#3 Outros Críticos [ano I - maio 2014]

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"Quem domina a paisagem sonora, domina o mundo.", sentencia o músico Marcelo Campello numa das seções da revista. Sua afirmação dialoga com a obra que fundamenta teoricamente o conceito de paisagem sonora. Em A afinação do mundo, R. Murray Schafer afirma que os sons exercem poder. A relação entre os sons ao redor e a dominação/poder pode ser verificada nos contextos culturais de muitas cidades brasileiras. Partindo do Recife e arredores, essa edição traz artigos, debates e depoimentos que localizam em determinadas expressões culturais como a paisagem sonora pode revelar para nós mesmos o quanto negligenciamos a escuta. O "alto e bom som" é a base da sociedade, como alarmes indiscriminadamente nos roubando a atenção. Porém, cada vez mais, os músicos ocupam as ruas, integram a paisagem sonora na sua criação, festivais de música experimentam novas relações entre público, artistas e tecnologia. Não se trata de avançar para o futuro, basta apenas perscrutar na escuridão os sons contemporâneos que nos firmam e nos fazem pensar: música é o silêncio ao redor. Boa leitura.

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colaboradores AD Luna Músico das bandas Querosene e Jacaré e Monjolo. É repórter do Diario de Pernambuco.

Bernardo Oliveira Crítico musical e editor do blog Matéria: música e adjacências

Bruno Vitorino Compositor, baixista do Nebulosa Quinteto e colunista do blog Variações para 4.

Caio Lima Músico da banda Rua e pesquisador da cia. etc.

Jeder Janotti Jr. Professor do PPGCOM da UFPE, coordena o grupo de pesquisa Mídia e Música Popular Massiva.

Marina Suassuna Jornalista, escreveu no site LeiaJá e na revista Continente.

Rodrigo Édipo Editor de conteúdo da MI - Música Independente em Pernambuco.

expediente edição 3 - bimestral - maio de 2014

Edição: Carlos Gomes Projeto gráfico: Fernanda Maia Ilustrações: Jeims Duarte Jornalista responsável: Raquel Monteath (DRT 5381-PE) Textos: André Dib, Carlos Gomes, Fernanda Maia, Karol Pacheco e Raquel Monteath. Coluna: Caio Lima

Esta revista é uma iniciativa do projeto de crítica cultural Outros Críticos, e foi realizada com incentivo do FUNCULTURA (Governo do Estado de Pernambuco). ISSN: 2318-9177 Impressão: FacForm

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Mais informações e sugestões: contato@outroscriticos.com www.outroscriticos.com


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Desafinado Mundo por Fernanda Maia

Artesanato Sonoro Mode On por Raquel Monteath

Crítica de Boteco Marcelo Campello

DJ Dolores

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entrevistas

Foto: Olga Wanderley/Divulgação

Hugo Linns

Opinião

40 Para que o ar corra livre por Karol Pacheco

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Foto: Pri Buhr/Divulgação

Foto: Hugo Coutinho/Jacaré Video

Artista convidado Jeims Duarte

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A composição do invisível por André Dib

Depoimentos de Cadu Tenório, Fred Lyra, Glauco César II, Hugo Medeiros, Lucas Alencar e Mateus Alves.

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Ceticências

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SP Underground

66 Foto: Daryan Dornelles/Divulgação

por Bernardo Oliveira

Ell Gênio Duo

por Bruno Vitorino por Marina Suassuna

Pé-Preto

por AD Luna

Trummer SSA

resenhas

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por Jeder Janotti Jr.

Música é sons por Caio Lima

coluna 3


artista

convidado

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O paraibano Jeims Duarte percorre em sua obra a urbe Recife-Olinda e transforma, através de seus desenhos, pinturas e instalações, o comum a todas grandes cidades num espaço onde cabem a ruína e a construção, o homem e as pedras que ele ergue. Graduado em Artes Plásticas e mestre em Design, ambos pela UFPE, o artista já expôs sua obra no Panorama Rumos Itaú Cultural Artes Visuais (2003), ARCHÉ (Instituto Cultural Banco Real, 2008) e 47º Salão de Artes Plásticas de PE (2009). Em 2013, inaugurou na Casa do Cachorro Preto a exposição RMR – Região Metropolitana Randômica, de onde vem parte das obras presentes nesta edição da Outros Críticos. Em 2014, convidado pelo Museu de Arte Moderna Aloísio Magalhães (MAMAM), da Prefeitura da Cidade do Recife, em parceria com a Divisão Cultural da Embaixada do Brasil no país, o artista plástico apresentou a mostra Bifröst, como parte de uma residência artística de 12 dias na Bélgica.

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artigo

Desafinado Mundo por Fernanda Maia

A algazarra das crianças, o ruído quase que contínuo dos motores, o condicionador de ar que ruge do lado de fora, o som potente das hélices que tornam o ambiente sonoro ainda mais fatigante e linear. “O aumento da intensidade da potência do som é a característica mais marcante da paisagem sonora industrializada.”, assim definiu Schafer a contribuição mais audível da Revolução Industrial. Talvez eu estivesse a descrever uma fábrica têxtil do século XVIII, não fosse pelo volume descontrolado das vozes agudas que, junto à minha, brigam por atenção na paisagem sonora nada saudável da escola em que leciono todos os dias. Mas como denominar de paisagem um emitente caótico de ruídos indesejados? No final da década de 60, na Simon Fraser University (Canadá), o compositor e também professor R. Murray Schafer se reuniu com demais pesquisadores para formar o World Soundscape Project (WSP) – sendo a expressão “soundscape” um neologismo derivado do termo em inglês “landscape”, que significa “paisagem”, originando assim, em nossa língua, o termo “paisagem sonora”. Como resultado das pesquisas e análises re6


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alizadas, Schafer lança em 1977 o livro The tuning of the world (A afinação do mundo, em sua segunda edição, publicada em 2011), que se tornará referência mundial no estudo de campos acústicos. Para tanto, Schafer fez um diagnóstico sobre o ambiente sonoro de algumas comunidades (principalmente da Europa) de forma diacrônica, através de textos literários ou in loco, criando fundamentos para o “projeto acústico”, um sistema interdisciplinar capaz de apresentar meios de melhoria do ambiente acústico, reduzindo a poluição sonora. Para formatar a sua análise, Schafer criou diversas terminologias e conceitos, mas citarei aqui apenas os principais temas da paisagem sonora, que são: sons fundamentais, sinais e marcas sonoras. O som fundamental é aquele que de tão habituado que estamos a ele em nosso dia a dia, não são ouvidos de forma consciente, como o movimento das folhas das árvores causado pelo soprar do vento. O sinal (a figura) é aquele que em contraste ao som fundamental (pano de fundo) se destaca aos nossos ouvidos de forma consciente, como a irritante sinfonia de buzinas dos automóveis nas ruas engarrafadas de qualquer cidade. A marca sonora, por sua vez, é o som único de uma determinada comunidade, tornando-se significativa para as pessoas que vivem em um determinado local, como as tardes da minha in-

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fância foram marcadas pelo pregão do vendedor que, carregando um tabuleiro com doces, nos fazia ouvi-lo do outro lado da rua: “Óia o japonês!”. Assim, a paisagem sonora de qualquer local pode ser construída de sons agradáveis ou desconfortáveis; capazes ou não de deter poder. Segundo Schafer, o ruído pode ser imperialista. Os sinos das igrejas, as vozes dos cânticos e o órgão são exemplos clássicos do poder cristão; como na era da mitologia, os barulhos da natureza representavam os deuses; ou o temível estrondo do canhão na guerra. Destacar-se em um ambiente acústico é um meio de dominação. Nos eventos eleitorais, é prática comum dos candidatos – não satisfeitos em poluir as ruas com panfletos, santinhos e adesivos – invadirem o ambiente acústico dos bairros com discursos e jingles que delatam o conceito da política publicitária brasileira. No trânsito, além do ruído causado pela automobilização nada defensiva dos motoristas, o cano de escape adulterado de motos revela uma sociedade tão violenta quanto o estrondo de uma espingarda calibre 12 que retumba no ouvido das crianças, educadas por gritos de pais ou professores que veem no “alto e bom som” a base da família/educação brasileira. Princípios que se repetem na “potência” do smartphone da moda, no alto-falante do carro que toca “a música do ano” ou no carrinho


do vendedor de CDs piratas que não faz questão em ouvir o som clipar. Estamos na era da propagação quantitativa do som, e não qualitativa. Vivemos uma batalha “socioacústica”, e não é apenas em nosso ambiente sonoro que ela está presente, mas também na forma como fazemos música. Na edição de número 44 (março), a Sound On Sound brasileira discute sobre o possível fim da “guerra de volumes” – na masterização, significa chegar ao nível de pico máximo definido, através da hipercompressão, e sacrificar o espaço (respiro) para a dinâmica musical –, iniciada na era digital, devido à normatização de volume automática que vem sendo implantada pelos mercados de broadcast e consumidor (a função “Sound Check” do iTunes, lançada pela Apple recentemente, por exemplo, mantém o volume uniforme, independente do estilo musical). Desde a Revolução Industrial, sofremos um grande impacto na forma como interagimos com o meio ambiente. A propagação arbitrária dos sons fortes, imperialistas, tornaram lo-fi a paisagem sonora das metrópoles, ou seja, há um congestionamento de sons: figura e fundo disputam espaço em um único plano. Aos poucos, os sons naturais estão sendo mascarados pelos ruídos dos motores e sons amplificados dos alto-falantes. Por isso que para o homem contemporâneo urbano, ouvir a

"Estamos na era da propagação quantitativa do som, e não qualitativa. Vivemos uma batalha 'socioacústica'"

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natureza tende a ser um evento extraordinário ou nostálgico. Nas últimas décadas, o nosso relacionamento social também mudou com a implantação da tecnologia da informação em nosso cotidiano, que nos hipnotiza não só através das imagens dinâmicas, mas também por meio dos sons invasivos de aparelhos móveis que a todo momento, e em qualquer lugar, reclamam a nossa atenção. A indústria e a tecnologia, de fato, revolucionaram o comportamento humano, e não acredito nem defendo uma regressão contra tudo o que conquistamos de positivo até hoje, mas não podemos conviver com o que nos degrada. Se não quisermos ficar comprimidos em casa, no mundo digital, assim como a música de nosso tempo, devemos projetar a nossa paisagem sonora tal qual o jazz: imprevisível, inconstante e inspiradora. oc


artigo

ARTESANATO SONORO MODE ON por Raquel Monteath “Perceber no escuro do presente essa luz que procura nos alcançar e não pode fazê-lo, isso significa ser contemporâneo.” Giorgio Agambem

Quando um som ultrapassa seus próprios limites sonoros, é hora de fazer um festival. Incumbidos de ideias parecidas com essa, alguns produtores brasileiros resolveram ampliar seus limites audíveis, assimilar o crescimento mundial de um tipo específico de música e produzir festivais

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com linguagens mais audaciosas. Transcendência, erros e texturas fazem parte do know-how desses festivais, que bebem da fonte das novas tecnologias assumindo um status de “contemporâneo”, conceito que o filósofo italiano Giorgio Agambem define como sendo uma luz lançada sob o escuro do


presente, de algo que ainda é desconhecido, que está porvir. São experiências híbridas, ou seja, de diferentes naturezas artísticas, e que mesclam instrumentos tradicionais com live images, decodificação de arquivos, projeções etc. Como no caso do Novas Frequências (NF), festival que desde 2011 ocupa o calendário anual do espaço Oi Futuro Ipanema, no Rio de Janeiro, apoiando-se na tríade: “experimentação, vanguarda e novas tendências”. Como eles próprios chegaram a descrever em uma das edições, um festival que apresenta ao público a “fine art da música contemporânea”. “O tipo de música abordado pelo Novas Frequências não se preocupa muito com letra, melodia e muito menos com refrão grudento. Acho que daí é que vem a expressão ‘instalação sonora’ (dada pelo escritor carioca João Paulo Cuenca, ao descrever a terceira edição do Novas Frequências). O festival apresenta novas formas de se fazer música e de se trabalhar com o som. Evidentemente que, quando não há uma preocupação com uma mensagem aparente a se transmitir, todas as atenções ficam voltadas para o ritmo, as texturas, as ambiências e as dissonâncias”, comenta Chico Dub, produtor e idealizador do festival. Em parceria com a também produtora Tathiana Lopes, Dub promove a cada edição uma curadoria ousada, que traz como caráter marcante do festival o inedi-

“Quando não há uma preocupação com uma mensagem aparente a se transmitir, todas as atenções ficam voltadas para o ritmo, as texturas, as ambiências e as dissonâncias” Chico Dub

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tismo estrangeiro das atrações - e assim tem sido com nomes como Andy Stott, Pole, Sun Araw e Com Truise, que tiveram o NF como porta de entrada no país. “O festival ainda é muito pequeno para trabalhar um tema único, por isso opto por recortes. Acredito muito na experiência do ao vivo. Tudo está tão digital, tão superficial, que nada supera um encontro ‘cara a cara’. Justamente em função das tecnologias da informação, e do fácil acesso aos meios de produção musical (e mais distribuição e divulgação), defendo que vivemos hoje a época mais importante da história em relação a uma apresentação ao vivo”, reforça Chico, que consegue esgotar com antecedência as poltronas do teatro Oi Futuro Ipanema para o festival. No ano passado, além da pro-


“Nos deparamos com muitas propostas onde fica evidente a ausência da criação artística, restando apenas o aparato tecnológico, a ferramenta” Gutie gramação de shows, foram realizados no espaço Polo de Pensamento Contemporâneo (POP) dois dias de discussões sobre música contemporânea, que contou com a presença de um dos maiores intelectuais da área, David Toop, além de uma festa no Clube La Paz, que rendeu ao Novas Frequências o Prêmio Noite Rio 2013, na categoria melhor festival de até 5.000 pessoas. Toda a grade contou com um público considerado pelo realizador como “excelente”. “Acho que as questões mais pertinentes que cercam o festival hoje em dia, a respeito do público, são: qual é o tamanho do festival? Para onde ele pode crescer? Quantas pessoas iriam aos shows e outras atividades se os espaços aumentassem? Acredito que o Novas Frequências poderá crescer conforme outros

