ao vento e as irrupções da noite, deixa correr o pensamento. Mas é um pensamento extático, um raciocínio para além da razão. Saber, aqui, é um sabor. O trânsito entre o poeta e a comunidade parece recuperar as relações, os vínculos que diziam respeito ao xamã. Assim, como o técnico ancestral do êxtase, o poeta mergulha fundo em sua jornada interior, psíquica, buscando e singrando com sua alma por regiões insuspeitas, capazes de fornecer significados que transcendem ao âmbito individual, servindo, na elaboração lírica, para fornecer pistas e trilhas de ação para a comunidade. O devaneio é uma espécie de oração, uma magia de caça, um círculo de proteção contra os dentes do dia, contra o reino da necessidade. Como situa Gaston Bachelard, em sua Poética do devaneio: (...) ao passo que o sonhador de sonho noturno é uma sombra que perdeu o próprio eu, o sonhador de devaneio, se for um pouco filósofo, pode, no centro do seu eu sonhador, formular um cogito. Noutras palavras, o devaneio é uma atividade onírica na qual subsiste uma clareza de consciência. O sonhador de devaneio está presente no seu devaneio. Mesmo quando o devaneio dá a impressão de uma fuga para fora do real, para fora do tempo e do lugar, o sonhador do devaneio sabe que é ele que se ausenta – é ele, em carne e osso, que se torna um “espírito”, um fantasma do passado ou da viagem. (BACHELARD 1988:144)


O percurso onírico do fazer poético de Humberto Ak’abal é visitado frequentemente por imagens de ascensão, voos, migrações. Vejamos o poema Minhas asas: Minhas asas Eu sacudia minhas asas E olhava o céu, Minha mãe ria; Estávamos à beira De um precipício. Eu esperava o momento De lançar-me a voar. (AK’ABAL 2006:67) Do mesmo modo que o xamã singra por regiões celestes e infernais para recolher segredos e partilhá-los com a comunidade, o poeta se posiciona num lugar discursivo em que se empenha pela apresentação de percepções, afetos e visões de mundo situadas no horizonte mental de sua comunidade ancestral, sem perder de vista as possibilidades de troca, de câmbio de informação com outras populações, outros povos; sem perder as potências da visão experimentada para a compreensão do presente, a participação, a conversa. Ak’abal incita o ato poético como uma configuração do tempo primordial, uma reatualização das origens, à maneira do mito. Isto é particularmente perceptível no poema As estrelas: As estrelas Remendo nos joelhos E atrás das calças - nua e rota a alma -, Encarapitado sobre a cerca De um chuchuzeiro.


Naquele tempo, Quando o céu Não estava tão longe como agora, Eu cortava estrelas E as comia. (AK’ABAL 2006:91) Em seu fazer poético Ak’abal estende a rede de contatos, diálogos e mediações para além das relações circunscritas ao mundo humano. Sua poesia fomenta uma troca de saberes e intuições, um intercâmbio de modos de existência, verdadeiro encontro e fluxo de alteridades. Por exemplo, com as árvores: Nas vozes Nas vozes Das velhas árvores Reconheço as dos meus ancestrais. Sentinelas de séculos, Seu sonho está nas raízes. (AK’ABAL 2006: 103) O sonho está nas raízes. Esta nos parece uma imagem fundamental para a compreensão da postura, das posições estéticas e políticas incrustadas na poesia de Humberto Ak’abal. A raiz, aqui, não se afigura como um monólito, um circuito fechado que encontra sentido em si mesmo. É de lá que provem os sonhos, onde eles se aninham, mas numa respiração que busca reverberações, procura criar e manter pontes, ser presença franca diante do outro - seja árvore, populações de outros continentes, outros tempos num porvir. O sonho é uma passagem para o diálogo, para o encontro. Os sonhos são comunicáveis. Segundo Bachelard: Parece que, ao sonhar em tal solidão, somente podemos tocar um mundo tão singular que é estranho a qualquer outro sonhador. No entanto, o isolamento não é assim tão grande e os devaneios mais profundos, mais particulares são muitas vezes comunicáveis.


Pelo menos, existem famílias de sonhadores cujos devaneios se consolidam, cujos devaneios aprofundam o ser que os recebe. E é assim que os grandes poetas nos ensinam a sonhar. Alimentam-nos de imagens com as quais podemos concentrar nossos devaneios de repouso. Oferecem-nos suas imagens psicotrópicas, pelas quais animamos um onirismo desperto. É nesses encontros que uma Poética do Devaneio toma consciência de suas tarefas: determinar consolidações dos mundos imaginados, desenvolver a audácia do devaneio construtivo, afirmar-se numa boa consciência de sonhador, coordenar liberdades, encontrar o verdadeiro em todas as indisciplinas da linguagem, abrir todas as prisões do ser para que o humano tenha todos os devires. (BACHELARD 1988:152)

E ainda: (...) antes da cultura o mundo sonhou muito. Os mitos saíam da Terra, abriam a Terra para que, com o olho dos seus lagos, ela contemplasse o céu. Um destino de alturas subia dos abismos. Os mitos encontravam assim, imediatamente, vozes de homem, a voz do homem que sonha o mundo dos seus sonhos. O homem exprimia a terra, o céu, as águas. O homem era a palavra deste macroântropos que é o corpo monstruoso da terra. Nos devaneios cósmicos primitivos, o mundo é o corpo humano, olhar humano, sopro humano, voz humana. Mas esses tempos do mundo falante podem renascer? Quem vai ao fundo do devaneio reencontra o devaneio natural, um devaneio de primeiro cosmos e de primeiro sonhador. Então o mundo já não está mudo. O devaneio poético reanima o mundo das primeiras palavras. (...) Sabe-o bem o sonhador que, de uma palavra que sonha, faz surgir uma avalancha de palavras. (...) No devaneio cósmico nada é inerte, nem o mundo nem o sonhador; tudo vive uma vida secreta, portanto tudo fala sinceramente. O poeta escuta e repete. A voz do poeta é uma voz do mundo. (BACHELARD 1988:180)

A poesia de Humberto Ak’abal age como um princípio de relação com o planeta, com todo o planeta. Possibilita trânsitos, escapa a definições engessadas e a um só tempo permite a construção de uma voz particular, do poeta/xamã, situada numa comunidade, num local, mas com tentáculos e vontade de abertura para o outro. E isto não é pouco ante as problemáticas e conflitos existentes no planeta. Como salienta Édouard Glissant:


(...) o problema hoje é conseguirmos mudar a própria noção de identidade, a própria profundidade da vivência que temos de nossa identidade, e concebermos que somente o imaginário do Todo-omundo (isto é, o fato que eu possa viver em meu lugar estando em relação com a totalidade-mundo), somente esse imaginário pode nos fazer ultrapassar essas espécies de limites fundamentais que ninguém quer ultrapassar. (GLISSANT 2005:108)

E aponta que (...) o escritor necessita pensar o mundo, mas não valendo-se de um pensamento informativo. Precisa fazê-lo através de um pensamento que pode ser intuitivo e tomar formas completamente específicas, que partem de um lugar. Não vivemos no ar, não vivemos nas nuvens em volta da terra – vivemos em lugares. É preciso partir de um lugar e imaginar a totalidademundo. Esse lugar – que é um lugar incontornável – não deve ser um território a partir do qual olha-se o vizinho por cima de uma fronteira absolutamente fechada, e imbuído do desejo surdo de ir ao espaço do outro para impor-lhe as próprias ideias ou as próprias pulsões. (GLISSANT 2005:156)

Humberto Ak’abal, em sua jornada poética, em seu empenho como tradutor de si mesmo, é um sonhador de outros mundos possíveis. Reelabora em sua deriva onírica as máscaras de apresentação de si e dos outros atores sociais de sua comunidade, mas comunidade ampla, larga, que inclui elementos míticos, minerais, animais, entre outras formas. Forja no trânsito entre o idioma indígena e o espanhol (língua do outro, invasor) uma batalha lírica e política, fazendo da tradução uma possibilidade de desvio, presença, construção de outras referências e instâncias para a compreensão do mundo, para agir na vida, na vida em comum dos dias presentes. Como sugere Bachelard: (...) a linguagem está sempre um pouco à frente do nosso pensamento, é sempre um pouco mais borbulhante que o nosso amor. É a bela função da imprudência humana, a jactância dinamogênica da vontade, aquilo que exagera o poder. (...) temos sublinhado o caráter dinâmico do exagero imaginário. Sem esse exagero, a vida não pode desenvolver-se.


