josé juva & Leandro Durazzo {organizadores}
MACACO ENCRUZILHADA – O INÍCIO DA JORNADA 1ª edição
Olinda José Juvino da Silva Júnior 2013
Macaco Encruzilhada (o início da jornada) entre descer das árvores voltar pras águas
BANANAL
Recomeçar, para trás não há caminho. Macacos quebrando galhos, soprando e estourando bolhas de sonho, roubando ovos dos ninhos. Voando. Macacos pelo teto de folhas, pulando nas encruzilhadas do pensamento. Macacos surfando o vento, na beira despenhadeiro. Manada correndo embaixo e macaco vendo, pensando voltar pras águas, pensando descer pra relva. Encruzilhada. Há tempos e tempos, mas todo tempo que vem pisa no pé dos outros. Do antes, supondo que o supere, do depois, supondo que o arraste, que pegue pelos cabelos e jogue no meio da roda dizendo: vai. Há tempos e tempos, um circulando os outros, todos trazendo agora o absurdo do entroncamento. Encruzilhada. Alternativas. Uma porção de vidas e suspensões circulam neste volume, primeiro coração da bananeira que Macaco Encruzilhada apresenta. Textos e imagens que trazem, até o limite do nosso possível, novas visões e tambores, marcações de ritmo e uma ou outra promessa de novas tempestades. Cada visagem aqui presente empresta, por um segundo, os dedos da terra e as raízes da linguagem. Chama, batendo no peito, o leitor para a experiência. Urra. Macaqueia, alterna. Saqueia. Macaco Encruzilhada – o início da jornada, este livro coletivo, tem a pretensão de jogar uma casca de banana no chão da literatura e das artes visuais (e talvez da música, e de outras coisas. quem sabe? diavirá) hoje. Colaborar com a sujeira, com o solo escorregadio destes nossos tempos. Tentar não ser outro mais do mesmo e, à maneira de um palhaço esborrachando, falhar miseravelmente. Entreter-vos, entreter-nos, no entretanto. É seu desejo.
Macaco Encruzilhada, a entidade, não tem pretensão nenhuma. Ele pouco se importa com artes, com a literatura, com que quer que seja. Macaco Encruzilhada joga a casca de banana no meio da rua, ri e segue, e continua. Com as mãos na terra, subindo em árvores e vendo o céu bem mais de perto. Alternativas, possibilidades. Compartilhando da esfera dos sonhos, do ronco, da risada absoluta. Entre duas extremidades, olhando e tamborilando em dois destinos. Descer das árvores ou voltar pras águas. Descer das árvores e voltar pras águas. Ouvir as árvores. E rir. josé juva & Leandro Durazzo {organizadores}
nome? o meu mas mudo sempre
idade? já não tenho nunca tive ninguém tem endereço? agora não agradecido
profissão? catador de signo
profissão? criador de silêncio profissão? michê falido de palavras que dão pra qualquer um alguma doença? essa pequena, a de viver mas nada que não passe com o tempo
azar nascido da falta de ação o depois não existe. as coisas destruídas não existem mais. as que ainda falta inventar estão por aí, existem na gente. às vezes faltam por si só; às vezes fazem faltar, fazem falta. deixo tudo para a última hora, sempre. essas coisas que existem ficam escondidas, sabe. o lugar tem o necessário. É meu caos vulgar e desregrado, é terrível porque não tem passado, mas também não tem culpa, penso. o medo me serve de fronteira somente para o tempo. atenção: o tempo é essa criança chorona e desgraçada, que apanha do ócio; o ócio é senhor da dignidade; o trabalho é pouco mais que mera coincidência. e esse estado de inconsciência (seja lá o que isso pode significar) é o fantástico mundo da procrastinação, que me ferra em toda e qualquer responsabilidade. eu preciso dizer que é um paraíso se danar disso. o problema é que não posso viver ali, naquele mundo. vira o inferno essa vida, cheia do azar nascido da falta de ação. é tudo culpa do meu eu lírico, é ele que quer tudo colorido, que se encanta com o depois e acha a procrastinação a demência mais charmosa. eu vejo a procrastinação: cena de cinema em película P & B, cigarrinho na mão, meia luz, barbas, bigodes e chapéu de detetive, o exercício máximo da mente: musculosa e burra, um tesão.
