Outros Críticos pq? #4

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pq? outros crĂ­ticos 1 dezembro 2012


EDITORIAL As matérias de capa das edições do e-zine pq? são sempre perguntas. Como sugere Rodrigo Édipo, o jornalista ou pesquisador “tem no artifício da pergunta uma utilidade bélica”. Ela tem sido a nossa munição para provocar o debate ante o silêncio da crítica, do público e dos artistas. A intenção dos Outros Críticos é criar ruídos. “O debate está aberto”, assim Édipo encerra o prefácio do livro Entrelugares – notas críticas sobre o pós-mangue (2012), de Ricardo Maia Jr. O e-book nasceu a partir dos ensaios que Ricardo escreveu para o blogue durante 2012. Resolvemos organizá-los e reuni-los em livro, porque víamos neles uma voz rara que tencionava a crítica e a criação em torno do cenário cultural em que estamos envolvidos. Vide a atuação de Ricardo como músico e pesquisador. De lá vieram as perguntas para compormos a matéria de capa dessa edição. Sobretudo, o préfácio de Édipo, que abre uma série de contestações sobre a música de Pernambuco. Enviamos essas perguntas para diversos setores. As respostas

que recebemos nos indicam que há muito fôlego para o debate. No entanto, ainda são escassos os espaços para fazê-lo. Todos os setores são responsáveis pela criação saudável desses espaços. Nessa edição, ainda contamos com entrevistas com Ricardo Maia Jr., as bandas Rua e Wandula, e os músicos Matheus Mota, Siba e Tibério Azul. Jocê Rodrigues colaborou com resenhas crítico-filosóficas para alguns discos, como os de Tom Zé, Jair Naves e Metá Metá. O miniconto “solstício”, construído com trechos de letras de música, apresenta 12 músicas/discos que destacamos em 2012. Olhando para o futuro, apresentamos os novos colunistas do blogue Outros Críticos, que no próximo ano estreará no endereço outroscriticos.com. No mais, literatura, ensaios, críticas e artigos completam o ruído insistente que tentamos produzir em 2012. Agradecemos pela colaboração de todos, em especial a Rodrigo Édipo. Boa leitura.

pq? outros críticos 2 dezembro 2012


COLABORADORES Jocê Rodrigues Estudante de Filosofia e História. Colabora com resenhas e artigos para os sites Café Espacial, Jardim da MPB e Outros Críticos.

Diego Albuquerque Editor da Revista MI – Música Independente em Pernambuco, e do site Hominis Canidae.

Jeder Janotti Jr. Crítico musical e professor do curso de pós-graduação em Comunicação da UFPE.

Anco Márcio Tenório Crítico literário e professor do curso de pós-graduação em Letras da UFPE.

Juliano Holanda Músico das bandas Azabumba, Orquestra Contemporânea de Olinda e Wassab.

Victor de Almeida Produtor do Festival Lab e mestrando em Comunicação pela UFPE.

Ad Luna Jornalista e crítico musical do Jornal do Commercio.

José Juva Poeta, crítico literário e doutorando em Teoria da Literatura pela UFPE.

Matheus Torreão Músico da banda Caravana do Delírio.

Zeca Viana Músico e curador do Recife Lo-fi.

Rogerman Cantor e compositor.

FICHA TÉCNICA Carlos Gomes Edição, redação e revisão. Fernanda Maia Design e diagramação. Contatos outroscriticos@hotmail.com outroscriticos.blogspot.com facebook.com/outroscriticos @outroscriticos

O e-zine pq? é uma publicação do blogue Outros Críticos, de Recife/PE. O blogue está no ar desde 2008 e atua com crítica e produção cultural. Além do e-zine, também é responsável pelo projeto, de debates e shows, Outros Críticos convidam e a coletânea musical Bootleg.

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SUMÁRIO ENTREVISTAS

06 11 17 40 45 49

Rua Matheus Mota Ricardo Maia Jr. Wandula Tibério Azul Siba

COLUNAS

22 54 70 78 82

Crítica de boteco (por Carlos Gomes) Caetano e seus precursores (por Carlos Gomes) Lado A | Lado B (por Carlos Gomes) A poesia é o vinha da visão (por José Juva) Coluna em quartetos (por Matheus Torreão)

CAPA

26 28

Árvore de mil frutos Depoimentos

RESENHAS

58 61

O Tom da Tropicália

(por Carlos Gomes)

(por Jocê Rodrigues)

E você se sente numa cela escura, planejando a sua fuga, cavando o chão com as próprias unhas (por Jocê Rodrigues)

64 66 68

Metá Metá MetaL MetaL (por Jocê Rodrigues) Rodrigo Campos Bahia Fantástica (por Jocê Rodrigues) Zé Manoel e a descoberta da voz (por Jocê Rodrigues)

SELEÇÃO

72

Solstício (12 músicas/discos de 2012 )

CONTO

74

Daniel Liberalino

Ilustração de capa: Billy Alexander

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p.06

Foto: Fora do Eixo

p.54

p.28

p.49

p.58 p.68

p.74

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A banda Rua é formada pela voz e poética particular de Caio Lima, bateria e ruído de Hugo Medeiros, cavaco, bandolim, melodias e dissonâncias de Nelson Brederore, e pela distância física de Yuri Pimentel e Bruno Giorgi, respectivamente, baixo e guitarra da banda. A ausência, antes uma dificuldade, faz do encontro dos músicos uma “celebração de agonia e êxtase”. Como confirma Caio Lima nesse pedaço de conversa.

RUA pq? outros críticos 6 dezembro 2012

Foto: Flora Pimentel


Foto: Flora Pimentel

entrevista por Carlos Gomes

Quando me coloco na posição de responder pelo grupo sinto, imediatamente, que me encontro numa posição complexa, pois não é fácil, nem simples, mesmo estando parte desse grupo, mensurar tudo o que em si reúne-se para que ele exista. Fácil é afirmar que toda a vez que termino uma entrevista sinto falta do que eu queria dizer.

que estampa a felicidade, com o seu sorriso de morte, em nossa promessa de vida. Era como se, esgotados naquela ideia de felicidade, reencontrados com o vazio, procurássemos a nossa voz. A criação só é possível diante do absurdo. Então, partimos para o vazio; deixamos os acordes em bloco de lado, tentamos chegar novamente a uma polifonia que possuía como norte a nossa memória e, sobretudo, os nossos ouvidos e afetos. Lembro que meu pai ao escutar a Master disse: “Porra, cadê a harmonia? Tá muito vazio! Esse cavaquinho parece que está desafinado.”.

Quando lançamos do absurdo, eu percebia uma crítica àquilo

Até hoje, essa história de estar minimalista surge apenas da ne-

A última apresentação da Rua, que ocorreu na Livraria Cultura, teve um aspecto de transição entre o show do disco anterior, do absurdo (2011), e do próximo, Limbo (2013)?

pq? outros críticos 7 dezembro 2012


cessidade de encontrar a música em nós; um impulso vital. A tentativa, mesmo que até então intuitiva, de corromper a forma que, através de meios distintos, nos impõe como possibilidade de fazer música e, o que acho pior, de criar a sua escuta, o seu ouvido. Acho que fazer música pode ser isso: a procura por aquilo que move, comove. Dramaticamente, fomos ao fundo do poço, até o óbvio da repetição e lá encontramos uma força que corrompeu a nossa própria ingenuidade, um gênio sagaz que, aparentemente, “complexificou” o ritmo e o melos. Essa foi a nossa harmonia. No show na Cultura, ao tocarmos cinco músicas do Limbo, mostramos às mais de cem pessoas que compareceram à livraria que estamos atravessando o do absurdo e chegando a outra coisa. O sintetizador está sendo mais utilizado; a guitarra aparece como mais uma voz; a ideia de tempo relativo inscreveu-se de vez na polimetria, e às vezes, sem percebemos, realiza-se sem reflexão. E já que falamos de um disco novo que existe mais em sonho, aqui falo também de desejo. Terminamos a apresentação com confiança, mesmo com Yuri e Bruno morando no RJ, o que dificulta o nosso encontro físico, como normalmente acontece com as bandas tradicionais, estamos

nos sentindo mais confiantes. Confiantes como se fizéssemos uma música que surge apenas desse encontro, e por isso celebramos as apresentações: é um momento fuderoso, de agonia e êxtase. Porém, se eu fosse falar sobre o que é o Limbo, diria que ele se faz sobre desilusões. Limbo é sobre a esperança ou sobre a força do que desespera. E ainda uma reflexão sobre a idolatria. Vejo como um progresso do disco do absurdo e não como revolução. Mas aqui há uma ideia de força, de violentar ilusões, que de certa forma estava no do absurdo, mas que parecia estar sob o colo de um destino trágico. No Limbo não há destino, há devir. As participações especiais que vocês tiveram no show da Livraria Cultura são reflexo das parcerias para o novo disco? Diogo é um amigo. É um cara pilhado, que gosta de música, trabalha com música, vive da música, sabe? Quando nos encontramos, conversamos sobre música. Quando Bruno não pode vir fazer o som da banda, a parte do Dub e tal, imediatamente ligamos para Diogo e o convidamos. Vem sendo assim, foi assim no show da Expoidea. Posso dizer que Diogo já faz parte da Rua. Ele fez o nosso som e tocou guitarra em duas músicas. Acho muito provável que ele esteja no Limbo.

pq? outros críticos 8 dezembro 2012


As letras de Limbo terão o mesmo tratamento de canções como “Todalegria”, em que há, notadamente, um olhar atento à palavra na canção? As letras do Limbo estão bastante adiantadas, mas ainda estamos em processo criativo. Sou um ruminante. Transito no limiar entre a pulsão poética avassaladora que simplesmente vaza a canção num instante e a necessidade de refletir sobre o que é a canção. Então, demoro nas letras e até hoje não consigo ignorar uma dramaturgia da canção no disco. A canção é o jogo da minha existência. Exercito-me ali, de uma forma ou de outra; um reconhecimento. Por isso, mesmo que eu acredite que o Limbo tenha uma relação mais profunda com o instrumental, sempre houve um olhar atento à palavra. Aliás, haverá uma música chamada “Palavra” no Limbo. Ainda é cedo para falar sobre os arranjos. Mesmo sabendo quais são as músicas que gravaremos, elas ainda estão sendo gestadas. Os dois primeiros discos da Rua foram aprovados em editais de incentivo à cultura. Pensar os modelos de acesso ao incentivo, novas perspectivas para a cultura, passa também pelas conversas da banda? O que vocês pensam do modelo atual? O Funcultura foi muito importante para a Rua. Ao lembrar que

quando Yuri se mudou para o RJ seria difícil a banda continuar, conseguimos dimensionar como a aprovação da gravação do primeiro disco foi fundamental para continuarmos com a ideia da Rua. Nosso problema continua sendo a difusão. É difícil circular e acaba que a repercussão do seu trabalho fica restringida ao seu poder de fazer o produto circular. As redes sociais nos ajudaram bastante nesse sentido, tivemos uma boa repercussão, mas raramente conseguimos tornar essa repercussão em realidade física. É importante dizer que os editais de incentivo à cultura são importantes, mas que podemos e devemos pensar em alternativas para esses modelos. Conseguimos em abril de 2012 realizar dois shows por conta própria e foi uma experiência positiva no sentido de que é possível criar lugares de escuta na cidade sem ter que necessariamente depender do Estado. A Rua tem ido para além dos discos e shows, com participações com trilhas e vídeos. Falem um pouco sobre esses trabalhos, e se há novos projetos à frente. A minha relação com grupos de dança da cidade do Recife me instigou a investigar a relação entre o corpo e o som, a imaginação e o movimento. Em certo momento percebi o bailarino com o corpo silenciado e o músico com

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metafísica demais. Então, já fizemos algumas trilhas para espetáculos de dança, videodanças, tentando realizar uma reaproximação dessas linguagens a fim de compreender algo como uma retórica do sentir ou uma carto-

grafia sonoro-afetiva. Como determinado som reverbera no movimento do corpo? E ainda todo o mês realizamos junto ao Coletivo Lugar Comum numa jam session de música e dança. pq?

“Rua quase não faz música. São tratados, teses sobre a arte, sobre o estar no mundo da arte. Alberto Infa

nte – Diário

Austral

pq? outros críticos 10 dezembro 2012


matheus

MOTA A presença de Matheus Mota na nova música pernambucana confirma o interesse da crítica e do público pelo entrecruzamento de linguagens. Artes Visuais, Publicidade, Quadrinhos e Música, muita música, de diferentes formas, sotaques, timbragens, permeia o trabalho de Matheus. A nossa conversa girou em torno do seu primeiro álbum Desenho, lançado em 2012.

