Luna - Jocê Rodrigues [2014]

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J oc ĂŞ R od r i g u e s

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luna


(a fase branca)

Luna: O canto que também provoca maremoto

Jocê Rodrigues

São Paulo 2014 1


Autoria das ilustrações: I. Mare Fecunditatis, por Augusto Meneghin II. Mare Humorum, por Cris Dávila III. Mare Nectaris, por Phá Bemol IV. Mare Tranquillitatis, por Maike Jean V. Sinus Medii, por Eneida Gomes de Holanda VI. Mare Insularum, por Phá Bemol VII. Mare Orientale, por Daniela de Assis VIII. Mare Cognitum, por Lesepierre IX. Mare Imbrium, por Augusto Meneghin X. Mare Crisium, por Cris Dávila XI. Oceanus Procellarum, por Daniela de Assis

Diagramação: Fernanda Maia

RODRIGUES, Jocê. Luna: o canto que também provoca maremoto - São Paulo. Edição Independente: 2014. 48 p. E-book 1. Poesia. I. Título.

Contato do autor: joce.rodrigues23@gmail.com

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SUMÁRIO

PREFÁCIO 4

I. Mare Fecunditatis 7 II. Mare Humorum  12 III. Mare Nectaris  17 IV. Mare Tranquillitatis 20 V. Sinus Medii  24 VI. Mare Insularum 27 VII. Mare Orientale 30 VIII. Mare Cognitum 33 IX. Mare Imbrium  36 X. Mare Crisium 39 XI. Oceanus Procellarum  44

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PREFÁCIO

NO OCEANO MEÂNDRICO OU UMA JORNADA DA CONSCIÊNCIA

A ideia de um canto que também provoca maremoto nos remete a uma imagem que revela, ao mesmo tempo, vigor e ternura. Jocê Rodrigues não diz, mas o melhor lugar para se ler esses poemas, talvez, seja nos braços de uma sereia a entoar sua melodia hipnótica e nos capturar para as profundezas do oceano. E a sereia aqui é a própria musa a encantar o poeta, a lhe entregar a linguagem visionária como herança do mar, que ele tanto exalta e exulta nesses cantos. O mar, símbolo por excelência da dinâmica da vida. Tudo salta do mar e tudo a ele retorna. A poesia de Jocê nos conduz para além da superfície das águas e dos seus movimentos, busca em sua dança espiralada: conteúdo-forma-transcendência, o sem-fim do profundo reino abissal, nesse oceano de caminhos sinuosos que nos apresenta. Nesse sentido, é da escuridão que surge uma criatura a emitir luz. Também são poemas da sombra, do tesouro escondido num navio naufragado. Mas eis que a redenção se dá pelo elogio do 4


agora, pela compreensão da impermanência das coisas e seres, compartilhando uma existência comum do presente com suas possibilidades de reconhecimento, de amor, desejo, sexo, o corpo em ressonância com a dimensão metafísica. Só a matéria poética é capaz de não explicar o mundo e apenas ser com ele. Arrisco a dizer que Jocê comunga em nossa poesia com poetas como Jorge de Lima, Murilo Mendes e Mário Faustino, pelo recurso imagético de sua poética e pelo exercício tenso e harmonioso entre o místico e o profano. Enfim, é preciso não esquecer que a evocação da lua agrega à sua poética o gesto (Yin) dos seus cantos em confluência com o maremoto (Yang) a dar equilíbrio e beleza para uma jornada da consciência que é a leitura de “Luna: o canto que também provoca maremoto”.

Marcelo Maluf.

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“Gosto de ficar na sombra das coisas no segredo delas, gosto de entranhar a criação de vagar como as ideias como a arte que se estranha e, incerto, incauto renasço a cada dia” Adonis *** “A linguagem não é mesmo feita para que se acredite nela, mas para obedecer e fazer obedecer” Deleuze e Guattari *** “Da minha precisão de morar entre a utilidade da sua filosofia vã, rogo: – que valham os deuses palavrões e pasmos. Ainda não batizei esse desacréscimo de interesse pelo que não te tem em carne, pele e unha.” Ariana Morgado

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-I-

Mare Fecunditatis

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I

ao plantar dentes de serpente Hesíodo nos dá homens. ao plantar dentes de homens temos um campo fértil de arranha-céus (concreto, ferro e vidro em constante ereção, buscando penetrar o sexo do impossível [dominar-lhe pelo prazer incerto e pouco confiável das ideias] que se faz mito).

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II

no peito não mais coração. apenas um silêncio alto. inflando-se de nada. de raios de nada. de partículas de nada. silêncio subindo da vida-além. mordida na língua da proximidade, impedindo-a de pronunciar aquilo que é ao lado. presença que se dá na falta do outro. exercício de distâncias quânticas em um vácuo-corpo.

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III

o peso do mar sobre o corpo do agora. o agora mergulhado no tempo, esmagado pela força de uma ausência que habita a órbita do estar. relatividade que se dá na atração de água e ar e de fogo e água. a boca do céu beija o seio do mar. e tudo é tão breve. as águas; o beijo; as horas; os dias. no relógio da noite os minutos são águas refletidas nos ponteiros das estrelas.