Em quaisquer circunstâncias, a vida toma muito para ter o bastante. É preciso que a imaginação tome muito para que o pensamento tenha o bastante. É preciso que a vontade imagine muito para realizar o bastante. (BACHELARD 2001:262)

Para compreendermos alguns dispositivos (memória, imaginação, mito) agenciados nos escritos de Ak’abal, fomos levados aos escritos de alguns autores, de variadas disciplinas, que percorreram certas sendas que jogam luzes para nosso entendimento do terreno em que se move a palavra poética no mundo da vida. Vejamos dois trechos do filósofo David Abram para situarmos a relação do poeta com alteridades que extrapolam a comunidade humana. Nestes excertos, Abram mastiga os hábitos existenciais fatigados de sujeitos isolados num umbigo de percepção cartesiana, racional: Para a humanidade, esses Outros são fornecedores de segredos, transportam inteligência de que nós mesmos frequentemente necessitamos: são esses Outros que nos podem informar das alterações extemporâneas do clima, ou avisar-nos de erupções e terremotos iminentes, que nos mostram, quando procuram alimento, onde podemos encontrar as bagas mais maduras ou o melhor caminho para regressar a casa. Vendo-os construir seus ninhos e abrigos, recolhemos pistas relativas ao modo de consolidar os locais onde moramos, e as suas mortes dão-nos ensinamentos acerca das nossas. Recebemos deles incontáveis dádivas de alimentos, combustível, abrigo e vestuário. No entanto, continuam a ser Outros para nós, habitando as suas próprias culturas e exibindo os seus próprios rituais, que nunca poderemos sondar inteiramente. Além disso, não são apenas essas entidades reconhecidas pelas civilizações ocidentais como “vivas”, não são apenas os outros animais e plantas que falam, como espíritos, aos sentidos de uma cultura oral, mas são também o rio serpenteante onde esses animais bebem, as torrenciais chuvas da monção e a pedra que encaixa perfeitamente na palma da mão. (ABRAM 2007:13)

E ainda: Apanhados numa massa de abstrações, a nossa atenção hipnotizada por um rol de tecnologias desenvolvidas pelos humanos que só nos refletem a nós mesmos, é-nos demasiado fácil esquecer a nossa


inerência carnal numa matriz mais-do-que-humana de sensações e sensibilidades. Os nossos corpos formaram-se em delicada reciprocidade com as multivariadas texturas, sons e configurações de uma terra animada – os nossos olhos evoluíram em sutil interação com outros olhos, tal como os nossos ouvidos estão afinados, pela sua própria estrutura, para os uivos dos lobos e o grasnar dos gansos. Isolarmo-nos dessas outras vozes, continuar, pelo nosso estilo de vida, a condenar essas sensibilidades diferentes ao esquecimento da extinção, é roubar aos nossos próprios sentidos a sua integridade e roubar às nossas mentes a sua coerência. Só somos humanos no contato e na sociabilidade com o que não é humano. (ABRAM 2007:22)

Neste sentido, Ak’abal coloca-se num espaço visionário, num lugar de mediação entre a comunidade humana e outros seres e formas, outros elementos. Por exemplo, o poeta observa a lua e repercute a intuição primitiva (“primitivo como complexo”, como sugeria Gary Snyder) do astro como o primeiro morto - conceito, metáfora, imagem antiquíssima para uma compreensão de nossa própria mortalidade. Lua Negra Nascemos Com uma luazinha negra Nas costas. Chegado o tempo, Um jaguar negro A come. Ninguém o vê. Só se percebe quando O animal nos lambe. (AK’ABAL 2006:45) Num poema sutil, uma pedagogia sobre vida e morte, o poeta como o xamã psicopompo, guia sereno para a transição de polaridades, situando no complexo luajaguar as reverberações da anicca (impermanência).


A poesia é conhecimento delirante da realidade, emana do emaranhado de uma mente numa paisagem. Vejamos um apontamento do poeta Gary Snyder a respeito do entrelaçamento do ser e do lugar, sobre esta interdependência entre o sujeito e o ambiente (e todos os fios da teia da vida) para a construção de significados existenciais – que os poetas ajudam a desencadear, em pesquisa e vivências ininterruptas dos campos vastos da imaginação e do ambiente: (...) quem somos e onde estamos são conhecimentos que estão intimamente ligados. Não há limites às possibilidades de estudo do quem e onde, se você quer ir “além dos limites” – e assim, mesmo em um mundo de limites biológicos, há abundância de espaço-mente abertos para serem explorados. (SNYDER 2005:247)

Estas reflexões nos ajudam a perceber e situar compreensivamente outra visão, uma abertura para modos de existir renovados, transformações criativas do acervo vivo da memória da espécie e suas cartografias de outras inteligências e sensibilidades. O poeta exercita um artesanato mágico, uma respiração para a permanência do sonho, aquecendo a brasa das imaginações para uma vida prenhe de significado, imersa na torrente vital do cosmos. Ak’abal e seus poemas permitem um vislumbre de possibilidades, manifestos oníricos de alerta e atenção às emergências do mundo da vida e seus tecidos orgânicos e míticos, num campo discursivo, num jogo lírico que extrapola o horizonte de expectativas de leitura pautadas pelo cânone da literatura ocidental e embaralha as supostas distinções entre realidade e imaginação. A poesia não é escrita num jogo frívolo e fortuito, encapsulada, voltada apenas para si mesma. Antes, diz respeito a elementos profundos, diz respeito às vivências que repercutem modos de existir, habitar, comer, dialogar, etc., de maneiras diversas do senso comum dos mamíferos das grandes cidades capitalistas.


A poesia é uma maneira efetiva de investigação da identidade, de forja de conhecimento sobre si e a comunidade a partir da qual o poeta se move, bem como uma forma de aproximação dos rizomas mentais, ideológicos, afetivos, etc., de variadas populações mundiais. A poesia é uma ponte, um empenho na resolução criativa de conflitos, uma mensagem de abertura e troca. Conforme registra Édouard Glissant: Penso que a poesia, e em todo caso o exercício do imaginário, a visão profética do passado juntamente com a visão profética dos espaços longínquos, é, em toda parte, a única forma que temos de nos inserir na imprevisibilidade da relação mundial. Nenhuma operação global política, econômica ou de intervenção militar é capaz de começar a distinguir, minimamente, a menor solução para as contradições desse sistema errático que é o caos-mundo, se o imaginário da Relação não repercutir sobre as mentalidades e as sensibilidades das humanidades de hoje, para levá-las a verter o vapor poético, isto é, para considerar-se, humanidades e não mais Humanidade, de uma maneira nova: como rizoma e não mais como raiz única. (GLISSANT 2005:107)

O magma da escritura de Ak’abal transborda intuições, deslinda sutilezas de convívio com as multiplicidades abertas das alteridades (minerais, animais, em suma, cósmicas), num fecundo e íntimo contato com o ambiente, ao qual está emaranhado. A poesia de Ak’abal é cheia de potências, repercussões de sabedorias nutridas ao longo dos tempos, partilhadas no seio da contemporaneidade, num registro lírico. Abrange a paisagem mental e física dos maias, ao mesmo tempo em que informa senhas para o presente, a partir da voz do poeta. Traz para o rio corrente do presente os estilhaços de visões extáticas, reeditando a crença no sopro curativo da poesia.