Foto: Reprodução (Facebook do músico)

pq? outros críticos 11 dezembro 2012


Foto: Reprodução (Facebook do músico)

entrevista por Carlos Gomes

Os lançamentos de discos no circuito que conhecemos são bastante parecidos, com faixas no Soundcloud e disco para download gratuito em alguns sites e blogues. Mas você tinha planejado lançar o álbum Desenho (2012) de uma forma totalmente diferente. O que deu errado? Ah, a falta de dinheiro próprio e poucos apoios momentâneos para as feituras gráficas. Contatos, principalmente, você sabe. As coisas se viabilizam muito pelos contatos que eu comecei a fazer mais a partir do lançamento do disco, as pessoas começaram a se interessar mais. Porque a ideia do disco Desenho seria um encarte em tamanho

de vinil, com todos os aparatos plásticos, livretos e tudo mais... exceto o disco! No lugar dele, viria um papel com um QR code e o url de link e soundcloud para a pessoa ter acesso livre à música e pagar unicamente pelo material gráfico. Uma piada que divertiria, mas fica para a próxima. Não diria que deu exatamente errado. A força da difusão de entusiastas e amigos – e amigos de amigos – foi bem expressiva. A capa, que desde o início teve um valor igual às músicas (tanto é que foi lançada antes do disco sair, muitos meses antes) teve um destaque legal também, o pessoal gostou! O disco está saindo fisicamente em formato CD, pelo selo paulista Cloud Chapel, com o encarte

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completo, nas dimensões menores. Sinceramente, não tenho uma grande urgência por formatos físicos, exceto pelo vinil, que tem a qualidade legal e as artes gráficas grandes (dado o recado a interessados que queiram ajudar!). Outro dia brinquei dizendo que o meu segundo disco será a arte impressa com um cd-r virgem, as instruções e links num papelzinho, para o ouvinte baixar e queimar seu próprio cd. Esses tipos de ações e gags têm me interessado mais, ultimamente.

e, eventualmente, esses suportes serem interligados; acho que cada caminho tem vida própria, um microcosmos. Eu ofereço, aos poucos, uma coleção de materiais que não precisam estar sempre conectados. É certo que parte do meu trabalho musical abre possibilidades cênicas, mas o ouvinte de um estado do Sul do Brasil não irá obrigatoriamente perder informações por não conseguir assistir uma apresentação agora. Ele irá experienciar isso em vídeos, ou construir as cenas em sua cabeça.

Em julho, você fez um show dentro do projeto “Outros Críticos convidam”. Na ocasião, além da música, a plateia pode ver os seus desenhos, suas peças publicitárias e ainda ouvir de perto sobre o seu processo de criação, tanto das músicas quanto dos desenhos. A melhor compreensão de sua música passa por uma percepção desses outros campos de atuação? O ideal seria ouvir e ver um show de Matheus Mota?

O show é também uma oportunidade de complementar a experiência de quem ouviu em casa, e, ao mesmo tempo, de apresentar uma nova óptica para quem tem a oportunidade de me ouvir explicando o sentido de certas letras, como fiz na Livraria Cultura. Não existe um sentido “final” para quaisquer interpretações dessas músicas, bem como cada pessoa tem uma área de captação de frequência auditiva diferente, logo todo mundo – todo mundo mesmo! – ouve qualquer música de uma forma diferente, naturalmente. E eu procuro estar ciente disso, do que o público pode ganhar e perder. Descobri, bem recentemente, que tocar ao vivo é legal. Naturalmente, vou procurar fazer mais isso!

Apesar de perceber que, hoje em dia, muitas vezes música e imagem são linguagens que praticamente se confundem no universo pop, existem diversas formas do público experienciar meu trabalho. Além de apresentar uma variedades de “versões” do que eu entendo das coisas através da minha produção em vídeos, desenhos, literatura e música,

Você chegou a montar uma banda em São Paulo e, agora em Recife, é acompanhado pelo Grupo

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Varal. Como foi a montagem dessas bandas? Elas revelam de alguma forma as particularidades da cena musical de Recife e São Paulo? Isso é um muito interessante, porque o Grupo Varal seria uma banda paulistana. Eu tinha alguns projetos de discos engavetados, e, inicialmente, tive mais apoio em São Paulo do que em Recife. Entrei em contato com amigos que ora cursavam bacharelados ou licenciaturas em música, ou se preparavam para prestar vestibulares na área. Um pessoal bem mais jovem que eu – que tenho apenas 25 anos. Eu chegava com as composições prontas, muitas vezes com alguns arranjos escritos, a ideia emotiva e tudo mais. Mas, em retrospectiva, comparando com a banda atual, foram grupos extremamente diferentes, justamente por apresentarem “sotaques” diferentes, mesmo na execução de uma peça escrita que muitos diriam que soaria igual. Diferentes, porém igualmente legais. Recife e São Paulo são duas cidades muito musicais. Cenas que já foram muito distantes, mas acredito que estejam muito próximas, quase primas. Talvez pelo assustado crescimento do Recife nos últimos anos, ou da cada vez mais crescente presença de pernambucanos em São Paulo, acredito que são contextos que não ficam devendo muita coisa

um para o outro. Bandas muito interessantes que espero estar em contato. Me orgulho do Grupo Varal ser pernambucano, e gostaria muito que excursionasse por outros estados. É uma banda de faixa etária mais variada, com músicos mais jovens e mais velhos que eu. Alguns deles extremamente experientes e atuantes, tais como Tiago Barros (vulgo “marditu soundz”) na bateria, e o guitarrista Rodrigo Padrão. E que não ficam nada distantes do frescor e instiga iniciante do pessoal mais novo, como a querida vocalista e amiga Aninha Martins. O álbum Desenho é bastante variado, com 15 faixas e algumas participações (apesar de você tocar a maioria dos instrumentos). Um pouco mais e você poderia ter um disco duplo. O excesso, no seu caso, é o que dá unidade ao álbum? Apesar de apresentar bastante material, a preocupação inicial foi apresentar um “tradicional” álbum com 40 e poucos minutos de duração, de modo que a quantidade assusta, mas é um disco de duração comum. Gravei um EP em 2009 e lancei ao longo dos últimos dois anos diversos singles, mas sempre com a angústia de deixar “filhos órfãos”, canções soltas. Sempre busquei uma unidade através de séries, talvez pela influência marcante do meu pai, Eudes Mota, que é

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artista plástico e trabalha da mesma maneira. Ele traça uma meta, um conceito e produz uma série. Ao longo de um ano, aparece a série, resultando numa exposição. Então, o disco é isso, uma exposição, uma coleção de momentos. É claro que com a rapidez da internet e a perecibilidade do enorme conteúdo lançado diariamente, as pessoas tendem a preferir “ir numa exposição coletiva”, vendo um ou dois trabalhos de um artista, como ouvir apenas um single. A cantora Aninha Martins canta em 4 faixas (destaques para “Cabeça” e “Profissional”). De alguma forma, as composições mais novas (e seus respectivos arranjos) têm sido feitas pensando nessa parceria?

O disco também conta com a mixagem e masterização de Roberto Kramer (integrante da banda Team.Radio). Vindo da experiência de lançar EPs e singles, o que necessariamente mudou nos seus discos com a contribuição de Kramer? Kramer assistiu meu segundo show com o Varal, em maio, e começamos os contatos para produzir algo. A essa altura, Desenho já estava 90% pronto, mas sem a

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Hoje em dia, certamente componho muita coisa pensando em Aninha! Porém, no passado, boa parte dessas músicas foram feitas num período em que eu sequer havia conseguido apoio de músicos em São Paulo. Digo isso porque o processo de tirar esse material pode ser tanto prazeroso quanto estressante para o pessoal do grupo. De um tempo para cá, passei a escrever mais para a turma que toca comigo, vislumbrando a participação deles, com a marca deles, as possibilidades deles. Aninha, por exemplo, não chega a cantar em “Avenida”, mas já imagino ela

ao vivo, num coro bacana… “Profissional” tem um trecho solo em que cheguei a procurar diversas cantoras por achar que precisaria de uma cantora contralto, de tom mais grave. Hoje em dia não consigo imaginar a música não sendo cantada por Aninha!

pq? outros críticos 15 dezembro 2012


menor perspectiva de sair. Kramer foi um verdadeiro santo com sua paciência e dedicação, soube entender algumas das minhas ideias e ao mesmo tempo contribuir significativamente com suas texturas e frequências corretas, além de suas referências musicais para contribuir na mixagem. Um disco de orçamento bem baixo, mas que esteticamente acabou soando bem mais bem feito do que seria o original caseiro. Acredito que foi o primeiro long play que ele produziu… Um grande cara, que pretendo certamente trabalhar em álbuns futuros. “Se Matheus Mota não der certo, vou sentir que a nossa geração falhou” (anônimo em mesa de bar). – Trecho de release escrito por Rodrigo Édipo. Algo te incomoda nessa frase? O que está nas entrelinhas dela revela muito dos impasses dessa nova geração de músicos, sobretudo aqui em Recife? É uma frase bastante elogiosa, embora me traga um pouco de receio. Reflete muito bem nosso tempo, essa virada de século. A perecibilidade que eu citei anteriormente… Criar uma geração, forjar uma cena, tornou-se um trabalho de formiguinha, muito mais difícil que em outros tempos, eu acho. Apesar de todas as facilidades de se difundir conteúdo. O público deve suspeitar, com todas as forças, de nomes isolados que, do nada, aparecem

como “a novidade” numa nota de jornal ou algo do tipo. Quem é esperto e tem contato com a internet sabe que a coisa não funciona mais assim, que o fato de alguém existir em grandes mídias não necessariamente represente um contexto de época, de geração. A internet nos mostra quem são os artistas bacanas, os caras de verdade. Então, essa frase acaba por me fazer concluir que, sim, existe realmente uma grande chance de muitas coisas que gostamos jamais serem conhecidas, pelo menos no que diz respeito às “mídias oficiais”. E é o que todo músico iniciante deve ter em mente. Você quer tocar para quê? Pra você, para o público? Você gosta mesmo de música, ou gosta mais de público? Sabendo que não existe mais a grande gravadora. Sabendo que, ainda que com tanto esforço, alguns músicos às vezes muito limitados garantem um lançamento garantido em todos os jornais, sites grandes, tudo com um puxar de gatilhos. Você vai continuar fazendo música? Eu gosto do que eu faço, mas também costumo mudar de atividades, quando dá vontade. E dar certo é algo bem relativo. Por enquanto, está tudo bem! Vamos em frente. pq?

pq? outros críticos 16 dezembro 2012


Ricardo Maia Jr., mais conhecido como músico da banda Ex-exus, conversou conosco sobre os desdobramentos que os seus ensaios provocaram depois do lançamento de seu primeiro livro de crítica musical. Em que, de um ponto de vista privilegiado, já que atua há muito tempo como músico e pesquisador em Pernambuco, põe luz sobre uma série de bandas surgidas depois dos anos 2000.

Foto: Reprodução (Facebook do entrevistado)

ricardo

MAIA JR. pq? outros críticos 17 dezembro 2012


Foto: Reprodução (Facebook do entrevistado)

entrevista por Carlos Gomes

O lançamento do e-book serve para legitimar as críticas que você já havia escrito na internet? Visto que faz parte das colunas que você assinava no blogue Outros Críticos. O e-book (mesmo que digital) ainda é uma forma de legitimação da crítica feita na internet? Acho que a reunião destes artigos – que foram revistos e revisados para o lançamento do e-book – e o prefácio de Rodrigo Édipo dão um retoque maior para a linha temática que me propus a analisar no blogue Outros Críticos durante um semestre: o Pós-mangue. O e-book é uma forma de legitimar, sim! De certa forma, um reconhecimento da

crítica que me empenhei a escrever. O perigo da legitimação, talvez, seja a autenticidade, pois, o interessante é que esse debate seja expandido e não restrito às minhas interpretações. Existe uma dificuldade maior em escrever sobre a música contemporânea de Pernambuco? Seja por você atuar também como músico ou pela própria noção de contemporaneidade. O que está perto demais dos olhos nos turva a imagem? A dificuldade de ser crítico sempre existiu, não é uma novidade desta contemporaneidade. Quantas revistas de literatura, de cinema, de música, de artes plás-

pq? outros críticos 18 dezembro 2012


ticas abriram – na maioria dos casos, durante um curto prazo de tempo – e não existem mais? São muitos exemplos. É um tipo de publicação que não atrai muito interesse de quem faz o dinheiro circular, seja o poder público ou o privado. Não penso que seja um problema ser músico e escrever sobre um contexto em que eu estou inserido, acho que facilita o recorte, apesar de viciar a visão, mas isso é inevitável! Quais as principais diferenças do trabalho crítico que você desenvolveu nos ensaios do e-book e o que você faz como repórter da revista Mi – Música Independente em Pernambuco? Na Mi, eu realizo entrevistas e uma matéria introdutória sobre os artistas com quem eu faço as reportagens; basicamente, isso! A demanda é bem específica, apesar de eu ter liberdade de criação, mas há uma equipe que debate todo esse processo crítico/criativo. Nos ensaios do e-book, eu que criei a demanda – apesar dela ser restrita e específica também – e escrevi sozinho sobre a temática – apesar de contar com a leitura e as observações de alguns amigos, como o próprio Rodrigo Édipo – isso é uma grande diferença do processo de criação entre a Mi e o e-book. Outro ponto crítico que diferencio nos dois trabalhos é que no e-book houve uma busca especial para entender essa

conjuntura da música alternativa pernambucana atual, num sentido de cena mesmo, enquanto na Mi, essa pesquisa parte de artistas e grupos específicos para ter essa mesma noção, mas são diferentes pontos de partida, o que traz resultados distintos. Em “Um passeio pela sonoridade pós-mangue”, você aponta quatro possíveis caminhos para a análise das bandas. Mesmo fazendo a ressalva de que categorizar é sempre difícil. A decisão por determinar categorias críticas para a análise não pode reduzir uma das principais características que você defende no pós-mangue, justamente a fragmentação estética da cena? Trabalhar com categorias é sempre uma redução, sem dúvida. Mas, ao mesmo tempo, é importante como guia de análise, não como determinante, esse é um ponto crítico fundamental – paradoxal, também – que precisa ser ressaltado. Essas quatro categorias podem ser ampliadas quase que ao infinito ou mesmo contestadas com embasamento. O que fiz foi categorizar essas linhas de tensão para visualizar o contexto de uma forma mais limitada, pois acredito que é com os cortes micro e macro que o crítico trabalha e a crítica se movimenta. Sobre a fragmentação estética da cena, apesar dessa multiplicidade, há pontos de encontro, com certeza. Existem

