pq?
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colaboradores editorial Ana Luisa Lima Editora da Revista Tatuí.
Cecília Shamá Colaborou como colunista em cinema no site Outros Críticos. Atualmente está cursando Letras.
Conrado Falbo Músico, performer, professor e pesquisador. Artista ocupante do Coletivo Lugar Comum desde 2010.
José Juva Poeta, crítico literário e doutorando em Teoria da Literatura pela UFPE.
Karol Pacheco Jornalista da Folha de Pernambuco.
A mais nova edição da pq? nasce em tom de despedida. Durante essas cinco edições, experimentamos diferentes formatos para a publicação. Tendo ainda a impressão de que continuaremos a experimentar, planejamos realizar, também, edições impressas e assumir Outros Críticos como título da revista. A matéria de capa desta edição propõe uma discussão sobre a curadoria em diversas artes. No mais, entrevistas, resenhas, ensaios, artigos e colunas do site outroscriticos.com. Boa leitura.
colunistas Rafael de Queiroz
Rodrigo Maceira
Repórter da revista Mi – Música Independente e mestrando no PPGCOM da UFPE sobre a retomada do vinil.
Faz parte do coletivo Si no puedo bailar, no es mi revolución, uma rede latinoamericana para circulação de trabalhos artísticos.
Thiago Barros
Victor de Almeida
Lançou um EP no projeto musical Marditu Soundz. Também pesquisa a cena udigrudi recifense dos anos 70.
Produtor do Festival LAB, em Maceió/AL, e doutorando do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da UFPE
Rodrigo Édipo
Ricardo Maia Jr.
Editor de conteúdo e curador da Mi – Música Independente em Pernambuco.
Músico da banda Exexus. Atualmente, cursa o doutorado em Comunicação na UFPE.
Jocê Rodrigues
Fábio Andrade
Poeta, escritor e crítico musical.
Poeta e editor do selo Moinhos de Vento.
Jeder Janotti Jr.
Raquel Monteath
Professor do Programa de PósGraduação em Comunicação da UFPE.
Jornalista e assessora de comunicação do Corujas.
pq?
revista 5ª Edição (on-line) | Agosto de 2013 Realização: Outros Críticos Edição, redação e revisão: Carlos Gomes. Projeto gráfico e revisão: Fernanda Maia. Foto de capa: Roue de bicyslette (1913), de Marcel Duchamp.
Mais informações: contato@outroscriticos.com facebook.com/outroscriticos @outroscriticos www.outroscriticos.com Agradecemos a Eline Santos pelo espaço para o lançamento da revista e a todos os colaboradores e colunistas desta edição.
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entrevistas 06 Diego Albuquerque (Hominis Canidae) 34 Bruno Nogueira
colunas 28 10 50 04 05 49 43
(por Carlos Gomes)
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Diálogos (por Ricardo Maia Jr.) Paperbag (por Rodrigo Édipo) Estórias Roubadas (por Fábio Andrade) Leitmotiven (por Tiago Barros) Estouramos a bolha? (por Victor de Almeida) Amizade, esse bosque rock e pulenta (por Rodrigo Maceira) A crítica como prática neobarroca (por Jocê Rodrigues)
resenhas D MinGus_Fricção (por Rafael de Queiroz) Ex-exus_!xÔ! Paes_Sem despedida Zeca Viana_Psicotransa Graxa_Molho Trio Eterno_Suíte Pistache JuveNil Silva_Desapego (por Jeder Janotti Jr.)
capa Curadoria em:
Literatura (por José Juva) Artes visuais (por Ana Luisa Lima) Música (por Raquel Monteath) Cinema (por Cecília Shamá) Teatro (por Karol Pacheco)
artigo 39 Muitos Itamares a navegar… (por Conrado Falbo)
ensaio 41 Do absurdo ao limbo (por Carlos Gomes)
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Gravitation (1952), de M.C. Escher
leitmotiven por Tiago Barros.
Vivemos em um período bem interessante para quem possui uma banda. Os recursos para gravar, editar, mixar e masterizar um disco estão bem mais que acessíveis. As plataformas para divulgação são as mais diversas possíveis, basicamente todas gratuitas. Para formar e manter contato com um público cativo, as redes sociais são uma mão na roda. Um cenário quase perfeito para quem tem seu projetozinho musical, né verdade? Por um lado, sim, mas talvez seja menos fácil do que parece. A grande verdade é que as bandas hoje são bem mais cobradas. Tudo leva a crer que quem toca hoje em dia precisa se ocupar também com a função de produtor, empresário, assessor de imprensa, engenheiro de som, roadie e, se sobrar um tempo, fazer aquele cafezinho esperto para levantar o ânimo da moçada. Ah, claro, e também cumprir uma função que parece ser bem menos requerida que as outras, que é a de compor e ensaiar um repertório digno de nota, ou nem tanto, já que não se andam falando muito de música hoje em dia, mas que garanta ao menos a realização de um disco ou de um show. Claro, quem está na música independente sempre soube que se virar como pode nunca foi uma grande novidade. Mas, enquanto quem toca busca se aperfeiçoar em outras áreas que antes não lhe diziam muito respeito, qual a contrapartida disso tudo dada pelo outros agentes desse processo todo? Eles também estão realmente se virando em funções multifacetadas? Ou pelo menos estão oferecendo um serviço do mesmo nível que as bandas tentam oferecer? Para tirar algumas dúvidas, vamos agora com um pequeno quiz com certas situações que não parecem ter mudado muito de uns bons anos para cá. Se você que está lendo esse texto tem, já teve ou conhece algumas histórias de amigos envolvidos em projetos musicais, tente ver quantas alternativas você marcaria como verdadeiras e frequentes: ( ) Casas de shows que mal oferecem as condições mínimas para se tocar, muitas vezes resumindo isso tudo ao espaço físico cedido;
( ) Concursos de bandas que não estipulam regras claras ou que possuem um regulamento nebuloso que pode mudar conforme a vontade de seus organizadores; ( ) Técnicos de som que não fazem questão de cumprir suas funções na hora de uma apresentação ao vivo; ( ) Produtores e jornalistas não muitos dispostos a dar qualquer tipo de retorno para quem lhes entregam algum material; ( ) Veículos de comunicação que continuam apresentando os mesmos artistas e bandas consolidadas de 15 ou 20 anos atrás como se fossem o retrato atual da cena local.
É aí que podemos chegar ao x da questão: qual o motivo dessa cobrança unilateral em relação às bandas, enquanto certas atitudes de outros sujeitos do processo aparentam não terem mudado? Por que é exigida das bandas toda uma série de funções, se elas ainda tem que lidar com situações de tempos em que não se tinha estrutura alguma e tudo era feito na base da gambiarra? Agora, vamos a uma questão crucial: faz sentido então, já que as bandas estão sendo mais cobradas, que produtores, jornalistas, técnicos de som, proprietários de casas de shows e demais figuras representantes da…errr…cadeia produtiva (termo um tanto quanto gasto, não?) sejam igualmente cobrados. “Ah, mas em relação aos produtores e jornalistas, eles acompanham os shows”, diria alguém. Pois tem que acompanhar mesmo e que eles façam isso cada vez
mais e, se não for pedir muito, que a falta de uma presença vip não os impeçam de fazer isso. Algumas coisas ainda precisam caminhar. Novamente, no caso específico de jornalistas e produtores, o “mande seu material que iremos analisá-lo com o devido carinho” (ou não!) parece ser uma saída bem democrática, e, de certa forma, é mesmo, mas também não deixa de ser um jeito deles se manterem distanciados de certos processos. Essas pessoas precisam estar constantemente envolvidas, seja indo às apresentações das bandas ou trocando ideias e conhecendo verdadeiramente o trabalho, as propostas estéticas e o plano de carreira das bandas. Se a música é o real leitmotiv que impulsiona essa parada toda, então esse conhecimento de causa deveria ser de interesse de todos. Por que raios alguém vai se envolver de alguma forma com música e não se preocupa em conhecer profundamente o que anda rolando na cena local? E por falar em cena, é bom ressaltar da maneira mais clara que ela não se constitui apenas de um bocado de banda se juntando para fazer show por aí; para que ela exista de verdade deve haver, além de gente fazendo música, é claro, a participação de pessoas produzindo, escrevendo a respeito e, acima de tudo, consumindo tudo aquilo. É necessário que haja um real diálogo entre todas essas partes. É preciso que todas as partes queiram essa aproximação. E é justamente nesse querer, ou na falta dele, que se encontra um dos principais problemas. pq?
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Estouramos a
bolha?
Com o cancelamento do Sónar, anunciado na segundafeira da semana passada1, alegando a “instabilidade do mercado de entretenimento” brasileiro, voltamos para um debate que há algum tempo vem tomando corpo dentro da produção cultural no país: a (possível) crise do mercado. Será que estamos caminhando para uma saturação do ramo de eventos musicais no Brasil? Será que a bolha do mercado de festivais e shows do mercado nacional estourou? Muitos fatores colocaram o Brasil numa posição privilegiada dentro das novas lógicas de circulação das grandes turnês mundiais, por exemplo: a estabilidade da economia brasileira (sobretudo com o aumento de poder de consumo da classe média), atrelada à crise econômica internacional (principalmente na Europa), e as novas práticas de consumo musical (que privilegiam os concertos ao vivo às vendas de discos). Com isso, o mercado da América do Sul, principalmente o brasileiro, passou a ser bem mais frequentado e foi possível perceber, nos últimos 10 anos, um grande crescimento na oferta de shows de artistas internacionais de pequeno, médio e grande porte nas principais cidades do país. Em paralelo, não demorou muito para surgir novos festivais de grande porte (como o Planeta Terra e SWU, por exemplo) e fomentar o interesse das grandes franquias para o nosso mercado. Basta ver a volta do Rock In Rio ao Rio de Janeiro em 2011, os primeiros Lollapalooza Brasil e Sónar São Paulo em 2012, inclusive a circulação do boato que o Coachella teria interesse em aportar por aqui em 2014. Mas, nem tudo são flores nesse mercado. Em paralelo ao crescimento da oferta de shows, cresceram também os problemas: os processos inflacionários dos ingressos (motivados pela disseminação das carteiras de estudante falsas) e cachês de artistas internacionais (devido aos leilões de artistas entre as produtoras), a disputa cada vez mais acirrada por patrocínios e, principalmente, a concorrência entre os próprios festivais e outros eventos de grande porte. Segundo reportagem do O Globo, o preço médio dos ingressos no Brasil cresceu de R$ 35 para R$ 190 entre 2001 e 2011. Uma das razões para isso são os “leilões” de artistas que fazem que os preços de cachês superem de longe aos pagos em outros países do continente. Geralmente, quando um artista é
The Flaming Lips. Foto: Russell J. Smith (Flickr).
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Artigo publicado em 26 de março de 2013, no site Outros Críticos.
por Victor de Almeida.
contatado por uma produtora brasileira ou demonstra interesse em levar a turnê para o país, o agente oferece o show para várias empresas leiloando o show para quem pagar mais. Os preços negociados nos leilões de artistas caem diretamente no preço dos ingressos, o que no Brasil é outro problema devido à lei da meia-entrada. Com a disseminação de carteirinhas de estudante falsas, o público sem o benefício acaba pagando o valor dobrado, já que os cálculos do custo real do festival são feitos em cima da meia. Como consequência, vemos uma dificuldade crescente dos festivais para esgotar seus ingressos, tendo que recorrer a sites de compra coletiva ou outras estratégias para desencalhar ingressos. Basta ver a oferta de ingressos para shows como Lady Gaga, Madonna e até para o Lollapalooza desse ano no Peixe Urbano. Mesmo com esses problemas, acredito que essa fase de instabilidade do mercado se deve, em grande parte, aos problemas de patrocínio. Com o aumento do número de festivais, cresceu-se também a concorrência por patrocínios privados, concessões e incentivos públicos. Ou seja, é cada um por si, todos querendo se dar bem. Mas a concorrência não só entre as produtoras, festivais e eventos de música. Vale lembrar que essas verbas de patrocínios também são investidas nos megaeventos que serão realizados no Brasil nos próximos anos, como a Copa do Mundo e as Olimpíadas, o que deve pesar bastante no direcionamento das estratégias de marketing das grandes empresas. É claro que sempre existirão dificuldades no setor. O ramo dos shows não é um filão de dinheiro fácil, muito pelo contrário, está longe disso. Se há espaço, patrocínio e público para todos os festivais no cenário brasileiro, não se sabe. O que se sabe, por enquanto, é que o SWU não deve acontecer mais (mesmo sem ser anunciado o fim), o Planeta Terra passa por dificuldades para se afirmar e o Lollapalooza, que acontece no próximo fim de semana, já admite prejuízo na segunda edição seguida. Isso é o que sabemos… pq?
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entrevista
por Carlos Gomes.
#01
diego albuquerque
A conversa que se segue é sobre o calor das horas, sua urgência. As tags Curadoria,Crítica, Coletânea, Mixtape e Protestos são a pauta de minha entrevista com Diego Albuquerque, editor dos sites Hominis Canidae e Altnewspaper, que divide com alguns parceiros; além da curadoria da revista MI (Música Independente em Pernambuco), que muito brevemente lançará a sua 4ª edição.
O site Hominis Canidae publica mensalmente coletâneas com músicas postadas no site, já a revista MI tem publicado mixtapes com artistas pernambucanos. Como você diferencia a sua participação na curadoria desses dois trabalhos? Os objetivos e o processo de feitura de ambos são completamente diferentes. Na realidade, os conceitos de coletâneas e mixtapes podem ser vistos de maneiras distintas também. No Hominis, a coletânea mensal funciona como um resumo do mês, onde eu escolho metade, e Paulo Marcondes a outra metade, tudo dentro do que postamos no mês atual. Eu mesmo sempre peço opiniões externas, pra tentar diversificar as linhas e gostos dentro das coletâneas do blog. Normalmente, a última música é uma faixa inédita no blog, seja de uma banda também inédita, ou uma nova música de algum artista com quem já temos contato. Não contamos uma “história”, nem seguimos um estilo único nas coletas do HC, apenas resumimos o mês com os sons que achamos mais interessantes. As mixtapes da MI normalmente seguem um tema ou linha de pensamento específico ou próximo. Existem mixtapes apenas instrumentais, tem uma que segue a linha dos trabalhos de tecnobregas feitos em formatação caseira. Além do fato de que são três cabeças que meio que interagem juntas, normalmente através de e-mail. Raul Luna manda uma ideia ou lista de faixas e eu e Rodrigo Édipo opinamos em cima, e por aí vai. A curadoria é diferente até pela questão do limite físico, já que a revista MI atua no estado de Pernambuco. O Hominis é nacional, normalmente postamos diversos estados durante o mês, então é difícil coincidir, mesmo que vez por outra aconteça. Você concorda com a tese de que o Hominis Canidae é mais do que um depositário de discos, atuando também com crítica musical? Mesmo que não haja seleção dos discos postados, será a coletânea um aprofundamento dessa crítica? Cara, no início tinha a crítica de minha escolha, dos meus gostos, entendeu?! Isso meio que já deu uma cara para o que seria o blog. Então, nós criamos um nicho, um grupamento de estilos e bandas,
Ilustração de fundo: Coletânea Hominis Canidae #31 (dezembro de 2012)
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mas não sei se isso chega a ser crítica. Depois resolvemos abrir para todo mundo mandar material para entrar por lá para download, essa seria a característica de depósito que eu queria criar, mas já existia um caminho e um foco no HC, quando abrimos para receber material. E nós tentamos ser o mais democrático possível com a disponibilização de trabalhos no blog, mesmo que tenha sim alguma coisa de crivo entre nossas escolhas. Vez por outra recebemos trabalhos que estão muito longe do que o blog normalmente mostra, e já vemos nosso leque de possibilidade como bastante amplo, mas sinceramente não sei se chega a ser crítica musical. Quem sabe uma nova forma de ver esta crítica, mas não sei. O Altnewspaper tem uma característica mais crítica para mim, mas Édipo diz que eu faço crítica no Hominis também, mesmo eu tentando ser o mais democrático possível. Eu brinco dizendo que eu criei a crítica sem crítica, já que nós não passamos nossas impressões sobre a maioria dos discos que postamos. Normalmente pegamos alguma resenha da net e linkamos na postagem. As coletas mensais podem sim ser um tipo de crítica, pois nós damos algum destaque a sons que postamos ao longo do mês, mas eu tenho um enorme pé atrás com relação a isso, quem sou eu (ou quem somos nós, já que tem o Paulo) para dizer o que é bom ou ruim?! Além das mixtapes, a MI também lança uma coletânea encartada a cada edição da revista. Como a revista, a longo prazo, deverá ser uma fonte importante da música produzida em Pernambuco, o crivo para a escolha dos entrevistados e músicas da coletânea é mais severo do ponto de vista crítico? Vocês sentem essa responsabilidade? Cara, tudo que fazemos na MI é bastante pensado, inclusive a escolha das faixas para o CD que vai junto com a revista. No caso, a coletânea encartada com a revista tem uma
faixa de cada banda que está presente em entrevista naquele volume. As faixas são as que nós achamos mais bacanas, vez por outra pode aparecer uma faixa inédita de algum artista da revista, querendo que ela saia na coleta encartada com exclusividade e isso pode ser bacana. Acho que sentimos mais a responsabilidade no mapear da cena, ou seja, nas escolhas dos artistas que estarão nas nossas revistas. As escolhas desses artistas influenciam diretamente nesse CD encartado na revista, mas, em minha opinião, a música que vai naquele material é bem menos relevante do que as falas e ideias do artista na entrevista. A música instrumental tem tido um olhar privilegiado tanto do Hominis quanto da MI. O HC chegou a lançar a coleta Sem Voz (2010), com 10 bandas. A música instrumental tem ocupado lugar de destaque nas curadorias que você participa? Ou com o desenvolvimento do mercado de música independente, as bandas instrumentais não podem mais serem vistas como um nicho de mercado? Falando por mim, eu gosto de música instrumental. Por isso o Hominis tem muita banda instrumental, porque inicialmente eu mandava discos que eu tinha em casa e eu tenho muitos trabalhos de bandas instrumentais. Então eu sempre presto atenção na cena instrumental brasileira, logicamente que a crítica também está presente, ainda mais falando na escolha de artistas para a revista, que tem um numero bastante reduzido dentro de um universo. No caso da MI, tanto eu, quanto Raul Luna e Rodrigo Édipo têm apreço pela cena instrumental, não necessariamente o post-rock, mas o instrumental como um todo. Mas falando mercadologicamente, a cena instrumental sempre será um nicho, e nesse nicho teremos diversos estilos diferentes, ou os tais subnichos. Acho bem complicado que a música instrumental (principalmen-
revista
te a feita no independente) venha a se tornar popular. Não estou aqui falando da bossa nova, que tem uma representação instrumental e com bastante retorno. Nem do contexto histórico, já que a música clássica já foi e ainda é bastante popular em vários locais do mundo, assim como o Jazz, e ambos transitam pela música instrumental. Existem sim os nichos. Os mais “experimentais” eu acredito que nunca deixaram de ser vistos como nichos dentro do mercado. Vez por outra esses nichos podem estar em maior evidência, mas nunca deixarão de serem nichos.