Com uma imaginação galopante, em íntima relação com a memória e os mitos, Ak’abal e sua poesia se posicionam num campo de ação pela permanência do sonho, da invenção, da aventura de possíveis, pela mudança da realidade, reconfiguração das trocas de saberes entre os povos, fluxos de sensibilidades, afetos, iluminações. A poesia de Ak’abal é uma brecha, uma saída de fumaça. Hoje Hoje amanheci fora de mim E saí a buscar-me. Percorri caminhos e veredas Até que me encontrei. Sentado sobre um tapete de musgo Ao pé de uma mata de ciprestes, Conversando com a neblina E procurando esquecer O que não posso. A meus pés, Folhas, somente folhas. (AK’ABAL 2006:101)


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ABRAM, David. A magia do sensível – percepção e linguagem num mundo mais que humano. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2007. AK’ABAL, Humberto. Tecedor de Palavras. São Paulo: Melhoramentos, 2006. BACHELARD, Gaston. O ar e os sonhos – ensaio sobre a imaginação do movimento. São Paulo: Martins Fontes, 2001. ____________________. A poética do devaneio. São Paulo: Martins Fontes, 1988. BERGER, Peter & LUCKMANN, Thomas. A construção social da realidade – tratado de sociologia do conhecimento. Petrópolis: Vozes, 2010. BERGSON, Henri. Matéria e Memória. São Paulo: Martins Fontes, 2006. GLISSANT, Édouard. Introdução a uma poética da diversidade. Juiz de Fora: Editora UFJF, 2005. SNYDER, Gary. Re-habitar – ensaios e poemas. Rio de Janeiro: Azougue Editorial, 2005.


Um bêbado cheio de artimanhas e trapaças: Charles Bukowski e o mundo do trabalho

Estivesse vivo, Henry Charles Bukowski estaria com noventa e um anos - provavelmente bebendo bons copos de uísque com um pouco d’água, ganhando e perdendo dinheiro nas apostas das corridas de cavalo, vociferando contra os mortos-vivos que perambulam pelos supermercados, que trabalham nas agências bancárias, que vão e vêm pelas avenidas intermináveis e ensolaradas prenhes de garotos sorridentes e estúpidos e senhoras piedosas. Bukowski morreu aos setenta e três anos, em 1994, de pneumonia, decorrente de um tratamento de leucemia. Nascido na Alemanha, filho de um soldado americano e uma jovem alemã, mudou-se com a família, ainda criança, para os Estados Unidos. Conhecido por seus porres lendários, humor ferino e olhar cínico, Charles Bukowski, auto-intitulado “The Dirty Old Man”, escreveu as desventuras pelas madrugadas corrosivas de embriaguez interminável, brigas e confusões numa miríade de bares e becos, trepadas vertiginosas nos vagões dos trens de carga, etc.; também registrou liricamente as astúcias e preocupações de pobres-diabos acossados pelos dentes do cotidiano (comida, bebida, refúgio, etc.). Em vida, perambulou por ruas marginais dos subúrbios da América do Norte, vivendo em quartos escuros de pensões baratas, entrando e saindo de um sem-fim de empregos precários, tomando garrafões de vinho e datilografando contos, poemas, ensaios e romances embebidos por uma alma encharcada de álcool.


Com o presente artigo, intentamos captar as nuances referentes às imagens do mundo do trabalho dispersas na prosa de Charles Bukowski, atentando para as maneiras com que o autor apresentou uma das dimensões fundamentais da existência humana. A respeito da importância do trabalho para a vida humana e sua conexão com outras dimensões da jornada da espécie, é interessante lembrar uma reflexão de George Bataille: “Uma vez que o trabalho, pelo que parece, logicamente, engendrou a reação que determina a atitude diante da morte, seria legítimo pensar que a interdição que regulava e limitava a sexualidade foi também uma consequência dele, e que o conjunto de condutas humanas fundamentais – trabalho, consciência da morte e sexualidade reprimida – remontam ao mesmo período.” (Bataille 2004:47)

O trabalho, as pulsões sexuais, a ruminação da finitude. Em Charles Bukowski, estes campos de força, estes magnetismos que tomam os circuitos da atenção física e intelectual dos sujeitos humanos se interpenetram, se justapõem, se ramificam e criam filigranas. Em razão disto, ainda que elegendo o mundo do trabalho como tópico privilegiado do foco para esta escritura crítica, estes temas transversais e outros, poderão irromper aqui e ali, servindo também como motor para a interpretação do universo ficcional do autor e as implicações de sua visão de mundo. Para aproximarmo-nos do território de Charles Bukowski, averiguando os meandros que estruturam e amparam as imagens do mundo do trabalho na criação literária, espraiando-se na experiência biográfica, selecionamos como material para interpretação os dois primeiros romances do autor - Cartas na Rua, publicado em 1971 e Factótum, de 1975 - e ainda um punhado de


ensaios presentes na coletânea de textos Pedaços de um caderno manchado de vinho. Além da indicação dos recortes de passagens das obras acima referidas e as leituras das mesmas, ampliaremos as indagações e cenários interpretativos ao trazermos para a discussão a contribuição teórica de variados autores que se debruçaram sobre a questão do mundo do trabalho, a partir de diferentes perspectivas. Comecemos recortando um trecho do ensaio Notas sobre a vida de um poeta idoso, que figura entre os textos de Pedaços de um caderno manchado de vinho: “Depois de uma centena de empregos e anos de vadiagem me dei conta de que estivera no mesmo posto há onze anos. Comecei a perceber isso quando não conseguia mais levantar os braços para além da minha cintura depois de um dia de trabalho. Estava esgotado. Cobravam-me o preço. Busquei vários tipos de cura, diversos médicos. Nada funcionou. Eu era a única coisa que funcionava – oito horas, dez horas, doze horas por dia. Nesse emprego eu não tinha escolha. Era obrigatório fazer hora extra e eles acrescentavam as horas de uma em uma. Você nunca sabia quando seu horário terminava. O trabalho estava me matando. Durante dez anos eu havia suportado, indignando-me apenas com a rotina, com a monotonia do trabalho. Mas no décimo primeiro ano meu corpo começou a morrer. Decidi que preferia andar descalço e morar numa favela a morrer seguro. Um homem pode ter segurança numa cadeia ou num hospício. Aos cinquenta anos, tendo que pagar pensão alimentícia, pedi demissão. Estranhamente, isso deixou muitos dos meus colegas de trabalho furiosos; eles preferiam que eu morresse junto com eles em vez de morrer sozinho.” (Bukowski 2010:158)

Morrer sozinho, eis a proposição a que chega para dar conta das demandas por realização e vida autêntica em acordo com as energias vitais mais profundas, circulando através da mente e corpo do indivíduo – antes a morte como ato final de um sujeito numa trajetória prenhe de fulgurações, quinhões generosos de uma experiência alucinadamente subjetiva que a morte como ato cotidiano nas mandíbulas do mundo do trabalho.