pq? outros críticos 19 dezembro 2012


dobras que tocam diferentes grupos e, dessa forma, aglutinam algumas propostas estéticas. Apesar de este conjunto ser aberto, não é uma massa amorfa; projetos tendem a ter empatia com alguns e apatia com outros. Por isso que a principal crítica sobre essa fragmentação é a falta de unidade para compartilhar o poder de uma classe artística que, cada vez mais, se acha autossuficiente, mas que, na realidade, não tem muita voz de decisão na sociedade, apesar de sua importância cultural. Você dedicou um ensaio para comentar sobre as letras de música de várias bandas. Quais as principais mudanças que você percebeu entre as letras de bandas do Manguebeat e das bandas mais recentes? O que mais mudou, talvez, seja, de um modo geral, a falta de sintonia com a cidade e com esse contexto urbano. No Manguebeat, um conceito citadino foi criado com o intuito de legitimar e aglutinar o discurso destes artistas. E as bandas mais recentes procuram tornar legítimo um discurso individual de um artista ou de uma banda, o que dissipa o raio de ação destes músicos e acaba perdendo a conexão com uma contemporaneidade em comum. Isso é uma tendência que reflete nas letras e nas sonoridades destes grupos contemporâneos, além do próprio proces-

so criativo deles e da postura mercadológica. Duas semanas depois do lançamento do e-book, durante o “Colóquio Redes, Bordas e Entretenimento”, na UFPE, o professor Jeder Janotti Jr., na palestra “Cenas musicais - identidades em diferentes moldagens para o mangue, a lama nas cenas Manguebeat, Indie e Heavy Metal do recife”, comentou sobre um dos ensaios presentes no e-book. O espaço de tempo entre o lançamento na internet e a palestra na Universidade pode representar, de certa forma, uma aproximação entre a crítica produzida nos meios digitais e a acadêmica? Sim, as universidades sempre fazem o movimento de tirar algo do senso comum para produzir o saber científico, e é preciso que haja também o retorno desta interação, pois é aí que a academia é relevante para o desenvolvimento social, e não se fechando em círculos oficiais que não dialogam com a comunidade. E a crítica produzida nos meios digitais, por mais próxima que esteja da academia, não é legitimada enquanto saber científico; e quando há essas aproximações, acredito que é importante para ambos os campos de conhecimento, pois estimula um diálogo saudável. Sobre o curto espaço de tempo, acho que isso pode ser devido a uma feliz coincidência de eventos

pq? outros críticos 20 dezembro 2012


em comum e também acredito que seja também pela relevância da temática que levantei nos artigos, pois é um assunto pouco debatido e ao mesmo tempo de interesse comum. É possível (preciso) lutar pelo pós-mangue? De onde (quem) virá o grito de avante? É necessário lutar por melhores condições de trabalho para a música pernambucana contemporânea, ou seja, por um mercado sustentável. O pós-mangue, talvez, não seja sustentável enquanto conceito ou estética; pode ser um momento de transição para consolidar alguma coisa futura, o que o torna essencial e importante, pois é do caos que as coisas tomam alguma formatação, num movimento de eterno retorno renovado. E as pessoas

temem o caos, o que torna esse momento turbulento, difícil de apreender, mas não menos importante, daí o grande equívoco! De onde virá o grito de avante? Bem, isso depende de muitas conjunturas que conspirem ou confluam para o êxito de alguém ou de algum grupo de artistas. A música pode ser elitista ou populista, geralmente, e o êxito da representação chega das periferias, na maioria dos casos, mas isso não é regra. No Brasil, a maioria é vista como minoria. Mas, nós que trabalhamos com música alternativa é que somos a minoria, de fato. Então, não dá pra determinar nem mensurar de onde ou de quem virá esse grito, meu papel não é eleger ninguém como herói nem apontar uma cena como legítima, essas coisas vêm naturalmente e no momento propício! pq?

Solicite uma cópia impressa: outroscriticos@hotmail.com Disponível para download gratuito no blogue Outros Críticos. pq? outros críticos 21 dezembro 2012


coluna CRÍTICA DE BOTECO por Carlos Gomes

“A crítica e a criação podem andar juntas”1 (Lourival Holanda)

A vontade de organizar em livro2 os ensaios que Ricardo Maia Jr. escreveu durante seis meses no blogue Outros Críticos, nasceu não pela escrita, mas pela oralidade do debate. Refiro-me ao primeiro encontro do projeto “Outros Críticos convidam”, que tinha como tema: “Retoques da Tradição na Canção Popular”, com participação de Ricardo e do cantor e compositor Zé Manoel. Como se tratava da 1ª edição de um projeto fora da internet, resolvi assumir a mediação do debate crítico. No entanto, a discussão não se pautou à proposta do evento; em

1 Trecho de depoimento do escritor e professor Lourival Holanda no “Encontro de Interrogações” do Itaú Cultural, realizado em novembro de 2012. 2 O livro Entrelugares: notas críticas sobre o pós-mangue (2012) reúne os ensaios que Ricardo escreveu, durante o primeiro semestre de 2012, para o blogue Outros Críticos.

pq? outros críticos 22 dezembro 2012

Foto: Giuseppe C.


parte, por falha minha, já que não conseguia traduzir em palavras algumas das questões sobre o tema que havia previamente escrito no roteiro. Ademais à minha tímida atuação, ainda consegui tropeçar algumas contestações sobre o tema, mas logo notei que o maior interesse da plateia estava tão somente em ouvir Zé Manoel cantar, do que também participar do debate que tentávamos estabelecer. Mesmo existindo um Édipo3 entre eles, tentando provocar e aguçar o espírito tranquilo dos que estavam presentes. Mas logo percebi que não arrancaria questionamentos do público. A música acontecia, sua execução; a crítica,

“Era uma crítica informal, concebida nas rodas de amigos.” segunda criação, permanecia adormecida debaixo de nossas pretensões. Ricardo parecia não se incomodar com a apatia dos presentes, suas provocações e críticas eram feitas a par de tudo isso. Para o lançamento do e-book, não houve um debate oficial, com hora, lugar, convidados, mas um Empório4 no caminho dos que quisessem participar. Não houve nenhuma banda ou música, propriamente dita, mas uma espécie de crítica espontânea, coloquial, calcada pelo calor das horas, mais preocupada em rebater com a mesmice que permeia os segundos 3 Rodrigo Édipo é editor da Mi - Música Independente em Pernambuco, e estava presente na plateia. Foi um dos poucos a tentar elaborar perguntas e provocar o debate. 4 Por ocasião do lançamento do e-book, Ricardo Maia Jr., Rodrigo Édipo, Jarmeson de Lima (Coquetel Molotov), Diego Albuquerque (Mi e Hominis Canidae), Zeca Viana (músico) e eu, marcamos um encontro pela internet no Empório Sertanejo para conversarmos sobre música. pq? outros críticos 23 dezembro 2012


cadernos, as curadorias, os debates, os blogues, sites, comentários sobre música. Era uma crítica informal, concebida nas rodas de amigos. O e-book de Ricardo é uma tentativa errática de mover com essas forças. Dois pequenos trechos chamam a minha atenção nesse momento, justamente o final do prefácio de Rodrigo Édipo e do livro, são eles: “O debate está aberto” e “o momento urge revoluções”. As provocações sobre o pós-mangue não são um fechar de portas, nem possibilidades; são aberturas, mais que fendas, mais que ruídos, são tudo, menos silêncio. O que nasceu como “mera” postagem na seção “Crônica” do blogue, transformou-se numa voz destoante do silêncio crítico que predomina sobre a música contemporânea de Pernambuco. Há mais exemplos que confirmam a regra. São diários. Basta abrir a seção de Cultura e perceber

a apatia. Não faltam críticos, acredito. Mas uma postura mais agressiva dos segundos cadernos, uma atitude essencialmente política sobre o papel da cultura, dos eventos e produções culturais. O problema, a meu ver, parece muito maior e mais difícil de ter solução. Publicações alternativas, como revistas especializadas ou mesmo sites, devem estar escrevendo fragmentos dispersos da crítica que poderíamos ter na imprensa tradicional.

“De forma geral, os leitores ainda precisam que os jornais tradicionais ratifiquem a relevância dos produtos artísticos que são lançados.”

Foi engraçado perceber que tanto no lançamento do “Outros Críticos convidam” quanto do e-book, matérias com a foto de Ricardo estampada no jornal impresso suscitaram muito mais atenção do que qualquer tentativa nossa de provocar um debate com o público. Seja organizando coletâneas, sugerindo músicas, selecionando trechos de ensaios, postando vídeos, artigos, resenhas. Nada estimula-

pq? outros críticos 24 dezembro 2012


va o público a questionar a cena musical pernambucana (com exceção de alguns artistas, infelizmente, reduzidos a se tornarem públicos da própria obra). Aquela moldura, diagramação e tipografia típica dos jornais, quase que sagradas aos olhos dos leitores, parecia dar uma aura de real importância para o evento cultural. De forma geral, os leitores ainda precisam que os jornais tradicionais ratifiquem a relevância dos produtos artísticos que são lançados. Já os cadernos culturais, muitos deles, se limitam a publicar trechos de releases, quando não releases inteiros, ou enchem a página com fotos, pequenas descrições e fragmentos de entrevistas. Assim, a crítica sobre música é frequentemente feita de hora, local e preço.

ensaios e beliscou, bebeu e sorriu no Empório, são partes fundamentais de uma mesma tentativa de fomentar a crítica e a criação ao mesmo tempo, seja na extinta banda Comuna, no projeto JMB em Comuna, no Ex-exus ou nas entrevistas que ele escreve na Revista Mi, todas essas produções são atitudes críticas e de criação, a favor da provocação como arma de ataque (não de defesa). Esse é o seu temperamento. Há outras vozes destoantes na imprensa, menos provocadoras, decerto, mas ainda vozes. Nunca imaginei que o meu silêncio no Empório fosse provocar um texto como esse, talvez seja verdade, “quando nada acontece, há um milagre que não estamos vendo”5. pq?

O que Ricardo falou no debate sobre música, escreveu em seus

5 Trecho do conto “O espelho”, de Guimarães Rosa.

pq? outros críticos 25 dezembro 2012


CAPA ÁRVORE DE MIL FRUTOS por Carlos Gomes Em junho de 1972, no período pós-tropicalista, quando Caetano Veloso havia acabado de retornar ao Brasil depois do exílio em Londres, o músico escreveu: “O tropicalismo foi uma árvore de mil frutos. Digo isso sem orgulho, sem remorso. Os frutos pecos e podres se espalharam pelo chão e ninguém melhor instalado para sentir-lhes os fuçadores de raízes”. O manguebeat e a tropicália guardam, seguramente, inúmeras diferenças, mas é possível percebermos certas características comuns aos dois movimentos culturais (ou movimentações, como preferem os articuladores do manguebeat), e, seguindo a analogia que Caetano apresenta no texto aqui destacado, ambas as árvores foram

responsáveis por frutificar múltiplas vozes, já que a pluralidade de estilos foi uma das principais marcas dos movimentos. No entanto, a quem Caetano se refere quando fala de frutos pecos e podres espalhados pelo chão? E se trocarmos tropicalismo por manguebeat e aplicarmos a mesma analogia ao período pós-mangue na música brasileira? Bandas como Acabou La Tequila, do Rio de Janeiro, com músicos como Kassin, Domenico e Pedro Sá, Planet Hemp, de Marcelo D2 e B Negão, e até bandas anteriores ao manguebeat, como Os Paralamas do Sucesso, sofreram forte influência da música produzida pelas bandas de Pernambuco dos anos noventa. São, de certa forma, juntamente com

pq? outros críticos 26 dezembro 2012


artistas pernambucanos como Siba, Otto, Dj Dolores e Mombojó, de alguma forma, herdeiros do manguebeat, fazem parte dos mil frutos. Quem seriam, nesse caso, os frutos pecos e podres que se espalharam pelo chão? Para Ricardo Maia Jr., nos ensaios reunidos em Entrelugares – notas críticas sobre o pós-mangue (2012), os frutos pecos e podres do pós-mangue são os outsiders, atuando à margem do mercado. Esses artistas buscam um meio viável de tornar a produção alternativa rentável, ou seja, renovar o mercado cultural, dar nova cara às velhas instituições culturais fincadas nas raízes da música pernambucana. Teria o manguebeat se tornado uma destas instituições, assim como o frevo ou o maracatu?

O livro de Ricardo tem a coragem de não suportar o silêncio, de provocar o ruído através da palavra crítica. A coragem de assumir criticamente o termo pós-mangue e começar a analisá-lo sob diversos pontos de vista é, de certa forma, uma primeira atitude de criação e crítica. E foi com o suporte crítico do ensaios de Ricardo e, sobretudo, do prefácio de Rodrigo Édipo, que enviamos inúmeras perguntas sobre o tema para diversos setores da crítica e música em Pernambuco, com o intuito de abrir um debate, de ouvir vozes distintas. Ser como foram o manguebeat e a tropicália: plurais. Confiram, nas páginas seguintes, os depoimentos que colhemos sobre o tema. pq?

pq? outros críticos 27 dezembro 2012


A música pernambucana

perdeu mesmo a euforia da renovação?

A repaginação vem somente da

transgressão?

