A última edição da revista Outros Críticos em 2014 lança pequenas provocações sobre o tema "estética e política", mas também é provocado por ele. Jomard Muniz de Britto, convidado para a seção 'crítica de boteco', ao contar como gostava de ruínas - sem ainda ter lido Walter Benjamin - na época em que começava a filmar em Super-8, é provocado pelo editor da revista a responder se a Casa da Cultura (Recife) transformada por ele em "Casa-Grande de detenção da cultura", no filme O Palhaço Degolado (1978), era também uma ruína. De pronto, responde: "Não. Já era uma ostentação. A palavra da moda. Outros Críticos é uma ostentação da crítica, que não basta ser crítico, tem que ser "Outros Críticos". Ao nosso modo, provocando e sendo provocado a refletir sobre os discursos que nos atravessam, apresentamos nesta edição as impressões em tom de preto de Neilton Carvalho, os artigos de Angela Prysthon, Thiago Soares, Renato Contente e André Dib que de diferentes maneiras circundam o tema e entrevistas sobre ocupações e estéticas nas vozes de Alessandra Leão e da banda Rua, representada por Caio Lima. Ainda um falso ensaio sobre cidades e o grupo paulista Passo Torto a partir da estética do arrastão, de Tom Zé. Nesse texto, arrastamos JMB. Como sempre, as seções opinião, resenha e a coluna de Jeder Janotti Jr. e sua (nossa) aposta no dissenso. Boa leitura (a seu modo).
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outroscriticos.com
Revista
Ed. 1 # cenas musicais janeiro/2014
Ed. 2 # o valor da música março/2014
Ed. 3 # paisagem sonora maio/2014
Revista
Ed. 4 # artes integradas agosto/2014
Ed. 5 # o improviso como forma - outubro/2014
Ed. 6 # estética e política dezembro/2014
Livro
no mínimo era isso (2013)
Entrelugares: notas críticas sobre o pós-mangue (2012)
PASSAGENS PERFORMANCES PROCESSOS (2015)
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colaboradores AD Luna Músico das bandas Querosene Jacaré e Monjolo. É repórter do Diario de Pernambuco.
Angela Prysthon Professora do Bacharelado em Cinema e do Programa de pós-graduação em Comunicação da UFPE.
Bruno Vitorino Compositor, baixista do Nebulosa Quinteto e colunista do blog Variações para 4.
Jeder Janotti Jr. Professor do PPGCOM da UFPE, coordena o grupo de pesquisa Mídia e Música Popular Massiva.
Marina Suassuna
Renato Contente
Jornalista, é repórter da Folha de Pernambuco.
Jornalista, é repórter da Folha de Pernambuco.
Rodrigo Édipo Pesquisador e mestre em Comunicação pela UFPE.
Thiago Soares Doutor em Comunicação e Cultura Contemporâneas pela UFBA e professor do PPGCOM da UFPE.
expediente Edição: Carlos Gomes Projeto gráfico: Fernanda Maia Ilustrações: Neilton Carvalho Jornalista responsável: André Dib (DRT 4064-PE) Textos: Carlos Gomes, André Dib e Karol Pacheco (debate). Fotografia: Renata Pires
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edição 6 - bimestral - dezembro de 2014
Esta revista é uma iniciativa do projeto de crítica cultural Outros Críticos, e foi realizada com incentivo do FUNCULTURA (Governo do Estado de Pernambuco). ISSN: 2318-9177 Impressão: FacForm
Adquira as edições anteriores em: www.loja.outroscriticos.com Mais informações e sugestões: contato@outroscriticos.com www.outroscriticos.com
7 Artista convidado Neilton Carvalho
exceção e a regra, a exceção na regra. 8 AApontamentos sobre estética e política 16 Crítica de Boteco 12 Incômodos da música brega por Angela Prysthon
com Jomard Muniz de Britto
entrevistas
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Alessandra Leão
Rua
34 Opinião
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Depoimentos de Ricardo Maia Jr., Gabriel Mascaro, DJ Dolores, Evandro Sena e Kiko Dinucci.
Caetano no tabuleiro político da MPB por Renato Contente
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O canto épico da fábula Brasil S/A por André Dib
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A cidade cai, o passo é torto por Carlos Gomes
por Jeder Janotti Jr.
Foto: André Conti/Divulgação
ensaio
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Russo Passapusso por Marina Suassuna
coluna
Arte & Política: Cult ou Pop?
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Matheus Mota por Bruno Vitorino
resenhas 3
62 Tom Zé
por AD Luna
Foto: Flora Pimentel/Divulgação
Foto: Tiago Lima/Arte: Vânia Medeiros/Divulgação
26
Foto: Renta Pires
por Thiago Soares
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A revista Outros Críticos agradece aos mais de 100 participantes do ANO I da publicação. Germano Rabello, Daniel Liberalino, Bernardo Oliveira, Bruno Vitorino, Leonardo Vila Nova, Guilherme Gatis, Jeder Janotti Jr., Rodrigo Édipo, Rafael de Queiroz, Caio Lima, Ricardo Maia Jr., DJ Dolores, Renato L., Paloma Granjeiro, Leo Antunes, AD Luna, Sara Guabello, Hugo Montarroyos, Zeca Viana, Isaar, Rama Om, Do Jarro, Enio Borba, Aninha Martins, Rodrigo Padrão, AESO, Fábio Barros, Corujas, Bruna Leite, Jacaré Video, Orbe Coworking, A Firma, Facform Gráfica, Marina Duarte, Félix Marcelino, Renata Pires, Caçapa, Daaniel Araújo, Karol Pacheco, Raquel Monteath, Paulo do Amparo, Rafael Cortes, H. d. Mabuse, Missionário José, Filipe Barros, Bruno Cosentino, Hugo Linns, Leonardo Salazar, Juliano Holanda, Matheus Mota, Isadora Melo, Mery Lemos, Graxa, Bruno Nogueira, Marina Suassuna, Jeims Duarte, André Dib, Marcelo Campello, Roger de Renor, Liana Cirne Lins, Gutie, Cadu Tenório, Fred Lyra, Glauco César II, Hugo Medeiros, Lucas Alencar, Mateus Alves, Ana Luisa Lima, José Juva, Júlio Cavani, Gráfica Lenta, Conrado Falbo, Raoni Assis, Adiel Luna, Benjamim Taubkin, Liana Gesteira, Neco Tabosa, César Lacerda, Tomaz Alves, Nascinegro, Paes, AltoVolts, Alessandra Leão, Marcus Fernandes, Helder Vasconcelos, Areia, Jam da Silva, Vitor Araújo, Guilherme Kastrup, Marcelo Cabral, Renata Rosa, Rodrigo Samico, Sérgio Cassiano, João Paulo Albertim, Maíra Macêdo, Luciano Emerson, Camila Van der Linden, Angela Prysthon, Thiago Soares, Renato Contente, Neilton Carvalho, Jomard Muniz de Britto, Evandro Sena, Gabriel Mascaro, Kiko Dinucci e Rua. Obrigado, Carlos Gomes e Fernanda Maia. 5
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artista
convidado Neilton Carvalho é músico, guitarrista da banda Devotos, designer, autor de várias capas de trabalhos da banda, e um dos sócios da Altovolts, fabricante de amplificadores valvulados e pedais. Em 2010, na Galeria de Artes do Sesc Casa Amarela, estreou uma mostra individual com a exposição Visões em Tom de Preto. Boa parte dos desenhos dessa exposição estará presente nesta edição da Outros Críticos. Produzido ao longo de mais de dez anos, os desenhos foram feitos com bico de pena e nanquim. Suas visões retratam o que nos é cotidiano, suas personagens marginais, ao mesmo tempo em que arranca do aparente banal imagens sublimes. Reparar no mundo e desdobrá-lo em imagens, assim são seus traços.
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artigo
A exceção e a regra, a exceção na regra. Apontamentos sobre estética e política por Angela Prysthon
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tos. Eu vi tantos viverem tão mal, e tantos morrerem tão bem.”¹
Há pouco mais de vinte e um anos, Jean Luc Godard realizou um pequeno filme, Je vous salue Sarajevo (1993), uma reflexão sobre a cultura europeia, sobre os nacionalismos e mais especificamente sobre a guerra da Bósnia, a partir de uma foto de guerra de Ron Haviv. O filme trazia à tona também uma oposição muito marcada entre arte e cultura, como se pode perceber no texto (lido pelo próprio Godard) que acompanha as imagens (ângulos distintos, aproximações e distanciamentos dessa mesma foto, além de uma imagem em preto e branco de uma mulher de cabeça baixa que fecha o filme):
Trata-se de um exercício de contemplação da fotografia original, da investigação e problematização dessa imagem, que busca na exploração do visível dar conta daquilo que resiste à visibilidade. Mas, em vários sentidos, é mais um estudo sobre as conexões entre a arte e política do que propriamente um discurso sobre a guerra ou mesmo sobre as peculiaridades daquela fotografia. Nele, Godard afirma a arte como antídoto contra a padronização imposta pela cultura massiva. Assim, a arte estaria no território do dissenso, enquanto a cultura seria a imposição do consenso. Um consenso aplastador, alienante e opressor. Godard sublinha essa separação no esteio de uma concepção estética francamente modernista (e marxista), que liga o sublime ao desvio e à diferença, que opõe a obra de arte à mercadoria. O que nos parece particularmente interessante e de certo modo paradoxal é que essa posição (a defesa do modelo tradicional de “arte crítica”, a adesão ao abismo entre as esferas artísticas e as culturais) se dê num horizonte de experimentação com a imagem que pouco tem a ver com a lógica da separação. Então, por mais que no seu discurso esteja conclamando a separação entre o mundo cotidiano e o indizível da arte, entre os ter-
“De certa forma, o medo é o filho de Deus, redimido na noite de sexta-feira. Ele não é belo, é zombado, amaldiçoado e renegado por todos. Mas não entenda mal, ele cuida de toda agonia mortal, ele intercede pela humanidade. Pois há uma regra e uma exceção. Cultura é a regra. E arte a exceção. Todos falam a regra: cigarro, computador, camisetas, TV, turismo, guerra. Ninguém fala a exceção. Ela não é dita, é escrita: Flaubert, Dostoiévski. É composta: Gershwin, Mozart. É pintada: Cézanne, Vermeer. É filmada: Antonioni, Vigo. Ou é vivida, e se torna a arte de viver: Srebenica, Mostar, Sarajevo. A regra quer a morte da exceção. Então a regra para a Europa Cultural é organizar a morte da arte de viver, que ainda floresce. Quando for hora de fechar o livro, eu não terei arrependimen-
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ritórios mais banais da “cultura” (colocada de um modo quase pejorativo) e o lugar não localizável do sublime, a própria forma do filme resiste a essa contraposição. É que, ao interrogar uma fotografia de guerra, ao investigar essa imagem, o filme acaba trazendo para o centro do seu filme a ideia da arte de viver (e de morrer), na qual não faz sentido pensar tanto em separação, mas na ideia de partilha, tal qual a conceitua o filósofo francês Jacques Rancière. Pois, o Godard de Je vous salue Sarajevo nos parece guardar sim muitas
ção aponta sempre para a dupla acepção do termo (como divisão e como distribuição), nesse sentido trazendo à tona uma dimensão paradoxal na qual são imprescindíveis o encontro e a divergência (sendo mais preciso até pensar na ideia de encontro na divergência), uma possibilidade de igualdade na afirmação da diferença. Assim, parece-nos possível rever Je vous salue Sarajevo fazendo algumas torções, reparos e acréscimos e recolocar o debate sobre a política na arte e a arte na política em termos menos binários.
correspondências com os escritos de Rancière, que em diversas obras se dedicou a repensar a relação entre estética e política fora dos modelos estabelecidos pela tradição marxista, pela Escola de Frankfurt ou pelas leituras pós -estruturalistas. A noção de partilha do sensível é justamente a base a partir da qual pensar não apenas a inscrição da política na arte ou uma reformulação sobre a estetização da política, mas sobretudo o que há de comum entre as duas esferas. Essa concep-
Pensar a forma desse filme como um elemento efetivamente desestabilizador dos sentidos mais imediatos do seu próprio texto, por exemplo. Pensar como mesmo a partir da regra é possível vislumbrar a crítica. Ver que mesmo no campo dos produtos culturais mais banais vai sendo revelada a possibilidade do dissenso. É este um dos paradoxos que residem no coração do debate sobre estética e política. Então, é evidente que a própria noção de arte política (ou arte crítica) tenha que ser ressig-
“É evidente que a própria noção de arte política (ou arte crítica) tenha que ser ressignificada para além da ‘arte engajada’”
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“Se existe uma conexão entre arte e política, ela deve ser colocada nos termos do dissenso, o próprio cerne do regime estético: obras de arte podem produzir efeitos de dissenso precisamente porque elas nem dão lições, nem têm um alvo.”³
nificada para além da “arte engajada”, para além do panfleto, para além de modelos “pedagógicos”. Um autor como Homi Bhabha, por exemplo, também superando a dicotomia arte/cultura, vê nas formas culturais não canônicas a transformação efetiva das estratégias críticas e das leituras estéticas. Para ele as formações estéticas elaboradas dentro de uma situação de marginalidade social nos forçam a:
É nesse horizonte da obra sem lições a serem aprendidas ou sem uma meta a ser alcançada que está não apenas a arte política do que Rancière chama de regime estético ou a subjetivação da política, mas também a noção sugerida pelo título desse texto, de que sim há a regra e há a exceção, mas que mesmo dentro da regra é possível haver exceção. Nessa trilha, é possível recuperar toda uma tradição de pensamento (em diversos campos) que tenta ler a contrapelo as práticas e formações criativas. Uma tradição que escolhe firmemente não rejeitar o mundo da cultura, não isolá-lo, nem opô -lo diametralmente ao mundo da arte. oc
“encarar o conceito de cultura exteriormente aos objets d’art, ou para além da canonização da ideia de estética, a lidar com a cultura como produção irregular e incompleta de sentido e de valor, frequentemente composta de demandas e práticas incomensuráveis, produzidas no ato da sobrevivência social.”² Ou seja, não se trata de deslocar o que antes estava concentrado na ideia da arte engajada para o terreno da cultura marginalizada e periférica, mas, ao recusar a canonização da estética (restrita ao elogio do sublime clássico ou do desvio modernista) estende os próprios limites da estética (para o social, para o cotidiano, para a política, para a arte de viver, como propôs Godard, para a exceção). De novo, Rancière nos parece particularmente relevante para a compreensão de uma virada estética da política ou da política da estética:
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¹ ALMEIDA, Edu. Cultura é a regra, arte é a exceção, Arte faz parte, 2011. ² BHABHA, Homi K.. O local da cultura. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 1998.