desoriento a primeira pessoa dos textos que nunca termino para toda a minha falta de mim. a minha primeira pessoa não sou eu. é, em grande parte, outros e mais alguns. nada por completo. um padrão autêntico de tentativas. as primeiras pessoas dos textos que eu fracasso são um retiro bandido das vontades que tenho e que passam. o pó das minhas vontades me leva a viagens por dentro do corpo. é como um vício preguiçoso que preciso para ser. fico guardando pedacinhos de passado para escrever mais tarde, como quem guarda momentos que nunca existiram para viver depois. eu perco o aço da vontade, diluo a vida ao fogo, derrete feito manteiga de fritar bolinhos de chuva. e perco tudo o que não tive. e restam tijolos e motivos cimentados no nada: como uma escala inversa, desconheço aos poucos os tijolos, o aço e o vício preguiçoso. sabão, água, escova de esfregar. apago recados, reprimo o estômago. nas costas, todo o peso da iniciativa e do abandono. as coisas somem, vão sumindo, só existem para desaparecer. quando nasci, bati com a cabeça no joelho. deveria ter ficado. hoje, não caminho de jeito nenhum – alguém tem que me levar. existir para ser apagado: criado para virar ruína: antiguidade para ter valor apenas na fotografia. nada poupará os ouvidos alheios das histórias explicativas que concedo de graça: venham, venham todos! histórias ilustres do meu paraíso decaído. deixa pra lá. dentro do corpo, mais toneladas do que não pesa, do que não vende por quilo. não me falta nada: eu que falto, sou ausente como tudo; ausência que castiga, lenta e satírica, como quando o amor queima e acaba.
lágrima de cotovelo
ela se divide em tipos com detalhes minuciosos de muitas mulheres. uma só, para um só. e em tantas se transforma, o tempo deixa. ele não entende que ela só sabe chorar pelos cotovelos e que é amor, mesmo assim – essa coisa que faz arder a compaixão que nasce com a gente. Ela briga, diz nomes feios, morde, manda ele embora e depois diz “me morro toda sem você”, então jorra dela o amor, ao ouvir ele dizer que basta que ela o mande se foder num dia e lhe diga oi no outro.
bilhete de geladeira
chegue pelado, me traga uma cerveja e o resto deixa que eu faço.
trauma de esperas
tenho aqui dentro uma ferida toda azul, de tanto guardar o amor num cantinho do freezer.
insólito: carregar cemitérios e ferrugens nos bolsos: o mar quando escapa pela fenda e escorre para dentro do olho, como barragem que estoura o que lhe detém ou dente abrindo caminho na gengiva passiva: o sono do gato é abismo profundo sem escadas, escamas, cabelo, corda para se agarrar: o ranger desencadeado pela ciranda da lua desenterra pássaros, carrancas e borboletas que carregam santuários coagulados nas ruínas de suas asas oxidadas: – a mancha úmida na parede é gozo do tempo.
***
insônia é não ter palavras para o sono é é é é
não convencer o travesseiro a aceitar a cabeça ter no lugar do colchão uma avenida insistir conversar com os móveis da sala emprestar memória para os peixes do aquário
é desconhecer o trapézio da noite.
a previsão do tempo é uma falácia p/ mardônio frança e nuno gonçalves
os brinquedos, os jogos de adivinhação, a cidade e suas senhas-salamandras, as mandalas hipnotizadoras, a rota da barbárie e as memórias que entregam o seu coração aos bandeirantes, que entregam seus nomes, sua prole, seus sonhos de se tornarem camaleões ou peixes ou águias ou fogo. há setas que apontam pro norte, há uma confusão nos sensores, sentidos, os poemas-malabares cospem fogo, os cheiros e o sexo estão longe, o mar chega para lamber e sarar as feridas, o vento é chicote bem vindo nas costas, os brinquedos agora obsoletos, as conchas do mar, o paraquedas está nas costas esperando ser aberto, a cidade colmeia cria seus doentes mentais, a cidade frankenstein devora seus doentes mentais, a cidade é uma sequela aberta, ferida que nunca sara, cores mortas, portas fechadas, pernas e braços e cabeças e troncos espalhados pelas calçadas, os desenhos que se pintam são hecatombes, terremotos, nada de cores de almodóvar, a cada esquina um besouro a descer pela garganta, a sala de estar é um calabouço, um cala boca, uma mordaça, moscas cercando os cadáveres da cidade-hospício, cercando as mentiras e a dor da lembrança, pegamos carona em corpos alheios pra esquecer os sonhos ruins, há lugares que vendem coisas que já aconteceram, que já tocaram, que já foram vistas, que já foram lidas ou faladas, a cidade é uma sucata velha teimosa.