MI#03
O site Altnewspaper representa Pernambuco na coletânea musical Cena Independente, que publica mensalmente músicas de bandas brasileiras com curadoria de diversos sites e blogs. Escolher mensalmente uma banda ou músico pernambucano deve ser um exercício crítico interessante. Comparativamente com os outros estados, a música pernambucana tem tido papel de destaque nas edições do Cena Independente? Então, é um exercício interessante mesmo, principalmente quando eu tento diversificar ao máximo entre os estilos e cenas de nosso estado. Tem vez que fico meio perdido no que escolher, tento não repetir os artistas que já estiveram por lá e isso às vezes faz com que eu perca o timing das coisas. Já que os artistas continuam lançando músicas, discos, e se ele já apareceu por lá, eu acabo tentando dar espaço para outros. Eu não sei se tem tido destaque, seria até prepotente de minha parte responder isso, já que eu faço o crivo do estado de Pernambuco. O que eu posso dizer é que consegui mandar faixa em todas as edições do Cena até agora, e que acho que o nosso estado é o que está mais diversificado em termos de estilos musicais. Outro dia mandei um Design por Raul Luna. e-mail pro pessoal com algumas considerações minhas sobre o primeiro
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ano do projeto, a ideia é bastante interessante, mas precisa que os sites de cada estado ampliem mais seu leque e senso crítico. Comentei até que pensei em mudar de estado, já que o Paulo é de São Paulo, com o intuito de mudar a visão dentro do estado, mas voltei atrás. É sempre complicado porque tento não misturar as coisas com a MI, tento também escolher artistas que estão com trabalhos realmente novos na rua, por mais que artistas que estão na MI acabam aparecendo também nas mixtapes do Cena Independente. Mesmo porque os artistas seguem com novos trabalhos, ideias, e por mais que a revista tente ser atemporal, as pessoas podem mudar de caminhos, de opiniões, gerando assim coisas novas ou diferentes. O último lançamento do Altnewspaper foi a mixtape Não Vai Haver Amor Nessa Porra Nunca Mais. Jogar luz sobre essas canções, nesse momento, foi a melhor maneira que vocês encontraram para dialogar com os últimos acontecimentos? Na realidade não, nós estamos cobrindo e falando sobre os protestos em São Paulo desde o começo. Tem textos no Altnewspaper do Paulo Marcondes e de outras pessoas que estiveram por São Paulo, além de textos
Cartaz usado como capa da mixtape Não Vai Haver Amor Nessa Porra Nunca Mais.
sobre os protestos em Belo Horizonte. Outro dia fizemos uma postagem com comentários dos protestos em um dia específico do Rio de Janeiro, São Paulo, Belo Horizonte e Fortaleza. O que percebemos no começo das manifestações era que a grande mídia não tinha interesse ou tentava manipular o que estava acontecendo com o MPL em São Paulo, falando se tratar de vandalismos, vagabundos etc. Então resolvemos abrir espaço em nosso site para o que tava acontecendo, já que o Altnewspaper sempre foi um espaço aberto para a cultura alternativa, não necessariamente voltado apenas para música, e achamos que política também deveria ser pauta de cultura. Essa mixtape foi apenas mais uma forma de falar sobre os protestos e tentar mostrar que na música tem muita gente falando de nossos problemas e isso já faz alguns anos. Inclusive foram pessoas que seguem o Hominis que sugeriram que deveríamos fazer uma mixtape, e eu e o Paulo pensamos em faixas e nomes para a mesma. Tem alguns artistas daqui de Pernambuco por lá, algumas bandas de São Paulo, coisas novas e velhas. Tentamos focar mais no hardcore e no rap, porque são estilos musicais que sempre trataram sobre o social, sejam as problemáticas do nosso dia a dia, sejam os nossos problemas políticos. Na realidade, todo mundo respira música a maior parte do tempo, então resolvemos fazer uma mixtape que falasse sobre os problemas do Brasil e quem sabe até ser a trilha sonora para quem fosse aos protestos pelo país. Recife tem vivido um momento interessante com as bandas e músicos que organizam o Desbunde Elétrico. D MinGus, JuveNil Silva, Zeca Viana, Jean Nicholas e Graxa lançaram discos, singles ou estão prestes a lançar novos trabalhos. Comenta brevemente sobre
o que você destaca dessas bandas, sobretudo se a coletânea de junho do Hominis Canidae, ou mesmo as mixtapes e coletâneas da MI, darão destaque a alguns desses trabalhos. Na realidade, existe uma movimentação musical interessante faz algum tempo no Recife, não só entre essas bandas que organizam o Desbunde, mas talvez a tal “cena Beto” seja a que se encontra melhor organizada no momento. Outro dia saiu uma entrevista do JuveNil falando sobre a movimentação dessa nova cena lá no site da MI. Eu acho bastante interessante todo o movimento, acho que existe sim um modus operandi pensado nele. Ou seja, eu acho que o pessoal envolvido sabe bem o que quer e o que estão fazendo. Eu particularmente gosto muito do trabalho do D MinGus, antes mesmo desses três discos que ele lançou como carreira solo. Na realidade, já existiam músicas solos dele antes mesmo da existência do Monodecks, a banda de rock instrumental que ele tinha com Thiago Marditu e outros brodagens. Zeca é outro que vem consolidando uma carreira tem um tempo, mas que recentemente resolveu focar mais na carreira solo. É outro aglutinador da cena recifense com o Recife Lo-Fi, por exemplo. Sobre se esse pessoal vai aparecer nas mixtapes da MI ou na coletânea de Junho do Hominis, posso dizer que vai ter uma faixa do D MinGus na coleta desse mês, já que ele, entre os artistas citados, foi o único postado nesse mês no HC. O próprio D MinGus já apareceu nas mixtapes da MI em mais de uma oportunidade, Zeca Viana também. Matheus Mota, outro nome dessa cena Beto, também já esteve por lá em algumas oportunidades. Vamos ver o que acontecem nas próximas, o que eu posso dizer é que estamos sempre ligados no que esta acontecendo por aqui e tentando extrair o máximo de interessante que vemos nela. pq?
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por Rodrigo Édipo.
Paperbag é uma série de entrevistas que omite a real identidade dos entrevistados para que o leitor se atenha – em primeira instância – ao conteúdo das respostas, sem associá-las diretamente a alguma pessoa ou contexto. Cada entrevistado é convidado a escolher seu próprio codinome e algumas palavras são suprimidas. Todo mês entrevistamos uma personalidade pública de relativa relevância e atuação na cadeia produtiva musical local e nacional. Para a nova edição da pq?, selecionamos duas entrevistas que refletem a atual cena musical. Confira a íntegra dessas entrevistas no site outroscriticos.com.
#01
REGINA PHALANGE
#02
EPAMINONDAS
BARTOLOMEU Foto do personagem Unknown Comic. Autoria desconhecida.
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#01 Qual sua história pessoal como ouvinte de música? E qual o último grande disco ou música que escutou? Tenho música na vida desde muito pequena, por influência do meu pai, sempre tive contato com o mundo artístico. Então, sempre rolava muita coisa, muita gente conhecida ia lá pra casa... de Gilliard a Reginaldo Rossi... de Roberto Carlos a Agepê. Até que a pessoa vai crescendo e descobrindo outras coisas, formando seu gosto musical. Sempre gostei de rock e música eletrônica. O primeiro grande disco que comprei (com minha suada mesada) foi o Mellon Collie and the Infinite Sadness, do Smashing Pumpkins. Tenho ele até hoje e morro de ciúmes. Mas atualmente eu não tô muito ligada em álbuns, mas o Daft Punk sempre é muito foda, principalmente depois da oportunidade que tive de ir a um dos shows deles... foi um dia inesquecível. Gosto principalmente do Human After All, todas as faixas são muito fodas e não consigo escolher uma. O funk e o brega estão em um mesmo patamar de importância cultural que o axé e o sertanejo universitário? Rapaz, eu acho que estão no mesmo patamar, vejo todos em um mesmo nível, sendo que em diferentes cenários. O país é grande demais, e se você for analisar onde cada um influencia quem, chega a um mesmo denominador. Logicamente, em diferentes intensidades, devido às “máquinas”, gravadoras, empresários e o escambau que tem o poder de maximizar ou minimizar cada um na esfera total. Então, o rock e a música eletrônica, por exemplo, também entram em um mesmo patamar de importância cultural que esses gêneros... Rapaz, isso de importância eu acho que vai de cada um, não sou nenhuma estudiosa de música para separar cada segmento por importância. Música é música. Conheci um cara, uma vez, super-
humilde, da periferia, que odiava brega e funk, mas adorava jazz. Achei surreal, sem entender de onde ele tinha descoberto Chet Baker naquele mundo que ele vivia, mas aí ele falou: “Internet tá aí, né?”. Acho muito pequeno julgar a importância de um segmento, sem saber o público que estamos falando. Música é música.Existe vida inteligente na noite da sua cidade? Ela está predominantemente no barzinho, no show ao vivo ou nas festas? Existir, existe. Mas [nome da cidade do entrevistado] vive as fases muito bem vividas, eu acho. Já teve a fase dos shows, já teve a fase dos clubs e agora tem a fase das festas. Eu conheço muita gente massa e boa, com ideias incríveis, mas que tem “preguiça” de botar pra funcionar, sabe? Querem que alguém chegue com a grana pra eles fazerem e só reclamam dos produtores que fazem qualquer outra coisa que não esteja dentro dos seus ideais. Né foda? Eu queria uma festa na praia, de graça, tirei do meu bolso, fui e fiz. Por que tu também não faz? É muito fácil apontar e ficar reclamando: “Porra, esse [nome da festa do entrevistado], que festa merda, que imbecilidade...”. Então faz o teu, dá outra opção pra galera. Mãos à obra, sabe? Mas tu tava perguntando de produtor ou público? De público também... Rapaz, quanto ao público é muito difícil falar. Falo pelo público da minha festa ou de amigos que também fazem festas. O povo investe naquilo que gosta, né? Mas sinto a galera cada vez mais exigente com os serviços do que com música em si. O meu público vive numa vibe carnaval todo fim de semana, se a gente decide fazer um som mais “sério”, digamos assim, a pista não funciona, e se a pista não funciona, a festa morre. Muita gente vai pra qualquer canto só pra não ficar em casa, vai onde a maioria vai. Mas tem gente que vai só no que gosta mesmo, pra se divertir e gastar
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o dinheiro “bem gasto”, digamos assim. Consegui responder? Achei difícil essa (risos). Por que a música suburbana ainda choca quando é ouvida por determinadas pessoas que estão fora do gueto? Justamente porque elas estão fora do gueto. Para mim, é muito claro essa história de você estar inserido naquilo e saber o significado daquilo ou você não estar inserido naquilo, mas cantarolar ‘vou passar cerol na mão’ (referência ao funk do Bonde do Tigrão) só porque passou no Faustão, sem nem saber o que porra é. Da mesma forma, vejo o contrário, uma Pepê e Neném da vida, tão ali na favela, pegam uma música gringa e cantam um embromol danado, sem nem ter ideia do que aquela música tá falando. São os contextos, mas a partir do momento que essa galera da indústria vê um potencial e passa a explorar, pouco importa letra, coreografia ou qualquer outra coisa. “O brega virou cult”. Pra você, o que significa essa frase? Rapaz, eu nunca sei direito o que pensar quando eu leio isso. A galera fica querendo encontrar um equilíbrio entre o conceitual e o que é divertido, sei lá... teorizar demais, transformar em fenômeno. Sempre rolou, sempre existiu. O que o artista autoral do local onde você vive precisa fazer para figurar no setlist das suas discotecagens? (risos) Tem que me mandar (as músicas) pra eu poder conhecer. Se eu achar que funciona numa pista, toco na hora. Eu trabalho com festas, então dependo muito da pista pra poder tudo funcionar, desde a história de uma foto bonita, até as vendas do bar, lógico. A gente sempre experimenta coisas novas e é assim que geralmente surgem os “clássicos” de cada festa, mas de uma forma geral, tem que funcionar na pista, nem que seja para o momento “vou no banheiro” ou “vou pegar uma cerva”. Esses momentos são pensados quando se cria um setlist? Na verdade, a gente nunca faz setlist. Falo isso por mim e pelos DJs que são meus parceiros. A gente vai sentindo na hora, tem festa que a pista demora a pegar, tem festa que já começa bombando e, a partir daí, a gente vai subindo ou descendo. Lógico, por exemplo, numa noite de [nome da festa do entrevistado], a gente sabe como começar, quem começa tocando; mas, dependendo da desenvoltura da galera, a gente vai mudando e aí não tem muito como planejar, é um eterno se-viranos-30 (risos). A intenção é sempre proporcionar a melhor festa das vidas das pessoas, e nisso a gente não foca numa megaestrutura com fogos e raio laser, a gente sabe que as pessoas vão nas nossas festas pelas
músicas, pela pesquisa de cada um, que é totalmente diferente. [nome do DJ] gosta de peso, eu gosto do que é mais pop, por exemplo. A galera já sabe o que esperar, mesmo não sabendo qual é o setlist. A partir disso, a gente vai desenvolvendo. A conexão que rola ali em cima (das pickups) é sempre incrível. Tem dia que a gente acaba a festa e fala: “Porra, hoje foi massa!”. Se você pudesse citar apenas um músico/ banda contemporânea, que melhor define as festas que você promove, quem/qual seria? Por quê? Porra, posso dividir? Eu citaria Felipe Cordeiro… ele é foda. Frenético e define bem o clima. Posso citar Baby do Brasil com essa volta, ela veio com a porra, redondinha, incrível; e sempre o DJ Magal, o cara que mais sabe o que fazer por trás de uma cabine, seja hip hop, electro, techno, disco… foi música eletrônica, ele é o cara. As festas que você promove são uma riqueza cultural ou não passam de pão e circo? (risos) Acho que um pouco de cada, senão fica chato demais e ninguém se diverte. Festa não é só farra e música não é só melodia.
#02 Há quantos anos você tem produção efetiva na música? Está satisfeito com o que construiu até aqui? Por quê? O que é produção efetiva? Se tem a ver com dinheiro, desde os 17 anos… Se for a ver com meu envolvimento sério, desde que comecei, aos 13. Não estou satisfeito, se estivesse tinha parado… Mas me orgulho do que fiz, sabendo que o melhor está por vir. O que você estava fazendo aos 13? Desde que comecei no violão, nessa idade, arriscava compor música instrumental, uma vez mostrei uma música para um professor do conservatório, ele disse que não tinha entendido nada, mas meus colegas adoraram… Então, eu preferi ouvir meus colegas e fui insistindo nesse tempo todo. Sou cabuloso. Você falou que se tivesse satisfeito teria parado. Isso vai acontecer algum dia? Não sou tão otimista… Até porque tu é cabuloso… Pois é… Insaciável (risos) Quando ficou orgulhoso pela primeira vez de um trabalho que havia feito?
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Quando percebeu que era mesmo de qualidade? Pô, na verdade, desde essa música que mostrei ao professor e ele não entendeu nada! Eu sempre estive fazendo o máximo que eu podia. Em cada época, tudo foi sincero e supria minhas necessidades. Reconhecimento de fora é outra coisa. Com o [nome da ex-banda do músico] rolou um reconhecimento de fora bem explícito, né? Foi uma época boa pra tu? É vero (verdade)… Como sempre, foi uma época de altos e baixos. Vivenciei essa coisa de banda, com todos os tapetes vermelhos desenrolados, mas sempre soube – no fundo – que ia seguir outro caminho. Então, já dentro do processo, via que não era muito pra tu aquilo ali… Quer explicar melhor? Sim… era muito divertido, eu precisei passar por isso para me encontrar. Quando comecei, minha única perspectiva era tocar numa banda, não conhecia outros caminhos. Depois fui vendo que não era exatamente aquela rotina que me satisfazia, embora tenha, sem dúvida, como todos estão cansados de saber, vários fatores favoráveis: poder de voz, interesse por sua opinião, diversão… a bajulação já acho contra, porque te põe em uma redoma. Mas analisando friamente hoje em dia, a tua saída foi bem pensada e sem arrependimento algum. Foi muito pensada e difícil, demorou anos maturando até acontecer. Você não se identifica mais musicalmente com nenhum dos que ficaram na banda? Ou nunca se identificou? Não é isso… gosto do som da minha ex-banda! Na época, como disse, tudo pra mim foi sincero. Até pelo que vejo do que estão fazendo hoje, minha saída não os deslegitimaria. Música tem diferentes funções com espaço pra todo mundo. Eu fui atrás do que mais me movia. Aproveitando o ensejo, como anda a música produzida na sua cidade? Pois é, eu ia comentar isso. Vejo com preocupação a apropriação das estéticas supostamente revolucionárias pelo establishment. Quer dizer, estamos nos tornando ursinhos carinhosos? A cooptação das bandas por multinacionais pelo Estado. Isso, ao meu ver, destrói seu poder de fogo, há uma perversidade aí. Quem está definindo os rumos da cultura, afinal? Os artistas ou quem detém os meios de divulgação? Pode ter certeza que eles não deixarão passar nada com real potencial revolucionário. A cena (da cidade onde o músico vive) tem se tornado cada vez mais inofensiva. “Eu acho que o melhor combate é se procurar entrar na fortaleza a conquistar, não é você dar tiro de fora, é procurar uma brecha e começar a influir dentro.” (Marques Rebelo). Você concorda? A oposição pode ser feita no seio das instituições? Contanto que se esteja realmente infiltrado pra desestabilizar, né? Muitas coisas podem ser feitas, outras só com rupturas mais profundas. No caso, ele se referiu a estar realmente infiltrado... Eu concordo. Todos jogamos mais ou menos infiltrados, a única alternativa a isso é o cinismo. Existem os mestres do cinismo, né? Diógenes morava num barril e saía com uma lanterna de dia procurando um homem honesto. Quando o establishment se ofereceu a ele, quan-
do Alexandre perguntou o que ele queria, ele disse: “Saia da frente do meu sol” (referência a Diógenes de Sinope). Todo avanço artístico é feito primeiro para a elite? Não. Nem elite econômica, nem intelectual, nem nada na verdade. Nem existem “avanços”, existem transformações, a arte de uma época não é melhor que a de outra época, essas transformações respondem às forças históricas, ao zeitgeist. São complexas, vindas de todas as direções. Mas existem produtos que a massa não está preparada para consumir. Há uma concentração de poder que empurra certas tendências gerais, e isso pode confundir, é questão de hábito, as mídias não estão comprometidas em habituar as massas com estéticas revolucionárias, pelo contrário, elas sabem do perigo disso. A música é muito mais perigosa do que hoje aparenta. Querem transformá-la em mero entretenimento, mas ela é isso e muito mais. Na Antiguidade, ela era assunto de Estado. Platão preocupava-se mais com a música do que com muitos outros assuntos. É impossível atingir as massas se a grande mídia não quiser? A internet já melhorou isso, embora também sua arquitetura atual dificulte o indivíduo a atingir as massas. O Facebook limita isso a todo custo. A humanidade precisa desprivatizar a internet, os bancos de dados devem ser internacionais, precisamos de uma rede de relacionamentos em código aberto. Tem um monte de coisa a falar sobre isso, mas, em resumo, a internet do jeito que é hoje, além de ser o maior banco de espionagem do mundo, funciona a 1% de sua capacidade. Além da sua atuação como músico, você tem atuado em questões relacionadas ao melhoramento da relação do homem com o espaço urbano. Os problemas começam a entrar dentro da sua casa, do seu quarto, ou você se posiciona ou é engolido, e a qualidade de vida em [cidade do entrevistado] se degradou muito em poucos anos, com o desenvolvimentismo. Eu senti que já não podia me dedicar exclusivamente à música, outras ações paralelas seriam necessárias ou eu mesmo sofreria demais no futuro, a questão da [causa social que o músico está envolvido], por exemplo, é uma causa pouquíssimo discutida, senti que se eu não levantasse essa bandeira, talvez ela não fosse levantada tão cedo; e como a luta é longa, melhor começar o quanto antes. Como músico, entendi que essa era uma luta com a qual eu poderia contribuir bem. A primeira coisa que fiz foi repensar minha estética musical, em como eu poderia estar contribuindo negativamente para o problema. Tu sempre me pareceu uma pessoa idealista e que leva essa condição a sério. Um dia você acha que vai cansar disso tudo? Às vezes, eu já faço isso meio cansado, dá uma canseira ver a quantidade de problemas, as almas sebosas trabalhando contra… Talvez um dia passe o bastão, mas por enquanto não tenho escolha. Temos que nos superar. De repente, quando chegar a hora de passar o bastão, ele estará mais leve. Pois é… ou mais pesado, dependendo do que fazemos hoje. É preciso semear. pq?