Pouco mais adiante, o autor estende as reflexões sobre a usurpação de tempo de vida subjetiva levada a cabo pela lógica do mundo do trabalho: “Quando um homem trabalha no mesmo emprego durante muitos anos, não é dono de seu tempo. Quero dizer, mesmo com uma jornada de oito horas, o dia está tomado. Some o tempo que leva para ir e voltar do trabalho, mais o trabalho em si, mais comer, dormir, tomar banho, comprar roupas, carros, pneus, baterias, pagar os impostos, copular, receber visitas, ficar doente, sofrer acidentes, ter insônia, ter que se preocupar com a roupa suja e com assaltos e com as condições climáticas e todo o resto que não dá para mencionar, não sobra TEMPO ALGUM para se gastar consigo mesmo. E, quando é preciso fazer hora extra, muitas vezes algumas dessas necessidades têm que ficar de fora, até mesmo dormir, e, mais comumente, copular. Que porra é essa? (...) Mas o trabalho também acalma os homens, dá a eles alguma coisa para fazer. E impede a maioria deles de pensar. Homens – e mulheres – não gostam de pensar. Para eles o trabalho é uma dádiva. Dizem a eles o que fazer e como fazer e quando fazer. Noventa e oito por cento dos americanos acima de 21 anos estão trabalhando, mortos-vivos. Meu corpo e minha mente me disseram que dentro de três meses eu seria um deles. Eu me opus.” (Bukowski 2010:158-159)

Nos trechos citados Bukowski analisa sua jornada como empregado do serviço postal norte-americano. Alguns elementos, que reaparecerão noutros instantes, já integram estas notas: o esgotamento físico e intelectual, a monotonia e o automatismo de uma rotina maçante, a alienação e a impossibilidade de autodeterminação na esfera dos empregos, etc. O autor intui, colando nas entrelinhas de suas frases diretas, a consciência de um cenário onde o trabalhador vive apenas para ter coisas que possibilitarão minimamente que mantenha-se vivo, numa roda-viva cheia de dentes, para a qual o sistema de produção capitalista o empurra. Cabe aqui mencionar apontamentos gestados pelos integrantes do grupo Krisis, no Manifesto contra o trabalho:


“Trabalho forma a personalidade. É verdade. Isto é, a personalidade de zumbis da produção de mercadorias, que não conseguem mais imaginar a vida fora de sua Roda-Viva fervorosamente amada, para a qual eles próprios se preparam diariamente.” (Krisis 1999:25)

E ainda: “Trabalho, portanto, pela sua origem etimológica também não é sinônimo de uma atividade humana autodeterminada, mas aponta para um destino social infeliz. É a atividade daqueles que perderam sua liberdade. A ampliação do trabalho a todos os membros da sociedade é, por isso, nada mais que a generalização da dependência servil, e sua adoração moderna apenas a elevação quase religiosa deste estado. (...) a generalização do trabalho foi acompanhada pela sua "objetivação" por meio do moderno sistema produtor de mercadorias: a maioria das pessoas não está mais sob o chicote de um senhor pessoal. A dependência social tornou-se uma relação abstrata do sistema e, justamente por isso, total. Ela pode ser sentida em todos os lugares, mas não é palpável. Quando cada um tornou-se servo, tornou-se ao mesmo tempo senhor, o seu próprio traficante de escravo e feitor. Todos obedecem ao deus invisível do sistema, o "Grande Irmão" da valorização do capital, que os subjugou sob o "tripalium".” (Krisis 1999:29)

O trabalhador opera como um morto-vivo, heterodeterminado (ou pior, internalizando a heterodeterminação como forjada em sua subjetividade), mero consumidor de bugigangas tecnológicas, quinquilharias na véspera do ferrovelho, apagado em seus sonhos, solapado em sua respiração e ritmo pessoal, fustigado como um golem a executar repetitivamente tarefas impostas e sem sentido. Não é sem ironia que Bukowski registra que o trabalho também é uma espécie de calmante, fornecendo uma boa justificativa para o abandono da possibilidade de pensar – atividade incômoda para um sem-fim de sujeitos, segundo o autor.


Juntamente com a ironia sobre a glória de impossibilidade de pensamento propiciada pelo trabalho, lucidez para ler as loucuras mortais que o mundo do trabalho pode infligir aos seus exércitos de corpos exploráveis: “Veja, baby, sinto muito, mas será que você não percebe que esse emprego está me deixando louco? Escuta, vamos desistir. Vamos apenas ficar deitados por aí e fazer amor, dar passeios e conversar um pouco. Vamos ao zoológico. Vamos ver os animais. Vamos pegar o carro e dar uma olhada no mar. São só 45 minutos. Vamos ao fliperama jogar nas máquinas. Vamos às corridas, ao museu, às lutas de boxe. Vamos fazer amigos. Vamos rir. Esse tipo de vida é para gente simplória demais: está nos matando!” (Bukowski 2011:74)

Faça amor, não trabalhe. Esta poderia ser a frase do epitáfio de Charles Bukowski no lugar da zombeteira “Don’t try”. Sua escritura procede uma leitura do mundo da vida como busca por um eterno deleite (passeio num jardim epicurista carregado de tinas cheias de vinho) e a vivência das energias sexuais como forças catalisadoras de uma conexão devastadoramente ancestral e cósmica com o oceano de seres na teia da vida e o coração pulsante da existência - vapor ligeiro das almas dos indivíduos. Uma escritura que opera uma erotização do mundo, reinventando as potências originárias do sexo. Bataille indica nitidamente o campo de forças, o embate entre as energias castradoras do trabalho heterodeterminado (subjugado em nome das operações coletivas) e as energias liberadoras da atividade sexual: “(...) em oposição ao trabalho, a atividade sexual é uma violência que, como impulso imediato, poderia atrapalhar o trabalho: uma coletividade laboriosa, no momento do trabalho, não pode ficar à sua mercê. Portanto, estamos fundamentados para pensar que, desde a origem, foi dado um limite à liberdade sexual ao qual devemos dar o nome de interdição, sem poder nada dizer dos casos em que ela se aplicava. No máximo, podemos acreditar que, inicialmente, o tempo do trabalho determinou esse limite.


A única verdadeira razão que faz com que admitamos a existência muito antiga de uma tal interdição é o fato de que, das informações de que dispomos, em todos os tempos como em todos os lugares o homem foi definido por uma conduta sexual submetida a regras (...)” (Bataille 2004:77)

Apontando ainda que (...) uma sexualidade livremente transbordante diminui a aptidão para o trabalho, da mesma maneira que um trabalho regular diminui o apetite sexual. Existe, portanto, entre a consciência, estreitamente ligada ao trabalho, e a vida sexual, uma incompatibilidade cujo rigor não poderia ser negado. Na medida em que o homem se definiu por meio do trabalho e da consciência, ele teve não somente de moderar, mas desconhecer e às vezes maldizer em si mesmo o excesso sexual. (Bataille 2004:253)

Depois de pouco mais de uma dezena de anos na mesma função, Bukowski enxerga-se quase capitulando diante da garganta do trabalho, quando se decide pelo confronto, pela oposição. Ao invés de seguir com o rebanho na esteira que conduz à degradação física, psíquica, espiritual, cavar os espaços de respiração e autonomia (ainda que acossado por intempéries de toda ordem). Não são convincentes as promessas de torrões de açúcar num porvir próximo, as delícias de um paraíso ulterior, as glórias da morte em irmandade com os companheiros de trabalho. A perspectiva de isolar-se num quarto escuro, acompanhado apenas por algumas garrafas de uísque, é mais risonha que a demanda pela produtividade cega de quinquilharias e serviços torpes em troca de migalhas: “Quando voltei para Los Angeles, encontrei um hotel barato nas imediações da Hoover Street e fiquei na cama e bebi. Bebi por algum tempo, três ou quatro dias. Não conseguia achar disposição para ler os classificados. A ideia de me sentar diante de um homem e sua mesa e lhe dizer que eu queria um trabalho, que eu tinha as qualificações necessárias, era demais para mim. Francamente, eu estava horrorizado diante da vida, o que um homem precisava fazer para comer, dormir, manter-se vestido.