³ RANCIÈRE, Jacques. Dissensus. On Politics and Aesthetics. Londres: Continuum, 2010.
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artigo
Inc么modos da m煤sica brega por Thiago Soares
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Como alguém que pensa que a cultura se faz na multiplicidade e, sobretudo, no dissenso, acho que uma boa forma de refletir sobre as articulações entre música e política no Recife e em Pernambuco, é cartografar os incômodos da música brega neste contexto. Se tomarmos a noção de política como ocupação, como estratégia, inserção e partilhas nos espaços codificados, o brega é, portanto, um itinerário curioso para debater o centro e as bordas do que se convencionou chamar de “música de Pernambuco”. Através de uma política cultural que se edificou sob a égide de um certo “Pernambuco Nação Cultural”, sempre observei uma tendência de jornalistas, críticos culturais e mediadores políticos em tratar a música produzida no Estado como um gênero. Acho que há um movimento análogo no cinema – com a retranca ampla chamada “cinema pernambucano”, que engloba estilos, diretores, gêneros e narrativas bem distintas entre si. No caso da “música pernambucana” (ou “Made in Pernambuco”, título inclusive de uma coletânea de artistas locais), acontece o mesmo. A música chamada “de Pernambuco” é aquela circunscrita a tradições hegemônicas nas políticas públicas de incentivo à cultura e também “eleita” por conselhos e mediadores comunicacionais. Quando peguei o box com uma dessas coletâneas, tomei um susto: onde estava o brega? Nenhum sinal. A discussão se espraiou para a programação da Rádio Frei Caneca, que tocará (espera-se ansiosamente) o que se chama de “música pernambucana de qualidade”. E cabe aqui circunscrever o que se chama de “qualidade”: Para quem? Para quê? Quando se faz uma abordagem geográfica de um gênero musical, o interessante é justamente acionar tensões existentes no contexto. O que sempre se fez, como política de Estado, em Pernambuco, foi operacionalizar no fácil binômio cultura popular-folclórica + gêneros musicais hegemônicos, esquecendo que diversidade faz parte 13
do reconhecimento da produção cultural que está na borda da tão almejada “qualidade”. A “music from Pernambuco” (esta que está nos boxes e nas coletâneas para venda em feiras internacionais) é uma embalagem higiênica e domesticada da pluralidade musical do Estado, feita quase sempre obedecendo padrões de diálogo com gêneros musicais hegemônicos nos circuitos de festivais e acionando uma identidade condicionada, erguida sob a égide do capital transnacional. Sintetizando: o periférico aparece sob a máscara do exótico da cultura popular-folclórica, como nas imagens publicitárias institucionais que governos amam exibir como constituição quase fálica de poder. Mas qual o periférico que está nas margens destas propagandas institucionais? A música da periferia do Recife não é apenas o maracatu iluminado e museificado, não é o caboclinho com um riso fácil ou o afoxé de um carnaval de tambores silenciosos. A música da perferia do Recife é o brega romântico, rasgado, sexual e pernicioso. É a música dos Mcs, ídolos entre garotas, e das divas bregueiras, espelhamento de meninas, travestis, gays, drag queens. A música da periferia é a suingueira quase funkeada, o pagode radiofônico, o grito da cantora pop, o hip hop. A música da periferia não cabe na foto de políticas estatais, porque vaza ao controle
de uma identidade higienizada. É, por si só, contaminada pela borda, pela sombra, por aquilo que governos querem não enxergar. Lembro de uma conversa com a fotógrafa Bárbara Wagner, na ocasião da sua exposição “Brasília Teimosa”, composta por imagens provocadoras, estranhas e potentes de personagens do bairro, evocando um belo que atravessa matrizes hegemônicas do bom gosto, em que ela me dizia que tinha recebido críticas e sugestões para não expor aquelas fotos no exterior “porque aquilo não representava o Recife”. Neste tipo de crítica, pode-se observar aspectos éticos, higienizantes e normativos da política de reconhecimento de uma identidade por órgãos governamentais e também pelos habitantes. Percebo movimento análogo no que diz respeito à música. Na exclusão que se faz do brega nas políticas públicas de cultura, há algo de higienização identitária ou uma certa “cosmética” de um Estado. O brega, assim como os moradores de Brasília Teimosa das fotos de Bárbara Wagner, seriam escusos, “feios”, fora de um padrão constituído. Eu quero falar do incômodo do brega na música pernambucana. Dos estranhamentos e dos “usos” deste gênero musical – que não entra em programações “oficiais” do Carnaval, muito menos em editais de fomento à produção. Ao brega, cabe a função autogestora, 14
fora do guarda-chuva do Estado. Longe dos gabinetes, perto das ruas. Ao brega, cabe ser usado como fantasia carnavalesca, como música “para suar”. Música que habita a área de serviço, a cozinha e também o quarto de jovens nos apartamentos de classe média do Recife. O brega é música das “periferias” do apartamento. Nunca da sala. Aí reside sua política. A música brega aciona uma dimensão política na medida que “força” a classe média branca e parda do Recife a se deparar com o Outro. Este
negritude que se constrói em diálogos com padrões midiáticos, viva, pulsante. A negritude do brega constrasta com a branquitude da plateia de alguns shows que ocorrem em bairros nobres do Recife. E também com os usos carnavalizantes do gênero por bailes e festas “descoladas”. Cabe aqui pensar também o brega como gênero musical que se adequa a questões mercadológicas e se circunscreve em contextos culturais hegemônicos. O político sobre a música brega é aquele em que tensões, valores
Outro, primeiramente exótico e estranho. Este Outro quase selvagem. O brega faz com que sejamos espectadores e ouvintes da nossa própria alteridade enquanto pernambucanos. É a música que aciona um outro padrão estético musical, tensionando normas clássicas de gravação, agindo no improviso, naquilo que não se reconhece como “de qualidade”. O brega, em suas levadas musicais, nos coloca diante de outras corporalidades possíveis: aquela que é negra, sem ser folclórica. Uma
e hegemonias são colocados em perspectiva. Lembro da fala reducionista de um gestor público que disse que “brega é música que denigre a mulher, incentiva o sexo”. Há, naturalmente, canções desta natureza. Mas, reduzir o brega a isto é forçar uma ótica moralista ao invés de problematizá-la. Talvez o incômodo do brega seja o incômodo da nossa identidade. Daquilo que aparece e some. Do que queremos destacar ou esconder. E questionar. oc
“A música brega aciona uma dimensão política na medida que ‘força’ a classe média branca e parda do Recife a se deparar com o Outro.”
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A seção Crítica de Boteco promove a cada encontro um debate sobre temas abordados na revista. Com o tema “Estética e Política”, esta edição foi gravada no Orbe Coworking, no Edf. Pernambuco, com o escritor, professor, cineasta e poeta Jomard Muniz de Britto. A mediação do debate foi feita por Carlos Gomes (Outros Críticos), Rodrigo Édipo (pesquisador) e Karol Pacheco (Outros Críticos/JC). Ainda contamos com o registro fotográfico de Renata Pires. 16
Jomard: Eu não tive tempo de preparar umas frases de efeito. Que são os melhores defeitos dos intelectuais. As frases que eles dizem como se fosse uma coisa bem espontânea. A filhinha de um amigo meu fazia umas poses para a câmera e dizia: “Estou bem espontânea” (risos). Já estão gravando?
tarista de futebol, e tinha um programa de rádio chamado “Epopeia do Cinema”. Na minha adolescência, ele se entusiasmou muito por mim e queria que eu fosse nesse programa – ele gostava de cinema americano, aquela coisa bem grandiosa, aqueles discos maravilhosos – e fizesse comentários sobre os filmes. Eu levava uma coisa escrita, uma resenha sobre um filme que estivesse sendo exibido. Então, o meu local de fala – essa expressão eu estou usando graças a você, a esse lugar aqui – foi muito ligado à “Epopeia do Cinema” e ao “Vigilante Cura”. Nesse período, apareceram umas freirinhas interessadas em cinema, tanto do Colégio Damas quanto do São José, que começaram a frequentar o cineclube e me viram, um jovem católico, nessa época, bem comportadinho, e me convidaram para dar aulas de cinema, não para o pessoal fazer cinema, mas para aprender a formação do espectador.
Carlos: Eu queria que a gente começasse conversando sobre o teu primeiro local de fala, aqui em Recife, na sua atuação na equipe inicial do Sistema Paulo Freire de Educação de Adultos. Para entender de que modo isso influenciou na tua atuação, logo de saída, por estar aqui. Mas relacionado com a política (o contexto) que existia na época.
Jomard: É importante lembrar, antes de Paulo Freire, que eu fui de uma geração, no final da década de 1950, ligada ao cineclubismo. Tinha um cineclube chamado “Vigilante Cura”, era um cineclube católico. Onde hoje é o edifício Círculo Católico, na rua do Riachuelo, era um casarão onde vários grupos católicos se reuniam. Meu local de fala começou nesse cineclube. Porque além do cine-fórum, com filmes considerados de arte, antes da sessão tinha uma apresentação. Alguém falava sobre o filme, explicando quem era o diretor etc. E depois disso tinha o cine-fórum, um debate, mas tinha gente que não queria saber disso, caíam fora logo. Outras gostavam. Então, eu comecei frequentando não só o cine-fórum, mas nesse cineclube tinha um núcleo que organizava encontros e eles me convidaram para participar. Nos encontros surgiram os livros sobre cinema, história do cinema, estética cinematográfica. E uma palavra que talvez vocês nunca tenham ouvido: filmologia. Que era a filosofia do cinema. Que nem se usa mais, mas que naquela época era um certo frisson. E eu gosto de ligar esse meu local de fala, ainda hoje, porque tem taxista que eu pego e ele me pergunta: “O senhor é locutor ou é padre?”. Padre não, mas eu gostaria de ser locutor.
Carlos: Essa atuação, que te fez ser convidado a ensinar, já indicava que no futuro o senhor fosse ser diretor?
Jomard: Não, de jeito nenhum. Eu nunca pretendi ser cineasta, eu só queria ser professor. Eu sou um professor muito precoce, desde os 16, 17 anos. Eu tinha um grande amigo, crítico cultural, Luiz Costa Lima, um dos maiores intelectuais brasileiros, e desconhecido, talvez seja mais conhecido no exterior. Ele mora no Rio de Janeiro. Nós éramos da mesma idade. Ele gostava de Guimarães Rosa e eu mais ligado a Clarice Lispector. Então, ele foi quem me indicou para a equipe de Paulo Freire. Carlos: Qual era a tua percepção política desse período, enquanto estava na equipe de Paulo Freire?
Então, queria lembrar que, ligado ao cinema, tinha um cineasta que foi do tempo do primeiro cinema feito em Pernambuco, Jota Soares, que era também comen-
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Jomard: Ih, política! Isso é um tormento pra mim até hoje! Eu sou atormentado com isso. Mas política para mim era a democratização da cultura. O livro de Karl Mannheim que a gente usava falava em democratização da cultura. Eu escrevi o meu primeiro livro, Contradições do Homem Brasileiro (1964), já ligado a Paulo Freire e ensinado nos cursos de formação de professores, independentemente de Freire, na escola normal, no Estado, no curso pedagógico. Então, eu estranhava
Foto: Renata Pires
que os livros sobre filosofia da educação e da cultura eram todos de estrangeiros. Então, eu tive a petulância de escrever sobre educação e cultura brasileira baseado nos autores brasileiros. Eu citava tanto Noel Rosa quanto Millôr Fernandes, Clarice Lispector ou Guimarães Rosa.
soas trabalhando com barro, vários tipos de cultura. Os alunos que não eram alfabetizados se identificavam, e mesmo não sendo letrados eles tinham uma cultura.
No começo dos anos 1960, eu, inclusive, participei – quando Paulo Freire foi convidado pelo Ministério da Educação – para ser o articulador do projeto dele nacionalmente. Aí entra um aspecto muito pitoresco. Precisavam de alguém para ficar com a parte de Brasília, que não é a Brasília de hoje, mas a de muito pó, poeira. Eu fui escolhido porque era o único que não era casado, e não precisaria levar mulher e filhos. Eu quero lembrar que numa comissão organizadora da aplicação do Sistema, lá em Brasília, fazia parte um coronel, mas eu não o tratava como uma pessoa especial. Agora, o professor Paulo Menezes, falecido, quando falou que tinham uns militares, achou que fosse uma ameaça. Eu não achava, tratava-o normal. Então, o golpe foi uma coisa muito bem elaborada pela sociedade civil e militar, de modo que a gente não percebia esse perigo. Mas Gilberto Freyre era o grande denunciador disso aí (Sistema Paulo Freire). Ele tinha
Karol: Na sala de aula, quando você ensinava cinema, contando que a política sempre fez parte da tua zona de interesse, como foi trabalhado isso nas escolas, já que eram particulares, e depois nas escolas públicas, na sua passagem pelo Sistema Paulo Freire (já que parte da ideia de democratização). Como a ampliação desses saberes era feito na prática? Jomard: O fundamental nesse experimento pedagógico é o que Paulo Freire chamava de “círculos de cultura”. Não havia mais a aula expositiva. Antes da iniciação nas palavras geradoras, havia um debate sobre natureza e cultura. Essa foi a grande revolução, ainda desconhecida, e totalmente frustrada. Para mim, o importante nesse Sistema Paulo Freire foi jogar com a noção de cultura antropológica. Através de diversos slides, eles mostravam as pes-
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uma coluna semanal nos jornais e começou a dizer que essa história de rádio universitária, de Sistema Paulo Freire, de educação de adultos, era uma coisa que lembrava o comunismo. Ele escreveu isso antes e durante a ditadura. Mas não vamos falar nessas coisas.
mentos da Comunicação”, que era a que eu iria dar, estava viajando pra Minas Gerais. Foi uma sorte. Eu não me considero vítima da ditadura, eu tive muita sorte. Essa foi uma delas. Essa escola funcionava à noite. Eu tinha a manhã e tarde para ficar lendo, mas só isso não aguentava. E o Super-8 entrou nessa fase. Dois jornalistas daqui, Fernando Spencer, do Diario de Pernambuco, e Celso Marconi, do Jornal do Commercio, começaram a falar do Super-8, aí criou uma febre. Também existia uma jornada de cinema na Bahia.
