Eis a edição de estreia da revista Outros Críticos, que será lançada bimestralmente durante o ano de 2014. Os textos foram produzidos sob a linha editorial da divergência. Partimos do conflituoso tema "cenas musicais" para darmos voz a um discurso crítico que pudesse ser refletido pelos mais diferentes setores da cadeia produtiva musical. Não há matéria de capa, todos os textos dialogam de alguma forma com o que propusemos como tema. Seções como "crítica de boteco", "opinião" e os artigos que abrem esta edição, são os mais incisivos em torno da discussão levantada; mas o caminho que seguimos nas demais pautas também colabora para a construção desse discurso. A Outros Críticos estreia com a pretensão de torna-se uma peça importante nas relações culturais estabelecidas pelos diferentes setores, com isso, pretendemos dar um novo fôlego para a proliferação de espaços de reflexão cultural da música, sobretudo a que é feita em Pernambuco. Boa leitura.
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colaboradores Bernardo Oliveira
Crítico musical e editor do blog Matéria.
Bruno Vitorino Compositor, baixista do Nebulosa Quinteto e colunista do blog Variações para 4.
Guilherme Gatis
Jornalista, edita o blog Músicas de Sexta.
Jeder Janotti Jr. Professor do PPGCOM da UFPE, coordena o grupo de pesquisa Mídia e Música Popular Massiva.
Leonardo Vila Nova Jornalista, poeta e percussionista da banda Dunas do Barato.
Rafael de Queiroz
Repórter da MI - Música Independente em Pernambuco.
Rodrigo Édipo
Editor de conteúdo da MI - Música Independente em Pernambuco.
expediente
edição 1 - bimestral - janeiro de 2014
Esta revista é uma iniciativa do projeto de crítica cultural Outros Críticos, e foi realizada com incentivo do FUNCULTURA (Governo do Estado de Pernambuco).
Edição: Carlos Gomes Projeto gráfico: Fernanda Maia Ilustrador: Daniel Liberalino Jornalista responsável: Germano Rabello (DRT 5164-PE) Textos: Carlos Gomes e Germano Rabello Coluna: Júlio Rennó
ISSN: 2318-9177 Impressão: FacForm
Mais informações e sugestões: contato@outroscriticos.com www.outroscriticos.com
As fotos dos colaboradores foram retiradas de seus perfis de rede social.
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Daniel Liberalino
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Cenas em metrópoles esquecidas
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Crítica de Boteco
24 Foto: Diego di Niglio
por Germano Rabello
Outras palavras, outras questões por Bernardo Oliveira Convidados: Caio Lima e Ricardo Maia Jr.
Opinião Depoimentos de Dj Dolores, Renato L., Paloma Granjeiro, Leo Antunes, Ad Luna, Sara Guabello, Hugo Montarroyos e Zeca Viana. Foto: Renata Pires
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Isaar
Aninha Martins
Foto: Juvenil Silva
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Canção Crítica Contemporânea por Carlos Gomes
Goemon: cachaça, rock e banchá por Rafael de Queiroz
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Juliano Holanda
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Ná Ozzetti
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Kalouv
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Jean Nicholas
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Momo
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por Leonardo Vila Nova por Bruno Vitorino por Guilherme Gatis por Jeder Janotti Jr.
resenhas
Foto: Hugo Coutinho (Jacaré Vídeo)/ Raquel Monteath (Corujas)
Ilustrador convidado
por Carlos Gomes
Guia prático para a crítica cultural: cena beto por Júlio Rennó 3
entrevistas
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Ao passo que será realizada a leitura da revista, você poderá conhecer mais do trabalho de Daniel Liberalino, que além de ilustrador, é escritor e músico. Lançou, em 2013, o livro de contos e ilustrações Corpúsculo num plano (Jovens Escribas). Também é possível conferir outros trabalhos do autor no blog Como ajustei minha vida social no purgatório. Liberalino é natural de Mossoró, Rio Grande do Norte, e mantém estreito contato com a cena musical pernambucana, dentre suas últimas colaborações, estão a capa do disco Fricção (2013), de D Mingus, e uma faixa na coletânea musical Bootleg (2013), organizada pelo site Outros Críticos.
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ilustrador convidado
a firma
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Cenas em metrópoles esquecidas por Germano Rabello
A cidade é muito mais do que um espaço físico. É uma concentração de zilhões de pessoas formando uma personalidade própria, sua cultura. Os grandes centros urbanos ditam as regras da cultura pop, e torna-se obsoleta a ideia de que a cultura deva emanar de um único ponto, de uma única fonte. Muitas vezes, quanto mais o artista está afastado dos centros, maior a sua disposição e originalidade. Se a gente pensar na movimentação de Seattle e Recife durante os anos 90, vamos ver alguma coisa em comum. Era como visitar uma ilha que tivesse passado dez mil anos isolada e descobrisse, de repente, espécies peculiares da
Pioneira na gravação de artistas pernambucanos, a fábrica de discos Rozenblit fecha suas portas, definitivamente, nos anos 80. Nessa mesma década, nasce, em Seattle, a gravadora Sub Pop!, responsável direto pelo lançamento de bandas como Nirvana e Mudhoney.
fauna, que se tornaram originais devido a esse isolamento biológico. Ambas as cidades passaram por um período de ostracismo, longe dos holofotes, mas sem jamais deixar de produzir música. As duas cenas representaram novos pensamentos, novos comportamentos, novos panteões de influências. Tipo, “se ninguém está nos olhando, vamos fazer do nosso jeito”. Certa liberdade causada, paradoxalmente, pelas limitações, se reverte em originalidade, na fuga dos parâmetros estabelecidos. Premeditado ou não, com manifesto ou não. Isso é mais provável de acontecer em lugares distantes. Em Londres, se você der um espirro,
O pernambucano Michael Sullivan, da dupla Sullivan e Massadas, alcança grande sucesso nos anos 80 com baladas românticas. Em 1983, é lançado o disco Baque Solto, de Lenine e Lula Queiroga. O primeiro solo de Lenine e Queiroga só viria a surgir no fim dos anos 90 e início dos 2000, respectivamente. 6
Em 1991, Nirvana lança o seu segundo álbum, Nevermind; e Pearl Jam o seu álbum de estreia, Ten. Ambas as bandas se tornam as mais influentes da cena musical de Seattle, posteriormente batizada como Grunge.
artigo novos talentos da época, fez Baque Solto com Lula Queiroga, em 1983, e só lançou Olho de Peixe dez anos depois. Paralelamente, os músicos iam tocando seus projetos, ensaiando. As coisas demoravam a acontecer. Em certo momento, as coisas começam a mudar, e isso não acontece de graça. É o trabalho dos artistas mais uma mudança no comportamento do público, e em algum momento surge respaldo dos jornais locais, depois nacionais. É um trabalho de persistência. Mas precisava ser tão difícil? Não, não precisava. Seria lindo se todos trabalhassem a favor ou se houvessem políticas e mentalidades mais avançadas. Mas agora isso parece ainda utópico. O “santo de casa” não faz milagre. Ainda precisamos de um olhar estrangeiro para nos reafirmar o óbvio, que temos talento. Isso aconteceu na época do Mangue, quando se atraiu a atenção da
algum jornalista te chama de genial e diz que você é “the next big thing”. Não há tempo de amadurecer. Essa procura pela “grande banda” é como numa daquelas escavações gigantescas: é 1% minério, e os outros 99% uma cratera aberta sem necessidade, um vazio. Recife teve um passado fascinante desde sempre, em várias áreas culturais. Mas nos anos 80, a cidade parecia ofuscada, houve uma geração inteira que teve sérias dificuldades de gravar, inclusive pela extinção da fábrica de discos Rozenblit, na década de 80, após ter sofrido duas enchentes, além da forte concorrência com gravadoras multinacionais. Claro, havia os nomes já consagrados dos anos 70, como Alceu Valença e Geraldo Azevedo. Sintomático que nosso maior fenômeno de sucesso oitentista tenha sido Michael Sullivan, genial compositor de babas radiofônicas da dupla Sullivan & Massadas. Mas Lenine, um dos
Paralelo à cena de Seattle, no início da decáda de 90, forma-se o grupo Chico Science & Nação Zumbi, na mesma época é divulgado o release (manifesto) "Caranguejos com Cérebro", dando voz ao que viria se chamar de movimento Manguebeat.
Em 1993, Lenine lança Olho de Peixe, seu segundo álbum, em parceria com o percussionista Marcos Suzano. Em Pernambuco, surge um novo espaço para a apresentação de bandas, com a criação do festival Abril pro Rock, onde se apresentaram os principais músicos do Manguebeat, como CSNZ e Mundo Livre S.A. 7
Em 1994, Chico Science & Nação Zumbi lançam o seu primeiro disco, Da Lama ao Caos. Nesse mesmo ano, morre o músico da banda Nirvana, Kurt Cobain, ícone da cena grunge.
MTV para as primeiras edições do Abril pro Rock, ou quando as bandas assinaram com gravadoras multinacionais. Aconteceu em Seattle quando o primeiro jornalista britânico da NME fisgou a isca do marketing da Sub Pop. Hoje existem novas formas de validação, mas a estratégia do olhar estrangeiro ainda é importante. A foto no jornal ainda dá prestígio, conta para o currículo, ao enviar projeto para o Funcultura. Sistema de incentivo é o novo contrato de gravadora. Conquistar o público à moda antiga, com shows, ainda não é fácil, no Recife. Poucas portas se abrem. Já tivemos um bar como a Soparia para fomentar a porra-louquice da cidade. New York teve o CBGB, Manchester teve o Hacienda. Não precisa ser muito, mas ajuda a criar o hábito. Faltam peças para funcionar bem o mecanismo, mas é importante notar que existem várias cenas, milhares de universos na mesma cidade, e que se pode aprender com eles e juntar forças. A gente pode citar um mercado brega que produz constantemente novos hits e ídolos para o povão. Existe o forró, o samba, uma cena de música erudita, de orquestras de frevo, de bandas cover, de coquistas, de repentistas etc. Existe tanta música diferente sendo produzida em Pernambuco hoje. Talvez seja a hora de ir além e repensar a cena dentro das outras cenas. OC
Em fevereiro de 1997, morre Chico Science, a figura mais influente do Manguebeat.
Em 2004, o festival No Ar Coquetel Molotov estreia trazendo a banda escocesa Teenage Fanclub como sua grande atração. Além do festival, o Coquetel Molotov produzia revistas, debates e um programa de rádio.
Ainda em 2004, o festival Recbeat (criado em 1995, em Olinda) muda-se da Rua da Moeda para o Cais da Alfândega, ambos localizados no bairro do Recife Antigo, onde o evento acontece até hoje. Nesse mesmo ano, Mombojó lança Nada de Novo, seu primeiro disco, que obteve boa repercussão nacional. Com a internet, músicos aliam gravações caseiras com a difusão gratuita de seus trabalhos pela internet. D Mingus, por exemplo, lançou três discos dessa forma, todos gravados em home studio, sendo o último chamado Fricção (2013). Coletâneas como a Recife Lo-fi também deram visibilidade a esse tipo produção.
Vinte e cinco anos depois da criação da Sub Pop!, bandas como Fleet Foxes, Iron And Wine, Beach House e The Shins lançaram disco pela gravadora, que continua atuando no mercado musical.
Atualmente, a cena musical pernambucana ainda sofre com escassez de espaços para shows, entre outros problemas. Os editais de incentivo à cultura são o principal meio para as diferentes áreas culturais realizarem seus projetos. No último edital, 288 projetos foram aprovados, num total de 1.664 inscritos. 1/3 dos inscritos é da área de música. Produzir e disseminar sua obra sem precisar de apoio exclusivamente do Estado é uma das principais questões atualmente.