Não acho que a música pernambucana perdeu a verve criativa. O que me parece ter ocorrido é que hoje há uma safra de bons criadores, mas que não possuem mais canais de distribuição e visibilidade. Claro que viver sobre a pressão de ser do lugar de origem do movimento mangue também gera ansiedades e um peso muito grande sobre as gerações atuais, desde a década de noventa que todo mundo que surge sofre comparações ou injunções sobre ser a continuidade (o novo) Chico Science ou Nação. Acho que houve muito investimento em políticas e debates que favoreceram o processo de criação, mas não houve o mesmo empenho em termos de formação de público e de um mercado autônomo. Atualmente, Recife não possui bons lugares para apresentações de público pequeno ou médio, não há um Estúdio PE, para levar público aos shows, e vale não esquecer que o grande mercado que move a música hoje é o consumo de música ao vivo, muitas das bandas locais dependem de atrações de fora do estado, ou seja, a produção autoral local muitas vezes passa de protagonista à coadjuvante. Jeder Janotti Jr.

pq? outros críticos 28 dezembro 2012


Diego Albuquerque Não, a música pernambucana não perdeu a euforia da renovação, apenas que a renovação não tem mais tanto espaço, devido às estruturas engessadas em cânones citados por Ricardo Maia Jr. em seu ensaio. A transgressão é um dos modos de se repaginar algo ou alguma estrutura estética, pode até ser o caminho mais fácil (no sentido de rapidez na mudança) ou viável para isso, mas não é o único.

Victor de Almeida

Rogerman Não acho que tenha perdido a euforia, a renovação pode estar menos intensa, mas 180 lançamentos em um ano mostra que tem muita gente trabalhando, mas com menos mídia em cima.

Como alguém de fora de Pernambuco, talvez eu não possa ser tão preciso na resposta, mas ao mesmo tempo, tenho uma visão diferente do que acontece aí. De certa maneira, eu vejo uma renovação, até mesmo no que vocês chamam de pós-mangue. Bandas como o Team.Radio, Foxy Trio, A Banda de Joseph Tourton, A Rua e outras, mostram que existe um fôlego novo no cenário de Recife. Não acho que essa repaginação venha somente na transgressão, ou seja, não é preciso que essas bandas sejam ruptura com nada para serem originais. Mas, de certa maneira, o diálogo com linguagens do manguebeat ou do pós-mangue inserem essas bandas de maneiras diferenciadas em Pernambuco. Fora daí, essa herança mangue vs pós-mangue não faz muita diferença.

pq? outros críticos 29 dezembro 2012


Anco Márcio Tenório Dentro da música POP brasileira, acho que o movimento mangue só tem equivalente com a Tropicália. São dois momentos de muita renovação da linguagem musical. O movimento não traz apenas uma renovação para a música que se fazia em Pernambuco, mas da música que se fazia no Brasil naquele momento. Basta olhar para os Anos 80 e ver o que foi produzido lá. Pouca coisa, de fato, podíamos chamar de visceral. Em geral, pareciam paródias de bandas inglesas e americanas. Dentre os que escaparam do lugar-comum, citaria Arrigo Barnabé, Itamar Assunção e mais um ou outro nome que, por motivos que não sei explicar, não influenciaram a música brasileira como poderiam ter influenciado. Se voltarmos aos Anos 90, veremos que nada que estava sendo feito no Brasil naquele momento se compara com o que Chico Science realizou. Tínhamos coisas muito boas, bem feitas, mas nada que parecesse imprescindível. Explico-me: o que torna algo

importante, divisor de água? Simples, basta você pensar retrospectivamente e fazer a seguinte pergunta: se essa obra não tivesse sido produzida, o panorama musical seria o mesmo? Não há como pensar a música brasileira dos Anos 70 sem levar em consideração as experiências dos tropicalistas. A MPB seria muito mais pobre sem os tropicalistas. Por outro lado, a história da MPB não seria muito diversa se não tivesse existido Ednardo, Fagner e Ultraje a Rigor, por exemplo. Não tenho dúvida que é o reinventar da linguagem, do tencioná-la até o máximo grau possível que oxigena qualquer linguagem artística. Existe um modo de cantar antes e depois de João Gilberto, um modo de ler a música pop internacional antes e depois da tropicália, de fazer música instrumental antes e depois de Egberto Gismonti e Hermeto Pascoal, assim um modo de ler a cultura popular e o pop internacional antes e depois do manguebeat.

pq? outros críticos 30 dezembro 2012


O pós-

mangue é uma falácia?

Ele é uma

ressaca pós-

efervescência ou uma

evolução

estética?

Primeiro não acredito em evolução quando se trata de arte. Evolução pressupõe que A é melhor do que B, isto é, se um carro fabricado hoje é superior tecnologicamente a um Ford 1928, um poema Concreto não é mais belo do que um verso de Homero. O que há na arte é um processo de mudança, de explorar outras possibilidades na linguagem. Neste caso, acho que a cena musical do Estado hoje é tão diversa e tão boa quanto era nos Anos 90. Aliás, se observarmos qualquer gênero artístico em Pernambuco vamos encontrar uma grande diversidade de linguagens. E isso é muito bom: mostra a criatividade e a oxigenação permanente da nossa vida cultural. A questão é: como fazer que esses músicos e compositores sobrevivam da sua arte. E quando se diz sobreviver se diz construir um público ouvinte, um público que saia de casa e pague para ouvir e ver um show. Enquanto esse púbico só sair de casa para ver shows promovidos pelo Estado, creio que não vamos criar as bases para criarmos uma arte que ande com os seus próprios pés. Anco Márcio Tenório

pq? outros críticos 31 dezembro 2012


Diego Albuquerque O pós-mangue é uma falácia sobre falácias, pois nada mais é que um termo criado sobre um termo anterior (que já soava e era dado como uma falácia). O Manguebit é um retrato da cena de momento que deu certo, o pós-mangue no meu conceito seria mais um retrato de uma cena advinda deste momento anterior. Dentre os termos utilizados e os textos do Ricardo, ele se encaixa mais como uma ressaca pós-efervescência, mas também aparece como uma evolução estética, por que não?! Todo meio de pensar uma cena, acaba causando alguma evolução nessa cena.

Jeder Janotti Jr. Não acho que o pós-mangue seja necessariamente uma falácia, independentemente da felicidade, ou infelicidade, do rótulo que pegou, o que vejo é uma geração criativa de músicos que não se identificava totalmente com a hegemonia da cena mangue e buscou situar-se no mercado e no imaginário local buscando caminhos políticos e estéticos diferenciados. Como todo rótulo, ele tende a homogeneizar uma produção diversificada e que dialoga de várias maneiras com o peso da tradição (ou maldição) mangue.

Ad Luna Falácia talvez seja muito pesado. Mas acho o termo um tanto quanto vago, até porque ele parece ser opor a algo numa classificação imprecisa. Para mim – e, inclusive, gente por trás do desenvolvimento da movimentação (ver o link: http://www.terra.com.br/manguenius/artigos/ frme-entrevista-renatol.html) o tal manguebit sempre foi uma alegoria para a diversidade musical da cidade. Seja ela representada por Lia de Itamaracá, The First Corinthians, Nação Zumbi, Mombojó, Volver, Desalma, Rogerman, Spok Frevo Orquestra, Devotos e não apenas a “mistura” de ritmos regionais com funk, rock, rap etc. Aliás, é curioso observar que o Mundo Livre S/A, um dos supostos ícones do mangue, não tinha e não tem quase nada de regional em seu som. Apesar disso, e com gente como Renato L e músicos “do mangue” tentando adequar o termo a uma realidade mais abrangente, ele acabou sendo classificado pela imprensa local e nacional como algo de características mais restritas. Assim, penso que o tal mangue (ou seja, a diversidade musical da cidade) continua em constante evolução, ainda que não possua o impacto de anos atrás.

pq? outros críticos 32 dezembro 2012


Juliano Holanda Não gosto da expressão “Pós-mangue”. Essa tendência estética, de certa forma, sempre esteve presente em Pernambuco. Gente como Anna Loves Thompson, Alice quer ser punk, Fractal Motivo, John Bigú e os Caronas, Azabumba, Barbies, Le Bustier, Badminton, Supersonics, Dolores Del Fuego, Inhame Jam, Mãe Joana emuitos outros já desenvolviam seu trabalho à margem do mangue. Esses seriam o quê? “entremangue”?

va e contestadora. Músicos que estudam, que ouvem de tudo, estão abertos para o que acontece dentro e fora do estado, e que buscam sua impressão digital, seu estilo próprio. Isso é legal. E, de certa forma, ainda é fluxo do que houve nos anos 90. Não é “pós”, nem é “puro mangue” exatamente, mas, de uma forma estranha ainda pode estar (caso queria...) sob o guarda-chuva do conceito.

Existem novos artistas que impõem e desenvolvem seu fazer criativo. Ponto. Não vejo necessidade de falar em ruptura. Não é inteligente, nem estratégico. Não facilita as relações comerciais nem a compreensão do público. Não melhora a autoestima dos artistas nem aumenta o interesse dos investidores.

Desse modo, podemos sim falar em “evolução estética”. Gosto disso. Gosto de pensar que o que vivenciamos ainda reverbera. Me agrada a ideia de continuidade porque aponta para o futuro e constrói estradas ao invés de muros. O problema está em quem cobra e quem paga o pedágio. Criar outras derivações não vai ajudar, o que resolve sim, é tomar novas atitudes.

Gosto de pensar que temos agora uma geração criati-

Rodrigo Édipo falou que eu precisava ouvir o Matheus

pq? outros críticos 33 dezembro 2012


Motta, fui ao show. Gostei. Depois Vinícius, que eu conheci no Pé-preto, e depois no Carfax, compartilhou o cd dele. Baixei. Estou ouvindo. Se há algo que eu tenha ouvido no passado, presente no som de Matheus, vou achar legal, e também vou aprender coisas com ele, com sua visão do mundo. Uma vez encontrei com Vitor Zalma, no FIG. Ele me apresentou uma menina que cantava no Sabiá Sensível e disse que eu precisava conhecer. No show de Matheus, ela participou. Fiquei de cara, muito boa. Vou procurar mais sons dela. Uns anos antes, um amigo de Jardim Atlântico me falou que ia ter um show no Espaço Oásis, uma banda de Olinda e outra de Candeias. É assim que as coisas acontecem. Do ângulo do espectador, não há essa fronteira de tempo/ espaço. Existe sim esse cenário “após mangue”, porém, penso que não seja necessário nomear um movimento (ou

movimentação) específico. Acho ruim justificar uma coisa se utilizando de outra. Algo parecido já foi tentado. Pode soar, quase sempre, para alguns, como “recalque”. Acho que a música feita por Matheus Mota, Ex-exus, DMingus, Mateus Alves, Saracotia, Profiterolis, Babi Jacques e os Sicilianos, Feiticeiro Julião, Chambaril, Publius, Mojav Duo, Circo Vivant, Caravana do Delírio, Dunas do Barato, Os Airados, Zé Manoel, Sabiá Sensível, Glauco e o trem (e tantos outros) é “música de qualidade feita atualmente em Pernambuco” e merece respeito pelo que é e pelo o que tem de relevante. O mangue pode e deve ser uma boa marquise pra quando a chuva vier. “Em caso de incêndio, quebre o vidro e retire...”, ele sempre estará lá. Antes não estava. Não havia nada em que se apoiar. Nem pra contestar.

pq? outros críticos 34 dezembro 2012


Os novos artistas são interditados pela sombra do Manguebit? Há mesmo uma concentração de

investimentos

públicos e privados nos medalhões?

Os novos artistas podem ser interditados pela tal sombra que ainda exista na cidade do Manguebit, mas não consigo afirmar isso com certeza absoluta. E sim, existe claramente uma concentração de todos os tipos de investimentos em artistas bastiões desta geração Manguebit e antes dela até, como Alceu Valença, entre outros. Eu acho até normal o respaldo privado em artistas com algum nome ou já consagrado, pois tais grupos privados visam um retorno mais rápido, o que me preocupa realmente é o uso da máquina, do poder publico para financiar pessoas que não necessitariam de tal apoio para isso. Criam-se as tais bengalas, já citadas anteriormente, onde os artistas se tornam funcionários públicos sem concurso. Diego Albuquerque

pq? outros críticos 35 dezembro 2012


Anco Márcio Tenório Não creio. Até onde percebo, vejo que no Recife se escuta muito mais as novas bandas que surgiram nos últimos 10 anos do que Nação Zumbi, Fred Zero4 ou Otto. O problema me parece outro: é a forte dependência da cena musical do Estado (e isso parece que vem ocorrendo em outras regiões do País) dos financiamentos públicos. O fim das grandes gravadoras transferiu a promoção dos artistas para as TVs e os rádios. E estes meios só mostram o que faz sucesso ou toca a sensibilidade das massas. No caso, a música fácil, de empatia imediata, persuasiva. Com todos os problemas que tinham as gravadoras, elas eram, pelo seu poder econômico, um contraponto ao gosto da grande

mídia. Sem elas, só resta o jabá dos artistas. A questão é: como sobreviver sem o apoio do Estado? Afinal, é no mínimo estranho que um músico que se quer contestador seja bancado por aquele que é o maior saco de pancada em qualquer sociedade moderna: o Estado. Ou seja, de um lado temos a mídia impondo o seu gosto; de outro, o Estado pautando o script do que deve ou não deve ser promovido. Nação Zumbi parece que conseguiu fugir desse script. Mesmo sem a força das gravadoras e da publicidade das mídias, eles vêm fazendo shows pelo Brasil dentro de um modo comercial, com público pagante. Parece que as demais bandas do Estado ainda não conseguiram fazer isso.

Rogerman Ao contrário, nunca se investiu tanto dinheiro público em projetos dos não medalhões, mas sem dúvida um nome que tem 20 anos de trabalhos prestados tem mais força que um iniciante, isso em qualquer lugar do mundo.

pq? outros críticos 36 dezembro 2012


Qual o

papel da

crítica

perante esse

panorama?

É imprescindível termos uma

imprensa

alternativa mais forte?