Carlos: Eu queria falar sobre quando você começou a fazer filmes em Super-8... Jomard: Eu estava proibido de ensinar na UFPE desde 1964, mas sobrevivi na Paraíba porque eu tinha um cargo de Professor Titular, uma coisa dessas, mas com o Ato Institucional nº 5 (1968) eu fiquei impossibilitado de lecionar. Aí começa a febre do Super-8. Surgiu essa onda no mundo todo. Uma amiga minha, que era professora da Secretaria de Educação de Pernambuco, foi fazer mestrado em Michigan, e como sabia que eu gostava muito de cinema, trouxe de presente uma câmera de Super-8, isso já em 1970.
Carlos: De alguma forma, você acha que a tecnologia do Super-8 fundava uma linguagem? Nos filmes você também se referia ao Super-8, como em O palhaço degolado, com “Lutar com o super-8 é a luta mais vã”, e em Inventário de um feudalismo cultural nordestino, com “Afinal de contas, para que serve o Super-8?”.
Jomard: Dentro da minha formação, como toda formação, é uma deformação e também uma transformação. Eu tive influências de Glauber Rocha. Assisti ao primeiro curta dele: “O Pátio”. Tinha também a grande coisa do Godard. Um amigo meu dizia que em Contradições do Homem Brasileiro eu já começava a fazer crítica cultural. Eu não sabia. Eu não tinha essa pretensão. Então, é claro que devo ter levado isso conscientemente ou inconscientemente para o Super-8.
Eu não sabia fazer outra coisa, a não ser dar aula. O que eu faço? Inventei de dar uns cursos de dinâmica da comunicação e da criatividade. Eu tentei ir à Católica, mas não podia porque tinha verbas federais. Mas eu descobri uma escola particular, que era a única que não tinha verbas federais, era a Escola Superior de Relações Públicas (Esurp). Uma prima minha conhecia o diretor e eu consegui dar aulas na área de Comunicação. Veja que sorte, o professor que dava a disciplina “Funda-
“Um amigo meu dizia que em Contradições do Homem Brasileiro eu já começava a fazer crítica cultural. Eu não sabia. Eu não tinha essa pretensão.” Jomard Muniz de Britto 19
Foto: Renata Pires
Carlos: Era uma necessidade sua discutir
o Super-8 nos próprios filmes?
dez horas para fazer, pensando e escrevendo, não direto, mas o camarada quer ler em cinco minutos. Eu prefiro imprimir e dar à pessoa, eu acredito mais. Porque se a pessoa quiser ler depois, vai ler com calma. Tem gente que cobra. No Parque 13 de maio, quando eu ando, a pessoa pede: “Cadê a mensagem de hoje, o poema?”. Eu não vou dizer que é um “atentado poético”, o pessoal chama de poesia. Eu comecei a ser chamado de poeta por causa disso.
Jomard: Sim. O que se chamava metalinguagem ou metacrítica. Como tinha muita gente atuando com Super-8, tinham duas grandes vertentes; eu não fiz análise sobre isso, mas as pessoas comentavam. Tinha um grupo muito ligado aos documentários, ao realismo documental, e um outro grupo que o Amin Stepple começou a chamar de “anarquismo superoitista”. Ele pode até dizer que fui eu, mas foi ele. Um grupo com o Geneton Moraes Neto, o próprio Amin, Paulo Cunha e eu, com essa história de crítica cultural com essa leitura já ligada ao tropicalismo. Godard foi o primeiro tropicalista, foi ele quem ensinou Caetano a rebolar.
Rodrigo: E há quanto tempo você faz o “atentado”. Como começou isso?
Jomard: Já têm uns quatro anos. Eu aproveito pra fazer o que eu não podia fazer no jornal. Uma vez me chamaram para escrever uma coluna aos domingos, no Jornal do Commercio. Não demorou quatro meses. O pessoal gostava, dizia que eu estava discutindo filosofia. Eu soube que a cotação era boa, mas descobri que depois de quatro meses sem receber nada eu podia reivindicar pelo trabalho. Mas eu jamais faria isso. Eu já era rico, professor de universidade, eu não precisava de dinheiro. O “atentado poético” é minha forma de dialogar. Eu fiz esse poema VELÓRIO POÉTICO: O QUE É ISTO?
Rodrigo: Eu não estava querendo olhar muito para o passado. Você me entregou textos seus na rua, diversas vezes, e essa é uma postura interessante nos dias de hoje. Muita gente escreve textos para blog e ninguém lê. Jomard: Porque isso vai para o meu “Atentados Poéticos” (internet) que tem quase 500 pessoas. Mas eu não acredito em nada disso. Isso (poema) que eu passo
“Acho que há uma tendência da cultura pernambucana, das pessoas da minha idade ou de vinte anos mais novos que eu, cultivar muito o passado.” Jomard Muniz de Britto 20
Foto: Renata Pires
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(Trecho do poema: “O filme SETE CORAÇÕES veio ultrapassar os recalques nordestinados & outros diante dos AXÉS, longe dos pelourinhos. Mas Naná Vasconcelos jamais perderá o bonde nem o bode das historiografias.”).
são mais brandos por um fazer ou sentir da sua vida?
Jomard: Sempre me considerei mutante, imitando Rita Lee. Não gosto de ficar olhando o passado. Acho que há uma tendência da cultura pernambucana, das pessoas da minha idade ou de vinte anos mais novos que eu, de cultivar muito o passado. Digo, inclusive, que esse pessoal leu o Livro dos Mortos, Egípcio, que tem uma tendência a valorizar muito os mortos. Gilberto Freyre é uma figura emblemática nisso. A obra dele é fantástica, mas cultivava muito o passado. Sempre fui muito ligado ao presente. Quando falo da mutação é o presente. Talvez o existencialismo, que nós usávamos a palavra “dissipação”, na época dura da repressão. Não era só a dissipação erótica, nem de bebedeira, nem de farra. Era a dissipação existencial, cognitiva, entendeu? Era você não ficar muito preso. Por isso, eu sempre dizia que era um antimemorialista, porque não tenho vocação. Agora, estou sendo obrigado a fazer memória. As perguntas que fazem são memorialismo.
Jomard: Eu vi o filme Sete Corações no Janela Internacional e fiquei impressionado. Não é possível que os políticos sejam tão burros e não aceitam que esse filme é a maior propaganda do carnaval pernambucano! Eles tinham que assumir isso, pagar bem. Foi o maestro Spok que coordenou com a simpatia dele e inteligência. Pegar sete autores, monstros sagrados do frevo, e depois até achei que o filme era longo. “Ih, eles não estão sabendo terminar”. Terminam com o Galo da Madrugada mesmo. Eu acho esse nosso GJ (Geraldo Júlio) e o Dudu Câmara, Paulo Câmara, (como) não usarem isso? Divulgar isso pela televisão. Rodrigo: Jomard, quando você era mais jovem, em teus atentados, nas tuas propostas provocadoras, você acreditava mais na mudança, do que hoje, e por isso se mobilizava mais para que alguma coisa acontecesse de fato? Hoje seus atentados
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Carlos: Você acha que há uma diferença entre pensar criticamente o passado e
Foto: Renata Pires
cristalizar o passado, tornando-o cânone?
cional de Cinema desse ano, que exibiu três filmes pernambucanos: Sete Corações, Rio Doce/CDU e um terceiro que é Pernamcubanos - O Caribe Que Nos Une. Você falou que isso era um grande marketing da cultura pernambucana e que poderia ir também para a TV.
Jomard: Claro que há! Mas o que predomina, a meu ver, é uma tendência a museificar ou fazer uma devoção ao passado, entendeu?
Rodrigo: Como é que você faz devoção ao presente no cotidiano?
Jomard: Pra tudo.
Jomard: Pronto, é isso aqui (aponta para as cópias dos poemas – atentados poéticos – que são distribuídos na rua). Isso eu digo com toda a pretensão, mas é um problema sério porque é meu diálogo impossível com a Dilma – que ela fala inclusive no diálogo –, eu cito Paulo Freire. Então, como é que eu defendia que houvesse uma mudança se eu andava no carro de um amigo meu que só faltava ter Dilma nos pneus? Não adiantava eu dizer que ia fazer crítica a Dilma porque todo mundo... Claro que eu sou oportunista ao ir de carro, porque tem amigos meus que eu telefono e digo: “estou com muita saudade do seu automóvel”. (risos) Então, é onde está a crítica do presente. Eu tentei fazer isso no Jornal do Commercio, não foi possível, e entrou nisso (nos Atentados Poéticos).
Karol: É um remédio ou um alimento para o recalque?
Karol: Sobre o recalque nordestino dos músicos daqui, e sobre o Janela Interna22
Jomard: Recalque não tem remédio. Recalque puxa recalque. É o seguinte: eu queria chamar a atenção de vocês para uma coisa: a cultura brasileira, em minha opinião precária, sofre influência muito grande da psicanálise. As pessoas não querem saber disso, não. Psicologia, psiquiatria, psicanálise, então?! Lacan é um terror. Ninguém consegue entender; pois eu leio. Não entendo, mas gosto. Aí, o pessoal acha que eu quero ser diferente. Então, eu acho que há uma tendência de “quando eu for ler direitinho, eu vou descobrir”. Não. É uma tentativa de superar o recalque pelo desejo. Então, eu noto muito isso, é por isso que eu gosto muito do filme Era uma vez eu, Verônica. Até explico, eu não sou Verônica, mas eu não aceito que o Recife goste muito de polarizar as
coisas. Febre do rato ou O Som ao redor. Tem aquele campeonato: Santa Cruz e Sport. Eu tenho que assistir três ou quatro vezes um filme desses pra ter uma opinião. Eu ouço a opinião dos meus amigos e fico encucado. Uns dizem que os atores estão fracos, que não escolheu bem. Eu digo: “Ah, não tinha percebido isso. Vou assistir outra vez”. Quando eu vi Era uma vez eu, Verônica, eu disse: “Pronto, superei o impasse entre Febre do Rato e O som ao redor”.
Carlos: A Casa da Cultura era uma ruína para você?
Jomard: Não. Já era uma ostentação. A palavra da moda. Outros Críticos é uma ostentação da crítica, que não basta ser crítico, tem que ser “Outros Críticos”. Então, o dilema todo foi esse, que eu gosto de usar... Karol: É um recalque ao contrário, né?
Jomard: Eu chamo isso da atitude que você está desorientando os cânones. É a descanonização das coisas, entendeu? Por isso, eu comecei a me chamar de um “mau velhinho”, porque os bons velhinhos acham que a Academia é um lugar maravilhoso, sobretudo quando dá dinheiro. A Academia Brasileira de Letras tem um bom dinheiro. Então, eles acreditam na imortalidade, que o nome, a história da cultura vai valorizá-los. Então, eles são os bons velhinhos, por isso eu comecei a me chamar de “o mau velhinho”. Eu assinava: JMB, o mau velhinho. Quando me chamavam para um debate, às vezes eu me arretava um pouco e dizia: “Agora, eu não sou mais um mau velhinho, sou um péssimo velhinho!”. oc
Karol: E da linguagem que traz a poesia, o poema. Na parte do discurso, o que isso traz pra você?
Jomard: Tudo, você pode encarar como discurso até mesmo o antidiscurso. Você fala como um local de fala. O discurso é justamente uma continuidade da fala. Mas o que eu acho interessante é jogar com o discurso e ao mesmo tempo com o antidiscurso. A desconstrução está na moda. Quando eu comecei a fazer Super-8, eu gostava muito de ruínas – não tinha lido Walter Benjamin ainda. Quando eu passava na rua e via uma casa em ruína, eu ficava com pena de não registrar.
Foto: Renata Pires
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entrevista
Os olhos estão cada vez mais negros. Escutar é fitá-los sem receio deles nos atravessarem. A voz concentra e expande um punhado de palavras e imagens como rebentação. Estar em seu contato é saberse perto do precipício. Como de costume, a cantora, compositora e percussionista Alessandra Leão envolve o ouvinte num emaranhando de referências vivas e estimulantemente passíveis de manipulação, não no sentido de pejorativo do termo, mas como matériaprima para a criação. É ela mesma o seu fio de novelo estético a encarar tradições sem deixar cair do pulso a meada que é a sua própria trajetória. As cinco canções de Pedra de Sal desnudam suas angústias porque também são as nossas. Canções como poemas a aprofundar suas energias naquele instante mínimo que se desdobra a perder de vista. Apesar das verticalidades que nos cercam e oprimem, a “música de rua” de Alessandra continua à vista do mundo pela própria capacidade que ela tem de reinventar o seu lugar. É desse desejo que ela é feita. por Carlos Gomes.
Foto: Tiago Lima/Arte: Vânia Medeiros/Divulgação 27
“Sou cantora. Demorei pra assumir isso, não pra cantar, mas pra assumir: sou cantora”. Em que medida se reconhecer como “cantora” é também assumir uma postura para a voz e canto que passem longe da estereotipada categoria e suas limitações do termo, sobretudo quando acompanhado de “brasileira”? Tendo a não me interessar muito pela cópia, pelo igual. Me motiva e me instiga muito mais o que cada um tem de singular. Adoro ouvir uma música e saber quem está ali, cantando e tocando, adoro perceber também a maneira como alguns artistas conseguem se reinventar e se transformar ao longo do tempo. É isso que busco pra mim. Gosto muito mais se alguém que “tem algo a dizer” do que se diz corretamente do ponto de vista técnico. O que não quer dizer que não ache a técnica importante, mas não gosto quando sinto que ela se sobrepôs à arte porque, no final, isso é “apenas” uma ferramenta que lhe auxilia a realizar o que começa no plano das ideias. Lembrando ainda que existem muitas técnicas diferentes, cada uma criada a partir das necessidade de uma determinada situação ou de um ambiente. As técnicas acadêmicas representam apenas um entre os diversos conjuntos de ferramentas disponíveis. Penso na voz como um instrumento que está à serviço da música, assim como todos os outros. Claro que por, normalmente, carregar a palavra junto da melodia, atentamos mais pra voz a ponto de considerá-la o principal numa música, mas penso que ela deva estar tão clara quanto qualquer outro elemento do arranjo.
