Termos na capa desta edição da revista Outros Críticos o retrato do músico nigeriano Fela Kuti - pintado pelo artista convidado Daaniel Araújo, que apresenta em suas obras a violência, política, arte desnuda e provocação de que tanto necessitamos para produzirmos muito mais que a leitura artificial de um momento, sobretudo no contexto cultural em que estamos inseridos, ou pelo qual brigamos todos os dias, seja com música, pintura, escrita, ou simplesmente sendo vozes e presença nas ruas, ocupações de espaços, palcos, debates, manutenção de ritos - tem um significado especial quando o tema desta publicação é justamente "o valor da música". Música como mercadoria, bem simbólico; cultura tradicional tratada à revelia de sua importância, como peça turística; reflexões sobre a difusão da música nos meios digitais, entre outras leituras, e aquela impressão de que lentamente estamos movendo algumas pedras pesadas de lugar. Boa leitura.
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colaboradores Bruno Vitorino Compositor, baixista do Nebulosa Quinteto e colunista do blog Variações para 4.
Guilherme Gatis
Jornalista, edita o blog Músicas de Sexta.
Jeder Janotti Jr. Professor do PPGCOM da UFPE, coordena o grupo de pesquisa Mídia e Música Popular Massiva.
Leonardo Vila Nova Jornalista, poeta e percussionista da banda Dunas do Barato.
Rodrigo Caçapa Músico e produtor musical.
Rodrigo Édipo
Editor de conteúdo da MI - Música Independente em Pernambuco.
expediente Edição: Carlos Gomes
Projeto gráfico: Fernanda Maia
edição 2 - bimestral - março de 2014
Ilustrações: Daaniel Araújo
Esta revista é uma iniciativa do projeto de crítica cultural Outros Críticos, e foi realizada com incentivo do FUNCULTURA (Governo do Estado de Pernambuco).
Fotografia: Renata Pires
Jornalista responsável: Germano Rabello (DRT 5164-PE)
ISSN: 2318-9177 Impressão: FacForm
Textos: Carlos Gomes, Germano Rabello, Karol Pacheco e Raquel Monteath.
Mais informações e sugestões: contato@outroscriticos.com www.outroscriticos.com
Coluna: Júlio Rennó
As fotos dos colaboradores foram retiradas de seus perfis de rede social.
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Artista convidado
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Quanto vale a música tradicional?
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Foto: Renata Pires
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Daaniel Araújo
por Rodrigo Caçapa
O show business de cada dia nos dai hoje por Karol Pacheco
Crítica de Boteco Paulinho do Amparo e Rafael Cortes
Fim de festa, músicos a pontapés por Germano Rabello
Juliano Holanda
30 Matheus Mota
38 Opinião
Depoimentos de H. d. Mabuse, Missionário José, Filipe Barros, Bruno Cosentino, Hugo Linns e Leonardo Salazar.
Foto: José de Holanda/Divulgação
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entrevistas Velhos hábitos, novas formas de consumo da música por Raquel Monteath
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O valor invisível da crítica musical
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Walter Areia
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por Carlos Gomes por Bruno Vitorino
Juçara Marçal por Carlos Gomes
Stela Campos
por Guilherme Gatis
DJ Dolores
por Leonardo Vila Nova
Anjo Gabriel
resenhas
Foto: Renata Pires
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por Jeder Janotti Jr.
Guia prático para a crítica cultural: OK, computer! por Júlio Rennó
artista
convidado O O artista artista visual, visual, designer designer ee músico músico Daaniel Daaniel Araújo Araújo éé oo convidado convidado aa expor expor aa sua sua obra obra nesta nesta edição edição da da revista revista Outros Outros Críticos. Críticos. Daaniel Daaniel já já colaborou colaborou em em mostras mostras coletivas coletivas na na Lojinha Lojinha do do MAUMAU, MAUMAU, projeto projeto Espiral Espiral de de moda moda ee cultura, cultura, exposição exposição Sobre Sobre oo Vento Vento ee oo Espelho, Espelho, no no FIG FIG 2012, 2012, (Garanhuns (Garanhuns –– PE), PE), Papelombra Papelombra -- Exposição Exposição coletiva coletiva de de gravuras gravuras no no Espaço Espaço Cultural Cultural Peligro, Peligro, Pilhagem Pilhagem -- Exposição Exposição coletiva coletiva na na Casa Casa do do Cachorro Cachorro Preto, Preto, entre entre outros. outros. Em Em 2013, 2013, foi foi vencedor vencedor do do concurso concurso de de Cartazes Cartazes para para oo Festival Festival Nação Nação cultural cultural edição edição Sertão Sertão do do Moxotó Moxotó ee participou participou do do FIG FIG com com uma uma exposição exposição solo. solo. O O artista artista inaugurou inaugurou recentemente recentemente seu seu ateliê ateliê no no Carmo, Carmo, em em Olinda. Olinda.
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artigo
Quanto vale a música tradicional? por Rodrigo Caçapa
Qualquer reflexão ou diálogo a respeito da música tradicional do Nordeste brasileiro esbarra imediatamente no problema da própria denominação do objeto. Música de tradição oral, música tradicional, música de rua, música de terreiro, música regional, música de raiz, música folclórica, ou cultura popular. Nenhum desses termos é capaz de abarcar a imensa diversidade estética desse universo, nem dar conta das particularidades históricas e da complexidade dos contextos culturais nos quais essas músicas são cultivadas. Seja qual for o termo utilizado, a intenção primeira dessa classificação é opor essa música àquela relacionada diretamente à indústria fonográfica e aos meios de comunicação de massa (a tal da música popular), e ao universo da chamada música erudita (ou música “culta”), ligada à tradição ocidental, à educação formal e ao mundo acadêmico. Ao mesmo tempo, procura associar essas expressões musicais às camadas
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sociais mais desfavorecidas, formadas em sua maioria por negros, índios, mulatos, caboclos e seus descendentes. Mesmo que consideremos natural a relativa ineficiência desses termos e aceitemos seu uso, não podemos esquecer que esses podem ser empregados com intenções muito diversas, seja para justificar e manter o histórico abismo social, econômico e cultural do país, seja para tentar compreender as suas particularidades e, a partir daí, questionar a imposição de limites rígidos entre essas expressões musicais e, consequentemente, entres os indivíduos e grupos sociais que as produzem. Se essas denominações fizeram muito sentido durante parte do século passado – particularmente no momento em que a indústria fonográfica e o rádio estavam nascendo ou engatinhando, e no qual a música erudita brasileira ainda não tinha incorporado tantos elementos da música de tradição oral, como viria a ocorrer a partir dos anos 1920, na obra de
compositores nacionalistas como Villa-Lobos – hoje, em pleno 2014, a realidade nos obriga a repensar seus significados e desdobramentos. Imaginar que o universo da música tradicional existe como algo alheio ou à margem do mercado cultural é um equívoco. É evidente que grande parte dos artistas tradicionais não produz a partir da motivação do lucro, do sucesso e da fama. Os impulsos certamente são outros, muito mais próximos das funções primordiais da música: a celebração coletiva, a expressão pessoal, a diversão, a identidade cultural, a religiosidade, ou apenas a necessidade visceral de cantar, tocar e dançar. Ainda assim, todas as formas de música tradicional estão inseridas num determinado nicho do mercado cultural (seja o mais elementar ou o mais complexo), um ambiente que possibilitou a sua criação, difusão e sobrevivência. Ademais, algumas dessas formas musicais foram além, mantendo pontos de contato com segmentos de mercado diferentes daqueles onde surgiram originalmente. O que ocorre é que os ambientes nos quais a música tradicional comumente se estabelece funcionam de modo diverso dos modelos de mercado associados aos meios de comunicação de massa e à indústria fonográfica. Naqueles ambientes também existem as relações de troca, as relações entre artistas profissionais (e também
"Imaginar que o universo da música tradicional existe como algo alheio ou à margem do mercado cultural é um equívoco."