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o terceiro objeto ou fato de uma série primária: Alínea C, livro C. 2 Junto a um número, representa o terceiro termo de um érie secundária: Casa 27 C. cu sm (lat culu) ch 1. V ânus. 2. Nádegas. 3. Fundo da agulha de costurar à mão, onde se acha o orifíc C. de boi: briga, desordem, rolo. C.-de-cachorro: planta da família das Acantáceas, originária da África. de ferro: A matéria deC.capa da pq?estudan aplicado e assíduo às aulas. C. de judas: lugar distante. C. de mãe joana: a) coisa em que todos se metem; b) negócio sobre o qu a curadoria odos querem dar a sua opinião. CUR- antepositivo, do lat. cura,ae ‘cuidado, preocupação;reflete direção,sobre administração; curatela (e inguagem jurídica); cuidado, tratamento (em linguagem médica); guarda, vigia, intendente, superintendente; objeto ou causa em diferentes áreas arcuidados ou preocupações, amor, objeto amado’; a cognação lat. inclui o v. curo,as,ávi,átum,áretísticas. ‘cuidar, tratar; preocupar-se; Literatura, artes limp donde curator,óris ‘o que está encarregado de alguma coisa; inspetor, comissário; curador, tutor; rendeiro, caseiro’, curátrix,ícis visuais,curadoria; música, cura, cinema que tem cuidado de’, curátus,a,um ‘tratado, cuidado’, curatìo,ónis ‘cuidado; administração, ocupação; tratament curabìlis,e ‘de que se deve ter cuidado’, curatella ‘curadoria, tutoria’, curatorìa,ae ‘curadoria, emprego de curador’; curiósus,a,u e teatro são o nosso recuidadoso, diligente, que busca, procura com cuidado; desejoso de saber; curioso, indiscreto, imprudente’ formou-se prov. com corte crítico. Como é de ‘cuidad ntermediação de um adj. *curius, como ocorreu em noxa, noxius, noxiósus, ensinam Ernout e Meillet, donde curiosìtas,átis se esperar, cada uma diligência em buscar uma coisa, procura cuidadosa, empenho de saber’; incurìa ‘incúria, negligência’ , incurabìlis,e ‘incuráv ncuriósus,a,um ‘descuidado, desleixado, negligente, indiferente’, incuriosìtas,átis ‘negligência, desleixo, descuido’; secúrus,a,u dessas áreas tem dentro livre de cuidados ou preocupações; confiante, tranquilo, seguro’, securìtas,átis ‘tranquilidade, sossego, paz; segurança’; o desse asaccurátus,a,um suas próaccúro,as ‘cuidar, empregar seus cuidados em alguma coisa, ocupar-se cuidadosamente de uma coisa’tema , donde ‘fe com cuidado, diligência, exatidão’; o v.lat.tar. assecúro,as ‘dar tranquilidade, sossego’, o v. procúro,as de, cuidar, trat prias‘ocupar-se especificidades. olhar por, dirigir, governar’ e seus der. procuratìo,ónis ‘direção, administração, governo; comissão, cargo, emprego, dignidad Diante disso, os cinco procurátor,óris ‘o que está encarregado de alguma coisa; administrador, diretor, intendente, regente, ecônomo, procurador, agen textos que compõem caseiro, feitor, curador, governador (de província)’; a cognação vern. é rica e desenvolve-se desde as orig. da língua: acurado, acur acurativo; asseguração, assegurado, assegurador, asseguramento, assegurar, assegurável; curaessa ‘ato ou efeito de curar’ , curabilida discussão refletem curadeira, curadeiro, curadia, curado, curador, curadoria, curamento, curamimese, curamimético, curandeira, curandeirism bem essascuratelador, diferenças.curatelan O curandeirista, curandeirístico, curandeiro, curandice, curante, curão, curar, curatela, curatelado, e críticocuretado, literário,curetad curatelar, curatelato, curatelável, curatividade, curativo, curato, curatriz, curável, cureta poeta (< fr. curette), curetagem, curetante, curetar, curetável; curiosa, curiosado, curiosador, curiosar, curioseado, curiosear, Josécurioseador, Juva, inaugura estecuriosi curiosidade, curioso, curismo, curista; descurabilidade, descurado, descurador, descuramento, descurante, descurar, descurativ descurável, descuriosidade, descurioso, descuro; improcurado; incurabilidade, incurável, debate incúria, destrinchando incuriosidade, incurio nsegurança, inseguridade, inseguro; manicura/manicure, manicurado, manicuro; pedicura/pedicure, os significados pedicuro; de ‘cura- procu procuração, procuradeira, procurado, procurador, procuradoria/procuratoria, procurança, procurância, dor’ e suasprocurante, diferentesprocur procurável, procuratia, procuratório, procuratura; reassegurado, reassegurar; ressegurado, ressegurador, ressegurar, ressegu possibilidades inter-seguráv ecuritário, securite; segura, seguração, segurado, segurador, seguradora, segurança, segurando, segurante, de segurar, egurelha, segurense, segureza, seguridade, seguro; sinecura, sinecurismo, sinecurista, sinecurístico; contrastar com cura pretação. cu.ra¹ sf (lat cura) 1. Ação ou efeito de curar. 2. Tratamento da saúde. 3. Restabelecimento da saúde. 4. Emenda, melho regeneração. 5. Processo de curar ou secar ao sol ou ao calor do fogo (queijo, chouriço etc.). 6. Constr Molhadela repetida aplica ao concreto, nas primeiras horas após o lançamento, para facilitar a pega. cu.ra²sm (do lat cura) 1. Pároco, mormente de alde 2. Coadjutor de pároco. cu.rar (lat curare) vtd 1. Restabelecer a saúde de: Esse médico os curou. Curou-os com a hidroterap vpr 2. Debelar a doença, aplicando remédios; recuperar a saúde: A vítima curou-se, e o agressor foi condenado. Curou-se com mudança de clima. Procurou o tal médico e com ele se curou de antiga moléstia de pele. vtd 3. Debelar (doenças, feridas etc.). v 4. Fazer perder algum defeito moral ou hábito prejudicial: Essa reprovação curou-o para sempre, e hoje ele encontra no estu a melhor distração. Quem o curará dessa melancolia? vpr 5. Emendar-se de algum defeito moral ou hábito prejudicial. vtd Remediar: Só o arrependimento pode curar as dores do pecado. Você não o curará com palavras. vint 7. Fazer a cura: Essas erv curam, realmente. vint 8. Exercer a medicina: Este médico não vive só de curar. vti 9. Cuidar, tratar: Não curo de saber o q pensam a meu respeito. vtd 10. Secar ao fumeiro, ao sol ou simplesmente ao ar: Curar carne, peixe, queijo etc. vtd 11. Branque expondo ao sol: Curar o linho. vtd 12. Tecn Aperfeiçoar por transformação química (p ex, borracha, por vulcanização; plástic pelo tratamento com calor ou substâncias químicas, para torná-los infusíveis e insolúveis; concreto fresco, pela manutenção d condições próprias de umidad e e temperatura). CU.RA.DO adj (part de curar) 1 Restabelecido de doença; sarado. 2 Diz-se queijo ao atingir certo amadurecimento. 3 Seco ao sol ou ao calor do lume. 4 Preservado, por mezinhas e sortilégios, do vene das cobras ou de ferimentos. sm Aquele que, graças a práticas de feitiçaria, se supõe invulnerável a qualquer doença, peri veneno ou infortúnio. CU.RA.DOR sm (lat curator) 1 Indivíduo encarregado judicialmente de administrar ou fiscalizar bens nteresses de outrem. 2 pop Curandeiro, feiticeiro. C. ad litem: advogado nomeado pelo juízo para zelar os interesses dos menor ou pessoas a eles equiparadas, numa causa em que eles são parte. C. ao ventre: aquele que foi nomeado para zelar os interesses um nascituro póstumo. C. de falência ou de massas falidas: aquele que cuida de uma massa falida. C. de menores: o que defen os interesses de menores. C. de órfãos: representante do Ministério Público a quem cabe zelar pelos interesses e direitos de órfã e interditos, nos casos submetidos a seu exame e estudo, e nos processos em que eles participam ou dos quais dependem. CU.R DO.RIA sf (curador+ia1) Dir Cargo, poder e função ou administração de curador; curatela, acepção 1. CU.RAN.DEI.RO sm curar) 1 Dir Indivíduo que exerce ilegalmente a Medicina, com remuneração ou sem ela. 2 Charlatão em Medicina, que fin ratar doenças ou possessões diabólicas por meio de rezas. Sin pop: carimbamba. CU.RAN.DEI.RIS.MO sm (curandeiro+ismo Atividade de curandeiro. 2 Conjunto de práticas dos curandeiros. cu.ra¹ sf (lat cura) 1. Ação ou efeito de curar. 2. Tratamento aúde. 3. Restabelecimento da saúde. 4. Emenda, melhora, regeneração. 5. Processo de curar ou secar ao sol ou ao calor do fo queijo, chouriço etc.). 6. Constr Molhadela repetida aplicada ao concreto, nas primeiras horas após o lançamento, para facilit a pega. cu.ra²sm (do lat cura) 1. Pároco, mormente de aldeia. 2. Coadjutor de pároco. cu.rar (lat curare) vtd 1. Restabelece aúde de: Esse médico os curou. Curou-os com a hidroterapia. vpr 2. Debelar a doença, aplicando remédios; recuperar a saú A vítima curou-se, e o agressor foi condenado. Curou-se com a mudança de clima. Procurou o tal médico e com ele se cur de antiga moléstia de pele. vtd 3. Debelar (doenças, feridas etc.). vtd 4. Fazer perder algum defeito moral ou hábito prejudici Essa reprovação curou-o para sempre, e hoje ele encontra no estudo a melhor distração. Quem o curará dessa melancolia? vpr Emendar-se de algum defeito moral ou hábito prejudicial. vtd 6. Remediar: Só o arrependimento pode curar as dores do pecad Você não o curará com palavras. vint 7. Fazer a cura: Essas ervas curam, realmente. vint 8. Exercer a medicina: Este médi não vive só de curar. vti 9. Cuidar, tratar: Não curo de saber o que pensam a meu respeito. vtd 10. Secar ao fumeiro, ao sol implesmente ao ar: Curar carne, peixe, queijo etc. vtd 11. Branquear, expondo ao sol: Curar o linho. vtd 12. Tecn Aperfeiço por transformação química (p ex, borracha, por vulcanização; plásticos, pelo tratamento com calor ou substâncias químic
C cU cuR cura curar curado curador curadoria curandeiro curandeirismo
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Curadoria em Literatura:
possibilidades curativas por José Juva.
“Ser um bom feiticeiro significa estar desabrigado no meio da tempestade. É viver a vida em todas as suas fases. Quer dizer ser um louco de vez em quando. Isso também é sagrado.” (Corzo Cojo, feiticeiro sioux da tribo lakota)
Eis uma excelente imagem capaz de funcionar como gatilho para pensarmos a figura de um curador: um desabrigado no meio da tempestade. Quando Carlos Gomes, editor desta publicação, me convidou para escrever sobre curadoria e literatura, meu primeiro pensamento foi: não vou aceitar, pois minhas incursões como editor são incipientes, nunca fui curador de nenhum evento literário. A sensação era de estar desabrigado no meio da tempestade.
Entre vários registros para “curador” encontrados no dicionário, chamou-me a atenção, além das reverberações de mago, feiticeiro, aquele que lida com a cura, um uso regional: tratador de cavalos. Considerei muito pertinente pensar na figura do curador como um tratador de cavalos desabrigado no meio da tempestade. Diante do enorme fluxo de criações literárias, ante todos os mares de ficções verbais antigas e contemporâneas, encontrar sentidos possíveis e lúcidos capazes de estabelecer um diálogo fecundo com o público não me parece tarefa menos sensível e exigente que cuidar dos corcéis, cuidando de si ainda no seio da borrasca. Um curador de literatura me parece um tradutor de sentidos. Atua num lugar do campo para colocar em contato as criações artísticas, as reflexões críticas e a apreciação pública. O escritor, desculpem-me o óbvio, escreve – é isto que podemos esperar dele. O curador mobiliza, favorece a circu-
Landscape in stormy weather (1885), de Vincent Van Gogh.
Segundo pensamento: aceitarei o pedido do texto, irei conversar com umas figuras que lidam com o tema, que já realizaram trabalhos na área. Pensei em mandar umas perguntas para os escritores Wellington de Melo (um dos idealizadores da Free Porto – Festa Literária de Recife, idealizador do Festival Internacional de Poesia do Recife, entre outros muitos lances) e Cristhiano Aguiar (editor das revistas Eita!, Crispim, curador do Festival Recifense de Literatura, organizador de antologias e outros fluxos). Não fiz isto. Terceiro pensamento: irei atravessar esta tempestade sozinho. Eis uma decisão de curadoria. Pensei, afinal, assumir os riscos de seguir um pouco louco com algumas imagens que despertaram após o convite de Carlos (também uma decisão de curadoria). E aqui vamos nós.
cu.ra.dor
sm (lat curator) 1 Indivíduo encarregado judicialmente de administrar ou fiscalizar bens ou interesses de outrem. 2 pop Curandeiro, feiticeiro. C. ad litem: advogado nomeado pelo juízo para zelar os interesses dos menores ou pessoas a eles equiparadas, numa causa em que eles são parte. C. ao ventre: aquele que foi nomeado para zelar os interesses de um nascituro póstumo. C. de falência ou de massas falidas: aquele que cuida de uma massa falida. C. de menores: o que defende os interesses de menores. C. de órfãos: representante do Ministério Público a quem cabe zelar pelos interesses e direitos de órfãos e interditos, nos casos submetidos a seu exame e estudo, e nos processos em que eles participam ou dos quais dependem.
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lação, é ponte. A partir de sua sensibilidade e técnica, faz os recortes de uma obra, concebe diálogos e tece fios de Ariadne para os labirintos da compreensão, articula várias obras e autores num evento, numa publicação: propõe, organiza, ordena, associa, classifica, disponibiliza, entre outras coisas. E fazer isto é atribuir valor, interpretar o mundo, lançar um olhar, realizar apontamentos, estimular a fertilidade das trocas de ideias. E assim fiquei pensando no curador como uma espécie de demiurgo.
com as marés de ficções verbais pode ser confusa, dado seu caráter múltiplo, seu esqueleto inesgotável, o curador age como um ordenador do universo (não à toa esta é a expressão que os sumérios utilizavam para os organizadores de suas escrituras). O curador age como o poeta cirenaico Calímaco, que empreendeu a tarefa de catalogar meio milhão de volumes da biblioteca de Alexandria, um prodígio que ultrapassa a questão das cifras ao exigir a concepção de uma ordem literária que deveria de
O curador literário é um mediador que circula entre artistas, criações, crítica e público, fomentando a permanência e a pertinência da conversa, do intercâmbio, da troca. O curador/demiurgo é o sujeito que dá forma a uma matéria desorganizada, instiga afinidades eletivas ao aproximar autores de diferentes extrações num festival, a partir da semelhança e da diferença, através de dispositivos (um conceito, uma palavra, uma imagem, um verso, etc.) agrupa vários mundos míticos próprios de cada autor para engendrar outro mundo que ultrapassa a soma das partes para ter significado próprio, um dedo que aponta para a lua e serve como estrela de referência para crítica e público. A curadoria se torna, enfim, uma espécie de obra ela também, ou pelo menos se traduz como arte (técnica e sentimento). Insisto na emoção, na potência do sentimento. Acredito que curadoria vai além da mera classificação mecânica, da ordenação da lógica fria. É um tipo de encontro do guarda-chuva com a máquina de costura na mesa de cirurgia. Mas o desregramento dos sentidos que enxergo na atividade da curadoria literária não se rende ao exercício do acaso pelo acaso, no embaralhar do arbitrário com o arbitrário. Se a vivência íntima e profissional
algum modo desdobrar a ordem mais ampla do próprio universo. Curadoria não é apenas a organização de obras, autores num dado suporte ou evento, mas a organização de um mundo, o esforço em busca de sentido. A este respeito, será valioso recorrermos a uma passagem do ensaio “Ovos de dragão e plumas de fênix, ou uma defesa do desejo”, de Alberto Manguel, presente no livro “No bosque do espelho”. Eis o trecho: “Somos criaturas ordeiras. Desconfiamos do acaso. As experiências chegam até nós sem um sistema reconhecível, sem motivo inteligível, com generosidade cega e descuidada. Contudo, diante da própria evidência do contrário, acreditamos na lei e na ordem. Ansiosos, guardamos tudo em arquivos, compartimentos, seções distintas; febrilmente distribuímos, classificamos, rotulamos. Sabemos que esta coisa que chamamos mundo não tem um início com sentido ou um fim compreensível, nenhum propósito perceptível, nenhum método em sua loucura. Mas insistimos: ele deve fazer sentido, deve significar algo.” (MANGUEL: 2000, 164) O curador é um destes sujeitos que insistem. E sua insistência oferta
ao público o fruto de um olhar que se exercita na compreensão do mundo a partir dos desdobramentos de outros olhares que também se debruçaram sobre a compreensão do mundo; sua insistência pode possibilitar a aglutinação de pessoas em torno de questões antes despercebidas ou apenas sutilmente intuídas; sua insistência é capaz de fornecer sentidos, ainda que provisórios, nítidos o suficiente para manter a chama da pesquisa acesa, manter a vontade de descoberta e invenções com gosto renovado. Imagino o exercício da curadoria literária como a loucura sagrada, ouvindo as respirações de obras e obras, atenta aos assobios dos mundos míticos inscritos pelos artistas, mundos prenhes de capacidade de articulação rizomática, de estabelecimento de fluxos, câmbios significativos, trocas férteis com o público e a leitura crítica. O curador é um tipo de psicopompo, de condutor e mediador de universos e aí reside, acredito, uma possibilidade terapêutica da arte. Se o psicopompo é o sujeito capaz de transitar entre polaridades, como a morte e a vida, a noite e o dia, guiando a alma dos mortos e fornecendo instruções e ajudando na formação de percepções sobre a existência, o curador literário é um mediador que circula entre artistas, criações, crítica e público, fomentando a permanência e a pertinência da conversa, do intercâmbio, da troca. A mediação estabelecida pela figura do curador é o empenho em perceber, em reconhecer desenhos nas nuvens, favorecendo a possibilidade da visão para outras pessoas, mas possibilitando também visões distintas. Ao agir na busca de sentidos significativos para a compreensão de nosso tempo, partilhando-os, o curador, depois da intimidade estabelecida com cavalos selvagens e da construção de abrigos da tempestade, luta contra o sequestro dos sonhos. E isto não é pouco. É um abraço numa pessoa: isto é abraçar o mundo, estrela da cura. pq?
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Curadoria em Artes Visuais:
por Ana Luisa Lima.
Yes/No (1974), de Richard Artschwager.
Depois de celebrados: a morte do autor, o fim da história e das utopias, é possível que, de uma vez por todas, estejamos caminhando para o auge da Era Finus latu sensu em que o fim de todos os parâmetros nos parece ser uma finalidade em si mesmo. E ainda que, finalmente, as agendas sociais estejam inflamadas nas ruas de todo país, nada nos assegura uma mudança de fato. Temos combatido o terror com vinagre. Os atos ainda são reativos e não propositivos. O fin ainda é um radical desejante de desinências verbais. Diante disso, me parece que tecer quaisquer considerações sobre os modos de fazer, hoje, só é possível se também for possível estabelecer um parâmetro prospectivo, ou autocrítico para o início de uma
prospecção. De outro modo, recairemos num exercício retórico, ou, o que é pior, um jogo pueril de culpas e acusações entre comadres. Não há dúvidas da urgência em se criar outros conceitos que deem conta de abrir caminho para os atos profanos (e vice-versa) que, de uma só vez, destruam mitos e instaurem novos ritos de passagens. Naquilo que diz respeito à arte, há muito, me sobrou muito pouco a dizer. Explico: embora seja possível perceber que existam trajetórias artísticas de relevância estética, não me é possível ver nessas uma relevância política. Embora exista um esforço em se diluir, e até mesmo anular, o parâmetro de direita e esquerda na vida política, esse é ainda o único em que consigo encontrar respiro e pulsação para os modos de ser e estar no mundo. E para deixar claro do que estou falando, tomo a liberdade de parafrasear Deleuze. Ora, ser de esquerda é vislumbrar o horizonte, antes de a si mesmo. É um pensar-agir consciente de que o coletivo vem antes do individual, de que o público vem antes do privado. E isso não passa por uma questão moral, ou uma jornada espiritual altruísta, é uma questão de percepção. Sob esse olhar, me sobra muito pouco a dizer soObra de Barbara Kruger (1984).