Assumir internamente a função de cantora tem me ajudado a prestar mais atenção em como vinha usando a voz e, principalmente, em como quero usá-la. Comecei a fazer aula de canto com Sandra Ximenez esse ano e pedi pra ela que direcionasse nossos encontros para questões específicas que acho que preciso desenvolver. Sandra, além de cantora, é uma grande professora e conhece muito profundamente tanto do universo musical de onde venho e também da parte técnica que sinto que preciso desenvolver. Mais do que tudo, esses encontros tem sido importantes para a experimentação. Outra coisa fundamental que tem me ajudado no uso da voz, tem sido o trabalho que venho desenvolvendo com Luciana Lyra (atriz e dramaturga), nos últimos dois anos (de maneira mais pontual no início e mais intensa nesse ano). Lu, além de assinar a direção do show, tem um papel profundo em todo o processo de criação e de interpretação, que tem servido não apenas para esse repertório, mas para a minha maneira de pensar e realizar cada música. É possível estabelecer entre Brinquedo de Tambor (2006), Dois Cordões (2009) e a trilogia de EPs 28
Brinquedo de Tambor (2006), Dois Cordões (2009) e o EP Pedra de Sal (2014) formam a discografia solo de Alessandra Leão. Além deles, lançou discos com a Comadre Fulozinha, com Isaar e Karina Buhr, a partir de 1997, e o projeto Folia de Santo (2008), que também gerou um CD. É de sua autoria a trilha sonora do espetáculo teatral Guerreiras, de Luciana Lyra, lançado em 2009.
“A minha relação com a ‘música de rua’ permanece absolutamente entranhada em mim e na minha maneira de criar.”
Língua, que se iniciou com Pedra de Sal (2014), uma espécie de fio de novelo estético que você mantém agarrado em sua mão apesar das diferenças de cada obra? Que “fio” seria esse? O fio sou eu mesma e a minha relação com a “música de rua” (o que se chama de música popular/ tradicional, mas que sempre acho que ainda não encontramos um termo em que caiba todo esse universo). O fio sou eu, na medida em que cada um fala de mim num determinado tempo da minha vida. Mudamos ao longo do tempo e permanecemos sendo os mesmos de muitas maneiras. E por mais que mude, a força e a presença dessa minha “escola artística” ainda é a mesma, pois ainda me move e me instiga de maneira absolutamente profunda.
Com a mudança para São Paulo, a “música de rua” certamente foi contaminada por outros elementos, o que fica claro na audição de Pedra de Sal. O que mudou nesse EP na sua relação com a música popular/tradicional da qual você fala? Uma mudança, comumente, não acontece de uma hora pra outra, ela faz parte de um processo, que pode ser mais ou menos demorado. A minha mudança pra São Paulo começou bem antes de chegar de fato por aqui, assim como as músicas que compus nesse período. E no final, acho que essas cinco músicas de Pedra de Sal falam muito mais de mim em Recife e se referem muito mais a Recife do que a São Paulo, mas busco aceitar a influência do “tempo e do espaço”, porque acredito que a criação é sempre fruto do que você viveu, do que leu, ouviu, conversou, assistiu... de como se relaciona com o espaço e o tempo em que vive e, claro, de como escolhe processar tudo isso. Então, a criação acaba sendo também, de certa forma, o reflexo do artista num determinado tempo de sua vida, isso não significa absolutamente uma negação ao passado, nem necessariamente uma evolução, significa apenas uma aceitação e um reconhecimento do tempo. A minha relação
com a “música de rua” permanece absolutamente entranhada em mim e na minha maneira de criar. Essa foi e continua sendo a minha principal escola e pra onde volto sempre que preciso começar e recomeçar, pra onde volto quando preciso me encontrar e quando preciso, inclusive, me ver hoje, nesse tempo de agora. Porque ao contrário do que parece pra muita gente, a “música de rua” ou a cultura popular é absolutamente viva e se reinventa e se recria sempre, e de maneira intensa e visceral. Esse é um dos aprendizados mais importantes que levo dessa “escola”, porque, pra nós, “o brinquedo” é uma necessidade do corpo e da alma e, portanto, precisa ser realizado senão definhamos.
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Voltando à “contaminação” de São Paulo, gostaria de propor algumas questões para reflexão. O que normalmente atribuímos à música de cada lugar ou exatamente que elementos estamos chamando aqui de “contaminadores”? São os ruídos? A bateria? As dissonâncias? São as “tensões”? O “grito”? Porque nenhum desses elementos pertencem a São Paulo, nem ao Recife, nem a nenhum lugar especificamente. No Maracatu de Baque Solto, por exemplo, encontramos ruídos, gritos, tensões... em
que elementos exatamente se sente essa “contaminação”? Acho importante refletirmos sobre isso, pra não cairmos no lugar comum de achar que, quando uma música tem esses elementos, ela é mais “urbana”, “moderna” ou “melhor” do que outras músicas que são consideradas mais “puras” ou “tradicionais”. Talvez o único ponto em que poderia considerar como o elemento “contaminante”, e de maneira muito bem vinda, de São Paulo nesse EP, seja justamente a presença de músicos nascidos ou radicados aqui há um bom tempo: os paulistas Rafa Barreto e Kiko Dinucci, o carioca Guilherme Kastrup e Missionário José – que também é, de muitas formas, pernambucano; e o pernambucano Mestre Nico. Além da presença de Caçapa, seu companheiro em inúmeros trabalhos, o músico Kiko Dinucci esteve muito presente nesse primeiro EP, cantando, tocando e compondo com você. Fale um pouco sobre essa participação, o quanto ela foi importante nesse momento. Quando eu e Kiko nos conhecemos, tivemos a impressão de que já éramos amigos há muito tempo, por isso, o tempo cronológico nem parece caber na nossa relação. Também sinto como nossas músicas têm muitos pontos de convergência e inquietações semelhantes. Ele e Caçapa estão entre alguns dos músicos que mais confio e admiro. Fazemos um show juntos (eu, Kiko e Caçapa) desde 2010 e tê -lo conosco nesse EP me parece um resultado natural das parcerias que já começamos em 2009, com “Chave de Ouro”, música nossa, gravada no meu disco Dois Cordões. Mas não posso deixar de citar a importante e fundamental presença de Luciana Lyra (atriz e dramaturga) e Vânia Medeiros (artista plástica), que toparam essa empreitada que propus, de tentar diminuir as fronteiras entre as linguagens artísticas (assim como acontece na cultura popular, a exemplo do Cavalo Marinho) e vem trabalhando conosco desde o início do processo de criação desse reper-
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tório. É preciso ressaltar também a contribuição de cada um dos músicos que tocam comigo hoje, que é fundamental pra que essas músicas existam dessa maneira, além de ser um privilégio e uma honra das maiores tê-los ao meu lado: Guilherme Kastrup (bateria, samples e co-produção e arranjos em “Mofo” e “Devora o Lobo”), Missionário José (baixo), Mestre Nico (percussão) e Rafa Barreto (guitarra) – meu parceiro no show Punhal de Prata, só com músicas de Alceu Valença, lançada nos anos 70.
A decisão de lançar a trilogia dos EPs Pedra de Sal, Aço e Língua ao invés de um álbum “cheio”, parte de uma percepção do mercado de música atualmente? Como se dá essa relação entre criar, produzir e difundir a sua música? Essa decisão parte de alguns pontos, uns de ordem pragmática e outros de ordem estética. Pelo lado pragmático da vida, entram limitações no orçamento e também no tempo, pois queria lançar algo ainda esse ano, o que não aconteceria se fizesse um álbum “cheio”. Caçapa e eu também já vínhamos conversado sobre a possibilidade de lançarmos EPs e “singles” pelo Garganta Records (nosso selo). Além disso, durante o processo de criação do que seria Língua, já havia uma divisão estética nesses três eixos/capítulos: Pedra de Sal – alma e ossos, Aço – carne e pele e Língua – língua. Juntando isso ao funcionamento do mercado hoje, achamos mais do que natural lançar dessa maneira. Artisticamente tem sido muito mais desafiador e instigante, pois tenho a possibilidade de mergulhar mais profundamente em cada capítulo. Ao mesmo tempo, há a imposição de ser um EP, então preciso compor e escolher o repertório apenas com o que for mais significativo sobre cada tema, senão corro o risco de transformar essa trilogia em álbuns e não EPs. Antes do lançamento estávamos mais apreensivos em como seria essa receptividade, se um EP seria recebido como algo “menor”
Foto: Tiago Lima/Arte: Vânia Medeiros/Divulgação
do que um álbum. Até agora, tem sido uma boa experiência e estamos aprendendo um bocado. Do ponto de vista do que chamamos de mercado, essa opção pela trilogia também me permitirá lançar mais conteúdo num intervalo de tempo menor, o que me parece ser uma coisa ótima, mas sobre como o mercado receberá isso exatamente, só poderemos saber no final, eu acho... estamos tratando muitas coisas como recomeços e com o máximo cuidado que podemos.
A canção “Mofo” é dedicada ao Recife e ao Movimento Ocupe Estelita. Ela tensiona bem, com sutileza e agressividade - teu EP parece sempre querer se equilibrar entre essa dualidade -, sem ser panfletária, ou mesmo facilmente localizada apenas no contexto da cidade do Recife. Em que circunstância nasceu a canção? Comecei a compor “Mofo” a partir de inquietações minhas e imagens de sonhos, quando terminei, vi a cidade. Somos fruto de onde vivemos também e por isso mesmo devemos e podemos torná-la 31
“Além de todas as importantes conquistas do Direitos Urbanos e Movimento Ocupe Estelita, sinto que o maior legado é justamente a renovação da esperança”
Foto: Tiago Lima/Arte: Vânia Medeiros/Divulgação
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um lugar menos inóspito e mais acolhedor. Além de todas as importantes conquistas do Direitos Urbanos e Movimento Ocupe Estelita, sinto que o maior legado é justamente a renovação da esperança, a possibilidade de melhorar o lugar onde vivemos, e isso, representa uma transformação profunda na nossa maneira de pensar e agir. No carnaval você fez um show em Recife e recebeu no palco a troça “Empatando a tua vista”, que crítica veementemente o projeto Novo Recife. Num texto seu, esse episódio foi lembrado com essa fala após o show: “Achei muito bom o seu show, concordo com o que você falou sobre a cidade… mas você sabe, que depois disso, vai demorar muito pra você voltar a tocar aqui, não é?” Você acredita nessa relação de causa e efeito, para os artistas que se posicionam criticamente? Sim, mas tenho a impressão de que isso já foi mais acentuado. De todo modo, acho que ainda estamos longe de resolver essa questão, principalmente se olharmos para o interior do Estado. Em 2013, eu e Caçapa publicamos uma carta aberta sobre a nossa decisão de não tocar no carnaval de Pernambuco (organizados pelo Governo do Estado e Prefeituras de Recife e Olinda). Por uma grata surpresa, China e a Nação Zumbi também haviam publicado cartas semelhantes mais ou menos no mesmo dia que nós, isso deu uma repercussão grande, bem maior do que esperávamos, em âmbito nacional. Chegaram a falar em “greve dos artistas” e “boicote ao carnaval”. Sempre deixamos claro que isso se tratava de uma decisão individual e que não falávamos em nome dos “músicos pernambucanos”, porque acho que cada um tem que se posicionar e falar em nome de si mesmo ou de um coletivo, caso façam parte. Recebemos muitas mensagens de apoio de artistas de fora de Pernambuco, pouquíssimas dos colegas daí. Percebemos um certo temor de não tocar mais e de “se queimar” com os contratantes. Ouvimos de alguns
amigos e parentes que isso não ia dar certo, que era pra ter cuidado com as retaliações. Isso nos mostra como esse sentimento se estende a muitas áreas profissionais e gerações diferentes, parece que está entranhado na nossa cultura, ainda com uma herança forte da Casa Grande e Senzala. O fato é que o Governo de Pernambuco, naquele ano, pagou os artistas em 30 dias após o carnaval. Alguns assinaram contrato antes do show (coisa praticamente inédita) e receberam com oito dias após o show. Isso nos prova que há condições burocráticas pra que as contratações sejam realizadas dessa maneira. Isso evitaria um estresse altíssimo para os artistas e demais profissionais que prestam serviço, como também para os funcionários dessas instituições, que tem que “administrar” a chuva de reclamações que chegam quando o pagamento atrasa por 3, 4, 5, 6 meses, ou até mais. Este ano, refletimos muito se faríamos ou não o carnaval e decidimos fazer, pois queríamos acreditar que algumas coisas haviam mudado e não tivemos nenhum problema com a contratação, ainda bem. Voltamos em julho e fizemos um show memorável no Festival de Inverno de Garanhuns e tudo também correu na mais perfeita ordem. Mas ao mesmo tempo, não podemos desconsiderar a importância artística e política de se apresentar num palco pra uma multidão. Não posso dar as costas a algumas questões graves que vem acontecendo em Pernambuco, como as restrições impostas aos grupos de Maracatu de Baque Solto, na Zona da Mata Norte, e o Projeto Novo Recife. Por isso, a participação da troça “Empatando a Sua Vista”, no show do carnaval, foi tão significativa e fundamental pra nós, que continuamos sempre com a maior vontade e interesse em não apenas tocar em Pernambuco, mas de sempre contribuir para as coisas melhorem pra todos e não apenas pra nós e pros nossos amigos. oc 33
opinião A revista Outros Críticos, nesta edição, busca refletir com os artistas de que forma estética e política estão imbricadas em suas obras. De tal modo, suas trajetórias pessoais, tanto quanto seus trabalhos, são importantes pontos de reflexão para o tema.
Ricardo Maia Jr.
Músico e pesquisador. Faz parte da banda Ex-Exus. É doutorando em Comunicação pela UFPE. A permeabilidade entre estética e política é essencial para tentarmos dar um salto significativo na comunicação artística cada vez mais fugidia e fragmentada da contemporaneidade. Por essa razão que as vanguardas artísticas não devem se limitar a subverter somente no nível simbólico das formas e dos conteúdos. Eu acho que a arte tem o poder de transformar a sociedade e por isso não pode nem deve se restringir a círculos intelectuais fechados ou simplesmente querer alcançar um nicho de consumo, pois suas possibilidades estão além disso. Com meus projetos artísticos, eu procuro tensionar esses conceitos através de junções inusitadas e de abordagens provocativas, mas sem necessariamente buscar a novidade, por mais paradoxal que seja essa afirmativa! A atitude estética é essencialmente política e as possibilidades de intervenções estão cada vez mais escancaradas, não precisamos de intermediários para acionar as mudanças, os agentes transformadores somos nós! – Talvez minha atitude seja um pouco agressiva ou radical, nem todos querem essa bandeira, e acho que nem tudo deve ser assim mesmo! – Mas é preciso pensar que há níveis diferentes de envolvimento que somados podem alterar muita coisa por aí! Talvez o grande desafio seja aliar o dissenso dos discursos com a articulação dos mesmos em prol de mudanças culturais efetivas! 34
Gabriel Mascaro
É diretor de filmes de ficção e documentários, como "Ventos de Agosto" (2014) e "Doméstica" (2009). Acho que a força da arte para mim está na capacidade política de partilhar uma experiência sensível de mundo a partir de deslocamento de gestos. E este gesto não é pragmático. Arte-política é uma mera redundância de vocábulos. Os engajamentos do presente me parecem operar em disputas simbólicas tão ambíguas quanto a própria lógica da política hoje.