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entre amadores e aprendizes), existem os custos para realizar uma apresentação e a necessidade de divulgar essa realização, a necessidade de um espaço, existem os construtores de instrumentos, alguém para organizar tudo, existe a especialização e também o conhecimento abrangente, além do indivíduo ou o grupo de pessoas que contribui pra cobrir os custos. As necessidades básicas não são tão diferentes das que se observa no mercado de música popular, mas as soluções para essas necessidades é que costumam serem outras. Se isso não é um mercado de bens simbólicos (um mercado informal, é verdade) o que mais seria? É verdade que a dinâmica social e econômica de alguns desses am-
bientes onde a música tradicional se estabeleceu têm se transformado rapidamente ao ponto de dificultar ou inviabilizar a sobrevivência dessa forma de expressão. Ainda assim, o maior problema talvez não seja a configuração desses segmentos de mercado onde a música tradicional acontece historicamente, mas as relações entre os músicos tradicionais e os ambientes da música popular e erudita, da comunicação de massas e da gestão pública, é que costumam ser muito mais conflituosas e desfavoráveis aos primeiros. Este é o ponto: o valor de mercado que um artista ou sua obra alcança perante um determinado segmento da sociedade está diretamente associado ao valor simbólico que esse mesmo segmento social lhe atribui. Em seu ambiente original, a relação entre música tradicional e mercado é relativamente equilibrada: uma
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comunidade interessada em produzir e fruir da sua música tradicional mobiliza seus próprios recursos e negocia suas relações de trabalho, no limite de suas capacidades, e de acordo com a importância (muitas vezes, central) que essa forma de expressão ocupa no seu cotidiano. Qual o valor simbólico que a música tradicional do Nordeste representa para grande parte da população de classe média e para a elite econômica das grandes cidades da região e do país? E para a imensa maioria da classe política, dos gestores públicos e dos grandes veículos de comunicação? Essa música representa verdadeiramente algo mais do que uma relação superficial com uma estética considerada ingênua e primitiva, e com a qual se entra em contato apenas uma vez ao ano, por força do hábito? Vale mais do que um mero ingrediente dos antigos ideais nacionalistas? Tem outra função além de servir às peças publicitárias para turistas verem? Em tempos de interferência autoritária do poder público em manifestações tradicionais seculares, vale perguntar: o desequilíbrio entre o valor simbólico oficialmente atribuído à música tradicional e o seu real valor de mercado não poderia ser compreendido como um reflexo do tratamento historicamente dispensado pelo segmento mais abastado da sociedade brasileira aos estratos sociais mais desfavorecidos? OC
O show business de cada dia nos dai hoje por Karol Pacheco
Nem tudo é folia. Enquanto uma gorda fatia do show business é controlada por órgãos públicos através de práticas questionáveis, uma multidão de artistas que vive da música, apenas sobrevive dela. Há mais de 65 anos, Theodor Adorno e Max Horkheimer criaram a expressão “indústria cultural”, cuja ideia central aponta que, no capitalismo, a cultura tende a ser tratada como mercadoria. Leonardo Salazar, empresário artístico e instrutor setorial de cultura do Sebrae, considera que a atividade musical é capaz de gerar trabalho e renda para muitas pessoas. Ele é autor do livro Música Ltda: o negócio da música para empreendedores. O consultor costuma dizer que talento sem gestão é apenas diversão. “Se o músico tem apenas talento, não tem nada. Mas imagine o contrário, artistas que não têm talento, mas que possuem uma gestão eficiente. Esses artistas têm uma carreira! Afinal de contas, de quem é a carreira?
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O governo não está nem aí para você, o problema é seu, resolva!”, explica Salazar, lembrando que o caminho para uma trajetória de sucesso passa pela iniciativa do próprio músico, além da busca de oportunidades e redes de contato. Para se estabelecer no mercado é preciso mais que amor à música. O músico Rodrigo Caçapa, compositor, arranjador e produtor musical pernambucano, afirma continuar produzindo a música que acredita. Ao mesmo tempo, ele diz que procura “parceiros que acreditem nessa música e que contribuam pra que ela alcance o seu próprio público, no Recife, em São
artigo Paulo, na Argentina ou no Japão”. Uma das poucas bandas a apostar no mercado real, com shows bancados por bilheteria, sem recursos públicos, é o Quarteto Olinda. Cláudio Rabeca, cantor, compositor e rabequeiro do grupo, assume que viver de produção independente é viver driblando dificuldades. “O Quarteto Olinda é uma banda que toca mais fora de Pernambuco do que aqui dentro. Muito disso devemos à nossa produção independente e ao ‘investimento’ que fazemos no Forró do Xinxim da Baiana (casa de shows em Olinda), de lá saíram a maioria de nossas turnês internacionais, pois o Xinxim é nossa vitrine, as pessoas nos veem tocando lá, no máximo de nossa verdade e acreditam que podemos agradar em qualquer lugar do Brasil ou do Mundo”. “É preciso que o Estado pare de ser mãe do artista”, aponta Sergio Valença Pezão, que em mais de 25 anos de estrada acompanhou artistas consagrados como Alceu Valença, Lenine e Chico Science & Nação Zumbi pelo Brasil afora. “Sou de uma época que os cachês eram mais baratos. Fazíamos shows em clubes e a gente divulgava o trabalho, com ou sem a ajuda de uma gravadora”, declara. O produtor musical conta uma história que aconteceu com Alceu Valença, seu primo, em meados da década de 80: “Alceu foi desprezado e colocado contra a parede
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pelas gravadoras, que tentaram obrigá-lo a gravar Michael Sullivan. Ele não aceitou, disse que não ia gravar. No entanto, ele foi atrás dos shows dele. Ele já tinha um nome e foi procurar os seus espaços”, diz Pezão, contando um episódio no qual o autor de “Bicho Maluco Beleza”, com um megafone à mão no calçadão de Copacabana, chamou seu público e conseguiu lotar o Teatro Tereza Rachel, no Rio de Janeiro. Pezão coordenou por oito anos o principal palco do Carnaval do Recife, o polo do Marco Zero, patrocinado pela gestão municipal. Um megaevento desse tipo, com programação de grande porte, se transformou, como afirma o músico Caçapa, “num grande Rec-Beat genérico, com muito dinheiro investido num período curtíssimo, com processos e critérios de seleção questionáveis e com tratamento muito desigual entre os artistas”. Ao fim e ao cabo, é o poder público ou a iniciativa privada a partir de fundos públicos – centros culturais de bancos financeiros, inclusive – que decidem quais os artistas a serem apoiados e qual o circo que o povo vai assistir. Essa falácia de levar a cultura ao povo é contrariada por iniciativas como o Programa Cultura Viva, criado há dez anos pelo Ministério da Cultura (MinC). As ações do programa invertem a lógica habitual, que coloca o povo como receptor de cultura. Ao criar Pontos de Cultu-
ra em comunidades tradicionais, apoia-se a cultura que delas emana. As manifestações espontâneas e tradicionais dão sentido, por exemplo, ao carnaval multicultural apregoado pela administração pública e visitado por turistas de todo o mundo. Todavia, são justamente essas que “acabam por receber muito menos dinheiro, respeito e visibilidade do poder público e da iniciativa privada que as atrações ditas nacionais”, arremata Rodrigo Caçapa. Há quem acredite que grandes palcos devam ser ocupados por grandes nomes, que o público quer mesmo é assistir aos shows gratuitos. O que pouca gente sabe é que, na maior parte das vezes, esse painel é motivado por interesses de gestores públicos, empresários artísticos e políticos, configurando-se como um jogo de cartas marcadas. “As mesmas produtoras escalam as mesmas bandas. Para entrar na programação, tem que aceitar as regras do jogo. Se o artista reclamar, fica de fora (muitos estão nessa situação)”, escreveu Salazar em artigo publicado no site colaborativo Overmundo. Esse sentido de submissão a práticas nem sempre lícitas afeta produtores e artistas das mais variadas esferas da música. É o caso de Zeca do Rolete, mestre griô e coquista, que se vê imerso nessa atmosfera para poder realizar suas apresentações e viver da música. Costumeiramente, Zeca está presente em sambadas de coco re-