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Outras palavras, Outras questões por Bernardo Oliveira
A utilização constante e acrítica da expressão “cena” em língua portuguesa, corresponde, na minha opinião, à situação precária do jornalismo cultural brasileiro e, particularmente, da crítica musical. Certamente, já devo ter utilizado essa expressão algumas vezes, tal como nos acostumamos a usar expressões consolidadas por um vocabulário de séculos passados (“obra-prima”), expressões contextuais mais recentes (“heavy metal”, “indie”) ou até mesmo expressões muito recentes que se consolidam não a partir de sua eficácia, mas justamente em função do que elas possuem de mais superficial e evasivo (como “hipster”, por exemplo). Evidentemente, cabe a cada autor escolher o vocabulário com o qual vai trabalhar. Lembro de certas experimentações que procurei realizar, não sem uma difi-
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culdade abissal, na tentativa de escrever sem aplicar rótulos ou expressões consagradas. Sim, a tarefa é árdua, mas penso que é chegado o momento em que nós que nos arriscamos a escrever sobre o turbilhão sonoro contemporâneo — isto é, que tentamos fixar na pedra o fluxo incessante da produção atual — deveríamos nos arriscar a repensar nosso vocabulário. Não em busca de maior “densidade discursiva” (o que é isso?), mas porque a experiência sonora contemporânea não se permite interpretar ou decodificar com ferramentas antigas. É preciso criar novas ferramentas, e essa necessidade é cada vez mais perceptível e urgente. Tomemos a expressão “indie”. Existe toda uma literatura a respeito, todo um estudo a partir do desdobramento do conceito de “independência” no mercado
artigo anglo-saxão, que justificaria sua utilização. No entanto, diante do que vemos e ouvimos hoje — o turbilhão da independência depositada sobre uma diversidade absurda de selos e bandas que reivindicam esse rótulo — deveríamos nos abster de usá-la, pois simplesmente já não significa nada que não precise ser exposto e problematizado. O mesmo ocorre com esta noção estranha: “cena”. Termos como “underground” e “alternativo” foram criados como dispositivo de diferenciação, sobretudo em relação à música comercial, ao “mainstream”. Contudo, se tornaram, elas mesmas, expressões “mainstream”. Da mesma forma, acho curioso quando os jornalistas das grandes corporações de comunicação chamam qualquer movimentação como “cena”, em particular a que vem acontecendo no Rio de Janeiro, mais particularmente na zona sul carioca. Me soa preguiçoso. Substitui-se a pesquisa, a frequência nos locais onde “a cena” se encontra, o conhecimento in loco das práticas, usos, diferenças (subjetividades) e dificuldades por uma expressão vazia que pretende sacrificar o que há de vivo com o objetivo essencialmente comercial de “comunicar”. Ora, qual o sentido de uma expressão que pretende, ao invés de diferenciar, igualar as muitas “cenas”. No caso do Rio de Janei-
ro: qual o sentido de usar o termo “cena” para o contexto carioca? Vale notar que esta “cena” não se encontra inserida em nenhuma cadeia econômica virtuosa, não conta com uma regularidade de artigos e entrevistas nos grandes veículos (a não ser a famigerada matéria com “os novos”, anual e geralmente mal escrita), não possui lançamentos físicos, selos que sustentem esses lançamentos, nem apoio institucional. Não que não haja uma articulação mínima entre artistas como Chinese Cookie Poets, Cadu Tenório e seus muitos projetos (Sobre a Máquina, VICTIM!, Ceticências), DEDO, Dorgas, Bemônio, Negro Léo, J-P Caron, Epicentro do Bloquinho etc. Mas são artistas muito diferentes uns dos outros. Cada um deles exige que o jornalista/ crítico se debruce e procure entender onde eles querem chegar, seus interesses, particularidades. Mas a utilização abusiva de palavras redutoras como “cena”, interdita a compreensão adequada do fenômeno e amontoa todos eles de forma bastante descuidada em rótulos equívocos como “experimental” ou “underground”. Não importa o que é uma “cena”, pois se trata de uma expressão redutora. Valeria substituí-la por uma experiência autêntica, tanto na escrita quanto na vida. Para outras questões convém buscar outras palavras. OC 11
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A seção Crítica de Boteco promoverá a cada encontro um debate sobre temas abordados na revista. A edição de estreia foi gravada no Orbe Coworking, com registro fotográfico de Hugo Coutinho (Jacaré Vídeo) e Raquel Monteath (Corujas). O debate contou com a presença dos músicos Caio Lima (Rua) e Ricardo Maia Jr. (Ex-Exus). A mediação foi realizada por Carlos Gomes (Outros Críticos) e Rodrigo Édipo (MI), que permanecerão presentes nas próximas edições. O debate sobre cenas musicais rendeu um extenso material bruto, que posteriormente será divulgado na íntegra no site Outros Críticos. Confira, a seguir, o que de melhor aconteceu nesta conversa. 13
Carlos Gomes: Qual a sua noção de cena – tendo a ver com o que a gente viveu aqui em Recife dos anos 2000 pra cá: cena indie, com o Coquetel Molotov, e agora a cena Beto?
dar visibilidade a uma coisa que engloba o coletivo. Em vez de ser só uma pessoa se lançando, você lança isso com um monte de gente que está a fim de trabalhar durante um momento. Geralmente, são coisas muito ligadas ao momento. Deveriam existir várias cenas; ser um estímulo para outras pessoas se juntarem e não virar uma briga. Quando entra nesse ponto, fica meio problemática, vira uma coisa meio de gangue. É muito saudável essas coisas porque é meio didática para os jornalistas, pois às vezes quem faz isso é um jornalista, um produtor, ou as bandas
e os músicos. Em Recife, faltou durante muito tempo essa vontade de querer ser coletivo. As coisas ficavam dispersas. Um movimento indie a gente sabe que existiu. Quem foi o pivô disso? Para mim foi o Coquetel Molotov que botou isso mais pra frente. Havia bandas emblemáticas desse período: Vamoz!, Volver, Rádio de Outono, Mellotrons; mas não tinha essa coisa de ter um coletivo de fato. O retorno de uma cena, mesmo que seja uma com um nome que beira ao ridículo, sem sentido, quase um dadaísmo. O Beto, né? Mas o interessante é estimular essa movimentação e mostrar que a gente pode criar produtos midiáticos. O grande impulso disso, focando especificamente na cena Beto, era de criar um CD, que foi a
coletânea Objeto Não Identificado (O.N.I.), e daí várias coisas começaram a surgir. A gente teve a sorte de um dos caras envolvidos ter aparecido no Globo, e de ser um cara aglutinador. Ele não foi fominha, pois apontou vários nomes que estavam mais envolvidos com ele, é claro. Mas isso dá uma grandeza. A gente ainda é nordestino, não está no centro das mídias. Então, acho que tem que ter um apelo quase didático. É um posicionamento estético e político. De mostrar uma organização e de mostrar que a gente está trabalhando junto e pensando nessa perspectiva mais mercadológica, de desenvolver um circuito sustentável. De querer movimentar e ocupar os espaços da cidade.
Ricardo Maia Jr.: É engraçado, porque parece que no Recife, no Brasil, às vezes a gente precisa ter uma única cena. Se você for ver na história do rock, tinha os Mods, os Rockers. Um monte de tribo se envolvendo, querendo ter essa disputa, de uma querer ter mais poder, ser mais hegemônica do que a outra. Essa coisa de cena é simplesmente uma sacada midiática, pra
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Carlos Gomes: Você acha que aí tem uma confusão entre trabalhar coletivamente e pensar a cena musical como algo mais amplo? Se formos classificar de indie as bandas que surgiram nos anos 2000, aproximadamente, é como se elas não fizessem mais sentido hoje, como cena musical.
faz parte da cultura humana, de estar recriando, repensando nomes, já pensando em símbolos. O que isso representou num contexto, às vezes não representa em outro. Tem que repensar nos símbolos. A gente vive numa velocidade tão grande, de uma cultura atropelando a outra, de um movimento atropelando o outro, que muitos movimentos artísticos ficam mal, pouco ou nem são interpretados e debatidos. Então, a gente fica com esse resgate, o que às vezes é ruim porque vira um vintage, parece que você tira de um espaço e bota em outro tempo, e não ressignifica
Ricardo Maia Jr.: É muito ligado ao tempo, ao contexto. Carlos Gomes: A cena é criada para ser extinta?
Ricardo Maia Jr.: Tudo na cultura é criado para ser extinto ou transformado. Isso
“A criação de uma cena enquanto coletivo é legítima porque é isso mesmo que tem que ser feito.” Caio Lima ele. A cena está muito ligada ao tempo, realmente. O movimento indie soa como se, naquele tempo, aquela galera não existisse mais; mas existe. O Coquetel Molotov e as bandas estão aí. “Cena” tem muito de pessoas que não se sentem representadas por aquele conceito e ficam putas porque acham que engloba toda a cidade. Como se estivesse falando por todo mundo. A mídia tem que ser um espaço para se debater. Artisticamente, a gente debate com movimentos, e não precisa ser agressivo. Eu não sou politicamente correto, mas as pessoas têm que pensar essas coisas de cena como um estímulo para se repensar e chegar num ponto final, que é ter uma cadeia produtiva. As pessoas circulando pelos espaços, pela cidade, pelo estado.
Ter um circuito nacional.
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Caio Lima: Eu também vejo a criação de uma cena como uma tática de sobrevivência. Como diz Michel de Certeau, existem táticas e estratégias. Estratégias são daqueles que têm um lugar próprio. A cena é uma forma dos artistas, que são naturalmente indivíduos que precisam ser coletivo. Na República, de Platão, quando Platão expulsa os artistas da república ideal, mostra como já somos marginalizados desde o princípio. Então, essa forma de organização é uma maneira que o artista encontra para circunscrever esse lugar de escuta, porque não existe. A criação de uma cena enquanto coletivo é legítima porque é isso mesmo que tem que
“A cena Beto passou a existir porque se criou o nome cena Beto ou ela já existia?” Rodrigo Édipo ser feito. E, ao mesmo tempo, a imprensa também se aproveita disso pra legitimar, ou vender a sua função de tirar o capital. O papel que ela se presta, de difundir isso.
vamos abrir”. Até porque o Pernambuco Contemporâneo é uma coisa mais, tipo: uma banda de samba com uma banda de post-rock. Eu entendi da parte da imprensa de identificar uma coisa que pudesse dizer assim: “Vamos lá, aqui é a galera da periferia”.
Carlos Gomes: Quando você (Caio) viu escrito na matéria de Silvio Essinger, no Globo, cena da periferia – que depois se transformou em cena Beto; ninguém daqui vai identificar periferia com D Mingus e Juvenil Silva, mas com artistas totalmente diferentes... Caio Lima: Essa identificação eu entendo como parte da estratégia desse meio de comunicação, para identificar e vender. Eu não reconheço essa periferia porque eu não conheço a galera. Eu também não acredito nelas. Então, uma coisa geral, a galera de periferia, “ah, a galera diz que faz música pro povão”. Balela... Eu não acredito. Nem sei se é assim mesmo. Naquele momento eu tava pensando numa tática que era assim: “Não velho, vou dizer (o quê) quando a galera do Globo me perguntar?” Ao mesmo tempo eu senti, que é uma coisa que Ricardo me fez refletir também, quando a gente foi entrevistado na MI, que foi como é que a gente poderia se organizar. Naquele dia ele me pegou com essa pergunta. Sei que é preciso, mas não sei como. Eu preferi dizer assim: “Eu acho que em Recife não existe uma cena, existe uma comunidade”, é aquele papo, da comunidade dos sem comunidade. É uma comunidade de singularidades. A galera faz música, faz bem, e tem coisas a dizer. Eu preferi dar essa fragmentada e na mesma época veio essa identificação. Como se fosse assim: “Ah, não vai dizer não? Então,
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Rodrigo Édipo: Pela lógica de imprensa tradicional, existe um espaço reduzido. Não é uma coisa que pode ser muito aprofundada. É como se fossem produtos em prateleira mesmo. A gente tem que explicar quem é essa galera. A gente precisa de um rótulo pra explicar. O que eu queria chamar atenção aqui, é que a gente começou a falar de cena e automaticamente a gente começou a falar em criação de cena. Como se fosse uma coisa antinatural. A gente tá falando de música, primeiro, de organizações que são orgânicas entre músicos, de espaços onde as pessoas circulam, onde a música acontece. A cena Beto, por exemplo, passou a existir porque se criou o nome cena Beto ou ela já existia? Senão, a gente fica associando isso a uma estratégia de marketing. Eu não tenho uma resposta pra isso, porque eu realmente não sei. Esse conceito de cena é muito metafórico. Eu não sei o concreto: “o que é uma cena, quais são as pessoas que fazem parte de uma cena?” Mas pelo o que eu acompanho há um bom tempo, a cena Beto hoje não é o que eu imaginava ser a cena da galera. Porque eu já vejo outros nomes lá, que foram inseridos na criação. No racional, de criar a cena para aparecer na indústria cultural, para criar o CD da coletânea O.N.I. para vender. Eu
enxergo muito a organicidade da história acontecendo independente de pensar-se em vender, independente de mercado. É um convite pra a gente pensar a noção de cena antes disso tudo. Acontecia essa cena antes? Porque Ricardo falou, o retorno da coletividade, o retorno de... o retorno de nada, velho! Tudo tava acontecendo. Só que agora tá aparecendo no jornal.
uma hora para a outra as coisas vão se desgarrar. O mais importante disso é a gente estar quebrando barreiras e querendo trabalhar no estado e na cidade. Qual era o movimento de todo mundo daqui do Recife? É sair do Recife. É você ir pro Rio e pra São Paulo. Até essa turma do indie, muita gente parou de tocar mesmo porque não tinha mais estímulo pra tocar na cidade. E a galera que tá ainda insistindo nisso, tá em São Paulo. Essa turma que ficou por aqui. Que não tem condições de ir pro Rio e São Paulo, porque a gente sabe que não é bem assim. O cara não vai chegar lá e ter uma estrutura nem de aluguel, nem pra comer. O interessante é a gente perceber essa vontade de mudar a partir da cidade, é o grande diferencial de cena Beto, da cena Pernambuco Contemporâneo. É legal ter essa vontade jornalística e notar que em Recife tem acontecido muita coisa. Até a turma de pagode, os MCs que misturam funk com brega tem uma cena foda aqui. E eu fico puto porque fica essa repartição, segmentação de gosto. A gente devia pensar nessa cadeia de música, em festivais muito mais plurais.
Ricardo Maia Jr.: Mas outros valores foram agregados. Tinha a turma do Desbunde Elétrico, que é o maior núcleo dessa galera que faz parte da cena Beto. Mas muitas outras pessoas entraram e começaram a trabalhar com isso, o que trouxe um valor maior. Essa coisa de você diversificar mais o produto. Eu não acho que seja independente do mercado. A gente pensa muito no mercado mesmo. Como é que a gente pode atuar, e como a gente pode se livrar de vários gargalos de produção. Rodrigo Édipo: Mas não tem uma cena da rua, da garagem da galera acontecendo, independente de estar pensando isso? Então, por que a nova cena do Recife é a cena Beto?
Caio Lima: É uma epifania que rola entre a tentativa de se institucionalizar, de criar, de ter esse espaço, e ao mesmo tempo aquilo de que o artista é um marginal, um nômade. Uma coisa que eu conversava há muito tempo, porque eu estava pensando numa multiplicidade e depois vem com uma hierarquização. Quando se elege uma coisa, todo mundo começa a se classificar e a se identificar. Isso cria novas relações de poder, de troca e saber entre os grupos. Isso me atingiu muito bem, no sentido da reflexão: “foi massa, é necessário”. Hoje eu vejo assim: foi necessário, talvez seja um desdobramento até da MI.