DJ Dolores
Músico e autor de trilhas. Recentemente reuniu parte de sua produção para filme em "Banda Sonora" (2013). Todo ato é político e a estética tem como lastro o pensar, a compreensão de mundo dos grupos sociais que a geraram. Estética é linguagem, é diálogo e ruptura, transformação e manutenção. Estética é mais que gosto, é afirmação política.
Evandro Sena
Produtor cultural e músico. Faz parte da banda monstro Amor e mantém atividades artísticas no Iraq. Quando Caetano foi vaiado em 1968 cantando "É Proibido Proibir", ele colocou o público em xeque: tinham a liberdade de vaiar, mas jamais representariam politicamente os ideais transformadores que eclodiam na época. Mesmo que uma determinada expressividade estética não seja panfletária ou tenha uma mensagem ideologicamente direta, ela tem um valor político naquilo que contempla, onde é aceita, e por quem a legitima ou traduza. Tenho duas experiências básicas nesta relação: como gestor público e como artista. Lembro-me quando na indicação de grupos como Embuás, Nuclear Extreme, Cangaço ou Rabujos, existia uma certa resistência da aceitação de que os representantes de certas musicalidades também precisavam ser contemplados nos espaços construídos para políticas públicas de cultura. Alguns artistas vão na contramão do que é aceito em nossa identidade cultural como música. Numa visão limitada e preconceituosa, a musicalidade é inferiorizada por ser incompreendida. Os excêntricos atores destes processos também são sujeitos de direito e suas obras já são por si só sua atuação política. Enquanto artista, a minha estética não é bem assimilada nem entre os próprios músicos. Já recusaram a monstro Amor por duvidarem da nossa capacidade disciplinar de executarmos nossa apresentação dentro de um tempo previsto. Isto por declararmos o nosso desinteresse artístico (e porque não dizer político?) de reproduzir o que criamos espontaneamente no disco. 35
Kiko Dinucci
Músico, produtor musical e artista visual. Faz parte dos grupos M etá M etá e Passo Torto. Acredito que minha arte é política por vários motivos. Vim de Guarulhos, de uma adolescência sem perspectivas. Optei ser artista porque não me encaixava nos padrões da época, não tinha vocação nem para ser um operário formado pelo SENAI, muito menos talento para a delinquência ou crime. Nenhum professor na época me disse que artista poderia ser uma profissão. Quando decidi ser artista, notei que eu era um outro tipo de marginal, uma maçã podre que ninguém queria ter por perto. Mais marginal que um ladrão ou traficante porque não gozava do status do crime, dos meios de consumo (motos, roupas e tênis de marca) que o crime proporcionava. Era um utópico, sonhador, ingênuo e vagabundo. Ir contra a corrente acompanhado da minha total solidão foi na época uma atitude política, quase de guerrilha. Não querer fazer parte desse mundo chato. Ser artista ou morrer. Viver a arte. Hoje em dia, analisando as obras que já produzi, noto diferentes formas
do manifestar político na minha arte. Não gosto do caminho panfletário, me parece mais óbvio. Pra mim o modelo ideal é o que o tropicalismo fez, jogando no redemoinho de ideias tudo que o estava à sua volta, expor a vida através de seus signos, humor, cinismo, cultura de massa, antropofagia. Na música, seja no jeito de cantar a cidade no Passo Torto ou na catarse libertária do Metá Metá, o debate político está à tona. O meio de distribuir nossa música também é política. Montamos um sistema autossustentável economicamente. Nós mesmos investimos, gerenciamos e recebemos o lucro. Nossa música está na internet gratuitamente pra quem quiser baixar. Esse tipo de download é o que faz girar a nossa economia. O download gera público. O público gera demanda de shows. Os shows nos geram cachê. Os cachês nos possibilitam gravar e publicar discos físicos que são vendidos nesses shows. O ciclo é pequeno, mas circular, se sustenta. Passamos longe
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das distribuidoras e das quase falidas grandes gravadoras. Engrenamos a nossa própria maneira, uma economia autogerida. Nas minhas atividades de artes visuais também sou político. Fiz um filme sobre Exu, o maravilhoso orixá africano que foi demonizando injustamente no Brasil em meio ao racismo e preconceito religioso. Agora estou fazendo um filme
de uma maneira mais ampla do que o homem é capaz, talvez por terem útero ou por terem a experiência máxima da vida selvagem e natural que é a gestação. Na série “Idade Classe Média”, me manifesto de uma maneira mais radical, que, por sua vez, não é neutra. Se exponho o câncer da classe média, seus preconceitos, seus vícios vindos do Brasil colonial e escravocrata,
sobre as extintas salas de cinema de rua da cidade de São Paulo, mostrando a destruição urbana gradual que se rende ao comércio selvagem e a especulação imobiliária. Nos desenhos sou ainda mais político. Na minha série erótica, tento destruir os estereótipos e clichês do pornô masculino. Tento abordar uma ótica mais feminina que por sua vez é mais humana e visceral. Quando transformo as pessoas em bichos, feras, bestas, é porque as mulheres evocam de uma maneira geral a ligação com a natureza,
automaticamente estou do outro lado. Embora eu não seja de nenhum partido, tenho a posição de esquerda. Em suma, por onde quer que a minha arte vá, sempre me deparo com questões políticas, cidade, periferia, violência, machismo, racismo, fascismo, esses temas rodeiam a minha vida e a minha arte. Talvez seja o mecanismo que criei para que eu seja um ser humano menos doente politicamente, como uma cobra que carrega o veneno e a cura. Costumo dizer nesse caso: a arte salva tudo, até a política.
“Por onde quer que a minha arte vá, sempre me deparo com questões políticas, cidade, periferia, violência, machismo, racismo, fascismo”
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artigo
Caetano no tabuleiro polĂtico da MPB por Renato Contente
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A persona artística que Caetano Veloso vem fundindo há quase 50 anos raramente se desvincula de um discurso político ligado ao seu tempo. Na obra do baiano, estética e política estão imbricados desde o seu LP de estreia, o bossanovista Domingo, lançado ao lado de Gal Costa em 1967. “A minha inspiração não quer mais viver apenas da nostalgia de tempos e lugares, ao contrário, quer incorporar essa saudade num projeto de futuro”, escreveu o artista na contracapa do disco, justificando a suposta ingenuidade do trabalho de então e olhando para o futuro breve no qual explodiria o Tropicalismo. Do grito reprimido pelo público em “É proibido proibir”, em plena ditadura militar, a “Neguinho” cantada por Gal na era Dilma, a poética caetana parece se esforçar para transpirar política. Em entrevista a “Outros Críticos”, o crítico musical Pedro Alexandre Sanches, autor do livro Tropicalismo - a decadência bonita do samba (2000) e editor do site Farofafá, defendeu que a vertente política no trabalho de Caetano se desenvolveu de maneira errática ao longo de suas quase cinco décadas de carreira, iniciada em 1965 com o compacto simples que reunia “Samba em paz” e “Cavaleiro”. “Acredito que a empatia de Caetano com os brasileiros vem do fato de reconhecermos, nele, nossa própria confusão mental e nosso romance incurável com a contradição. Claro que ele é sofisticadíssimo e pratica a contradição como
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ideologia, como programa político. Mas a invenção tropicalista, primorosa em todos os sentidos (e já fiel praticante da contradição), progrediu no Caetano de um jeito esquisito, extremamente confuso, muitas vezes sem pé nem cabeça. Quando me pergunto o que querem significar, politicamente, canções políticas tardias como ‘O estrangeiro’ e ‘Fora da ordem’, fico bastante tentado a responder que... radicalmente nada”, opinou. De acordo com Sanches, existe um patrulhamento da mídia e do próprio público em relação a Caetano, devido ao seu histórico, para produzir música de relevância política. Ele defende, no entanto, que isso deve ser visto com ressalvas. “É um jogo, como diria Tom Zé, em que a faca é parceira da ferida. Digo, é um jogo que serve a todas as partes, ao Caetano que ganha repercussão, à produtora e à gravadora dele que ganham (ganhava, no caso da gravadora) dinheiro, ao jornalista que ganha notoriedade entrevistando (às vezes enfrentando) Caetano e ao dono do jornal que vende (vendia) milhares de exemplares quando a capa estampa algo como ‘Caetano xinga Lula de anta’”, afirmou. Caetano parece ter sempre respeitado seu desenvolvimento como artista - suas pulsões, ideias e experimentações -, aparentemente sem se ater a pressões de terceiros para obter sucesso comercial. Naturalmente, surgiram trabalhos bem distintos entre si. Muitos dos seus álbuns, como
“Aquele momento em que Caetano grava ‘Sozinho’, do peão Peninha, e estoura como nunca antes na história deste País, é meio um ‘cansei’ do Caetano, um ‘também mereço ser rica’. E ele tem todo o direito, essa é a parte legal” Pedro Alexandre Sanches Noites do Norte (2000) e Circuladô (1991), evidenciam um discurso político mais incisivo; enquanto outros, como as gravações ao vivo Prenda minha (1999) e Totalmente demais (1986), talvez até criticados por isso, não falam de política de maneira direta. Para Pedro Alexandre, essa polarização da obra do artista é uma faca de dois gumes. “Essa dicotomia foi inventada na e pela ditadura, dentro dos laboratórios da gravadora multinacional Philips, onde estavam nove de cada dez dos nossos artistas mais representativos e criativos. Esta é uma história muitas vezes
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contada: Caetano e Chico eram os líderes do pelotão do prestígio, enquanto Roberto Carlos (que não era da Philips), Odair José etc. puxavam as vendagens e o sustento das filiais nacionais das multinacionais. Podia haver entre as peças reis, rainhas e peões, mas o tabuleiro era (é) um só e não haveria jogo se faltasse uma ou outra peça. Aquele momento em que Caetano grava ‘Sozinho’, do peão Peninha, e estoura como nunca antes na história deste País, é meio um ‘cansei’ do Caetano, um ‘também mereço ser rica’. E ele tem todo o direito, essa é a parte legal: quem aguenta o tempo inteiro o quebra-cabeça mental tipo ‘alguma coisa está fora da ordem/ fora da nova ordem mundial’?”, provocou o jornalista. Para Sanches, o “tabuleiro do xadrez político-estético da MPB” sempre celebrou o altíssimo nível de politização de Chico e Caetano, ao mesmo tempo em que deixou de fora dessa “legitimação politizada” nomes como Elis Regina, Geraldo Vandré e Wilson Simonal, que tiveram seu pensamento político perseguido. “Isso é histórico e segue até hoje, qualquer artista mais explicitamente politizado vira ‘panfletário’ no jargão da crítica cultural. Gente como Fagner, Marcelo Yuka, Mano Brown, Zeca Baleiro e Emicida são sempre um estorvo para quem quer manter a tão propalada ‘liberdade de expressão’ confinada num cercadinho bem despolitizado, bem água
com açúcar, bem Roberto Carlos”. Também autor do livro Como dois e dois são cinco - Roberto Carlos (& Erasmo & Wanderléa) (2004), Pedro Alexandre vê em Roberto Carlos um personagem atípico dentro desse contexto. Para o crítico, ao contrário do que o Rei sempre pregou, sua obra não se dissocia da política. “O artista que mais vendeu discos na história do Brasil sempre demonstrou um orgulho danado em se dizer apolítico, despolitizado, politicamente alienado etc. Nos casos praticamente solitários em que suas canções abraçaram algum tipo de política foi para defender a causa supostamente inatacável da ecologia: ‘O progresso’, ‘As baleias’, ‘Amazônia’. Pois acredito que a falsa declaração de despolitização dele arrebanhou milhões de admiradores que praticaram a mesma falsa (ou nem sempre falsa) alienação que ele pregava, principalmente durante toda a vigência da ditadura civil-militar brasileira. A arte de Roberto Carlos, ao contrário do que ele jura, sempre foi 100% politizada. Era o pior tipo de política que existe, ainda que esteticamente admirável e adorável”, defendeu o jornalista. Pedro Alexandre ainda arrisca a dizer que, quanto mais o tempo passa, mais ele acredita que “Roberto e Caetano são, estética e políticamente, variáveis de um mesmo, mesmíssimo personagem”. “Roberto escamoteia sua politização, Caetano escamoteia seu pe-
sadíssimo romantismo. Roberto fala para as ‘massas’, Caetano fala para a intelectuália. A mensagem, estética ou política, no fundo é a mesma: fiquem aí onde vocês estão, bem acomodados, enquanto a gente comanda vocês. É o projeto político, mais que estético, do ídolo, do pop star, do semideus, do pastor condutor das mentalidades”, refletiu. Se são variáveis de um mesmo personagem, as posturas de Caetano e Roberto se colidiram no último ano, na polêmica das biografias, quando o baiano se manifestou, em sua coluna do jornal O Globo, dizendo que Roberto só havia se posicionado a respeito do tema depois que ele, Caetano, apanhara muito da mídia e das redes. Na ocasião, o silêncio de Roberto talvez tenha sido mais contudente, politicamente falando, do que qualquer uma das várias declarações acaloradas dadas por Caetano desde sempre. Como o jornalista Domingos Fraga sintetizou, o recado de Caetano deu a entender que foi enterrada de vez a possibilidade de artistas com trajetórias e ideias aparentemente tão díspares caminharem lado a lado numa questão crucial, que envolve dois direitos consagrados: o da livre expressão e o da preservação da privacidade. Dois pontos que não permitem articulações fora da política. oc