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A curadoria, a crítica de arte e o público, diante da produção artística, flexionava as desinências de acordo com os radicais produzidos pelos artistas. bre o campo da arte, hoje, porque não há qualquer contribuição de largo alcance em que o coletivo exista antes do interesse privado. Muito pelo contrário, o que se vê é cada vez mais a legitimação de um sistema de privatização da experiência coletiva. O campo da arte foi construído, nos últimos tempos, de maneira que a arte paulatinamente foi perdendo seu valor simbólico, sua importância enquanto imaginário coletivo, para se tornar valor de troca, valor de mercado. Não à toa é que prevalecem as grandes feiras e exposições espetaculares que pouco atentam para as experiências estéticas: a fruição pelo corpo que produz diálogos. O que temos é a volta de uma experiência retiniana, quando muito, uma experiência corporal automática, de resposta imediatas, sobretudo, quando os trabalhos requerem interatividade. No lugar da fruição, o consumo. A pergunta que me ocorre é: as questões da curadoria são apenas sintomas do modo capitalista em que a arte se deixou engolfar? Notadamente, em nome da profissionalização do campo, o fenômeno da produção artística deixou de ser algo que diz respeito apenas ao artista em seu ateliê. Ao que parece, a produção artística não mais existe sem a mediação institucional-mercadológica que cumpre a dupla função de nomear (legitimar) e demandar. De modo que, dentro dessa lógica, o curador é menos um agente, mais um articulador nessa grande engrenagem. A estrutura pela qual a arte se deixou sucumbir é tão
esquizofrênica que a obra a priori movia e era ela mesma produção de conhecimento, nos moldes atuais, tornou-se apenas alvo do manejo retórico laudatório com a finalidade última de especulação do seu valor de mercado. Em outras palavras, o artista era o produtor simbólico que gerava, em torno de si, a produção de conhecimento, e não o contrário. A curadoria, a crítica de arte e o público, diante da produção artística, flexionava as desinências de acordo com os radicais produzidos pelos artistas. De modo que o vocabulário estético era também político, porque se tratava de uma construção dialética dos agentes culturais (artista, crítico, público, curador etc). Nas condições atuais, o mercado especializou-se em criar demandas de produções artísticas adjetivadas (arte digital, arte política, arte performática, arte vida etc), de tal maneira que as curadorias/editais culturais passaram a impor o vocabulário estético a ser usado pelo artista. Ao que os fatos indicam, não é só minha a dificuldade de ter o que dizer sobre arte. Há muito não se vê circular qualquer tipo de debate gerado pela arte que fosse de relevância coletiva. Muito pelo contrário, o que se tem visto é o foco voltado para curadores cada vez mais tratados como celebridades. Em suma, o que se vê nos jornais é um excesso de listas de curadores legitimados por um mercado que estimula quantidade no lugar da qualidade dos projetos realizados por esses. Se as atuais produções curatoriais são apenas sintomas do modo de ser e estar mundo ditados pelo capital, outra coisa é certa: o caminho que a arte segue também é um sintoma desse modo de fazer curadoria . O que se pode dizer disso é que a produção artística encurralada nesse jogo de legitimação e demanda tem se deixado repetir em procedimentos e visualidades. Tais repetições dão lugar a um formalismo vulgar em que se torna irrelevante querer flexionar as desinências dos mesmos radicais. pq?
Obra de Ion Bitzan.
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Curadoria em música:
Festivais de música como a principal vitrine por Raquel Monteath.
“Não tem mais cura a febre da curadoria. O curador tornou-se uma das obsessões do nosso tempo”. Essa é a opinião do jornalista e pesquisador Eduardo Veras, na resenha crítica de Sobre o ofício do curador, de Alexandre Dias Ramos. Basicamente, podese encontrar a figura do curador em diversas atividades desenvolvidas hoje em dia - desde o coordenador, que passou a ser o “curador do curso”, o editor, que virou o “curador de conteúdo”, até o organizador de exposições, o bem famigerado “curador de arte”. Pensar as linguagens artísticas e o seu lugar na sociedade não é nem nunca foi tarefa fácil. Legitimá-la, então, está longe de andar separada da palavra ‘complexo’. Por essa razão, parece ser impossível viver em um mundo sem o qual o curador não esteja presente, principalmente numa área como a música e justamente pela abertura que temos atualmente, tanto nas ferramentas de produção quanto em seu escoamento e difusão, regidas pelo fenômeno da internet. Mas então, quem seria essa pessoa responsável pela catalogação e discernimento de quem entra ou não na grade de determinado festival de música?
Cada área tem suas peculiaridades, e na música é muito diferente das artes plásticas, por exemplo. Música requer um recorte de compreender quais artistas, além dessas características, conseguem se sair muito bem ao vivo”, comenta o produtor e músico Iuri Freiberger, que esteve à frente, entre 2006 e 2010, da curadoria de um dos maiores festivais independentes do país, o Gig Rock. Nesse período, lembra, fazia um levantamento de artistas locais e de outros estados, que estavam com o trabalho vivo no momento do festival, e propunha a eles a sua participação - com uma ajuda de custo em cada nível (iniciante, artista médio e consagrado), sempre dentro do re-
corte de rock e indie nacionais. Para ele, o ponto principal de se pensar é o que a curadoria de um festival pode fazer pelo seu público. “Ela (a curadoria) deve apresentar uma mostra consciente, para quem conhece e tem interesse na área. É um tipo de evento que se torna referencial para o mercado, visto que a música quase não tem mais palcos no país, a não ser em eventos populares de grande porte”, afirma. Garimpar, classificar, escolher. Estar atento. Importante entender que para além da responsabilidade de montar essa mera vitrine mercadológica, o papel dos curadores de festivais de música deve levar em consideração o propósito de existên-
“Creio que o curador deva ser alguém que tenha bastante conhecimento em sua área, sobre quem está ativo, quem criou visibilidade e tem representatividade no seu mercado.
Ilustração de Zdislav Beksinski.
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cia destes, como lembra o produtor Leo Antunes, a respeito da coordenadoria que desenvolve no Festival Pernambuco Nação Cultural (FPNC), um dos maiores festivais financiados com dinheiro público no país. “Para mim, a tarefa de coordenar o festival é um grande híbrido entre o operacional, que envolve áreas como planejamento, logística, orçamento e comunicação, e o conceitual”, diz. O FPNC é uma das maiores marcas-conceito do governo pernambucano nos últimos anos - em que pese a questão “conceito”, pois existem diversos ‘ranços’ entre a classe artística do estado e o festival por motivos como o atraso no pagamento de cachês, que está em aberto desde 2010, causa esta levantada por artistas como Nação Zumbi e China. Logo, o processo de curadoria de um festival que abrange todo o estado, em suas diversas linguagens artísticas, não poderia deixar de ser complexo. O FPNC acontece durante todo o ano, em forma de festivais regionais – como o Festival de Inverno de Garanhuns (FIG) – e geralmente é planejado com três meses de antecedência, quando o orçamento é definido. “A curadoria é feita de maneira compartilhada. A Secretaria de Cultura faz a organização estratégica e a Fundação do Patrimônio Histórico e Artístico de Pernambuco (Fundarpe)
Adelmário Coelho se apresenta no palco do Festival Nação Cultural (São José do Belmonte/PE. Foto: Ricardo Moura/Secult-PE)
executa a coordenadoria. Não é um festival de uma cabeça só, é um coletivo, que também tem o dever público para com o público, artistas, prefeituras e as demandas do próprio governo”, resume Antunes. O resultado deste organismo vivo, criado para alcançar o objetivo democrático de inserir em grandes grades de programação manifestações culturais que nem sempre possuem espaço para tal, é sempre o melhor em sua intenção, pelo simples fato de existir e de explorar diversas cidades das macrorregiões de Pernambuco. “O objetivo é fazer com que a produção de Pernambuco circule em Pernambuco, e diminuir essa disparidade de só ter espaço no eixo Rio-
O contato ao vivo entre banda e público é tudo, nada substitui isso. Por mais que você tenha tudo disponível na internet, fica faltando um filtro. E eu acho que os festivais funcionam como um filtro para o público.
(Gutie)
São Paulo”, afirma. Porém, sem dúvidas é um festival cheio de aberturas recorrentes, típicas de qualquer produto feito e pensado para o grande público e financiados pelo poder público. Muitas vezes as pesso-
as não se identificam com as atrações. Noutras, são apostas mais que acertadas em diálogos favorecidos pela troca conceitual do festival. Em uma de suas edições, realizada em São José do Belmonte, no Sertão Central, uma dupla de aboiadores subiu espontaneamente no palco nos intervalos de cada show e fez suas apresentações. No ano seguinte, a coordenadoria de literatura do festival foi acionada e este momento foi planejado. Da coordenadoria passou para a curadoria, direção de palco e, enfim, a execução. “O processo de construção dessa grade não pode ser descuidado. A função foi pensar nesse todo, em como executar uma atração literária nos intervalos de um show musical, sem que a mudança de palco dos artistas fosse prejudicada”. O grande desafio então, no tocante à curadoria do FPNC, é achar vínculos, ou coser bem as atrações da noite, tanto para criar uma grade coerente com o público em questão quanto para surpreendê-lo. “A lógica de curadoria é criada a partir do momento em que juntamos dois públicos distintos. A forma de público do Nação é diferente, pensa-se principalmente na palavra ‘diálogo’”, comenta
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Foto: Divulgação
Foto: Pri Buhr/Secult/Fundarpe
Leo.
Os músicos JuveNil Silva e Ju Orange, que atuam no cenário musical recifense desde 2001, opinam sobre a curadoria nos festivais de música. Ele já passou pelas bandas The Kaveman (projeto com Jean Nicholas), Canivetes e, atualmente, toca na Dunas do Barato e em seu projeto solo homônimo. Ela já tocou nas bandas Physalia, Red Chords, Electrozion e Ampsilina; atualmente está à frente da Voyeur. Qual a sua opinião, enquanto músico, do processo de curadoria nos festivais de música aqui no Recife? JuveNil Silva: Brodagem + Soma de pontos + propostas acessíveis + canal legal + consideração inconsciente + culpa + sorte/azar + vozes superiores = A certeza dos peixes e o mistério para os leigos. Eu prefiro fazer o meu sem pensar muito nesse assunto ou esperar algo disso. Ju Orange: Sempre que sei que vai ter alguma curadoria pra festival eu tento preparar o melhor material que puder. E é dessa forma que a gente participou de alguns festivais, nunca consegui entrar em nenhuma panela feito a galera fala muito aqui em Recife. O que você acha do processo de seleção? JuveNil Silva: Em escolhas de bandas ou projetos para tocar em lugares como Grandes Festivais, eventos da prefeitura ou seleções e aprovações de projeto, acredito que sejam diferentes. Cada um tem ou nem tem cara. Os grandes festivais vão mais pelo hype, moda, pelo cult, seja do momento ou das antigas, mas de acordo com os perfis deles. Eu acho ok, façam o que quiserem, vai quem quer. Ju Orange: Todo mundo sabe que pra entrar em festival por curadoria
você precisa estar bem ativo, tocando, gravando, que isso que dá uma visibilidade maior pra banda, e aí com um material bom e bem feito tem mais chance ainda. Claro que tem festivais que já gastei uma grana preparando material pra mandar e quando sai o resultado você descobre que já tinham muitas bandas que antes de enviar já estavam confirmadas. Acho que em todo canto tem isso. Como você vê o papel do curador nos festivais de música? JuveNil Silva: Tem que ser o ligado, né?! O canalizado, o garimpeiro... E acima de tudo, no mínimo, o cara tem que sacar, tem que entender muito de música! É como um cara lá no sebo do INSS passando horas e horas se sujando todo de poeira e bolor atrás das pedradas, levando uns só pra conhecer, arriscando outros, achando agulha no palheiro. Ju Orange: Se todo mundo desse uma parada pra ouvir todas as bandas, mesmo se não for de amigo, o mercado ia andar muito mais. É muito mais prazeroso pra banda quando você é selecionado de verdade, por mérito, como foi no caso da Voyeur na Feira da Música Brasil, em Belo Horizonte. Tem muita coisa boa, muita gente fazendo e muita gente disposto a entrar no mercado. É importante dar atenção a isso. pq?
Como o pensador Erick Hobsbawn chegou a dizer no Festival de Música de Salzburgo em 2006, “Os festivais se multiplicam como coelhos”. Mas esses eventos têm também um grande objetivo: obter lucro. Ou seja, são necessários artistas que deem uma resposta de venda de ingressos. Em festivais que são públicos, organizados por governos, a pressão política pode ocorrer em alguns casos. Já os festivais que são privados, mas que possuem patrocínios públicos pelas leis de incentivo, raramente têm problemas políticos, e normalmente são desenvolvidos e curados pelos próprios produtores. No Recife, o Rec-Beat, um dos festivais de música independente mais populares do país, é uma das propostas de maior longevidade nesse sentido. Inserido na grade oficial de programação do carnaval multicultural da cidade, ele traz atrações locais e internacionais gratuitamente, pensadas ao longo de todo um ano e casadas com o sucesso de público já esperado para o evento. “Faço muitas viagens, visito festivais, feiras e mercados de música e, é claro, ouço tudo o que posso, desde lançamentos e também coisas antigas, históricas. Procuro sempre estabelecer uma ligação entre o passado e o futuro”, comenta Antonio Gutierrez, idealizador, produtor e curador do festival. “Todos os acertos e erros são de minha responsabilidade. Tenho bastante convicção do que busco para o Rec-Beat, e isso implica em estar sempre atento à produção musical não só de Pernambuco, mas também de outras regiões do Brasil e do mundo”. A existência de festivais, então, passa a assumir um papel de legitimação do trabalho artístico - ou quem não gosta de ver o seu trabalho sendo escolhido e apresentado para um grande público? “Acho que os festivais, principalmente os festivais independentes, são o melhor veículo para levar a nova música para as pessoas. O contato ao vivo entre banda e público é tudo, nada substitui isso. Por mais que você tenha tudo disponível na internet, fica faltando um filtro. E eu acho que os festivais funcionam como um filtro para o público. Nesse ponto, eles têm uma grande responsabilidade, que é a de abrir janelas que surpreendam as pessoas, que emocionem”, opina Gutierrez. pq?
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como cura do
dia a dia por Cecília Shamá.
Pôster do Festival Internacional de Cinema e Belas Artes em Bruxelas (1947-1947), por René Magritte.
Cinefilia
Curadoria em cinema:
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Quando Cecília se encontra na difícil tarefa de escolher entre realidade e a ilusão, ao se defrontar com seus amores imaginários no filme A Rosa Púrpura do Cairo (1985), do diretor Woody Allen, a moça estabelece o limiar entre ficção e vida real: são, os filmes, o escape da Grande Depressão de 1929 ou da sua depressão, advinda da normalidade que nós, mortais, estamos inerentes a enfrentar, ao contrário dos nossos amigos de celuloide? Todo cinéfilo é um curador, aquele ser vigente que guarda seus frames como se fossem tesouros a serem compartilhados, ou quando entra numa locadora, tal qual uma criança numa papelaria e escolhe como vai colorir seu mundo, onde picotar, o que dispensar, e o que lhe atrai o olhar. Curadoria cinéfila traz em sua carga a emotividade de uma doença crônica, quase bipolar: amamos e odiamos com a mesma intensidade. E se desprezamos uma corrente cinematográfica ou determinado filme, fazemo-nos com a propriedade de um inquisidor. Não ousamos sequer citar o nome do maldito. Curador; aquele que é responsável pela conservação da arte ou de determinada expressão artística que deseja transmitir. Quando organizamos festivais ou mesmo clubes para sentarmos e debatermos sobre escolas ou projeções fílmicas, a escolha pessoal de qualquer membro sempre irá decidir os rumos da conversação. Seja ela informal ou institucionalizada. Para Alan Campos, estudante do quarto período de Cinema da UFPE, a prática da cinefilia começou desde criança, quando atraído pela História dentro da estória dos filmes, uniu em seu imaginário infantil o estudo do cinema como profissão e paixão pessoais na esfera acadêmica. Agora é um dos membros de um cineclube improvisado com os amigos Barbara Carvalho, Mário Rolim, Guilherme Padilha
Escapar é preciso, pois, diante da insatisfatória realidade, surge o imaginário mais real do que a própria vida: a projeção do cinema em qualquer meio, em qualquer formato de tela, em conversas de botequins e em sala de aula. e Houldine Nascimento. A união surgida da necessidade de debater sobre filmes para além da sala de aula, e da fome por outros títulos, que não apenas os indicados pelos professores, passaram a ser cotidiano dos estudantes, que se organizam de acordo com a disponibilidade da carga horária de cada um e da salas, para poderem realizar a projeção dos filmes. Fernando Mendonça, bacharel em Biblioteconomia, mestre em Letras e doutorando em Literatura Comparada na UFPE, também é um amante dos filmes desde antes de saber que o era propriamente, enquanto estudo acadêmico. Interrompido de continuar como membro ativo do Cineclube Dissenso (que acontece aos sábados, às 14 horas, com entrada gratuita) e curador de mostras cinematográficas, como a de Cinema Português na Caixa Cultural no Recife, ocorrida entre os dias 21 e 26 de maio deste ano. Atualmente, realizou, em conjunto com o cineclube de Letras, uma mostra sobre Hitchcock no Centro de Artes e Comunicação. Qualquer um que conheça Fernando já liga seu amor a mostras, cinema e literatura ao seu mundo e sua personalidade: “Sinto que me despedi em grande estilo, lá na mostra portuguesa da Caixa. Foi uma sessão linda. Escolho os filmes, puxo o debate pós-sessão, bombei na divulgação. Quando eu amo eu faço acontecer. E ponto. Mais uma grande memória.”
Escritor, teve que interromper suas atividades curadoras do ano para se dedicar à tese de doutorado, mas não sem remorso. Acaba de publicar seu segundo livro, Um detalhe em H, mais uma viagem pelo universo de Fernando, dessa vez literária, que acaba por ser ele mesmo em si: “Esse vermelho que me é cinema, paixão e vida...” (na mesma tarde em que conversamos sobre Maya Deren e o mundo vermelho, caso ela filmasse em cores), como afirma. Esta mera colecionadora de imagens e de escape cinematográfico que vos fala, também é um rato de cinema. Quando a Cecília do Allen e a Cecília colunista se mesclam em minha própria sinestesia cinéfila: assistir a filmes é preciso. Escapar é preciso, pois, diante da insatisfatória realidade, surge o imaginário mais real do que a própria vida: a projeção do cinema em qualquer meio, em qualquer formato de tela, em conversas de botequins e em sala de aula. Pois que não admitimos a prática da cinefilia como alienadora, mas como uma busca eterna já fracassada pela incapacidade de abraçarmos o mundo com nossos pequenos braços humanos. Todos os filmes que queríamos nessa mania ordinária da existência que teima mais do que tudo em ser uma só; e os filmes, a quantidade deles, e nosso carinho são maiores até do que desejaríamos cultivar, mas que existe para além de nós, os filmes, são os filmes. pq?
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Curadoria em teatro:
escolhe-te a ti mesmo por Karol Pacheco.
Russian Ballet (1916), de Max Weber.
Toda unanimidade é burra, já dizia o pernambucano Nelson Rodrigues. O dramaturgo, hoje já considerado como um dos mais importantes do teatro brasileiro, teve diversas obras vetadas por rigorosos censores até poderem chegar aos palcos. O que antes era regido pela moral e os bons costumes, agora passa a ser selecionado por outros critérios, como o interesse do público, logística e até orçamento. O trabalho realizado por grupos e companhias de artes cênicas passa pelo crivo dos curadores que selecionam montagens para festivais e apresentações Brasil afora. Em Pernambuco, talvez seja o Janeiro de Grandes Espetáculos - Festival Internacional de Artes Cênicas de Pernambuco (JGE), que já acontece há 19 anos, a maior vitrine para o trabalho dessa classe artística. No estado de Pernambuco, profissionais de diversas esferas e segmentos das artes cênicas se empenham para conseguir o espaço que pode lhes garantir visibilidade e, consequentemente, maior reconhecimento.
Grandes Espetáculos), às vezes, a gente adora um espetáculo, mas ele não possui perfil para o público. O público do festival é de A a Z. A gente tem que levar até Z e às vezes a gente não conhece. Então, a gente colocava a Trupe (do Barulho, grupo de comédia), e movimentava todo o mercado de trabalho em artes cênicas”, brinca. Os espetáculos submetidos ao festival nem sempre acompanham a dinâmica da curadoria. Sejam eles conceituados ou não, tanto em âmbito nacional quanto internacional, se faz necessário compreender que antes de qualquer submissão, se eles estão dentro dos parâmetros pré-estabelecidos pelo perfil e regulamento do festival. O ator Ângelo Fábio, também artista interdisciplinar e comunicador social, já submeteu sua obra à
maior intenção é provocar estranheza, propor novos olhares ao público”. O grupo recifense Magiluth foi um dos grupos convidados para o festival agrestino e um dos que representam nas artes cênicas de Pernambuco esse contributo a novas visões artísticas. Somando nove anos de trajetória, criou o Trema! – Festival de Teatro de Grupo, que teve sua primeira edição em 2012. Pedro Vilela, gestor e diretor do grupo, levanta o questionamento do papel da curadoria institucionalizada, “focada no gosto pessoal do curador, na troca de favores e no mercado”, conforme considera. Ele também explicou o que os motivou a executar o projeto: “Percebíamos que inúmeros trabalhos que necessitavam circular para estimular as práticas artísticas não tinham espaço. A primeira edição do Trem não possuiu entraves curatoriais. Na verdade, mareamos grupos parceiros que possuíam circulações aprovadas e que desejavam trocar saberes em Recife e os convidamos!”, comentou entusiasmado.
Qual seria o verdadeiro papel de um curador quando a própria classe artística indica seus nomes?