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alizadas nas periferias de Olinda e Paulista. Sua participação é espontânea e, sem receber qualquer cachê em troca, o mestre brinca e oferece gratuitamente o que recebeu geração após geração. O seu grupo, composto por sua própria família, depende principalmente das apresentações patrocinadas pelas prefeituras. “Agora no carnaval, espero receber com mais de três meses de atraso, enquanto uma banda grande recebe na mesma hora! O empresário deles chega e dá R$ 10 mil aos atravessadores e dá mais R$ 10 mil a outra pessoa que tem lá. Eu estou ganhando R$ 8 mil e ainda pago R$ 2 mil a outro lá dentro, pago 20% de impostos e também 10% ao meu produtor. Vê quanto eu vou ganhar!?”, lamenta. Sujeitar-se a esquemas desse tipo é uma faca de dois gumes, sobretudo quando falamos de música popular, cujo conceito distancia-se do “espetáculo”. O livro Maracatu rural, luta de classes ou espetáculo?, de Roseana Borges de Almeida, defende que a indústria cultural espetaculariza a brincadeira. “A espetacularização da cultura popular, atualmente objetivo do capitalismo, tenta obter ganhos, seduzindo turistas e promovendo exibições de cultura que contrastam com o cotidiano destes”, escreveu a autora. Linha de pensamento compartilhada pelo cantor Siba Veloso, que em recente comunicado acerca da polêmica que envolveu a restrição
"As mesmas produtoras escalam as mesmas bandas. Para entrar na programação, tem que aceitar as regras do jogo. Se o artista reclamar, fica de fora." de horário de término das sambadas da Mata Norte, afirmou: “Para o maracatuzeiro, maracatu só é maracatu se amanhece o dia. Senão, vira ‘folclore’, palavra usada na região para denominar todo tipo de apresentação artificial, show pra turista, filmagem pra TV”. Práticas viciosas já entranhadas na raiz das políticas culturais hostilizam o empreendedorismo do setor. O poder público não deve amamentar nem tampouco abandonar a classe artística. Esta, por sua vez, pode descobrir-se autossuficiente. A autonomia do músico na hora de compor e expor seu trabalho precisa ser diretamente proporcional ao ato de assumir e administrar a própria carreira, pois ambas atividades fortalecem a categoria. De resto, há que se ampliar a logística do mercado, arriscando novas maneiras de fazer render e escoar a produção musical, a exemplo do que acontece com o funk carioca ou o tecnobrega paraense. É possível que o pão nosso de cada dia nos seja dado hoje e sempre, mas não adianta ficar só na reza. OC 13
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A seção Crítica de Boteco promove a cada encontro um debate sobre temas abordados na revista. Esta edição foi gravada no IRAQ, com registro fotográfico de Renata Pires e áudio de Hugo Coutinho (Jacaré Vìdeos). O encontro contou com a presença do músico, produtor e artista plástico Paulinho do Amparo e de Rafael Cortes, criador do selo de vinis Assustado Discos. A mediação foi realizada por Carlos Gomes (Outros Críticos), com pautas escritas em parceria com Rodrigo Édipo (MI). O debate sobre o valor da música rendeu um extenso material bruto, que posteriormente será divulgado na íntegra no site Outros Críticos. Confira, a seguir, o que de melhor aconteceu nesta conversa.
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Carlos Gomes: Eu queria que a gente começasse pensando o valor da música antes da indústria musical. Pra gente discutir de que forma a música, a arte de um modo geral, era valorizada antes da existência de uma indústria.
Paulinho do Amparo: Saindo da história da humanidade e entrando na minha história pessoal, antes da música ser um trabalho pra mim, um valor, algo que eu fizesse profissionalmente. Eu não sei que valor eu daria. Eu sou até um músico bem tardio (risos). Apesar de ter tocado na adolescência toda. Levar aquilo como algo viável profissionalmente, até hoje eu não consigo ver assim. Eu sei que há um mercado que se injeta dinheiro, e como isso vem de baixo pra cima ou de cima pra baixo. Eu não sei onde está o valor. Seria o quê? O objeto físico? A música está no ar. Eu gosto de compor canções horríveis, por exemplo. Então, elas não teriam um valor comercial, e sim afetivo, mas são música (risos). Eu vou lá na UBC, minha irmã registrou a minha música. Isaar registrou. Eu vou chegar na UBC cheio de música e vou saber o que é isso de valor da música. Duvido que eu tenha alguma coisa pra receber, acho que eles vão me cobrar (risos).
Paulinho do Amparo: Não sei. A música clássica ainda não é uma indústria, mas é praticamente. Envolve tanta gente. A música popular era um refresco das pessoas. Eu vejo quando começam a gravar blues nos Estados Unidos. Aí pegam um cara lá dos cafundós-do-judas de voz peculiar, de composições até toscas; aquilo foi formando a indústria e aí veio o rock’n’roll, toda a música pop, basicamente.
Rafael Cortes: Dizem até que Beethoven foi quem criou o formato turnê. Começou a sentir a necessidade de circular, de sair do universo onde ele já era conhecido e a se movimentar em lugares ao redor. Com isso, começou a criar essa circulação.
Rafael Cortes: (risos) Enquanto bem simbólico eu acho que acaba sendo parecido. Hoje em dia, eu acho que as pessoas têm possibilidade de terem diferentes suportes. A música comunica... Eu trabalhei na Secretaria de Cultura por um bom tempo. Quando as pessoas querem chamar atenção com um evento cultural no governo, é a música que vai falar mais alto. Que é aonde o público vai, onde comunica mais fácil. Eu acho que como valor simbólico antes da indústria cultural e hoje funcionam de uma forma parecida.
Carlos Gomes: Vocês acham que o valor da música era diferenciado do que é hoje, já com a indústria formada? Paulinho do Amparo: Valor financeiro? Mercado?
Carlos Gomes: A gente pode pensar a música tanto em valor de mercado quanto simbólico. Se você pensar na cultura popular, por exemplo, você tem os grupos de coco, ou de ciranda, eles fazem a música não ligados necessariamente ao mercado, mas a uma tradição. Partindo do valor simbólico da música.
Carlos Gomes: Vocês acham que o valor
“Eu gosto de compor canções horríveis, por exemplo. Então, elas não teriam um valor comercial, e sim afetivo, mas são música.” Paulinho do Amparo
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simbólico e de mercado são coisas que se complementam?
tenho... Eu não manuseio a música quando é para o meu prazer, mesmo tocando, é quase one way. Como eu faço com Grilo, o Geladeira Metal. É um improviso, uma descarga. Aquilo passou.
Rafael Cortes: Eu acho que o mercado já agregou muito e agrega muito até hoje. Ele empacota pra ser possível vender e ser possível alimentar a boca de um músico. Eu acho que ele criou mais alternativas pra sustentabilidade da carreira de um músico.
Rafael Cortes: É muito mais por um movimento espontâneo, está na veia, vamos fazer mesmo arte porque alimenta a gente de alguma forma, do que a necessidade de estar formatado de alguma maneira, de as pessoas ouvirem, de ser falado no Facebook ou qualquer outro tipo de coisa. Eu acho que é bem por aí mesmo. Eu comungo mais dessa ideia de: porra, é arte! É o movimento natural da pessoa.
Paulinho do Amparo: Bem, carreira musical. Eu não sei. Eu preferia mesmo, caso a música tivesse o valor, seja qual for.