enquanto o barulho da chuva flutua, enquanto o amor não cega, enquanto o silêncio é compreendido, enquanto anões gritam poemas. enquanto as frutas adoçam a boca, enquanto a língua passeia cometas, enquanto a fome acelera a vertigem. enquanto o equilíbrio educa a alma, enquanto a cuca se infiltra nos cheiros, enquanto a vida é sangue e gozo, fôlego. enquanto o fogo é bicho solto, enquanto foge uma multidão, sapatos incendiados, enquanto os abraços fazem nascer florestas.
casaco verde do acaso, alguns dentes quebrados nos bolsos, os ossos de aves e pequenas naves chinesas. desejo e extinção do desejo, trevas, tempestades, ventania, rebanhos de grãos de areia contra as retinas fatigadas. pernas queimadas, barriga cheia de sonhos, senhas escritas com saliva, selva da mente picada por vespa.
cinco poemas
a tua tradução não ficará pronta a tempo
as sombras envelhecem devagar
serás um cadáver antes de te compreender
***
dezessete sonhos apodrecem na tarde bárbara
a vida é só essa palavra
***
tudo já foi dito das melhores formas em todo sentido
é preciso agora encontrar um modo de dizer silêncio
***
sou expulso do poema sem ter feito nada: o nada
é que morde a própria sombra nos contornos da palavra
não há eu ali: o centro está em todo lugar o que pensa o pensamento não é o eu: é o pensar
e pensado assim do nada ao tudo que nele há não sou eu: é a palavra que me inscreve devagar
***
eu já disse tudo que o imperador queria ouvir
já disse que as estrelas não são minhas e minhas filhas também não
que minha casa não faz falta me apetece o sol e o frio
que não sei quantos inimigos foram mortos e ainda mortos torturados no que restou de sua semente
disse que não fui até a fronteira que não sonhei meu próprio sonho que minha carne era fraca para suportar sua presença
disse que meu vômito e minha imensa náusea eram loucura e fantasia e o veneno já não cortava minhas veias
disse que jamais fugiria e que até meu último dia suportaria docemente a cegueira de meu filho
a derrota de meu povo o esquecimento de meus pais
e disse mais: que seus crimes eram meus meus olhos eram seus e sua infâmia toda minha
já disse tudo que o imperador queria ouvir
porque cortar a minha língua?
chove chove. o rio não quebrou. vermelhos os céus, vermelhos olhos teus. os meus, negros. noite que cala todo o barulho. nos sonhos prováveis ainda o medo, o ranger das vozes alteradas. sono profundo. um ronco que não é de motor. piada estranha. a voz alheia, a voz alheia. quem rouba teu sono, criança? quem? escola fechada pela manhã. ter a manhã para dormir mais, dormir mais para quê? pouco a pouco levantam. esticam, encolhem, lavam, passam, comem, movimentam, escovam, partem, beijam, dizem adeus. não chove. o homem avisa que o rio não quebrará. o céu amanhece azul. os meus olhos ainda negros, os teus olhos inda vermelhos. sem silêncio, sem sonhos, rememorações dos sonhos, imprecisão. a porta que bate, a criança que fica, o medo que sai, o medo que volta. “volta cedo, painho”. doze carros: doze homens. um micro-ônibus, com capacidade para dezesseis pessoas, carrega dezesseis pessoas vezes três. duas bicicletas alimentam uma família. uma moto carrega outras três. chove três ou quatro vezes o esperado para um mês de trinta ou trinta e um dias. o tempo parece correr três ou quatro vezes mais rápido. “ela está acordada?” “estava chorando, mas já faz tempo que parou”. um aceno. esticados os braços. pressionadas as pernas. sete passos para fora. quem me espia no trabalho? comentamos a chuva. rimos de quem anda do lado de fora. do lado de dentro umas caras abusadas. do lado de fora, sapatos furados, meias encardidas. do lado de dentro, pés secos, mãos ásperas. nobreza, nobreza. e-mails para rir. vírus. e-mails para guardar. lixo. e-mails para não responder. sites bloqueados.