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artigo
O canto épico da fábula Brasil S/A por André Dib O músico Mateus Alves compõe para cinema há quase dez anos, mas somente nos últimos meses seu nome ganhou maior evidência. Não que o trabalho feito com o irmão Tomaz para Amigos de Risco (2007), de Daniel Bandeira, Viajo porque preciso volto porque te amo (2009), de Marcelo Gomes e Karim Aïnouz, e mais recentemente, Loja de Répteis (2014), de Pedro Severien, tenham sido menos importantes. É que no longa Brasil S/A (2014) a música assume papel essencial para a construção do sentido pretendido pelo diretor Marcelo Pedroso. Brasil S/A estreou no último Festival de Brasília, cuja tradição para o questionamento político foi renovada por uma atitude inédita dos diretores em competição, que dividiram entre si o prêmio de R$ 400 mil. Nada mais coerente com o discurso não apenas dos filmes, mas de uma geração de autores que privilegiam o debate e questionam os sistemas de poder vigentes. É interessante ainda perceber que a produtiva parceria entre
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Mateus Alves e Marcelo Pedroso se sacramentou e realizou durante as ações do movimento Ocupe Estelita e de uma série de lutas políticas em prol dos direitos sociais no Recife. Parceria que, por sua vez, gerou inclusive outro projeto Cinemorquestra Pernambuco, especializado em compor trilhas para filmes e que reivindica melhores condições para a música orquestral. Sobre o processo de composição em Brasil S/A, o músico afirma: “havíamos escolhido algumas músicas de referência como a ‘Marcha Eslava’ de Tchaikovsky, que inclusive ajudou na montagem do filme. Na busca da ideia de grandeza e opulência, a escolha desta referência foi um primeiro passo, gerando a base para composição da ‘Marcha das Máquinas’, peça que contém o tema principal. Como o filme tem mais ou menos uma hora e não possui diálogos, busquei construir a trilha conectando uma peça à outra, como numa ópera ou sinfonia, pra dar uma maior unidade”. A trilha para o curta Em Trânsito (2013), também de Pedroso, foi
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concebida de maneira semelhante. Nos dois filmes, a música se torna a quarta dimensão da imagem, tornando a obra um conceito vivo, que ultrapassa a imagem visual e revela a dinâmica das coisas, da sociedade, trazendo para a realidade nacional um método alçado à genialidade por diretores como Jacques Tati, Dziga Vertov e Jean Cocteau. Desta forma, a música em Brasil S/A surge não como redundância do que se vê, mas como contraponto que leva a uma imagem própria, como diz Deleuze, formando situações ótico-sonoras puras. Sobre os filmes de Tati, Vertov e Cocteau, escreve ele, em A ImagemTempo (1990): “por um lado, situações sensório-motoras definidas pela cidade, por seu povo, suas classes, pelas relações, ações e paixões das personagens. Por outro, mais profundo, a cidade confunde-se com o que nela é cenário; e a ação torna-se movimento de cidade e de classe, com as personagens se
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cruzando sem se conhecerem, ou, ao contrário, se reencontrando, opondo, unindo, misturando e separando numa situação puramente ótica e sonora, que traça ao seu redor um sonho”. É curioso observar Brasil S/A e Em trânsito sob essa perspectiva, que os aproxima não apenas do cinema mudo, por abdicar dos diálogos, como do moderno, pela busca de uma imagem autônoma, que não necessariamente representa a realidade, mas que se torna parte dela e, portanto, pode ser sentida e decifrada. Focando em Brasil S/A, esse efeito surge como um martelo nietzschiano, a destruir ilusões a rq u e t í p i c a s da imagem publicitária, como na sequência inicial, em que máquinas colheitadeiras desembarcam no litoral e se deslocam para os canaviais. São cenas que poderiam estar em qualquer propaganda de estatal. A música, orquestrada, gran-
diosa, evoca filmes de ação hollywoodianos, tendo as máquinas, no lugar do herói. Enquanto isso, entre o balé mecânico, o verdadeiro protagonista surge como um erro no sistema: um simples cortador de cana (Edmilson Silva), que se vê ameaçado com a chegada dos novos equipamentos. Embriagado pela visão oficial, ele incorpora o delírio de futuro promissor e embarca numa fantasia de conquistador espacial. A opção pela fotografia HD, de grandes planos fixos e cores saturadas, somado ao movimento geometricamente calculado que remete aos musicais (sem nunca tornar a sê-lo), dá ao filme um artificialismo dos mais corrosivos, que subverte e desconstrói, com humor cínico, não apenas o cinema comercial hollywoodiano, como o discurso publicitário. Sob esses signos, encontramos uma moradora da zona sul que não consegue tirar o carro da garagem, pois sua rua está engarrafada; uma família faz piquenique no chão de um condomínio fechado; sem distinção entre real e fantasia, adentramos no imaginário do maracatu, onde uma corte de negros dança uma suíte do século 16 para sua Rainha Nagô; e, no único registro documental, vemos um culto evangélico com o som alterado para “Sounds of silence”, de Simon & Garfunkel. Marcelo Pedroso entende o filme como uma fabulação coletiva. “É um corpo-país, que se insurge
“As imagens apolíneas de Brasil S/A revelam uma tragédia que se desenha sobre um país, tragédia ditada por um cruel sistema políticoeconômico“ das profundezas do terceiro mundo e ganha voz, reivindica espaço e visibilidade. Esse corpo-país vem carregado da força de suas narrativas e mitos fundadores, que lhe prometem um futuro glorioso, o Eldorado a que fora predestinado. Daí o tom épico e grandiloquente da trilha, que professa e celebra essa vitória para criar deslocamentos e ironia, como um efeito de duplicação: o espetáculo contra o espetáculo, uma dupla inscrição que se presta à desestabilização dos signos, que deixam de ser o que aparentam, fogem do terreno em que estão codificados”. Dentro dessa ideia, apesar do tom épico, as imagens apolíneas de Brasil S/A revelam uma tragédia que se desenha sobre um país, tragédia ditada por um cruel sistema político-econômico disfarçado de progresso. E como tal, seu desfilar é impossível de ser refreado, a não ser pela imaginação. oc 45
rua
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entrevista A banda Rua é envolta em interdições. Quantos são? Onde vivem? O que cantam? A espacialidade é um conceito que ultrapassa as questões sonoras. Falar de música é compreender as interrupções e silêncios que existem em volta deles. Criar é muito mais que o ato mero de compor desesperadamente uma canção. Inventar espaços de escuta, escrita, imagem, audiovisual e dança são as formas que a banda encontra para diminuir as distâncias, romper com as fronteiras artísticas que se impõem muitas vezes como método. Está dito: limbo emergiu, não tem lugar, inventa sua própria tradição, não adormece sobre rótulos, requer tempo, distinto vocabulário. Portanto, limbo precisa respirar. por Carlos Gomes.
Foto: Breno César/Divulgação 47
Vocês acabaram de lançar o disco “limbo”, mas como foi a trajetória entre o “do absurdo” (2011) e o “limbo”? Como foi o caminho do absurdo ao limbo? Isso. A Rua já tinha o “do absurdo” e criou esse lugar chamado “limbo”, o que é bem simbólico se chamar assim. O que me interessa, e o que eu gostaria que você falasse, é dessa trajetória. É bem difícil falar. Mas, de certa forma, quando se pergunta sobre essa trajetória, é que você pensa que tem coisa pra caralho. Não que eu nunca tivesse refletido sobre isso. A banda chegou a fazer um show chamado “do absurdo ao limbo”. Foi. Pra marcar o processo. Isso acontece por intuição. A gente planejava que o limbo fosse lançado em 2013. Mas sem lançar a gente tinha o sentimento de estar no limbo. Por causa de interdições que foram acontecendo durante o processo. Então, o show era uma forma de assumir que a banda já estava criando para além do absurdo, um absurdo desdobrado. O show foi uma necessidade espontânea para marcar essa transição. Quando o primeiro disco surge, é sempre uma procura em como dizer, no início, criando, e articulando ideias distintas que compunham o grupo. Meio que procurando esse caminho de dizer. É um disco grande, com uma certa poética de como as músicas se apresentariam, mas a gente não conseguiu cortar algumas músicas porque queríamos colocar tudo. Esse processo ficou muito marcado no primeiro disco. Mas a partir dessa estreia, dois meses depois a gente já tinha feito a música “limbo”, que veio dar nome ao segundo disco. Os dois discos são muito próximos, essas mudanças de território só acontecem quando o disco é lançado, por exemplo. Mas esse processo já é contaminado desde a estreia da Rua. O processo de fazer o disco é longo. Lançamos pelo Funcultura. A gente tem a ideia do projeto, as músicas, já temos um caminho, mas daqui que o projeto seja aprovado, se passa um ano; e pra fazer leva mais um ano. Mas essa inquietação com a estrutura, a poética, ela é similar nos dois discos. O limbo é mais um desdobramento das questões suscitadas no do absurdo, do que uma revolução. Vocês concordam com a ideia de que o lançamento de um disco é, na verdade, o momento de abandonar as canções, de esquecê-las? Eu não esperava que fosse assim. Porque o primeiro foi meio dessa forma. Aquela velha questão: o espaço para a Rua precisa ser inventado. O espaço existe, o que não existe são os lugares. Então, a banda surge como uma forma de inventar lugares, mesmo que sejam lugares-comuns. Shows, por exemplo. Mas parece que uma lição do primeiro disco, é que a banda só funciona se ela inventar os seus lugares. O desejo de tocar do absurdo entrou num ostracismo precoce. De a gente fazer o show de lançamento, tocar no 48
do absurdo (2011) e limbo (2014) foram lançados em CD com incentivo do Funcultura/PE. Ambos os trabalhos estão disponíveis para download gratuito. O livro Rasgo no escuro: impressões sobre o limbo foi editado por André Raboni, Caio Lima e Rodrigo Acioli. Rodrigo faz parte da Livrinho de Papel Finíssimo Editora, que imprimiu e montou em sua oficina gráfica a tiragem artesanal de 50 exemplares.
Coquetel Molotov, e depois só fazer porque a gente quis, depois de seis meses. Então, o limbo surge desse sentimento de água parada, ou de uma suspenção do movimento, que tem a ver com mercado. O desejo era que a gente tocasse essas músicas, que fossem brotando novas percepções sobre ela. Isso só aconteceu quando começamos a inventar os nossos lugares. Então, não é uma necessidade de esquecer a partir do lançamento. O que existe é a compreensão de que isso é exterior, é natureza, é estranho. É normal que eu o escute depois de lançado e seja como se fosse uma primeira escuta. O esquecimento vem da não execução, não de lançá-las. Como é, nesse período de lançamento, perceber como o público reage ao disco? A percepção deles sobre as diferenças entre cada um. Por exemplo, no primeiro havia uma relação com o samba mais a música minimalista, no segundo, a ideia do samba como gênero já se perde, ou até mesmo perceber como vocês, músicos, estão tocando agora, as mudanças... É interessante de ver isso porque você também é o público. Eu acho do caralho escrever sobre, que essa escrita seja estimulada no Outros Críticos. Isso ajuda a colocar um meio de reflexão sobre os próprios lugares. do absurdo por ser o primeiro disco tem essa procura estilística ou estética, mas que é bem determinada. Nelson Brederode (cavaquinho) e eu tínhamos uma banda de samba – ele conhece muito de samba, principalmente da década de 70 até Donga, Moreira da Silva, Roberto Silva –, e tem Yuri Pimentel (baixo) e Hugo Medeiros (bateria) que são mais jazzistas. Esse encontro faz com que a gente chegue até certo ponto nas músicas – ainda tem o Erik Satie, Steve Reich, Radiohead, como referências comuns. Então, Yuri veio d’A Comuna experimental; foda, uma banda que foi muito marcante, naquela época, sobretudo. Assim, do absurdo é esse encontro com as influências de cada um. As bandas
tendem a ter essa disputa ou arranjo de ideias, aparentemente diferentes. Isso é massa. Então, o primeiro disco é um encontro, as fusões, as maneiras de distorcer, interromper. Tínhamos a preocupação com o silêncio, com o mínimo, escutar um ao outro. Embora fôssemos amigos de curso, não tocávamos juntos. O show em si não é muito sobre a recepção do público, mas como a gente sente as nossas músicas também. A partir de do absurdo, teve o encontro com a galera da dança, a gente começou a fazer mais trilhas. O pensamento da dança entrou na reflexão do grupo enquanto movimento. Som, movimento; movimento, vibração, dança. Tudo possui uma inquietação em comum. do absurdo tinha isso de promover uma escuta, que se reflete no próprio comportamento do público quando vai assistir ao show da Rua com uma escuta atenta. As pessoas sentam em um lugar que não tem cadeira. No Continuum, por exemplo, a galera foi sentando e quem chegou depois não conseguiu entrar porque não tinha espaço. Se as pessoas tivessem em pé, talvez desse mais gente. A escuta é feita sentado, como no Solar da Marquesa. Os shows no teatro promovem isso também. Mas é uma questão de como a música se comporta, o que ela reverbera e desdobra. A preocupação no primeiro disco era essa. Existia a procura pelo silêncio, o lugar vazio, o deserto; Sísifo solitário com a rocha nas costas subindo.