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agentes culturais forem crescendo no Rio e no país. Estou falando de mais bandas, produtores, selos, espaços para shows, revistas de crítica musical etc”, opina. No Recife, o Continuum - Festival de Arte e Tecnologia chega à sua quinta edição neste ano, e traz uma amplitude de linguagens mais consolidada. Com circulação média de seis mil pessoas por edição, desde seu terceiro ano o festival escolhe um tema que rege as cinco escalas de sua programação - instalações, mostra de vídeos, mostra de games, oficinas/ workshops, seminários e sonoridades. “Já tivemos como temas a ‘obsolescência’, ‘a cidade que vive em mim’ e, para esta quinta edição escolhemos a ‘memória’. Sem dúvida, a tecnologia é utilizada para identificar os diferentes estágios do processo civilizatório humano. Paradoxalmente, à medida que avançamos tecnologicamente, com uma velocidade cada vez maior, mais aumenta os riscos de perda da memória coletiva, do conhecimento (que é uma das abordagens do festival), devido às mudanças constantes dos suportes de armazenamento do conhecimento humano”, reflete Antonio Gutierrez (Gutie), curador e idealizador do festival. Para o produtor do Continuum, existe uma tênue fronteira entre o que é arte associada à tecnologia e o que é apenas uma parafernália tecnológica. “Nos deparamos com muitas propostas onde fica


evidente a ausência da criação artística, restando apenas o aparato tecnológico, a ferramenta. Entendemos que a criação artística é mais importante que o suporte tecnológico e, nesse sentido, o Continuum contempla não apenas as propostas hi-tech, mas as low-tech também. O mais importante é o que a obra comunica, uma vez que qualquer suporte é resultado da criação tecnológica do ser humano, e isso vem desde a utilização da pedra lascada até o mais inventivo dos softwares”, diz. A necessidade de improvisação, ou a presença forte da improvisação nesses festivais é como um reflexo da inquietude possibilitada pelas ferramentas digitais. Assim, mais do que uma apresentação, o que alguns músicos contemporâneos estão tentando fazer é aludir o som, desterritorializá-lo da melodia expandindo seus limites de profusão, deslocando a música do seu lugar perene.

PAISAGENS SONORAS CONTEMPORÂNEAS Mas o passeio entre sons e ruídos, evidenciado por artistas que frequentam esses tipos de festivais, é como se fosse um desdobramento de pensamentos como o de Raymond Murray Schafer, que já nos anos 1960 nos alertou para a existência de uma Ecologia Sonora, criada para refletir um tempo considerado por ele

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como o “mais barulhento de todos no mundo ocidental”. O cineasta francês Jacques Tati foi mestre em retratar essas contradições do período pós-revolução industrial em seu hilário Mon Oncle (Meu tio, de 1958), quando a realidade de uma família inserida no contexto da revolução tecnológica é posta em perspectiva, para que o expecta-


dor sentisse na pele - e nos ouvidos - a ruidosa realidade que a modernidade nos trouxe, sob a incumbência de tornar nossas vidas mais fáceis. Foram também a partir dessas manifestações de consumo, com as máquinas, carros e aviões, que os sons do ambiente, do passado e do futuro foram sendo elevados ao plano de objeto de estudo por Schafer: “Para onde vão os sons que desaparecem? Quem os recolhe?”. A partir destes questionamentos, em seu livro A Afinação do Mundo, o autor lançou a ideia de que seríamos responsáveis por “afinar o mundo”. E, de certa forma, é isso que podemos perceber. “O cinema e a televisão incorporaram uma produção sonora bem mais acentuada às sonoridades urbanas, que são cada vez mais altas, volumosas e intensas. A Paisagem Sonora, neste caso, está em franca mutação. De certa forma, o Quintavant tem uma relação indireta com o conceito de Schafer, pois capitalizamos essas novas escutas, dando abertura às audições mais complexas”, comenta Bernardo Oliveira, crítico de música e um dos produtores do Quintavant, evento de free jazz, noise e improvisação que movimenta a cena underground no Rio de Janeiro. Fundado por Pedro Azevedo, proprietário do estúdio Audio Rebel, o Quintavant surgiu há três anos e acontece regularmente na cidade. Começou em uma das salinhas de produção do Audio Rebel, em Botafogo, e transformou o estúdio em um espaço musical para além dos ensaios. Além de Pedro e Bernardo, o evento conta ainda com a produção do técnico de som Renato Godoy, que também é baterista na Chinese Cookie Poets, e do saxofonista do Sobre a Máquina e produtor Alex Zhem. “Encaro o Quintavant como uma espécie de pedagogia do som. Há 10 anos existiam menos pessoas fazendo e curtindo free jazz, noise, drum, e hoje o número é bem maior. Então, pensamos que o nosso público é essa ‘chave’: nem todo mundo vai curtir determinado som”, diz Bernardo, “sem contar que vejo

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muito mais experimentação sonora no funk carioca, por exemplo, do que no noise, que tem muito pastiche, muita imitação. Acho que experimentação é uma questão de se submeter à linguagem de reinvenção. É uma questão de onde se está”. Contudo, é preciso deslocar do pensamento a ideia falha de que os festivais pautados na experimentação sonora, no que hoje se enquadra por vezes de arte e tecnologia, se pretendem meramente “futuristas”, como gosta de explorar a grande mídia, inseridas numa lógica desenvolvimentista de algo promissor e fantástico. Deslocando desse olhar, saímos da condição passiva de expectadores de algo que meramente existe para nos entreter, e passamos a entender melhor o caráter “contemporâneo” dessas produções, com suas nuances críticas e criativas. Os festivais são momentos únicos para a troca de experiências e para a aceitação, negação ou identificação com o fazer do seu tempo. oc

“É preciso deslocar do pensamento a ideia falha de que os festivais pautados na experimentação sonora, no que hoje se enquadra por vezes de arte e tecnologia, se pretendem meramente ‘futuristas’”

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A seção Crítica de Boteco promove a cada encontro um debate sobre temas abordados na revista. Com o tema Paisagem Sonora, essa edição foi gravada no Orbe Coworking, com registro fotográfico e áudio de Hugo Coutinho (Jacaré Vìdeos). O encontro contou com a presença do pesquisador e músico das bandas UÏU e Poruu Marcelo Campello. A mediação foi realizada por Carlos Gomes (Outros Críticos) e Rodrigo Édipo (MI).

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Carlos: Eu separei um trecho de Schafer pra gente começar...

sempre mais do mesmo, você percebe elementos transversais a esse tipo de música que é difundida massivamente; é sempre uma música tonal, metrificada com compasso fixo, ou sei lá, em certo sentido saturada, com a técnica usada no máximo da força. As coisas estão sempre chapadas, o próprio contorno dinâmico da música é chapado, masterizado pra ser ouvido numa rodovia a cem por hora. Ou seja, perde o contorno dinâmico das músicas. São características que homogenizam o repertório, e aí as pessoas não criam uma afetividade com o que é diferente.

Marcelo: É preciso diferenciar o Murray Schafer, de paisagem sonora, do Pierre Schaeffer, que trata de objetos sonoros, que é mais a praia de Thelmo Cristovam (músico e pesquisador em psicoacústica). Rodrigo: A tua praia é o Murray Schafer?

Marcelo: Na verdade não, eu tenho um pouco dos dois...

Carlos: Falo do Murray Schafer, de A afinação do mundo...

Marcelo: O problema de Murray Schafer, muitas críticas já foram feitas sobre a obra dele, mas foi uma obra importantíssima, mesmo com os seus problemas, inconsistências, porque deu forma ao assunto. Não tinha sido abordada ainda dessa forma. Muitos criticam a cientificidade da obra mesmo. Ele toma umas posições que não se verificam em outro contexto que não seja o dele. Ele tem uma postura um pouco higienista, e confunde saturação com poluição; porque saturação também pode ser música, de como se usa a saturação. Se você pega uma música pop, isso já foi absorvido há muito tempo. Mas se você for ver o noise... Esse é o grande perigo de confundir poluição com saturação.

Minha utopia é a de quando as pessoas estarão preparadas pra ouvir uma banda de noise como Hrönir numa praça, numa rua, e perceber que aquilo é música. Que não é poluição. Quando é que a gente vai ter uma escuta coletiva, inúmeras escutas, com o povo preparado para um evento desse tipo? Provavelmente, se essas bandas tocarem hoje na praça vão levar pedra. Isso é uma coisa que está acontecendo agora num movimento de ir pra rua pra testar mesmo. Entrar em contato direto com essas pessoas, que jamais iriam para um teatro. Nesses nichos de música experimental, elas nem ficam sabendo que existe. Isso é uma questão: como os músicos experimentais podem se fazer mais presentes na construção da escuta, e participar da construção da afetividade? Enquanto existe essa música mais difundida pelas mídias, que entra no circuito mercadológico meio institucional, que é

O que está em disputa é isso: quais as bandas que vão participar da construção dessa escuta? Eu fui me inscrever no Festival de Inverno de Garanhuns (FIG) com a banda uïu, e descobri que eu não posso. Porque tem uma lei que só permite se inscrever quem já teve três contratos oficiais de contratantes diferentes, e se for uma pessoa jurídica como proponente, tem que mostrar em cada um dos contratos o valor de cachê de oito mil reais. Qual a banda experimental daqui que consegue preencher esses requisitos? E não é só aqui, isso é uma Lei Federal. Existe uma Lei Federal que age pelo extermínio da diversidade cultural. Rodrigo: Isso parece uma reserva de mercado. Marcelo: “Olha, quem tá fora quer entrar, mas quem tá dentro não sai”. É exatamente isso aí.

Carlos: Pra a gente debater isso que você fala sobre música experimental, Murray Schafer fala que “[...] O desaparecimento dos limites entre a música e os sons ambientais, finalmente, pode revelar-se como o mais contundente aspecto já produzido em toda a música do século XX”. Você acredita nisso? Esse trecho é dentro do contexto do que é música, da carta que ele troca com John Cage, e Cage diz que: “Música é sons, sons à nossa volta, quer estejamos dentro ou fora de salas de concerto”. Marcelo: Você tocou num ponto que é controverso: o que é música? Isso é uma das principais questões debatidas na es20


Rodrigo: Até essa questão de música e não-música já é reflexo desse maniqueísmo. Isso me lembrou uma entrevista que a gente fez na revista MI com a Poruu, contigo, que você falou de um jornalista que chamou a Poruu de antimúsica, algo do tipo.

tética musical, desde meados do século XVIII. Essa discussão não é tão simples quanto pode parecer. Você pode pensar música não necessariamente como sons. Se você pensar a música numa perspectiva formalista, em que o acesso à experiência musical se dá com a contemplação entre as relações formais da música, entre sons, você pode transferir esse formato pra luz. Você pode perceber relações de proporção ou duração com a luz também. Eu acredito que o que é música, é uma questão que foi levantada com a disciplinarização. O desenho da sociedade moderna junto com o capitalismo mesmo. De divisão do trabalho, divisão de domínios: o que é que a área musical vai pesquisar na universidade? Hoje em dia esse modelo analítico, absoluto, que divide as áreas, está ruindo. Agora é a transdisciplinarização. A música vai para outros lados também.

Marcelo: Putz... (risos) Pois é...

Carlos: Como bateu isso pra banda?

Marcelo: Eu achei péssimo isso. Me desiludi bastante com esse jornalista, em especial, não que eu tivesse alguma expectativa, não vou citar nomes, mas... Foi infeliz, embora, às vezes, se você receber um comentário negativo, de quem for esse comentário, pode ser até positivo. Mas não soou legal. A matéria era: “Poruu, uma banda que toca sem música”. Como uma banda toca sem música? Rodrigo: Como é que uma banda poderia tocar sem música?

Carlos: Mas dentro da academia já há essa discussão também?

Marcelo: Ele confundiu. Eu falei que a gente improvisava e que criava na hora com base em esquemas que eram ensaiados. E desde ali a gente não teve mais nenhuma entrada na mídia pernambucana.

Marcelo: Existe. Leonard Meyer chamou isso de conflito entre os formalistas e os expressionistas. Existem outras nomenclaturas pra isso. Ao longo da história ocorreram diversos embates entre essas duas correntes, que se ramificam em diversas outras, se misturam também. Mas é preciso superar os maniqueísmos, nesse debate não é o formalismo ou o expressionismo que vai vencer. Eles se complementam pra dar origem a uma coisa maior num outro plano.

Carlos: Sobre o conceito de marca sonora, dos sons que são característicos de um determinado lugar, você acredita que as pesquisas sobre paisagem sonora têm o papel de preservação dos sons, de alguma forma, como construção de uma memória?

“As pesquisas sobre paisagem sonora têm o papel de preservação dos sons, de alguma forma, como construção de uma memória?” Carlos Gomes

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Marcelo: É um caminho. Existem várias maneiras de se pensar uma ecologia da música. E isso é uma parte. Existem várias pessoas fazendo esse trabalho de registro, inclusive o próprio Schafer faz um histórico, inclusive do período que não há registro, que ele recorre ao texto literário mesmo, mas acho que tudo está ligado. Mas preservar... Tem que se ver o que se quer preservar.

Rodrigo: A internet não veio pra solucionar, de fato, como, por exemplo, há cinco anos a gente poderia estar pensando nessa possibilidade.