palavras, terças palavras. blog. reunião às pressas. sermão, sermão. as portas batem, os relâmpagos surpreendem em plena tarde. a hora do amém, do graças a deus deu minha hora de partir. a criança chora com medo dos trovões. “são cavalos que trotam alto, filha!”, eu digo a ela. “mentira”, ela me diz. acelero. acelero. acelero. freio. permaneço a ser a lebre em casco de tartaruga. ao lado, lá fora. um casal anda sincronicamente afastado um do outro. cada qual com seu guarda-chuva, seus lamentos, suas dores, seu imenso amor. rio. o rádio faz anúncios sobre o futebol. ontem quebrava o rio. hoje, as filas para comprar ingresso para a partida decisiva do final de semana ganham algumas linhas de página. algumas linhas a mais em comparação às notícias dos que vivem em casas eternamente inundadas sob alguma linha imaginária da pobreza. rio.
Explodem primeiro os céus de Sidney. As pernas grossas da morena descendo a avenida, ainda há pouco, eram de menina. Sem fogos de artifício ou champagne, explodiu seu novo ano numa manhã trivial de abril. Na esquina de domingo, um cão fareja compenetrado a terça-feira que se perdeu, mas ficou impregnada em seu focinho. As árvores da espécie ‘Pinus Longeva’ insistem unhando a terra, obstinadas, há mais de quatro mil e quinhentos anos. Mas os insetos da ordem ‘Ephemeroptera’ não duram mais que vinte e quatro horas. Tempo suficiente para se reproduzirem e morrerem. E se reproduzirem. E morrerem. Não tem a banana, decompondose na fruteira da cozinha, o mesmo tempo da máquina de lavar, batendo, em movimento circular, as roupas suadas da família, os panos íntimos, fazendo girar o sistema moral de uma sociedade. Alguns povos ainda rastejam nas trincheiras da guerra fria, das cruzadas, das guerras médicas, pelos rios do mediterrâneo. Batendo a cabeça contra os muros. Outros aguardam sisudos e há milênios a vinda do messias. Em Taiwan, o ano novo virá em nove de fevereiro. Desde 23 de Janeiro deste ano, estamos no ano 4710 do calendário chinês. Um avião israelense decola em 5771 e, minutos depois, bombardeia uma aldeia de muçulmanos em 1432. Pelos cálculos da datação radioativa, presume-se que a terra tenha 4,5 bilhões de anos. Mas os jovens católicos de Nike e Ipod desfilam indiferentes em plena Idade Média. O universo tem a idade do mistério. A garota bonita, de flores no cabelo, não volta mais das viagens de LSD ao sul de 1960 na montanha mágica. Há os que esperam que finalmente termine a década de oitenta e aqueles que jamais sairão dos saudosos anos vinte. Meus livros estão quase todos mortos.
Fellini, Chet Baker, Pollock e Chopin já não vivem e as tintas que embalam minhas horas estão pra sempre enterradas. Eu mesmo me perdi em algum lugar de 1993, entre a Rua Alenquer e o portão da escola. Num entardecer calmo que, segundo as contas de Gregório, daqui a pouco faz dez anos.
Às vezes simplesmente não sai nada, e é bom, somente isso, bom. Uma espécie de sensação de pertencimento. Pertencimento a um outro tempo, com certeza mais devagar, menos agressivo, menos disposto a entrar em qualquer tipo de briga. Apenas um canto pequeno com pouquíssimas coisas, e você senta ali, e você não faz nada, simplesmente habita aquele momento. Segundos de paz que espantam os restolhos para outro canto, mais distante. E você pensa em ficar ali. Simples. Mente. Na verdade, você nunca foi de briga, te jogaram nessa, e você acabou batendo forte demais, deixando todos meio assustados. Você acabou frequentando lugares perigosos com pessoas prestes a explodir, perdendo os dentes, dedo no gatilho. É isso, você era um dedo no gatilho. Te jogaram nessa. Agora só precisamos desse canto. Algo pra chamar de casa. Habitar. Lá fora, como aqui dentro.