Ricardo Maia Jr.: Eu não acho. Se a gente for ver nesse espaço de tempo, já surgiu Tsumangue, cena Beto, Pernambuco Contemporâneo, que rendeu uma matéria no El País. Já saiu agora uma cena Brega em Recife, com Claudio N. São várias tentativas de criar, e isso é do caralho, porque em Recife existe uma pluralidade foda. E tem uma galera que está mais envolvida com outras mesmo. Tem gente que circula mais por um grupo, entre vários grupos. O interessante é a gente ver, ter uma vontade midiática de retratar isso, do que chegar o termo global que virou o Mangue. É muito melhor do que se viesse um termo novo que englobasse todo mundo, e ia ser muito mais incômodo para muitas pessoas que fazem um trabalho que não iam se identificar. Por mais que o termo seja abrangente e lindo, vai ter gente que não vai gostar.
Ricardo Maia Jr.: Têm várias movimentações, Recife Lo-fi foi importante pra caralho. Várias coisas aconteceram. Rodrigo Édipo: A minha preocupação é mais, no sentido de existir uma movimentação, e a partir do momento em que
Rodrigo Édipo: Justamente por ser abrangente.
Ricardo Maia Jr.: O próprio Beto, tem gente que não gosta. Isso é normal. De 17
se cria algo pensado para essa organização que é natural, fecha-se num grupo e exclui pessoas que participavam dessa movimentação.
conseguindo os espaços. O que é mais interessante é isso. A cidade precisa desse tipo de afirmação por parte dos artistas. Se a gente for analisar essas cenas que já existiram, a questão da destruição criativa mesmo. As coisas se transformam. A própria imprensa cria hoje pra ela mesma botar por cima amanhã outro, um novo. Porque é parte, criar o novo. Novo Recife. Enfim, nova cena, habemus nova cena. Até os termos fazem parte desse vocabulário. Os artistas estão certos. Agora, essa
Caio Lima: Essa lógica excludente é o maior desafio mesmo. Porque essa lógica faz parte desse reconhecimento enquanto grupo. Ela vai acontecer naturalmente, e quem tá de fora vai sentir o medo da exclusão. Existe esse medo da exclusão e existe essa organização que vai ficando cada vez mais segura de si, porque vai
tática vai ficar cada vez mais complicada, porque essa tentativa, a gente não deixa de ser nômade. A gente toca nos festivais, mas os festivais são de ano em ano. Tem três festivais. A gente não tem lugar pra tocar. Do caralho que é a Temporada Beto, talvez isso crie uma especulação que a gente consiga abrir espaços com a proliferação de cenas também. Carlos Gomes: Como Rodrigo estava falando, você tem uma movimentação artística natural e gigantesca, e artificialmente se criou a cena Beto. A cena Beto consegue um espaço na mídia que faz com que ela toque no Festival de Inverno de Ga-
ranhuns, no Coquetel Molotov e por fim uma Temporada Beto no bar Boratcho. O problema é de isso se tornar predatório. Vamos dizer: Rua e Glauco se juntam com mais um e fazem uma cena minimalista, e aí conseguem uma pauta no Jornal do Commercio, o cara banca aquilo: “Não, isso é a cena minimalista do Recife”. Daí Zeca Viana consegue de volta o Recife Lofi e a cena lo-fi, e aí você vai ficar criando coisas que vão ficar predatórias. Ricardo Maia Jr.: Mas isso é o mercado.
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Carlos Gomes: Sim, é mercado. Mas se a gente quer criar um mercado autossustentável no estado...
Juliano Holanda na Temporada Beto que eu achei interessante.
Ricardo Maia Jr.: O grande problema é a sabotagem.
Ricardo Maia Jr.: Acho que vocês estão com uma ideia muito romântica de cena, com essa coisa de polarizar natural com artificial. O que é natural, ficção e real? A nova história já tá contando isso há muito tempo. Eu acho que a grande graça é as pessoas saberem conviver. Agora, como é que se convive. Tentando pelo menos evitar as sabotagens. Isso é que é o mais problemático. Isso já parte pra ética de cada
Carlos Gomes: A cena Beto tem que entender que – a cena minimalista, cena o que for – é como se não existisse essa cena. A gente cria porque o mercado nos pede isso.
Rodrigo Édipo: A estética é colocada de lado pra se conseguir um espaço que é quase fictício. Às vezes eu enxergo isso. Por outro lado, teve uma participação de
“O que é problemático é de você se fixar numa rotulação que vai acabar criando conflito.” Carlos Gomes lêncio total, nunca mais vão falar desses músicos.
grupo.
Carlos Gomes: O que eu acho mais forte da cena Beto, na verdade, é o Desbunde (Elétrico), que é você organizar o seu festival sem precisar de produtor. Recife, Pernambuco como um todo, é refém disso. Mas o que é problemático é de você se fixar numa rotulação que vai acabar criando conflito, como aconteceu com Claudio N. Na semana seguinte, em que ele diz: Não. Não quero cena Beto, O Globo já cria outra cena: cena brega. Aí, já inclui Claudio N; e cena é construção de sentido. Não adianta o Globo fazer uma matéria, depois de algumas horas de telefone, e psiu, si-
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Ricardo Maia Jr.: Eu acho impressionante esse medo da galera de ser esmagada, como se essa cena fosse a solução de tudo, também. Como se uma coisa anulasse a outra. Eu não vejo dessa maneira de jeito nenhum, velho. Se algumas pessoas que estão dentro do grupo não têm ética, quem vai dizer isso é o tempo, se esses agentes ficarem tão poderosos e começar a censura. Tem gente que vai sabotar porque ele quer ambição. A galera do Desbunde já traz essa experiência que você (Carlos) falou, de fazer por si mesmo; eles já criaram,
dentro deles, um grupo, e estão expandindo esse grupo. Eles eram fechados numa galera bem mais restrita, com quem eles tocavam – apesar de que eles abriram um festival em que várias pessoas tocaram, desde Anjo Gabriel, Ex-Exus tocou lá, antes de estar envolvido.
da individualidade dentro do grupo, dentro da cena. Se é uma coisa que preocupa vocês ou não, porque as pautas são cena Beto, e as pautas da cena Beto são Juvenil. Eu queria saber como é que fica essa relação dentro da cena. Ricardo Maia Jr.: Eu não me incomodo, porque o trabalho com o Ex-Exus não acho que seja engolido. O trabalho de ninguém é engolido pelo coletivo. Quando o coletivo engole o individual vira o Fora do Eixo. Nenhum artista despontava, só os produtores. Você meio que se priva um pouco da sua individualidade. Um dos motivos de Claudio N. querer sair era isso. Ele ficou com medo do discurso vir como se fosse o dele. Eu não me incomodo com isso, porque isso é o grande jogo midiático.
Rodrigo Édipo: O que eu fico achando em relação à criação dessas cenas é que os artistas passam a, com o tempo, perder a individualidade deles, porque – pensando que o cara só existe quando sai na mídia – se a mídia só pauta como cena e não como “Rua”, “Ex-Exus”, como... sei lá... “Juvenil” – essa parte mais individual e estética da banda, ela se perde. Eu ando no meio do pessoal e eu escuto muita gente dizendo: “Essa galera da cena Beto é muito otária. Essa galera da cena Beto não-sei -o-quê”. Só que essa galera da cena Beto não existe, é abstrato! Tá ligado? Tipo, eu fico: “Como assim?”. João Marcelo não é otário. Ricardo não é otário. Entendesse? É um questionamento que eu boto pra tu: a gente vive uma época em que você pode gravar um vídeo e bota no Youtube, por mais que você não tenha tanta reciprocidade com o público, mas você prefere se fechar num grupo ou formar uma cena de discurso único para aparecer no Globo, entendesse? Como fica essa situação
Rodrigo Édipo: Como se tivesse valendo a pena, né? Ricardo Maia Jr.: Tá valendo a pena porque a gente ainda não é um grupo, digamos, conhecido. Ex-Exus já saiu várias vezes Jornal do Commercio, no Diario de Pernambuco, com as produções que fez do EP. Mas é uma força muito maior quando você junta isso. Não só numa perspectiva midiática, mas de produção. Rodrigo Édipo: E tu, Caio? Porque, no caso, a Rua não faz parte de uma cena, né? Deve fazer, mas não como: “nós somos uma cena!”. Eu queria saber como tu vê isso. Essa questão da individualidade da banda, dessa busca do discurso puro, sabe?
“O trabalho de ninguém é engolido pelo coletivo. Quando o coletivo engole o individual vira o Fora do Eixo.” Ricardo Maia Jr.
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Caio Lima: Na Rua, eu não sei também, porque muita gente diz “cena minimalista” – como tu (Carlos) dissesse, hipoteticamente – mas a gente não é minimalista. A gente “está” – vamos dizer assim. A gente, por já ter um contexto desterritorializado, por Yuri e Bruno morarem fora, que são dois pontos de reflexão muito foda dentro da banda. Bruno é produtor, músico quando pode... Mas a gente conversa muito sobre estética, política... Mas assim, eu sempre pensei em agregar mais, já por essa condição de estar tão distante dentro da própria banda mesmo, a gente se vê num abismo, tipo, “caralho!”. A gente não consegue sair. Eu acho que tem a história da gente, também, ser uma banda que sai de um contexto da universidade. A universidade tem este problema, as pessoas não fazem música lá dentro. Não tem uma discussão sobre música. É uma discussão tipo século XIX. A gente tentou sair com o pensamento mais de agregar, cada vez mais. Até que essa história da cena é uma surpresa dentro desse contexto de organização, que ia ser plural, sem identificação.
cultural, que Hugo Medeiros chama de “síndrome de Elvis Presley”. E a gente tava nessa lombra. Mesmo com a experiência aqui, não-sei-o-quê... mas a Rua era um projeto que, tipo: “Porra, isso aqui eu tô gostando de fazer. Porra, vai ficar um disco legal”, e a expectativa que retornava, massa. O negócio foi crescendo, aí: Coquetel Molotov. O show foi uma bosta, eu achei, tá ligado? Foi um show bem inexperiente.
Carlos Gomes: Nesse caso de ocupação de espaço, não se pode pensar o Coquetel como um vertical. Se você pensa o Coquetel e o Abril pro Rock como um vertical, que chegar lá, acabou. Rodrigo Édipo: Acabou. É como se tivesse alto demais. Ou sobe mais, ou cai e morre. (risos) Caio Lima: Não. Então...
Carlos Gomes: ...tem que pensar o Coquetel como horizontal, que aí dá certo. Rodrigo Édipo: Como mais um, né?
Caio Lima: Pronto. Isso aí foi uma experiência que a gente teve depois de tocar lá. Ou se não tivesse tocado, analisando: “Pega esse figura que tocou lá e vamos ver a trajetória dele”. Talvez a gente pudesse chegar nessa mesma conclusão. Mas, pra gente que não tinha tocado em lugar nenhum, só no Teatro da UFPE, no Quintal do Lima. “Porra, do caralho, velho! Agora o negócio vai rolar!”. Seis meses sem tocar, velho. Embora, aí que a internet é foda, aquilo continuou girando lá, então virou uma... A virtualização se fazendo lá, e a gente lá naquele buruçu, lá. Mas, físico mesmo, tocar, velho. Não aconteceu nenhum convite, tá ligado? A gente falou assim: “Olha, velho, vê só, a gente vai ter que tocar.”. Então, a gente já começou a criar já outras relações. Ia no teatro com projetos: “Meu irmão, a gente pode tocar aqui no Teatro Arraial?” E pode. A gente foi vendo que isso dava um resultado legal, sim. A internet tá aí pra ajudar nessa massificação recortada, bem doida, mas esse lugar precisa ser criado de uma escuta que desse pra uma memória. OC
Ricardo Maia Jr.: Essa coisa de cena é engraçada, porque ela dá um sentimento meio paradoxal mesmo. Tanto de ser uma coisa cômoda, de você estar envolvido com várias pessoas, mas que às vezes engole o seu discurso, como acontece com banda, também. Isso é natural... Caio Lima: Mas as pessoas não estão vendo nem o discurso, mesmo, da cena, sabe?
Ricardo Maia Jr.: ... e tem isso da agonia, também. De você, às vezes, se sentir agoniado por sua individualidade. Então, tem que aprender a conviver com isso, né? (risos)
Caio Lima: Quando a gente tocou no Coquetel Molotov, passamos seis meses, velho, sem arranjar um show. Aí, eu pensei... Rodrigo Édipo: Que bosta, né?
Caio Lima: ...“Meu irmão, que bosta, velho!”, tá ligado? “Que tremenda bosta!”. Não o Coquetel Molotov, mas a expectativa que se faz em torno de uma indústria 21
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aninha martins
O impacto que é assistir aos shows de Aninha Martins, sua expressividade, a naturalidade com que se arrisca ao cantar, doando-se sem medida num metro de palco rodeado de barulho que seja, ou no mais profundo silêncio daqueles que esperam da música uma revelação, tem na expressão catártica que emana das vozes do corpo dela, um dos muitos sentidos a que podemos atribuir, sem medo, do que seja a arte. A conversa que tive com ela me revela o quanto há de vontade inata na busca pessoal e autêntica de seu caminho. No entanto, são tantas as possibilidades de caminhada, que fica o receio de que ela, de alguma forma, se perca. Mas desconfio que em 2014 o talento de Aninha a levará a palcos bem maiores, com espaço suficiente para “cantar somente o que não pode se calar”. por Carlos Gomes.