Rafael Cortes: Mas você já usou de alternativas físicas pra garantir a sustentabilidade de algum momento de sua história, não? Como músico. Você já vendeu um cedezinho...
Carlos Gomes: Quando esse movimento precisa ser comercializado muda o valor do que é produzido?
Paulinho do Amparo: Sim. Mas eu acho que eu sou o grande suporte da minha música. Há essa questão da autoria. Eu gostava de dizer que autoria só devia ser atribuída a crimes (risos). A música sai da sua voz e ela ainda é sua? É muito estranho pensar assim. Eu gosto muito mais de “Azul Claro” na voz de Isaar do que na minha.
Rafael Cortes: Enquanto proposta eu acho que não. Que continua tendo o mesmo valor. Aí só vai empacotar e repassar. Particularmente, eu adoro o formato empacotado. Eu adoro um disquinho. Tenho uma coleção grande. Feita desde que sou criança. O meu investimento maior na vida é em comprar discos. Sou um defensor dos discos físicos. Eu tenho um grande prazer em consumir e me relacionar com isso. Na difusão disso. Mas que isso vai ditar o que é arte ou ditar se aquela expressão tem mais valor ou menos valor que a outra, eu discordo.
Rafael Cortes: É tua?
Paulinho do Amparo: É minha aquela letra e eles fizeram o arranjo. Rafael Cortes: É mesmo? Eu não sabia.
Paulinho do Amparo: Mas valor estético, a música anda tão ampla. Temos coisas de áudio-arte que jamais seriam consideradas música. Isso criou uma nova palavra.
Carlos Gomes: Tem um pesquisador (Othon Jambeiro) que fala que: “A música considerada como atividade íntima de um compositor, de um músico, de um amador que assovia para si mesmo, considerada como uma atividade estritamente íntima, não tem o menor valor real”. Só quando produz um efeito social, dentro de um contexto cultural e de mercado. O que vocês acham?
Rafael Cortes: E valor pra quem, né? Pode ter valor pra uns e não pra outros.
Paulinho do Amparo: Rafael empacota música, mas esse pacote envolve muito mais do que música. Rafael Cortes: Sim, sem dúvida.
Rafael Cortes: Aí eu discordo.
Paulinho do Amparo: O que seria uma música que não tivesse cheiro nem odor? Eu ouço pouca música, voluntariamente, até por às vezes trabalhar com isso, eu procuro deixar meus ouvidos sempre fora, eu não tenho uma playlist. Eu não coleciono. Então, a música chega a mim de muitas formas, e talvez isso seja o que eu
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Paulinho do Amparo: A música estaria no ar. A maneira de se referir a ela, esse suporte, vai estar no músico, antes de mais nada. Claro, é a voz de alguém, é alguém que tocou. Eu já trabalhei com música eletrônica tentando que o computador compusesse pra mim. Tocasse pra mim e eu ter apenas que selecionar, passasse a
filtrar, e aí estou eu. Não tem como tirar de mim esse suporte. Sou eu a minha música.
o mercado não está muito atento, que é a gravação demo, a bootleg, o raro. Eu queria que você falasse um pouco disso.
Carlos Gomes: Há uma relação de conflito entre a criação íntima do compositor “a música está no ar”, como você falou - e a hora em que ele tem que transformá-la em um produto?
Rafael Cortes: Essa é a essência do selo. Eu formatei o selo dessa forma porque inicialmente é um objeto de interesse meu, desde moleque nas minhas escavações buscando discos. Eu sempre gostei de encontrar essas raridades, os outtakes, as versões demo das bandas e artistas que eu curtia. Eu quis formatar o selo pra poder disponibilizar esse tipo de áudio pra mais pessoas que tivessem interesse. É curioso que no meio do caminho eu encontrei pessoas que eu tinha certeza que iam se interessar por esse tipo de áudio. Mas eu já ouvi elas falando: “Se fosse uma coletânea, ou se fosse um disco de carreira... Deve tá mal gravado, né?” Eu não tô nem aí se é mal gravado. Óbvio que eu vou tentar tratar esse áudio da melhor maneira possível. Mas como você vai tratar uma fita demo do Devotos gravada em quase nada de canais, não sei quantos, mas gravada em pouquíssimos canais, nas condições que os caras tinham, e uma fita que é do começo da década de 1990? É lógico que ela vai estar meio detonada. A gente extraiu o que é possível dali. E é isso que me encanta, independente da qualidade que eu vou encontrar ali.
Paulinho do Amparo: Trabalhar só é trabalho quando é para os outros. Você não trabalha pra si próprio. O que você faz por si próprio tem algo mais do esforço e da vontade, do que até da necessidade. Vender, viver, talvez fosse assim. Sociedade é dinheiro. Política é economia. Senão, a gente podia voltar e deixar o rabo crescer, os pelos, e subir nas árvores. Muito agradável, por sinal, a vida. Difundir mesmo passa pelo dinheiro. Não há movimento dentro desse tecido social que não seja uma troca. E o dinheiro, como o sangue, é esse vetor. Seja da maneira que você imaginar. Dinheiro eletrônico, uma troca de favores etc. Tudo tem valor. Apesar de todo o valor ser negociado, ser fruto de um consenso. A música é muito abstrata quando se põe um valor. Vai estar agregada a uma marca? A uma venda de discos? A um cachê de show? Isso tudo é negociado com tantos parâmetros, que não é a música em si. Não existe música pura. O suporte dela é o doido do músico. Não tem como dissociar isso. Não vamos ter robozinhos tocando que não tenham sido pré-manipulados.
Carlos Gomes: A ideia de ser em vinil, o capricho do vinil – você tem trabalhado com artistas no projeto gráfico – é pra contrapor com isso de ser uma demo?
Carlos Gomes: Nesse caso, a Assustado Discos tem trabalhado em resgatar o que
Rafael Cortes: Não necessariamente. Foi
“Há uma relação de conflito entre a criação íntima do compositor e a hora em que ele tem que transformá-la em um produto?” Carlos Gomes 18
vinil porque é o formato que mais me interessa. Eu vi uma oportunidade de colocar em prática um sonho antigo. As fábricas gringas estavam mais acessíveis. As pessoas prensando pequenas tiragens e o reaparecimento da Polysom. Com relação ao formato, foi mais no sentido de ser o meu formato preferido. Existe esse cuidado com a arte. Eu sou casado com uma artista plástica e desde que a gente está junto, que faz quase 10 anos, eu comecei a flertar com esse universo da arte, a entender, a estudar, e a ter acesso a muita coisa desse universo. É um universo que me encanta hoje. Tem muita coisa de arte contemporânea rolando. Existe essa preocupação de sempre tentar associar cada lançamento a um artista plástico, pra gente agregar mais àquele produto, como Paulinho tava falando. Estou ampliando a ideia do selo, vou trabalhar com novos lançamentos também. Com alguns projetos especiais que não são raridades de artistas. Tirei o foco da raridade, mas sempre vai ser a essência do selo, eu vou querer trabalhar com isso, mas abrir para novas possibilidades.
as colocam. Vai ser minha aposentadoria estilo Samico. Esse ano eu vou começar a pesquisa com coisas “Do it yourself”. Eu vi na internet um cara riscando num CD com agulha fria até. Esse tipo de experiência é muito válida. Eu já venho espalhando isso, já tenho gente interessada, tanto como sócio, como clientes que entrariam com um adiantamento e vê como isso se desenrola. O mercado, Rafael, que é um herói, já desbravou, e é possível.
Rafael Cortes: É claro. É nicho, mas é possível. Dentro desse universo de tiragens que a gente tem hoje, é completamente viável. Paulinho do Amparo: Completamente. De Eddie a Isaar, e até coisas que eu não tenha contato direito vão chegar. Muita gente está interessada mesmo. A questão de levantar esse dinheiro e botar a mão na massa. É um passo de coragem, mas vai rolar.