Então fiquei na cama enchendo a cara. Quando você bebia, o mundo continuava lá fora, mas por um momento era como se ele não o trouxesse preso pela garganta.” (Bukowski 2007:55)

E a estação no inferno particular é propicia para abrir espaço para uma iluminação, uma epifania que esclarece as inutilidades do discurso sobre a dignidade do trabalho e, ainda, as falácias sobre o esteio, o amparo que o trabalho fornece diante das necessidades fundamentais da existência (sede, sono, sexo e fome, entre outras). Charles Bukowski ri cinicamente diante de tais engodos, sabendo que viver é perigoso. E não é o trabalho (trabalhomorto, alienado, multiplicador de coisas e coisas e coisas) que possibilita, garante segurança diante dos perigos da vida: “Segurança? Isso é algo que você pode conseguir na cadeia. Três metros quadrados, nada de aluguel a pagar, nenhum bem de consumo, imposto de renda, criança para sustentar. Nenhuma taxa de licenciamento de carro. Nenhuma multa. Nenhuma detenção por dirigir bêbado. Nenhuma perda nas corridas de cavalo. Assistência médica gratuita. Camaradagem com aquelas pessoas com os mesmos interesses. Enterro grátis.” (Bukowski 2011:66)

A retórica de amparo e dignidade proporcionados pelo trabalho não encontra eco na escritura de Bukowski. As ideias de segurança, de estabilidade, de garantias contra as bordoadas da existência não repercutem na alma ferina e bêbada. Antes, conquistar os territórios de autonomia possível, reinventar as mobilidades do sujeito, redescobrir – apesar das instâncias de desarmamento do protagonismo – as potências da ação escolhida a partir de si: eis magnetismos que circulam o corpo e energizam a alma dos personagens do escritor e também informam seu percurso biográfico. Um sujeito desperto, ciente das maquinarias que movem o circuito do capitalismo contemporâneo, pode associar-se com outros sujeitos insatisfeitos com a ordem instituída e assim:


“(...) o enorme leque de trabalhadores precários, parciais, temporários, etc., (...) juntamente com o enorme contingente de desempregados, pelo seu maior distanciamento (ou mesmo exclusão) do processo de criação de valores teria, no plano da materialidade, um papel de menor relevo nas lutas anticapitalistas. Porém, sua condição de despossuído e excluído o coloca potencialmente como um sujeito social capaz de assumir ações mais ousadas, uma vez que estes segmentos sociais não têm mais nada a perder no universo da sociabilidade do capital. Sua subjetividade poderia ser, portanto, mais propensa à rebeldia.” (Antunes 1997:90)

Quem sabe surja, ou melhor, se crie uma nova paisagem: “Se, extirpando do seu coração o vício que a domina e avilta a sua natureza, a classe operária se erguesse com a sua força terrível, não para reclamar os Direitos do Homem, que não são senão os direitos da exploração capitalista, não para reclamar o Direito ao Trabalho, que não é senão o direito à miséria, mas para forjar uma lei de bronze que proibisse todos os homens de trabalhar mais de três horas por dia, a Terra, a velha Terra, tremendo de alegria, sentiria nela surgir um novo universo (...) (Lafargue 2003:75-77)

Num empenho por um novo universo, construído no exercício autêntico de desbravamento das condições subjetivas (da máxima exploração do prazer suave e prolongado do ócio e da embriaguez à entrega plena ao cultivo de atividades laborais autodeterminadas), Bukowski faz emergir a imagem de um sujeito que se arrisca e que é diligente e zeloso com seus próprios demônios. Ao invés de dar ouvidos aos administradores da vida alheia, ouvir as vozes interiores. Sobre esta relação, este jogo de forças entre o indivíduo e a maré de alteridades, Ivan Illich, em O direito ao desemprego criador, afirma que “Na sociedade industrial treinam-se os indivíduos em especializações extremas. Tornamo-los impotentes para moldar ou satisfazer suas próprias necessidades. Dependem das mercadorias para eles indicadas pelo administrador.


O direito de diagnosticar uma necessidade, a receita de um remédio e, em geral, a distribuição dos bens são a ocupação predominante da ética, da política e da lei. Esta ênfase nos direitos a necessidades imputadas converte as liberdades para aprender, curar ou mover-se por si mesmo em luxos frágeis.” (Illich 1978:84)

Apesar das dificuldades de autodeterminação, advindas destes hábitos impostos pelas normas sociais vigentes no capitalismo e estimulados e vigiados por sua ideologia hegemônica, Illich reitera que permanece em aberto um espaço de movimentação para os sujeitos, indicando que “Quem sempre viveu à margem do salário mínimo e marginado do mercado, sobrevive por que sabe arranjar as coisas. Para ele, a desocupação não é nem o cavaleiro apocalíptico que espanta o recém-saído da escola, nem tampouco a enfermidade endêmica e cíclica que o economista diagnostica e submete a suas terapias.” (Illich 1978:9)

Pela voz de Henry Chinaski, alter ego de Bukowski, presente nos romances escolhidos (e também em outros) para análise neste artigo, ficamos sabendo das pequenas artimanhas, bicos, trambiques, trapaças que permitem uma respiração menos artificial dentro da bolha sufocante do mundo do trabalho: cinismo, desprendimento, desapego, fugas parciais, desatenção são alguns dos componentes que conferem ao sujeito a possibilidade de não se tornar completamente louco ante as prensas e moendas contra seu corpo e alma durante as jornadas laborais – e ainda se espalhando, se infiltrando no cotidiano e nas horas eufemisticamente denominadas de tempo livre. Uma pergunta ronda as meditações de Henry (Bukowski ou Chinaski): “Como, diabos, pode um homem gostar de ser acordado às 06h30 da manhã por um despertador, sair da cama, vestir-se, alimentar-se à força, cagar, mijar, escovar os dentes e os cabelos, enfrentar o tráfego para chegar a um lugar onde essencialmente o que fará é


encher de dinheiro os bolsos de outro sujeito e ainda por cima ser obrigado a mostrar gratidão por receber essa oportunidade?” (Bukowski 2007:107)

Henry não acredita, não enxerga espaço para gratidão e prazer por um posto (“ilustre ou precário”) no mundo do trabalho alienante. Resta o deleite do delito, abre-se a possibilidade de um jogo secreto, irônico, um fingimento restaurador, um cinismo aplicado ao apaziguamento da alma atormentada, uma ação debochada ciente do teatro que normatiza as estruturas e as relações pessoais dentro (e fora) da esfera de labor. Assim, é possível ficar longe de uma ética dócil, bem-comportada, fugir dos padrões de comportamento esperados para um bom funcionário, de modo que seja possível aplacar um pouco a dor, os constrangimentos, burlar as regras toscas que giram ao redor do sujeito como um leão faminto e vigilante. Chinaski/Bukowski reconhece que os sujeitos circulam num terreno de situações sociais em que o mundo do trabalho (e seus agentes operacionais das instâncias de poder) acaba por dar forma, servir de molde para os comportamentos. Segundo Domenico de Masi: “(...) a maioria dos trabalhadores se encontra em poder de estranhos – distribuidores de trabalho, superiores hierárquicos, sindicalistas – que pouco ou nada tem a ver com o seu bem-estar e que preferem fazer regredir os próprios subalternos a um estado infantil, em vez de encorajar-lhes a autonomia e a criatividade. (...) Muitas organizações preferem (...) dependentes dóceis em vez de colaboradores autônomos e afoitos. (...) as empresas gostam de decidir vida e morte de seus dependentes, deixando-os à mercê dos acionistas, dos chefes de pessoal, dos delegados sindicais, dos consultores, dos chamados superiores.” (De Masi 2003:41-42)

Henry já sabe de antemão das misérias e dos contratempos erigidos e estruturados pelo mundo do trabalho, já conhece os arranjos sociais que minam a


todo instante os territórios de autodeterminação em nome de um ritmo ratificador da ordem imposta. Opera numa esfera de desencanto, sabendo dos terríveis males que o mundo do trabalho inflige aos milhões de homens e mulheres que todos os dias saem do sono e do sonho para um quase infindável período de vigília penosa no trabalho: “Nesses tipos de trabalho um homem cansa. Vai a um estado de exaustão superior à fadiga. Diz coisas loucas e luminosas. Fora de mim, amaldiçoei e disse asneiras e piadas e cantei. O inferno se encheu de gargalhadas. Até mesmo o elfo riu de mim. Trabalhei ali por várias semanas. Chegava sempre bêbado. Não fazia diferença; eu estava no emprego que ninguém queria. Após uma hora em frente ao forno, eu ficava sóbrio. Minhas mãos estavam cheias de bolhas e queimaduras. A cada dia, sentava-me na cama, morrendo de dor, e estourava as bolhas com alfinetes que esterilizava com fósforos.” (Bukowski 2007:38)