Ela passava com outro camarada. Apenas acenava e seguia. Eu não encontrava o caminho de volta, eu não reconhecia a minha casa. Eu entrava em casas alheias, recebia sinais de aprovação, gritos e canos apontados prestes a explodir. Eu entrei várias vezes em casas que não eram minhas. Eu entrava desesperado, saía quase morto. Tinha andado apenas dois quarteirões, não encontrava, não encontrava mais, e não queria assustar ninguém. E ninguém me ajudava. Ninguém entendia que eu não encontrava, simples assim. Pode parecer absurdo, mas eu não encontrava e ninguém ajudava. Pelo contrário, nutriam certa ojeriza, afinal eu parecia um simples bêbado decadente batendo em portas erradas. Eu nutria nojo e ódio. Ou era isso que eu percebia. Eu não sabia distinguir. Eu só não sabia distinguir quem era bom e quem era mal. Eu apenas tinha esquecido o que me haviam ensinado sobre os tais mocinhos e bandidos. Eu apenas não ligava praquilo, nunca fui de antagonismos radicais. Eu nunca quis. Eu nunca liguei pra barata morta no vão da porta, da porta, que eu não encontrava mais. Viu, eu não ligava, eu apenas olhava e não sentia nada. Entende? Nada. Era apenas uma barata morta que o vento levaria embora num dia de chuva. Eu não queria, eu não ligava. Era apenas sobre deixar passar, deixar acontecer.
III Bem na piscina! Num Sábado, a baleia vermelha caiu do céu dentro da piscina de Ângelo Waltz. Sobravam menos de dois palmos pra cada lado. Isso quer dizer que ela não era uma das grandes. Pouco menos de vinte metros de comprimento, seis de largura e três de profundidade. Ângelo nadava todas as manhãs antes do trabalho por quinze minutos. Porém, há vinte dias, não nada mais. Veio televisão, polícia, bombeiro e zoológico. Fizeram mil perguntas, filmaram, puseram plaqueta de identificação com UPS (Universal Position System), fotografaram, mediram, tiraram sangue. Houve concurso na internet pra escolher o nome. Mas depois do talk show, deixaram a Zirigumina no mesmo lugar. O biólogo instalou um sistema de troca de água e disse que, se o dia esquentasse muito, a temperatura ideal seria mantida automaticamente. Ângelo achou que seria melhor providenciar uma cobertura retrátil para controlar a quantidade de sol, mas o biólogo disse que isso poderia atrapalhá-la na hora dela levantar vôo. Algum dia, a Zi iria embora sem aviso, do mesmo jeito que chegou. Por isso, Ângelo decidiu que a baleia não alteraria seu dia a dia. Passou a correr em torno da piscina antes de ir trabalhar. Quase não teve de alterar seus hábitos dos últimos dez anos. Para Ângelo, não existe sorte ou azar. A água da piscina, que transbordou quando a Zi chegou, estragou seu churrasco, mas nenhuma das crianças estava nadando.
Orgulho nacional Antes do jogo eu tava numa puta expectativa... Do jeito que a gente tava jogando ia ganhar, não tinha jeito. – Você viu a vitória contra o Uruguai? Espetáculo, rapaz, espetáculo... O puto não respondia nada. Nem devia gostar de futebol, daquelas pestes que torcem contra, conhece? – Gérson, Clodoaldo, os caras jogam pra cacete, viu... Tem pra ninguém ali na meiúca não. Nem um pio. Sentei a mão. – Se você gostasse de bola, seu merda, talvez a gente não tivesse aqui. Aí ele falou, aquela porra de "ópio do povo" e o escambau. Joguei no chão e chutei três vezes, no mesmo lugar, bem no rim. Ele tentou não gritar, mas tá bom... Chutei de novo, pisei em cima, ele ganiu igual um cachorro. Filho duma puta. Todo vermelho, tinha que dar uma escovada boa nele. A rapaziada ajudou a tirar a roupa, colocar ele sentado e amarrar as mãos e os pés na cadeirinha. (...)