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entrevista
Foto: Renata Pires 29
Relembrando os teus trabalhos musicais anteriores, no caminho que você fez até chegar aqui, estando prestes a gravar as tuas primeiras músicas com a assinatura Aninha Martins. Teve algum momento ou projeto que foi decisivo pra esse momento que você passa agora? Sim. Pelas várias experiências, na verdade. Primeiro o Sabiá Sensível, que foi bem libertador pra mim. Porque eu era muito tímida. Então, tinha a energia do povo (músicos da Sabiá) que era muito pra cima, e eu acabei gostando da linha de pensamento. De ter o erro na brincadeira, de ser livre para cantar como eu quero. Ser uma coisa animada, rock’n’roll, e muito canção. E os dois projetos que eu participei e que mais me representaram foram D Mingus e Matheus Mota. Matheus me deu a escola de cantar músicas com dificuldade. Depois do Conservatório de Música é que eu comecei a pensar nas músicas com dificuldade. Mas também foi decisivo porque é meio preso. E eu preciso soltar mais, sabe? É tanto que a gente acaba mesclando, porque Matheus é mais introspectivo e eu mais solta. Da mesma forma com D Mingus, que também foi ótimo, porque eu conheci o povo (novos músicos). E também vi a diferença de ele ser bem introspectivo e eu pra fora. Eu tenho medo também, sinto um pouco de receio de aparecer demais. Foi decisivo para eu assinar com o meu nome porque eu gosto de expansão total, já sei disso, e eu preciso desenvolver essa linguagem mesmo. E também pegar a vibe da canção mesmo. Eu quero dizer as palavras mesmo e quero que as pessoas entendam o que está sendo cantado, não por nada mesmo, sem crítica, sem nada, mas...
Você acha que esse é o momento certo de lançar o primeiro disco? Ou pensou em aguardar, continuar mais um tempo com D Mingus e Matheus? Com D Mingus eu já não estou mais, a Kazoo Orquestra, onde eu tocava, deu uma parada pra entrar o projeto eletrônico dele, o Fricção. Mas eu vou continuar com Matheus porque ele me bota num outro lugar. Que é exatamente o da dificuldade da canção. Da estrutura musical mesmo. Foi como uma escola pra mim. É complicado cantar o que ele 30
Aninha Martins integrou a banda Sabiá Sensível (criada em 2007), que unia música e performance em suas apresentações. Em 2012, participou da gravação do álbum Desenho, de Matheus Mota, e Canções do quarto de trás, o segundo álbum do músico D Mingus.
faz, e agora ele já pensa mais em fazer pro meu tom. Fazer pensando em mim. Eu peguei as canções que ele pensava com a facilidade dele. Então, era muito complicado pra mim, para cantar. Eu tive que aprender corporalmente a cantar isso. Era muito agudo, muito grave. Com Matheus eu vou continuar, D Mingus deu essa pausa, o Sabiá acabou. Tiveram os outros projetos que eu participei, o Malvados Azuis, mas foram curtos.
que Karla e eu fizemos, porque ele me deu a música feita, instrumental, e mostrou pra Karla, aí eu fiz a letra e ela também, aí acabou juntando. A gente também se encontrava pra ficar compondo. Eu fazia aula de reforço com ele, de Teoria Musical, quando eu queria entrar no Conservatório. Aí ele dizia: “Traz melodias para a gente solfejar”. Aí eu trazia. “Pô, isso aqui...” (solfeja uma melodia) “Oxe, é uma música, vamo fazer?”. Aí a gente fazia. Que era mais canção mesmo. Ele trabalha na parte da música mesmo. Você ainda estuda lá? Não, não estava dando pra conciliar com as outras coisas. A faculdade de Filosofia também. Eu estudava canto popular. Eu também cansei um pouco. O professor era de lírico, então, ele não conhecia nada de música popular. E foi na hora que eu mergulhei na música popular brasileira, que eu pesquisei bastante. Daí esgotou, porque eu tinha que levar o material para ele ouvir. “Ó, isso aqui é uma gravação de Rpm da Casa Edison”. Ele não sabia o que era e não tinha o que dialogar. Ele me dava a técnica. Pronto, eu parei de cantar com dor. Ele me ajudou nisso. Quando eu cantava no Sabiá eu ficava com muita dor na garganta. Não sei se é porque eu precisava soltar alguma coisa. E agora eu não sou tão tímida quanto era antes.
Como será o repertório do primeiro trabalho? Está decidido ser um EP mesmo, um disco? Vai ser um EP. Podemos pensar num EP, mas não sei se no formato cinco músicas, pode até ser sete. Mas não vai passar de sete músicas, vai ser um micro-disco (risos). Não sei se isso existe... Um disquinho (risos). Depende de minha condição financeira, porque quero fazer no estúdio, certinho. Então, você não fechou o repertório ainda? Não, mas eu já tenho algumas músicas. “Faz ideia” vai entrar. “Sábio Satanás”... Quais são os compositores que estarão nesse primeiro trabalho? Os principais para essa tua estreia. Vai ter a minha parceria com Vina. Ele com certeza como arranjador. As músicas que vão aparecer são minhas e dele. Karla Linck, que também participou do Sabiá, Germano Rabello e Hugo Coutinho, que tem “Faz ideia”. Pronto, são esses quatro. Com eles, você trabalha mais ligada à letra, melodia, como é sua participação? Vina ele entregava a melodia pronta, entregava uma música instrumental. Me deu de presente esta: “Depende da letra”, que é uma música
Nos seus shows, o canto cumpre quase que uma função de catarse artística, explosiva, e extrapola, algumas vezes, o teu próprio limite vocal. Você chega a terminar os shows com a voz rouca, né? A maturidade no canto é tentar um equilíbrio entre a técnica e a emoção? Acha que naturalmente vai conseguir 31
Nessa relação entre performance, corpo e voz, a tua atuação com o teatro tem interferido de que maneira? Exatamente depois que eu descobri essa nova linha de se fazer, de se poder cantar, botar as energias para os membros e que eles se expandam de uma forma... Eu queria crescer nisso, tanto que eu queria fazer projetos de pesquisa. Eu não queria fazer projetos pra gravar discos, essas coisas assim. Porque a minha grande história é o palco, né? Eu quero ir pro palco, eu quero formar espetáculos, na verdade. Que eles caibam teatralmente. É tanto que eu estou com uns projetos de monólogos musicais. Mas é uma história mais pra frente. Eu quero buscar uma maturidade para que eu não morra, crie um calo na minha voz (risos).
Como é o seu diálogo com os músicos sobre essas coisas que você está pensando, como a pesquisa do canto com o corpo. Como eles reagem a isso? É bem difícil... Eu não sei se é difícil, porque é outra vibe. Eu não sei se eles não conseguem acessar as coisas que eu estou acessando. Eu treino três, duas vezes na semana o corpo com Marina Duarte, de forma intensa. A gente treina energia. Que é uma coisa bem ligada ao corpo mesmo. Eu acho que é a dificuldade mesmo de entender, sabe? É essa minha necessidade de explodir, de dar tudo... Quando o lugar do ensaio é pequeno, eu fico claustrofóbica. É tanto que lá no Boratcho eu fiquei muito incomodada com o aperto. O povo fica dissociando, pensando que voz só sai da garganta e não, tem todo um entendimento... Qual a região que eu quero projetar? Eu também estou trabalhando, não sou expert nisso, mas agora eu já penso de outra forma na voz. No Conservatório eu era muito técnica, era só uma linha. E agora, nessa 32
"No Conservatório eu era muito técnica, era só uma linha. E agora, nessa vibe que eu estou fazendo é o corpo inteiro."
atingir essa maturidade? Eu tento... Eu quero atingir isso. Mas eu estou pesquisando uma linha vocal da galera do teatro Lume. Que eu fui tão técnica no Conservatório... Tipo: cantar baixinho, cantar... E agora que eu fiz uma oficina com Carlos Simeone, do Lume, aí ele deu uma outra noção de voz, que é a voz corporal. Em que a energia vocal sai por todo o corpo. E como eu não tenho essa maturidade de colocar a voz inteira no corpo. Pode ser que eu queria atingir isso...
vibe que eu estou fazendo é o corpo inteiro.
Então, o seu primeiro disco sendo guiado pelos shows, com a relação entre voz e performance ao vivo muito presente em teu trabalho. Como você pensa em resolver esse problema para gravar em estúdio? Exatamente. Esse é o meu grande problema com a gravação, por isso é que eu acho que estou levando tanto tempo pra gravar mesmo. Pra mim é muito difícil fechar esse conceito, já que no show eu posso ser muito plural, eu posso cantar qualquer coisa, e posso errar... Mas eu sinto que eu deva gravar porque eu acho que o momento está bem propício. E está bem acessível, tá vindo um monte de coisa. Um monte de gente me mandando coisas.
Você pensa o disco como um portfólio para você fazer o que mais gosta, que é tocar ao vivo, ou também pensa o disco como uma obra artística? É uma obra artística também, mas está vinculado à possibilidade de eu me apresentar em outros lugares. Mas, ao mesmo tempo, eu estou fechando uma história, um conceitozinho, que pode ser EP ou disco, mas vai fechar nessa cara. É tanto que eu quero trabalhar outras coisas depois. Trabalhar música brasileira, ritmos brasileiros antigos com outras linguagens, eletrônica, pode ser... Não sei. Esse formato será rock’n’roll interpretativo. Bem catártico, essa vai ser a linguagem. Já tem uns cinco discos prontos, esse vai ser o primeiro (risos). (risos) É... Eu tenho vários pensamentos. Não sei se eu ponho umas canções mais lentas. Mas eu acho que vai ser da vibe mais agitada mesmo.
Foto: Renata Pires
Você gravará duas músicas com Isaar dentro do projeto Dois Sons, do site Outros Críticos. Fala um pouco de como conheceu as músicas dela. Eu conheci Isaar no Ensino Médio, quando Anaíra (Sabiá Sensível) era muito amiga de Isaar. E ela tinha me emprestado um disco do Comadre Florzinha. E eu tava nessa época em músicas populares, regionais, então, eu viajei bastante. Aí acabei comprando o Azul Claro (2006) quando ela lançou. E foi um disco que eu ouvi bastante. E quando eu vi a música “Azul Claro”, de Paulinho do Amparo, e 33
ele gravou Sabiá Sensível. Foi essa conexão. E eu acabei gostando muito, eu até queria que ela autografasse o meu disco (risos). Eu conheci Isaar nessa época mesmo.
O que pensa a respeito sobre cenas musicais? Como você enxerga uma cena musical? E daí você pode falar: cena Beto é uma cena musical, um coletivo de artistas? Um grupo de amigos fazendo música... O que você pensa a respeito sobre a ideia de cena? A minha vivência com essa “cena”... Acho que é um monte de gente que faz música e se junta pra tentar ocupar espaços. Essa é a cena Beto ou a tua ideia de cena musical? A minha ideia de cena é essa porque eu “vivo” dessa forma. Eu nunca li nada a respeito sobre isso, eu sei que há vários teóricos sobre cenas musicais, mas eu nunca li nada a respeito. Eu acredito que a cena Beto seja um coletivo de pessoas amigas – é bem ignorante isso que eu estou dizendo, mas é realmente o que eu vivo – que se juntam para fazer música. Não precisa nem ser amigo, mas se juntam para ter a oportunidade de tocar. Abrir espaços. Porque é tão difícil depender dos veículos do Estado. A temporada Beto no Boratcho cumpriu esse papel, ou o que tu esperavas que ela cumprisse? Ela cumpriu no sentido de ocupar um novo espaço na Zona Sul, que a gente nunca foi... Eu nunca toquei lá. Mas eu acho... Eu nem queria comentar sobre isso... Sei lá, foi meio às pressas, eu senti. A gente podia ter pensando melhor com relação a isso. Algumas vezes foram equivocadas, meio caóticas. As edições, você tá falando? É, as edições. Eu acho que realmente não é aquilo. É mais não é. A gente podia pensar mais, elaborar mais. Ter um compromisso mesmo com o público. O ouvinte. Um som melhor, talvez. Você acha que ficou só na ocupação de espaço e a música em segundo plano? É. Um pouco, um pouco. Foi todo mundo muito verdadeiro. Todo mundo na intenção de fazer uma coisa massa. Mas acho que poderíamos esperar mais. Uma pressa louca nossa de tocar. Pode até ser que seja isso. 34
"Eu acredito que a cena Beto seja um coletivo de pessoas amigas que se juntam para fazer música."
Foto: Renata Pires
O lançamento do disco solo e a colaboração na banda de Matheus Mota serão os seus principais projetos para 2014? Sim, serão os dois principais. A tua ideia é continuar nesses agrupamentos, por exemplo, ter uma nova temporada Beto e você também estar lá? Ou você pensa em circular mais como Aninha Martins, independente de grupo ou coletivo? Eu quero rodar, tocar em alguns lugares. Mas não precisa ser em todos os lugares. Preciso que respeitem a minha proposta de palco. Que seja amplo para eu poder dar realmente o que eu posso dar. E também queria trabalhar com outros músicos. E ter a minha banda, formar mesmo. Porque saiu o baixista e entrou outro. Então, a gente está organizando novamente tudo. Eu queria trabalhar também com outros músicos. Os meninos da Rua, que eu conheci agora. Mateus Alves, Chambaril. Queria também conhecer novas pessoas que trabalham com música, pra não ficar só presa à cena Beto, mesmo amando e sendo todos meus amigos. Eu também quero descobrir novas linguagens musicais. No meu projeto, eu quero passear, dar uma rodadinha. Vamos ver como a gente consegue.