Não há tempo a perder com as determinações morais, não se deve estimular e reproduzir uma vida submetida ao cerceamento das ações comportamentais. Trabalhar num forno de uma fábrica de biscoitos (caso da passagem referida acima) já é suficiente, não é preciso aumentar a carga com outras obrigações (morais, espirituais, administrativas, etc.). Chinaski (e Bukowski) possui a capacidade lúcida para reconhecer os ardis em que se mete, agindo matreiramente, de maneira a aliviar as mazelas e agruras físicas e mentais. Assim, é possível utilizar-se de mentiras e fingimentos para arranjar um trabalho qualquer: “Finalmente fui contratado por um atacado de autopeças. (...) Tive que me humilhar para conseguir o trabalho – disse a eles que gostava de pensar no meu emprego como uma segunda casa. Isso os agradou. Trabalhava como balconista. Também percorria meia dúzia de lugares na vizinhança e apanhava peças. Era uma oportunidade de dar uma circulada.” (Bukowski 2007:85)


Nada mais longe do horizonte de expectativas dos personagens do velho safado que a ideia do emprego como um segundo lar. Apesar de uma redução, de uma sujeição aparente às regras do jogo, Chinaski está mais interessado nas circuladas. Simula a encarnação do papel social esperado, porém distorcendo-o como um ator desanimado, debochado, desvairado sem o menor pavor de continuar circulando, bebendo, rindo, atrasando prazos, fingindo produção, ser demitido, etc. Bukowski e seus personagens atuam num cinismo trapaceiro, ardiloso, deixando ver nas entrelinhas de seu discurso e na interpretação de suas ações, a medida do embate de poderes entre os indivíduos e as hegemonias ideológicas, práticas, econômicas, entre outras, perpetradas pela lógica capitalista. Agem sem desconhecer que “A disciplina consiste na totalidade dos controles totalitários no local de trabalho - vigilância, tarefas repetitivas, ritmo de trabalho imposto, cotas de produção, horário para entrar e para sair e por aí vai. A disciplina é o que a fábrica, o escritório e a loja têm em comum com a prisão, a escola e o hospital psiquiátrico. É algo historicamente original e horripilante.” (Black 2004:4)

E ainda demonstram compreender que “Um trabalhador é um escravo em meio período. O chefe diz quando ele deve chegar, quando deve ir embora e o que deve fazer durante a jornada. Ele diz quanto trabalho alguém deve fazer, e com que rapidez. Tem liberdade para levar seu controle a extremos humilhantes, regulamentando, se assim desejar, o que alguém deve vestir ou com que frequência deve ir ao banheiro.” (Black 2004:5)

As histórias entrelaçadas de ficção e vida, em nenhum momento, demonstram que houve uma entrega às narrativas do trabalho dentro da lógica do capitalismo como fornecedor de uma ontologia significativa para a formação do espírito humano.


Bukowski conhece o traçado do caminho, as cartas marcadas do jogo e não se ilude ou se sabota aguardando redenção no mundo do trabalho. Assim, Chinaski segue junto com vagabundos e indolentes, relaxado, desconhecendo as tensões estimuladas pelos administradores, patrões, etc.: “Vagabundos de rua e indolentes, todos nós que ali trabalhávamos tínhamos consciência de que nossos dias estavam contados. Então relaxávamos, esperando pelo momento em que nossa inépcia viria à tona. Nesse meio-tempo, vivíamos de acordo com o sistema, dávamos-lhes umas poucas horas honestas e bebíamos juntos durante a noite.” (Bukowski 2007:74)

Ao invés de deslocar para uma dimensão supostamente liberada de tensões (como alguns, ingenuamente, querem acreditar, usando nomes como lazer e tempo livre para tais dimensões) as exigências e vivências por uma vida autêntica, a escritura de Bukowski não apenas insinua as táticas de guerrilha psíquica contra a lógica de “funcionário do mês”, como age procurando infiltrar nas horas determinadas pelo trabalho demandas de outras ordens, rasgos de subjetividade – um trago, uma volta a esmo pela cidade, uma ronda nos bares, um corpo propositadamente lento, uma mente divagando, uma trepada com uma colega durante o expediente, etc. Podemos ler nos pequenos truques e golpes narrados, seja nos romances, seja nos ensaios de Bukowski, a noção de que tempo verdadeiramente livre é o tempo de dedicação, de atenção às demandas próprias, da psique, da subjetividade. E que se esconde na formulação do lazer e do tempo livre um engodo do próprio sistema capitalista para manutenção de uma série de imposições e limites. Como anota Bob Black, em A abolição do trabalho:


“A única coisa "livre" no chamado tempo livre é que ele é livre de custos para o chefe. O tempo livre é dedicado principalmente a se preparar para o trabalho. Tempo livre é um eufemismo para o modo peculiar como a mão-de-obra, como fator de produção, não apenas se transporta sozinha, à sua própria custa, de casa para o trabalho e do trabalho para casa, mas também assume primariamente a responsabilidade pela sua própria manutenção e conserto.” (Black 2004:6)

Ou como indica o sociólogo Ricardo Antunes “(...) não pode haver tempo verdadeiramente livre erigido sobre trabalho coisificado e estranhado. O tempo livre atualmente existente é tempo para consumir mercadorias, sejam elas materiais ou imateriais. O tempo fora do trabalho também está bastante poluído pelo fetichismo da mercadoria.” (Antunes 1999:194)

Henry (Chinaski/Bukowski) entendimento contrário ao que Friedmann, que afirma que

caminha no aponta Georges

“A privação do trabalho, ao tempo em que se constitui para o desempregado uma regressão social, engendra, ao término de certo tempo, “uma espécie de intoxicação” que exige completa readaptação. A privação prolongada do trabalho é verdadeira ameaça para a saúde mental do indivíduo.” (Friedmann 1983:194)

Exatamente o oposto: é a privação de si, engendrada pela lógica do mundo do trabalho no sistema de produção de mercadorias, que se constitui uma ameaça aterradora, assombrosa realidade que despedaça bilhões de vidas ao redor do globo numa corrida vertiginosa pelo consumo de coisas e pela coisificação de almas. Daí a importância de manter-se são, fomentando as necessidades e desejos próprios, corroendo os pilares que sustentam o trabalho alienado na medida em que se situa sob seu olhar. Trazer para o horário de trabalho a lógica do desbunde, mordiscando aqui e ali nacos e nacos dos campos de força do mundo do trabalho.


Bukowski, ao propor em seus personagens e experimentar em sua jornada uma ética trickster (o coyote trapaceiro das mitologias indígenas norteamericanas), leva a cabo os dispositivos de simulacros de funcionários, atores bêbados improvisando o roteiro das rotinas produtivas. Em seus deslocamentos ácidos no interior do mundo do trabalho, reverbera a ciência da exortação, da análise realizada por Paul Lafargue, conhecido genro do amante do trabalho Karl Marx, em O direito à preguiça: “Trabalhem, trabalhem, proletários, para fazer crescer a riqueza social e as suas misérias individuais, trabalhem, trabalhem, para que, tornando-se mais pobres, tenham mais motivo para trabalhar e para ser miseráveis. Tal é a lei inexorável da produção capitalista.” (Lafargue 2003:35-37)