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Lembro que em um show você disse em uma música que ela era pra dançar. Te incomoda o fato do público ser homogêneo, nesse sentido, de todos se sentarem? Não me incomoda porque isso faz parte do comportamento famigerado, como as pessoas escutam. Vão existir vários comportamentos. Isso não me incomoda. É um ponto de reflexão. A escuta é corporal, não é do ouvido, necessariamente. Ouvir: ouvido; escutar: ultrapassa. do absurdo tem isso, por ser um disco muito técnico – a gente escreveu partitura, tudo es-
crito; no limbo já não tem tanto. Eu dizia à galera que a gente no palco, com o primeiro disco, tinha uma sensação um pouco formal, uma normatização da música, como se a gente estivesse executando a música, perseguindo a sua forma, a origem. Isso deixava a performance um pouco quadrada. A gente tocava a música como um ritual da forma. A sensação vinha a reboque. Então, a gente foi se abrindo pro improviso. Tem a ver com o limbo. do absurdo a gente passa da construção formal e escuta atenta, do silêncio, para o lugar do movimento e do afeto. Falar em “afeto” parece meio clichê, mas acho que
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do absurdo ao limbo tem esse caminho de abrir o show, por exemplo, pro ritual, da sensação, levar ao máximo essa sensação de Steve Reich da repetição como uma profanação da forma, e aí liberar pro lugar do movimento sensorial, do improviso. Por isso as músicas começaram a ficar mais longas, como “Febril”, a primeira música do segundo disco. Elas ficam mais longas e mais “lombras”, como um ritual. Acho que naturalmente a escuta também vai se modificando, porque no limbo a gente tem a preocupação com o movimento. Bruno Giorgi (guitarra e efeitos) fala que não é mais uma música que
“A gente tocava a música como um ritual meio da forma. A sensação vinha a reboque. Então, a gente foi se abrindo pro improviso.” Caio Lima
Foto: Flora Pimentel/Divulgação
se desenvolve no tempo, mas que constrói espaços. Pensa no espaço criado, nos lugares. É uma mixagem que a gente passou o carnaval inteiro lombrando pra chegar no conceito do que íamos explorar nela. A gente chegou à ideia do corpo; não uma banda espalhada em palco, mas como um corpo. A gente buscou a sensação em movimento. João Marcelo Ferraz (Ex-exus), que é um cara que eu escuto mesmo, disse: “Puta que o pariu, vocês tocando ‘Febril’ e eu me movendo por dentro, e olhava pras pessoas paradas, escutando, e tive vontade de levantar
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e ficar dançando”. Eu disse: “Por que não fez?”. E ele: “Na próxima eu vou fazer”. É isso. Já começa a abertura, a cair o véu e começar a ser possível. Então, isso de dizer que “essa é pra dançar” é como um estímulo. Não é dançar dentro de um quadrado, mas a partir do movimento que a música promove. Mais do comover-se ou mover-se do que da forma. O limbo é mais ir para o lugar da sensação, da explosão e implosão. Pensar as sensações como um movimento. Por isso, acho que a escuta pode mudar, então não me incomoda, é só um ponto de reflexão, que também ajuda a música da gente. O público está na
o primeiro disco, muita gente está conhecendo agora. Ouvindo “Bolas de gude” agora, mas não vamos mais tocar essa música. Não tenho essa preocupação temporal. Essa ideia de inventar o próprio espaço de escuta e de propor para o público uma impressão sobre o disco e transformá-lo em livro, é, de alguma forma, uma posição política que não se restringe somente à banda? Eu acho que isso vem da reflexão, por isso acho do caralho a função dos Outros Críticos, a proposição. A MI também. Acho que Ricardo Maia Jr., quando nos entrevistou para a revista MI, deu uma instigada quanto ao reconhecimento do nosso isolamento enquanto grupo. Qual o problema? Tem uma coisa sinistra que acontece na universidade, no curso de Música, pelo menos no meu tempo. É que lá não se fazia música. A gente se conhece como músico fora. Por exemplo, Saracotia, Marcelo Campello e Rafa, do Mombojó, que era um pouco antes, mas estivemos juntos num curso, tinha uma galera. Os grupos não eram formados lá, tocando lá. Isso, de certa forma, provoca um isolamento. Como a Rua é uma das bandas que surge nesse contexto, a gente tem esse encontro, mas somos isolados. Como Jeder Janotti Jr. fala, não participamos de uma cena. Nem música tem na universidade. É muito louco pensar nisso. E respondendo a Ricardo, eu disse que a gente tinha que ver uma forma de se organizar, se reunir, mas eu não sabia como. Esses encontros partem de uma necessidade, de se construir um lugar, e criar esses canais de comunicação que levam para um lugar da estética e política mesmo, questionando: Para que isso? Para que música? Pra que mais palavras num tempo de saturação? Pra que mais textos etc? Para que continuar falando (na entrevista)? Esses encontros são formas de sair do isolamento, de ampliar os lugares, e a partir disso continuar uma reflexão.
nossa música, em forma de som, por exemplo, ou de caminhos sonoros e de discurso.
A necessidade de produzir o livro “Rasgo no escuro: impressões sobre o limbo” (2014) foi para ter um diálogo maior com o público do que com a crítica? Porque são impressões... A crítica foi ultrapassada nesse livro. Acho que já é uma coisa que acontece há muito tempo em rede social. O poder do crítico como uma... Eu não sei. Não entendo muito também... É uma necessidade de registrar a escuta, de certa forma? Completamente. A recepção, mesmo a do público, da imprensa, que recebe o disco num dia com um release e no outro tem que publicar sobre o trabalho. Não será uma recepção real, mas de mercado. Ele vai escrever sobre o disco, mas sem ter tempo de perceber suas sutilezas, como João Marcelo percebeu, por exemplo, que talvez num próximo show outra pessoa também perceba etc. Então, eu queria entender se, de certa forma, “Rasgo no escuro” foi uma necessidade de registrar a escuta em tempos diferentes. Sim. Como eu disse, isso é uma forma de inventar um lugar para a Rua, de inventar, sobretudo, de perceber a nossa música, onde ela está, como é atravessada. Essas impressões são uma forma mesmo de ver e escutar a gente mesmo. A recepção do limbo tem um caráter de afirmação, e a escuta talvez leve para um lugar de movimento. João Marcelo me fala: “Esse disco é bom pra lavar prato”, sabe? E eu não acho que isso seja banal. Nem me incomoda. Fazer parte do movimento talvez seja isso. O livro é lido por quem ainda não ouviu o disco ainda? Acha que há também uma curiosidade do público em ler a impressão do outro? Eu acho que ele não vai ser lido agora. É lido pelos mais próximos. Pelas pessoas que se interessam mesmo pela banda. Tem gente que diz que a Rua a salvou de depressões. Essas pessoas leem. Mas é muito recente. Como
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Então, essas criações de espaço são também posições políticas? Isso é
um desdobramento da criação de lugares de encontro. Mas em fazer a parceria com a Livrinho de Papel Finíssimo, acho o trabalho dos caras foda, por isso, eles inventaram lugares, viabilizam. Mas existe a cultura do release, uma coisa que a gente já conversa há bastante tempo, da pressão do mercado e dessa escuta passageira. Ou só na anunciação da escuta, ou melhor, na enunciação de um produto, na limitação na estante, que eu acho até bom também. Essa coisa da banda ser o lugar da comunicação, eu acho cada vez mais importante. Já é difícil dizer o que queremos, encontrar a forma. Um dos caminhos interessantes é a banda assumir um lugar como meio de comunicação com o público, direto, horizontal. A Cia. Etc., por exemplo, não sabe se é uma companhia de dança, tem músico, uma galera que trabalha com vídeo. Esses limites são constrangidos o tempo todo porque a atuação é distinta. O fotógrafo Breno César, que trabalha conosco, o Finisterrae no Cinema São Luiz foi ideia dele. A banda tem esses 4, 5 ou 6 integrantes, mas é permeável, tem muito mais gente. Então, eu acho importante que a banda fale. Fazer os próprios vídeos, entrevistas, falando sobre o próprio processo criativo. E ninguém sabe realmente quantos membros têm a banda. Uma hora tem quatro, outra cinco. Isso é provocado. Mas Yuri fica querendo demarcar. São quatro, são cinco. E meu papo é para ampliar isso. Esse jogo da identidade que a gente discute. É uma reflexão. O técnico de som (Diogo Guedes) não é só técnico da banda, é músico também.
Eu acho ruim essa relação binária da crítica. Você lançou um disco e vou conversar com você sobre ele, um show e a mesma coisa. Mas eu posso querer conversar sobre música, de uma forma geral, processo criativo, ou outra coisa que me interesse naquele momento muito mais do que algo que foi lançado. Depende do que você está buscando. Mas é isso, essa pesquisa é uma forma de encontro, de conversa, de contaminação também. Da escrita, música. Isso passa, não é guardado, contamina, modifica. Essa fronteira tende a encostar-se a outras fronteiras e fazer música. oc
Foto: Flora Pimentel/Divulgação 53
por Carlos Gomes
(Arrastão de JMB)
São Paulo, tempo possível e uma canção ruidosa. Da janela do meu ônibus não haverá enquadramento. Arrastar os dedos na tela, nas cordas. Sentir-se preso em casa. Permanecer preso em torno de mais ou menos 50m² e Ser feliz.
São Paulo, quatro compositores e uma estética que expande a cidade. Era a periferia, suas casas, bairros, personagens. Por ela uma narrativa combinada a vozes e sons acústicos. Quase não se ouvia o chão. Somente o silêncio e sua infinidade de combinações. Faixa número cinco ou final do lado A:
ESQUIZOFRENIA.
“cidadão, esquizofrênico, correndo no jardim valquíria ansioso, a noite toda, procurando a luz do dia estudando um passo torto, um samba, um rap um rock pra se orientar” (Passo Torto)
“Ó cidade faminta! Alimentando-se de letras de canções” (JMB) 54
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Fazer canções como quem as desconhece. Desfazer canções em busca de uma síntese. Ser acústico porque contar requer silêncio, prosa. Ser elétrico porque já não é possível suportar o corpo. Que rondas, malocas, augustas, ipirangas, são joãos?
“Helena, os prédios tem micose Helena, os prédios tem varizes Helena, os prédios tem bronquite E a cidade é um rádio por dentro” (Passo Torto)
“Ó cidade poeira, origem e meta da palavra POEMAÇÃO” (JMB) Reconhecer na cidade a expiação do mundo moderno. Ser a palavra a gênese e ao mesmo tempo a ação. Porque canções podem causar irritação na garganta, pele, mucosas e ainda assim dar prazer. A SEU MODO: a crítica especializada:
FRUIÇÃO.
Formado pelos músicos Romulo Fróes, Kiko Dinucci, Rodrigo Campos e Marcelo Cabral, o grupo envolve a canção num emaranhado ruidoso que a todo o momento impõe ao ouvinte uma simples reflexão: o que é canção? Passo Torto trata de desconstruir o entendimento padrão da canção. Se o samba do primeiro disco se afirmava por quebras narrativas, com tons de claridade, o elétrico reconfigura o ruído na música, tornado a cidade humana, sexual e violenta. As vozes e gritos nos põem a pensar a cidade, nossas relações. Tanto na construção das letras, como na elaboração dos arranjos e sonoridade do disco, há sempre uma questão posta a refletir, seja cultural, política ou estética. A São Paulo do Passo Torto é desconstruída com um ritmo singular, assim como a canção, crítica desde o seu primeiro pulso. (Retomada do autor, crítica da crítica ipsis litteris) 56
A SEU MODO: a metalinguagem: Ouvir Jomard Muniz de Britto dizer repetidas vezes que é preciso que “sejamos corajosamente ridículos”, seja numa folha de papel entregue na rua como atentado poético, ou num super-8, poema e canção, aula, ironia ou de que forma for; daqui, desse lugar pequeno, me faz querer ser numa mesma voz: crítica e criação. FIM (A SEU MODO):
“Uma cidade, além das dúvidas e suspeições, é o conjunto de seus buracos” (JMB) “Vai José Vai saber como é que é Cair A cidade inteira até Sumir A cidade inteira cai” (Passo Torto) Helenas e Josés, canções e aspirações para a crítica. Estar no tema sem nunca dizê-lo. Ser o tempo todo o autor sem nunca poder pronunciar o seu nome, nem ter lugar a que se fixar, unívoca linguagem a pedir guarida. OCUPAR, reconstruir a paisagem de novo e de novo até sermos o velho, a velha canção brasileira, a velha arquitetura, a velha ventania, o velho bairro e a velha rua. Ou queres os velhos sobrados, suas sombras e o medo de ver aquilo tudo de novo novo? RESISTIR como a canção depois do fim. oc
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resenha
Toda a crença musical de Russo Passapusso por Marina Suassuna
Saber quem produziu um disco nos revela muito sobre a natureza de uma obra. Desde os anos 1960, quando os produtores assumiram um papel mais direto no processo musical, como criar arranjos e cuidar da engenharia da gravação, a sonoridade e o conceito de um álbum deve grande parte àqueles profissionais. A assinatura estilística do produtor acrescenta bastante em termos de linguagem, tornando-o, muitas vezes, tão relevante quanto o artista no resultado final da obra. O que seria, por exemplo, dos Beatles sem George Martin, responsável por lapidar boa parte das músicas do grupo e por isso chamado de quinto Be-
Foto: Fabio Bitão/Divulgação
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atle? Ou mesmo dos Beastie Boys sem Mario Caldato Jr.? No entanto, a visibilidade e o reconhecimento do trabalho destes artesãos do som são quase sempre mínimos. Menos para aqueles que se dispõem a mergulhar num disco e ‘’dissecá-lo’’ de cabo a rabo, incluindo aí o conhecimento da ficha técnica. Quando Russo Passapusso decidiu gravar as músicas do repertório de Paraíso da Miragem (2014), seu primeiro disco solo, os três produtores e também músicos – Curumin (baterista), Zé Nigro (tecladista) e Lucas Martins (baixista) - já haviam dado vida própria às canções que, até então, eram apenas poesias dedilhadas no
violão de maneira rústica. Não é difícil perceber a influência do trio de produtores em cada faixa. Quem acompanha seus diversos trabalhos, sobretudo o de Curumin, que gravou em seu último disco duas faixas de autoria de Passapusso (“Passarinho” e “Afoxoque”), facilmente irá se familiarizar com os timbres que compõem cada textura dos arranjos. A pegada da bateria e as vozes suavizadas, em falsete, ou mesmo as emissões rítmicas de estilos como o dub, funk e hip-hop são algumas das características de Curumin que marcam presença em Paraíso da Miragem. Para Russo, o que o trio de produtores fez foi o equivalente a uma mágica. “Por isso que eles são produtores e parceiros do disco. Têm interpretações deles ali que são muito fortes. As composições são minhas, eu canto, mas eles estão em tudo. (...) Até hoje capturo pedaços de trechos nas canções, aqui foi fulano, aqui foi sicrano, tá tudo misturado e eu consigo sentir””, disse Passapusso à revista Noize. Mais conhecido pelos seus trabalhos à frente do Baiana System, Bemba Trio e Ministereo Público, o baiano traz em sua estreia solo não só as diferentes visões daqueles que aderiram ao projeto (produtores e músicos convidados) como também uma poética bastante pessoal. As composições de Russo Passapusso são norteadas pela métrica da pergunta e resposta, ambientando o ouvinte em paisagens musicais genuinamente brasileiras. As manifestações espontâneas da música de raiz como samba, capoeira, afoxé, coco de roda, além de ritmos tradicionais da Bahia como o samba-reggae reverberam em todo o repertório, reforçadas ainda por um caprichoso trabalho de vocais de apoio. A tradição dos coros - sejam eles de samba, femininos, religiosos ou de vendedores de feira - aparece em grande parte das
O disco é produzido por Curumin, Lucas Martins e Zé Nigro. Conta com parcerias com Tatiana Lírio, em “Areia”, e B Negão e Fael Primeiro, em “Autodidata”. O álbum conta com apoio da Natura Musical.