Durante a produção do disco você vai continuar fazendo shows? A ideia é conciliar os dois? Sim. Não vou poder parar. Agora estou querendo buscar, realmente, esse amadurecimento cênico, mesmo. De espetáculo. Não posso mais parar. Tanto que estou me preparando para isso, pois, para a linguagem que estou tentando desenvolver, eu preciso muito de fôlego. Então, eu tenho que treinar, estudar voz, trabalhar o corpo mesmo. Eu quero bem libertador. Que eu saia com a sensação que eu me doei bastante. Eu tinha muito uma sensação – de quando eu era backing vocal – sempre, que faltou muito. Que eu poderia ter dado muito mais. Agora, eu quero sair com a sensação de me esgotar. Depois eu durmo, descanso e retorno. OC 35
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isaar A cantora e compositora Isaar vem construindo sua trajetória artística de uma forma eminentemente autoral. Cada canção, arranjo, escolha estética, tem a mão firme da artista que, ligada às tradições culturais de sua terra, tem procurado ampliar sua musicalidade, sem que isso signifique virar as costas para o passado. O álbum “Azul Claro” foi, de certa forma, um marco nesse caminho. As primeiras audições de “Todo Calor”, sua sonoridade pop, com pequenas invenções no arranjo, sobretudo pela presença do trombone como estética do álbum, tem tudo para se tornar um novo marco para a cantora. A nossa conversa teve como foco o seu novo disco. Ao tratar sobre esse novo filho, questões como editais culturais, rádios públicas e o mercado local vieram à tona. por Carlos Gomes.
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entrevista
Foto: Diego di Niglio 39
Imagino que cada vez que você lance um trabalho novo ponha-o em perspectiva com os antigos. Já consegue perceber as principais diferenças entre “Azul Claro” (2006), “Copo de Espuma” (2009) e “Todo Calor”? Claro, a gente já percebe a diferença. Eu nunca vou conseguir fazer um disco igual à Azul Claro, e espero também não repetir a dose com Todo Calor, porque são processos de vida mesmo. Cada disco é uma expectativa muito grande do que vai acontecer a mais. Então, acho que continua sendo um disco de banda. O meu primeiro disco é um disco de banda. Foram pessoas que eu juntei pra trabalhar comigo e que fizeram parte de todo um processo até construir Todo Calor. Este repete a fórmula de ser um disco de banda, que era uma coisa que eu queria me desvencilhar, pois eu queria fazer um disco mais livre; chamar músicos, um arranjador, mas ainda não rolou. Nisso, existe uma semelhança. Diferenças, eu acho que nas composições, numa independência maior, uma liberdade pra compor; porque eu tinha um compromisso – não era uma obrigação –, um amor, com a música tradicional, e eu não queria deixar isso. Eu sinto hoje que eu posso fazer qualquer coisa. Inclusive a música tradicional. Inclusive a música tradicional. Então, acho que é um disco que está mais livre do rótulo que vêm me colocando sempre como “regional”, que é questionável. Essa é a principal diferença, talvez. Depois que o disco sair e eu tiver perto de pensar num novo disco, posso até achar outras diferenças. Quando o trabalho musical é solo, fica mais fácil, do que numa banda, de mudar os músicos e a dinâmica de cada apresentação. Experimentando as novas possibilidades que a experiência dos músicos traz para o show. Como foi feita a montagem do grupo que lhe acompanha agora, e como ela se reflete na sonoridade que você buscou para “Todo Calor”? 40
Conhecida inicialmente por integrar a banda Comadre Florzinha (1997-2004), e participar dos projetos DJ Dolores e a Orquestra Santa Massa (2001) e DJ Dolores e Aparelhagem (2004), Isaar iniciou o seu trabalho solo em 2006, com a gravação do álbum Azul Claro, que teve uma faixa selecionada para a coletânea World 2006 (BBC de Londres). Em 2008, com recursos do Prêmio de Produção do Projeto Pixinguinha, da Funarte, Isaar gravou Copo de espuma, álbum classificado pela cantora como alegre, apesar da "dose de melancolia".
Antes de fazer o disco, eu estava muito mergulhada na cidade. Eu passei um bom tempo sem viajar, sem sair da cidade, morando na Boa Vista. Então, por isso que o disco se torna um pouco mais urbano. Quando eu pensei em colocar o metal no disco, achei a cara da cidade, por conta do frevo, que é uma música bem urbana, e está cultuado o metal, hoje, na música pernambucana. Eu quis colocar metal, além do baixo, guitarra e bateria. É um disco que cada música traz uma história diferente, tanto na própria letra, como ela foi feita. De repente tem um reggae, ou uma coisa mais agressiva. Então, eu não pensei numa unidade.
ela fala de mim. Eu sou assim. Eu falo da cidade, de todo calor que é a cidade que a gente vive. As alegrias e dificuldades de viver numa terra quente como a nossa, as relações, tudo isso numa afirmação minha de ser o que eu sou. Então, o disco tem isso. É uma maneira de dizer: “Agora eu estou mais confiante ainda”. É um processo de confiança. Faz o primeiro disco, e respira: “É isso mesmo”. Faz o segundo. Dá pra fazer o terceiro. Esse disco é bem isso. Mas, musicalmente, “Todo Calor” é uma música alegre; o disco é pra cima, mas tem uns toques de tristeza e melancolia, mas que é natural. Um momento mais tranquilo.
A faixa ‘Todo Calor’, que abre o disco, ela sintetiza, tanto do ponto de vista pessoal, do que você fala na letra, quanto sonoro, desse momento que estás agora, que queres mostrar nesse disco? Ela é síntese porque é uma música bem afirmativa. Ainda não divulguei a música, mas
Quando eu convidei Berna pra produzir, era mais um ouvinte atento, porque os meninos são muito competentes e a gente teve
Quando você pensou no metal, foi percussivo, de ataque? Porque no teu disco tem um lado melódico forte. Então, o metal está nesses dois caminhos? É. O metal ele é cama do disco. Algumas pessoas colocam teclado, outras cordas, violinos. O metal aparece aí. Mas tem um frevo no disco e o metal aparece atacando, mas na maioria, a função do metal é essa cama, que é bem bacana – que é Deco do Trombone , show de bola nisso. Eu gosto muito do trombone. Em algumas músicas eu chamei um naipe, em três músicas, mas na maioria é o trombone, que acho ter uma suavidade maior.
Ouvindo o disco, eu sinto algo sinestésico. Você houve o disco e sente o calor. Não ouve apenas com a audição, mas com o corpo inteiro. É um disco pra se ouvir com o corpo inteiro. Então, pro carnaval, que está próximo, é um disco pra ir às ruas. Quando começasse a pensar que canções usar no disco, elas pediam os arranjos festivos, esse movimento de calor, que emana no disco? Foi algo natural ou mais pensado, após algumas canções? Foi natural, mas foi pensado quando se imagina em quem vai compor a banda, então as pessoas que estão ali já têm cada uma a sua personalidade, que você escolhe não só a musicalidade de cada um, mas o jeito de tocar, a pegada, que compõem toda uma história, porque os músicos eles estão arranjando tudo.
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uma facilidade nos arranjos. É bacana você ter percebido isso, de ter este sentido. Eu pensei no disco para a rua. É engraçado isso, parece aquele adesivo da prefeitura, “Eu amo Recife”, mas não é isso não, é porque estou mergulhada na cidade mesmo. Eu até brinquei, não é mais um disco regional, é municipal. É um disco que eu quero que a cidade escute. Acho que tem a ver com o que a cidade escuta, e eu não o fiz por conta disso. Eu fiz porque eu também estou escutando o que a cidade escuta. Eu estou no meio do bolo, e acabaram saindo essas músicas. É uma coisa que eu comecei fazendo, e percebi depois que é isso, que estou nesse bolo e quero fazê-lo mais bonito. (risos) Pra mostrar e para o pessoal ouvir mesmo.
Uma coisa que é particular, não só no disco, mas no teu trabalho todo, se a gente for pesquisar sobre a tua música, sempre encontra perguntas sobre o teu timbre vocal, que é muito singular e característico. Se pensa em Isaar, vem logo o timbre, é o primeiro elemento. Eu queria saber se na escolha das canções ou no próprio processo de composição de “Todo Calor”, a tua voz é como se fosse um guia estético pra tuas escolhas. Esse disco é autoral – tem muitas músicas minhas –, mas é também de intérprete, pois eu pego músicas de amigos e compositores que eu gosto. Quando eu escolho uma música – eu prefiro até escolher uma música, a cantar algo meu – porque eu preciso cantá-la primeiro. Às vezes, a música é linda, mas não cabe, não gosto. Eu percebo isso, na minha concepção, o que é que cabe para a minha voz. O que a minha voz acaba representando, o que eu posso cantar que represente bem a história. Mas eu tenho dificuldade de analisar isso pelo pouco estudo técnico que eu tive – ainda tenho. Aprendi a me escutar e dizer: Não, realmen42
"Aprendi a me escutar e dizer: Não, realmente, acho que sou cantora mesmo."
Foto: Beto Figueiroa
te, acho que sou cantora mesmo. Porque essa coisa diferente, mas quando você escuta, aquele medo de acabar seguindo outra cantora... Essa certeza: Esse timbre é o meu mesmo, não tem como eu fugir dele, e é ele que me diferencia, e é por isso que eu estou aqui. Com as minhas músicas é complicado isso. Eu componho e já faço. Eu acabo nem analisando direito. Eu faço isso mais na escolha das músicas que eu vou interpretar. Aí, eu canto com calma. Às vezes é uma música linda, mas não é pra mim. Isso o timbre... O timbre sendo o guia. É.
Eu queria que você falasse um pouco sobre os compositores, dos principais que estão no disco. Pra falar a verdade, eu escolhi mais a música do que o compositor. Tem Cássio Sette. Eu canto uma música dele, só com voz. É bem bonita, curtinha, encerra o disco. Cássio Sette não é conhecido como um compositor, mas compõe, tem umas letras bacanas, e eu gosto muito do que ele faz. É pouca coisa, mas eu gosto muito. Ele me cantou essa música uma vez e gostei. Tem Zizo que é um poeta, também me cantou um monte de coisa. Peguei a mais simples dele, que eu achei muito singela, que tinha a ver. Tem Lito Viana, que é o meu parceiro. Ele musicou um poema de França, que é um poeta de Olinda, que na verdade é um poeta, não tem outras músicas. Ou até tem, mas não era como compositor. Tem Beto Vilares, que é um compositor, mais conhecido como produtor musical, mas eu gosto muito do disco que ele fez, Excelentes Lugares Bonitos, eu gostei muito e tirei uma música desse disco; e Graxa, que eu acho massa as
composições dele, mas escolhi exatamente a única que eu poderia cantar. (risos) É bem pessoal. Bem pessoal, mas é bem bacana. Tem muitos compositores que eu gosto na cidade que nunca gravei. Gosto muito de Ortinho. Tem uma semelhança com Graxa, nessa questão pessoal, de compor.
Na hora de montar o show, tu vai ter que criar um diálogo com as canções dos outros discos. Você já está nesse processo de pensar na turnê, em show? A sorte é que eu montei a banda antes de começar a produzir o disco. Então, a gente vem fazendo shows com as outras músicas e a gente sabe, mais ou menos, o que cabe pra juntar com essa leva de Todo Calor. Tem músicas que caem muito bem nesse disco. Os shows que a gente fez no final de ano, tem muita música do disco, é uma prévia do lançamento. Só estamos guardando uma ou outra. Mas acho que muita coisa cabe, dos outros discos.
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No projeto Dois Sons, do site Outros Críticos, vai ter uma gravação tua e de Aninha Martins juntas. Vendo Aninha, começando agora, você consegue ver a tua carreira no início? Qual o diálogo que tu faz com os artistas mais novos? Eu penso mais em relação às expectativas de artista mesmo, que está começando; a diferença de uma artista que está no terceiro disco, e que também tem expectativas, claro. São começos diferentes, porque quando eu comecei, eu não tinha a expectativa de que eu fosse tomar conta de uma carreira minha. A gente começou com banda, era uma coisa mais leve, em um outro momento que a cidade vivia.
A gente está falando na revista sobre cenas musicais. Por conta da tua trajetória, você pôde perceber diferentes cenas musicais que existem no país inteiro, pelo menos nas principais capitais. Você consegue perceber, na circulação local de shows e no consumo de música em Pernambuco, alguma ligação entre o que acontece aqui e em outros lugares, atualmente? Acontece uma coisa muito boa, e ruim. Muito boa é que, já há algum tempo, uma década, que se produz muito, em todas as partes do Brasil. Ganhei um prêmio, o Pixinguinha, que se premiavam dois artistas por estado, e percebi que a maior parte dos estados tinha boa qualidade. Então, você tem cidades como Salvador, Fortaleza, Natal, Rio de Janeiro, São Paulo, Porto Alegre, Brasília, Goiana, Belo Horizonte, com muita produção musical. Isso é bacana, é fato. O problema é que, em todo o Brasil, inclusive Rio e São Paulo, não tem onde escoar. Não tem. Essa é percepção que eu tenho da cena musical, hoje. Os artistas do Brasil estão aí. Isso dá margem pra surgir um “Fora do eixo”... Coisas que podem ser boas pra alguns artistas. Mas eu acho que dá margem à criatividade... Que pode e deve e vai surgir alguma coisa que salve alguns artistas. No entanto, não tem onde escoar tanta banda. É uma pena. Se 44
o nariz arredondado, os olhinhos jabuticaba,
Mas essa expectativa pra Aninha, ela já começa como “Aninha Martins”, já tem uma responsabilidade como cantora, que eu só adquiri quase dez anos depois de eu ter começado com a Comadre Florzinha, já estar no palco... Então, é um começo diferente pra mim e pra ela. Mas eu acho massa esse diálogo. As expectativas são diferentes, porque a gente vive em épocas diferentes. Esse diálogo é muito importante. Tem uma que já tem três discos e uma que está lançando o seu primeiro disco, mas, principalmente, entender, que todo mundo está no mesmo barco. Todo mundo está com trabalho na rua, pra ser mostrado; e de repente ela consegue um público bem bacana, bem maior. Quem sabe pra onde o vento leva cada uma, né? Eu não tenho essa coisa de que estou em primeiro e quem está vindo depois, vem atrás de mim. Está todo mundo no mesmo barco. Tenho o maior respeito pelo trabalho dela, assim como sei que ela tem respeito pelo meu.