A escritura de Bukowski indica as operações de “cavalo de Troia” a serem executadas no âmbito das oficinas, repartições públicas, lojas, escritórios, entre outros ambientes. Exercer o papel social de empregado como um agente corrosivo, desinteressado, combativo frente à lógica empresarial. Ainda que circulando no âmbito da empresa e suas leis, torcer as metas, esnobar expectativas, desconhecer o (escarnecer do) ânimo que informa palestras motivacionais para funcionários. Neste sentido, é oportuno indicar a reflexão de Paolo Vaselli, presente no livro A sociedade Pós-industrial, sobre os conflitos entre o tempo industrial e os tempos individuais: “(...) também no trabalho – ou talvez sobretudo aqui – a duplicidade de postura é fundamental para preservar uma margem de liberdade com respeito às regras. Pode-se então fingir e desempenhar o próprio encargo, ou fazê-lo sem atribuir muita importância, ou com o mínimo dispêndio mental e emotivo. O trabalho é um daqueles momentos da experiência de todos os dias nos quais é realizado um sutil jogo duplo por parte dos sujeitos; se o contexto em que se deve operar não permite a expressão completa da própria identidade (e a vida pode ser rica destas situações), é possível refrear a pressão das


normas externas destituindo-as parcialmente de sentido, aceitandoas momentaneamente e de modo limitado, rindo zombeteiramente delas na primeira oportunidade. Distanciar-se do papel social tornase assim uma arma na mão para que o sujeito possa viver em um tempo que não o seu próprio sem alienar-se completamente, sem distanciar-se excessivamente de si. Seriedade e jogo, realidade e brincadeira tornam-se assim termos não forçosamente contraditórios, modalidades intercambiáveis parar viver situações mais ou menos comprometedoras sem sofrer danos irreparáveis.” (Vaselli in De Mais 2003:211)

É significativo e irônico que o título do segundo romance de Bukowski seja Factótum. Uma corrida aos dicionários nos traz algumas definições, tais como: faztudo, intendente, auxiliar valioso, entre outros. Com um olhar cínico como um credo, Chinaski atravessa a América do Norte, arranjando bicos de toda ordem, fazendo um pouco de tudo, numa tentativa de arranjar comida, bebida e refúgio suficiente para que possa continuar a escrever. Neste carrossel de ocupações, fontes minguadas de dinheiro, vivendo da mão para a boca, Chinaski se consome trabalhando numa distribuidora de revistas, numa fábrica de biscoitos, descarregando caminhões, numa loja de autopeças para carros, numa companhia de táxi, numa loja de enfeites natalinos, entre outros postos variados. Na distribuidora de revistas, Chinaski anota o aprendizado de uma lição: “- Olhem – eu disse -, essas revistas não valem a pena nem ser lidas, quanto mais que vocês briguem por elas. – Tudo bem – disse uma das mulheres -, nós sabemos que você se acha bom demais para esse trabalho. – Bom demais? – Sim, essa sua atitude. Você acha que a gente não reparou? Foi quando aprendi, pela primeira vez, que não bastava que você fizesse seu trabalho. Era preciso mostrar interesse, se possível até paixão por ele.” (Bukowski 2007:13)

Alguns litros de uísque, corridas vertiginosas de cavalo e apostas no jóquei vencedor, milhões de outras pequenas experiências, mergulhos no torvelinho do mundo da vida podem despertar a paixão, envolvidas


num relação prazerosa, motivada por renovado interesse. Não o mundo do trabalho, no que este carrega de sentido alheado, trazido de fora, insensível ao sujeito. Prazer no trabalho justamente quando este escapa aos limites administrativos, como quando Chinaski fala dos dias de entregas especiais: “Sobrava tempo para vadiar um pouco nos cafés, folhear os jornais, me sentir decente. Sobra tempo até para o almoço. Sempre que queria tirar um dia de folga, eu tirava.” (Bukowski 2011:16). Num registro similar ao acontecido na distribuidora de revistas, desta vez presente no ensaio Confissão de um velho safado, Bukowski indica a ocasião em que foi promovido a chefe de seção da remessa de livros, depois dos chefes terem visto um conto dele aceito numa revista literária. Bukowski, depois de ter faltado alguns dias por embriaguez, aceita o cargo – não sem deixar transparecer o entendimento de que aquilo era uma manobra estúpida e que ser escritor não guardava nenhuma ligação com qualquer outra coisa: “Minha função era contar o número total de livros enviados nas caixas, assinar a nota fiscal ali dentro e dizer: “Pode pregar!”. Eu apenas fingia contar. Era tão fácil e tão tedioso. E eles sabiam das coisas melhor do que eu. Eu simplesmente fechava os olhos, fingia que estava contando, assinava a nota e dizia: “Ok, pode pregar!”. Eu era experiente o bastante para saber que logo todos perceberiam que eu estava cagando para o trabalho, então pedi demissão antes que alguém me dedurasse.” (Bukowski 2010:128)

Se movendo despreocupado com nomes e títulos, sem importar-se com a ideia de profissão, emprego ou ocupação como medida legítima e onipresente para mediar relações com a teia da vida, sem inteirar-se do horizonte de expectativas da turba (consuma, trabalhe, etc.), lhe criando tipificações e padrões de comportamento – bom funcionário, bom cliente, sujeito dócil, um cavalo como Sansão, da novela A revolução dos


bichos, com seu slogan: trabalharei mais ainda, etc.- em acordo com as normas partilhadas (seria mais ácido dizer circuladas num ritual de suicídio do corpo, normas de auto-sabotagem, etc.), Chinaski não se perturba com a precariedade, o lugar em que ninguém quer estar, a sarjeta cotidiana. Importa reduzir ao máximo os obstáculos entre o sujeito e o exercício de seus caprichos fundamentais, seus anseios e sonhos, seu dispêndio de energia mental e física numa ação pessoal, plena de ressonância na subjetividade. Ainda que seja necessário, para isso, fazer parte da equipe de trabalho com alguma ocupação enfadonha, tediosa. Não há diferença entre o chefe da remessa de livros e um despachante: “Despachante, eis o que eu era. Quando você não sabia fazer nada, é isso que você se torna: um despachante, um recepcionista, um garoto de estoque. Dei uma olhada em dois anúncios, fui a dois lugares e ambos os lugares estavam interessados em me contratar. O primeiro cheirava a trabalho, por isso fiquei com o segundo.” (Bukowski 2011:62)

Todo o tormento posto em circulação pelo cenário da lógica empresarial se torna uma possibilidade de investida cômica (sem receio de pedir demissão, ocultar dados, ser displicente ou qualquer termo de cárcere usado na retórica administrativa, de recursos humanos, etc.). Chinaski se move consciente de todo o circo e age como um bufão, como se disse preferiria não, como Bartleby, mas depois tomando uma garrafa de uísque no depósito de freios da loja de autopeças, agarrando as pernas da vida numa luta num beco depois de porres e insultos, beijando as costas nuas de uma dama recémconhecida no bar mais próximo, ao invés de ficar imobilizado numa renúncia à produção pela via da apatia e do absurdo. É assim que podemos ler a tranquilidade diante das ocupações parvas, desprovidas de qualquer sentido aparente, sem nenhum significado vivo:


“Fui contratado para o que eles chamavam de bola-extra. O bolaextra era o cara que fazia de tudo sem ter, ao mesmo tempo, nenhuma atividade específica. Ele devia saber o que fazer após consultar uma espécie profunda e infalível de sexto sentido. Instintivamente, esse cara devia saber como manter as coisas funcionando de modo natural, o que era melhor para a empresa, a Mãe de todos, e suprir-lhe todas as pequenas necessidades que eram irracionais, contínuas e insignificantes. Um bom bola-extra não tem face nem sexo e deve estar disposto a se sacrificar pela causa.” (Bukowski 2007:109)

É exatamente na medida contrária em que se fia Chinaski. A única causa em questão digna de sacrifício é a experiência da jornada subjetiva, o exercício das próprias vontades contra a corrente da ordem estabelecida. Não agir, não viver como um estranho: “Por causa da atual divisão entre trabalho e vida, quase todos os trabalhadores, hoje, vivem como estranhos, seja no quarteirão onde trabalham de dia, seja no quarteirão onde dormem à noite. De fato, eles são como que desprovidos de cidade.” (De Masi 2003:265)