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músicas, entre elas “Paraquedas”, “Anjo”, “Matuto” e “Relógio”. De outro lado, há uma faceta mais eletrônica, que pauta músicas como “Devagar” e “Autodidata”, esta última com a participação de BNegão. Se para Russo, suas canções precisavam de fôlego para serem gravadas, houve quem preenchesse os vazios. Enquanto Anelis Assumpção faz dueto com o cantor na comovente “Sem sol”, além de ter gravado backing vocal em “Flor de plástico” (uma das mais singelas e belas poesias do disco), Marcelo Jeneci assumiu os teclados em faixas como “Sangue do Brasil” e “Sapato”, esta gravada com a voz de Thalma de Freitas. Também engrossaram a presença feminina Laurinha da Nenê e Clara da Nenê, da ala de coro da Escola de Samba Nenê de Vila Matilde, de São Paulo. Apontar a riqueza de Paraíso da Miragem parece simples, a princípio. Mas é na escuta minuciosa e reprisada que a alma do disco vai se revelando. Tudo soa como uma oração, um ritual de proteção que invoca anjos, santos, mandingas e outros símbolos da fé, tendo a poesia e a rima como principais alimentos. oc
resenha
O Paradoxo de Matheus Mota por Bruno Vitorino Foto: Renata Pires
A primeira audição de qualquer trabalho musical costuma ser marcada por uma espécie de mescla entre a curiosidade latente ante o ineditismo da obra e a expectativa de se reconhecer de alguma forma no emaranhando de notas, imagens sonoras, sinestesias e arcabouço de palavras (no caso específico da canção) que a composição traz de modo imanente em si. Nesse recorte temporal do processo de apreciação estética, que adquire contornos de eternidade enquanto acontece, a música vai sendo esmiuçada pela sondagem crítica e racionalizante da consciência do ouvinte e significada, do ponto de vista emotivo, segundo os ditames de sua memória, pois, ao cerrar o ciclo artístico que se inicia com o labor solitário e reflexivo da composição, e termina justamente com
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a perspectiva ativa e espontânea de sua vinda em direção ao trabalho, estabelecendo assim uma comunicação invisível, o interlocutor conecta seus sentimentos, suas experiências às intenções expressivas, mas não previamente significadas, do artista. Logos e eros juntos a absorver o imaterial da essência humana. Contudo, nem toda obra musical se revela assim com tanta clareza logo na primeira ocasião, deixando suspenso no ar certo estranhamento. Exigente, demanda do ouvinte reiterados contatos e tentativas de diálogo, para que mostre a potencialidade de seu discurso e a infinidade de veredas que comporta. Assim o é com a música do pianista recifense Matheus Mota. Outsider, o compositor não se enquadra nos jargões da taxonomia cultural
da cidade, tais como pós-mangue ou Cena Beto. Essas categorias não bastam para lhe definir. Sua música grandiloquente é uma miríade de referências: ecos das tessituras orquestrais de Bartók, reminiscências da fase pós-Revolver dos Beatles, os voincings espinhosos em armação fechada de Monk, as experimentações sonoras da Vanguarda Paulista; tudo absorvido e processado de uma maneira bastante pessoal, que não faz concessões se não a suas demandas internas. Arquiteto sonoro meticuloso e certamente senhor dos materiais expressivos que manipula, Matheus constrói com singular desvelo suas estruturas a partir de um manancial de ideias bastante vasto, sobrepondo encadeamentos de acordes que caminham para lugares inesperados, belos contornos melódicos, liberdade rítmica para flertes com a polimetria e o assimétrico, delicadas e precisas harmonizações vocais, amalgamados por um tino para a sofisticação nos arranjos que arrematam precisamente seus intentos artísticos, tornando-os materialmente acessíveis. Mas, em contraponto a todas essas qualidades, há um grande problema que, se não as anula, agride-as frontalmente: a propensão do compositor em se autossabotar com a deliberada infantilização que vez por outra aparece nas suas letras, as quais remetem, de certa forma, às narrativas desconexas de um jovem imaturo diante das coisas do mundo; consagrando, dessa forma, a bobagem em recurso estético. Seu mais recente trabalho, Almejão (2014), gravado, produzido e lançado com recursos próprios, algo raro na terra dos altos coqueiros e fartos editais, vale ressaltar, tem como marca essa luta entre o Belo e o Grotesco. A bem intencionada pretensão de denunciar como a televisão se apossou do imaginário humano definindo modos de vida, promovendo a cultura de massa e o culto ao efêmero, logo sucumbe às piadas nonsense e sem graça que permeiam o disco, como na montagem da voz do Faustão
Almejão é o segundo disco de Matheus. O primeiro, Desenho, é de 2012. Ambos os discos estão disponíveis para download gratuito. Em seus shows, o músico costuma vender os discos que ele mesmo confecciona em pequenas tiragens.
anunciando o músico enquanto atração principal do espetáculo em “Energias Positivas”, na colagem do prólogo de Lion Man em “Super Herói” ou na desnecessária vinheta publicitária em “Comida de Cachorro”. Já o lirismo singelo e profundo da camerística “Contato Y”, bem como a tensão angulosa da linda balada de cores impressionistas “Gafanhotos Caramujos” não resistem às bobagens constrangedoras de “Gorda” (Ei, você não parece gorda/ andou fazendo regime...) ou à crônica fragmentada sobre um dia qualquer de “Rua das Creoulas”. Portanto, ao se valer desse paradoxo, Matheus vandaliza os próprios templos que constrói. Por todas essas razões, conclui-se que quando (ou se) se levar a sério, o promissor músico permitirá que sua prolífica imaginação criativa liberte-se plenamente dessa tendência à excêntrica autoflagelação artística que cultiva para, então, certamente alçar voos impossíveis a lugares incomuns. Mas, até que isso aconteça, deve o ouvinte se contentar em lidar com o dual estranhamento que é perceber, após a audição do álbum, como tão desmesurado talento pode ser dominado pela ingenuidade pueril de seu detentor. oc 61
resenha
Tom Zé e a reinvenção constante de si mesmo por AD Luna
Foto: André Conti/Divulgação
“Veja, isto é pouca/ Lenha no grande bate-boca/ E ainda escrevo uma carta capital/ Para os caros amigos desta banca de jornal// Veja, isto é pouca/ Lenha no grande bate-boca/ E ainda escrevo uma carta capital/ Para os caros amigos desta banca de jornal// A formiga carrega a folha/ Do estado de São Paulo ao Piauí/ Enquanto isso a cigarra quer ser vip/ Pra sair contigo na capa da ti-ti-ti/ Caras, quem pra matar”. Os divertidos versos acima pertencem à música “Banca de jornal”,
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na qual Tom Zé divide os vocais com Criolo. Na guitarra, o criativo Kiko Dinucci, integrante do grupo Metá Metá. A canção, um samba irônico, é uma das melhores de Vira Lata na Via Láctea, do novo disco do senhor de 78 anos, que não dá sinais de querer dar espaço para a decrepitude artística. O álbum é praticamente uma crônica dos nossos tempos. Na música de abertura, “Geração Y”, palavras como iPad, iPod, laptop e smartphone vão surgindo até que o ouvinte se de-
para com uma lamentosa visão do futuro: “Oh, e os nossos ideais, ai, quem diria/ No mesmo camburão da burguesia/ Uma renca de parentes atender/ Nos ritos e delitos do poder”. Nessa parte, o instrumental reforça o tom melancólico e desesperançoso da previsão. A Trupe Chá de Boldo, de São Paulo, acompanha Tom Zé em “Quantas anda você”, uma espécie de afrobeat tropical. A citada “Banca de jornal” é a terceira – que, além do inusitado da letra, possui espírito semelhante ao de “Augusta, Angélica e Consolação”, presente no álbum Todos os olhos, de 1973. “Pour elis” já se inicia com bela intervenção de Milton Nascimento e letra enigmática. “Esquerda, grana e direita” questiona a hombridade dessas duas visões políticas. Dá-se a entender que, quando há muito dinheiro envolvido, ambas acabam por se corromper. A submissão ao poder econômico e o consumo desenfreado, tão característico dos nossos tempos, também são criticadas em “Mamon”. “O antigo bezerro de ouro, de ouro/ É novamente adorado, dourado/ O homem só vende consumo, consumo/ Usado fica descartado/ Surrado, surrupiado/ Surrado, surrupiado”. A letra foi inspirada em um discurso do Papa Francisco, realizado no Vaticano, em maio de 2013. A voz de Tom Zé passeia em cima de uma programação eletrônica intrigante, que acaba por se transformar num quase frevo eletrônico, perto do final. “Salva humanidade” é ijexá funkeado, costurado por linha de baixo poderosa. A Trupe Chá de Boldo também aqui aparece, assim como em “Irará irá lá”. Canção com pinta de baião, jeitão de baião, mas sem batida explícita do ritmo popularizado por Luiz Gonzaga. Aliás, esse é um dos grandes méritos do disco Vira
Vira Lata na Via Láctea tem direção artística do jornalista Marcus Preto. Assim como o EP Tribunal do feicebuqui, de 2013, essa parceria é, de certo modo, uma extensão da biografia que o jornalista prepara sobre o músico.
Lata na Via Láctea e de outros álbuns de Tom Zé: os músicos que o acompanham possuem destreza e criatividade suficientes para se utilizar de estilos conhecidos, mas sem cair na mesmice, na previsibilidade. Num mundo em que o conservadorismo reacionário vem se fortalecendo, incluindo no Brasil, os gestos de boa vontade e abertura do Papa Francisco ganham tons revolucionários. Ele aparece mais uma vez no novo de Tom Zé, na marchinha “Papa perdoa Tom Zé”, acompanhada pelo O Terno. O embate esquerda versus direita também aparece aqui. Assim como o “tribunal do Facebook”, a faixa, aliás, como “Irará irá lá”, foram lançadas originalmente no EP Tribunal do Feicibuque (2013). “A Pequena suburbana”, com participação de Caetano Veloso, encerra esse que é um dos discos mais consistentes de Tom Zé, nos últimos anos. O êxito certamente se deve à constante abertura do jovem quase octagenário em se reinventar e de estabelecer laços com as novas gerações de músicos, sem perder sua própria essência. oc 63
coluna
Arte & Política: Cult ou Pop? por Jeder Janotti Jr. Sofremos bombardeamentos sensíveis a todo o momento. Partes desses estilhaços são lançados propositalmente e, usualmente, se autodenominam arte. Mas nem só de produções artísticas vive a estética, estímulos não intencionais ou mesmo não produzido por humanos como cores e sons da natureza ou barulhos inesperados podem ser fontes do que chamamos experiência estética: uma espécie de efeito de presença, muito mais espacial do que temporal, mais das sensações que dos sentidos. É por isso que dizemos que “tal música me arrebatou” ou “fui tomado pelas imagens”. A experiência estética é, então, um desabitar. Uma desterritorialização que nos tira da rotina insensível das rotas cotidianas. Não há como estabelecer uma morada única, imutável, para o que chamamos arte, se assim o fosse, ela poderia ser qualquer coisa, menos arte. Mas se arte é esse viver, ela não é da ordem de uma autonomia romântica, ou de um sagrado para além da profana64
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ção humana, pelo contrário, o que reconhecemos como arte é uma assinatura que engloba agregados sensíveis, estéticos, econômicos e políticos. Como expressão comunicacional, a arte além de pressupor um “estar junto”, uma partilha, também é da ordem do enfrentamento, da emergência de dissensos que colocam em cena os aspectos políticos em torno daquilo que é reconhecido como arte, como arte de qualidade ou como não-arte. As tessituras entre arte e política deixam de ser só a cena pública para se configurarem como uma forma de construir, habitar e abandonar mundos. Pode-se, então, aplicar ao universo da arte, a ideia de dissenso que para Rancière (O Dissenso, de 1996) é o que funda a política:
“É isso o que chamo de dissenso: não um conflito de pontos de vista nem mesmo um conflito pelo reconhecimento, mas um conflito sobre a constituição mesma do mundo comum, sobre o que nele se vê e se ouve, sobre os títulos dos que neles falam para ser ouvidos e sobre a visibilidade dos objetos que neles são designados.”
Assim, a cultura pop nos alimenta com diferentes modos de entrar e sair do mundo. Essas rotas também podem ser da ordem do dissenso, ou seja, da política, como também simples mais do mesmo. Assim surgem questões da política das artes: qual são os preços e os alcances, as concessões que se permitem esse fazer político? Será do enfrentamento um cinema para poucos, a música dos descolados-eleitos? Ser popular também não pode ser um ato político? Parece não haver dúvidas de que violentar o óbvio, incomodar, nos fazer escutar de modo diferenciado seriam propostas inscritas nos produtos pop com reivindicações artísticas. Mas, além dessa violência que procura fazer com que a arte seja autorreflexiva; pode-se pensar também a 66
“Além dessa violência que procura fazer com que a arte seja autorreflexiva; pode-se pensar também a violência da arte como da ordem da exclusão, da negação do outro.”
violência da arte como da ordem da exclusão, da negação do outro. Cenário paradisíaco dos popcult-descolados. Pensando nisso, reivindico um outro modo de desabitar essa suposta partilha. Não mais por exemplos que conscientemente colocam-se como de nicho, diferenciados, um “mais do mesmo” cult, e sim, de um lugar comum, habitado por milhões, como o coloca Camille Paglia em Imagens Cintilantes, de 2014:
“Nas décadas que servem de ponte entre os séculos XX e XXI, enquanto as belas artes encolhiam de maneira constante em visibilidade e importância, só uma figura cultural teve a ousadia pioneira e o impacto mundial que associamos aos primeiros mestres do modernismo vanguardista: George Lucas, um épico cineasta que transformou as deslumbrantes novas tecnologias num gênero pessoal expressivo”. O embate entre arte culta, o biscoito fino para descolados e a força pop da saga Star Wars (1977) leva o enfrentamento para além dos confins da força. A reconversão de Darth Vader em sua antiga persona, o Jedi Anakin Skywalker ao final da saga não é feita sem impurezas: uma vez que se sente o gosto pelo lado negro da força, não há retorno a uma pureza original, o que nos leva a uma contradição permanente: como conciliar a amplitude política da estética que qualquer expressão é passível
de operar no sensível como experiência estética ao mesmo tempo em que, como nas artes ditas “refinadas” há a percepção de experiências separadas das demais? Talvez seja o caso de deixar um pouco de lado o romantismo do ideal de arte e assumir, como sabemos que a força Jedi e seus sabres de luz também não disponíveis sem dedicação do aprendiz. Como diz Jaques Rancière, no artigo “O Que Significa Estética?”, de 2011, ao regatear o sensível: “Trata-se de uma distribuição possível, que é também uma distribuição da capacidade que uns e outros têm de participar nessa mesma distribuição do possível”. oc 67
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