Fragmento da música "Todo Calor" (Isaar). Foto: Beto Figueiroa.
os cabelo pixaim. sou assim.
cada cidade pudesse escoar sua produção, e a gente pudesse fazer mini-intercâmbios regionais. Mas nem isso.
Pensando em rádio, o teu disco, Todo Calor, é radiofônico, no bom sentido, se as rádios hoje tivessem uma curadoria ou uma atenção crítica para a música brasileira. A gente vai ouvir o teu disco nas rádios, ou apenas na Frei Caneca? (risos de Isaar) Ainda há essa esperança na rádio? Sim! Se a rádio Frei Caneca surgir, né? Pra completar, eu pergunto: você acha que todo o processo que gira em torno da rádio Frei Caneca é sintomático de como o Estado vê a cultura em Pernambuco? O que você vê de eficiente, de coisas boas, e de coisas negativas? Não sei. A impressão que dá é que tem gente amarrando as mãos e as pernas da gente. Não sei se é exatamente o Estado, mas a gente tem essa impressão de segurarem de um jeito que não pode... Amarra. (risos) É triste, como você falou, meu disco tem várias músicas – sou eu que estou falando, a maior suspeita –; mas o disco vai sair, e quem ouvir o disco, são músicas que podem tocar na rádio tranquilamente. Em qualquer rádio. Rádio Recife, Rádio Jornal, Rádio Folha; qualquer rádio. Vai tocar? Não sei. Eu espero que toque. Eu queria que a população dissesse... Tem que ter uma passeata, vamos quebrar as rádios. (risos) Pra tocar. A população: “Cadê aquela música?”. Então, eu acho que quando a gente conseguir isso... Que as pessoas escutem aquela música e pensem: porque aquela música não toca? A gente tem que chegar junto mesmo. Todo Calor é uma ebulição de querer que as pessoas ouçam, gostem e liguem: “Ôh, toca aquela música!”. Um sonho meu que eu quero que aconteça. Está tendo um movimento agora dos artistas e produtores para o Funcultura criar um edital específico pra música. A gente pensando em rádio, nessa união dos artistas para que tenha o Funcultura só da música e se fortaleça com isso, você acha que essa união pode levar a agir, como está sendo feito agora, para outras questões como a rádio, por exemplo, ou tu achas que ainda são coisas pontuais? Quando a gente fala do Funcultura, ainda é a questão do Estado, que eu acho váli45
do, porque eu já participei de seleção do Funcultura e quantidade de música é gigantesca. Cinema está bem organizado porque eles foram lá, peitaram e mostraram que tinham um valor. A música deveria fazer o mesmo, está supercerto. O potencial é gigante. Ao mesmo tempo, a quantidade de discos que são produzidos e ficam só na estante dos amigos e parentes; é triste, também, você ver a quantidade de dinheiro dado. Então, o Estado está dando dinheiro pra quê? Isso, acho importante avaliar. Por isso tem que ser casado. O Estado fazer, é importante e necessário, porque se ele deixar de fazer a gente fica sem braço e sem perna, mas eu acho que a gente precisa... Falta o Estado pensar o disco dentro de uma cadeia musical ampla? É. A gente fala: “o disco é um filho”. Você bota um filho no mundo e deixa no berço e vai produzir outro? (risos) Você tem que cuidar, alimentar; tem que botar o disco nas lojas, tocar na rádio... Claro, isso não vai acontecer só porque você fez um disco. Você tem que correr atrás; e tem a empatia com o seu público, o que se consegue conquistar de pessoas, ao redor. Não é também: “Eu fiz um disco no Funcultura e ele tem que me colocar na rádio”. Não é assim. Mas não tem a fluidez, nem com discos que a gente vê que tem potencialidade de tocar e ter um público. Isso é em várias áreas. Aqui tem gente boa em samba, hip-hop, rock’n roll, forró, coco, música pop; há esse mundo de gente boa tentando, correndo atrás. Aí, são projetos, projetos e projetos. Como você falou, será que se a gente se movimentar pra ir à rádio...? A cultura não é feita só de Governo e artista. Tem que chegar na população. Como é que chega na população se não tem rádio? É o que as pessoas tentam fazer: botar um carro na rua e ligar um som, como Roger está fazendo com o Som na Rural. É uma maneira. A gente 46
Foto: Diego di Niglio
"A cultura não é feita só de Governo e artista. Tem que chegar na população."
tem que buscar as pessoas. Elas é que têm que ouvir a gente. Lembro que quando saiu uma matéria sobre os cachês atrasados do Funcultura, muita gente me parava na rua e dizia: “Vocês não recebem, não? Vocês só recebem depois de seis meses?” Era uma prática nossa só receber depois de seis meses e a população não sabia. Todo mundo vai pra show, Marco Zero, acha tudo muito lindo. Ninguém sabia. Então, a gente tem que chegar mais. Todo artista tem que ir onde o povo está. A gente tem que buscar. Eles têm que ser a nossa arma. Foi assim que explodiu o Manguebeat, porque Chico Science tinha isso. O povo que explodiu. O Acorda Povo juntava uma multidão na periferia pra ver Chico Science, Devotos e outras bandas. Então, a gente viveu isso e precisamos disso de novo. OC 47
Canção Crítica
Contemporânea por Carlos Gomes
No campo da reflexão cultural sobre a música popular brasileira, chega a ser contraditório o amplo espaço que os estudos sobre a música alcançaram nas mais diferentes áreas acadêmica do país, se contrastarmos essa visibilidade com o esvaziamento do debate cultural nas mídias impressas, como jornais e revistas. Cursos de pós-graduação em Letras, Comunicação, Ciências Sociais, Antropologia, História, entre outros, têm tido na música brasileira um vasto campo de possibilidades para o desenvolvimento crítico. Seria mais que natural que temas desenvolvidos nessas pesquisas nutrissem as pautas das mídias impressas. Mas não é o que parece acontecer. A pesquisadora e antropóloga Santuza Cambraia Naves (19522012) foi uma das pessoas que dedicou boa parte de sua produção ao estudo da música popu-
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lar brasileira. A autora publicou diversos ensaios acadêmicos sobre o tema. São destaques dessa produção a tese de doutorado Violão Azul: Modernismo e Música Popular (FGV), e os livros Da Bossa Nova à Tropicália (Zahar), A MPB em Discussão - Entrevistas (UFMG) e Canção Popular no Brasil: a canção crítica (Civilização Brasileira), lançado em 2010, em que a autora desenvolve o conceito de canção crítica, segundo o qual, a partir da Bossa Nova, a canção se tornaria “o veículo por excelência do debate intelectual” (p. 20). O músico agiria como crítico das questões culturais e políticas do país, utilizando-se dos discursos eminentes das letras de música, bem como de procedimentos como o da metalinguagem e intertextualidade, paródia e pastiche. É famosa a análise da autora a partir do uso da metalinguagem das canções “Samba de
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"A partir da Bossa Nova, a canção se tornaria 'o veículo por excelência do debate intelectual'." uma nota só” e “Desafinado”, ambas clássicos da Bossa Nova. Para os últimos procedimentos estilísticos que caracterizam a canção crítica, os músicos da Tropicália abusaram do pastiche e paródia nos discos que compuseram, na forma como fundiram os gêneros musicais; de muitas formas, suas atitudes implicaram em comentários críticos sobre a cultura e política da época. Tanto é que o Tropicalismo foi rejeitado por setores da esquerda e direita da sociedade. O implícito da Tropicália não conseguia, num primeiro momento, ser captado como crítica, apenas como deboche, sobretudo se colocarmos essas canções em confronto com a “Pra não dizer que não falei das flores”, de Geraldo Vandré. A Bossa Nova realizou a eclosão para o que a autora denominou como canção crítica, no qual a tríade Jobim-Moraes-Gilberto,
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cada qual à sua maneira, apontava para um tipo de reflexão sobre a música popular produzida naquele momento. Tom Jobim para as harmonias, pondo a canção brasileira num patamar até então nunca alcançado, em quando se dá o encontro equidistante entre a erudição e o popular; Vinicius de Moraes dando à letra o tom coloquial, na melodia que se faz sem excessos, de quem canta no tom da conversa, distante da grandiloquência e tragédias de outrora, mas com uma poética simples e direta; João Gilberto, por sua vez, fazendo uma releitura particular do samba, firmou uma estética a que se convencionou chamar de bossa nova, não como movimento musical/cultural, mas como estilo musical. Tocar bossa nova era, sobretudo, tocar à maneira de João Gilberto. Na obra de Naves, a gênese da canção brasileira vai da modinha
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ao samba, a canção crítica da bossa nova ao tropicalismo, com suas quebras, reconstruções e reaberturas para o excesso. A canção continua pelas demais décadas. Mesmo a se pensar em fim da canção, ou da canção como a concebemos culturalmente; diante desse movimento, o compositor passou a ser também um pensador de sua época, a refletir sobre a música, os contextos culturais 1
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Elefantes na Rua Nova-2011 Vermelhas Nuvens-2013
Os músicos pernambucanos Caçapa e Hugo Linns têm na viola dinâmica a base instrumental para a experimentação de diversas ramificações da tradição musical do Nordeste. É através da viola reprocessada eletronicamente, pelo uso de diferentes pedais de efeito – na busca de uma estética singular – que os músicos aliam tradição e renovação. No site do músico Caçapa, há um extenso conjunto de textos e vídeos que explicam e contextualizam todo o processo de construção do álbum Elefantes na Rua Nova. Nele, é possível perceber o potencial que há para a reflexão crítica sobre a tradição musical, tendo a tradição o impulso para recriação, não como ruptura estética, mas como absorção e releitura a partir das novas ferramentas das quais o músico dispõe. Nos shows de Hugo Linns é possível notarmos a preocupação do músico em colocar a plateia a par da obra, para que a audição não se prenda somente ao entretenimento puro e simples, mas que ao tomar conhecimento do modus operandi das músicas, ela faça uma reflexão, mesmo que sutil, da obra que lhe é apresentada. 50
que a envolvem, bem como reflexões culturais e políticas de cada período, principalmente nos anos de chumbo, articulando, como a autora afirmava, “arte e vida”. De fato, é notório que palavras como censura, debate, provocação, crítica, tradição, modernidade, fizessem parte do vocabulário dos músicos dos anos de 1960-70. Se àquela altura o debate cultural tinha impulso decisivo nos discos, e em alguns jornais, revistas e demais publicações da época, tendo a tevê e rádio papéis de destaque, vide os festivais da canção e os programas musicais. Hoje, é concedido ao leitor comum (não acadêmico) o agendamento pautado pelo excesso de informações de releases, escassez de caracteres e pela falta de ousadia nas pautas. Com isso, há, cada vez mais, uma separação entre nichos de leitores. Diante desse panorama, vale a pergunta: Há quem interessa que os estudos acadêmicos fiquem restritos somente às academias? Que o que sobre para os leitores de jornais e revistas de grande circulação sejam retalhos de reflexões? Mesmo a internet,
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em muitos casos, apenas reproduz os modelos da mídia massiva. Em todo o caso, as exceções não minimizam os problemas da regra. Dado o contraditório da extensa produção acadêmica que não chega às ruas, dos jornalistas reféns de uma política editorial predatória, refletir sobre uma canção crítica evocada da obra de artistas contemporâneos pode funcionar como uma nova forma de reflexão cultural. Compositores como críticos no processo de composição, 4
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Passo Elétrico-2013
Formado pelos músicos Romulo Fróes, Kiko Dinucci, Rodrigo Campos e Marcelo Cabral, o grupo envolve a canção num emaranhado ruidoso que a todo o momento impõe ao ouvinte uma simples reflexão: o que é canção? Passo Torto trata de desconstruir o entendimento padrão da canção. Se o samba do primeiro disco se afirmava por quebras narrativas, com tons de claridade, o elétrico reconfigura o ruído na música, tornado a cidade humana, sexual e violenta. As vozes e gritos nos põem a pensar a cidade, nossas relações. Tanto na construção das letras, como na elaboração dos arranjos e sonoridade do disco, há sempre uma questão posta a refletir, seja cultural, política ou estética. A São Paulo do Passo Torto é desconstruída com um ritmo singular, assim como a canção, crítica desde o seu primeiro pulso.