Quando começou o jogo, ele já tava com a cara desse tamanho... Um olho nem abria, babava e escorria sangue, tudo roxo. Tinham arrancado as unhas da mão esquerda com alicate. O Tuco trouxe um radinho, a turma ficou quieta pra ouvir a seleção. (...) Gol do Pelé! O negrão é do cacete, rapaz! A gente não podia gritar, mas todo mundo vibrou. Na farra, jogaram até um balde de água fria pra dar um refresco no coitado... Mas no primeiro tempo ainda a Itália empatou. Bonisera, Bonasera, Bonisegna, sei lá o nome do filho da mãe. E o moleque folgou, vê se pode?! A turma tava encapuzada, sabe como é, mas deu pra ver a risadinha. Eu nem falei nada, só dei a ordem pra rapaziada sentar a mão. Colocaram até faísca no rabo dele pra dar choque. O bicho gritava, rapaz... Se mijou e se cagou todo. Jogaram água pra limpar a nojeira. Mandei passar sal na cara dele, na mão, no pau e nas feridas todas. (...) Na metade do segundo tempo, gol do Gérson. A turma vibrava quase em silêncio, dando soco no ar igual o Rei. Dali a cinco minutos mais um, do Jair... – Dá risada agora, comunista do cacete! Essa Copa é nossa! (...)
Quando saiu o último gol, aquela pintura do Corró pro Jair, pro Pelé e depois pro Capita, que coisa linda... A turma já tinha colocado o moleque no pau de arara. Tava cheio de mancha preta, quase não reagia mais. Falei pra parar. – Você devia ficar feliz, moleque. Tricampeão do mundo, porra! Isso é orgulho nacional! O olho que ainda abria me olhou de um jeito estranho. No meio da algazarra que já vinha da rua, não deu pra ouvir o que o moleque murmurava. "O quê?", falei pra ele segurando pelo cabelo. "Orgulho nacional", ele repetiu baixinho na boca escorrida. Deixamos ele lá e fomos tomar um guaraná pra comemorar a vitória. A turma ficou comentando o jogo, os lances... Aquele time jogava muita bola, rapaz! A taça do mundo era nossa, porra! (...) Quando a gente voltou... O moleque não falou mais nada. (...)
harpia
aquela donzela em forma de ave me trancou na cela e engoliu a chave.
solstício “It's a new year, I'm glad to be here It's the first spring, So let's sing.” (Yeasayer, 2080)
em vinte e um de dezembro de 2080 ao raiar dos ventos migraremos com os pássaros atrás de terras sagradas onde mulheres andinas penteiam cachoeiras e jequitibás com pentes de ágata roxa e costuram mantos e toucas de linhos galhos e folhas para os filhos recém-nascidos dos gigantes de Socotra.
samsara din din wo se queres conhecer a morada das cores pede a benção de teus pais larga tuas fortunas e amores marca teus doze lugares sagrados com tilakas atravessa o Narmada nas costas listradas de Richard Parker
prova um pedaço generoso do silêncio tangível dos mortos e descansa teu corpo em vigília sobre a lótus azul imaculada até que a trindade te conceda asilo e tu renasças amorfo e incógnito sobre a face impossível das águas.