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-II-

Mare Humorum

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I

a frase morreu na língua. não o verbo, mas a couraça que o envolve e arma. a frase foi assassinada. morreu como quem morre de amor (de distância entre um polo e outro da terra, ou entre a vontade e o infinito apregoado na finitude das coisas que cabem na palma da mão).

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II

da casa dos dedos dela brotam poemas quentes e viรงosos velhos como a noite inconstantes como o sono de cria quem

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III

metテ。foras enfeitam vasos no canto da sala do ouvido enquanto um verso preso na ponta da lテュngua, afastada da cadavテゥrica frase, pende na soleira da porta barulhando trinados e glissandos. na falta da voz, o olhar me socorre e diz ao mundo que a frase morta engasgou-se com um

Nテグ

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- III -

Mare Nectaris

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I

as flores copulam com a inocência de um bocejo. habitar o sexo é habitar uma estrutura violenta de vida. uma que existe aquém das coisas belas. o estalar da língua é dispositivo de ignição de um processo que não tem outro fim que não seja o conhecimento do humano. empirismo radical e hedonista. nova-grécia-antiga. ejaculação do verbo criador na boca do espaço, semeando tempo no estar. presença de gozo sôfrego (angustiado), derramado, no corpo do porvir. quase-morte da ideia. adoração da vida.

um quasar leitoso que escorre no rosto das estrelas e tem gosto de luz, varre a vista da distância, acenando à milhões de anos luz para um éden sem tempo e espaço e sem carne para desnudar.

sugando a boca inerte da produção pré-barroca e sem sal, necessitada de eros, de tesão latejante, está a vida em rascunho, sorvendo o que sobrou

da grande explosão.

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do sêmem


- IV -

Mare Tranquillitatis

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I

na calmaria das almas mora o talvez e também o quem sabe. três astronautas dormindo na varanda. uma poeira fina ricocheteia e barulha no solar da porta. há tanta vida nesse silêncio que às vezes acredito estar submerso no sol da manhã. (a casa do amor é incidental. asilo gramatical constantemente imergido em lapsos de medo e inconstâncias atmosféricas. as formações rochosas do despenhadeiro da fé são cobertas de sombras que antes eram amor. o desejo é pulso que nasce na morte do amanhã, do futuro, do duradouro. amor é palavra que de tão próxima tornou-se estranha) esgotada a vida, o que sobra é o amanhã. o depois. desperdiçamos o maravilhamento do instantâneo ao nos voltarmos para o futuro. o entendimento do instante é uma performance atômica. na imensidão espacial toda língua é estrangeira. lá, bocas sustentam os pilares do nosso sistema solar e dentro delas, línguas que chicoteiam a agitação de conquistas inacabadas. a escadaria nos levou até um mar onde está enterrado o pai. lá tudo é calmo. tudo é negro. tudo é penumbra que vela uma outra instância de ser.

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(.) a olho nu posso ver o que sou na distância de um ano-luz. o corpo avança retilíneo ao som brilhante de estrelas anãs. a palavra é corpo rochoso rasgando a imensidão do imensurável. abrindo caminho nas curvas do vácuo enquanto o nome espera ressoar e criar. nome de tudo que é canto, de tudo que é cor e de tudo que é coisa. de tudo que é gente, de tudo que é vivo e de tudo que é porto. de tudo que é água, de tudo que é lua e de tudo que é nada.

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-V-

Sinus Medii (interstĂ­cio I)

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nas cortinas da sala morreu a luz

em um silêncio tão vasto operando em espaços minúsculos (onde mal caberia um grão de pó) está a constância do inacabado que se esgueira por entre os cortes do corpo que convulsiona a pele do que está sempre adiante – intocado enquanto tempo que corre – transitório enquanto corrida em um espaço recortado das nódoas – das rugas – de um devir

os traços as mãos as tintas toda técnica de um beijo que está sempre no futuro sempre na sombra trabalhar o fogo da amada é alimetá-la com lenha seca com braços, pernas e sexo queimando o desejo do passado deitando fora o amanhã forjando nele o agora que corre atrás das cortinas

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- VI -

Mare Insularum (interstĂ­cio II)

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padrão vivo de 1 perdão morto

um

na pedra de t o q u

da distante um trovão ressoando no eco do no tronco de uma célula-nuvem

e como

nome

oco

onde

rimbomba um verbo-átomo

perfeito

+

amar 29

memória longa e

complexo


- VII -

Mare Orientale (interstĂ­cio III)

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se o mar oriental estivesse voltado para nós isso é, se pudéssemos vê-lo daqui a mitologia lunar seria outra seríamos observados constantemente por um deus da perspectiva criador do traço e do borrão um deus Malêvich angustiado perplexo pelo ato de ver (captando dimensões em constante mudança) e que diz: tudo muda tudo move na perspectiva tudo queima até virar pó só assim retornaríamos ao pó ao carvão do lápis demiurgo que rabiscou que esboçou a vida como coisa a ser observada contornada e colorida com tons de íris vigilantes àquilo que já passou com cores cegas (feito poemas em branco que tateiam as rachaduras do muro da existência) ao que há de vir 32


- VIII -

Mare Cognitum

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uma finitude que se dá na palavra esvaziando-se nos tremores da língua, do músculo que dá forma à vidas e espalha potências no espaço. a nudez do nascimento, uma vida anterior ao nome que se dá, que se tem (nascer dura o tempo de um nome). a vida reside numa pausa entre sílabas enquanto a morte é monossilábica como um pigarro.