Batuk Freak-2013
O título do álbum de estreia da curitibana Karol Conká já dá indícios de que a fusão de estilos musicais é um dos principais componentes que caracterizam sua música. É no rap que sua voz destrincha uma verve contundente, sem se deixar levar pelo peso discursivo comum ao rap. A cantora entoa suas ambições e percepções da vida com uma estética sonora pop e dançante. Música que se refaz no palco, onde sua obra se resolve de maneira mais decisiva. O uso do sample é uma característica que enriquece alguma das canções de Conká, em especial a da faixa “Boa Noite”, com o sample de Baianas de Alagoas. Ouvindo as canções de Conká, percebemos uma fusão dos gêneros musicais com vertentes do hip-hop e funk paulista e carioca, com influências internacionais. 51
na disseminação de sua obra, em cada letra ou fusão rítmica, não seria o pior dos mundos se isso ocorresse com maior frequência. De todo modo, acompanhar os músicos contemporâneos que se utilizam de procedimentos criativos que dialogam com o conceito de canção crítica, não é tarefa das mais fáceis, pois é escorregadia, passível de erros ou precipitações, como é, aliás, quase toda a reflexão sobre o contemporâneo, por isso mesmo fascinante. OC
artigo
cachaça rock banchá
por Rafael de Queiroz
Figura menos conhecida da Vanguarda Paulista, Goemon lançou um álbum homônimo que só vim a conhecer recentemente através do músico Graxa, mas que logo que ouvi, me causou deslumbramento. O músico é oriundo do movimento que ocorreu no fim dos anos 1970, mas que também percorreu os anos 1980, e contava com nomes importantes como Arrigo Barnabé, Itamar Assumpção, Grupo Rumo, Patife Band, Língua de Trapo, entre outros. Esse agrupamento pode ser ca-
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racterizado como cena, apesar da profusão de estilos diferentes que cada um carregava na sua sonoridade. Porém, podemos observar uma característica predominante em quase todos os grupos de uma preocupação estética desafiadora em relação a todo o tipo de música brasileira produzida até então, seja na sonoridade, como a presença de elementos da dodecafonia e música atonal em Arrigo, e até nas releituras do Grupo Rumo a grandes compositores da música nacional, dando uma
carga extremamente cosmopolita ao nosso cancioneiro popular; a ironia e acidez também tomam conta das letras de muitos deles, desde a quase cômica “Os metaleiros também amam”, do Língua de Trapo, às críticas sociais mais contundentes de “Nego Dito”, de Itamar Assumpção. Além desse compartilhamento de referências estético-comportamentais — a performance ao vivo desses grupos era um traço marcante —, a cena foi nomeada e mapeada pela imprensa cultural à época; envolvia a demarcação territorial de lugares de um grande centro urbano, como o teatro Lira Paulistana; existia um processamento de gêneros musicais diversos como rock, música erudita, samba, reggae, funk e até pop, e eram marcados por uma forte dimensão midiática. Esse último, apesar de terem sido taxados como malditos, dialogavam com a mídia de uma maneira totalmente oposta ao mainstream: foi aqui que a cultura do mercado independente de discos se consolidou no Brasil. Produziam, gravavam e distribuíam seus próprios discos, sem contar com a interferência das grandes gravadoras, e até foram personagens, além de compositores da trilha sonora do filme Cidade Oculta, de 1986, do diretor Chico Botelho. Rui Mifune, ou Goemon, até fez uma participação no filme citado acima. Ele era o cantor de um karaokê japonês localizado no bairro da Liber-
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dade, sendo isso um dos poucos registros audiovisuais do músico. Goemon era uma lenda japonesa paralela ao Robin Hood, roubava dos ricos para dar aos pobres e tinha habilidades ninja; quando foi preso, foi condenado a ser queimado vivo num caldeirão de água fervente junto com seu filho. A história trágica do herói parece permear as temáticas durante todo o primeiro e único álbum do músico, onde encontramos composições nada tradicionais, junto de temáticas bastante incômodas como um todo. Sua maneira visceral de escrever, mistura crítica político-social, relações amorosas não convencionais, e ataques constantes à moral e aos bons costumes e à falsa religiosidade, misturados a citações constantes ao universo da cultura pop. Há, a todo o momento, um desconforto geral com os moldes da sociedade em que vivia, sendo a mais emblemática “Adeus Vitrines”, seguida pela ótima “Sacana’s Blues” e uma relação direta com o submundo do sexo, drogas e rock’n’roll. O lugar de fala é muitas vezes dado a personagens desse lugar underground que o disco parece habitar: em “Eu senti o cão”, um ladrão justifica seu ato pelo nojo que a vítima demonstrou pela sua pessoa, como se fosse um bicho; “Paola”, uma das melhores canções do disco, quem a protagoniza é um travesti, que além de criticar os valores nucleares da família burguesa, recla-
ma da falta de glamour na vida dessas pessoas e pede a volta de Monroe e Garbo. Até no constante medo que sua vida lhe oferece, como encontrar um Chico Picadinho pelo caminho, ela preferiria que se fosse morrer pelas mãos de um psicopata, que fosse Jack, o estripador, na fog londrina, ao som do Big Ben.
“De porrada em porrada” fala de uma relação que pode parecer contraditória (será?), citando atos de violência e amor: “Um murro na boca, de puro ódio/ Sinto que você me quer”; “A boneca do meu sonho” fala da relação ideal de amor, sexo e poder que mantém com uma boneca inflável, que pode ser lida como uma crítica ao machismo e me soa como uma solução perfeita aos homens que ainda insistem em viver nesse mundo chauvinista: “Depois, você me dá sem frescura/ E eu tomo o que é meu de direito”. Há um tributo ao demônio em “Belzebu, Satan Tinhoso” e uma ironia aos falsos profetas
(ou líderes religiosos) em “Bom Guru”. “Cachaça, rock e banchá” é um resumo do submundo de uma São Paulo — e por que não dizer de grandes metrópoles contemporâneas como um todo? — que Goemon tentou demonstrar e que sempre fora varrida para debaixo do tapete. Nunca reconhecido e sendo, erroneamente, considerado por alguns como música trash, Rui Mifune chegou a morar no Japão por anos, onde trabalhara como produtor e lançava discos de artistas brasileiros exclusivos para o mercado nipônico. Também foi produtor de discos e shows de Itamar Assumpção, na década de 1980. Além do disco tratado aqui, chegou a lançar uma fita demo em 1993, com quatro músicas, batizada de Levemente Perverso. Morreu na cidade mineira de Poços de Caldas, em 11 de junho de 2012 e quase ninguém noticiou o fato. Que agora ele esteja tomando uma cachaça com Satã, do jeito que queria! OC
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resenha
A rústica leveza de um artesão sonoro por Leonardo Vila Nova
A condição do homem diante de um mundo ao qual precisa se adaptar, sem abrir mão do que lhe é essencial. O músico Juliano Holanda enfrenta essa questão existencial de forma ousada, através da música. Em seu segundo CD solo, Pra saber ser nuvem de cimento quando o céu for de concreto (2013), ele quebra seus próprios paradigmas e põe si mesmo – e o grupo que lhe acompanha – à prova, com o desafio de criar uma sonoridade particular, despida ao máximo de qualquer subterfúgio artificial. Um disco de natureza profundamente humana, em todas as suas nuances e sentidos. Este trabalho tem uma distin-
Fotos: Beto Figueiroa
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ção flagrante do seu antecessor, A arte de ser invisível. Juliano assume definitivamente os vocais das 12 faixas do disco, colocando em evidência o próprio artista dando voz às suas ideias. Ao contrário da exuberância sonora do álbum anterior, com um gigantesco time de convidados, entre cantores e instrumentistas, Juliano vem com uma formação enxuta: o indefectível trio: baixo (Areia), bateria (Tom Rocha) e guitarra (Juliano). A única participação é de Mery Lemos (a voz em “Vasta rede” e “A espera”). A escolha por uma formação reduzida já indica o seu desejo de trazer algo diferente do que havia feito antes. Essa busca por outra sonoridade
se reflete no processo de gravação, em que abriu mão de plugins e qualquer tipo de efeito forjado no computador. O que lhe rendeu um trabalho praticamente artesanal, explorando ao máximo as possibilidades naturais de ambiências, sons e texturas dos instrumentos, com exceção apenas das distorções dos pedais de guitarra. Tudo reproduzido no disco da forma como foi captado. O som que se ouve é o som real de cada corda, cada pele. Certo e determinado a mergulhar em ambientes nunca antes explorados, ele se permite a experimentação e, consequentemente, as possibilidades do erro, do fazer e refazer, até chegar a um resultado essencial. E, nesse caso, o que poderia se tornar uma adversidade, ele utilizou a seu favor. Apesar do formato aparentemente simples, Pra saber ser nuvem de cimento quando o céu for de concreto não é um disco fácil. Andamentos e melodias incomuns podem soar inacessíveis a ouvidos virgens, causando um estranhamento inicial. Porém, algumas audições depois, o disco começa, aos poucos, a se derramar nos ouvidos e a se encaixar na audição e compreensão de quem ouve. Isso se deve aos textos de Juliano, que desencadeiam reflexões sensíveis, do ponto de vista poético, sensorial e existencial. São letras essencialmente visuais, que criam e recriam imagens velozes, como o tempo das grandes metrópoles, mas de um frescor brejeiro, que vão profundo no drama cotidiano que é a relação da natureza humana com o mundo ao seu redor. Discurso que se perfaz em todo o disco, especialmente em canções como
O álbum Pra saber ser nuvem de cimento quando o céu for de concreto foi lançada logo após a estreia solo de Juliano, com A Arte de Ser Invisível, em 2013. O músico também faz parte da Orquestra Contemporânea de Olinda e do trio instrumental Wassab.
“Plano sequência”, “Ser leve” (de onde retirou o verso que dá nome ao disco), “Sem tempo” e “Vertigens”. Ao passo em que se mostra preparado diante do mundo, Juliano recorre aos laços com sua terra, Goiana, para ir ainda mais profundo na sua essência. Essa relação está presente nos cenários do encarte do disco, imagens da casa de sua avó, Guiomar, sob o olhar do fotógrafo Beto Figueiroa, também um goianense. Entre as composições, Juliano traz Tomaz Alves, outro conterrâneo. E o reencontro com o seio familiar também surge na figura do pai, Júlio Holanda, com quem divide a autoria de “Vasta rede” e “Dimensão”. Não mais “invisível”, Juliano agora está exposto, desnudo, através das letras e dos sons que compõem o disco. Um trabalho para se ouvir com os ouvidos e a alma íntegra, completa, assim como ele foi feito. OC 59
resenha
A Inquietude de Ná Ozzetti por Bruno Vitorino
Fotos: Eric Rahal
Vivenciamos na produção musical contemporânea um estranho fenômeno que se alastra com velocidade crescente: a substituição da obra de arte enquanto acontecimento único pelo fluxo contínuo dos estímulos sensoriais e efêmeros. Nesse sentido, testemunhamos os desdobramentos de uma indústria cultural voltada para a massificação extrema da produção artística, contornando os agora desnecessários requisitos da técnica, do talento e da experiência individual da arte, para
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fornecer ícones embusteiros, servidos na bandeja midiática do “novidadismo” e da transgressão estética domesticada, a grupos de indivíduos que levam uma vida cada vez mais estilizada. Assim, temos os virtuoses que não dominam seus instrumentos, os letristas que não sabem escrever, os cantores que transformam a desafinação em marca registrada e as bandas que apresentam a parca execução musical como algo grandioso e criativo que, referendados por uma crítica que não vai além da
cópia de releases, são consumidos passivamente por um público homogêneo que busca tão somente o entretenimento fugaz para exibir em suas timelines. O triunfo do tacanho. Mas, há os que resistem.
Em seu mais recente trabalho, a veterana cantora paulista Ná Ozzetti deu mostras de que, mais do que possível, é fundamental o trabalho do artista artesão que manufatura com esmero sua obra se utilizando do léxico simbólico de que dispõe para criar um mundo subjetivo. Embalar (2013), seu décimo trabalho solo, impõe-se como ateliê coletivo, orgânico e experimental, fruto do esforço criativo da cantora com parceiros de longa data e novos nomes do cenário nacional na busca pelo reinventar-se. “Você tem uma ideia. Você tem vontade de fazer algo novo para você, mas não sabe ainda o que é que vai acontecer. Eu acho que isso é um dos maiores estímulos do fazer”, diz a cantora sobre o projeto. E é justamente nessa propensão ao incerto que reside o grande trunfo de Embalar.
Embalar, assim como os dois últimos discos de Ná Ozzetti, Meu Quintal (2011) e Balagandãs (2009), foram gravados pela banda formada por Mário Manga, Dante Ozzetti, Sérgio Reze e Zé Alexandre Carvalho.
bres brilhantes, economia de material temático e simplicidade das formas. Contudo, em meio a isso tudo, há sempre um elemento inesperado que denuncia uma clara intenção ao risco, ao imprevisível: um desenho melódico rebuscado, uma ênfase ao aspecto rítmico do cantar, uma mudança brusca no andamento, uma progressão harmônica incomum. Movimento, enfim! Destaque para as brincadeiras rítmicas de “Embalar”, a atmosfera flutuante de “Minha Voz” (um belíssimo dueto com Mônica Salmaso, diga-se), a debochada crônica do amor lésbico de “Lizete” e o sambinha desconstruído de “Nem Oi”.
De modo quase anacrônico e audaz, é um álbum à moda antiga, com começo, meio e fim que se apresenta como um todo coeso, envolvido por uma singela beleza tanto no discurso poético quanto na construção dos arranjos que alicerçam a voz cristalina da cantora. A sonoridade do trabalho remete ao pop contemporâneo em suas letras que enaltecem o som das palavras, guitarras de tim-
Longe da altivez do refinamento intelectual, o disco é um chiste da música bem feita. Um refúgio, um ato de resistência ante a corrosão do mercadológico. Por isso mesmo, altamente recomendado. OC 61
resenha Ilustração: Imarginal
a equação matemática da Kalouv por Guilherme Gatis A banda de música instrumental Kalouv foi buscar no Esperanto o nome para seu segundo álbum, Pluvero (2014). O termo, que remete à gota de chuva, simboliza, de acordo com o release de divulgação do álbum, “mudança permanente, onde o menor dos elementos é relevante na construção do novo”. A metáfora sugerida pelo texto de divulgação ainda cita Nietzsche, com a seguinte referência: “Cada instante devora o precedente, cada nascimento é a morte de incontáveis seres, gerar, viver, morrer são uma unidade”. As palavras, sejam elas em Esperanto ou construídas a partir do pensamento do filósofo alemão, buscam conceituar as dez faixas do álbum. “Pluvero fala de transformação”. A frase está em aspas por ser retirada do material de divulgação. Mas, também, está aspeada para chamar atenção para o verbo falar. Pluvero, no entanto, não fala. A ideia de transformação e transitoriedade que se tenta inscrever nas faixas instrumentais encontram ressonância no que se convencionou chamar de post-rock. Ora por faixas longas, com sete, nove, dez minutos, ou por trilhas mais curtas, 62
com dois minutos, os músicos Basílio Queiroz (baixo), Bruno Saraiva (teclado), Rennar Pires (bateria), e os guitarristas Saulo Mesquita e Túlio Albuquerque tentam criar esse ambiente de contínuas transformações. Embora as referências – e a ambição de tentar traduzi-las em música – possam soar pretensiosas, a Kalouv, ao buscar conceituar o seu álbum, acaba por trazer significado a um gênero instrumental que ainda não é de fácil definição ou assimilação. Apontar nomes como Mogwai, Explosions in the Sky ou Red Sparowes como referências das músicas produzidas pela Kalouv é corroborar com essa ideia de renovação e transitoriedade presentes a cada virada de bateria, ambientação do teclado, solos e paredes de guitarra.