O papel da crítica não deveria mudar, e realmente não mudou. Ela esta apenas engessada em um momento que não necessariamente existe mais, falando e dando espaço apenas para os bastiões. Isso por culpa de diversos fatores, desde o interesse financeiro e até do próprio publico, que não tem tido o interesse em consumir realmente o novo criado no estado de Pernambuco. E sim, é imprescindível criar-se uma cena independente mais forte, mais unida, mas que dialogue com o todo, sem se fechar em nichos ou grupos/ movimentos. Pois esse talvez seja o principal erro da crítica e mídia de massa atual no estado de Pernambuco. Diego Albuquerque

pq? outros críticos 37 dezembro 2012


Anco Márcio Tenório Em qualquer sistema artístico e intelectual a crítica é essencial. A crítica é o lugar do debate, do contraditório, da reflexão. Mas a questão é: até onde estamos preparados para o debate, a reflexão e o contraditório? Ou preferimos o tapinha nas costas, a falsa ilusão do que o que fazemos é de fato bom ou mesmo acima da média? Algo me diz que preferimos a segunda alternativa. Não adianta termos publicações alternativas – seja no papel impresso, seja em sites da internet – se o que vamos ler é sempre elogios, louvações. Tenho ouvido muita coisa ruim nos últimos anos, e sou induzido a comprar

o CD que depois constato que é ruim porque a crítica que leio nos jornais e na internet é sempre elogiosa. Há muita coisa imatura sendo feita, com cara de brincadeira de adolescente de classe média que brinca de ser cantor, músicas que parecem ter saído dos anos 60 e 70. Pior: músicas que mesmo nos Anos 60 e 70 seriam inferiores a média do que foi realizado naquelas décadas. Para dar um exemplo recente de um nome muito propalado pela Mídia e que me decepcionou, cito o CD de Tibério Azul. Por outro lado, tenho surpresas muito boas, a exemplo do último disco de Vitor Araújo. pq?

pq? outros críticos 38 dezembro 2012


outroscriticos.com

COLUNISTAS Carlos Gomes (Outros Críticos) Edith Camargo (Wandula) Fábio Andrade (Moinhos de Vento) Glauco César II (Glauco & o Trem) Jocê Rodrigues (crítico musical) Kiko Dinucci (Metá Metá) Pedro Paz (jornalista) Rafael de Queiroz (pesquisador) Ricardo Maia Jr. (pesquisador e músico) Rodrigo Maceira (Si no puedo bailar) Rodrigo Édipo (Mi e Futebol de Bolso) Tiago Barros (pesquisador e músico) Victor Almeida (pesquisador e Festival Lab) Zeca Viana (músico e Recife Lo-fi)

ESTREIA • FEVEREIRO 2013

pq? outros críticos 39 dezembro 2012


Edith de Camargo (voz e acordeon) e Marcelo Torrone (piano e teclado) conversaram conosco sobre o antes, o à margem e o porvir da banda Wandula. Com apenas dois álbuns lançados, a banda é reconhecida por unir elementos da canção erudita, popular e pop através de temas instrumentais e canções cantadas em inglês, português e francês. De Curitiba, a banda prepara para 2014 um novo disco. No entanto, os músicos podem ser encontrados em trabalhos solos e em bandas como o Copacabana Club e The Bad Folks.

WANDULA

pq? outros críticos 40 dezembro 2012

Foto: Carlos Morevi


Foto: Carlos Morevi

A entrevista por Carlos Gomes

A banda Wandula é conhecida por experimentar a partir do mínimo. Cada nota, melodia, acorde, vai crescendo, ou se desenvolvendo, em movimentos que lembram, por exemplo, a chuva. Pequenas gotas, pequenas, daí crescem, então, tempestade. De que maneira a formação inicial da banda, em trio, e acústica, evidenciou essa característica? Sempre gostamos de gravar ambientes e atmosferas de lugares como estações de trem, cafés, ruas e também de fenômenos naturais. No primeiro cd usamos isso em várias faixas. Em “Paisagem Progressiva#1” temos um ready tape de uma es-

tação de trem em Praga, que fiz quando estive mochilando por lá. Em “Moedas de Açúcar” temos a chuva, elemento que está no DNA de quem nasceu ou vive em Curitiba, só vivendo aqui pra saber, hehe. Quais as referências ‘eruditas e populares’, vamos assim dizer, que pontuam o estilo da banda? As eruditas passeiam pelo impressionismo de Debussy e Erik Satie, sem esquecer do chorinho de Ernesto Nazareth, o qual está notável em “Rocambolesco”, do primeiro CD. As populares eu diria que estão para Barbara, Serge Gainsbourg,

pq? outros críticos 41 dezembro 2012


Yann Tiersen, Marlene Dietrich e se estendem para indies como Cocteau Twins, This Mortal Coil, Divine Comedy, Mogwai, The Cure até o pós rock do Labradford. É possível manter a Wandula atuando à margem do mercado? Como funciona o dia a dia dos músicos da banda? O mercado para nosso estilo é limitado aqui no Brasil, mas também não estou querendo dizer que na Europa ou em outro lugar venderíamos mais. O que acontece é que 96% do povo brasileiro prefere outros estilos de música, pois somos um povo que sempre busca alegria e animação. Nossa música é mais introspectiva, mais para se ouvir sozinho, mais trilha sonora de imaginação. Mas o lado bom disso, é que quem gosta ou compra nossa música são pessoas que realmente querem e gostam disso, não estão sendo vítimas de modismos e de tudo que a mídia enfia goela abaixo para o povo. Sucesso, para nós, é estar tocando há 11 anos e agradando sempre ao público, é receber a palavra e o abraço no fim do show de pessoas de mundos completamente diferentes, isso vale muito! O Wandula é uma microempresa, mas não paga as contas de seus integrantes. Valorizamos nosso trabalho porque é sincero e

“Poemas

concretos

para os

irmãos

Campos

ouviverem.”

Poeta Anônimo - Clube de Literatura dos Corações Solitários do Sargento Carrero.

gostamos de fazê-lo, temos uma postura bem profissional na hora de cobrar cachês, mas sempre justos e sem exageros absurdos. Adotamos essa postura com a intenção de servir de exemplo para todas as bandas brasileiras. Tocar e compor é um trabalho que exige, não se deve tocar de graça em troca de divulgação como muitos produtores fazem para se aproveitar de quem está começando. As bandas devem se valorizar e aprender e escutar vários “nãos”. É preciso ter postura se você quer uma coisa pra sempre. Eu e a Edith vivemos da música, mas como músicos, fazemos vá-

pq? outros críticos 42 dezembro 2012


rias coisas: shows, aulas, participações, trilhas sonoras etc. Os outros integrantes da banda têm um emprego paralelo: um é jornalista, outro geólogo, psicóloga etc. De que forma os trabalhos individuais dos músicos interferem na hora da brincadeira em conjunto? Falem um pouco sobre eles. Não interferem muito, apesar de cada trabalho individual ter sua identidade. Mas acaba que é tudo uma coisa só. No Wandula nos encontramos. Meu trabalho solo se divide em meu concerto “Piano Minimalista”, em que apresento minhas composições para piano solo e interpreto Philip Glass, Yann Tiersen, Erik Satie e Michael Nyman. Mas agora fiz um repertório novo que comecei a apresentar que é solo, mas tem a participação da Edith, do Felipe, e da Ana, todos do Wandula, ou seja, tudo se mistura. A Edith tem dois cds gravados e vai gravar seu terceiro agora, faz shows solo com este repertório, mas também participam eu e a Ana como instrumentistas. O Felipe debutou com seu trabalho solo uns anos atrás, gravou o CD Temporário, que eu acho uma

maravilha da música eletrônica. Também participamos do seu concerto. O Branco, Denis e Rafael têm outras bandas, respectivamente o Bad Folks, Samba Rock e Copacabana Club. Resumindo, cada um tem seu “quarto”, mas na casa tem uma “sala” onde nos encontramos, entendeu? rs O último disco do Wandula, La Récréation (2007), foi uma espécie de ‘olhar pra trás’, e reuniu um corpo abrangente de canções. A partir dele, e para o próximo ano, o que vocês podem adiantar? Novo disco, turnê, garoa, tempestade? Em 2012 continuaremos a fazer shows com o repertório do La Récré, incrementado com algumas novas músicas que fizemos, mas ainda não gravamos. O próximo CD do Wandula está agendado para 2014, pois até lá estarei trabalhando em meu CD solo e a Edith também. O da Edith sai este ano, o meu ano que vem, mas já estamos trabalhando. Quanto a uma turnê... Bom, estamos sempre esperando convites, mas se eu comprar uma Van coloco todo mundo dentro e vamos levar um pouco de Curitiba

pq? outros críticos 43 dezembro 2012


para o Brasil lá de cima. Estamos num momento bom, a tempestade já passou e ninguém ficou sabendo, hehehe. Particularmente, estou muito feliz com a formação atual, 6 pessoas maravilhosas e na mesma frequên-

cia na hora de tocar. Penso só em colocar mais uma pessoa no grupo, já sei quem é, mas só posso dizer que é mais uma bela mulher (além da Edith e da Ana) e é uma exímia flautista. pq?

pq? outros críticos 44 dezembro 2012


de Tibério no festival Abril pro Rock 2012.

Foto: Louise Vaz

Essa entrevista foi feita à época do show Depois de um belo show de lançamento amparado por artes imagéticas de Raul Luna e Louise Vaz (realizado ano passado no Espaço Muda). Bandarra parece ser o lugar ideal para que suas ideias de música e poesia ganhem forma. A banda Mula Manca ficou para trás, Seu Chico também. Assim, o caminho de Bandarra se impõe como primeiros passos de uma trajetória.

tibério

AZUL pq? outros críticos 45 dezembro 2012


Foto: Louise Vaz

entrevista por Carlos Gomes

O disco Bandarra (2011) foi lançado com exposição artística e intervenções de Raul Luna (Design), Louise Vaz (Fotografia) e suas (texto). Em que momento, seja na feitura das canções ou propriamente do disco, percebeu que a voz desse álbum precisaria ser lançada com o amparo de outros tipos de arte, linguagens?

sempre com o amparo de outros tipos de arte e pessoas.

Na verdade, esse é um caminho que me apetece, sempre busco agregar outras linguagens, outros olhares, outros artistas. Assim fiz com a produção do disco, com os arranjos, com a capa, as fotos, com o clipe. Tenho a pretensão de seguir produzindo assim, e espero conseguir estar

Essa é a grande mágica. Porque em Bandarra a delicadeza e o mínimo não seguem estereótipos, transitam, se transformam. Desde que caí na estrada, conversei com a banda para que estivéssemos abertos, soltos, como propõe o disco. Bandarra floresce um conceito poético e

As canções de Bandarra dialogam com um universo musical onde a delicadeza e o mínimo são mais evidentes. Como combinar essas características com shows para espaços maiores? Assim será o do Abril Pro Rock no dia 20.

pq? outros críticos 46 dezembro 2012


A angústia da criação e, sendo mais amplo ainda, a angústia do dia a dia foi o ponto inicial da construção desse disco, no entanto, de uma forma invertida. Porque Bandarra trata sobre largar, deixar-se cair, renascer. Bandarra é desistir dessa angústia como alavanca e abraçar-se com o possível. É olhar ao redor e abraçar-se com o redor. E assim, não há angústia alguma.

Minha mãe conta que certa vez entrou em casa e me encontrou

miram o

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ust ral.

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n em ua q cheio

Poesia, Música, Músico, Criação. Todos esses temas ecoam nas letras do seu último álbum. A angústia da criação fez bem às suas músicas?

Nesse disco, como venho falando, busquei ser aquilo que se é, olhar ao redor, abraçar-se com o redor. Busquei conectar-me com a essência do que busco, com o que está dentro de mim, com a raiz que me sustenta. Ao voltar-me para essa ideia, dei de cara com a arte, com a música, com o ofício arcaico do artista... e me regozijei com eles.

do

“Tudo está solto e os nós livres”, diz uma música do disco.

dar no sol’ (trecho de canção de Milton Nascimento e Fernando Brant, “Nos bailes da vida”, que cointitula o álbum de Tibério)?

“As

não uma estética musical. Por isso nos propomos liberdade. Fizemos shows íntimos, quase acústicos, e foram perfeitos. Fizemos shows em grandes palcos, para mais de cinco mil pessoas, e também foram perfeitos.

o arr . - rtam a ace

Falar sobre a música (nas letras) teve um papel especial nesse momento de sua vida de músico? Qual o significado simbólico de ‘o caminho que vai

er

b Al

pq? outros críticos 47 dezembro 2012


na varanda com um papel e um lápis. Eu tinha acabado de aprender a escrever. Estava no canto da varanda e chovia bastante. A chuva caia onde eu estava e tinha o maior trabalho para proteger como podia o papel e escrever rascunhos no intervalo que a chuva dava. Minha mãe vendo aquilo propôs que eu fosse para a sala, para o quarto ou algum lugar seco, no que eu respondi de imediato: mas mãe, esse é o meu cantinho da inspiração, eu tenho inspiração aqui.

Quando ouvi isso (claro que não me lembro desse dia), entendi que essa era minha raiz, que a arte é o meu cantinho da inspiração na vida. Acho que Bandarra começou a ser escrito nesse dia, por esse garoto. “Vamos ficar sol”: convite; “Veja só”: ironia; “Mais sabe o sol”: recado; “Bandarra”: prosear da vida. É isso? Comente.

S

É isso, adorei sua leitura. pq?

“As

bandas de Pernambuco pecam pelo excesso de carreiras

solo.

Mal amadurecem, já se separam.” Bar

bara

Wo olfe r, R

pq? outros críticos 48 dezembro 2012

evis ta d

e Ci

nem a

.