Marcelo: Eu acho que ainda está em processo, há alternativas se desenhando, mas é preciso criar uma cultura. O crowdfunding, financiamento colaborativo, tem despontando como uma alternativa interessante. Já tem muita coisa sendo feita através disso, não só em música. Até jornalismo, várias áreas. Mas é preciso fortalecer essa cultura. Se eu for criar um evento de crowdfunding pra minha banda, eu vou demorar anos até que consiga, sobretudo nesse circuito experimental. Mas se a gente tivesse essa cultura já forte, é uma opção. Da forma como as coisas estão, os músicos ainda estão bem distantes do que poderia ser. O que é um Soundcloud? Eu sou a favor de divulgar de graça. Mas eles ganham em cima dos músicos. Isso eu não sou a favor. Se ele ganha, que reparta com os músicos. Se um site está agrupando todos os músicos do mundo, faturando em cima disso e não distribui nada. Então, tem essas questões também.

A discussão sobre paisagem sonora passa por uma questão de dominação mesmo. Quem domina a paisagem sonora, domina o mundo. Hoje em dia é o quê? A indústria automotiva, a construção civil, a indústria bélica. Quem domina a paisagem sonora? Não são os músicos. Podem até serem os músicos da cadeia produtiva industrial que for, mas não é a maioria dos músicos. Nunca vai ter espaço pra todos os músicos nesse modelo de palco, megapalco e apresentação para milhares de pessoas.

Rodrigo: E a internet segue a mesma linha do off-line, digamos assim. As corporações dominaram e têm o mesmo filtro.

Marcelo: Totalmente. Existe todo um design da internet que dificulta o indivíduo a atingir as massas. Por exemplo, o Facebook não te permite convidar todo mundo de uma vez num evento. Você tem que convidar um por um. Não pode ter tantos amigos... Tem uma série de lapsos estruturais que dificultam isso.

Carlos: Mas falando na formação de novos espaços de escuta da cidade, a gente tem o Som na Rural, que é na rua e integrado à paisagem sonora dos locais onde ele está. No sexto andar do Edifício Pernambuco

“A discussão sobre paisagem sonora passa por uma questão de dominação mesmo. Quem domina a paisagem sonora, domina o mundo” Marcelo Campello

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houve um evento em que os músicos tocavam sem amplificadores, e ali se criou um ambiente de silêncio e escuta totalmente diferente. Um terceiro vetor de escuta, atualmente em Pernambuco, e eu gostaria que você comentasse sobre esses espaços, é o “Todos ouvidos”, na Casa do Cachorro Preto, com audição de discos na íntegra. Esses espaços criam relações diferentes com a escuta da música?

e foi muito bem sucedido nesse sentido. Não tenho nada contra a eletricidade, não se trata disso, de romper com a indústria totalmente. Mas retirar camadas mercadológicas do processo criativo e, nas bases da indústria, reinventar e trazer de volta o trabalho artesanal, explorar a sua diversidade, do que não é industrializado, padronizado. Rodrigo: A forma de escuta, por exemplo, da Axé Music, tem quem goste e quem não goste. Ela combina mais com uma festa onde as pessoas estejam tomando cerveja e não dentro de um museu, nessa experiência de arte contemporânea. Será que, por exemplo, um noise, uma banda como a Poruu ou Hrönir, eles também têm essa questão do espaço de contemplação, e uma praça com muita gente não caberia como lugar para eles?

Marcelo: Todas essas formas estão dentro disso que a gente está conversando. A Rural de Roger de Renor, emblematicamente, traduz muito bem a ideia de ocupação, de atingir outras pessoas que de outra forma não iriam até essa música. É preciso driblar os obstáculos que estão aí. A Casa do Cachorro Preto, também, não é todo mundo que para pra ouvir uma música inteira. Acho interessante isso, recolocar a música como objeto de contemplação, que exige de você parar pra ouvir e prestar atenção, afinal, é uma narrativa. Existem tipos de música com funções diferentes.

Marcelo: As músicas têm utilidades diferentes. Na vida das pessoas, em algum momento, ela pode ser interessante de ser ouvida. Novamente, a questão recai sobre a discussão da diversidade. Eu não vejo um problema em si em ouvir axé ou brega, ou o que for, o que existe é quando isso se torna homogenizador, quando não existe espaço para outras coisas. Não é que o axé ou outro estilo contenham uma perversidade em si, mas em função de um contexto histórico. O importante é a gente saber como iremos diversificar as músicas para diversificar a escuta, as subjetividades, o comportamento...

O exemplo do sexto andar é um caminho que estou querendo seguir atualmente. Eletricidade implica uma estrutura maior pra você fazer. Recentemente, eu estava com Paulinho do Amparo maquinando umas ideias de fazer um gerador de energia com bicicleta. É possível também fazer com eletricidade uma coisa mambembe, e sair por aí, pela rua. A música tradicional de rua sempre foi muito forte. Banda de pífanos, maracatu. São manifestações que vieram bem antes da eletricidade e funcionam muito bem na rua.

Rodrigo: E os espaços de ocupação.

Marcelo: Tudo. Quando você diversifica a música, você diversifica a sociedade. Qual o problema disso? É que uma sociedade diversificada não é facilmente catalogada em prateleiras, sondável em estatísticas. O que as empresas hoje fazem com a gente? Existe uma inversão. São as empresas que pegam a gente nas prateleiras. E esse processo é que corre riscos no momento que você diversifica a cultura. As pessoas se tornam inapreensíveis para as estatísticas.

A gente fez uma apresentação da Poruu no final da exposição de Iezu Kaeru, Memória da Pedra, que foi assim, não tinha amplificação, e a banda estava espalhada entre a plateia. Foi um clima muito íntimo que se construiu. Qualquer palavra, conversa, entrava na música. A paisagem sonora estava integrada na música, e a banda fazia incursões no silêncio, propositadamente, pra integrar mesmo a paisagem sonora. Essa experiência foi muito gratificante pra mim. Me marcou profundamente. Inclusive, eu citaria como um marco mesmo, dessas ideias todas. Eu acho que foi um formato de um conceito que se deu ali

Rodrigo: Em relação a esse negócio de ocupação de espaços, eu me lembrei de um episódio que aconteceu comigo ago23


ra, semana passada, na Casa do Cachorro Preto. Eu fui assistir um projeto de Areia, o Ecology Trio, e quando você chega no espaço, um quintal com palco, e já tem uma disposição de cadeiras na frente do palco, e as escadarias do lugar. E aí, qual é a do público? Um show de jazz, chorinho, é sentar e escutar. Só que durante o show tinha uma galera que já estava em outra sintonia, e começou a falar durante o show e gritar. Foi uma coisa bem over em relação ao que estava proposto pelo espaço. Inclusive, Zé Manoel estava do meu lado, e assim, extremamente incomodado, e começou a reclamar da galera. E aí, de repente. (risos) Na Casa do Cachorro tem mato, areia e pedra, né? De repente veio uma rajada de brita nas costas da gente: braaaaaa. E falaram: “A gente quer se levantar, a gente quer dançar sim, a gente quer falar, por que a gente tem que só escutar música?”. Eu me senti na 3ª série, conheço Raoni lá da Casa, me levantei: “Tio Raoni... Teve um cara que jogou pedra na gente” (risos). E aí ele foi lá: “Quem foi?”, “É aquele ali da direita. Atrás do arbusto” (risos).

local, mas as pessoas pararam e ficaram prestando atenção na música.

Rodrigo: É um contraponto mesmo. Tinha uma galera que estava lá pra escutar, e outra não.

Marcelo: A cultura de sala de concerto com a plateia prestando atenção só na música, em silêncio, inclusive, não a ópera, com o drama, mas a música em si, é uma coisa recente. E a nossa cultura é de show, as pessoas estão acostumadas a ir para os shows ligadas às questões que estão em torno. Não especificamente para a música. Estão lá para paquerar, pra sociabilizar, se entreter, se divertir, e ali na Casa do Cachorro ele caiu meio naquele ambiente de sala de concerto e show. Eu, particularmente, não me irrito mais com essas coisas. Eu já me irritei quando era mais novo, hoje em dia, se quiser ouvir ouça, se não quiser também... Carlos: Falando sobre a inclusão do ruído na música, no livro de Schafer há um manifesto de Luigi Russolo, “A arte do ruído”. E ele escreve que: “O som puro com sua pequenez e monotonia, não consegue despertar qualquer sensação”. Você acha que o Ecology Trio exige um tipo de escuta que as pessoas que estavam lá na Casa do Cachorro, até por isso que você falou do ambiente de show, não estavam interessadas, no “som puro”?

Marcelo: Sem noção. (risos).

Rodrigo: É engraçado como o espaço limita a apreciação e não necessariamente todo mundo precisa estar na mesma sintonia. Carlos: Um contraponto a isso é a Música de mobiliário, de Erik Satie, que queria que a música fosse um pano de fundo para as pessoas que estavam circulando pelo

Marcelo: É compreensível esse termo, “som puro”, num manifesto que é do início do século XX, mas o Schafer usa bastante esse termo: “puro, pureza”. O que é puro? É um som virgem? Essa concepção de som

“É engraçado como o espaço limita a apreciação e não necessariamente todo mundo precisa estar na mesma sintonia” Rodrigo Édipo 24


Rodrigo: Como você se enxerga como um músico e cidadão, em relação aos sons da cidade, ecologia sonora. Quais são os problemas percebidos por você?

puro faz parte do passado, de uma época que se pensava que isso existia, mas isso é platonismo. Foi superado. O que Russolo estava dizendo com isso aí, a meu ver, que naquele momento se vivia a crise do tonalismo. A harmonia tradicional tinha sido levada ao limite. Com o cromatismo de Wagner, com outros autores. Eles implodiram o sistema tonal de dentro pra fora, utilizando as próprias ferramentas do tonalismo, rompendo a placenta, assim, levaram a uma crise que depois veio o atonalismo. Então, nessa época, o tonalismo e a harmonia tradicional tinha perdido o efeito. Tentaram compensar essa crise de várias formas. Vieram aquelas orquestras gigantescas com efeitos orquestrais magnânimos, com a tentativa de compensar a perda do impacto que o tonalismo já não tinha. Porque a gente precisa de novidade, sei lá. Talvez eu tenha falado besteira. A gente pode passar dez mil anos sem novidade. Ao menos na nossa cultura existe essa demanda pelo novo. E nessa época a paisagem sonora já não correspondia. Você tinha uma orquestra com instrumentos que vinham sido elaborados desde a paisagem pastoril; e, naquele momento, onde estava a música que era feita com os ruídos das cidades? Ainda não existia. A importância de Russolo foi a de integrar novos sons à paleta do compositor. O que é importantíssimo, é a música criar uma conexão afetiva das pessoas com o som do entorno.

Marcelo: Tu sabe, né? Quer que eu fale dos alarmes. (risos) Rodrigo: Esse é o momento. (risos)

Marcelo: Mais uma vez é uma questão de dominação. O que é que nós temos a ver com um carro que está saindo de uma garagem, eu dentro do meu quarto, o que eu tenho a ver com isso? Com um carro que está sendo roubado, ou dando marcha-ré. Isso se torna uma informação descartável. É nesse momento que esse som se torna poluição. Não é poluição em si, é poluição a partir de um sujeito num contexto. Se eu estou estudando e soa um alarme, que tem as propriedades acústicas que imediatamente o levam para o plano da frente, em perspectiva, isso é Gestalt; o alarme tem os parâmetros sonoros fixos: altura, intensidade, timbre, localização. Isso é diferente de tudo que tem na paisagem sonora, por isso que ele se destaca. No momento em que ele se destaca, te chama a atenção e te distrai do que você estava fazendo. Os alarmes nunca vão deixar de serem alarmes. A gente ressignifica eles, a gente convive, mas ele te tira do estado de sossego pra te alertar de um possível perigo. Só que hoje em dia esse perigo quase nunca existe. Você é envolvido na situação a centena de metros de distância, milhares de vezes por dia. A questão é essa, de dominação. oc

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O compositor de canções Hélder Aragão de Melo pertence ao grupo de artistas que tem na sinestesia a sua fonte de criação. O método é pela fluência das linguagens. As gravações de campo manipuladas como um desenhista de esboços que se sobrepõem e se entrelaçam até um resultado final – aquele a que enchemos a boca para chamar de música –, deram a partida na experiência estética que é a obra em construção que DJ Dolores abandona em cenas, telas, palcos, ruas, pontes, rios e vozes de outrem. Se a “maldição” da assinatura “DJ” o acompanha e confunde aos que o enxergam de longe, a função primordial do disc jokey de selecionar e recombinar as obras alheias, lhe dá a liberdade de questionar os limites da autoria, os impasses da tradição e vanguarda, as defesas de território, bem como dissolver os espaços permitidos para “cada arte” se desenvolver. O cancioneiro de Dolores cheira, saliva, ilumina, arrepia e silva por lugares inimagináveis. São canções como são os sentidos. por Carlos Gomes.

Foto: Pri Buhr/Divulgação 26


entrevista

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No disco Defeito de fabricação (1998), de Tom Zé, ele fala em “estética do plágio”, “[...] que terminou a era do compositor, a era autoral, inaugurando-se a Era do Plagicombinador [...]”. Nesse sentido, você se considera um plagicombinador, e o que pensa a respeito dessa concepção de Tom Zé? Ela é atual, ou mesmo a canção mais tradicional já se utilizava disso? Sempre teve isso, porque o barato de música é que ela é uma criação coletiva. Você não é dono. A partir do momento que você trabalha dentro de algumas regras, escalas, a ideia de tom – que é uma convenção inventada, não é natural dizer que uma coisa está afinada ou desafina, a afinação é mera convenção, alguém que inventou. Então, você já está em um jogo de regras fixas, se tratando de uma canção, de uma música convencional, com harmonia, melodia etc. Quando se navega dentro das regras, obviamente, mais de uma pessoa vai ter a mesma ideia. Não significa, necessariamente, plágio. Acontece, também, da música de gênero ter uma levada ou sequência de acordes que a caracteriza. Se pensarmos no rock ‘n’ roll da década de 60, as músicas eram extremamente parecidas, pois eram mais fechadas do que hoje em dia. Música de gênero estrito, aquele formato de rock que vai de Chuck Berry, Beatles... Há várias músicas que tem a mesma sequência de acordes, a mesma cama harmônica. Você canta uma porrada de músicas sem precisar mudar nada. O que faz a diferença é o jeito que você produz, grava ou interpreta. Na música popular, o intérprete chega a ser mais importante que o compositor, muitas vezes, justamente porque dentro do formato que o compositor pensou a canção, o intérprete pode transformar em outra coisa. Isso é decorrente da cultura do jazz. John Coltrane tocando a música “My favorite things”, que era um tema careta da Broadway. Ele toca música de um jeito completamente diferente que a coloca em um

patamar cult, cool, inteligente. O cara desconstrói toda a música.