E para não se tornar um estranho para si mesmo, é fundamental não entregar e esgotar as energias vitais em troca dos centavos, ilusões e bagatelas ofertadas pelo mundo do trabalho e seu desdobramento no fetiche do consumo de mercadorias gloriosamente desprovidas de sentido e profundidade. Ainda que as artimanhas e trapaças não implodam definitivamente o mundo do trabalho, tornam possível uma existência autêntica, voltada para o autoconhecimento e as vivências das potências, das energias delirantes do abismo subjetivo. As investidas individuais contra as ideias e práticas estabelecidas do mundo do trabalho (e do sistema ideológico, bélico, político e econômico que o ampara e anima), pontuadas por toda sorte de dispositivos discursivos e existenciais – físicos, mentais, míticos, etc.-, ensejam também oportunidades de reinvenção da vida


social, possibilitam, no percurso de tentativa e erro, categorias de arranjos biográficos e comunitários insuspeitas sob a ditadura do trabalho heterodeterminado, alienado. Assim, na experiência da vida e da ficção, no mundo de carne e de palavra, um bêbado cheio de artimanhas e trapaças (seja Bukowski ou a miríade de seus personagens) pode se converter num vetor de transformação social, tornando pensável o que antes se guardava nos recônditos da alma individual. Como o grupo Krisis registra no Manifesto contra o trabalho: “A ruptura categorial com o trabalho não encontra nenhum campo social pronto e objetivamente determinado (...) O ponto de partida não pode ser algum novo princípio abstrato geral, mas apenas o nojo perante a própria existência enquanto sujeito do trabalho e da concorrência, e a rejeição categórica do dever de continuar "funcionando" num nível cada vez mais miserável.” (Krisis 1999:52)

Bukowski, no redemoinho de tédio, esgotamento físico e mental, ouve o rio das pulsões subjetivas, de onde retira a capacidade para manter-se são num mundo de corpos e consciências açoitadas pelo chicote. Nômade orientado pela intuição e experiência subjetiva do mergulho no mundo da vida, exerce as potências da criação literária e as energias da existência biográfica como realidades imbricadas, justapostas, numa simbiose que fomenta a aventura de um homem suficientemente insano para viver com as feras: “Escrever, enfim, pode até virar um trabalho, especialmente se você está tentando pagar o aluguel e a pensão alimentícia com esta atividade. Mas é o melhor trabalho e o único trabalho possível, e é um trabalho que potencializa seu talento para viver e seu talento parar viver retribui potencializando seu talento para criar. Um alimenta o outro, é tudo muito mágico. Pedi demissão de um emprego tremendamente tedioso aos cinquenta anos (me foi dito que eu teria segurança pelo resto da vida, ah!) e me sentei em frente a uma máquina de escrever.


Não há melhor maneira. Há momentos de completo terror em que você acha que vai enlouquecer; há momentos, dias, semanas sem uma palavra, sem um som, como se tudo tivesse desaparecido. E então tudo vem e você fuma, e bate e bate nas teclas, que rugem sem parar. Você pode levantar ao meio-dia, pode trabalhar até às três da manhã. Algumas pessoas vão lhe encher o saco. Não vão entender o que você está tentando fazer.” (Bukowski 2010:171)


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ANTUNES, Ricardo. Adeus ao trabalho? Ensaio sobre as metamorfoses e a centralidade do mundo do trabalho. São Paulo: Cortez Editora, 1997. ____________________. Os sentidos do trabalho – ensaio sobre a afirmação e a negação do trabalho. São Paulo: Boitempo Editorial, 1999. BATAILLE, George. O erotismo. São Paulo: Editora ARX, 2004. BLACK, Bob. A abolição do trabalho, 2004. Disponível em: http://ptbr.protopia.wikia.com/wiki/A_Aboli%C3%A7%C3%A3o_d o_Trabalho Acesso em 02/05/2012 BUKOWSKI, Charles. Cartas na rua. Porto Alegre: L&PM, 2011. _____________________. Pedaços de um caderno manchado de vinho. Porto Alegre: L&PM, 2010. _____________________. Factótum. Porto Alegre: L&PM, 2007. DE MASI, Domenico. O futuro do trabalho – fadiga e ócio na sociedade pós-industrial. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 2003.


ILLICH, Ivan. O direito ao desemprego criador – a decadência da idade profissional. Rio de Janeiro: Editorial Alhambra, 1978. FRIEDMANN, Georges. O trabalho em migalhas – especialização e lazeres. São Paulo: Editora Perspectiva, 1983. GRUPO KRISIS. Manifesto contra o trabalho, 2003. Disponível em: http://www.4shared.com/office/rzCOYZT/Manifesto_Contra_o_Trabalho_Gr.htm Acesso em 02/05/2012 LAFARGUE, Paul. O direito à preguiça. São Paulo: Editora Claridade, 2003. VASELLI, Paolo. Maffesoli, Echange et Projets: tempo industrial e tempos individuais. In: DE MASI, Domenico (Org.). A sociedade pós-industrial. São Paulo: Editora Senac São Paulo, 2003.


RADAR – ORIGENS DOS TEXTOS

“A poesia é o vinho da visão”, “Com a alma encharcada de uísque, poemas e histórias da vida subterrânea”, “Os animais e os minérios da memória”, “Bruce Lee e os livros que não li”, “Depois de ler, depois de ver, depois de ouvir” e “Se perguntarem por mim: fui à praia parir poemas” foram escritos originalmente como colunas para o site Outros Críticos {outroscriticos.com} e publicadas ao longo do primeiro semestre de 2012. “Quatro leituras do feminino e outras milhões embutidas”, “Aqui, além”, “Espaço, E s p a ç o, E s p a ç o, E s p a ç o”, “Eppur si muove” e “Febre do rato: poesia, cinema e libertinagem” foram escritos originalmente para a cobertura da IV Janela Internacional de Cinema do Recife, em 2011, dentro da oficina “janela crítica”, integrante do festival. A oficina foi ministrada pelo jornalista Luiz Joaquim. “Vicente Franz Cecim e as fábulas do imaginário rebelde: literatura, imaginário e utopia na invenção de Andara” foi escrito originalmente para a disciplina “Literatura e Ideologia”, da profª Sônia Ramalho, durante realização de meu mestrado em Teoria da Literatura, entre 2009 e 2011. Foi publicado na revista Investigações – Volume 24 – Número 1. “Depois de tomar algumas garrafas de uísque Blake Label” foi escrito originalmente para a disciplina “Poesia da experiência”, da profª Lucila Nogueira, durante realização de meu mestrado em Teoria da Literatura, entre 2009 e 2011.


“Beckett vai ao cinema: comentários sobre as pontes entre palavras, imagens e sons” foi escrito originalmente para a disciplina “Leitura de Imagens”, da profª Maria do Carmo Nino, em 2012, durante meu doutoramento em Teoria da Literatura. Foi publicado na revista Intersemiose, Ano II, Número 03. “Antropologia intuitiva e raridade – notas de leitura de “O Papalagui”” foi escrito originalmente para a disciplina “Literatura Comparada”, do profº Alfredo Cordiviola, em 2012, durante meu doutoramento em Teoria da Literatura. Foi apresentado no Colóquio Internacional 100 anos de Jorge Amado e publicado nos anais do evento. “Deboche, desvio e desvario: Luther Blissett e a literatura da guerrilha psíquica” foi escrito originalmente para a disciplina “Crítica Literária”, da profª Ermelinda Ferreira, em 2012, durante meu doutoramento em Teoria da Literatura. Foi apresentado na XXIV Jornada Nacional do Grupo de Estudos Linguísticos do Nordeste e publicado nos anais do evento. “Minha mãe é um peixe: a poesia de Humberto Ak’abal” foi escrito originalmente para a disciplina “Literatura e Questões culturais”, do profº Roland Walter, em 2012, durante meu doutoramento em Teoria da Literatura. “Um bêbado cheio de artimanhas e trapaças: Charles Bukowski e o mundo do trabalho” foi escrito originalmente por prazer e disciplina própria, em 2012.



Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.