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- IX -

Mare Imbrium

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a problemática do relacionamento entre o estático e o móvel deve, impreterivelmente, passar pelo movente. aquilo que é, essencialmente, movimento. a dança evoca a totalidade do movente que não se deixa capturar pela rede da razão, a não ser em pequenas partes – pequenas doses de compreensão daquilo que passa, através do resquício que fica. creio não ser pesado falarmos de uma prática de mito-dança (tanto profana como sagrada; tanto linear como cíclica) que nos torna dervixes que giram em torno da fundamental pergunta: onde pararemos nós, com nosso corpodança a se aproximar cada vez mais de uma exaustão metafísica da linguagem?

o movimento celeste desenhado no cor po de eva d a n ç a

e

s

p

a

contornando a linha limítrofe do tem po a go ra se mo s tra co mo pa u sa do ser no

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o


-X-

Mare Crisium

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ainda não era o momento do adeus, tampouco da velhice a juventude perfumava o seio das coisas dela livros e lenços louças e lençóis e ela bocejava prosas por entre dentes e suspiros plantados na boca do chão na bandeira dela só havia a cor do pretérito enquanto a minha ostentava os olhos dela me livrar do cheiro e do pó dos passos dela impregnados pela casa das cartas que nunca escreveu e dos anúncios que nunca li lançando tudo na fogueira do que não aconteceu (dos lugares onde nunca fizemos amor. dos pratos onde nunca comemos e das louças que nunca secamos. dos lugares onde nunca fomos e das palavras sujas que desperdiçamos nunca dizendo-as um para o outro)

o comedimento é inimigo de quem quer se perder no espaço do corpo do outro arriscando-se a errar assimetrias dos seios e as curvas da cintura perdendo-se nos volumes das coxas ou na volúpia da boca vermelho-vibranteo

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o sangue fluindo à espera de um fim que deixei nos olhos dela

plantado no paladar da íris

enquanto um amanhã inteiro nos esperava no fim do dia a solidão veio como véu para cobrir-me a ferida impedindo que eu a lambesse a todo instante

ouvi dizer que ela tem os olhos do seu povo tenho vontade de rasgar sua pele marmórea até descobrir os ossos rezando para que lá eu encontre resquícios de mim da minha voz dos meus afetos neuróticos – até dos meus palavrões e disparates distantes agora as mãos e os sussurros o caminhar e as confissões ainda resta um cheiro forte de saudade de grama recém cortada e ilustrações egípcias

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amo amo tanto a saudade que ela me deu para cuidar que alimento-a dia a dia com um pedaço da minha voz (como em oração diante do altar do acaso) bendizendo o os olhos boca seios pernas e espáduas que já tive sem querê-los de volta por medo do fim do amor.

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- XI -

Oceanus Procellarum

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as paixões da linguagem desnudadas nas paredes da carne. derramando-se em rascunhos violentos de existências que gritam espasmos estridentes de borrões em posicionamentos ontológicos espremidos por espaços que não estão lá. escondida em uma camada do tecido da pele está a morte, esperando para nascer. no esquecimento do céu está O-velho acabado, decrépito, convencionalmente vivo transpirando arcaísmos e regurgitando coisas novas

o terror vivificante de abrir boca e ficar a pronunciar dizeres (eternidades e instantes), sempre balbuciando coisas que por muito pouco não foram, ou aquelas que jamais seriam [sempre presas entre o agora e o nunca]. o terror corre os pêlos do corpo como uma corrente elétrica a vida, em resposta, mostra dentes afiados convidativos feito as luzes de um bordel quanta loucura em um só quarto quanta malícia em uma só carne e em tão pouco tempo desde a tenra idade as entranhas urram o fim as unhas rasgam o imóvel e então lhe faz sangrar vida sem justiça ou preocupação equivalente (o medo é sangue bombeando o músculo da vida, correndo todo o corpo a cada respirar. limpando o bem e o mal, o certo e o errado, o beijo e o sexo)

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articulações de carne cortando articulações de sangue de prazeres cortando veias de desejo multiplicações quilométricas de instantes que correm nos fluidos e órgãos – nunca o agora foi tão ontem (nunca antes o agora havia sido tão ontem)

a paisagem desolada de uma partida desdobra-se no canto do peito faz morada a saudade da angústia que nos faz respirar as lágrimas do mundo humanidade que chove nos campos semeados de paixões violentas

ver ouvir sentir (são esses os penares do corpo) crer ansiar esperançar (são esses os penares da alma) e também a fé [quase esqueço-me dela]

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Este e-book foi criado na tipologia Chaparral Pro e Euphorigenic, nas dimens천es 500 x 700 px, em formato PDF.

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