Carlos Gomes: Diante da profissionalização da música, com o avanço da tecnologia e as gravações caseiras, lo-fi; dá pra imaginar como o mercado vai se comportar diante do músico que grava lo-fi e o do que só grava em estúdios de alta qualidade?
Carlos Gomes: Paulinho, pensando em como a Assustado Discos trabalha o objeto, como você vê isso na sua música? É uma segunda etapa o objeto, como a música vai chegar nas pessoas, ou você, por ser artista plástico também, já cria pensando nisso? Paulinho do Amparo: O selo de Rafael me inspirou em uma coisa. Há uma máquina que risca direto no vinil. É o Vinyl Record. É uma máquina alemã. O custo benefício dela é três mil euros. Dez mil reais. Grava em estéreo e tal. O vinil com uma capa que fosse uma gravura, ou o próprio vinil ser uma áudio-gravura é ser um valor agregado ao máximo. Pra uma composição estar finalizada naquele formato, eu acho elegantíssimo. Agregar o cara que cortou essa masterização em outro padrão, outra referência. O vinil ser de fato um material diferente. O vinil é PVC, mais grosso, mais robusto. E sei lá, 20 cópias? Quanto custaria cada cópia dessa, com um nome de um artista agregado também? É um mercado que não exclui outros, é um mercado de arte com “A” maiúsculo, como as pesso-
Paulinho do Amparo: O lo-fi não é lo-fi.
Carlos Gomes: Não é mais lo-fi?
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Paulinho do Amparo: Nunca foi. Esse termo é uma autoironia patética. Tudo pode ser masterizado. O ruído tá lá. Qualidade de estúdio é algo que eu desconfio. Qualidade, bem-estar da composição... O estúdio pode ter os melhores equipamentos e faltar uma árvore. Eu gravo, eu faço pré-produção, esse é bem o termo, com artistas. Benedito da Macuca, que é um sanfoneiro. Os artistas de Olinda, de rua. Eu agora vou trabalhar com um: Wagner Roberto. Ele toca MPB de barzinho, mas ele tem aquela cara de mariachi assassino. E ele gosta de reggae. Vou colocar esse cara pra tocar um reggae, uns dubs que eu programei. Vai ficar do caralho. Eu produzi Plínio Varjão, é um bluesman do sertão, muito doido. Ele odeia reggae, e eu transformei em reggae algumas coisas dele. Ele entendeu, respeitou, mas não é a praia dele, ele quer um blues, um ro-
mercado, bitcoins, sei lá o quê. Meu queixo caiu, eu entendi que o virtual é virtual mesmo. O teste de Turing, pra determinar se foi uma pessoa ou um programa que gerou um clique funciona.
ck’n’roll. Muitos artistas passam na minha casa nesse momento, de ainda compor. Então, o taxímetro de uma pré-produção é diferente de um de uma produção. Daí o estúdio ter se tornado algo meio ilusório. As pessoas acreditam na qualidade do equipamento. Desde que você minta que aquele equipamento é bom (risos).
Carlos Gomes: Voltando pra Assustado, eu gostaria que você falasse sobre a questão do acervo.
Rafael Cortes: Eu acho que o que mais importa dentro de um trabalho é a verdade dele, é a essência daquele artista, do trabalho, são uma série de fatores. Óbvio que qualidade de equipamento vai influenciar em uma coisa ou outra técnica, mas acho que isso não necessariamente faz com que outro gravado em casa da forma mais tosca possível...
Rafael Cortes: Na verdade, é curioso isso. Eu tenho que ter o cuidado do maníaco que tá baixando ali o dia inteiro. Eu tenho cinco mil discos. Mas isso é um cuidado muito grande. Paulinho do Amparo: Cinco mil horas de audição... Rafael Cortes: Mais, né?
Paulinho do Amparo: E não é o parâmetro de jeito nenhum. Uma fita demo de John Lennon tem um sabor que um disco dos Beatles não tem, e vice-versa.
Paulinho do Amparo: Não, eu tô brincando. Mas veja só, são cinco mil horas de audição.
Rafael Cortes: É maluco. Eu só cheio de manias pra ouvir música. O disco quando ele chega na minha casa, ele tem todo um processo até entrar na coleção organizada. Ele passa por muitas agulhadas por um bom tempo, pra eu entender, gostar ou não gostar, pra eu dissecar aquele disco de alguma maneira. Isso é muito importante, e eu sinto falta disso no universo da música digital. Das pessoas de fato pararem pra entender o que elas estão ouvindo, pararem pra consumir de verdade aquela música. Pra saber comentar alguma coisa.
Carlos Gomes: E a questão da difusão da música digital? Por exemplo, a relação do fã que tem uma biblioteca de milhares de faixas em MP3 e não tem tempo de ouvir isso tudo, em contraponto com aquele que tem no acervo 100 discos físicos e uma relação mais próxima com os álbuns que possui. Paulinho do Amparo: Tem um jovem com quem eu também estou trabalhando, o Mc Jiraiya, ele me ensinou que é possível comprar visualizações e Likes, e que literalmente isso é feito num galpão por chineses apertando. O curioso, e outro amigo meu que trabalha com internet, João Falcão, ele disse que é verdade, que o Like, o clique, é a moeda. O valor da internet está no clique. Existem bancos de clique. Essa compra é interna ou externa? Interna é o Youtube, que você paga e ele bota 50 mil visualizações. Essa outra empresa, não. Você vai querer que aquela semana tenha uma visualização rápida. Essa é a difusão. A internet é uma grande covardia. Ela não supriu um espaço que a rádio faz falta. A difusão em TV, a comunicação aberta, de fato. O Whatsapp, o boca a boca é poderosíssimo. Mas será que não é uma bola de neve? Algo já foi empurrado, veio de cima pra baixo? Quando eu soube que a visualização é comprada, que tem um valor de
Carlos Gomes: Você acha que o download é só a primeira fase da audição, vamos assim dizer? Rafael Cortes: Não necessariamente. Tem gente que escuta música na internet, de uma forma como qualquer pessoa que tem uma coleção de discos. Eu acho que isso acontece sim. Eu tenho amigos que escutam dessa forma. Eles não têm mais discos. Mas tem uma coleção virtual bem organizada. Paulinho do Amparo: Você é baixador?
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Rafael Cortes: Eu baixo alguma coisa mais por pesquisa. Quero ouvir o disco tal pra ver qual é. Alguém comentou alguma coisa, eu vou dar uma olhada. Mas não tenho 100 discos no meu computador. Escu-
“Tem pessoas que trabalham com música hoje, que você não consegue trocar ideia sobre um disco, falar sobre a história de um artista.” Rafael Cortes
to via streaming também.
internet, que é a mais rápida. Já o disco físico, você tem um ritual de ir à loja...
Paulinho do Amparo: É meio compulsivo cara. É incrível, meter a mão, pegar a loja toda. Não vai ter tempo de ouvir.
Paulinho do Amparo: Você não baixa o vinil, baixa o áudio. Por melhor qualidade que tenha, a Wave mais bonita que tenha. Você não baixou um vinil, um CD, uma fita. É o arquivo digital. Essa codificação. Eu não sei como vai ter um controle de fato. Eu acho muito hipócrita quando as pessoas tentam defender o direito autoral, o direito comercial nesses termos. Propriedade intelectual é a única que pode não ser destrutiva. Ela pode ser minha e eu não lhe tirei nada. Não é como num pedaço de bolo. É muito mal arranjada juridicamente. Claro, você contrata alguém pra tocar, você compra algo físico que você considere original, tem um valor imenso. Não é apenas informativo, não é um gato por lebre. A pessoa conheceu a música porque um amigo gostou, foi atrás. Finalmente essa pessoa teve grana e o prazer de adquirir. Aqui estou com o vinil original do The Clash. Ah... A camisa é um disco, o merchandising é um disco nesse momento. A gente tava falando isso no Abril Pro Rock. A gente foi ver o ‘merchan’ do Moveis Coloniais de Acaju, e a galera tem uma variedade de coisas.