Então, como você encara os gêneros musicais? É uma forma de combinar pra transformar em outra coisa ou mesmo manter as características? O gênero musical tem uma importância pra você? Não. Definitivamente, não. Nunca me preocupo, até porque eu não sou exatamente um músico, eu faço programação, que é equivalente a compor partitura, só que eu uso MIDI. Então, vou escrevendo, eu não toco. Saio compondo visualmente, como o cara que escreve partitura. A diferença é que eu tenho o retorno do som na hora, porque é MIDI. Eu componho a partir do timbre, das linhas que vão aparecendo. Se tiver referência a gênero, é inconsciente. Dificilmente eu penso sobre isso. Realmente não me preocupo.

Como é o seu processo de composição, e o que você entende como canção? Meu processo de composição não tem uma regra, mas na maioria das vezes eu começo a partir de algum tipo de som. Pode ser brincando com sample, tecendo a batida ou fazendo uma linha de baixo; mas geralmente começa com algum tipo de experimento. Isso quando estou fazendo algo pra mim. Quando é uma trilha sonora eu já vou, mais ou menos, com um objetivo. Às vezes, primeiro eu escrevo a letra, depois penso na música, ou então vou fazendo a música no contexto em que ela vai ter dentro do filme ou peça. É engraçado, porque acho que nos meus discos de autoria, existe uma busca pelo formato canção, usando eletrônica, programação, mais do que uma música de pista. Um arrependimento muito grande que eu tenho na vida é de ter usado essa abreviação “DJ” (risos). Na verdade, eu me interesso muito mais por canção do que fazer música pra pista. As pessoas ficam um pouco confusas com isso, me cobram: “O disco tem uma música legal, 28


mas não dá pra dançar”. (risos) Não era a prioridade fazer música pra dançar.

O termo “DJ” passou a te acompanhar a partir de quando? Em 1996/97, por aí. Eu tinha que assinar a trilha do filme de Kleber Mendonça Filho, chamado Enjaulado (1997), o primeiro filme dele, e eu não tinha um nome. Na época, tinha um escritório com Hilton Lacerda que se chamava “Dolores e Morales”. Eu roubei o “Dolores” e roubei o “DJ” porque eu já era DJ naquela época. Ficou até hoje essa maldição. Então, às vezes deixam de me chamar pra algum projeto, principalmente o povo mais velho, por causa desse negócio de DJ. (risos) Pensam logo que eu vou chegar no tum-tsi-tum-tsi-tum (risos).

Vi em um documentário uma viagem que você fez à sua terra natal, Propriá, no Sergipe, onde você gravou o som do rio São Francisco, percebendo as mudanças do rio em relação ao que era, há dez anos. Gostaria que você falasse um pouco da memória do som, ligada à cidade, e sobre o que esteve e está ao seu redor hoje. Ok. Só uma coisa, antes que eu esqueça: tem uma parte no documentário (O Sergipe do DJ Dolores (2001), de Philippe Barcinski) em que há uns caras tocando uma onça, que é como uma cuíca bem grande. Aquilo entrou em “Azougue”, que está no disco Aparelhagem (2005), que Maciel Melo canta com Isaar. Tem o sample que veio daquela gravação. (risos) Engraçado, acabou entrando no disco. O rio entrou de alguma forma? Acho que não. Não me lembro, não. Mas o sample de “Azougue”, com toda a certeza. É... O som, você fala de lembrança de música, da canção, ou do som das coisas? O som da cidade. Rapaz, eu presto atenção nas vozes. Sempre achei engraçado a voz amplificada. Desde criança eu ouvia os caras vendendo coisas na rua, na feira, os vendedores de remédio, e sempre gostei muito das vozes amplificadas, distorcidas. Sem estar pura. É a primeira coisa que lembro que me chamava a atenção. Tem uma voz amplificada chegando aqui... Tem uma voz amplificada... É bem louco, porque é como se fosse uma estação de rádio sem 29

“Um arrependimento muito grande que eu tenho na vida é de ter usado essa abreviação ‘DJ’ (risos). Na verdade, eu me interesso muito mais por canção do que fazer música pra pista. As pessoas ficam um pouco confusas com isso”


controle, às vezes, aqui, do vigésimo andar (Rua da Aurora, às margens do Rio Capibaribe), aparecem uns sons que vêm com o vento da cidade, parece até uma coisa mal-assombrada. (risos) Vem uma passeata, depois um pastor gritando, e essas vozes vão se cruzando. É bem engraçado. E tem o som do vento também. Quando venta muito, que as janelas estão fechadas, fica soprando um silvo. Um dia vou gravar esse negócio pra fazer uma música, porque é um ruído bastante peculiar.

Agora, o engraçado é que as primeiras coisas que eu fiz eram só usando som. Então, as coisas de Enjaulado tem muito som gravado na rua. Acho que meu primeiro CD foi uma história meio bizarra assim. Eu tinha feito alguma coisa que agora não me lembro, aí comentei que eu tinha usado o som da cidade. Um cara da Globo se interessou e resolveu fazer uma matéria comigo. A gente foi pras pontes, eu gravei as coisas, depois processei e mostrei. Aí, saiu no Jornal da Globo. No outro dia, umas dez horas da manhã, toca o telefone: “Alô, quem é?”, “É o DJ Dolores?”, “Sim. Sou eu.”, “Aqui é o Liminha.”, “Ãh, que Liminha?”, “Liminha que tocou com os Mutantes”. E eu: “Porra, sem brincadeira, quem é?” (risos) Eu demorei a acreditar. Mas ele tinha ligado pra me chamar pra fazer uma faixa pro CD Marítimo (1998), de Adriana Calcanhotto. Eles pediram uma faixa com o som da cidade. Aí, eu dei uma editada. Fui no Mercado, gravei umas coisas e tal. Tá no Marítimo como se fosse uma vinheta, tem um minuto, uma coisa assim. É engraçado. Depois o povo começou a cobrar. Chegou a virar uma característica do teu trabalho? Não. É só um recurso que eu uso de vez em quando, mas não merece essa atenção toda. É só mais um recurso. Como a tecnologia influencia no teu trabalho, e de que forma você se utiliza dela, se estás sempre buscando novas ferramentas? Eu sempre faço uma analogia. Quando eu pude comprar o meu primeiro 286, que era um computador muito ruim, eu falei: “Esse é meu instrumento. Meu violão, minha bateria.”. Tinha poucos recursos, mas já conseguia fazer muita coisa, porque o computador me permitiu fazer música do jeito que eu sei fazer, que é visualizando e ouvindo. Tentativa de erro e acerto. Um instrumento acústico não permite, você tem que acertar, tem que decorar os acordes, tem que ter habilidade motora. Eu não tenho habilidade motora nenhuma. (risos) Por isso que o computador é, basicamente, o meu instrumento. Sem ele eu não poderia fazer música. Tento isso há tanto tempo que, quando eu me desinteressei em tocar em banda, eu tocava bateria, comecei a trabalhar com loops de fita K7, com texturas, batidas, 30

Afora as inúmeras coletâneas musicais e trilhas sonoras, a discografia oficial de DJ Dolores é composta pelos álbuns Contraditório? (2002), Aparelhagem (2005), 1 real (2008) e Banda Sonora (2013), que reúne músicas de trilhas sonoras compostas por Dolores nos últimos 15 anos.


pra você não haveria uma guerra de volumes, mas apenas um contexto que mudou? São contextos que estão se transformando por questões que eu te falei: do jeito que as pessoas estão ouvindo música hoje, por causa de um gosto que foi formado a partir daí. Como se fala de mp3 e vinil. Eu sou um colecionador de vinil, sempre fui, ainda hoje compro bastante. Eu gosto do som do vinil. Mas a verdade é que a maior parte da música que eu ouço é mp3, porque ouço muita música andando, correndo, viajando, então, ouço com headphone o mp3. Acho que são só dois padrões diferentes. Não consigo entender porque as pessoas brigam, dizendo: “Esse é melhor do que aquilo”. São totalmente diferentes. Formas diferentes de ouvir música. Eu gosto dos dois jeitos.

e aí sincronizava com toca-fitas diferentes, com aquele ghetto blaster enormes, sabe? Às vezes botava quatro saídas diferentes e ficava mixando as fitas K7. Então, intuitivamente, isso já era um sample, muito tosco e primitivo, mas era o princípio de sample. Acho que intuitivamente eu já queria isso, mesmo que o instrumento ainda não tivesse chegado às minhas mãos. Eu já sabia que queria trabalhar daquele jeito.

Na revista Sound on Sound de março, o tema abordado é sobre a “guerra de volumes”, em que fala sobre as músicas produzidas ultimamente, em que o volume tem sido ampliado ao máximo. Hoje já estão desenvolvendo mecanismos, como no iTunes, para que automaticamente se normalize os volumes das músicas. Já que você trabalha a sua própria mixagem e masterização, qual a tua opinião sobre esse aspecto dos discos lançados atualmente? É a compressão. O cara coloca muita compressão e dá essa sensação de volume muito alto. Mas isso que você falou tem a ver porque as pessoas têm ouvido mais mp3, então, quando você atocha compressão, ele fica superpresente; e as pessoas ouvem muito em headphone, por isso, esse tipo de som está sendo masterizado pra quem ouve nesse suporte. É uma concepção que tem a ver com a demanda do público, com o tipo de plataforma que as pessoas estão usando. Agora, por outro lado, essa demanda acaba virando estética, também. Tem muita música que é esteticamente pensada pra ter compressão. Eu não consigo pensar num estilo como track, por exemplo, sem uma compressão foderosa, porque é música feita pra sistema de som, então tem que vir bombando, com as frequências bem-definidas. São transformações que o purista fala: “Você vai perder a dinâmica”. Mas na dance music a dinâmica é feita na mixagem e como quando se trabalha com instrumento acústico. Então,

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Os discos Contraditório? e Aparelhagem são bem diferentes, mas vejo os dois como complementares no início de tua trajetória. Queria que você falasse da formação dos dois, em comparação. O Santa Massa (Contraditório?) é um disco bastante tosco porque eu trabalhei num PC, acho que nem tinha monitor na época, eu mixava com uns programas bem fuleros. Acho que foi a primeira experiência com banda. Gravando, aprendendo no erro. Mas acho que é um disco tão criativo que acabou tendo uma resposta superbacana. A gente ganhou um monte de prêmio, conseguimos fazer turnês incríveis. Foi a consagração de um projeto que começou em 1999. Então, eu demorei um tempo pra montar a configuração da banda, a desenvolver o conceito – é uma coisa muito importante você conceituar seu trabalho, porque cria uma identidade forte, não sendo uma coisa feita “na doida”. A Santa Massa é a consagração desses quatro anos de trabalho. Curiosamente, a Santa Massa mesmo não toca na maior parte das faixas de Contraditório?. (risos) Eles tocam em uma ou outra, principalmente as


que têm voz, e tem um monte de participação especial. Tem Pio Lobato, do Pará, tem Lúcio Maia, Pupilo. Eu queria muito, na época, que Chimbinha participasse do disco. Cheguei a correr atrás, mas foi justamente na época em que o Calypso explodiu aqui em Recife. Os caras eram muito ocupados, se tornou impossível. O segundo disco, Aparelhagem, já não é com a Santa Massa, mas com outra banda, e a ênfase estava nos metais, porque, na época, eu estava ouvindo muito música balcânica. A gente tem participação da Orquestra Popular da Bomba do Hemetério inteira, tocando em mais de uma faixa. Tem um músico de Nova Iorque que toca klezmer, uma música judaica, que também participa em duas faixas. Tem o Fernando Catatau. O conceito permanece, mas a sonoridade muda, porque também eu já estava mais habilidoso como produtor. Então, eu já estava mexendo mais na dinâmica dos efeitos, nos cortes de frequências, essas coisas. Basicamente, são dois discos bem parecidos porque foram meio que “cuspidos” por mim. Não podia ser diferente. Na relação entre música e cinema, Pernambuco tem um mercado muito ligado à lei de incentivo ainda, já que as iniciativas privadas de patrocínio são quase nulas por aqui. O Estado tem assumido o papel de incentivar a música, o cinema e outras artes. Mas houve um “descolamento” entre cinema e música, no sentido de que o cinema conseguiu um espaço maior com os editais de cultura, enquanto a música, por falta de organização, ficou pra trás. Só que o cinema tem se utilizado muito da música, e é bastante natural isso. Como você trabalha nessas duas linguagens, gostaria que você falasse desses dois mercados, como eles se integram em Pernambuco. O povo do cinema foi mais articulado, né? Se juntou e conseguiu. Mostrou serviço também através dos editais, começa-

ram a aparecer, a ganhar uma cara. Acho que o pessoal de música, de fato, se acomodou, acostumado com essa coisa de fazer show aberto, de depender muito do Estado; e se acomodou um pouco com essa herança do Manguebeat. A música tem avançado muito pouco, no estado, nos últimos anos, no sentido de ganhar realmente uma visibilidade nacional e internacional, até. O pessoal se acomodou com esta ideia de que Recife é um celeiro de música. (risos) Lança não-sei-quantas e centenas de CDs a cada ano. Quando você vai ver, a qualidade dos CDs, em termos técnicos e criativos, você fala: “Não. Peraí. É menos”. Porque fazer música, hoje em dia, é muito fácil. Qualquer um lança um CD. Além de tudo, os músicos são superdesorganizados. Até porque são muitos, tem muita gente que sonha em ser músico, mas não é de fato profissional, não vive disso. Tem um desejo. No mundo da música tem esse espaço. No mundo do cinema você tem que ser altamente profissional. Não tem espaço pra amador. Amador cai fora, porque é muito mais grana e gente envolvida. Mas, de fato, por várias razões, pela tradição e por um potencial ao experimentalismo, talvez devesse ter um edital próprio de música aqui. Mas um edital que fosse muito mais claro e especializado. Não pode ser um edital que financie... Se você quer fazer uma música bem convencional e comercial, pra mim não faz sentido você colocar dinheiro público nisso. Faça por você mesmo, se integre ao mercado, já que essa é a sua opção. Acho que um edital de música tinha que cuidar da tradição e investir em projetos muito experimentais, que não são comerciais e apresentam uma perspectiva estética nova para aquela forma de arte. As trilhas sonoras que você compõe – até pela concepção que você tem delas como canção – conseguem ter uma vida fora dos filmes? O disco Banda Sonora ressalta 32


isso? Acho que sim. Tinha muito material. Dava pra fazer uns três discos. Mas eu saquei as que são mais fáceis de sobreviver fora do ambiente do filme. Tem umas coisas bem legais e experimentais, que eu gosto, que eu tirei porque como eram muito concebidas para uma cena, quando eu destacava da cena, achava que ela perdia bastante do sentido. Poderia dar um exemplo? Antes de fechar o disco, eu estava fazendo um filme chamado Periscópio, de Kiko Goifman. Eu fiz com Yuri e tinha umas coisas de rock industrial eletrônico, que eu gostava muito. Bem pesado, com muita presença de som, muito barulho. Mas quando eu tirava da cena, ficava faltando a imagem. Sem a imagem parece meio bobo ou talvez meio chato.