Foto: Reprodução (site do músico)

SIBA Siba partiu. Pôs no mundo umas estórias que são canções, umas palavras que são poesia. Nessa conversa: ruptura, tradição, amizades e cantadores. Todo o corpo poético que faz de seu último álbum um dos mais belos registros de 2012.

pq? outros críticos 49 dezembro 2012


Foto: Reprodução (site do músico)

entrevista por Carlos Gomes

O que o título de seu novo álbum, Avante (2012), pode nos revelar sobre o caminho que a sua música promete tomar a partir desse disco? Uma nova estrada, a par de uma ruptura? Ou faz parte de um caminho natural que já vinha sendo traçado em seus trabalhos anteriores? Avante tem a ver com energia propulsora, capacidade de manter-se em movimento, disposição para lutar contra a inércia e a estagnação. Também diz respeito à necessidade desse impulso no exercício da poesia rimada, que é começo, meio e fim de meu

trabalho. A associação desta palavra com a aparente ruptura presente no disco tem muito a ver com nosso velho costume de relacionar tudo que tenha como referência a aspectos da cultura popular com tradição e passado. Não tive a intenção de ruptura, foquei o processo criativo no texto do mesmo modo que em meus discos anteriores com a Fuloresta. O próprio texto, mais pessoal e inquieto, acabou guiando os passos e mudanças na música, que se tornou elétrica e agressiva. Mas não necessariamente mais “avançada”...

pq? outros críticos 50 dezembro 2012


A apresentação com as participações de Fernando Catatau, Lirinha, Chico César e Otto, em 19 de novembro de 2011, na abertura da nova unidade do SESC São Paulo, em Santo Amaro, foi um retrato dos amigos e referências que rondaram a produção desse novo disco? Foi um retrato fragmentado e incompleto de minha trajetória profissional e de minha relação com a cidade de São Paulo. Mas tantos parceiros ficaram de fora que nem conseguiria imaginar compor essa imagem de forma mais completa. Gostaria que você falasse da música “Ariana”; se ela representa a espinha dorsal, vamos assim dizer, do álbum – sobretudo no arranjo da música –, e de que forma Fernando Catatau

(produtor do álbum) interferiu nessa etapa da produção? “Ariana”, apesar de parecer uma canção de amor a uma mulher, fala da dor e do sofrimento do povo afegão, que ocupação após ocupação, dos ingleses aos russos, acabaram por se ver sob o jugo de sua própria juventude e logo em seguida pela maior potência militar do mundo. É um dos textos mais impessoais de Avante, que trata de um objeto realmente externo, mas que causou imensa impressão em mim. Não considero como espinha dorsal do disco, apesar de ter sido a primeira música a chamar a atenção das pessoas. O aspecto brega, abolerado, tem muito a ver com as canções que os repentistas executam nos intervalos das cantorias de viola.

“Siba faz dessas novas músicas pergaminhos de acesso à sua tradição.”

Alberto

iário fante, D

In

pq? outros críticos 51 dezembro 2012

. Austral


Há na feitura de suas letras de música, como exemplo “Ariana”, uma conservação de formas poéticas clássicas, como a posição das rimas, a disposição das estrofes etc. Como se deu o seu primeiro contato com a poesia, e como ela interfere em sua música, em seu modo de criar? A poesia rimada entra em minha vida através de meu pai, que era um amante da cantoria de viola. Meus tios paternos mais velhos gostavam de cantar coco informalmente. Cresci com a imagem idealizada do cantador de viola como um artista superior, da poesia improvisada como uma arte

transcendental. Quando me interessei realmente pelo assunto, descobri uma forma de arte complexa e viva, de possibilidades infinitas, cujas técnicas passei a perseguir e dominar com o passar do tempo, fazendo disso o norte do meu processo criativo. Convivendo com artistas como Zé Galdino, que adaptam musicalmente o veículo de sua poesia de acordo com a situação, migrando da cantoria de viola, para a ciranda e o maracatu de baque solto, percebi que podia também me aventurar em qualquer formato musical que quisesse, desde que me mantendo coerente na poética que domino. pq?

“A

íntima

poesia das canções métrica uma conquista.” faz da

Clarice Flor, Suplemento Palavra.

pq? outros críticos 52 dezembro 2012


pq? outros crĂ­ticos 53 dezembro 2012


coluna Caetano e seus precursores1 por Carlos Gomes “O fato é que cada escritor cria seus precursores. Seu trabalho modifica nossa concepção do passado, como há de modificar o futuro.” (Jorge Luis Borges)

A canção “A Bossa Nova é foda”, que abre o mais novo disco de Caetano Veloso com a BandaCê, Abraçaço (2012), encerrando a trilogia que contou com os álbuns Cê (2006) e Zii e Zie (2009), retoma criticamente o movimento musical que revelou Tom, Vinicus, Lyra, entre outros, mas, sobretudo, João Gilberto. A música impõe uma outra leitura do passado. Não se trata da Bossa Nova doce, lírica, contemplativa e amorosa; mas a agressividade do “homem cruel, destruidor, de brilho intenso, monumental”, presente, ironicamente, no momento em que a BandaCê troca a guitarra pelo teclado, e Caetano, o canto urgente pela voz doce, calma. Pista falsa. Logo retoma a trilha e cita nominalmente lutadores que tornaram famoso o MMA no 1 O título é uma alusão a “Kafka e seus precursores”, de Borges, e aparece como epígrafe do texto.

pq? outros críticos 54 dezembro 2012 Foto: Fernando Young e Quinta-feira


Brasil. A intenção em citá-los parte já de uma tradição de Caetano, presente desde o Tropicalismo, em unir elementos aparentemente opostos para criar um efeito novo, por vezes, surpreendente. A Tropicália é composta de um mosaico de citações, referências, pastiches, mas não é só isso. Caetano consegue em Abraçaço, como nas canções tropicalistas, unir o comentário crítico, evocado nas letras, com a canção pop, a assimilação da letra que pode ser cantada, decorada, repetida. No entanto, o desgaste natural da repetição que a canção menos experimental

nos impõe, em Caetano, é o que nos incita a reouvir a música, não para cantá-la, dessa vez, mas com a intenção de decifrá-la. Procurar decifrar a tese que Caetano defende sobre a agressividade presente na Bossa Nova não deve ser tarefa fácil. É preciso reler o tempo, mudá-lo. João Gilberto, o “bruxo”, Bob Dylan, o “bardo” e Carlos Lyra, o “magno”, são as primeiras chaves dadas por Caetano na letra da música para decifrarmos a canção.

“A Tropicália foi um retrato possível da Bossa Nova. Anárquico, irônico e crítico.”

João é a síntese da Bossa Nova, principal referência estética, o responsável pelo que há de experimento, bruxaria, recombinação e transformação na música. Ele, mais que os outros, com a sua tradução

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particular do samba, foi o primeiro fulgor para o que conhecemos como Bossa Nova. Caetano canta e traduz a sua música a par dessas lições. A Tropicália foi um retrato possível da Bossa Nova. Anárquico, irônico e crítico. Carlos Lyra também pensou criticamente a Bossa Nova, mas ao contrário dos tropicalistas, sua visão era pautada por uma visão tradicional da canção brasileira. O caldo tropicalista não significou muita coisa para ele. “A intenção era maravilhosa, mas não chegou a ser o que eles queriam. Qual é a filosofia, o que é a música? Ninguém sabe o que ficou, a Bossa Nova é clara. Sobraram as cabeças de Caetano e Gil. A Tropicália não foi definitiva e aceito que me convençam do contrário”2. Já Bob Dylan empresta a Caetano a verborragia poética,

a metáfora indecifrável, o enigma da canção, a poesia das letras, o intertexto e suas máscaras. Tanto Caetano quanto Dylan modelaram com sua criatividade uma tradição a muito imposta na canção popular. Caetano precisou revirar a Bossa Nova do avesso com os álbuns tropicalistas, e Dylan incorporou o folk de Woody Guthrie até também revirá-lo. Ambas atitudes agressivas em face de uma tradição que não deseja ser destruída, mas traduzida criticamente. É esse o papel que Caetano vem exercendo durante todo esse tempo. Pôr o passado criticamente em xeque. A BandaCê põe em pauta todas as outras bandas que ele montou. Abraçaço impõe uma nova leitura de Cê e Zii e Zie. Temas possíveis para um próximo texto. pq?

2 Excerto retirado da entrevista de Carlos Lyra, na Folha da Bahia, concedida a Giovanna Castro (edição: 02 set. 2005). Disponível no site clubedejazz.com.br.

pq? outros críticos 56 dezembro 2012


pq? outros crĂ­ticos 57 dezembro 2012


O TOM DA TROPICÁLIA por Jocê Rodrigues

para Henry Bergson, criar exige intenso trabalho intelectual, que seja voltado à subversão do sistema representacional-ordinário em proveito da melhor adequação entre uma origem e seu destino. um movimento de constante tensão. assim se pode definir o ato criativo de Tom Zé, um dos maiores compositores e pensadores da forma musical em solo nacional. em sua música não há um esforço operacional para criar engrenagens e fazê-la funcionar, tudo funciona de acordo com as tensões criadas a partir de seus temas e conceitos e da efetivação de suas ideias na prática. o que mais admiro em Tom Zé, agora com 75 anos, é:

resenha

1 – sua coragem e postura ao não diluir seus conceitos para que se tornem “acessíveis”, eles nos chegam da maneira como foram criados e assim devem ser estratificados pelo ouvinte, sem uma condescendência pedinte. 2 – o fato de que ele, ao contrário dos seus conterrâneos de movimento, não se cristalizou, preferindo manter-se em constante movimento e vibração. ousa, expõe e cria com uma lógica sempre assustadora, até para os mais radicais. em seu mais novo trabalho (Tropicália Lixo Lógico, 2012) ele propõe uma visão, uma teoria sobre a Tropicália. mais um de seus riquíssimos estudos sobre nossa música, contribuição valiosa e de uma coerência e ousadia ímpar. ao estudar a tro-

pq? outros críticos 58 dezembro 2012


resenha

picália, Tom Zé não mede esforços linguísticos experimentais para narrar o quê, o como e, principalmente, o onde desse movimento. nesse douto estudo douto estão presentes; a força dos sertões além de Euclides; a potência criadora da vida no mato; a hibridização genética de árabes e portugueses que deságua com maior força no Nordeste e o papel alienante da escola que nos introduz ao mundo aristotélico, base da civilização ocidental – um papel que Michel Foucault sempre apontou como alienante – e que transforma as experiências sensoriais anteriores a ela em lixo lógico. teorizando sobre a herança árabe no sangue, Tom Zé torna visíveis em si certos traços da Falsafa (filosofia árabe), de pensadores como Avicena e Averróis, mas que, ao invés de usar a Filosofia grega para legitimar os ensinamentos do Corão, une-a com o aprendizado pré-socrático e pré-escolar de uma região para explicar o progresso e a evolução musical e social de um período. trata-se de um método muito interessante: ele vai ao cerne da filosofia ocidental para criticá-la, opondo-a ao conhecimento dos quintais e dos terreiros interioranos que, em sua visão, foi responsável pela tropicália e pela saída do Brasil da Idade Média. foi desse lixo, descartado pelo córtex e depositado no hipotálamo após o início da alfabetização ocidental, que surgiram os elementos determinantes para o movimento que nos levou, segundo Tom Zé, direto para a Segunda Revolução Industrial, a caminho da tecnologia, do progresso, da semiótica etc. foi da cultura oral esquecida, da bagagem imaginária da cultura dos mouros e da “creche tropical” com seus “analfatóteles (ou analfabetos em Aristóteles)” que nasceu a possibilidade do movimento musical mais reformador que já tivemos, um movimento que após aderir às tecnologias que até então

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eram rejeitadas por outros movimentos, como a Bossa Nova, construiu uma plataforma onde as ideias de progresso e evolução social pudessem existir de maneira eficaz. toda a teoria do Lixo Lógico se desenvolve em faixas de tom epopéico que vão se misturando às músicas que não tratam dela mas que deixam o disco mais palatável. quanto aos convidados, pode-se até dizer que as participações do álbum (Rodrigo Amarante, Mallu Magalhães, Pélico e Emicida) visam à atenção do público “moderno” e “pop”, mas cada um atua de maneira a contribuir e embelezar o trabalho tanto quanto Washington Carlos, cantor não profissional de Caruaru, que também dá a sua colaboração ao disco.

resenha

Tropicália Lixo Lógico é uma teoria que merece respeito, atenção e também manutenção; uma rica colaboração ao pensamento musicológico e uma ferramenta útil para se pensar a cultura ocidental e a história do Brasil. devemos pensar Tom Zé agora e talvez de maneira ainda mais profunda que pensamos Caetano e Gil, e cuidar para que não cometamos a injustiça de pensá-lo somente depois da morte, pranteando um artista e pensador genial sob o efeito do tempo-passado; tampouco sob o peso de estrangeirismos coloquiais, esse tempo já passou. nós o temos aqui e o temos agora.

pq? outros críticos 60 dezembro 2012


E você se sente numa cela escura, planejando a sua fuga, cavando o chão com as próprias unhas por Jocê Rodrigues “A vida é uma história contada por um idiota, cheia de som e fúria, significando nada” Shakespeare (Macbeth)

uma quase-alergia à carne e uma angústia descomunal e poética.