Rafael Cortes: É muito doido mesmo.
Paulinho do Amparo: Isso passou rápido na minha vida. eMule e adeus.
Rafael Cortes: Eu acho que cumpre uma função super importante, inclusive pra mim. Eu que sou defensor dos discos e colecionador dos discos. Acho que é super válido, que agrega bastante. Mas tem todo esse outro lado que Paulinho comentou, da grana rolando, das manipulações. Tem pessoas que trabalham com música hoje, que você não consegue trocar ideia sobre um disco, falar sobre a história de um artista. São as coisas que eu mais gosto de conversar numa mesa de bar. Eu sinto falta disso. Paulinho do Amparo: Eu morro de vergonha quando eu não ouço o disco dos meus amigos (risos). Rafael Cortes: Eu sinto falta hoje da relação com os discos, com aquela obra. Ela tem um sentido de ser enquanto obra, mas do que as músicas isoladas. É importante entender aquele momento do artista, aquele conjunto de músicas. Carlos Gomes: Ainda falando sobre circulação da música, principalmente pela
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Carlos Gomes: Refletindo mais sobre a cena de música local, queria que vocês falassem sobre como o Estado trata a música tradicional, da cultura popular, como ele se utiliza dessa música, principalmen-
te durante datas festivas, para o mercado turístico.
cebem um valor, sei lá, 100 vezes menor do que um artista desses. Então, eu acho que já houve um passo de reconhecimento dessas manifestações. Acho que em alguns momentos tiveram alguns olhares mais atentos, mas de maneira geral precisamos avançar e equalizar um pouco melhor a situação desses grupos. Principalmente não retroagir, como essa história dos maracatus terem que encerrar às 2h da manhã, algo que é completamente sem noção. É impossível que quem tenha pensado nisso, conheça uma sambada de maracatu porque...
Rafael Cortes: Como eu sou um cara de fora, eu tenho uma tranquilidade muito grande pra falar sobre esse processo cultural/musical do estado. Eu tive a oportunidade de trabalhar cinco anos e meio dentro do Governo, na Secretaria de Cultura. Isso me possibilitou ter acesso a muita coisa. Eu moro aqui a oitos anos e meio e continuo me surpreendendo muito com as coisas que são produzidas aqui, daí, estou falando de maneira geral. Cultura tradicional, pop, contemporânea, tudo isso. É impressionante o quanto as pessoas têm uma capacidade de criar uma forma bem interessante aqui. Pensando em indústria, talvez faltem outras coisas. Não sabem empacotar direito isso, não sabem vender. Não têm incentivos direcionados de forma certa. Mas focando na questão da cultura tradicional. Antes de vir pra cá, eu trabalhava numa ONG com pesquisas da cultura tradicional do Sudeste. Era focado lá, nos interiores, que tem os congados mineiros, o jongo no Rio de Janeiro, o milho verde no interior de São Paulo. Tem um universo gigantesco desconhecido naqueles interiores. Muito mais que aqui. Aqui as pessoas já conhecem, dialogam com as culturas tradicionais. E aí vim pra cá, casei com uma pernambucana e ganhei de presente também a possibilidade de trabalhar na universidade com um etnomusicólogo chamado Carlos Sandroni. E participei de uns projetos muito interessantes no interior. Projeto com os Pankararu, daquele disco Responde a roda, que foi um disco bem interessante, que ele refez o trajeto que Mario de Andrade fez com a missão de pesquisas folclóricas na década de 1930 e registrou essas manifestações hoje. Então, é impressionante o quão rico são essas manifestações e o quanto são pouco valorizadas e, muitas vezes, exploradas aqui no estado. Hoje, a gente já tem uma certa valorização. Deles serem chamados para algum momento, mas é uma coisa ainda muito desconexa, por exemplo, com uma atração pop nacional que vem pra cá tocar. E, de repente, a gente tem um maracatu com 50 pessoas, e elas alimentam quantas pessoas? E re-
Paulinho do Amparo: Mas os argumentos são todos em relação à segurança. Não tem como botar um efetivo extra com hora extra...
Rafael Cortes: Mas no meio do canavial? Porque tá acontecendo isso no interior.
Paulinho do Amparo: A alegria não é institucional. Por mais que você consiga trabalhar com o que gosta, trabalhar não é se divertir. Todo o lúdico se dissolve nisso. O caso que é minha Olinda, coitada. Por que só tem carnaval em Olinda? Não é carnaval em todo lugar, é feriado em todo lugar, as pessoas não sabem brincar? Que propaganda enganosa, não passa nem bloco lá. E o que é o camarote? Querem dinheiro? Usem dinheiro para o que quiserem. Mas por que isso? Que ímã tem aí? A cultura popular é muito penalizada quando entra essa institucionalização. Não no momento de documentar e respeitar. O simples respeito teria dito: “A segurança deles é deles”. Não estou sendo hipócrita ou justiceiro. As pessoas vão pra Olinda, é incrível. A quantidade de confusão é pouca para o número de pessoas. As pessoas têm amor no coração quando vão brincar. Quem tem uma vingança pendente não vai pro carnaval brincar. Ninguém fica de bobeira com ódio. A cultura popular não precisa de certos incentivos, estruturas... Mas ela precisa de uma visibilidade para garantir esse respeito. Eu não sei o que justifica o cachê de Ivete Sangalo ser um milhão e o do maracatu ser 10 mil. Tá entendendo?
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Carlos Gomes: O Estado deveria repensar o valor cultural do maracatu e de Ivete Sangalo?
Paulinho do Amparo: Eu seria cruel se dissesse que o Estado não deveria se meter nisso. No momento festa, no momento lúdico, o Estado deveria dar uma seriedade disso de documentação, visibilidade, o tratar correto, pelo menos horizontal.
cerveja quente e de não ter onde sentar. Vai dando aquela loucura, os engarrafamentos, as vozes todas. O frevo continua em Olinda. Eu vejo ensaio de frevo na minha rua, nos Quatro Cantos, praticamente o ano inteiro. Os músicos fazem aquilo com a mesma necessidade com que eu toco as minhas infâmias, sabe? É uma descarga deles. São altamente talentosos, pessoas muito populares. Estão inseridas dentro de sua comunidade, e isso é o que faz acontecer o carnaval. A Prefeitura bota palcos, mas humilha as pessoas. Uma prestação de contas, pra quem não é um profissional de finanças, é um pesadelo. A questão do capital de giro é incrível. Claro que a Ivete Sangalo tem um cachê de um milhão, porque ela tem um capital de giro que permite não ser dolorido ela vir pra Recife, no Carnaval, e esperar seis meses da Fundarpe. As pessoas não têm esse capital de giro, elas fazem porque gostam. Mas continuo afirmando, o carnaval existe porque as pessoas querem, em qualquer lugar. A Região Metropolitana toda desce. Quatro milhões de pessoas, por dia, em Olinda e Recife. Essa é a estimativa publicitária dos patrocinadores. Eu não sei como as coisas conseguem conviver, essa espontaneidade e essa indução, a realimentação positiva. Eu só vejo colapso nisso. (risos) Vamos ver esse carnaval. Vamos ver essa copa. OC
Rafael Cortes: Eu acho que é isso. Equalizar. Entender qual é o papel, a importância e a história de cada um.
Paulinho do Amparo: Eu não vou ser desagradável e falar numa lavagem de dinheiro. Não vou entrar em acusações. Mas imagine como é irreal. E as pessoas vão dizer: “Eu quero mais é Ivete Sangalo, ela é a bombada”. O próprio maracatu falaria isso em algum momento. E queria estar lá. O que aconteceu com o maracatu que se estilizou. Não o maracatu, mas uma Timbalada, um movimento percussivo baiano. Do Axé mesmo, que gera uma Ivete Sangalo. Carlos Gomes: Paulinho, você que está mais ligado ao carnaval de Olinda, acha que o carnaval do Recife possui um modelo que também precisa ser repensado?