A gente ia fazer agora, no verão, e acabamos adiando pra novembro porque o disco só vai ser lançado em setembro. Pela primeira vez, o disco foi lançado primeiro no Brasil, com a Assustado Discos, e depois na Europa, mas sempre acontecia ao contrário. Mas como esse disco surgiu do financiamento aqui no Brasil, um patrocínio da Natura, foi lançado primeiro aqui. Eu também estou trabalhando no Frevotron, com o Maestro Spok e Yuri Queiroga, que fizeram uma coisa totalmente diferente, é mais música instrumental. A gente está pensando no mercado de ambient jazz, e tem umas coisas industriais também, pra pista. É mais doidão. Música experimental mesmo, mais próximo do jazz. Inclusive com a coisa da eletrônica. Com programação que é quebrada, que não necessariamente serve pra dançar. É muito chato você antecipar a intenção. Isso acontece quando eu estou trabalhando em função de um roteiro de um filme. Mas quando vou fazer minhas coisas, deixo a música me levar, deixo a gente descobrir o que vai ser enquanto está fazendo, porque é um dos grandes baratos trabalhar com música, você se descobrindo enquanto está fazendo. oc

Foto: Pri Buhr/Divulgação

A sua trajetória é muito ligada ao mercado exterior. Sobretudo pela presença dos selos estrangeiros. Você excursionará nesse ano com o Banda Sonora ou como DJ Dolores? Estou sempre fazendo minha turnê sozinho, como DJ, tocando música, festa, mixando e tal. Nsse ano vai ter a turnê da Banda Sonora porque o disco está sendo lançado na Inglaterra pelo selo Far Out, que lança Joyce, Marcos Vale.

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opini達o

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Para que o ar corra livre por Karol Pacheco

Nas grandes cidades do mundo, o espaço privado segue em plena expansão enquanto o espaço público se reduz. Esse último é, cada vez mais, alvo das estratégias de reabilitação e gentrificação, ambas símbolos de uma política de “limpeza social”. Antes pontos de encontro e de festa, os espaços públicos tornam-se meramente locais de passagem. Apesar disso, a rua ainda se mantém como um grande palco onde cada manifestação artística é, por si só, um gesto político. Desde a Ilha do Massangano, no Sertão pernambucano, com o Samba de Véio; passando pela Zona da Mata, em Tracunhaém, onde se brincam as Sambadas de Baé; até chegar às periferias do Grande Recife, diferentes sambadas de coco proliferam-se pelas ruas de Pernambuco, compondo um cenário de resistência cultural único.

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Vinculada a um terreiro de matriz africana, a Sambada do Coco de Umbigada ocorre no primeiro sábado de cada mês, no Beco da Macaíba, bairro do Guadalupe, Olinda. A Ialorixá do terreiro, Mãe Beth de Oxum, conta que fazer uma brincadeira na rua tem suas especificidades: “Realizamos a Sambada, ininterruptamente, há 17 anos. O tempo passa, mas a intolerância com os brinquedos de rua ainda é grande. Não existe lei para ouvir um tambor ancestral tocar. Intolerância se reverte com muita pedagogia, paciência e espiritualidade.” As sambadas, sejam elas de coco, maracatu ou cavalo marinho, têm, de fato, o espírito democrático de um espaço público. “Não é na Arena Pernambuco ou no Chevrolet Hall! As sambadas se materializam no quintal, depois passam para porta de casa e então tomam a rua, com todo o seu axé”, defende Mãe Beth.


A rua, sendo imprevisível, incita o improviso. Na Batalha da Escadaria, os MCs esgrimam suas rimas em duelos cravados no cruzamento da esquina da Avenida Conde da Boa Vista com a Rua do Hospício, uma das mais importantes artérias do Centro do Recife. Dentre o caos da cidade, o embate acontece ali há quatro anos, na primeira sexta-feira de cada mês. O fundador e organizador do evento, Luiz Carlos Ferrer, conhecido como Du, explica o principal motivo da escolha: “A intenção é levar uma cultura, antes marginalizada, para dentro do cotidiano da cidade. Ali é um lugar que dá para todo mundo chegar de ônibus. Tem gente de Paudalho, Paulista, Nazaré (da Mata)... é o nosso ponto de encontro, um celeiro, faça sol ou faça lua. A coisa é grátis, nosso holofote é a rua”, dispara. Nessa paisagem sonora, os ruídos das partidas e chegadas dos ônibus intercalam-se com os versos lançados. “Fiquei na rua trabalhando até a hora de voltar à rua para fazer a festa”, introduz a nossa conversa Liana Cirne Lins. Ela é professora da Faculdade de Direito do Recife/ UFPE e ativista do grupo Direitos Urbanos, que faz do direito à cidade a sua causa. De acordo com a advogada, o Recife tornou-se uma mercadoria de elite. “Pobres não podem fruir a cidade, pois até mesmo as festas populares têm sofrido com a censura. Os maracatus sofrem perseguição policial; a Festa da Lavadeira é desalojada por duas vezes seguidas em apenas três anos; a Praça do Diário, quartel general do frevo, é privatizada pela Rede Globo sob os auspícios (ou hospício) do poder público para que os criados a Danoninho da cidade possam brincar seu Carnaval 41


entre muros, separados da mundiça”, conclui, comentando ainda o episódio da casa-camarote Carvalheira na Ladeira, no Carnaval de Olinda deste ano, onde o evento prejudicou o fluxo de brincantes em ladeira no Bairro do Carmo, Sítio Histórico. “Esses são exemplos não só de ilegalidade na violação do espaço público, mas de verdadeira imoralidade”, contesta. Uma das iniciativas independentes de ocupação de espaço público mais midiáticas, com a qual também está envolvido o grupo Direitos Urbanos, é o Som na Rural (SNR). A ocupação já “sofreu a repressão da Secretaria de (i) Mobilidade e Controle (seletivo) Urbano”, como ironiza Liana. Esse encontro musical tem servido também para fomentar discussões em torno da ocupação dos espaços públicos, chegando inclusive a levar duas mil pessoas à desértica Rua da Aurora, área central da cidade. Além disso, o veículo “autoemotivo” do SNR aportou nas paisagens sonoras de comunidades como Ilha de Deus e Coque, no Recife, e também no bairro do Carmo, em Olinda. A itinerância do Som na Rural propicia, a cada ocupação, sons e sonoridades diferentes. O técnico de áudio responsável, Adriano Duprat Lemos, explica: “música e ruído, apesar de se propagarem da mesma forma no ar, possuem ordenações harmônicas diferentes. Portanto, mesmo estando presentes, os dois elementos em um

“O Som na Rural (...) tem servido também para fomentar discussões em torno da ocupação dos espaços públicos, chegando inclusive a levar duas mil pessoas à desértica Rua da Aurora” mesmo ambiente, é possível captar ambos de forma clara e praticamente independente.” Liana esclarece que a música é capaz de dar vida aos lugares onde ela é executada. “Atrai pessoas. Alegra, faz refletir, sensibiliza. Durante a ditadura, a música era uma forma de contestação e denúncia que conseguia burlar a censura. Cinquenta anos depois do golpe, a música é chamada de volta a exercer esse seu papel político na luta pela democratização do espaço público.” É o ar que corre na rua, com seus sopros sonoros envolventes, que articula sentidos individuais e coletivos de construção de identidades. oc 42


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A composição do invisível por André Dib

Quando o cinema sonoro surgiu, reações negativas foram desprezadas como mero saudosismo. Alguns poucos defensores da era muda seguiram fazendo filmes silenciosos. Um deles foi Charles Chaplin. Em 1972 o filósofo Evaldo Coutinho (fiel admirador de Chaplin) leva a discussão no nível ontológico no livro A imagem autônoma (1996). Para ele, o som impediu o cinema de atingir sua maturidade artística: “(...) a inventiva técnica não deve ser a propulsora da criatividade artística”. Em A imagem e seus labirintos (2014), o professor Paulo Cunha contextualiza o pensamento de Coutinho: “se o som é a matéria expressiva autônoma da música, o cinema devia desejar o preto & branco”. No entanto, antes mesmo de ser lançado O cantor de Jazz (1927), marco zero do cinema sonoro, o áudio se mostrou aliado

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de primeira hora na construção do sentido no cinema. Isso porque, se pensados em conjunto, áudio e vídeo formam uma imagem mental (ou sentimental) que a informação visual isolada não pode atingir. Não é trabalho fácil. Como diz R. Murray Schafer no livro A afinação do mundo, formular a paisagem sonora é mais complexo do que a representação visual, que pode ser definida instantaneamente, em uma fotografia ou movimento de câmera. A produção pernambucana contemporânea tem se destacado nesse panorama, a ponto de, na última edição do festival carioca CineMúsica (dedicado a valorizar


a expressão sonora em filmes) ter exibido seis títulos: Eles voltam, de Marcelo Lordello, A onda traz, o vento leva, de Gabriel Mascaro, Boa Sorte, Meu Amor, de Daniel Aragão, Jardim Atlântico, de Jura Capela, Era uma vez eu, Verônica, de Marcelo Gomes, e O Som ao Redor, de Kleber Mendonça Filho, sendo os dois últimos, os principais premiados. Desenhado por Kleber Mendonça Filho e Pablo Lamar, sobre som direto de Nicolas Hallet e Simone Dourado e música de Helder Aragão (DJ Dolores), o som de O Som ao Redor cumpre uma tarefa incomum no cinema brasileiro, que continua desperdiçando a banda sonora em funções redundantes, sublinhadoras, quando não contraditórias. Como o próprio Kleber já disse: “a maior parte dos filmes usa o som só para não ficar mudo. Isso é um desperdício, pois se perde a oportunidade de fazer outro filme”. Seu recente lançamento em Blu-Ray é uma boa oportunidade de conferir um trabalho em que os elementos sonoros e imagéticos se manifestam de forma orgânica, tornando o filme algo próximo de uma partitura que evoca emoções e sensações, conferindo ritmo, tons e sentidos a uma obra que estuda o medo, a tensão e a paranoia em ambientes urbanos. Formada por música, sons naturais e artificiais (que representam emoções ou estados de espírito), a trilha de áudio de O som ao redor

“A maior parte dos filmes usa o som só para não ficar mudo. Isso é um desperdício, pois se perde a oportunidade de fazer outro filme” Kleber Mendonça Filho

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é utilizada para compor campo e extracampo, um universo maior do que mostram as imagens. Se na mise-en-scène (aquilo que está cena, no campo do visível), o filme se dedica a enquadrar câmeras de vigilância, muros, paredes e grades em uma cidade cada vez mais vertical, a banda sonora completa o quadro exterior, trazendo o zumbido humano, alarmes e motores para a intimidade burguesa. Paredes, grades e muros levam a certa ilusão de controle ou segurança, mas os sons da urbe não reconhecem propriedade privada. Assim o é, por exemplo, com a dona de casa desafiada pelos latidos do cachorro do vizinho. Como se sabe, o Recife tem desenvolvido uma arquitetura nada agradável. Como chegamos nisso? Em seu prelúdio, o filme busca a


resposta no passado, ao mostrar fotos antigas de usinas, escravos e senhores de engenho, montagem pontuada por uma percussão nervosa, consagrada no cinema em temas de perseguição e vingança. Particularmente interessado no assunto, Kleber afirma que a má arquitetura pode incomodar, mas é pródiga em possibilidades cinematográficas; o mesmo pode ser dito com relação aos sons invasivos da cidade, que não distinguem classe social ou propriedade privada. Isso está evidente já na primeira situação mostrada pelo filme, em que crianças brincam em condomínio classe média. O som principal é o de algazarra; em segundo plano, uma serra elétrica faz barulho crescente, até determinar o fim do plano-sequência. Barulho é poder. Enquanto ruídos do trânsito, sirenes e outros sons cercam personagens como fantasmas no segundo plano, carrinhos de CD pirata e fogos de ar-

tifício disputam o protagonismo, como uma briga territorial que reflete o conflito de classes. Outra boa imagem formada pelo amálgama visual e sonoro é a do banho da cachoeira. Nela é mostrado o patriarca, seu neto e a namorada. Ouvimos o som intenso da água, que simbolicamente remete a um movimento incontrolável, à origem da vida. Repentinamente, a água se torna vermelha, e os personagens, lavados por uma torrente de sangue. Vivemos em uma cultura muito apegada à imagem e à palavra, que relega o som a um papel secundário. No entanto, de tão presentes e opressoras, manifestações sonoras indesejáveis se tornaram imperceptíveis, e nossa audição, amortecida. Diz Schafer: “Poluição sonora ocorre quando o homem não ouve cuidadosamente. Ruídos são sons que aprendemos a ignorar”. Filmes como O Som ao Redor trazem para consciência essa gama de informações. Como o fez ao longo do século 20, cabe ao cinema a função social de estimular os sentidos para que possamos compreender – e quem sabe superar – a realidade. oc

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hugo linns

A música para Hugo Linns é um estado de vigília. Permanentemente um solitário colhendo as influências que o cercam e reconstruindo uma tradição que não é autorreferente, mas contaminada pelas coisas do mundo. O silêncio dos mais velhos que, mesmo negado, incomoda, mas estimula as experiências para com a música, não dá aos mestres o direito de apontar os caminhos a se seguir - os sons da viola não são rupturas, mas desvios de rota, ou mais, abertura de estradas com as próprias mãos e unhas. “O que é um artista se ele ficar preso há um tempo?”, reflete o músico. Ciente do quanto criar é estrada e solidão, Linns se dedica também a formar laços afetivos com a música alheia, participando como produtor ou músico em projetos tão distintos quanto o trio instrumental Wassab, e nas parcerias com Renata Rosa, Fadas Magrinhas, Alessandra Leão, Caçapa, entre tantos outros. Como marca fundamental em sua curta trajetória, é escolhido pela viola; ao ouvila, percebemos que a referência quando inspiradora é tomada por interferências das mais diversas. Empunhar violas como quem reconstrói o tempo e a música. por Carlos Gomes.