janela aberta
entram-me sol frio e manhã
o som tocando desperta em mim mais que o café
é novo dia
não há mais nada que surpreenda mas veja como a manhã, o sol e frio, pela janela são coisas novas
janela aberta e dia igual
quem pensa que na primavera pássaros migram não sabe ver aves
as aves se mate rializam planando do nada do meio do ar pra copa das árvores
e vêm ordenadas com as asas ligeiras voando em manadas
os pássaros são as primeiras flores da primavera
Macacos na encruzilhada
Carlos Gomes – autor do conto “chove”. Natural de Recife, em Pernambuco, é editor do projeto de crítica cultural Outros Críticos, que organiza publicações, debates e coletâneas musicais. Formado em Letras, lançou em 2012 o e-book de contos corto por um atalho em terras estrangeiras. Como poeta, compôs o poema narrativo êxodo, selecionado no concurso SESC/DF de poesia, edição 2010. Além disso, colabora como colunista do site Futebol de Bolso e possui trabalhos em coautoria em contos ilustrados (Gomes & Maia) e música (Adiós Poeta). carlos moreira – autor do poema-“entrevista” que abre o livro e “cinco poemas”. Nasceu no mar e vive no rio. publicou sua Tetralogia do Nada pelo clube dos autores e recentemente seu livro Cardume pela editora Valer. Camillo José – autor dos poemas “harpia”, “solstício” e “samsara”. Reside na região metropolitana de Recife e é aluno do curso de Letras da UFPE. Participou da antologia Vinagre – uma antologia de poetas neobarracos e já teve poemas publicados nas revistas virtuais Ellenismos e Mallarmargens. Chico Ludermir – autor das fotografias das páginas 26 a 30 e 44. É jornalista e fotógrafo. Tem trabalhos publicados em diversas revistas dentre elas a Continente, a Artlliporto e Una, além de ser autor dos livros Dos Alagados à Especulação Imobiliária e Senhoras do Coque e editor das duas edições do Cadernos de Narrativa da Cultura Pernambucana. Atualmente é artista das galerias Arte Plural e do restaurante Barchef. Em sua trajetória como artista visual tem, cada vez mais, se distanciado do figurativo. Para ele interessam as formas criadas a partir de seu olhar:
novos ângulos, aproximações, longas exposições e contrastes em objetos do cotidiano. Demetrios Galvão – autor dos poemas “insólito: carregar cemitérios e ferrugens nos bolsos”, “insônia é não ter palavras para o sono” e “a previsão do tempo é uma falácia”. Historiador e poeta. Nasceu em Teresina-PI, cidade onde reside. Publicou os livros Cavalo de Tróia (2001), Fractais Semióticos (FUNDAC/PI, 2005), Insólito (ed. Corsário, 2011) e o cd Um Pandemônio Léxico no Arquipélago Parabólico (2005). Foi membro do grupo poético Academia Onírica e um dos editores do blog poesiatarjapreta.blogspot.com (2010-2012) e da AORevista (2011), além de ter participado da produção do cd Veículo q.s.p – Quantidade Suficiente Para (2010). Atualmente edita a revista Acrobata. Diogo Brunner – autor do texto “Às vezes simplesmente não sai nada, e é bom, somente isso, bom.” e “ela passava com outro camarada”. É equivocadamente formado em Ciências Sociais e mestrando em Literatura e Vida Social. Descrente da vida acadêmica burocraticamente atravancada, escreve por necessidade. Além de textos de ficção para o blog pessoal http://aosuldelugarnenhum.zip.net, também publica artigos sobre cultura geral no portal obviousmag.org (http://lounge.obviousmag.org/ao_sul_de_lugar_nenhum). Fotografa por aí e tem como lemas de vida: “distraídos venceremos” e “desencana que a vida engana”. Contato: diogo.brunner@uol.com.br ou https://www.facebook.com/diogo.brunner. Flora Pimentel – autora das fotografias das páginas 11, 12, 35, 39 e 40. Nasceu e mora no Recife. Começou a trabalhar como fotógrafa em 2008. Já fotografou também para a Revista Brasileiros, Aplauso, Revista Serafina, +SOMA, Revista ESPN, Revista Continente, Revista Gonzo Circus, Revista Saúde, e Revista Tpm. Foi fotógrafa estagiária da Revista Continente e do Jornal do Commercio/JC Imagem. Formou-se em Comunicação Social, habilitação em Radio, Tv e Internet, na Universidade Federal de Pernambuco – UFPE. É fotografa oficial de festivais como Virtuosi, No Ar Coquetel Molotov, Tenda Eletrônica do Rec Beat, SWU