Paulinho do Amparo: Eu vou ver Arrigo Barnabé, e vai ser a primeira vez que eu vou ao carnaval do Recife, depois de uns cinco anos. Em Olinda, eu saio de dia, encontro amigos, volto pra casa e fico com a espingarda na frente. Não gosto mais de multidão. Aquela coisa desconfortável de
“A Prefeitura bota palcos, mas humilha as pessoas. Uma prestação de contas, pra quem não é um profissional de finanças, é um pesadelo.” Paulinho do Amparo
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artigo
Fim de festa, músicos a pontapés por Germano Rabello
Todos os anos, durante o carnaval, Recife e Olinda entram em frenesi. As multidões ocupam as ruas. Para os locais, talvez seja a manifestação mais característica de nossa identidade cultural. Para as pessoas de outros lugares, torna-se um ímã, exalando fascínio e curiosidade. E a esse poder de atrair, congregar pessoas, corresponde uma movimentação financeira. Nesse contexto, o valor da música ganha outros contornos. É uma festa convulsionada e megalomaníaca, de grandes proporções, em que se pode analisar algo de nossa relação com a música e a cultura. Não seria nossa cultura o que temos de mais forte? Nossa tradição cultural, ou sendo mais otimista e mais amplo, a capacidade de reinventar e ressignificar essa tradição? É nesse momento em que a cidade (entendida aqui como Região Metropolitana) mostra um outro tipo de valor ao mundo: a originalidade. Por mais que não se procure aqui defender nenhum tipo de purismo, deve-se notar a diferença causada pela egrégora criativa. Em cidades em que o desenvolvimento econômico surge sem 24
uma produção cultural à altura, a tendência é a dominação por micaretas (no carnaval), por bandas cover (o resto do ano), enfim, por soluções fáceis e com menos personalidade. Sim, o Recife não está isento disso, mas ao menos aqui existem outras opções. Fazer dos shows um eixo principal carnavalesco é fenômeno recente. No passado, as orquestras de frevo, oriundas das bandas marciais, conduziam a festa sozinhas. Dos trios elétricos e freviocas, foi se fortalecendo a ideia de polos de animação com palcos e programação estruturada. Nesses shows, cabe o multiculturalismo (slogan do PT a partir da gestão do ex-prefeito João Paulo): um show de Devotos pode preceder um de Alcione. Nada de errado, desde que não se sufoque a iniciativa dos blocos de rua, e do carnaval feito espontaneamente pelo povo fantasiado, que faz parte da nossa originalidade. Claro que a interferência do poder público na cultura nem sempre é bem intencionada ou bem realizada. Basta observar o desmando administrativo que foi a contratação do Karametade no carnaval 2014, nove shows por R$ 75 mil cada, dando margem a vários questionamentos (verba liberada por emenda parlamentar, sem processo de curadoria). Outro desmando foi o boicote aos músicos populares da Zona da Mata. Quando o Ministério Público estabeleceu um toque de recolher
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às 2h da manhã e a Polícia Militar interrompeu os festejos dos brincantes do maracatu rural – espetáculo ritualístico e artístico que tradicionalmente acontece até o raiar do dia –, a própria essência da brincadeira ficou ameaçada. O carnaval de Pernambuco não é só frevo. É também maracatus de baque solto e baque virado, caboclinhos, afoxés, escolas de samba. A diferenciação entre a cultura popular e a cultura pop existe na nossa política pública: os grupos de cultura popular recebem menores cachês, um tratamento visivelmente menos respeitoso. Nós (artistas, espectadores, contribuintes) precisamos ser respeitados, precisamos sedimentar essa noção de respeito. A mobilização e discussão em torno desses temas foi grande e imediata. O valor da música enquanto mero cachê é um assunto técnico, discussão de sindicato, mas do valor da música enquanto identidade cultural, é algo que nos atinge a todos. Pois sentimos como algo vital. Se os brincantes da Zona da Mata ainda fazem sua brincadeira, nunca foi por dinheiro, mas por uma força visceral que afirma: isso é nossa vida. A existência do mercado carnavalesco de shows, seja para as bandas dos palcos ou para as orquestras de rua, é uma alternativa que ainda deve se estruturar melhor para os músicos. É nítido que ainda vale aquele ditado: “Fim de festa, músicos a pontapés”. Os ins-
trumentistas e cantores sofrem para receber seus pagamentos, esperando meses, anos, da Fundarpe, das Prefeituras. Em especial, quem não passou por favorecimento ou apadrinhamento. Porém, não é incomum que bandas nacionais mais famosas recebam adiantado. Por mais que a administração pública possa ecoar com justiça as leis de oferta e procura do mercado (em que se baseiam as licitações), e que isso justifique grandes diferenças de cachê, causa repulsa ver os músicos locais tratados como cidadãos de segunda categoria. A função do Estado na cultura e na música seria incentivar a produção local. Terão os secretários e burocratas a noção exata de quantos quilos de feijão um trombonista precisa comer antes de subir as ladeiras de Olinda? Na marcha de bloco “Valores do Passado”, Edgar Moraes menciona antigas agremiações já extintas: Bloco das Flores, Andaluzas, Cartomantes, entre outras. Há um elemento saudosista muito forte, presente no que hoje se convencionou chamar blocos líricos. E no Carnaval, como um todo: em todo Brasil, as marchas e frevos que escutamos são praticamente as mesmas todo o ano, escritas há mais de quarenta anos.
Com exceções de Salvador (onde a indústria do axé sempre apresenta novos hits) e das escolas de samba do Rio e suas derivações pelo Brasil afora (embora os sambas-enredo, obrigatoriamente novos, não tenham vida pós-sambódromo). Que a tradição não nos faça criar arte de museu! Que a arte reflita a nossa vida, e que nos faça repensar nossos contextos, mentais, sociais, políticos! Que nos desafie a criar novos contextos, que porventura nos levarão a novas direções da arte, novas valorizações da arte. OC
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Neste exato momento, enquanto escrevo, enquanto você lê, folheia rapidamente, cai por acaso nesta página, Juliano Holanda está compondo uma nova música. Uma que talvez nunca escutemos, já que pode ser desde uma melodia, pedaço de letra, harmonia que seja. A arte de Juliano está em compulsivamente criar; o prazer incide nessa ação nat ural de quem vê na música muita mais que uma profissão. Não são músicas para o mercado. Tantas criações just ificam o número considerável de canções gravadas. 200? Quem terá essa conta? É tanto, que o músico é afeito à parceria, seja mesmo na composição ou nas inúmeras bandas que ele teve e cont inua a ter. Juliano não recusa a convites, pelo menos aqueles que mantenham o brilho da criação, o mesmo absorvido na infância, na companhia do também compositor-pai Júlio Holanda. É desse brilho que procura tratar o art ista em seus álbuns. Invisível persona, visíveis canções. por Carlos Gomes. 30
entrevista
Foto: Renata Pires 31
Em 2013, você lançou ‘A arte de ser invisível’; no site do Álbum Itaú Cultural, você fala que esse disco - o título da entrevista é “Correção de rota”- é como se fosse uma correção de rota na tua carreira, e o entrevistador fala em “sair do anonimato”. O título do disco também remete a isso, o “invisível”. Eu queria que você começasse traçando a tua rota como instrumentista e compositor, nesses últimos anos, pra a gente entender essa “correção de rota” que você menciona. A “correção de rota” é porque quando eu comecei a trabalhar com música, o que sempre me encantou, apesar de eu ter começado muito novo, foi a composição, porque meu pai compõe. Então, eu já tinha o contato, de ver uma pessoa compondo, como é que se constrói, partir do zero para alguma coisa. O aspecto da música que sempre me interessou foi a criação, do que, propriamente, o “criado”. Mas, pelos processos das coisas que vão acontecendo, eu acabei me tornando mais instrumentista, produtor, do que compositor, durante muito tempo. Acho que isso aconteceu porque eu era muito novo e tocava razoavelmente bem, pra minha idade, principalmente.