O single “Boa Sorte, Santiago” foi lançado em 2013 precedendo o lançamento do álbum novo. Pluvero é o segundo disco da banda, em 2011 eles haviam lançado Sky Swimmer.
sica em um minucioso jogo de armar, em que todos os elementos estão presentes de forma meticulosamente calculadas.
O Kalouv prefere focar no caminho do preciosismo matemático, assumindo os riscos de soar, em alguns momentos, frios e distantes – o que parece ser, inclusive, intencional. Composto em um processo que durou cerca de dois anos e que tem como parceiros o produtor Roberto Kramer, que também mixou e masterizou o álbum e toca bandolin na faixa “Esquizo”, Pluvero também conta com a participação do trompetista Kevin Jock, Felipe Viana na viola de arco, GA Barulhista nos samplers e do guitarrista Fernando Athayde.
O transitório é um elemento marcante do post-rock. A ausência da palavra cantada desamarra o processo criativo do gênero, possibilitando novas construções, experimentações e andamentos que carregam, em si, a ideia de mudança e transitoriedade. Não à toa, há certa similaridade entre o post-rock e algumas vertentes da música eletrônica nas constantes alternâncias de andamento e intensidade. Destas possibilidades abrem-se dois caminhos: o primeiro é dilatar as composições a um limite que beira o improviso e o imprevisível, flertando com elementos do free jazz e aceitando o erro e as “sujeiras” como parte do processo criativo. O segundo caminho é o de transformar a mú-
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Pluvero não fala, mas tem voz. Nas faixas “Boa Sorte, Santiago” e “Altro” a cantora Isadora Melo utiliza seus recursos vocais para embalar as construções sonoras da Kalouv, numa tentativa calculada – e acertada – de alcançar o sublime. OC
resenha
jean nicholas e a bueiragem
por Jeder Janotti Jr.
Foto: Juvenil Silva
Jean Nicholas é um explorador de estilhaços e suas canções ora funcionam a partir de um certo ranço, ora de uma ojeriza contra a mesmice e o esnobismo pop laureado que repete em onda a última nova moda do mundinho musical cult.
Como todo bom corsário, Jean Nicholas e a Bueiragem não se furtam a pilhar misturando origens sem ecletismos fáceis. No álbum marcado por vertigens produzidas pelo flerte com gêneros musicais distintos (funk, reggae, synthpop) há um porto seguro: rock ancorado por
referências iconoclastas como Iggy Pop, Lou Reed e Marcelo Nova. Não se trata de um disco saudosista. Jean Nicholas e a Bueiragem é um álbum rock’n’roll, com atitude 2013 ponto zero.
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Talvez a chave para se penetrar nesse caleidoscópio musical seja a faixa título “Bueiragem”. Uma canção que agencia elementos diversos, mas coesos como a crônica rock, a dicção repente seixeana, sonoridades peso-sertão e texturas da black music. Tudo isso amarrado por um forte refrão tipo prescrição punk:
“Pois eu ainda vou querer jogar/ Tenho muito filme pra queimar/ E muita ficha pra apostar/ Mas não vai ser nesse seu jogo que você quer me empurrar”. Na coleção de gêneros musicais que atravessam o álbum, ao contrário dos anos 90, não são os tambores locais, e sim a percussão da diáspora que forja caminhos: do Bronx à Jamaica sem passar pelos arrecifes antigos. Sua vizinhança não tem imaginários sonoros dos tubarões ou caranguejos e sim dos patuás de outros abrigos: globalidade rock diante da penúria existencial periférica.
Se um dos novelos mais fortes do disco é o acionamento da black music dos anos 70, há músicas que evocam pedras solitárias que talvez não funcionariam de modo profundo fora da força da escuta conjunta do álbum. Caso das canções “O amor é porta de entrada pra outras drogas pesadas” e “Ressaca imoral”. A primeira, um synthpop que é um coquetel atualizado de Joy Division com Legião fora das amarras epifânicas do último Renato Russo. Já “Ressaca imoral” é um jogo memorial afetivo com psicodelia sertaneja: na música são acionados Ave Sangria, Zé Ramalho, Lula Côrtes e talvez aquela que seja a única das produções rotuladas mangue que instiga a tal Cena Beto: Jorge Cabeleira e o Dia em que Seremos Todos Inúteis. Para quem acha que isso é viagem de crítico enrabichado, basta passar para a próxima faixa: “Dois Mil e Crazy”, um eletro -rap-baião que continua a ser, antes de tudo, punk rock.
Jean Nicholas e a Bueiragem é a estreia solo de André Conserva, que até então havia participado de coletâneas musicais e lançado singles com a assinatura ‘Jean Nicholas’. O nome faz referência ao poeta Rimbaud.
Se no mundo da música atual, inchado de hypes, identidade parece algo fatiado, quase enfastiante, Jean Nicholas não tem medo de construir sua identidade sonora através de dilaceramentos musicais, acionando o punk-funk-rock como um antídoto contra descolamentos pop pueris e regionalidades engessadas, afinal como ele mesmo brada no peso groove que fecha o disco: “À frente o terço imenso mar de merda/ Atrás a velha paisagem deserta/Não à direita, nem pela esquerda/ Só abrindo ao meio a saída é certa”. Eis, então, um trabalho que se afirma não só como um disco, mas como álbum, já que juntas as canções de Nicholas ganham o corpo de uma obra densa o suficiente para mostrar que ainda há espaço para afrontar o papo pop água desses tempos em que muitas das novidades são habitantes fugazes do sucesso hypado dos festivais e editais para pop-cultdescolados. OC 65
resenha
Cadafalso, à beira por Carlos Gomes
Foto: Nana Gaul
A solidão tem sido a máquina de escrever música de boa parte dos artistas que têm a autoria e execução solo como uma de suas principais características. Cantautores munidos da voz, violão, dicção precisa e melodias que interajam com suas palavras. Em seu mais novo trabalho, o cantor e compositor Marcelo Frota constrói sozinho as nove narrativas de Cadafalso (2013), álbum que desvirtua o caminho que o autor vinha traçando até o momento. As melodias como ondas estão lá, é verdade, a voz que canta
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no tom da fala, também. Mas a condução do violão e voz como matéria prima exclusiva para a gravação das canções, substitui o arco mais complexo de arranjos de outros álbuns por uma linha mínima, expressa numa delicada e pulsante música tênue, prestes a despedaçar sobre nossas mãos. Numa escuta menos atenta, é possível que o ouvinte abandone o disco na primeira audição, como se só enxergasse uma massa homogênea de canções repetitivas e insossas. Ouvir narrativas requer perscrutar intenções,
dissolver preconceitos, reinventar caminhos. É disso que Momo trata em seu último disco. Versos retirados de suas canções sugerem um novo mapa para a leitura de sua obra: “coragem pra suportar o imperfeito”, “ninguém vai moer o que sobrou dos meus ossos”, “é um novo recomeço”, “essa chama é pra hoje”. Os fragmentos de quatro canções descontextualizadas de sua origem indicam uma abertura para a experiência de registrar o que é estado bruto em sua arte. Transformar o que é perda em música. Nela, as relações afetivas se reconstroem mutuamente. Frágil, o amor é condição para escoar a criação; há sempre um outro a quem dirigir suas harmonias ou dedilhados estruturados em quebras. Canções que soam como se tivessem sido gravadas no próprio processo de composição. São quando os rascunhos se tornam a obra final. “tema em estéreo” suprime o tempo logo após a canção que dá nome ao disco, feita em parceria com Wado, também presente na coautoria de outras duas faixas. Com o ‘tema’, Momo quebra com a estética mono das vozes e cordas das primeiras faixas. E segue com a “alegria” da volta à terra natal – o Ceará pelas mãos de Humberto Teixeira –, um novo ponto de partida para as músicas “recomeço” e “copacabana”, que soam como espelhos de um mesmo discurso: “se os prédios já não cabem na cidade”, “copacabana, copacabana”.
Marcelo Frota cantou e tocou violão em todas as faixas. A faixa instrumental “Tema em Estéreo” foi tocada com um harmonium. Cadafalso é o quarto disco do músico.
Como narrativas, as nove canções propõem um diálogo em diferentes níveis, sendo quase impossível saltarmos as faixas para fora da sequência que nos foram dadas, pois ganham cada vez mais sentido na sequência de novas audições. É pouco provável que o álbum ocupe lugar de destaque entre as listas de melhores do ano, nem que uma imensidão de fãs se aproxime para cantá-las em uníssono num teatro lotado. Poucos tomarão contato com essa história, talvez Marcelo Frota já intua isso. Porém, depois de ouvir Cadafalso com a devida atenção, tenho certeza que os ouvintes irão atrás da obra pregressa de Momo, perscrutar o que há de Cadafalso, estranho, improviso, nas canções de outrora, de alguma forma, epílogos dessa nova história que se inicia à beira do precipício, da lâmina velozmente afiada, em cima de um palco, em praça pública, à beira, à beira. OC 67
coluna guia prático para a crítica cultural: cena beto por júlio rennó “O quarto de trás resiste ao tempo insosso que nos resigna a tantos afazeres distantes dos sonhos de outrora”.
O single “Flores do teu mal”, que precedeu o álbum Filmes e Quadrinhos (2010), de D Mingus, foi postado no antigo endereço do blog Outros Críticos em 09 de outubro de 2009. Era o primeiro contato que eu tinha com o músico pernambucano que, entre tantos outros, foi o que passei a acompanhar com maior atenção nesses últimos anos. Acompanhar com atenção, no meu caso, é ouvir os discos, ir aos shows, comprar as versões físicas que ele mesmo confeccionava. Aquilo a que os especialistas chamam de fomentar a cadeia produtiva da música. Mas fui além da função de espectador, já que escrevi sobre o trabalho dele, fiz entrevistas por e-mail, cobertura de shows. Sempre acreditei que nos anos subsequentes àquele lançamento, D mingus poderia alcançar sucesso semelhante ao do músico cearense Fernando Catatau, da banda Cidadão Instigado, pela capacidade de ambos em atuarem em diferentes vertentes, como a da música autoral, produção musical ou como guitarrista de outros artistas. Enquanto Catatau migrou para São Paulo, D Mingus experimentou no quarto de trás de seu apartamento sua intensa liberdade artística a par de canções, fusões das mais diversas, e uma capacidade natural em soar estranho e pop. Fez isso até o final de 2013, quando decidiu “dar um tempo da música - leia-se: ensaios, shows e o que mais implicar em tomar meu tempo com isso”. Dentre os três discos lançados por ele, o segundo, Canções do Quarto de Trás, de 2012, é o que mais me impressionou. Aliás, me impressiona até hoje. O ano de 2013 foi extremamente atípico. Se a exuberância criativa de Canções não lhe rendeu convites para fazer shows remunerados, trabalhar como músico ou produtor musical, dentre outras tarefas na área da música, uma matéria do jornal carioca O Globo, daria a ele e aos músicos mais próximos, uma visibilidade que até então parecia impossível. Com ela, convites para shows em diferentes lugares começaram a aparecer como num passe de mágica. Se o termo “periferia”, cunhado pelo jornalista Silvio Essinger, naquela matéria, soava extremamente antiquado, a criação - numa mesa de bar - do irônico “Beto”, cairia como uma luva contra a mediocridade dos cadernos de cultura. Os de lá que nos pautam sem a devida atenção, os de cá que engolem a filtragem sem estabelecer o seu olhar. Se a capa do Globo é Juvenil Silva, a nossa também será, se o convidado do produtor X é o mesmo da foto de capa, o do produtor Y também o será. Mas o que parecia se tornar ironia contra a ignorância da indústria cultural e seus cadernos ligeiros de cultura, se tornaria o guarda-chuva conflituoso de um número considerável de músicos. Eles passariam a defender a ignorância que anteriormente rejeitavam. Fomos (Outros Críticos) chamados (por alguns ‘integrantes’ da ‘cena beto’) de “melhor site de Pernambuco” a “burros”, a depender se nossa opinião era favorável ou não ao grupo, não mais grupo, agora, sem ironias, oficialmente Cena Beto. O que a aparição em grande escala de D Mingus vinculado à Cena Beto tem a ver com sua parada temporária da música, é um questionamento que agora não sei por quais lugares seguir. Também não acredito em relações binárias de causa e efeito quando se tratam de decisões desse tipo, tão importantes, como a de “largar” a música. Mesmo que Domingos Sávio apague a discografia de D Mingus no Soundcloud, que a Cena Beto prolifere a sua própria ignorância, a música arrumará uma forma de aparecer, será aí que os velhos escafandros de sempre farão da crítica a sua primeira manifestação de afeto para a música. Sempre uma profunda descoberta para quem se propõe a ter ouvidos atentos ao contraditório. OC 68