Para Paulo de Castro, diretor da Associação Produtores Artes Cênicas de Pernambuco (APACEPE) e um dos produtores do JGE, a montagem da grade de programação do evento segue um processo democrático. “Reunimos todos os grupos participantes em reunião para selecionar os curadores. Normalmente, não vem todo mundo. A gente solicita os nomes indicados por cada grupo e tiramos os mais bem votados”, explica. De acordo com o produtor, o JGE foca principalmente na classe artística, através de ações que abram o mercado de trabalho. “Teve espetáculo que não entrou na grade, que nem chegou a ser julgado por não ter currículo. E a gente considera, nós podemos julgar para eles entrarem”, conta. Paulo de Castro ainda afirma que a decisão final é tomada com base de interesse do público: “No Janeiro (de
(Ângelo Fábio, ator) curadoria do festival e não foi contemplado. Ele afirma desconhecer “uma ação curatorial que justifique a não classificação” e que normalmente são “padrões estéticos pré-estabelecidos que levam à marginalização de uma obra”. Ângelo nos faz uma pergunta retórica, questionando “qual seria o verdadeiro papel de um curador quando a própria classe artística indica seus nomes?”, e defende “um processo curatorial de risco, onde o desconhecido seja o protagonista da história.” É nessa perspectiva do novo que Fábio Pascoal, produtor do Festival de Teatro do Agreste (Feteag), que acontece desde 1981 na cidade de Caruaru, defende a curadoria do festival que visa “inovar e quebrar as perspectivas”. Ele vai ainda mais longe: “a
“Tem um processo de curadoria aqui em Recife que acho estranhíssimo... o do Festival de Teatro de Recife, onde a prefeitura contrata curadores de São Paulo para fazer um festival aqui. Acho que está na hora de nós dizermos o que queremos ver e não alguém dizer o que devemos ver”, enfatiza Pedro. Mas afinal, o que o público, especificamente o público do Recife, quer ver? Segundo o gestor do grupo, o papel do artista não é atender ao público e sim propor novos olhares. “Numa sociedade onde a barbárie reina, devemos propor obras que sejam revolucionárias em sua essência, seja em conteúdo ou em forma”, conclui, alertando que o “a existência do Magiluth não está pautada no lucro ou no mercado, mas no discurso”. Enquanto questionam-se os critérios de seleção de um processo curatorial, a definição pela própria curadoria ainda não é unânime. Se
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mo assim, acho que a dificuldade é essa: assistir as produções nordestinas sem receio de ser feliz. Acredito que não, até porque o Nordeste nunca foi uma região mais miserável em termos de produção, economia e criatividade”, comenta, e compara com a circulação que montagens de outros estados do eixo sul e sudeste que já detêm no circuito de festivais de artes cênicas no Brasil.
Cordel do Amor Sem Fim. Foto: Diogo Lopes.
Pedro Vilela estranha a contratação de curadores paulistas, Samuel Santos, diretor do grupo O Poste Soluções Luminosas, vê com bons olhos inserção desses profissionais. “Isso tem ajudado bastante a conexão sul/sudeste/nordeste. Mes-
Com a montagem Cordel do Amor sem Fim, o grupo O Poste Soluções luminosas foi convidado para 14 festivais, entre competitivos e mostras nacionais e internacionais. Além de Pernambuco, chegou a circular no Rio Grande do Sul, Paraná, Minas Gerais, Bahia, Alagoas e Sergipe. De acordo com Samuel, isso deu visibilidade ao grupo e projetou ao mesmo tempo o teatro nordestino. Samuel já participou duas vezes como curador do JGE. Ele conta que se trata “de um processo de escolhas por DVD, o que é um processo bem delicado, pois na imagem gravada do teatro há um choque abissal de linguagens”, afirmando que isso dificulta a seleção. pq?
Vários artistas, cansados de submeter as suas obras ao crivo de curadores de festivais, decidem ter os seus próprios palcos. Sem censuras artísticas, estéticas ou ideológicas, a arte sai à rua. Kika Farias, intérprete do personagem Dona Mocinha e atriz de rua, começou o seu trabalho de pesquisa no movimento popular da Região Nordeste. Segundo ela, foi o ponto de partida. “A partir daí, tudo virou espaço para realização da ‘brincadeira’. Qualquer pé de árvore, de rua, biblioteca, festas, praças, feiras, tudo virou espaço possível para levar arte para o povo”, afirma. A rua transmite uma imprevisibilidade que sugere atiçar a criação, podendo transformar uma apresentação num ato performático coletivo. Para Ângelo Fábio, que também é performer, a rua oferece múltiplos sentidos. “A performance me abre a outras perspectivas e silêncios. Sua alquimia enfeitiça e nos deixa em constante perigo”. Explicitando a diferença entre teatro e performance, Ângelo encara esta última como o que “nos faz tocar ao nosso outro ‘eu esquizofrênico’. Não é à toa que ela é interdisciplinar e pode entrar em qualquer campo”, destaca. pq?
Foto: Miguel Igreja.
Grito dos excluídos
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por Ricardo Maia Jr.
Diálogos busca subverter os posicionamentos estabelecidos nas entrevistas usuais. Uma questão é lançada no início do debate para direcionar os argumentos. Os rumos que se seguem variam a partir das deixas dos dois debatedores, que estão sujeitos ao imediatismo e aos saltos da oralidade. O processo é gravado, transcrito e editado sem tirar a naturalidade da conversação. Confira nesta edição da pq? uma conversa com o músico Zeca Viana e o editor e curador da revista MI Rodrigo Édipo. Veja as entrevistas na íntegra no site outroscriticos.com. Trumpet (1984), de Jean-Michel Basquiat.
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zeca viana
Ricardo Maia Jr.: “Seja marginal, seja herói” ainda faz sentido? Zeca Viana: Eu acho que o que está mais evidente, assim, pelo menos, no que eu vejo em relação à cultura de uma forma geral, principalmente em Recife, produção de arte e tal, é que, na verdade, existem vários heróis anônimos. Essa que é a questão! A mídia local não se preocupou e não tem tido a preocupação de envolver um raciocínio de pesquisa para ir atrás do herói que está fazendo arte, agora, ou daquele que está produzindo uma forma de expressão que não está dentro de um circuito de mercado – o que, na verdade, eu acho que, hoje em 2013, nem existe isso mais de forma majoritária. Então, eu acho que o herói, hoje, é um herói anônimo. E não deixa de ser menos herói por causa disso, ao contrário, o cara é mais herói; porque tem que enfrentar um monte de obstáculos; inclusive, de não ser reconhecido como tal. Mesmo o cara tendo todo o potencial para ser indicado como herói de certa cena, ou um herói da sua turma ou um herói do seu estilo musical ou só um herói por estar gravando música em casa e poder fazer com que isso seja mostrado para outras pessoas; isso, pra mim, já é o cara ser herói!
Da obra do artista plástico Hélio Oiticica, a obra “Seja marginal, seja herói” é uma representação do movimento cultural denominado Marginália, que passou a ter reconhecimento na década de 60, pelo grande público.
Ricardo Maia Jr.: É, eu vejo, assim, no sentido de Agamben, que diz que o contemporâneo está sempre nas sombras, sempre na escuridão. Às vezes, a gente acaba tendo até uma percepção contrária do que seja o contemporâneo. A gente acha que o contemporâneo é aquele cara ligado, é o cara que tá na moda; o cara que percebe o que está sendo iluminado, em certo sentido, o que está em evidência. Eu acho que o contemporâneo se aproxima muito, nesse sentido, do outsider. O contemporâneo acaba sendo o cara que, no final das contas, tem uma leitura muito mais genuína do seu tempo. Ele tem essa dupla posição de estar dentro e deslocado do seu tempo. É uma coisa meio paradoxal! Mas eu acho que bate nessa sentença do Hélio Oiticica do “seja marginal, seja herói” – que tem um poder político grande, um poder de subversão muito grande. Tem tudo a ver com essa questão do contemporâneo ser o outsider! Do contemporâneo ser o cara que fala para sua época, mas muita gente não entende ou não quer entender, e acha que o cara é um sujeito atemporal, anacrônico. Mas ele é o cara que dentro dessa possibilidade de perceber a escuridão do seu tempo, de perceber o que está escondido, de ser um garimpeiro, ele acaba sendo muito mais atual. É uma coisa difícil de entender, talvez. Como é que o cara é contemporâneo e como o cara, ao mesmo tempo, é outsider. Como é que
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o cara é herói e como o cara é marginal. É um paradoxo que bota em jogo, no final das contas, essa coisa de a gente garimpar mesmo, de a gente tentar ver quem é que está falando pro seu tempo – aquele que não tem uma coerência, muitas vezes, com os artistas da moda ou com o discurso da moda ou com o discurso que acaba sendo o hegemônico. Então, eu acho que essa frase “seja marginal, seja herói” ainda é muito coerente, eu acho que sempre foi muito coerente! Mas, como viver nesse paradoxo? Sendo marginal, sendo herói; sendo contemporâneo, sendo outsider!
Capa do disco Molho, lançado este ano por Ângelo Souza, mais conhecido como Graxa, o “anônimo e herói” citado por Zeca Viana.
Zeca Viana: O que eu acho interessante nessa questão do herói é porque não deixa de ser uma construção. Uma construção de quem está por perto tendo um tipo de relação de troca com determinados agentes culturais, vamos dizer assim. Trazendo essa conversa para o Recife, numa forma que eu acho que encaixa bem com o que a gente está vivendo, agora, dessa exposição da nova cena – que as bandas e os artistas da periferia estão conseguindo alcançar, o que, cinco anos atrás, não era nem imaginável que toda essa galera ia estar no O Globo, por exemplo. Um cara que eu queria muito citar, e que eu acho que representa muito essa coisa do anônimo e herói, é o Graxa. Eu convivi com o Graxa, em época de colégio ainda, e ele sempre foi um cara que estava inteirado de tudo que estava acontecendo; sempre foi um cara que eu via pesquisar música e tal, e sempre foi verdadeiro com o que fez. E as gravações que ele me mandou para participar do Recife Lo-fi, realmente, me espantaram. Porque mostrou um potencial artístico, assim, que eu já esperava, mas, eu não esperava que tivesse tão maduro, tá ligado?! E eu acho que ele é um exemplo perfeito, assim, do que eu identifico como um herói marginal. Porque é muito fácil, cara, você ter uma banda morando… E eu não estou falando, aqui, de forma pejorativa. Estou falando de forma estrutural mesmo. É mais fácil você ter uma banda morando na Torre, com um apartamento massa, seu pai dando um carro para você andar, dando mesada, dinheiro para pagar estúdio, e amigos também que têm uma classe social de classe média alta. Não estou dizendo que isso gere bandas ruins, ao contrário, geram bandas muito boas. Isso é muito bom! Mas, você pensar que… Eu cresci na Estância, tá ligado?! Eu cresci na Estância, Barro, Areias, Jardim São Paulo, eu andava de bicicleta por ali quando era criança. Tipo, eu sei como é difícil, o cara sair da Estância para ensaiar num estúdio lá na Vila Cardeal e Silva com uma guitarra nas costas, pegando sol num ônibus, podendo ser assaltado. Já roubaram um instrumento meu, na rua. E você vê que
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essa produção é forte e continua sendo gerada. Você pega toda essa galera que veio da Estância, desde os anos 90, fazendo e continuando a fazer, e isso começa a amadurecer e tal. Tipo, pra mim, Graxa é um grande exemplo de um artista herói, velho! Que nêgo que é do Parnamirim, de bairros nobres da cidade deveriam conhecer. E não só a música do Graxa, mas assim como a gente encontra em arte conceitual, hoje em dia, de conhecer o que está ao redor do cara, para entender por que o cara está fazendo aquela música. O que é que torna aquilo um conceito forte, tá ligado?! Porque eu acho que a música desse bicho é também parte primordial da vida dele.
Cartaz do Festival Recife Lo-fi, organizado por Zeca Viana.
Ricardo Maia Jr.: Eu penso que quem vem da periferia acaba se jogando mais nas coisas! Só que tem um contexto diferente, aqui, principalmente depois do Mangue. A galera do Mangue se jogou, muito cedo, e mudou de cidade. Aqui, a turma continua a trabalhar, continua a fazer eventos – que muita gente até considera roubada, com equipamentos que, às vezes, não são nem legais para o cara mostrar o som dele. Mas a turma resolveu ficar aqui. E isso, eu acho uma mudança brutal, que traz muita coisa boa porque acaba a cena, de certa maneira, se concentrando aqui. A galera quer trabalhar e quer criar um circuito aqui! Só que isso também traz muita impotência, porque o Nordeste ainda precisa muito de uma matéria de um jornal de fora ou de o cara morar ou de dar uma aventurada lá fora. Só que não é uma coisa tão fácil, assim, porque, sei lá, a turma do Mangue, de certa maneira, conseguiu aqueles selos de gravadoras, como o Chaos e o Banguela, que financiaram o custeio de gravação, o custeio de passar uma temporada em São Paulo. Hoje em dia, com essa coisa da baixa produção e do Lo-fi traz a possibilidade de você gravar sem precisar ir para fora, só que, no final das contas, a gente acaba não tendo um circuito, não tendo como divulgar isso, não tendo como distribuir isso de uma maneira devida; e como você até falou, não tem também nem a preocupação da mídia em botar isso em evidência – de muitas vezes forjar uma cena, de tentar entender, de lançar um termo que, às vezes, até a galera pode pensar que não é isso, mas, o cara está, pelo menos, provocando uma discussão, tá provocando um debate aí. Só que eu penso também que a gente bota muita carga na periferia. É uma coisa de fetiche, talvez. Principalmente da turma de classe média de jornal que acaba vendo a periferia como um lugar ideal de produção e que pelas dificuldades acaba gerando mais interesse. Será que tudo que presta só pode vir da periferia? Ou, realmente, a precariedade instiga mais a criatividade? pq?
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rodrigo édipo
Ricardo Maia Jr.: É preciso ter medo do ridículo ou ser corajosamente ridículo? Rodrigo Édipo: Porra, boa! Eu acho que é preciso ser ridículo, porque eu acredito muito que qualquer coisa que você vá fazer na vida, você tem que deixar seus impulsos acontecerem. E aí, não necessariamente, esses impulsos vão ser destrutivos, podem ser construtivos, podem ser impulsos interessantes para você, sei lá, promover socialmente um bem ou transformar socialmente alguma coisa. Porque, às vezes, quando você fala de ridículo, parece que você tá virando um palhaço na frente do palco, né?! E as pessoas estão lhe julgando. E não necessariamente você está sendo ridículo, nesse sentido, tá ligado?! É, tipo, você buscar sinceridade no que você faz mesmo. Eu resumo o assunto, assim. Ricardo Maia Jr.: Eu tenho muita preocupação com essa coisa do ridículo. Porque as pessoas acabam tendo muita cautela, muito medo de ousar. E muito por essa preocupação de soar ridículo, de… sei lá, uma preocupação com o possível burburinho que possa vir nas costas da pessoa, e, assim, a pessoa inibe a ação. As pessoas vão, desse modo, preferindo ir pelos lugares, pelas zonas de conforto, né?! Porra, você vê no lado da música mesmo, isso! De certa maneira, a música… a arte é um reflexo disso tudo.
“Sejamos corajosamente ridículos.”, frase do escritor Jomard Muniz de Britto, precursor da Tropicália recifense. Foto de Flora Pimentel.
Rodrigo Édipo: Na verdade, eu acho que se a gente entrar numas esferas mais extremas dessa conversa. Essa palavra ridículo acaba sendo ridícula! De você botar ridículo nessa condição de uma coisa que você está dando a cara à tapa. Aquilo que eu falei do palhaço, de você ser ridicularizado, vão rir de você, porque você é um artista louco e hermético. Mas, na verdade, esse tipo de posição extrema que a conversa que aqui tá rolando, é uma coisa que você pode morrer, tá ligado?! Dependendo dos aspectos que se quer atingir na vida, você pode ser enforcado. Isso é uma coisa legal da gente botar, porque como nós estamos pensando mais nesse mercado de música e de arte, de você fazer um certo tipo de enfrentamento, tem gente que está fazendo esse enfrentamento em níveis muito punk. Em níveis de, tipo: “não tem medo de morrer, não é?!”. Saca? Eu tô lendo, agora, o livro dos CypherPunks, de Julian Assange, que é um cara que expôs a vida dele. Ele tá expondo a cara à tapa mesmo. Ele tá na frente de uma organização onde a figura é ele, tá ligado?! E, hoje em dia, ele tá preso porque teve a coragem de revolucionar o jornalismo, praticamente. Ele teve o peito de pegar segredos do estado norte-americano e divulgar. Ou seja, porra, imagina você passar um paralelo desse com um artista que está querendo se adaptar ao mainstream, com um artista que está querendo se adaptar ao entretenimento para viver disso. A gente ainda vive um modelo muito centralizador. A gente ainda
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CypherPunks (2013), de Julian Assange, pela Editora Boitempo.
vive um modelo muito de você respeitar uma pessoa acima de você. Por mais que estejamos num momento de abertura, que eu acredito que a gente esteja em relação à, digamos, modernidade. A gente está num momento em que você pode produzir seu conteúdo e você pode dar a sua opinião. A galera ainda quer que a sua opinião seja vista pelo fulaninho lá em cima, tá ligado?! Tipo, eu conheci um cara que ele toca numa banda que ele diz que é feito o Alice in Chains. E aí, eu tive a oportunidade de conversar com ele, tomar uma com ele. E, cá pra nós, eu escutei a música dele e não gostei. Ele ainda busca se remontar em coisas que já existiram de formas bem massivas mesmo, que todo mundo já conhece. Mas, pela minha personalidade, eu tenho interesse em conversar com qualquer pessoa. E tentar entender o que está por trás disso. Tentar entender o quanto sincero aquilo é pra ele. E existe uma sinceridade naquilo ali! O cara enchia os olhos pra falar de música. O cara enchia os olhos para falar sobre o grunge, velho! Só que aí, ao mesmo tempo, que ele tem essa adoração por isso, ele também tem o interesse pelo rock star, pelo glamour. E vivia triste, o pai reclamando pra caralho dele, porque ele não fazia nada da vida e ainda tinha que trabalhar com o pai. Porque existia no discurso dele, internamente pelo o que eu analisei e não pelo o que ele me disse, essa necessidade do tapete vermelho! Que é a mesma necessidade de você estar na frente do Papa, daquilo do glamour, do superior. E não do horizontal! E aí, eu falava pra ele: velho, você quer ser Kurt Cobain ou quer ser músico!? Aí, ele já enviesou pro lado de drogas e rock n’ roll, e eu disse: não é isso que eu tô falando, não! Você quer ser um cara que vai ser bem aceito por milhões ou você quer ser um músico, tem tesão por tocar?! Você tem uma habilidade, você é baterista, poderia estar dando aula pra um monte de pirraia e vivendo disso, poderia buscar em paralelo o seu sonho em ser o Kurt Cobain! Eu tava conversando com Areia, ontem, e aí, o nome do projeto dele é “Para Perdedores”, pô! Areia e Grupo de Música Aberta. Aí, eu perguntei a ele: quem são esses caras, velho? E ele disse: é a gente, velho! É a gente que tá na tangente. É a gente que não tá buscando o glamour. As pessoas estão buscando serem os vencedores, velho! E a gente está buscando ser o perdedor, tá ligado?! Isso é que é foda! Ele até disse: velho, tu trabalha numa revista, tu é mídia alternativa. Tipo, eu não mandei currículo para o Caderno C ou para a Continente Multicultural, eu não quero entrar no sistema, porque eu sei que se eu entrar nesse sistema, eu vou me foder com meus projetos pessoais que me fazem bem e me fazem feliz. É uma opção perdedora, porque eu não estou querendo ser o melhor jornalista, digamos, da Folha de São Paulo. Aí, ele falou que essa questão dos vencedores é aquela coisa da sociedade norte-americana: Winner! Winner! Você vai ganhar! Você vai ganhar! Você tem que ganhar! Você tem que ganhar! Porque se não você não ganhar, você vai ser um ridículo, velho! Se você não ganhar e se gritar contra essas regras, você vai ser tão ridículo que pode ser enforcado, velho! Você pode estar exilado como Julian Assange está! pq?
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entrevista
PLN 5 (1969), de Vladimir Bonacic.
por Carlos Gomes.
#02 bruno nogueira A nossa conversa com o jornalista, produtor e crítico musical Bruno Nogueira, partiu de suas experiências anteriores como crítico na imprensa local. A partir disso, os temas que circundam a indústria cultural, internet, crítica cultural e consumo de música também entraram em pauta, bem como a tese de doutorado “Go With The Flow”: a nova crítica de música a partir do fluxo fragmentado de mensagens nos sites de redes sociais, em Comunicação e Cultura Contemporânea, que o autor realizou na Faculdade de Comunicação, Universidade Federal da Bahia.