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entrevista

Foto: Olga Wanderley/Divulgação 49


estudava lá e o que você ouvia fora do conservatório que tem influência na tua música? Eu sempre gostei de rock. A diferença é que o conservatório me levou ao aprendizado muito formal, parecia que o universo popular não existia – eu não sei agora. Tanto que a sala do pessoal que dava aula de violão e guitarra era escondida. Pra pessoa ir, tinha que se embrenhar. Era numa parte velha. Numa parte antiga, lá pra trás... Por um lado foi bom, porque eu pude ver outros estilos que na minha família nunca eram vistos: música clássica, música mais formal mesmo, que minha família não tinha hábito de escutar. Paralelo a isso, eu continuava a escutar meu rock ‘n’ roll, alguns MPBs – esses apareceram um pouco mais tarde, quando eu já tinha uma certa capacidade de construir e observar a música de forma diferente.

Qual a tua memória dos primeiros contatos com instrumentos musicais na infância, que te aguçaram a curiosidade? O engraçado é que minha mãe me mostrou fotos, eu com três, quatro anos de idade, com instrumento, só que eu não lembro. Ela dizia que eu sempre gostei de som. Mas a minha primeira impressão musical mesmo foi com nove anos ouvindo uma pessoa tocando piano. De ter um certo impacto, de você parar e olhar. E nessa idade eu disse pra minha mãe que queria estudar piano. Eu estudei dois anos de modo particular, mas na adolescência eu me desinteressei. Quando eu tinha catorze anos eu vi alguém tocando violão e aí voltei a me interessar. O meu primeiro professor de violão foi Lito Viana, que tocava com Isaar. Numa escola em Boa Viagem. Eu cheguei lá sem saber de nada, e ele, macaco velho já. Eu chegava com umas músicas da Legião Urbana, e ele me passava.

Isso criava algum tipo de tensão, fazia você questionar o processo de ensino do conservatório? Eu sempre questionei. Engraçado tu perguntar isso, porque eu sempre fui inquieto com isso da educação. Tanto que eu fiz três cursos superiores, em nenhum eu me formei. Se fosse contar o tempo que eu estudei, acho que eu já tinha doutorado. Sempre cheguei perto de me formar e saí. No conservatório, todo semestre, eu fazia questão de trocar de professor de violão. Lá, eu estudei violão e baixo. Todo semestre eu trocava de professor porque eu queria ver como a outra pessoa ensinava, como era a didática, como ele via a música. Sempre tive isso. O pessoal dizia: “Você não vai aprender nada”. Eu aprendo mais assim, trocando, vendo o que cada um pode dar. Sempre foi assim, desde os 15, 16 anos de idade.

Eu tinha um amigo que ia fazer um teste pra entrar no Conservatório Pernambuco, e me chamou pra ir, mas eu não tinha interesse em estudar uma coisa formal mesmo. Mas quando foi no dia, ele foi lá em casa me buscar pra fazer o teste. Nós dois passamos, mas eu descobri que era necessário seis meses de teoria para poder pegarmos no instrumento. Não sei se ainda é assim. Foi uma decepção pra mim. Mas eu fiquei estudando, estudando, e acabei que fiquei sete anos, e aquele meu amigo ficou um ano, deixou a música e se formou no ITA. Mas sempre tinha uma questão na minha família, de que não tínhamos um artista profissional na família. O meu avô era um ator amador. Pedro Mota, da TV Jornal, mas trabalhava como pintor. E nunca ninguém assumiu na vida artística, eu não tinha nem um tipo de referência. A música sempre foi encarada por mim e pelos outros como um hobby. Pra espairecer a cabeça.

Nesse momento de troca, como você chegou na viola? A viola, na verdade, chegou pra mim, como todo violeiro gosta de dizer; a lenda da viola é essa: o cara não chega na viola, a viola é que chega pra ele.

Qual a relação entre o que você

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Engraçado, isso aconteceu comigo. Eu estava no conservatório, tocava em um grupo de choro de Bozó 7 cordas, um dos melhores professores de Pernambuco – se não, o melhor –; um dia, ele chegou no ensaio e disse: “Eu quero colocar uma viola de dez cordas.” Eu pensei: “Vai chamar alguém pra tocar a viola”. Aí, todo mundo: “Beleza”. Tinha eu e outro menino que tocava violão. Quando foi no outro ensaio, ele chegou pra mim, com a viola na mão – a viola era de Tony Fuscão, baixista já falecido; também foi meu professor de baixo – e disse: “Eu quero que você toque essa viola.”. Nem olhou pro outro! Mas você tinha tocado algo de dez cordas? Não. Nunca tinha tocado nada! Sempre violão de nylon, nem de aço, porque as cordas da viola são de aço, mais tensa, mais difícil de tocar, precisa de mais pressão. Aí, pronto. Eu fiquei com essa viola dele durante três anos. Quando eu tive que devolver, quase que choro.

Fita Branca (2011) e Vermelhas Nuvens (2013) são os álbuns em que o músico usa a viola como instrumento principal e com o qual vem realizando shows com a formação: Hugo Linns (violas dinâmicas), Eduardo Buarque (viola de dez cordas e violão tenor), Rogério Victor (baixo acústico) e Carlos Amarelo (percussão). Sonoras (2011) e Wassab (2010), o segundo com Juliano Holanda e Gilú Amaral, completam a sua discografia.

Nesses três anos, enquanto tivesse contato com a viola, qual era a tua relação com outros músicos que também tocavam viola? Nessa época, há dezesseis e dezoito anos, não tinha muita gente da minha idade que tocava viola. Em Recife, não conhecia nenhum outro violeiro. Depois que eu entrei no curso de Licenciatura em Música, eu conheci Caçapa. Foi quando eu conheci um violeiro da minha idade e a amizade da gente começou, em 2000 ou 2001. Eu conhecia os grandes violeiros de nome. Em 1997, aquele CD Violeiros do Brasil, de Myriam Taubkin, caiu na minha mão; foi quando eu conheci o universo da viola e Adelmo Arcoverde. A primeira vez que ouvi Adelmo foi nesse disco. Desses violeiros, quais te influenciaram diretamente pra o teu primeiro disco, o Fita Branca? Fita Branca tem mais influência de Adelmo, sempre ele, por causa da história da viola nordestina, da pegada do baião, mas na melodia, acho que Paulo Freire, talvez um pouco de Ivan Vilela. Eu toquei com ele, que me disse que gostava muito da minha música. Quando a gente tocou, fomos para a Bélgica, foi muito bom. Acho que esses três que influenciaram minha música nesse disco, que é uma coisa mais crua. Na época eu estava querendo fazer um disco de viola mais ligado a uma sonoridade crua mesmo. Como foi que a tecnologia entrou na tua música, com o uso de pedais na viola? Quando eu comecei a ter um pouco mais de sobra, em 2008, justamente quando eu estava gravando 51


Fita Branca, eu comecei a comprar pedais, não com o intuito de usar na viola, mas sim de transformar os sons – eu tocava violão, guitarra – de ter outras texturas, e, acidentalmente, em alguma hora eu pensei em colocar os pedais pra ver o que ia acontecer. Foi acidentalmente mesmo, na experiência, ou chegasse a conversar com alguém? Nunca conversei. Engraçado, que minha carreira como músico tem muito da solidão. Uma coisa muito de compor e experimentar sozinho. Nunca fui de discutir música. Até na hora em que estou compondo com outras pessoas, acho que o importante é aceitar a liberdade de expressão do outro. Nunca fui muito de dizer: “Vamos experimentar igual àquele cara que faz aquilo”. Cada um tem o seu caminho. Se estou tocando com outra pessoa, eu respeito o que ela está fazendo, senão vou tocar com outra pessoa.

O que você conquistou para o teu som com o uso dos pedais? Pra mim, abriu-se um universo sonoro, que poderia ser com qualquer outro instrumento: usar pedal com piano, percussão; mas aquilo me causou uma estranheza, uma curiosidade de compor transformando o som. Mas sempre sem descaracterizar o som do instrumento, sem transformar ele em outra coisa. Trabalhasse muito para não descaracterizar o som? A tendência, quando você usa pedal, é querer saturar, colocar o som do pedal de verdade. Você recebeu crítica de outros violeiros ou de professores quando ouviram? Às vezes, a maior crítica é o silêncio, né? (risos) Quando você manda pra alguém... Mas eu já recebi elogios. Ivan Vilela já me escreveu, gostando muito do meu trabalho, Paulo Freire também, Adelmo. Eu tive a sorte de pouco tempo depois que eu comecei a gravar o Fita Branca, a tocar com eles. Eu tocava com o grupo de Adelmo, e teve um lançamento do DVD Violeiros do

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Foto: Olga Wanderley/Divulgação


Brasil. A gente foi pro auditório do Ibirapuera, aí eu conheci todos os grandes violeiros, e depois eu toquei com eles.

em vários cantos do mundo tipos de escalas diferentes que caracterizam aquela cultura. Então, eu uso. Pra mim, não é uma coisa que eu me apropriei. Quando eu vou compor, a sétima é menor, a quarta é aumentada. Vem na cabeça mesmo. A melodia é assim. Acho que isso vem da tradição, a base. O moderno vem justamente da capacidade de mesclar. O que é um artista se ele ficar preso há um tempo? Se eu ficar preso ao tradicional, beleza, você vai construir coisas bonitas, mas vai ficar catalogado naquele espaço; mas se você entra no seu tempo – meu tempo que estou agora, é de juntar várias informações que adquiri estudando, ouvindo, viajando, vendo shows e outras pessoas tocarem; juntar tudo na minha música. Nisso, entraram os pedais. Inclusive bandas que não tem nada a ver com o universo da viola. Justamente. Ano passado ou retrasado, fui tocar na Noruega com Renata Rosa e vi da primeira fila Anoushka Shankar, filha de Ravi Shankar, eu fiquei louco. Já vi grupos da índias... Isso tudo eu assimilo e está na minha música.

Você considera o Fita Branca como um disco de aprendizado e Vermelhas Nuvens com uma assinatura mais presente de “Hugo Linns”? Não sei se “aprendizado”. Já tinha uma coisa da minha música pra viola. Era algo bem concreto, o Fita Branca; quando eu o concebi e gravei. Mas o Vermelhas Nuvens vem pra me colocar como um compositor, com a viola e com a experimentação. Um compositor que não usa o som cru, mas não é completamente experimental. É como Passoca, um músico violeiro caipira que canta, disse: “Minha música nem é caipira, nem MPB. Eu fico no meio-termo. Nem sou chamado pra tocar com caipiras nem com a galera da MPB”. É mais ou menos isso a minha viola. Mas o silêncio que tu fala... Não me agride de forma nenhuma. Sou feito Caçapa, que diz que o importante não é o agora, mas o depois. O importante pra você, agora, é fazer a música que quer fazer. Porque, às vezes, você está fazendo uma coisa que algumas pessoas não entendem. Não que você esteja na frente ou seja vanguarda, nada disso. Mas a sua música, naquele momento, não é pra galera que está acostumado com outra coisa. Se ficar ouvindo, ouvindo, vai chegar uma hora que vai sentir, vai acostumar. Qual a sua definição entre tradição e modernidade? Por que usar o pedal não significa, necessariamente, ser moderno. Na minha música, tradição vem da forma de tocar a viola, porque a viola se toca com baiões – aqui, no Nordeste, principalmente, tem os pedais que seguram o ritmo para construir a melodia em cima. A tradição vem da construção da melodia, que usa muito mixolídio, que é um tipo de escala nordestina bem característica. Se encontra

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Uma das características da tradição é o de passar o conhecimento de uma geração pra outra... No meu caso, foi observando, ninguém passou nada da viola pra mim. Sempre fui autodidata na viola. Caçapa lançou o disco dele, Elefantes na rua nova (2011), e no site dele é possível ver vários vídeos em que ele vai explicando cada instrumento, contextualizando; no seu show, você também tem a preocupação de falar da viola... Eu acho importante falar da viola porque eu venho tentando – faz três anos que estou fazendo show com o meu trabalho solo, depois de quinze anos de carreira – tirar o estigma da viola de um instrumento menor, rural e desafinado. Por isso, eu explico a origem da viola, que é mais antiga, pois tem 800 anos – o violão tem cerca de 250 anos – e já foi um instrumento bastante popular, todo mundo tinha


em suas casas, feito o violão. É um caminho que a rabeca conquistou, o que a viola está tentando conquistar, de ser inserido na música “pop”, vamos assim dizer? A rabeca está um pouquinho na frente, por causa de Pernambuco. Siba levou muito essa rabeca sem ser roots, pra outros universos. Então, eu quero falar no show sobre a viola pras pessoas entenderem o instrumento e, a partir daí, gerar a curiosidade para ir atrás e ver que existe um universo que não é rural, também. Tem uma galera nova fazendo, como João Arruda, Caçapa... Acho importante elucidar. Por isso que eu falo, pra não ser uma coisa misteriosa. A música pode ser misteriosa e levar você pra outros lugares, mas o instrumento não precisa ser mistificado. É preciso desmistificar.