resenha

ao falar sobre mentiras e sobre os efeitos das palavras no aparelho subjetivo de cada um, Jair Naves desnuda discursos em E Você Se Sente Numa Cela Escura, Planejando A Sua Fuga, Cavando O Chão Com As Próprias Unhas e mostra um pouco da sua visão do mundo. depois do EP Araguari, Jair vai além e propõe outras formas estéticas para o seu trabalho. a introspecção é usada como ferramenta fundamental na construção de narrativas duras, humanas, miseráveis e também otimista às vezes, como toda existência. Jair Naves se mostra um verdadeiro moralista. não no sentido que se dá no senso comum, mas no âmbito filosófico, onde se propõe a tratar de questões da alma. as relações entre pessoas, família e também a relação com a morte e com conceitos de grande complexidade, como Deus, são expostas de maneira direta, sob a ótica crítica de quem não tem medo de dizer o que pensa desse ato tão subjetivo e

pq? outros críticos 61 dezembro 2012


concreto que é existir. pode-se dizer que Jair é assolado pelo que os padres monges da Idade Média chamavam de demônio do meio dia, que os obsedava e que era, nas palavras da filósofa Márcia Tiburi, “um misto de maldade com desespero, de amor com ódio, de autocrítica com crítica dos outros que caracterizava o quadro melancólico que tanto fazia com que o monge se sentisse um inútil, quanto fazia com que ele se tornasse um escritor, um artista envolvido em ilustrar os livros, um filósofo em busca das verdades próximas ou distantes”.

resenha

o trato com a narrativa, apesar de variar, sempre recai no sarcasmo, nos sentimentos polêmicos com a natureza das relações, elementos que o aproxima (dada as devidas exceções) de um dos maiores escritores franceses do século XX, Georges Bernanos (cuja obra está sendo primorosamente e tardiamente editada no Brasil pela É Realizações), que escreveu: “Para mim, a obra de um artista não é nunca a soma de suas decepções, sofrimentos e dúvidas, do mal e do bem de toda sua vida, mas de sua vida ela própria, transfigurada, iluminada, reconciliada”. o que Jair Naves traz em seu primeiro álbum solo é som e fúria. não a fúria da postura combatente que disparava na Ludovic – antiga banda de Jair que deixou dois ótimos discos –, mas uma que é madura, shakesperiana e sem bundamolismo. o disco foi gravado no já lendário Estúdio El Rocha e masterizado e mixado pelo também já lendário Fernando Sanches. tem músicos já conhecidos da cena como Thiago Babalu (bateria) e Renato Ribeiro (guitarra, violão e vibrafone), ambos da saudosa Gigante Animal; Adriano Parussulo e Alexandre

pq? outros críticos 62 dezembro 2012


Molinari (baixo); Alexandre Xavier (piano) e Cimara Fróis, do Trio Sinhá Flor (sanfona).

resenha

E Você Se Sente Numa Cela Escura, Planejando A Sua Fuga, Cavando O Chão Com As Próprias Unhas é um verdadeiro tratado da alma, da suave e racional melancolia de viver e de pequenos momentos de felicidade que dão sentido ao ato cego de existir.

pq? outros críticos 63 dezembro 2012


Metá Metá MetaL MetaL por Jocê Rodrigues “A filosofia do candomblé não é uma filosofia bárbara, e sim um pensamento sutil que ainda não foi decifrado”.

resenha

isso o antropólogo Roger Bastide escreveu em 1944 enquanto pesquisava o candomblé no Brasil (foi seu primeiro contato com o candomblé em terras nacionais). hoje em dia não podemos falar de uma decodificação das religiões africanas em nossa terra, mas sim de uma constante descoberta que se movimenta com as engrenagens da descoberta e invenção do homem. depois do primeiro registro, lançado em 2011, o Metá Metá de Kiko Dinucci, Thiago França e Juçara Marçal (agora com o reforço de Marcelo Cabral no Baixo, Samba Sam na Percussão e Sergio Machado na bateria), lança MetaL MetaL. gravado no já mítico estúdio El Rocha e mixado por Fernando Sanchez, o CD traz parcerias de Kiko Dinucci e Douglas Germano e também cantigas de pontos de terreiro, além de “Tristeza Não”, parceria de Alice Ruiz com o Nego Dito, Itamar Assumpção. após Exu abrir os caminhos, chega a tempestade de “Oya”, com vigor, raios e muito improviso coletivo (elemento que se perpetua ao longo das nove faixas). a cosmogonia de matriz africana, apresentada em uma ontologia-quase dos mitos e seres que habitam o etéreo e as cabeças dos filhos d’África

pq? outros críticos 64 dezembro 2012


que habitam terras tupiniquins, é o ponto central do trabalho do Metá Metá. Thiago França vai ponteando as músicas com fraseados livres, que em certos momentos lembram Pharoah Sanders na energia, em meio a ritmos que lembram a congada e umbigada. Kiko eletrifica com a guitarra (o instrumento da vez) todas as linhas melódicas enquanto Juçara arrepia espinhas e energiza (que é diferente de eletrificar) Orís. assim é a marcha desse segundo trabalho do trio Marçal/Dinucci/França.

resenha

é impossível não se emocionar com Juçara Marçal entoando “Man Feriman”, uma belíssima cantiga de Oxun. lembro-me da primeira vez que a ouvi cantá-la: foi com o Sambanzo (um entre os milhares de grupos dos seus parceiros Thiago e Kiko) no Goma Laca, evento que aconteceu no Centro Cultural São Paulo e que tinha o objetivo de resgatar antigos pontos de macumba do acervo da Discoteca Pública Municipal, criada por Mário de Andrade. lembro de todos os pelos do meu corpo se eriçarem enquanto o peito queria explodir em canto e os pés em dança. como o nome já diz, o que encontramos como roupagem das letras de MetaL MetaL, são variações entre suavidade de transe e quebradeira atonal (marca da música que vem se instaurando principalmente na cena paulistana desde o início de 2000 e que carrega grande influência da música de Chicago e do Free Jazz). algumas harmonias são desafiadoras e o enlace entre os instrumentos torna-se o ápice de algumas composições (como as explosões presentes em “Oya” e “Rainha das Cabeças”) e todo o CD é uma celebração da música atual com as raízes ancestrais africanas (principalmente com a religião iorubá).

pq? outros críticos 65 dezembro 2012


Rodrigo Campos Bahia Fantástica1 por Jocê Rodrigues Poucas são as vezes em que um trabalho musical é composto

resenha

de forma a nos prender do início ao fim e quase sempre me deparo com álbuns fragmentados, sendo essa fragmentação fruto do tipo de mentalidade predominante em nossa época, o que não torna esses trabalhos ruins, apenas dispersos. Esse não é o caso de Bahia Fantástica: nele encontramos uma unidade ocasional, nascida provavelmente não de uma intenção objetiva, mas de forma natural e espontânea, como o impulso de um sorriso. No novo trabalho de Rodrigo Campos encontramos pouco do que era São Mateus Não é Um Lugar Assim Tão Longe, seu primeiro álbum, lançado em 2009 e que trazia um samba renovado, rebuscado; fino e ao mesmo tempo despojado, uma obra de grande importância para a música, sem dúvida. Em seu novo álbum, no entanto, fica mais que visível a importância da união e da parceria entre músicos que trazem em seus espíritos o amor pela música e por todas as suas possibilidades. Estou falando de gente como Thiago França (MarginalS, Criolo, Sambanzo, Rômulo Fróes, Metá Metá); Kiko Dinucci (Metá Metá, Passo Torto); Marcelo Cabral (Passo Torto, Rômulo Fróes, Criolo, Sambanzo, MarginalS, Lurdez da Luz); Maurício Fleury (Bixiga 70, Veneno Sound System) e Maurício Takara (Hurtmold, Marcelo Camelo, Bodes & Elefantes, SP Underground). Músicos que se unem para transgredir as 1

Publicado originalmente no site Jardim da MPB. pq? outros críticos 66 dezembro 2012


regras do lucro, já que gravaram e compuseram de forma inteiramente colaborativa, sem cachê; acreditando no valor da criação e no poder transcendente da música.

resenha

Ao contrário do que ocorreu com seu trabalho anterior, onde Rodrigo atua como cronista e testemunha do que ali é cantado, o autor de Bahia Fantástica - que não conheceu profundamente a Bahia, passando apenas dez intensos dias por lá enquanto era devorado por angústias emocionais e existenciais - tece um emaranhado de sensações e impressões que são diluídas em arranjos caudalosos e letras subjetivas, evocando cenários que são ao mesmo tempo oníricos e cotidianos, expandindo assim os limites do real, proporcionando-nos uma experimentação da realidade sob uma ótica intuitiva e introspectiva. Além de ser recheado de participações (Juçara Marçal, Criolo, Luisa Maita, Gui Amabis, Guilherme Held, Maurício Bade, Luis Gustavo “Buda” e Renato Rossi, além da direção artística e musical de Rômulo Fróes), esse trabalho traz algo de íntimo do compositor, que se propõe a passear e a nos levar com ele por paragens mágicas de uma Bahia marginal, uma Bahia que poderia estar aqui ou em qualquer outro lugar do mundo. Saindo do forno como um dos álbuns mais esperados do ano, Bahia Fantástica traz em si elementos de uma mística do micro, que toca numa corda sensível da lira de nossa alma e nos desperta para a beleza dos pequenos atos, dos micro-tons e da fantasia. Boa audição e recomendo que não levem bagagem alguma, pois, ao viajarem por esse micro cosmo, terão que ter espaço pra trazer o que lá lhes será oferecido.

pq? outros críticos 67 dezembro 2012


ZÉ Manoel e a Descoberta da Voz por Jocê Rodrigues A voz não é linguagem, ela é considerada por muitos, em alguns aspectos, um sine qua non da linguagem e base do discurso (reator da palavra-discurso). Michel Foucault sempre nos aponta as consequências de certas interdições discursivas que acompanham a voz, como a palavra do louco que, até o fim do século XVIII, não podia circular como a dos outros e, por isso, era deixada de fora do círculo de debates sociais e ainda hoje é interdita. Existir necessita voz (não no sentido estrito da palavra), e por ela se expressam as palavras de ordem que,

resenha

segundo Oswald Spengler, são as formas fundamentais da fala. Em minha concepção, a voz é muito mais que linguagem e vai além dos comandos simples que buscam aceitação, negação, testemunho ou obediência, como queria Spengler. Ter voz é ser no mundo, ou como sustenta o diretor e dramaturgo Roberto Alvim: “eu falo: eu existo”. Zé Manoel, pianista e compositor pernambucano que lançou seu álbum de estreia esse ano, descobriu a experiência da voz-canto quando participou do festival da canção Edésio Santos e depois quando passou três meses em um cruzeiro como pianista e se viu na obrigação de ter que cantar o que lhe pediam (mecanização da voz). Agora ele assume e aceita a sua voz como construtora de planos diversos e de vibrações capazes de desencadear estímulos criadores e sisnetésicos. Suas letras – palavras de uma fala criadora de particulares subjetiva-

pq? outros críticos 68 dezembro 2012


resenha

ções – são de poéticas simples, trabalhadas de forma rica e criativa, uma criatividade que busca traduzir a complexidade de amores e de alegrias em versos tocantes, construídos com gingado e balanço cancioneiro. Nas faixas de seu CD encontramos valsinha, samba, chorinho, jazz e outros elementos regionais, mas o que chama a atenção, no aspecto instrumental, produção e de arranjo, é o timbre cristalino do piano, com notas de ecos clássicos e de clareza impecável. Não se sobressalta uma nota, mesmo em músicas com arranjos de mais instrumentos como “Sol das Lavadeiras” ou “Dizem (Quem não chora não mama)”; conduz as cadências com talento e com um feeling jovial que faz até parecer que são de fácil execução (mesmo que não tenham complexas harmonias, a forma com que as toca, sua “pegada”, faz com sejam composições únicas). O lirismo de Zé Manoel o aproxima de grandes compositores como Paulinho da Viola, Dorival Caymmi e Chico Buarque, e faz dele um representante de peso da nossa música (sem querer, no entanto, limitar-lhe fronteiras geográficas. Tanto que logo mais ele estará em uma turnê europeia, uma proposta da produtora francesa V.O. Music que representa nomes como Esperanza Spalding, Milton Nascimento e Richard Bona). Mostrando que é pessoa antenada na cena da música atual, que observa e participa das progressões que vem acontecendo em nossa música, ele regravou “Samba Manco”, do compositor vanguardista Kiko Dinucci e tem composições em parceria com pessoas como Mavi Pugliesi, Chico Limeira e Vinícius Samento. Para nossa sorte, Zé Manoel descobriu o poder da sua voz, aprendendo a se utilizar da força de criação intensiva de sua palavra como intérprete e de seu discurso como compositor, uma descoberta que enriquece a música, engrandece espíritos e deleita ouvidos. Zé Manoel existe e faz existir.

pq? outros críticos 69 dezembro 2012


coluna LADO A | LADO B por Carlos Gomes

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Preparar listas de melhores discos não é fácil. Não serão os melhores, sabemos. Mas é um ótimo exercício para nos darmos conta do que nossa memória afetiva (ou crítica) consegue relembrar ao fim de 365 dias de muita música. Talvez seja muito mais difícil guardarmos na memória os discos que nascem como arquivos para download do que os discos físicos. É mais fácil lembrarmos o dia em que saímos de casa e fomos até uma loja de discos (ou livraria, sebo, megastore) para comprar o álbum que acaba de ser lançado. Para os LPs, a lembrança torna-se ainda mais viva. Ainda me lembro do dia em que preferi comprar o LP Blood on the tracks, de Bob Dylan, ao CD, ambos na mesma loja e com preços parecidos. No entanto, baixei recentemente New York Sessions Blood On The Tracks, com seções do

álbum que Dylan viria a gravar. Não fosse a internet, talvez nunca ouvisse essas faixas. Não lembro o site, o dia, o tempo que levou para baixá-las. São as faixas que tocam enquanto escrevo esse texto. Preparei uma lista de 10 canções para o site Hominis Canidae, e foi dessa lista que escolhemos as músicas e os discos de que mais gostamos em 2012. No blogue, a cada final de ano, já decidimos por postar discos em ordem alfabética e de preferência. Em 2012, resolvemos separar as escolhas num Lado A e Lado B. Quando começo a ouvir um disco novo, as minhas primeiras audições são sempre na sequência que o músico escolheu. Depois, naturalmente, ou ligo a ordem aleatória ou começo

pq? outros críticos 70 dezembro 2012


a cortar algumas músicas. Não é porque retiro da minha lista, duas, três, quatro canções, que acho que o disco deveria ter sido lançado com menos faixas. São as escolhas do momento. Mas pensar um álbum em Lado A e B é algo que ainda me fascina. Por mais que não pareça, em minha cabeça os lados são mutáveis. Muitas vezes, me pego discordando da ordem das faixas de algum disco, montando ao meu gosto os Lados A e B que melhores me satisfaçam. “Idiot Wind”, por exemplo, de Blood on the tracks, deveria abrir o Lado B, e não vir na 4ª posição do A, depois de canções como “Tangled Up in Blue” e “Simple Twist of Fate”. Os 8 minutos da música mereciam vir depois de um devido (e providencial) fôlego; aliás, que quase sempre falta às faixas 9, 10, 11 e 12, dos sets que as bandas postam no site Soundcloud. É perceptível que, gradualmente, os números de plays vão diminuindo. No fundo, ainda estamos aprendendo a ouvir a música pela internet. Sobretudo a geração que nasceu entre Fitas K7 e LPs.