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A tese defendida em seu doutorado é – de certa forma – resultado de pesquisas anteriores sobre a crítica musical. Como a soma das pesquisas e experiências com o trabalho como crítico musical te levou à decisão de aprofundar-se nesse tema? É uma inquietação antiga. Eu saí da faculdade direto para trabalhar com crítica de música na Folha de Pernambuco, após ter estagiado no Jornal do Commercio. Naquela época, senti necessidade de procurar um diferencial para o que eu fazia em relação aos outros jornais e a resposta veio na forma de uma especialização na UFPE em Jornalismo e Crítica Cultural. Naquela pós eu já tinha feito uma monografia que ensaiava um pouco esse tema: como a internet transformou a crítica de música. Tentei levar essa ideia para o mestrado, mas acabei pesquisando sobre a transformação na indústria da música como um todo. Sempre foi algo que fui fazendo paralelamente, então - escrevendo crítica/fazendo pesquisa. Ter esperado foi bom. Porque no doutorado cheguei para pesquisar sobre o tema tendo feito isso também em outras revistas, alguns sites etc. Já tinha amadurecido um pouco mais uma vivência que foi importante para pensar os problemas de pesquisa. Por outro lado, foi perigoso porque corria o risco constante de fazer uma pesquisa "viciada" nessas vivências. Por isso também escolhi parar de escrever enquanto estava no doutorado. Em Reação em cadeia – Transformações na indústria da música no Brasil após a internet, seu trabalho de mestrado que você brevemente publicará, houve cruzamento entre as suas pesquisas acadêmicas, a crítica musica na mídia impressa que você escrevia e a manutenção do site Pop Up? Não. O livro não fala tanto sobre crítica. Ele apresenta algumas considerações mais teóricas referentes à
necessidade de atualizar o conceito de indústria cultural – apresentando alguns autores ainda pouco populares no Brasil – e especificamente com a compreensão da dimensão da cadeia produtiva da música. Existe uma ênfase maior no que diz respeito sobre como a música demanda dispositivos de sociabilidade para sobreviver na internet. Tem um pouco – bem pouco – sobre crítica. O que tem – e isso tem bastante – é um conteúdo que surge e se desenvolve a partir do meu trabalho na crítica. Principalmente no que diz respeito ao mercado independente. O livro fala de um mercado independente de música que, na verdade, é bem próximo da realidade que eu escrevia e estou conectado. Como os festivais da Abrafin, o Fora do Eixo, as listas de discussão e fóruns da internet. Uma das principais críticas à mídia impressa é a falta de espaço para uma crítica cultural mais aprofundada. No entanto, os sites e blogs, de um modo geral, não são reproduções do que é feito na mídia mais tradicional? Os sites e blogs de música usam muito pouco da liberdade editorial que se pressupõe que tenham? Os principais blogs de música, no Brasil, são de jornalistas que escrevem em jornais e revistas. Por isso não tem mesmo muita diferença. Minha tese fala da possibilidade de uma crítica musical transmídia, que se costura entre os sites de redes sociais como o Twitter, alguns blogs, o que saí na mídia tradicional, mas que é percebido coletivamente para as pessoas que fazem parte de uma determinada comunidade de conhecimento. Quem frequenta uma comunidade como a Metal PE, por exemplo, está atento ao que Wilfred Gadelha escreve no jornal impresso, mas também no que ele fala no grupo, publica no Twitter, publica em forma de pesquisa e vídeo. Essa seria uma forma diferente – e, até onde minha pesquisa consegue demonstrar – eficiente
O livro Reação em cadeia: Transformações na indústria da música no Brasil após a internet é resultado da tese de mestrado de Bruno Nogueira, que será lançado em breve. Design de capa por George Frizzo.
de identificar algo que poderíamos enxergar como uma nova crítica. Na forma discursiva tradicional – textos, mesmo que em blogs – acredito que a crítica vá seguir sempre um mesmo modelo. Esse que é herdado pela imprensa tradicional e que ainda tem uma função importante e seu lugar na cadeia produtiva da música. Mas como você fala, a “possibilidade de uma crítica musical transmídia” de alguma forma poderia enriquecer os modelos da crítica musical? Acho que é algo complementar a experiência musical como um todo e não apenas a crítica de música. A crítica, e isso é algo importante a ser pontuado, é algo que importa muito pouco a muito pouca gente. É uma minoria que, além de ouvir, vai ler e, de fato, se importa com o que leu sobre determinada canção. Existem experiências e experiências a partir de uma música. Tem aquele cara que é entendido de música eletrônica e ao ouvir “Get Lucky”, do Daft Punk, vai falar e discutir sobre o gênero e o contexto atual dessa produção com outro ami-
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go. Vai ter aquele que não está nem aí para isso, mas quer saber se vai tocar ou não ela na festa. E tem aquele cara que vai e talvez nem dance, mas leu tudo sobre o Daft Punk, conhece toda a narrativa da banda, e vai levar o que está na crítica para a outra esfera de debate. Cada uma dessas experiências tem seus próprios objetivos. A narrativa transmídia, conceito apropriado e difundido por Jenkins, valoriza a percepção de comunidades
é publicado na imprensa hoje (estou sendo propositalmente generalista para provar meu ponto aqui). É um misto de reprodução do que é enviado pelas assessorias de imprensa, do que pode ser vantajoso para o jornal (desafio qualquer veículo recusar 100% dos CDs enviados a redação e publicar única e exclusivamente garimpagem feita pelo repórter/crítico) durante um ano inteiro, e o que de fato interessa ao universo de gosto de
Não acredito que a imprensa tradicional seja o lugar de teorias sobre a crítica. Mas, mais importante, não vejo crítica sendo feita na imprensa tradicional. de conhecimento (por sua vez uma ideia de Pierre Lévy). E é nesse ponto que a crítica transmídia tem seu valor: por evidenciar a existência dessa comunidade e o impacto dela em um consumo afetivo e diferenciado do produto em questão. Algo que vai se conectar diretamente com que autores mais ligados à crítica, como Simon Frith, falavam antes da popularização da internet doméstica: a crítica tem uma importante função de formação da identidade de uma comunidade de conhecimento. Mesmo reconhecendo a importância da imprensa tradicional, não percebe nas pautas – e no próprio texto – um engessamento crítico e teórico? Não. Para ter um engessamento seria necessário antes ter alguma teoria e alguma crítica. Não acredito que a imprensa tradicional seja o lugar de teorias sobre a crítica. Mas, mais importante, não vejo crítica sendo feita na imprensa tradicional. E não falo de uma crítica teoricamente embasada ou crítica a partir de tal ou tal entendimento. Falo de pura e simples opinião. Por que é bom? No geral, não existe reflexão em nenhuma área de cultura no que
quem está escrevendo (onde encontraremos, de fato, alguma apuração/ garimpagem real). Considerando essa situação, se tivéssemos uma crítica engessada, mas que fosse acima de tudo uma crítica, seria algo muito melhor. O valor cultural e o acesso a uma obra – seja ela musical ou não – está fadado a ter audições menores e cada vez mais fragmentadas? Esse é um resultado da indústria cultural pós-internet? Sim, mas isso não é algo bom? Estamos nos separando do modelo massivo de consumo com cada vez mais sucesso. Quando o mundo ainda estava em guerra, o modelo da indústria cultural foi uma das coisas mais criticadas por teóricos como os da escola de Frankfurt. Afinal, trata-se – segundo eles – de uma padronização da sociedade a partir do que ela consome. Algo que concordo em parte, já que conseguimos delimitar com muita facilidade grupos sociais a partir do que eles consomem culturalmente. André Lemos e Pierre Lévy falam que vivemos hoje uma cultura que tem o luxo da escolha. Eu gosto dessa linha de raciocínio. É a mesma
lógica por trás da Cauda Longa e do mercado de nicho proposto por Chris Anderson. Temos um excesso de produção, mas que terá uma recepção fragmentada. Ou seja, teremos que repensar a própria função dos intermediários e filtros de produtos culturais com a crítica. Sendo assim, em longo prazo, a falta de reflexão sobre os produtos culturais lançados criará um público cada vez mais sedento por consumir as novidades do mercado, sem propriamente refletir sobre suas escolhas, estabelecer relações estéticas ou de tempo e espaço entre as obras etc? Consumo não é uma atitude racional. Nunca foi. Não é uma consequência (pós) moderna da condição imposta pela falta de reflexão. "Fazemos trabalhos que odiamos para comprar porcarias que não precisamos" ou "escolha uma grande televisão, escolha maquinas de lavar, carros, discos e abridores elétricos de latas". Se você for ser racional sobre essas coisas ou vira um hippie ou uma dessas pessoas que "comemora o natal em setembro, quando não é super comercializado". Isso não é algo ruim. Consumimos (qualquer tipo de música) para extravasar diversos sentimentos e necessidades, muitas delas reprimidas. Gostamos quando pagamos caro por algo incrivelmente inútil. Eu paguei R$ 300 numa caixa de CDs do Radiohead, por exemplo. Tem gente que paga o dobro disso num único vinil e não tem uma relação estética ou coisa do tipo nisso. Apenas nossa vontade de gastar o dinheiro de nosso trabalho com coisas que nós gostamos. Refletir para consumir, por si só, é uma atitude contraditória. Refletimos se vamos comprar tal ou qual livro, mas livros não são algo que de fato temos necessidade para sobreviver. Assim como discos ou filmes. Ou roupas de determinada marca etc. Como disse, se levarmos essa "reflexão" adiante, viraremos um monte de
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hippongas. Já sobre "estabelecer relações estéticas ou de tempo e espaço entre as obras", isso também não é algo que cabe à crítica. Relações estéticas estão muito mais ligadas a um momento do "aqui agora" do consumo do que uma reflexão sobre isso. A gente começa a gostar de um tipo de música influenciado por um grupo de amigos, pelos pais, por uma namorada (ou por uma garota que queremos que seja nossa namorada). Desconheço alguém que vá afirmar "comecei a curtir reggae por causa da crítica". Falei do reggae propositalmente, porque a crítica quase sempre se destina a específicos gêneros musicais. Não existe crítica de música gospel, nem de reggae, nem de música infantil, por exemplo. Seria equivocado pensar "crítica de música" como um guarda-chuva para tudo que se faz na vida no campo da música. Por isso não temos como estabelecer uma relação estética. A crítica (escrever e ler ela) faz parte de uma prática social associada a determinados gêneros. Como o indie rock, por exemplo, ou como a MPB. Algumas pessoas, quando passam a se envolver – como fãs, principalmente - com esses gêneros, passam a ler e escrever sobre isso. É algo complementar, mas nunca (nunca) maior que ação de ouvir e gostar de música em si. E são para essas poucas pessoas que a crítica faz diferença, vale lembrar. Só para elas. O mesmo serve para a relação com o tempo e o espaço. Centenas de motivos aleatórios, que estão totalmente distantes do "poder da crítica", vão nos fazer gostar de músicas mais antigas ou de outros lugares. Assim como termos ou não uma relação com a música que é produzida hoje em nossa cidade. Veja quanto a crítica sempre ovacionou uma "nova cena independente da música brasileira" e veja, em termos de consumo tradicional, como essa nova cena não chegou
Acho que a internet se transformou exatamente naquilo que se imaginava: um espaço propício para nova formação de comunidades e construção de uma inteligência coletiva emancipado da mídia de massa. a lugar nenhum. Que artista surgido em 2004 nós conseguimos manter em 2013? E nem digo fazer sucesso... mas simplesmente manter tocando e fazendo a mesma coisa da mesma forma? Se tinha algo que eles tinham de certeza era uma crítica partidária a sua causa. Do que se imaginava ser a internet uma forma de aproximação de extremos, sem a reflexão, tornar-se-á uma multiplicação de nichos que não dialogam entre si? Acho que a internet se transformou exatamente naquilo que se imaginava: um espaço propício para nova formação de comunidades e construção de uma inteligência coletiva emancipado da mídia de massa. Isso serve para qualquer área, não somente a da música. Antigamente existia muito menos crítica, muito menos vozes ativas e qualquer reflexão sendo feita. Principalmente porque não precisamos de uma iniciativa institucional para isso... As pessoas estão fazendo isso no Facebook, no Twitter, no Instagram, em seus blogs, podcasts, videocasts etc. É um erro pensar que não existem diálogos entre os nichos, porque os diálogos são evidentes. Uma parte importante desses diálogos está nas próprias práticas sociais. Em 2001 se achava que baixar MP3 e ouvir a música em iPod era uma prática de uma cena específica que ouvia rock de forte influência britânica, mas se baixa música e se escuta música da mesma forma hoje no pagode e no forró eletrônico. Todos escutam música no YouTube, enquanto antigamente nem todo mundo se sentia contemplado
de ouvir música no rádio. Existe um diálogo aí. Esse diálogo da prática social tem deixado a própria ideia de nicho mais confusa e cinzenta. É cada vez mais difícil olhar para um jovem e identificar que tipo de música ele escuta – a que nicho ele pertence – ou mesmo se ele se enquadra assim. Quando eu era aluno de faculdade, eu escutava um tipo de música e não admitia quem escutasse outro tipo. Hoje, meus alunos na faculdade escutam aquele mesmo tipo de música que eu ouvia, mas também curtem os que eu não admitia. Eles ouvem heavy metal, mas vão para a rave de psytrance, curtem Queens of the Stone Age, mas também dançam e curtem Naldo. Consumo de música é o extrato puro da cultura jovem. E, entre os jovens, existem infinitos diálogos entre os nichos hoje em dia. Difícil é fazer um evento que vá se destinar a um único nicho hoje em dia. É muito importante lembrar que, ao falar do que se esperava da internet, muito mais que um diálogo aberto entre gêneros musicais, precisamos falar de um ambiente para interatividade e participação do público. Hoje temos o público participando ativamente, transformando a própria prática musical hoje. Se antes o cara curtia heavy metal e fazia air guitar, hoje o fã de Justin Bieber grava seu próprio videoclipe e joga no Youtube e em um mês supera um milhão de visualizações do vídeo. Tudo isso é parte fundamental da sociabilidade potencializada pela internet. E isso era algo que se esperava - muito - que esse ambiente fosse proporcionar e que superou todas as expectativas. pq?
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Fotos: Renato Mascaro (provas de contato)
Muitos Itamares a navegar...
por Conrado Falbo.
Dizer que Itamar Assumpção é um dos artistas mais importantes do Brasil não é exagero algum se levamos em conta a importância da música popular para a cultura brasileira e o altíssimo grau de inovação que ele introduziu nos padrões estéticos relativos à composição e performance de canções. Ao longo de sua carreira de pouco mais de vinte anos, Itamar inaugurou e consolidou uma maneira única de compor, misturando elementos do reggae, do rock, do funk e do samba. Logo no primeiro disco, o hoje legendário Beleléu, Leléu, Eu, de 1981, ele já apresentava um estilo muito bem definido e totalmente inédito baseado na sobreposição de diversos padrões rítmicos e linhas melódicas, com letras tão ácidas quanto irreverentes. As levadas do contrabaixo estruturavam todo o arranjo (era este o instrumento que Itamar utilizava para compor) e a verve percussiva contaminava também o trabalho melódico, desenvolvido sempre a partir da interação de várias vozes – quando digo “várias vozes”, estou pensando
nas vozes de Itamar e suas vocalistas, nas vozes dos personagens que vão se desdobrando e se sobrepondo nas canções, e nas vozes das várias tradições musicais com que ele travava diálogo. Diferentemente do que se poderia esperar, esta complexa estrutura formal não tinha como resultado um trabalho hermético, e várias canções destes primeiros tempos (“Beijo na boca” e “Embalos”, por exemplo) comprovam este fato com muito suingue. Desde os primeiros trabalhos, as letras de Itamar apresentavam um universo urbano, marginal e caótico, sempre pronto a ludibriar os “prezadíssimos ouvintes” e contrapor qualquer tentativa de interpretação com novas interrogações. Suas canções podem soar como crônicas (“Venha até São Paulo”), delírios lisérgicos (“Sampa Midnight”), desabafos violentos (“Nego Dito”), arroubos românticos (“Mal menor”), ou misturar tudo isso e muito mais, a ponto de nos fazer desistir do esforço interpretativo para simplesmente curtir o som. Os jogos
cancionais propostos por Itamar passam pelos desencontros da identidade biográfica (Itamar? Nego Dito? Pretobrás?) e expõem questões conjunturais importantes, como a luta pela produção independente nos anos 80: único recurso disponível àqueles artistas que não tinham vez nos grandes esquemas da indústria fonográfica. Aliás, até nesse ponto a personalidade complexa de Itamar parecia se contradizer: por um lado ele dizia querer “cantar na televisão”, por outro, era um artista conhecido por sua intransigência e absolutamente determinado a não fazer concessões relativas ao seu projeto artístico. A ênfase na questão da marginalidade, a personalidade forte, a complexidade do estilo e outros elementos parecem ter sido em grande parte responsáveis pela fama de maldito que ganhou ainda no início de sua carreira. Mas, apesar de ainda ser relativamente pouco conhecido do grande público, esta fama parece fazer cada vez menos sentido, principalmente quando ouvimos suas obras cantadas por
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Ele tinha uma capacidade notável de reunir artistas talentosos em torno de seus projetos, artistas que foram marcados por sua música e hoje exibem essas marcas em suas carreiras. grandes nomes como Ney Matogrosso e Zélia Duncan, que já emplacou uma canção de Itamar em trilha de novela da Globo e acaba de lançar um disco inteiramente dedicado às suas composições. A ligação de Itamar com Arrigo Barnabé e outros compositores da dita Vanguarda Paulista sem dúvida agregou muitas notas dissonantes às suas criações, mas a atitude iconoclasta e a preocupação com a originalidade nunca fizeram com que a vontade de comunicação com o público ficasse em segundo plano. No encarte do disco Intercontinental, de 1988, o poeta Paulo Leminski (também amigo e parceiro de composições de Itamar) escreve que a vanguarda proposta por este artista sempre foi uma “vanguarda popular”, opinião que apenas se comprovou no amadurecimento de sua obra. O músico e pesquisador Luiz Tatit, também ativo participante destes tempos vanguardistas, percebe esta preocupação quando diz que o estilo personalíssimo de Itamar, que incluía arranjos instrumentais intrincados e elaboradíssimas performances de palco, parece ter sido paulatinamente decantado no interior das canções, cada vez mais centradas no
O songbook PretoBrás - Por que que eu não pensei nisso antes? O livro de canções e histórias de Itamar Assumpção traz composições, desenhos, manuscritos e fotografias de Itamar. A obra foi publicada pela editora Ediouro, em 2006.
binômio voz e violão, tão importante na história da música popular urbana no Brasil. Esta mudança facilitou a tarefa dos atuais intérpretes das canções de Itamar, e hoje faz com que suas composições continuem ganhando novos ouvintes.
Conheci a obra de Itamar com a trilogia Bicho de Sete Cabeças, de 1993, na qual ele era acompanhado pela banda Orquídeas do Brasil, formada apenas por mulheres musicistas. Com as Orquídeas, ele revelou vários talentos, entre vocalistas e instrumentistas atuantes em São Paulo naquela época. Aliás, este é um aspecto interessante da obra de Itamar: ele tinha uma capacidade notável de reunir artistas talentosos em torno de seus projetos, artistas que foram marcados por sua música e hoje exibem essas marcas em suas carreiras: basta ler as fichas técnicas dos discos para ter uma ideia de quanta gente boa já atuou ao seu lado. Além das influências audíveis nas obras dos músicos e vocalistas, vários depoimentos de colegas profissionais, amigos e parceiros de criação sobre a convivência com Itamar estão reunidos nos dois volumes do songbook Pretobrás: o livro de canções de histórias de Itamar Assumpção (2006) e no filme Daquele instante em diante (2011). Estas duas obras oferecem vários exemplos de como a famosa “personalidade difícil” de Itamar também não dá conta de toda a história: ela vinha misturada com Daquele Instante em Diante documenta a vida e a trajetória relações de amizade e artística do músico e poeta Itamar Assumpção, morto em 2003 de câncer, companheirismo que aos 53 anos. Ele foi um dos pilares ultrapassaram em de um momento da música popular brasileira que se convencionou muito a lida profissiochamar de “Vanguarda Paulista”. O documentário é uma realização do nal. Instituto Itaú Cultural e Movieart, com direção de Rogério Velloso.