Em um ensaio de Renato Contente sobre o teu trabalho, publicado no Outros Críticos, ele faz uma comparação com o sertão, em que usa a imagem de Guimarães Rosa e fala do sertão de dentro. “O sertão é dentro da gente”. Você falou que seu processo de criação é bem solitário, então, queria saber se essa ideia do sertão tem tanto a ver com a do sertão geográfico e com o sertão íntimo, a música ocupando um vazio? Justamente. É a expressão de um território psicológico meu, minha música. Porque você reflete a vida. Querendo ou não, quem é ligado à arte; a maioria dos amigos que conheço são muito contemplativos. Pensam muito, tem o seu próprio tempo. Então, se constrói imagens, tempos, associações e vão criando um lugar geográfico pra você, que as pessoas podem achar um lugar físico pra elas, dependendo da interpretação de cada um, mas é característico de cada um, de como faz as associações. Acho que tem a ver com essa coisa do sertão, como do árido, ríspido, que tem na minha música, e às vezes uma coisa solitária. Tanto que o nome do outro disco que estou

pensando é A solidão do sol e cinzas do ar.

Durante muito tempo o termo “música instrumental” foi usado quase como um gênero musical, e nas conversavas com músicos que trabalhavam com esse tipo de música, sempre se perguntava sobre o “mercado da música instrumental”, fazendo uma diferença entre a música instrumental e a cantada... Mas existe, é uma diferença muito grande. Você acha que a música instrumental se consolidou como um gênero musical, e como a dicotomia entre música com letra e sem, no que ajuda ou não a música feita por você? Mas isso vem da necessidade do ser humano em colocar as coisas nas prateleiras, de catalogar e colocar ordem onde há o caos. Está crescendo o mercado instrumental, mas a tradição brasileira é muito oral. Então, às vezes vale muito mais a palavra do que o som. Você vê que a palavra pode vir com som nenhum e vale muito mais, mesmo na música. Com isso, sempre teve esta diferença no mercado: sempre se deu mais valor ao que se fala do que ao que se ouve. Hoje em dia, estão tentando mudar. Na Europa, eu acho que é equivalente, quando se faz uma música de qualidade, as pessoas param para ouvir tanto cantada quanto instrumental. O importante é a música, o que você está expressando com a sua música. Aqui, é preciso cortar um dobrado pra você simplesmente mostrar a sua música.

Depois, ainda tem uma outra questão na diferença da música cantada e a instrumental, que gera diferenças enormes de cachês, que eu não entendo também o porquê, se tem o mesmo número de pessoas, envolve o mesmo trabalho; e os cachês, às vezes, são 1/3 do que uma pessoa que tem o trabalho cantado. Não sei se a minha geração vai conseguir mudar isso, mas a galera, devagarzinho, vai aumentado a visibilidade da música 54


“Os sons estão ali pra você, naquele momento, refletir sobre sua subjetividade. O que eu acho é que as coisas estão muito mastigadas. A galera não quer pensar, quer tudo prontinho. (...) A gente não teria tanta música de baixa qualidade se tivesse mais educação musical no Brasil” 55

instrumental. Talvez, um dia, mude essa visão. O engraçado é que a música dita instrumental está na vida de todo mundo o tempo todo. Você liga a televisão, tem a música lá, pra comercial. A questão é você trazer a música pra você, como um elemento de investigação. Se eu lhe dou a palavra, sua compreensão será muito mais rápida. Se eu lhe dou o som, você terá que pensar sobre ele; é subjetivo. Tanto que no meu show eu falo da viola, mas não digo: “Eu fiz essa música pensando naquilo”. Algumas, eu dou uma dica. Os sons estão ali pra você, naquele momento, refletir sobre sua subjetividade. O que eu acho é que as coisas estão muito mastigadas. A galera não quer pensar, quer tudo prontinho. Música instrumental é de qualidade também. A clássica envolve um certo nível de compreensão, e até educação musical, que está faltando. A gente não teria tanta música de baixa qualidade se tivesse mais educação musical no Brasil, como tem na Europa.

Pra encerrar, queria que você falasse do próximo disco, que você tinha me adiantado que teria uma relação com paisagem sonora. É, A solidão do sol e as cinzas do ar. Eu vou usar mais ambiências. Já tenho algumas coisas gravadas. Umas coisas mais cruas, mas com sonoridades diferentes. Outras coisas usando os pedais bem mais pesados do que o Vermelhas Nuvens. No novo disco eu vou tentar trazer mais a experimentação, mas não deixar minha referência. Vem num momento de muitas mudanças, como músico, como pessoa, e também como objetivo artístico. Quando você quer, mais dos que os outros dois discos, como a sua música seja vista. A minha expressão interior mesmo, por isso “A solidão do sol”, do título. oc


resenha

ruído branco por Bernardo Oliveira

Foto: Divulgação

Projeto do multifacetado produtor carioca Cadu Tenório, o Ceticências vem desenvolvendo um trabalho que altera suas premissas lançamento após lançamento. Até Issamu Minami e, na sequência, Pillow, terceiro e quarto discos respectivamente, ambos de

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2013, Cadu mostrava a preocupação em elaborar uma sonoridade repleta de beats cortantes, extraídos a partir de sons de gavetas, fogões e demais objetos cotidianos. A última guinada se deu com o ingresso do produtor, compositor e instrumentista Sávio de Queiroz,


que resultou em Lua, disco no qual o Ceticências desconstruiu seu industrial em diálogo com dinâmicas harmônicas mais perceptíveis. A velocidade com que essas mudanças ocorrem nem sempre garantem a consistência do resultado, e, mesmo exitoso, Lua continha momentos em que a construção parecia caminhar a esmo, investigando caminhos possíveis em frente ao ouvinte. Vale notar que, poucos meses antes, em apresentação no festival Antimatéria, produzido no Rio de Janeiro, a dupla apresentou uma abordagem calcada mais sobre ritmos secos e sobressaltados do que sobre estruturas sonoramente carregadas dos trabalhos anteriores. Como pude comprovar em uma apresentação recente no RJ (dia 21 de março), em que a dupla ofereceu à plateia largas porções de harsh noise e até mesmo um juke, diversidade e ímpeto exploratório habitam a música do Ceticências de forma saudavelmente descontrolada, e com Branco (2014) não é diferente. A primeira faixa, “I”, se inicia com os habituais sequenciamentos irregulares, até desembocar em um batucada retumbante, algo próximo ao que o crítico Jason Ankeny, ao se referir ao trabalho do Throbbing Gristle, chamou “bludgeoning beats” (batidas de

Ceticências é um dos inúmeros projetos musicais de Cadu Tenório. Afora o duo, o músico faz parte da banda Sobre a máquina e do VICTIM!, além de lançar trabalhos com a assinatura solo, como fez em 2014 com os discos Cassettes e 1987/1990.

concussão). Na segunda faixa, “II”, a batida é sequenciada com mais regularidade, aos poucos a dupla introduz ruídos, sons de sintetizadores, gravações, teclados, formando uma paisagem sonora cacofônica. O aspecto geral não é fácil nem acessível: é preciso estar disposto a trilhar caminhos acidentados, texturas pedregosas pavimentadas pelos dois produtores. Mas, assim como os trabalhos anteriores, Branco possui qualidades inegáveis e revela um dos trabalhos mais radicais da música eletrônica carioca contemporânea. Apesar do clima sombrio, o título parece indicar que o horizonte do Ceticências permanece em aberto. oc

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resenha

entre a tradição e a vanguarda por Bruno Vitorino

Foto: Leila Nunes/Divulgação

De lados diametralmente opostos no painel da Cultura, estão a tradição e a vanguarda. A primeira foca na repetição de um arcabouço simbólico sedimentado nas práticas sociais, encontrando no passado o sentido ratificador e estruturador de toda a prática cultural do coletivo em detrimento da liberdade do indivíduo, reduzindo-o ao ente que exercita e preserva o legado ancestral que lhe fora transmitido. A tradição busca a continuidade e não a ruptura. Já a se-

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gunda propõe a quebra dos modelos herdados do passado, permitindo ao artista, na manipulação da linguagem de seu meio expressivo, encontrar um caminho que priorize suas demandas internas e comunique com o mundo material sua essência mais íntima, sem a rigidez de um formato preconcebido. A vanguarda foca no agora, deseja as vicissitudes do movimento e preza pelo Eu que transforma o todo em seu fazer artístico. Porém, na zona de intersecção des-


ses extremos que paradoxalmente se tocam, eventualmente surgem projetos que, por sua ousadia estética, domínio dos recursos técnicos e capacidade criadora irrefreável, desafiam as conveniências da taxonomia, apontando para o inesperado. É justamente nesse delta que se encontra o dueto pernambucano Ell Gênio Duo. Formado pelo clarinetista Luciano Emerson e pelo jovem violonista Caio Fernando, o Ell Gênio Duo se lança a uma abordagem mais livre, aberta e arriscada do Choro ao inserir nele a naturalidade da improvisação jazzística e a minúcia da estruturação composicional erudita, derrubando as contenções estilísticas do gênero e subvertendo certas verdades estéticas. Vanguardistas na abordagem e tradicionalistas por formação, os instrumentistas fazem de sua música uma espécie de plataforma filosófica para o encadeamento de teses, antíteses e sínteses culturais que descambam no múltiplo. Uma multiplicidade, diga-se, que não se relaciona com o fortuito e o efêmero tão caros ao homo frivolus, e sim com a urgente e constante busca por novos rumos expressivos sobre antigos alicerces sonoros. O epíteto “gênio”, estampado no nome do projeto, nada tem de narcisista ou egocêntrico. Ao contrário, faz uma referência irônica à dessubstanciação e à banalização do termo que é distribuído aos montes a falsos prodígios no circuito da música atual, além de trazer incutida em si uma autoanálise crítica sobre a finalidade da técnica na execução musical, uma vez que precisão dissociada de carga emotiva se torna mecânica, antimusical e reduz a música a espetáculo circense. Produzido de forma independente, o dueto estreia com o excelente disco Reflexos (2014). Gravado ao

Caio Fernando é violonista, bandolinista, cavaquinista e faz parte do Grupo de Choro SESC Pernambuco. Luciano Emerson Leite estuda bacharelado em clarinete na UFPE e já lançou discos com a 5PE, Nebulosa Quinteto e a Banda Síncope.

vivo e sem edições no Estúdio Muzak no início do ano, o álbum traz impressionantes dez faixas autorais onde os instrumentistas demonstram comunicação telepática e vínculo emocional sólido. Os temas são bastante ricos do ponto de vista harmônico, exuberantes no que diz respeito aos contornos melódicos, explorando os limites entre a estrutura preconcebida da composição e a construção espontânea do discurso improvisativo. Destaque para “Bemol é uma Riqueza”, de Caio, com seu estilo “varandão”, mas cheia de reviravoltas temáticas e uma sagaz quebra da métrica rítmica com um inesperado 3/4 e “Reflexos”, de Luciano, que, com sua ambiência ad libitum, investiga os ecos de descobrir um Outro que é, na verdade, parte de si. Nesse caso, conhecer uma irmã. Sem dúvidas, um dos maiores êxitos instrumentais já registrados em Pernambuco, e prova definitiva de que a produção recifense vai muito mais além do estereótipo alternativo que tanto faz questão de cultivar. Obrigatório! oc

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resenha

nem só de experimentação vive a são paulo underground por Marina Suassuna Foto: Paulo Borgia/Divulgação

“Cada pessoa reage à música à sua maneira, e a sensação de deleite que ela provoca é única e intransferível”. A frase dita por Ruy Castro é mola propulsora para uma série de reflexões acerca do alcance gerado pela música. Uma delas é que a sensação de deleite pode estar relacionada à identificação imediata do ouvinte com particularidades de um gênero o qual se aprecia. Ou mesmo com estados e sentimentos transmitidos por uma obra de forma singular. No caso do som produzido pela banda instrumental São Paulo

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Underground, a sensação de deleite, ainda que pessoal, está condicionada à natureza intrínseca do grupo. Contrapontos sonoros, mudanças bruscas de dinâmica – como se os integrantes estivessem entregues a um exercício jazzístico, suscetíveis a improvisos – são aspectos fundamentais para se entender a essência do SPU e, por isso, indissociáveis à fruição de sua obra. Além disso, o foco geralmente está menos nas melodias do que nos instrumentos, que nem sempre sincronizados, destoam de métricas comuns


e composições bem marcadas. Toda essa “desorientação” e falta de regras peculiares ao jazz, math-rock, noise, post-rock – estilos que se atrevem a experimentar –, embora tornem a audição do SPU inacessível para ouvidos mais conservadores, acostumados com andamentos sonoros mais estruturados e previsíveis, são justamente o que os ouvidos mais calejados irão apreciar. No entanto, esses mesmos ouvidos irão reconhecer, ao escutar o quarto disco da banda, Beija Flors Velho e Sujo (2013), que nem só de experimentos vive o grupo formado por Mauricio Takara (percussão, bateria, cavaquinho e efeitos eletrônicos) Guilherme Granado (teclados, sintetizadores e samplers) e Rob Mazurek (corneta, harmonium e modulator). O novo trabalho traz momentos menos abstratos e mais consistentes, de fácil assimilação se comparado aos álbuns anteriores do trio. O que não significa abrir mão da essência subjetiva e instável. Com explosões mais contidas, o disco oscila entre improvisação e composição, muitas vezes confundindo esse limite e propondo linhas melódicas mais duradouras, grande parte delas protagonizadas pela corneta furiosa de Mazurek. É o caso de “Ol’ Dirty Hummingbird” e “Into The Rising Sun”, sendo esta última a faixa mais sólida do repertório, mantendo instrumentos e melodias alinhados do início ao fim. Não há uma intenção clara por parte do trio de tornar-se mais acessível neste trabalho. Mas o que se percebe, de fato, é que há uma abertura a novas possibilidades de manipulação sonora, o que gera naturalmente uma aproximação com ouvintes ainda não cativos. No release assinado por Mazurek, o próprio músico aponta para a importância de uma renovação e sintetiza a motivação do novo álbum: “O som precisa ser dividido, quebrado, batido, acariciado, beijado, afundado,

A discografia da São Paulo Underground ainda contém os discos Sauna: um, dois, três (2006), The Principle Of Intrusive Relationships (2008) e Três cabeças loucuras (2011).