(2011), Festival da Criança (2012) e Festival Rec Beat (2013). josé juva – autor dos poemas “enquanto o barulho da chuva” e “casaco verde do acaso”. Poeta, jornalista, artista visual e educador. Formado em Comunicação Social, com habilitação em Jornalismo. Mestre e Doutorando em Teoria da Literatura pela Universidade Federal de Pernambuco. Membro-fundador do Coletivo Casa de Marimbondo (com o qual foi premiado em eventos de arte contemporânea pelos trabalhos A Porta, Da pós-utopia, A máquina de escrever azul, entre outros). Premiado com bolsas de incentivo à formação pelo Centro de Formação em Artes Visuais (CFAV) pelas oficinas A imagem, a verdade e outros bichos e Nomes múltiplos: bando de artistas. Publicou o livro de crítica literária Deixe a visão chegar: a poética xamânica de Roberto Piva e o livro de poemas vupa, projeto em parceria com a editora Livrinho de Papel Finíssimo. José Percego – autor do conto “orgulho nacional” Formado em Letras, tem um leque profissional muito amplo. Chegou a trabalhar na NASA, na Interpol e no Armazém do Seu Nicão, além de exercer várias outras atividades proporcionadas pelo curso. A principal delas é a de pedestre, função que ocupa boa parte de seu tempo e na qual vem tendo resultados bastante satisfatórios. Também dá aulas ocasionais de Português, Inglês e Redação. Sonha em ser um grande escritor apenas para conquistar fama, fortuna e mulheres. Se não der certo, o plano B é ser baterista de uma banda de sertanejo pós-graduando. Kodaky – autor do texto “III”. Ciclista de fim de semana, fotógrafo diletante, engenheiro elétrico de diploma engavetado, cientista social sem terra por paixão, acupunturista taoísta vulgar, asperger auto diagnosticado, poeta domingueiro.
Leandro Durazzo – autor dos poemas “janela aberta” e “quem pensa que”. Não tem memória de seus últimos anos. Devem ter sido bons. escreve: http://miseramesa.blogspot.com traduz: http://transcriacao.blogspot.com. Acha que três linhas bastam. Leandro Oliveira – autor do texto “Explodem primeiro os céus de Sidney”. É mestre em Ciências Sociais pela academia e escritor por sua conta e risco. Nasceu em Americana, SP, em 1980. Amante de jazz e cinema, samba e pintura, silêncio e muros pixados, caminha para a publicação de seu primeiro livro de poemas. Patrícia Galelli – autora dos contos “azar nascido da falta de ação”, “lágrima de cotovelo”, “bilhete de geladeira” e “trauma de esperas”. Nasceu em Concórdia, no meio oeste de Santa Catarina, em 1988. Graduou-se em Comunicação Social-Jornalismo. Como escritora, publicou o volume de contos Carne falsa (Editora da Casa, 2013) e textos na revista de literatura e arte Bólide (Curitiba, 2013). Participou de oficinas literárias com os escritores Carlos Henrique Schroeder, Manoel Ricardo de Lima e Ronald Augusto. Mora em Florianópolis. Thiago Trapo – autor da pintura da capa e das páginas 15, 16, 17, 49 e 52. Nascido em Campina Grande – PB, Thiago Regis Moura de Castro se autodenominou Thiago Trapo aos 18 anos de idade. A escolha desse nome surgiu de uma pesquisa sobre o termo marxista Lumpen (original do alemão, traduz-se “trapo, farrapo”). Músico desde os 12 anos e desenhista desde o maternal. “Desconstruindo a Esotérica”, em 2009, foi sua primeira exposição individual. Realizou também a exposição conceitual “Tropical 2D”. Trabalha como freelancer no estúdio de designer Imaginária Criativa. Desenvolve o projeto/pesquisa “Vende-se Catarse” (espécie de camelô ambulante de venda de arte). Atualmente Trapo trabalha em uma instituição de saúde mental, ministrando oficinas de arte.
FICHA TÉCNICA Edição José Juvino da Silva Júnior Organização josé juva & Leandro Durazzo Revisão e Diagramação josé juva Capa Thiago Trapo Realização Distúrbio Caverna ______________________________________________
JUVA, José. Breve Breu – escritos sobre literatura e cinema. Paulista: José Juvino da Silva Júnior, 2013. 58 p. E-book. 1. Literatura e Cinema – ensaios I. Título ______________________________________________
Disponível para download gratuito no site Outros Críticos Fale com o autor: jose.juva@hotmail.com