Em 2007, quatro
anos após o falecimento de Itamar, resolvi experimentar outra relação com sua obra ao desenvolver minha dissertação de mestrado tendo suas canções como objeto de estudo. Neste período, crescia a olhos vistos o interesse do público em sua obra e isto se materializava em novas publicações, matérias de jornal, relançamentos de discos e também na quantidade de pessoas que me procuravam para saber mais sobre este artista. A pesquisa me levou a escrever artigos e apresentar comunicações em diversos encontros acadêmicos pelo Brasil afora e fora dele, sempre encontrando muito interesse e a identificação carinhosa de vários fãs que fui conhecendo pelo caminho. Também travei contato com algumas pessoas muito próximas a Itamar, como a baixista Clara Bastos, que atuou ao seu lado nos palcos durante anos, transcreveu suas canções em partituras e, como eu, também estudou sua obra em um mestrado. É verdade que terminei minha pesquisa com muito mais perguntas que quando comecei, e minha principal descoberta foi a incrível mistura de complexidade e singeleza que faz com que as canções de Itamar sejam inesgotáveis fontes de prazer e fascínio. Tudo isso é sintoma da grandeza deste artista: como bem sabia Arrigo Barnabé, Itamar é mesmo um gigante. Um gigante negão. pq?
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praticamente todo o álbum; de um lado o branco, as bases instrumentais e sua amplitude, seus espaços imensos e em construção; do outro o negro, a palavra cantada (irmã da poesia) que tem nas vozes (no canto) o entrecruzamento dessas duas cores. É a voz que atravessa e conduz as tonalidades do absurdo. A abertura instrumental de “no mínimo era isso” desacostuma o ouvido do excesso. O mínimo é mola propulsora que, aos poucos, se expande na imensidão do tempo e depois, com a mesma velocidade, retorna ao seu ponto de origem. Os sons da marimba de vidro são cíclicos e cortados pelo arco que prepara e lança o nosso herói na narrativa, que toma corpo com a combinação experimentada entre o baixo, o cavaquinho, a guitarra e a bateria. Fôlego para a palavra e suas vozes. todalegria funda um buraco invisível todalegria salta o pedaço impalpável todalegria engorda o inefável todalegria é surda (...) e ensurderce um
Night (1922), de Konstantin Bogaevsky.
A banda Rua está permanentemente em estado migratório. A proposição estética sob o título de do absurdo (2011) revelou, àquela altura, que a música pernambucana teria pela frente que empurrar uma pedra pesadíssima, aglutinada – como se fosse possível – por criação e crítica. As canções pedras logo ganharam as suas primeiras gravações: trip hop, samba, experimentalismo, minimalismo. Cada nova audição será uma reinvenção desses e de outros rótulos. Rua está para a música como o artista está para a morte. A presença inevitável dessa sombra torna a criação uma conquista vital. É preciso criar para conservar-se em movimento, com vida. Essa relação permanecerá como um ato contínuo, uma confissão autoral sobre o ser/estar do artista. Cada compasso, palavra ou melodia será uma prova viva da surpresa que a música inventiva deverá causar no ouvinte. Perceber uma narrativa poético-musical nas treze canções que compuseram o álbum atemporal da Rua, de certa maneira, será uma chave de interpretação possível e, quem sabe, também surpreendente. do absurdo amplia as possibilidades de criação sobre o vazio. Será a página em branco um poema?, Um galpão imenso e vazio, uma instalação artística?, O silêncio, a canção absoluta que nunca nos acostumaremos a escutar? São sobre essas indagações que a música da Rua se aproxima. Há uma espécie de choque de opostos presente em
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Irmos do absurdo ao limbo (próximo disco da banda) será como propor um entrelugar estético para novas jornadas e experiências. As faixas pré-mixadas de limbo que chegaram até mim são recompensas para os ouvintes que souberam escutar o álbum anterior, em que escutar será sempre diferente de ouvir. A canção é uma abertura aos extremos. As afirmações gritadas no canto são poéticas que pesam sobre os ombros do nosso herói. A possibilidade da alegria (a arte é alegre?), a possibilidade da criação (criar é estar alegre?) vê-se diante do contraste entre o som e o silêncio. Esse é o nosso herói, personagem permanentemente em conflito, entre o branco e o negro, o som e o silêncio, a vida e a morte. O êxtase em som acompanha a voz e a base sonora crescente. Até que “escorrego” devolve o herói à aparente calmaria da jornada. embrutecendo aos poucos embrutecendo aos trancos embrutecendo aos vãos escorrendo Esse contraste faz parte da estética do disco. A música impele constantemente o ouvinte a acompanhar as suas nuances. A imprevisibilidade nos arranjos, na sugestão das letras, suas imagens, como visões oníricas, são quase sempre enigmas a serem decifrados. Em sequência, “afeiçoado” e “rainha da bateria”, impessoais canções de desamor. A primeira mantém um pulso recorrente, a segunda samba com a tradição do samba, faz do gênero um jogo metalinguístico entre a criação e a crítica. É possível sermos a tradição e criticá-la ao mesmo tempo? A música mais “popular” do disco é a que encena uma crítica mais profunda à música contemporânea. Se ela caminha entre a reconhecível tradição, “um dia estranho” e “intervalo”, as faixas seguintes, transformam o cavaquinho e a guitarra, respectivamente, em bichos estranhos no ninho. Os músicos Nelson Brederode (cavaquinho) e Fred Lyra (guitarra) são os autores que assumem tais riscos. Yuri Pimentel (baixo) e Hugo Medeiros (bateria) são colaboradores nessa algazarra. A primeira sequência melódica faz corpo para a pele poética que a voz de Caio Lima declama. A segunda soa como improviso em conjunto, seu título nos impõe uma pausa ao herói do absurdo. Refletir o caminho até aqui e estar atento para percorrer outra parte da estrada. “só”. onde o dia finda onde um céu tem teto onde nuvens são algodão d’onde a chuva pinga azul onde o tempo nina onde o vento canta onde um sol amarelo ri quando a noite engole um chão colorindo um bloco do infinito lá em solidão à usura dos olhos vazios
A solidão da canção dialoga com a possibilidade de amor de “às bolas de gude”, em que a marimba de vidro de Hugo de Medeiros volta com outra intensidade, diferentemente da música de abertura, aqui se faz num lirismo que joga a favor da melodia e do canto, em frases melódicas longas e em versos como: “ela, o dia torto de um inverno inteiro ao vento morno”. No final, vozes femininas sobrepostas são um rastro de esperança e gozo: “feliz toda manhã”, sentenciam elas. As músicas seguintes, “ais” e “pala”, permeiam o mesmo cenário poético das anteriores, mas enquanto a primeira desvanece em som através das linhas de baixo, repetindo fórmulas já apresentadas em outras canções, a seguinte é mais propositiva e jorra sua verve particular para lugares mais inesperados (e inóspitos). “pala” são grunhidos da voz, cavaquinho, baixo e bateria, num dos melhores arranjos do álbum. A música “pronome” dá voz ao herói, seu canto desola as possibilidades de ventura. Um fim de estrada sem final. sair de si é um engano só é desumano e mais é fatal (...) As vozes e a programação da música unem o natural e o artificial para tentarem constatar o indizível do derradeiro. Chegar ao fim da jornada sem tantas respostas. “página 6”, no entanto, escancara mais uma vez as contradições do artista, do herói, de sua jornada absurda. Sísifo carrega a pedra até o alto da montanha. Refaz o caminho infinitas vezes. Esse é o sentido de sua existência. “e haja vida pra gastar”, repete a voz dissimulada. Irmos do absurdo ao limbo (próximo disco da banda) será como propor um entrelugar estético para novas jornadas e experiências. As faixas pré-mixadas de limbo que chegaram até mim são recompensas para os ouvintes que souberam escutar o álbum anterior, em que escutar será sempre diferente de ouvir. Ouvir é um ato passivo, natural. Escutar exige luta interna; exige também uma jornada, uma retomada da liberdade criativa avessa aos rótulos e pré-disposições. Tomem contato com os pouco mais de 9 minutos da música “limbo” e, com esforço, perceberão que o silêncio e o tempo são condições essenciais para compreendermos o que chamamos de arte. Rua carrega com energia essa pedra indizível e pesada que todos sonhamos ter nas mãos. pq?
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Artista: D Mingus Álbum: Fricção Ano de Lançamento: 2013 Setlist: 01. Frágil penugem nos ares gelados 02. De corpo presente 03. Buraco no tempo espaço 04. Vendo um meteoro passar 05. Naturalmente punks 06. Autossabotagem 07. Devoniano 08. Quantos ventos 09. Trêmulo 10. Estrela do oriente 11. Eno 12. O fantasma do underground
por Rafael de Queiroz
D Mingus parecia ser um dos mais talentosos músicos autores da nova geração na qual se insere o Desbunde Elétrico, formalmente – se que é que podemos usar essa palavra no contexto; Cena Beto, intimamente. Digo parecia, porque se existia alguma dúvida em relação a isso, acredito que tenha sido sanada com Fricção (2013), seu mais novo álbum. Do primeiro disco, mais ligado ao rock, passando pelo segundo, mais folk, o músico agora utiliza mais elementos da
música eletrônica, fazendo uma referência ao universo do synth pop e do kraut rock. Gostaria de evitar o clichê do “músico que se reinventa a cada disco”, mas como não fazê-lo? Peço desculpas, mas Domingos vai se encaixar perfeitamente nessa descrição. Mantendo uma produção quase industrial de um disco por ano, na sua maneira artesanal de homestudio, cada um deles será uma obra per si, mostrando diversos lados de um único compositor, como um ator encarnando diferentes arquétipos (aqui não o são caros) dependendo do personagem em questão. Ao mesmo tempo, o D Mingus de outrora ainda estará lá: a lisergia, a melancolia, a infância; sempre construindo uma ambiência onírica através de seus sons. Assim, revelando influências ora de uma vertente, ora de outra, e até sendo bem direto, como na faixa Eno (homenagem a Brian Eno), o músico não pode ser resumido a um mero revisionista, impondo sua marca e dando novo fôlego a gêneros do passado, como o fez o Daft Punk agora a pouco em relação a disco dos anos 70. Os menciono não por acaso, mas por D Mingus ter respondido a algumas pessoas em seu Facebook que compararam os dois álbuns, primeiro pela proximidade em seus lançamentos e depois pelo músico estar explorando mais o universo da música eletrônica. Coincidências a parte, ele respondeu para ficar claro que, apesar de gostar, o seu disco, que vinha sendo produzido desde dezembro passado, não teve uma influência direta dos robôs franceses. Queria continuar em só mais uma questão: recentemente em uma matéria, eles chegaram a afirmar que “Os computadores não foram criados para ser instrumentos musicais, para começar. Em um computador, tudo é estéril – não há som, não há ar. É totalmente código.” para explicar porque se aproximaram de uma sonoridade mais ‘orgânica’ no Random Access Memories. Não quero entrar nessa polêmica, nesse momento, de uma das maiores duplas da ‘música de computador’ ter falado isso, mas, destacar a importância que esse equipamento tem para o simples ‘existir’ de D Mingus e tantos outros artistas da contemporaneidade. Apesar de óbvia essa afirmativa, quero expor o alto nível que o músico conseguiu atingir em seu novo trabalho, gravando tudo em um quartinho claustrofóbico de seu apartamento, ou como foi batizado: Pé de Cachimbo Records.
Mestre da bricolagem, além de onemanband – apesar da alcunha, o disco teve participações de Thiago Marditu, Graxa e Daniel Liberalino –, D Mingus conseguiu um resultado surpreendente, contribuindo para a crescente respeitabilidade que as bandas lo-fi recifenses vêm conquistando. Podemos dizer aqui que o músico levou mais a fundo as formas de álbum e canção: o álbum por manter uma relação lógica entre as faixas e nos fazer remeter a sentimentos ora de nostalgia, utilizando bem os instrumentos e timbres que se constituíram como paradigmáticos da música pop eletrônica a partir dos sintetizadores e desenvolvimento de técnicas de gravação; ora de autor, imprimindo sua identidade e fortalecendo o conceito de álbum como obra fechada, ou seja, ele cria um universo através dos sons que vão nos remeter a uma época comum a todos e ao mesmo tempo cria um sentido muito particular de vivenciar e reprocessar esse tempo. Na canção, em definição básica da sinergia entre a melodia e a letra, temos exemplos contundentes como “Trêmulo” e “Estroboscópica”. A última, uma perfeita reconstituição do fim dos anos 80 e começo dos 90 da puberdade recifense: a música é um tecno-pop perfeito do que escutávamos na rádio da época, como Depeche Mode, New order ou até os mais populares Information Society e Pet Shop Boys, onde a letra cita a característica das 120 batidas por minuto (“it’spartytime!”) relacionando com as festinhas que rolavam nas casas dos amigos, evento social onde não poderia faltar a luz estroboscópica (!) e a música lenta para dançar agarradinho com a menina que você estava afim, ou não, dependendo do seu nível de timidez (ouça “Vendo Um Meteoro Passar”). De forma muito perspicaz ainda estão relacionados na letra e música o universo do vídeo game, novidade da época que se tornou o sonho de consumo de todo jovem e nem sempre muito acessível (“Deuses em 8 bits/ – it’splaytime!”) e a fita k7 produzida artesanalmente com os sucessos da rádio, fazendo a “mix perfeita”. Essa e outras grandes canções compõem Fricção, – já que falamos tanto do rádio, ouça Naturalmente Punks, com tendência a virar hit – trabalho que coloca D Mingus não só como um dos melhores representantes da Cena Beto, mas como postulante a grande destaque da cena independente pernambucana como um todo. pq?
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por Carlos Gomes.
Banda: Ex-exus Álbum: !xÔ! Ano de Lançamento: 2013 Setlist: 01. Estejam Sempre aqui 02. O Bloco que você me deu 03. Música Romântica - !xÔ! 04. Carne Humana 05. Malvado 06. No Escuro 07. Clube da Encruzilhada 08. A Culpa é Minha e Eu Boto em Quem Eu Quiser 09. Desejo Louco 10. Pra Ivete Cantar 11. Estamos Virando Monstros, Querida?
A banda Ex-exus sempre teve a subversão como alicerce na produção de suas obras, fossem elas canções, vídeos, fotografias ou suas performáticas apresentações musicais. Não consigo ouvir o primeiro disco dos Ex-exus, Xô, sem pensar na Comuna Experimental (depois rebatizada Comuna) e no disco JMB em Comuna. As canções de Xô são desenvolvimentos desses trabalhos, porém, com outros filtros estéticos a dominar o ambiente de criação. A teoria da carnavalização desenvolvida por Bakhtin pode caber como escopo crítico para uma audição mais atenta da estética do grupo formado por Ricardo Maia Jr., Bruno Freire, João Marcelo Ferraz e Amaro Mendonça. Os Ex-exus subvertem – por meio da ironia, paródia, deboche – determinadas manifestações artísticas, tendo na estrutura básica do rock o seu ponto de partida. Os atentados poéticos de Jomard Muniz de Britto foram, de certa forma, o primeiro fulgor estético para o fim e o princípio de uma outra banda. Enquanto a Comuna experimentava com o domínio técnico e poético, os Ex-exus carnavalizaram as suas experiências, sem temer o ridículo (conceito mor de JMB), para mimetizar o homem contemporâneo, dando voz às suas incapacidades e falsas moralidades. As canções de Xô estão sempre com o dedo em riste. A carnavalização, presente em canções como “O bloco que você me deu”, “Música Român-
tica”, “Carne Humana”, “A culpa é minha e eu boto em quem eu quiser” e “Pra Ivete cantar”, aliam o discurso afirmativo das letras a uma sonoridade pungente, em especial o frenesi sonoro a partir do grito, guitarras e piano dos versos: “O bloco que você me deu me deu me deu”. Esse discurso desconstrói as tradicionais canções de amor, a voz suave, melancólica, é substituída por grunhidos, esporro, escarro. O retrato do amado/a, aquele que se estampa em porta-retratos, está estilhaçado, “derretido”, mascarado. Os Ex-exus escondem a cara para assumir a máscara das relações humanas, amorosas. A regravação de “Desejo Louco”, de Fernando Mendes, que diz: “Tive esse desejo louco de beijar tua boca,/ De morder sua língua, de furar teus olhos,/ De arrancar seus cabelos, de te acorrentar”, serve como apropriação certeira para a estética do álbum - a participação vocal de Catarina acentua bem essa escolha. No entanto, o arranjo perde muito ao emular a sonoridade brega, afastando-se da idiossincrasia sonora da banda, o que a ela é particular. O álbum faz jus à espera de um som que equilibrasse a potência ao vivo das apresentações com a escuta individual dos ouvintes. Com Xô, diferentemente dos EPs, de um modo geral, agora é possível escutar e ser incomodado pela presença provocativa e constante das vozes estejam sempre aqui da banda.
por Carlos Gomes.
O músico Paulo Paes pôs na estrada a sua inacabada concepção de arte. Reunindo amigos sob a alcunha de Paes, gravou dez canções, algumas lançadas anteriormente em EPs, e trouxe alguns deles para subirem ao palco e darem voz à poética particular de suas músicas. Na formação da banda, Filipe Barros (guitarra e vocais), Rafael Gadelha (baixo), Rapha B. (bateria) e Ana Ghandra (vocais). Sem Despedida (2013) foi gravado no estúdio da universidade Aeso Barros Melo, com produção de Filipe Barros, Rogério Samico e do próprio Paes. As canções imbricam quase sempre em retratos imprecisos da solidão, do amor, que, naturalmente, encontra repouso certeiro na voz grave e quase silenciosa de Paes. O duo vocal entre Ana Ghandra e ele na
faixa “Infinito” amplia as possibilidades de interpretação do álbum, seja na letra ou nos vários caminhos que belamente o arranjo aponta. “Exílio” aporta também como destaque no que diz respeito ao arranjo. É engraçado que justamente ela – instrumental – esteja disposta entre as últimas faixas, soando como trilha difusa do ambiente poético que as letras de Paulo Paes apontaram durante todo o álbum. Chamar-se exílio é também uma forma de reinterpretação de todas as letras e faixas anteriores. Com “Do teu cantor”, Paes arma uma introdução vocal que dialoga com a sua particular interpretação do samba, inacabada por excelência, cheia de espaços abertos para outros caminhos.
Artista: Paes Álbum: Sem despedida Ano de Lançamento: 2013 Setlist: 01. O céu da lua 02. Sem despedida 03. Maria das Dores 04. Esvai 05. Muro 06. Infinito 07. The World Hipocrisy 08. O relógio da central 09. Exílio 10. Do teu cantor
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por Carlos Gomes.
Banda: Zeca Viana Álbum: Psicotransa Ano de Lançamento: 2013 Setlist: 01. Coração etéreo modular 02. Mary (NO) one 03. Quintal atemporal 04. Professora de arte 05. Monstrolândia 06. Metafisica(mente) 07. Hey Mister Trouble Boy 08. Young again 09. Quintal Sideral 10. Arqueologias na Rua Tanabi (vinheta)
O último álbum de Zeca Viana, Psicotransa (2013), gravado na Casa do Mancha, em São Paulo, com produção de Diogo Valentino, é um exercício musical que impõe uma marca estética que deixa pouco espaço para surpresas. Zeca e os músicos que o acompanham têm domínio da situação. A consagrada experiência do músico em gravações caseiras e como músico da Volver, Rádio de Outono e Labirinto, deu-lhe a maturidade necessária para que o seu segundo disco tivesse esse acabamento. O ordenamento das faixas e, consequentemente, os temas abordados nas letras revelam o quanto o músico tem o álbum nas mãos, por assim dizer. Nada soa fora do espaço, estranho. As canções compõem um grande quadro homogêneo. O tratado sonoro sobre a existência está à vista nas músicas “Coração Etéreo Modular”, “Quintal Atemporal”, “Metafisica(mente)”, e “Quintal Sideral”. Nelas, há um embate entre o eu e o universo, presente nas letras, mas que pouco surpreende sonora e esteticamente. Por outro lado, “Hey Mister Trouble Boy” aponta para outros lugares,
numa união (talvez improvável) de The Smiths e The Beatles, com as vozes recriando timbres e os solos de guitarra menos contemplativos, decerto a par do clima etéreo que predomina no disco, mas sim na crueza e simplicidade característica do rock. O arranjo de “Monstrolândia” segue esse caminho, e abre na letra um cenário de referências artísticas que ampliam as possibilidades de leitura do disco como um todo, ou ainda como Zeca Viana espelha a sua música nas diversas expressões artísticas. As canções de Psicotransa dizem menos que o potencial e amadurecimento artístico que Zeca Viana alcançou. O resultado dos arranjos e letras soa repetitivo, sobretudo no corpo de canções que destaquei no primeiro parágrafo. No entanto, as canções exceção e os pequenos brilhos inventivos que subvertem a coesão do álbum (como um todo) valem a sua audição, bem como uma volta às incertezas das experiências lo-fi. Talvez seja essa a minha “sentença crítica”, o disco é feito de certezas. Sinto falta das incertezas. Do que na arte é provocação, improviso, dúvida.
por Carlos Gomes.