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enterrado e catapultado para novas dimensões, de modo que inicie um diálogo entre universos”. Eis aí a chave para compreender o que norteia o repertório. “Arnus Nusar”, com quase 8 minutos de duração, é a única faixa que atinge a exaustão, dialogando de maneira ininterrupta com o clássico norte-americano “Over the rainbow”, cuja versão gravada ao vivo num clube em Granada, Espanha, traz a parceria de uma pianista clássica não identificada. No meio de tudo isso encontrase “Evetch”, uma irônica homenagem a Ivete Sangalo com timbres de fanfarras. Os estímulos tropicais também podem ser notados em “Basilio’s Crazy Wedding song”, – que traz ecos do candomblé – e em “Taking Back The Sea Is No Easy Task”, em que o trio cita claramente “Suíte do Pescador”, de Dorival Caymmi. “Six-Handed Casio” é a mais esquizofrênica do disco, fazendo jus à rotina caótica da metrópole que batiza o trio. Não restam dúvidas de que a vontade de continuar se renovando sem largar as raízes da banda foi o oxigênio de Beija Flors Velho e Sujo. Uma prova de que o trio jamais se tornou refém do que iniciou no passado. oc


resenha

estudando o funk por AD Luna

Foto: Tiago Calazans/Divulgação

Aconteceu durante uma edição do Festival de Inverno de Garanhuns. Perto do hotel onde me hospedara, armaram uma pequena, mas eficiente estrutura de som, luz e um palco de chão no quintal de uma casa. No local também aconteciam exposições artísticas, teatro etc. Era uma festa para os sentidos. Quando soube que ali haveria show do “imorrível” Di Melo, mestre pernambucano da soul music que havia sido redescoberto naquele tempo, fui lá ver/ouvir. Que Di Melo era ótimo não restou dúvida, mas a banda que o acompanhava me chamou bastante atenção pela competência. Era

a Pé-Preto.

A integração com o bem humorado soul man era perfeita. Bons músicos, aqueles cujos instrumentos parecem fazer parte do organismo por conta da facilidade com que os comandos musicais enviados pela mente chegam facilmente aos dedos, mãos, braços, pernas e pés, sem perder o feeling. No Recife, até cheguei a assistir a shows de bandas que se diziam representantes ou altamente influenciadas pelo som de nomes como The Meters, James Brown, Sly & The Family Stone, Marvin Gaye e dos nacionais 62


Tim Maia (fase racional), Jorge Ben (antes de ser Ben Jor), entre muitos outros. O problema é que elas pareciam não ter entendido e absorvido a linguagem do funk e soul. Se a bateria ia bem, o baixo não tinha musculatura e os timbres de guitarra simulavam os piores momentos de grupos amadores de metal. Ficou a sensação de que algo estava faltando: o molho, a pegada, entre outros elementos difíceis de expressar em palavras.

No caso do Pé-Preto, que já tem uma década de estrada, o entendimento e a incorporação da alma, da verdadeira linguagem funk estão presentes no seu jeito de fazer música. Além da personalidade própria impressa no trabalho. Sim, pois soar exatamente igual aos “gringos” também não é lá muita vantagem. Desde o fim de 2013, Pedro Sanchez, 26 anos (guitarra e violão); Heverton Lima “Bilisca”, 28 (bateria); Leso, 29 (baixo); e Filipe Niero, 29 (voz e letras), estão lançando novos trabalhos da banda por meio de singles disponibilizados no Soundcloud, cujas “capas” carregam ilustrações de artistas locais. “Galo véi” foi a primeira, lançada em novembro e com capa desenhada por Raoni Assis. Os metais que aparecem logo no início da canção já prendem o cidadão nos primeiros segundos da audição. A letra é criativa: como o título indica, foi construída como se o nobre galináceo tivesse o dom de descrever parte da sua rotina no galinheiro. O segundo, “Estudando uzôto”, saiu em janeiro deste ano e tem desenho de Caramurú Baumgartner. A música tem o reforço de percussões, teclados e metais (arranjados por Enok Chagas). Ela começa com uma levada de bateria desenvolvida nos tambores, com aquele balanço à la The Meters com seu molejo de New Orleans, acompanhado por sons de piano com o

A Pé-Preto lançou um EP em 2009 e participou de coletâneas musicais, fazendo versões em tributos ao The White Album, dos Beatles, e a Lula Côrtes. Em 2014 o grupo tem se dedicado ao lançamento de singles e a shows em festivais, como nas prévias do festival Rec-Beat, e mais recentemente no A noite do Desbunde Elétrico.

mesmo espírito. Com uma levada mais reta, com baixo deixando espaços, “respirando” para o groove funcionar, o vocal entra. É uma música climática, que talvez merecesse mais tempo para o ouvinte se envolver. Quando a pessoa está com aquele crescente e cada vez mais amplo sorriso de satisfação no rosto e na mente, ela acaba. Provavelmente ainda em maio, a Pé -Preto lance um novo single: “Não”. Ela é uma balada soul, com base robusta, daquelas em que a bateria soa pesada, porém fluida, sendo acompanhada por um baixo que sai costurando a levada. A guitarra tem participação sutil, porém necessária e eficiente, e um bonito trompete vai deslizando durante a canção, que fala de amor. Raoni Assis colabora novamente, fazendo o desenho que ilustra a capa do single. oc

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resenha

quem irá nos salvar? por Jeder Janotti Jr. Foto: Bruno Guerra/Divulgação

Quando o vocalista e guitarrista Fabio Trummer, da banda olindense Eddie, anunciou que estava unindo forças aos garotos da banda baiana Vivendo do Ócio, Dieguito Reis (baquetas) e Luca Bori (baixo) para fazer rock, isso me pareceu meio estranho e oportunista. Claro, qualquer um, com alguma dose de crença no Olinda SoundStyle podia ter imaginado algum grau de renovação e autenticidade. Eu não!

Mas tal como a declarada inspiração do livro As veias abertas da América Latina (1971), do escritor uruguaio Eduardo Galeano, o álbum Trummer Super Sub América soa datado e em descompasso com o que pode (ainda) acontecer de interessante nos cacos do que restou do tal roquenroll. Se a intenção era voltar ao primeiros momentos da banda Eddie e seu passa64


do roqueiro, as faixas parecem misturar em uma gororoba insossa a influência atual dos meninos baianos, The Strokes, passando por The Clash e o BRock dos anos oitenta, lembrando as inspiradas sacadas clichê, a lá miojolamén, de Humberto Gessinger (vocalista dos Engenheiros do Hawaii).

Se os menos atentos podem, com muita boa vontade, e pouco atenção auditiva, afirmar os aspectos minimalistas das canções e letras do álbum de Trummer, letras como “Medo da Rua”, “Supere-se criatura, assuma o risco que existe em você, devolva alguma loucura, experimente não ter de se vender, faça de sua armadura a insustentável leveza do ser” e “De Olinda ao Mississipi (Movimentação)”, “Foi uma movimentação, movimentação, movimentação e sol ainda por vir, outro estouro em Oxford quebrou Jaboatão, é um pipoco em cada quarteirão, mais rachaduras riscam o Paquistão”, mostram como é brochante a fórmula: cite um livro ou filme, junte mapas e crie um slogan.

Junte a isso o fato de que a condução minimal do rock básico, mesmo que tenha histórico na cultura lo-fi, aparece no disco como quase fruto de uma preguiça de pensar o trabalho da trupe Trummer SSA como um conjunto, uma obra. Afinal, o minimalismo para produzir bons efeitos deveria passar por um árduo processo de enxugamento (como atestam algumas bolas dentro no flerte com o iê-iê-iê (2009) de Arnaldo Antunes) e não por um pretenciosa suposta despretensão pop cult descolada. A própria faixa título, com sua levada quatro por quatro direta, a pulsação tradicional do baixo rocker e as camas da guitarra pareciam apontar, no início da canção, para algo além do esvaziamento de lugares-esvaziados como: “Salve a América do Sul, a força bruta de sua alma calejada, desta ânsia de ser ver nesta batalha

Trummer SSA foi produzido por Fábio Tummer e Daniel Bozzio, gravado em 2013 no El Rocha (SP), e conta com composições de Fábio Trummer, Lirinha, Luca Bori, Diego Reis, Rogerman, Dengue, Rica Amabis e Pupillo Menezes.

em que o tiro é disparado da TV, salve o batucar das tribos, salve a distorção dos sons da rua, salve a floresta que naufraga na cidade, salve nossa intimidade”. Afinal, se o caso era identidade, Trummer deveria lembrar que para além da fofice multicultural, identidade se constrói reconhecendo também o difícil movimento de enxergar o outro, de enfretamento das dificuldades de se viver na diferenças quando se quer fazer rock em terras tropicalistas.

Resta sempre a saída de lembrar que Trummer SSA é um projeto secundário do power trio, que suas bandas de origem continuam bem vivas. Mas, se era esse o objetivo da banda, eles poderiam ter continuado a tocar em bares e biroscas e evitado todo agendamento e badalação em torno do lançamento de um álbum. Se após a audição fica a sensação de que, por essas rotas está difícil salvar o rock sul americano de sua mesmice, pois então quem irá salvar críticos e ouvintes da existência desse sub-rock sul americano? oc

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coluna

Música é sons por Caio Lima

(Ao fantasma do Beethoven velho) “Música é sons, sons à nossa volta, quer estejamos dentro ou fora das salas de concerto”. É assim que John Cage (1912 – 1992) define Música em carta a Murray Schafer (1933). Aquele que por acaso frequentou um Conservatório, intuirá que tal definição deve perturbar um bocadinho a cabeça tanto dos mestres quanto dos alunos da instituição. Por exemplo, ainda não é o busto de Cage que enfeita a entrada do Conservatório Pernambucano de Música. Eu li em algum lugar, cujo agora não o consigo encontrar, que a partir daquela definição é absolutamente possível compreender a moral sobre a história dos 4’33’’(1952) de pausas. Giorgio Agamben, a fim de apontar o caminho ao contemporâneo, se utiliza da neurofisiologia da visão para afirmar que até mesmo o escuro do que vemos ao fechar dos olhos é uma “iluminação” das células desinibidas da retina. “Ora, o silêncio nunca aconteceu”. É o que diz, como rosto to-

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mado pela serenidade da expressão, o mais cético dentre os meus amigos compositores. Nesse dia, ao ouvir o rumor desta brisa em forma de indiferença, tremi de frio. Escutei ao longe uma gravidade ribombando no peito, sobre as correntezas do rio vermelho, o coro vociferante da multidão. E à medida que me empalidecia uma nuvem de grilos entornava o firmamento. A antiguidade ousou me imaginar no apocalipse: O sol explodiria na cidade! Desesperei. Lembro muito bem, pequenas catedrais móveis me atravessavam de um lado a outro entoando réquiems iluministas. Foi quando o modo dórico me soprou quem estava sonhando, na caverna. Os pés, como o roçar do vento na areia, bradavam gravemente a uma consciência esguia: Os pés são deuses do escuro! Era semelhante a um hino de guerra cantado em uníssono por 100 milhões de guerreiros montados em elefantes na base de uma imensa colina. Isto me revigorou os pulmões de


forma que pude nomear onde me encontrava. Olhei para fora, respirei profundo e segui Andante. Mais tarde escrevi, em letra de forma, no caderno de música: “Eu, João Lima, fui assistir aos 4’33’’ de Cage num festival de música do século XXI que acontecia no Teatro de Santa Isabel. Há muito que deixara a poltrona de numero D08 e caminhava pela Rua da Aurora quando me perdi. O mais provável é que eu tenha apagado quando a imaginação me perturbou o pensamento enquanto esperava o sinal de trânsito fechar. O sol soava tão alto, mas tão alto, que surgia uma luz que esquentava toda a terra que tem outro sol dentro. Essa terra se movimentava, como uma melodia, tecendo com outras terras toda a paisagem. Assim, a vida escorria incessantemente, indo e vindo. Pequenos pássaros sob o farfalhar das folhas rememoram uma canção imemorial. Automóveis aos clusters evidenciam a contemporaneidade. Foi assim que pude escutar a música que me escondia na cidade, no movimento incessante que era feito silêncio do meu corpo. Prontamente, ao chegar em casa, quebrei ao meio a flauta doce.”

No dia seguinte, os meus olhos ainda brilhavam quando pedi licença ao professor para ler em sala de aula este relato tosco. Ele não quis me escutar. Até hoje não sei se é porque ele estava coberto com a razão. Afinal, tudo poderia não passar de um delírio. Delírio meu e dele, claro! Desse curioso caso, o rumor ainda me pede para deixar um espaço à dúvida. Pois, refletindo agora mesmo, talvez eu não estivesse querendo esclarecer, como um crente, os ouvidos da turma lendo em voz alta o meu testemunho. Acho que tenho a impressão que durante aquela visão ninguém estava surdo. Estávamos todos dançando. Como se fizéssemos música. oc 67


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