A escolha por um Lado A e um B parte de nossa dificuldade em determinar parâmetros críticos para as seleções, no fundo, acabam sendo afetivas. Como comparar os discos de Siba e de D mingus? Tom Zé e Matheus Mota? Como escolher álbuns sem levar em conta os discos lançados em Pernambuco, onde o nosso olhar é mais acentuado? No Lado A, escolhemos cantautores brasileiros e o modo particular com que cada um trata a canção. No Lado B, o tratamento à sonoridade, ao arranjo que surpreende o ouvinte é a marca dos álbuns selecionados. A ordem dos discos segue a minha preferência mutável. Entre o número 1 e o 5, a distância é quase nenhuma. A nossa seleção, que vocë pode conferir logo a seguir, vem acompanhada de uma espécie de miniconto que criei a partir das letras das músicas. A sequência do texto segue a mesma das faixas selecionadas. A arte criada para divulgar a nossa lista foi baseada nos selos impressos nos vinis. Para ouvir a seleção, clique aqui para ser redirecionado ao blogue, onde poderá ouvir as músicas. Boa leitura verbivocovisual. pq?

pq? outros críticos 71 dezembro 2012


solstício

I não ouço passos de ninguém entre os escombros. nem mesmo insetos revirando o pó. um vento seco me arrepia, encolho os ombros, pois na verdade estou queimando só. pelo vazio com que eu convivo há tanto tempo. e eu não vejo em mim nenhum medo, e não existe em mim nenhum medo. homem cruel, destruidor, de brilho intenso, monumental. sangrou, vazou, morreu de dor de amor. e fazendo no meu peito a tua moradia, mas queres ir embora. não mereces a dor, por deus, te guardaria. muito assustadoramente, revirou a casa, esvaziou o armário e levou a mala. para sabe alguém aonde isso dá? ó sol! proteja o menino. pq? outros críticos 72 dezembro 2012


II aquela manhã que se inicia depois de encontrar a dor. mais adiante, resolveu se entregar embalando a própria esperança. era negar os olhos. tanta paixão. um só corpo não aguenta. solidão. ó, sua imagem! você não sai da minha cabeça. você nunca mais sai da minha cabeça. otro atardecer te espero. en el sol tan dulce y mágico. en el sol.

pq? outros críticos 73 dezembro 2012


conto CORPÚSCULO NUM PLANO1 [excerto] por Daniel Liberalino Acordo com o ruído de crianças na piscina. Elas dizem alguma coisa e acenam; e assim continuam rindo. Eu aceno de volta. Desaparecem – na água persiste um silêncio vítreo, como se estivesse morta, ou dormindo, de fato está. Vejo esse cenário fixo à minha frente, por alguns minutos. Outra vez o sono entorpece a carne, fico oscilando entre vigília e sonho. Acordando e submergindo, uma tartaruga flutuando num lago morno, uma lâmpada de poste falhando numa estrada de barro. Imagens repentinas de ônibus e vozes, transitando em frames

irreconciliáveis na sua cabeça. Vejo através da janela chuvosa o pinheiro amputado no jardim da casa dos meus pais. Estou comendo biscoitos e doente; faltei a aula. Está frio lá fora e quente dentro. Bolachas cream cracker. Bananada; a empregada, seus peitos negros salgados. O gato é golpeado com panelas repetidamente, na TV. Isso foi há uns cinco anos, ou um dia longo e maçante demais. Foi ontem, quando tive o sonho de mil anos; andava bêbado por mil cidades vazias, lendo os cartazes em todos os postes. Fotos dos esquecidos,

1 Lançado em 2010 na internet e de autoria de Daniel Liberalino, o livro Corpúsculo num plano – e como adquiri imunidade à varíola ganhará uma versão impressa pela editora Jovens Escribas em 2013, sem data prevista para lançamento. O autor reside no Rio Grande do Norte e publica suas ilustrações no blogue disfuntorerectil.blogspot.com.

pq? outros críticos 74 dezembro 2012


fotos dos perdidos. Os que um dia pisaram na Terra; ali, nos cartazes, suas expressões de 3x4; seus penteados embaraçosos; suas intimidades embaraçosas. E todos os postes estavam cobertos, os cartazes restantes acumulavam-se nas ruas, formando montanhas enormes, asfixiando os cachorros, famintos como os de Bruegel. Lembro do meu sonho agora, porque observo este pássaro, parado num céu estéril. Me sinto dormente e medíocre. Volto a sentar na cadeira de plástico. Observo a água da piscina. Meu pau esquentando, ereto ao sol. A cabeça brilha, como a velha tarde vestigial. O sono tedioso entra pelas fendas da minha batisfera; me sinto afogar dormindo.

pq? outros críticos 75 dezembro 2012


pq? outros crĂ­ticos 76 dezembro 2012


pq? outros crĂ­ticos 77 dezembro 2012


coluna A POESIA É O VINHO DA VISÃO por José Juva Uma árvore cujas raízes mergulham no inferno e os galhos alcançam o céu – conectando nove mundos. Uma respiração, um contínuo movimento de sístole/diástole, as imaginações sagradas e lúdicas e as perambulações dos macacos nus. Um poema é uma criatura ancestral, selvagem, permanente gravidez fora do tempo e, simultaneamente, uma gravura inscrita na pele do cotidiano, uma planta semeada e colhida no terreno da história. No princípio era o precipício: o xamã dançava e cantava e voava e mergulhava e urrava e pintava. E as visões saltavam aos borbotões, mediadas por sua voz de pássaro e tigre. Um poema é um cavalo. O transporte para os abismos, a passagem para as montanhas cósmicas, a porta para o lado escuro do riso, a escada para o estômago do imprevisto. Um poema é tudo isto. Um poema não é nada disto. Esta não é uma coluna retilínea: não procure aqui a região cervical, a torácica, a lombar e a pélvica. Também não tente colocar cargas verticais sobre esta coluna. Talvez seja mais interessante pensar nesta coluna como uma pq? outros críticos 78 dezembro 2012 Arte: Robert & Shana ParkeHarrison


estrutura formada pela união dos órgãos sexuais das flores das orquídeas. Você pode se afastar um pouco do computador agora. Vá até a geladeira e pegue uma garrafa de vinho, tome pelo menos uns dois ou três copos, tome um pouco de ar, tome nota. Agora entramos na parte em que eu esqueço o chá de cogumelo cozinhando no pequeno fogareiro do quintal, desço da árvore e tento um contato mais ordinário contigo: bom dia, boa tarde, boa noite! Depois de pensar e andar e pensar e andar, tudo isto ao mesmo tempo, decidi que neste primeiro texto para este espaço aqui no Outros Críticos (que ocupei no primeiro semestre de 2012) abordaria tangencialmente as alimentações mútuas entre a vida e a literatura, entre a poesia e a existência. Com a tranquilidade do verbo em primeira pessoa, com o nervosismo do trânsito sanguíneo que pinta a vivência e a escrita, poderei trazer para cá alguns autores estimados, poderei delirar sobre as origens da criação poética posta em movimento pela ação xamânica, poderei recordar e poderei fingir reminiscências, poderei dizer que o rei não pode, seja lá o que for. Outro salto, outra visão. Revejo os três livros que encontrei um dia na biblioteca da escola, durante o ensino médio, e que passaram a ser companhias, antes e depois das partidas na quadra de futebol de salão: Jeremias Sem-Chorar, de Cassiano Ricardo, Livro de Sonetos, de Vinicius de Moraes e Toda Poesia, de Ferreira Gullar. Estes livros foram cordas por onde subi árvores mágicas, gatilhos para territórios de criação e encantamento; eles marcaram para mim uma diferença fundamental no entendimento sensível sobre a relação entre o mundo e a escrita, entre as palavras e as coisas, entre os objetos e os nomes. A partir dali, eu ouvia o rio correr. E passava a modular as músicas que o vento me soprava, registrava as canções cujos ruídos eu podia ouvir escapando por meus poros. Era divertido ler a escrita erótica/afetuosa de Vinicius e imaginar suas investidas amorosas, a palavra salvando a noite de um homem contra a solidão. Com Cassiano Ricarpq? outros críticos 79 dezembro 2012


do, o meu estranhamento e entusiasmo diante do profeta com olho de vidro, incapaz de chorar. Jeremias Sem-Chorar, de 1965, é um canto irônico e triste sobre os desvãos da cidade moderna, o automatismo crescente, o embotamento das sensibilidades, as pessoas tragadas pela velocidade da voragem paranoica. O livro-poema é um sonho profético a respeito da vida em desequilíbrio. Como um aperitivo mínimo, aponto a precisão lúcida e ácida num trecho do poema “sete razões para não chorar”, que abre o livro: “Uns mataram a sede / no suor dos outros / e eu fiquei sem água / nem sal”. Com Gullar, horas lendo e relendo o João Boa-Morte, os poemas de Dentro da Noite Veloz – e a sensação de urgência de um posicionamento de contraposição frente às agruras sociais, a poesia como fagulha para a rebeldia, via de mão-dupla entre os ideais e o comportamento, entre as utopias que nos fazem caminhar e a fome diária. O cardápio não é a refeição, o poema não é a sopa: mas aponta possibilidades de bonança. Só não fique olhando para o dedo que aponta, mesmerizado. Esta questão que envolve a ideia de uma arte engajada pode ser pensada como nos cantos de invocação dos deuses, na magia de preparação para a caça ganhando corpo no xamã. As narrativas mágicas, as atualizações dos mitos não eram um impedimento à

ação. Ao contrário, constituíam fortes elementos catalisadores de energias e vontades, estimulantes para a ação coletiva e também reinvenções da jornada de volta, a partilha do alimento do corpo e da alma. Para mim, o exercício de invenção, o magma da criação poética não é um vapor estéril que se desvanece no jogo com palavras, que se fia numa clausura que procura construir uma estrutura entretida com seu umbigo. Uma loucura destas não me encanta, não canta. Antes, a poesia como cura: de si mesmo e do mundo. Antes, a poesia como um sonho profundo e a vigília com o nono olho fecundo. Antes, a poesia como uma sensibilidade paleolítica, um sabre fatiando a carne do futuro, um olho andarilho deambulando pela carcaça do contemporâneo. E um pulso ferido que sonda as coisas do outro lado, como disse Garcia Lorca. A poesia é o vinho da visão. Volto a ouvir o chiado do bule, o chá está pronto. pq?

pq? outros críticos 80 dezembro 2012


pq? outros crĂ­ticos 81 dezembro 2012


coluna COLUNA EM QUARTETOS1 por Matheus Torreão Cada quarteto foi baseado em uma frase bacana de algum músico ou musicista célebre, são citações que transformei em versos. Para dar um pouco mais de graça.

Do fatal convívio Um manda, outro desmanda. Faz-se notar a inconveniente verdade: Nada melhor para arruinar uma amizade Que ajuntar-se numa banda.

Da carreira bem-sucedida Nem cem mil cópias, nem um milhão. Dá-se bem antes de tocar, ou não, na radiola. Sucesso é sarrabulhar a viola E ver sair um bom refrão.

1 Inspirado no livro Espelho Mágico (1951), de Mario Quintana.

pq? outros críticos 82 dezembro 2012


Da canastrice Aos que defendem a formação básica, Esclareço de modo conciso: Não entendo nada de música, No meu ramo não é preciso.

Da profissão romantizada Compor, ao contrário do que um ou outro já disse, Não é mais glamouroso que ofício qualquer. Assemelha-se um tanto a conquistar uma mulher; Na maior parte do tempo, uma chatice.

Da autocomiseração Não vá remoer qualquer desventura A fim de pôr mais versos no encarte. Ninguém precisa sofrer, criatura, Pro mundo ouvir boa arte!

Das plateias ineptas Parcela grande das pessoas Sofre de uma demência profunda: Não reconheceria uma música boa Nem que ela lhes mordesse a bunda.

Da inescapável vocação Vez ou outra, me questiona um sujeito Que ocupação, se não a música, eu teria escolhido. Caso algo houvesse, neste mundo, remotamente parecido, Talvez esse algo eu tivesse feito.

pq? outros críticos 83 dezembro 2012


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pq? outros crĂ­ticos 84 dezembro 2012


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