Angelo Souza resolveu se cercar de canções cronicamente confessionais para estrear com o disco Molho. Sob a alcunha de Graxa, rodeado de amigosmúsicos, entre eles D mingus – que trabalhou na co-produção do álbum juntamente com o próprio Graxa –, fez da confissão um método de composição que, em medidas desproporcionais, correria o risco de soar clichê e ultrapassado. Não foi o caso. A habilidade de Graxa em traduzir os pequenos desastres do dia a dia em música fez das letras do disco recortes irônicos da vida. “Vou ter que decidir se eu bebo ou seu trago/ E como eu já tô embriagado eu decido comprar”, sussurra a voz e teclas da faixa de abertura “Acho que nesse domingo eu vou ficar triste”. O álbum é dividido em Lado A e B, com a faixa título “Molho” recortando esses dois lados. A música não chega há ter um minuto sequer, mas diz muito sobre o humor presente nas letras de Graxa, e serve muito bem para representar a
mistura de rock e blues que passeia pela maioria dos arranjos. “Tendo no espelho saudades do meu cabelo” e “Um bando de crocodilos” são outros destaques que mimetizam várias possibilidades estéticas nas composições do álbum. A cantora Isaar, por exemplo, regravou “Tudo em volta de mim vira um vão” para o seu novo disco, a ser lançado brevemente. Assim, as canções de Graxa têm aberturas que permitem a outros artistas se apropriarem delas. Molho, de forma surpreendente, consegue soar antigo sem ser anacrônico. As texturas alcançadas durante as gravações, bem como as participações especiais, assim como a de Aninha Martins em “Doutor, por favor” e “Que resignação” deram um colorido especial para as vozes de Graxa, presente nas crônicas que ele destila, nos assuntos prosaicos em que aborda. Sem perceber, entre um gole e outro, fez um disco recheado de boas canções e alguns sorrisos de estórias.
Artista: Ângelo Souza (Graxa) Álbum: Molho Ano de Lançamento: 2013 Setlist: 01. Acho que nesse domingo eu vou ficar triste 02. Nada é mais importante naquilo que lhe condiz 03. Tudo em volta de mim vira um vão 04. Boogie and blues 05. Eu sinto teu medo 06. Doutor, por favor 07. Molho 08. Meu Deus, eu virei um garçon 09. Que resignação 10. Os sintomas da velhice de agora 11. Tenho no espelho saudades do meu cabelo 12. O grande encontro criptosodomita 13. Você é um estouro 14. Noia? 15. Um bando de crocodilos
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por Carlos Gomes.
Banda: Trio Eterno Álbum: Suíte Pistache Ano de Lançamento: 2013 Setlist: 01. Suíte Pistache 02. Saí descalço 03. Zarautz 04. A mulher 05. Coisificando 06. Cachorro 07. Macumba 08. Ruptura 09. Canudo 10. Pra começar
Definições como “Projeto paralelo” são invenções de qualquer um que não o músico ou o artista. A lógica que encerra de maneira pejorativa essa definição está mais ligada ao incentivo da repetição, do consumo de uma mesma estética e, sobretudo, pela manutenção de uma marca. Chamar um trabalho artístico de paralelo é como estar à margem das transformações culturais pelo que têm passado os artistas e músicos, mais recentemente. Os casos de Recife e São Paulo são apenas alguns dos exemplos de como essa lógica não tem mais sentido. Trabalhos como os do Metá Metá, Passo Torto, MarginalS – e de alguns outros músicos situados em São Paulo – englobam uma infinidade de músicos e propostas estéticas que naturalmente soará contraditório escolher um desses como trabalho principal. Nesse caso, teríamos a mesma lógica de mercado da “música de trabalho”, que quase sempre restringe o álbum àquela canção escolhida. Dito isso, nos desfazemos de certas amarras conceituais para podermos comentar sobre o último lançamento de Felipe S. e André Édipo sob a alcunha de Trio Eterno. O álbum Suíte Pistache (2013) foi lançado pela Reco-Head Records em formato vinil e para download pago. As 10 faixas aproximam Olinda do Rio de Janeiro, seja pela participação dos músicos Domenico e Alberto Continentino, presentes na música que abre e dá nome ao disco, como no clima bossa nova fria ensolarada que ruidosamente está presente, principalmente, nos temas instrumentais. Enquanto “Suíte Pistache” prepara o ambiente de um Rio cinzento, “Zarautz” retoma a uma espécie de Surf Music para a Praia del Chifre, em Olinda, com direito a intervenções de castanholas no arranjo, provavelmente uma homenagem ao município da Espanha que dá nome à faixa. Com Vicente Machado (bateria) e Zé Guilherme (baixo) acompanhando Felipe S. e André Édipo, o falso trio instrumental apresenta coesão na sonoridade das faixas que alternam temas instrumentais e com letra. “Saí Descalço”, parceria de Felipe com Cristiano Lenhardt (Artista Plástico), mantém o clima sol & mar e tem na construção da letra uma sequência onírica que funciona como um abre-alas para a estética da banda - Não é à toa que essa faixa foi uma das primeiras a serem divulgadas pelos músicos -, como na estranheza dos versos “numa tarde joelho me desatei verdanho na tempestura/ sutura o sol em três por onde em cedo em som/ para um sonho em quando real imagem mental” que se encerra com a canção “desumbigando esquinas livres”, posteriormente às citações literárias de “neruda lenda quintana andando clarice lia/ clarice lia pessoa amado”. Chave incomum de tratamento às letras de música, que em muito diferem das presentes nas próximas faixas, comumente ligadas a uma narrativa sentimental mais frequente, várias vezes se aproximando – e se chocando – com o lugar comum. Essa impressão clichê se desfaz na parceria de Felipe e Domenico, a faixa “Canudo” traz de volta a onda que permeia a estética do disco. Passa da morna melancolia da voz e versos “é só o sol sugando o sal do mar com seu canudo de luz” para a diversão sonora que consegue unir letra e música numa das melhores faixas do álbum. A experiência sonora que embala as canções do Trio Eterno é combustível vital para que a música de Felipe e André permaneça enriquecida pelo encontro que a música proporciona, não importando o “projeto” em pauta, mas a bem-vinda criação que renasce de cada encontro. De tal modo, torço para que o clima de Suite Pistache e dos shows que os músicos vêm fazendo contamine o ambiente dos próximos trabalhos deles. pq?
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Artista: Juvenil Silva Álbum: Desapego Ano de Lançamento: 2013 Setlist: 01. Hitchcock Rock 02. Mixturado 03. Pomba Gira violeta 04. You’re not alone 05. Tire o peixe da gaiola 06. Desapego 07. Meu Freewheelin do Bob Dylan 08. Roda nova 09. Se ela nunca... 10. De volta para o futuro em Recife
por Jeder Janotti Jr.
Há uma geração em Recife que parece ter conseguido se livrar da maldição Mangue. Por trás de suas composições não há mais ecos de resgate de tambores, nem conexões pop-cult-cabeça com a nova MPB. Esse caminho sonoro engloba propostas diferenciadas e de diferentes matizes, não parece haver unidades ou centros a não ser o agrupamento de gente que quer fazer música e, na maioria dos casos, Rock. Uma das pontes que parece mais interessante para seguir esse caminho não passa pela lama e sim pela reinvenção da psicodelia, seja ela de referencia local, nacional ou o global. O álbum Desapego (2013) ergue essa ponte na voz e guitarra daquele que talvez seja o catalizador desse outro modo de habitar as esquinas musicais do Recife: JuveNil Silva. Longe do mangue, mas próximo da lisergia dos
habitantes dos becos e de outros centros que não necessariamente o Recife Antigo, JuveNil usa como argamassa o rock, e não somente o rock, mas uma versão abrasileirada que tem influências de Ave Sangria, um pouco de Sérgio Sampaio e Raul Seixas, que parecem servir como mediadores para um rock atual, teatralizado e inteligente. Essas influências não são simples comparativos, são fricções, curtos-circuitos atualizados, sinergias psico-musicais. Logo na primeira faixa, “Hitchcock Rock” é possível escutar a atitude, a postura que atualiza Raulzito em um modo dramático de interpretar as canções como um mundo de referências, cujas bases são as guitarras e o ritmo do bom e velho e rock and roll: “Posso lamentar, caso a cortina rasgar/ Essa janela é indiscreta demais/ Solto devagar não consigo segurar o ar”. Para os desavisados é bom esclarecer que não se trata de um álbum vintage ou passadista e sim, de ousadia rock em tempos de internet: transitar em territorialidades diversas sem preconceitos. Esparrei, assumir a veia roqueira de multirreferências culturais possibilita ao som de JuveNil: “misturar torto pelo avesso”. Não se trata de hibridismos, caldeirão sonoro ou rótulos que abarquem miscigenações e depois embalam tudo como World Music. Longe disso, o álbum Desapego é Rock, que pode ser rural, balada ou instrumental, como na faixa “Tire o Peixe da Gaiola”, onde JuveNil mostra que é intérprete/músico de primeira através de sua “infroindução”. Mas é essa conduta, esse desapego das zonas de conforto que proseia com o ouvinte através de um rock psicodélico brasileiro pernambucano que presentifica Jimi Hendrix e Bob Dylan em tempos de antropofagia digital. Escutar Desapego é deixar-se levar pela intensidade que pode evocar ironia, excessos verbais, solos de guitarra (por que não?), mas também é apegar-se a sonoridades que hoje parecem passadistas para quem quer ser pop-cult-descolado. Mas as canções de JuveNil instauram suas próprias modas, aquelas dos desbundes elétricos que em tempos digitais impõe-se como Rock em uma misturação tropical. Em uma época que Rock parecia coisa de velhos cabeludos que como eu habitam máquinas de tempos passados ou coisa ligada a roupas e sapatos coloridos, o álbum de JuveNil Silva é como um doce em tempos de drogas amargas. Atitude dramática contra música contida. Não é indie(gesto), pop ou bolero. É rock mesmo! pq?
ouça tbm
Vermelhas Nuvens, de Hugo Linns.
Passo Elétrico, de Passo Torto.
A arte de ser invisível, de Juliano Holanda.
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a crítica como prática neobarroca por Jocê Rodrigues.
o fazimento dessa escritura não deve ser científica, rígida (já que o seu objeto de estudo/ análise se localiza, cartograficamente, no campo da arte). uma escritura que dialogue com seu objeto, que perpasse as sensações e pulsões da obra; que não tente conter ou catalogar desejos, mas que lhes empreste corpo, que lhes proporcione adensamento dar corpo musical-crítico é adentrar, habitar a obra é potencializar (caso haja) suas possibilidades inventivas através da ampliação do seu working space por que traduzir a música (arte) em delimitações científicas duras (cultura)? se a música é poesia, então ela também é espanto, ekplêtton, nunca prosa (dià lógon) não se trata de instrução, de clareza elucidativa e não faz sentido que sua representação, seu significante escritural, também o seja, pois essa visão funciona como um instrumento de castração do objeto, transforma-o em cultura infértil a crítica é um ato escritural o fazimento de uma escritura que seja barroca um desperdício, um fazer cujo fim é ele mesmo contrariamente à linguagem comunicativa, econômica, austera, reduzida à sua funcionalidade – servir de veículo a uma informação – a linguagem barroca se compraz no suplemento, na demasia e na perda parcial de seu objeto. (severo sarduy) resposta poética para a seguinte situação: o que fazer ao estar frente a frente com um objeto não representável? uma das saídas é circundar o significado que se encontra encoberto por uma névoa de possibilidades por significantes diversos criando assim uma polissemia também visual (uma costura de símbolos) como forma de representá-lo (escrituralidade) algo está lá no centro furioso de uma espiral de possibilidades (uma obra [que se situe no campo da ARTE] é uma galáxia) mas não pode ser discernido o máximo que se pode fazer é contorná-lo inserindo signos potentes para delinear + ou – a sua posição sem nenhuma mensuração exata a perda do objeto, da informação direta - o realocamento do objeto em um lugar da linguagem que não é identificável enquanto certeza. o vazamento, através de um profundo corte na carne, de signos e signicantes que jorram, se chocam, se friccionam, trepam. o resultado desse erotismo não podia ser outro senão o GOZO, o desperdício erótico que dispensa finalidade. joga luz a si mesmo, encerra-se, finda-se no fazer. pq? 48
Fotos: Si no Puedo Bailar (Flickr).
Amizade, esse bosque rock e pulenta por Rodrigo Maceira.
Quando penso numa banda de La Plata, e penso em muitas, imediatamente imagino o cenário de El bosque pulenta, conto de Fabián Casas, com uma rapaziada circulando por Buenos Aires, família meio ausente, a amizade como fonte de formação para toda uma geração de argentinos. “Se trata de dos chicos que salen a la vez por las puertas traseras del mismo taxi y que, por miles de motivos, no se vuelven a ver. Uno de ellos soy yo. El Otro es Máximo Disfrute, mi primer amigo, maestro, instructor, como se le quiere llamar.” Não é em casa, não é na prova de Matemática: a vida acontece na piada, na decepção ou em alguma paixão compartilhada com os amigos. Colecionados e cultivados na escala da lealdade, riem e choram no bar – e no chão do quarto –, testam medos, e, acima de tudo, criam. Criam juntos. Vamos formar uma banda? Eu toco o baixo. O Sebas faz o cartaz. O Juan vende os discos. O Martín revisa as letras. E a Vane fica com as fotos. Quase o mundo inteiro consegue caber nesse terreno de experiências e generosidade. Existe inclusive um Festipulenta, onde, imagino, bandas amigas improvisam um palco simples enquanto amigos visitantes estendem toalha numa grama alta (ou num porão escuro) para dividir sanduíche e cerveja. Parecem ter intimidade especial para inspirar e fazer trançando as mãos, as pernas. Eles se tocam muito também. Quando terminei de ler Rayuela, decidi que faria alguma coisa chamada “Club de las serpientes”. Aqui em São Paulo, organizei um fanzine com dois amigos, que não saiu da primeira edição. É difícil apostar no outro. No romance do Cortázar, era um jeito de estar junto, de pensar do lado de alguém, inspirado, atormentado por alguém. A vida ganha brilho
quando acontece em comunhão. Los nuevos creadores del rock’n’roll são amigos na mesma medida em que exercitam a solidão. Parece, mas não é estranho: vão tão fundo no fosso dos que se sentem sozinhos – e, aqui, penso nesse recente quadrinho da equatoriana/colombiana Powerpaola, radicada em Buenos Aires – que, de volta à superfície, respiram pesado, dramaticamente, no colo de alguém em quem confiam muito. Quer dizer, no colo de algum amigo. Na balança dessa geração, uma (amistad) é meio o lastro da outra (soledad). Vejo um hino chamado “Amigo piedra”, um coro como o de “El tigre de las facultades”, ou o verso fabuloso “Mis proyectos son amigos y gente que viene a mi casa”, que estampei numa camiseta que colhe elogios em todo encontro novo, e enxergo verdade. A verdade de uma molecada que não sabe viver diferente. Que compartilha bebida, roupa, livros, drogas, amigos e namoradas. Que faz arte fazendo música. Que estaria numa banda com amigos mesmo que fossem outra banda e outros amigos. As bandas pulenta da música argentina dos últimos 15 anos acreditaram num mundo fantástico e cresceram para um futuro apaixonante, com amor e, por extensão, amigos. Quando o garotinho descobre que o coelho que ganhou de presente é o melhor presente que jamais imaginou – no amor e no ódio –, Castilho condena o protagonista de “Conejo” ao que, nesses anos de convívio com artistas independentes argentinos, reconheço como a lei universal da música autogestionada no país: fazemos juntos, porque, por uma razão esquisita, escolhemos precisar uns dos outros. pq?
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Estórias Roubadas #5
Três Dias
por Eduardo Alves da Costa1 e Fábio Andrade
Era simples o hábito. Todo dia, à meia-noite, acordava, levantava-se cuidadosamente e, em silêncio, deixava a esposa dormindo no quarto. Passava pela porta entreaberta dos filhos e seguia para a pequena biblioteca contígua à sala. Conseguira esticar parte da sala e transformá-la em biblioteca na última reforma, dois anos atrás. Os livros todos finalmente ganharam mais espaço, passaram a respirar melhor, menos sujeitos a polias, traças e cupins. Deixaram definitivamente o quarto dos fundos, que já havia sido dispensa e depósito de entulho. O “quarto da bagunça”. O hábito surgiu muito naturalmente, já que ao longo do dia os filhos pequenos, as preparações de aula, os projetos de pesquisa, as avaliações de comissões, as orientações de bolsistas, os projetos de extensão… impediam-no de ler. Mas um dia, enquanto lia uma seleção de poemas das Flores do Mal numa tradução brasileira, teve a impressão de alguém passando próximo à janela, caminhando no jardim em frente à casa. Levantou-se, foi até o janelão e esticou o pescoço, a cabeça próxima ao vidro. Viu a sombra esgueirarse entre as rosas, tulipas, margaridas e gerânios. Conseguiu ver, inclusive, quando o vulto encheu a mão com as flores do seu jardim; parecia, ainda com cuidado, dividi-las em ramalhetes que foram se somando embaixo dos braços, enquanto abraçava o curioso furto do seu roubo. “Não é nada”, pensou. Ficou se perguntando onde o diabo do cachorro andava que não serviu sequer pra assustar um ladrãozinho safado. E voltou para sua leitura. Às duas da manhã, levantou-se e caminhou pelo corredor de volta para o quarto. No dia seguinte, na mesma ordem do dia anterior, que era, por sua vez, a ordem da semana e do mês anterior… jantou, levou o cachorro pra passear, tirou dúvidas escolares dos filhos, pôs eles na cama, terminou a novela, deitou com a esposa e dormiu. Acordou na mesma hora de sempre, calçou as sandálias e se dirigiu para a biblioteca. Dessa vez,
porém, diferente da noite anterior, não foi um vulto que atrapalhou a leitura do canto nono do paraíso da Divina comédia. Via nitidamente o homem parado em frente à janela, ele tinha caminhado até ali pelo jardim, devia ter pisado nas flores todas para poder se colocar daquela maneira, quase rente ao vidro. Nervoso, ainda sentado na poltrona, viu que ele não estava só. Houve uma movimentação do lado de fora da casa e ouviu finalmente o cachorro latir. Latiu bastante – pensou até que Letícia e as crianças acordariam –, mas os latidos foram ficando esganiçados, transformando-se num rumor baixo, quase irreconhecível. Tinha certeza que de que “Thor” estava morto… o que diria aos filhos? “Não é nada demais” pensou. Na terceira noite, algo havia mudado. Jantou, conversou longamente com os filhos sobre a vida e a morte, deixou que dormissem no quarto com ele e com a esposa, ficou acordado, tomado pelo medo. À meia-noite, seguiu titubeante pelo corredor até a biblioteca. Pegou um livro qualquer. Viu depois que eram os poemas de Safo, traduzidos pela primeira vez para o português e direto do grego. Lia e observava a janela, mal se concentrava nas doces palavras da poeta de Lesbos… começava um dos poemas ao acaso e ao chegar ao fim da página nada mais fazia sentido. De repente, as luzes todas da casa se apagaram, o coração disparou, pensou na mulher, nos filhos, na morte de Safo. A última coisa que sentiu foram braços franzinos, mas poderosos, agarraremno enquanto se debatia inutilmente. Ao acordar no dia seguinte, não pôde dar “bom dia” à mulher e aos filhos. Vestiu-se para o trabalho, a gravata escura sobre a camisa de botão branca, ele, os filhos e a mulher mudos. A televisão ligada – multidões, faixas, cartazes, violência e fogo. Assistiu a tudo impassível, ele havia perdido algo. Sentia ainda a textura áspera do braço magro invadindo sua boca, apertando o coração da sua voz entre os dedos até ele murchar. E só pôde pensar: “não, não deve ser nada demais”. pq?
1 Eduardo Alves da Costa comparece ao estórias roubadas com um trecho do seu poema “No caminho com Maiakóvski”, que já foi, por sinal, roubado várias vezes. O poema foi o motor de uma série de equívocos – atribuiu-se o texto ao próprio Maiakóvski e a Brecht. E também de uma série de protestos e manifestações políticas, na época das Diretas já, tendo sido estampado em camisetas, pôsteres e até em cartões postais. Transformou-se num símbolo da resistência contra a ditadura.
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