Violão? Violão. Depois, guitarra. Era engraçado ver um menino novo tocando música de Chico Buarque, Walter Franco, Janis Joplin, coisas assim. Assim, começaram a pintar alguns trabalhos. Primeiro com artistas que conviviam com meus pais. Depois, com os amigos do bairro eu formo uma banda, que era uma coisa mais minha. Quando você começa a tocar com uma banda, o primeiro papo é “vamos fazer cover”. Eu estava aprendendo a tocar, eu não sabia como era tocar numa banda. Essas bandas de covers foram evoluindo para outras coisas. Toquei muito música que tocava na rádio, na época. Em um terceiro momento, tocavam na rádio de uma forma rentável, comecei a receber por isso. Então, toquei muito em banda, em baile, trio elétrico. Mas essas coisas que eu fiz no começo, eu nunca fiz porque precisava viver daquilo. Eu era muito novo, morava com meus pais. Eu fiz porque eu queria aprender, saber como era passar por aquilo. Na época, eu achava que pra ser o músico que eu gostaria de ser, teria que entender como era esse formato. Fazer um baile de quatro, cinco horas, se eu conseguia. Me testar, também, saber o quanto eu era capaz de desenrolar. Eu acabei entrando nessa de instrumentista, muito por isso, embora paralelamente, sempre compondo, fazendo minhas músicas, colocava numa banda em que eu estava tocando. Foi mais ou menos isso, até os vinte e poucos anos. Meu primeiro casamento foi entre vinte e um ou vinte e 32
O último disco da Orquestra Contemporânea de Olinda foi lançado em 2012, com produção musical de Arto Lindsay. Já A Arte de ser invisível, foi lançado pelo Núcleo Contemporâneo com produção musical de Juliano e participações de Benjamin Taubkin, Jam da Silva, Siba, Marion Lemonier, Jr. Black, Marcelo Pretto, Tatiana Parra, Laya Lopez, Carlos Ferrera, Geraldo Maia e Rob Curto. O segundo solo saiu em 2013 e conta com composições de Juliano e de parceiros como Tomaz Alves, Publius e seu pai Júlio Holanda.
não se desfez por causa do Rabecado, que acabou sendo a “liga” da história, porque Gustavo já fazia um forró em Olinda, e a gente já frequentava. Um dia, eu fui pra dar uma olhada, no outro levei o baixo, a gente já tinha algumas músicas ensaiadas, aquilo foi se criando e virou uma banda. Mas foi uma coisa que foi acontecendo naturalmente, em momento nenhum a gente parou e pensou em fazer uma banda de forró. Rabecado foi surgindo por conta da amizade que a gente sempre teve – tem até hoje – e gostávamos de tocar juntos. Como a Azabumba estava na “geladeira”, não estava fazendo show, a Rabecado foi o playground, pra gente brincar, se divertir, e acabou gerando grana também, porque a gente tocava todas as quartas-feiras, religiosamente, no Bar Virgulino Cachaçaria, na Rua do Sol, durante três anos. Só que, nessa época do Azabumba – a cena recifense tem a primeira etapa de ruptura, que é quando surge a Nação Zumbi e Mundo Livre S/A, depois tem uma etapa muito regionalista. Não gosto dessa palavra “regionalista”, mas tem uma valorização da cultura popular muito forte, que é quando a gente aparece, também. É quando surge Cordel, Mestre Ambrósio se solidifica, a Comadre Florzinha, Chão e Chinelo, Chocalhos e Badalos. Eram grupos que, mais ou menos, se frequentavam e tinham referências próximas. Naquele período parecia ser um caminho a seguir. Tinha a descoberta particular de todos, de se voltar para a realidade do estado de Pernambuco. Todas essas bandas acabam sendo fruto disso, porque, embora Cordel e o próprio Mestre Ambrósio tenham começado a apontar para outros lugares...
dois anos, então, eu saí de casa muito cedo. Sair de casa, pra mim, sempre significou viver por si, me sustentar. Nessa época, eu já tinha um grupo de amigos músicos mais próximos, como Breno Lira, Tomás Melo e Publius. Foi quando começaram a surgir pequenos grupos de maior expressão artística, que o desenrolar vai chegar na Azabumba, quando eu conheci Gustavo Azevedo. A Azabumba foi o seu primeiro trabalho autoral? Foi. Foi um momento pra gente que surgiu a possibilidade de desenvolvimento de um trabalho que tinha esse peso autoral mais forte, de criar uma sonoridade sem estar preocupado com o que iria rolar comercialmente. Ficou conhecido como um momento da época, também, que estava surgindo. Havia Mestre Ambrósio... foi, mais ou menos, metade do movimento Mangue, depois do Afrociberdelia. Mestre Ambrósio tinha o segundo disco. Foi quando surgiu a Azabumba. Posso está errando a cronologia, mas é mais ou menos isso. Cordel do Fogo Encantando começando. Quando saiu o primeiro disco do Cordel, a gente já existia como banda. O disco saiu em 2005, mas ele começou a ser gravado dois anos antes de sair. Demorou muito tempo pra ser gravado. Mas é uma banda que, pra mim, foi muito determinante – a relação de amizade com Gustavo Azevedo, Publius, Rudá, Bruno Vinezof, a galera da formação primeira do disco, porque tiveram outras – pois a banda também era um laboratório, a gente podia testar coisas. Publius também compunha, a gente começou a fazer música juntos. No primeiro momento que eu entrei – ele e Gustavo já eram da banda – Publius fazia as músicas dele e eu as minhas, depois a gente começou a colaborar, Gustavo também... A próxima etapa foi o Rabecado? Quando Azabumba grava o disco, acontece um problema interno na banda, aí a banda quase se desfez. Só
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Parecia um caminho natural pra vocês? Foi. Havia os lugares que a gente já tocava, um público já frequentava. Tinha uma inocência muito grande, no processo. Não uma inocência ruim, mas boa, de descoberta mesmo, de aprender sobre seu
“Ariano sempre teve uma posição de bastião protetor de um certo feudo cultural, que também tem o mérito dele, porque era necessário que alguém se colocasse de uma forma mais crítica.”
estado, seu lugar – que eu sinto falta, hoje em dia. No momento seguinte, há uma aversão a isso. Na época em que eu tocava guitarra, acabei indo para o baixo muito por isso, porque guitarra, nesse período, virou palavrão. Nenhuma banda, das que eu falei, tinha bateria, nem guitarra. Chão e Chinelo e Mestre Ambrósio tinham, mas começaram a diminuir. Hoje em dia, está acontecendo o oposto, que penso ser resultado da internet, da facilidade de acesso às coisas. Nessa época, eu conhecia Ave Sangria, Marconi Notaro, Flaviola, porque eu tinha esses discos do meu pai, como eu tenho até hoje, os vinis originais da época. Mas nem todo mundo tinha acesso a isso. Então, foi um recorte daquele período, também, da música feita em Pernambuco. Quando essas bandas surgem, logo após o Manguebeat – a influência dos ritmos regionais, do maracutu, do coco... Parece que foi um estalo. Ninguém pensava nisso, e Chico Science, de repente, pensou, ou era algo natural, só que o mercado, ou a mídia, não dava a devida atenção? Quando a gente começou a fazer, Chico Science já existia como banda. Mas, assim, eu nasci em Goiana, então eu já conhecia o Cavalo Marinho. Talvez, o grande estalo do que foi o movimento Mangue foi a possibilidade da síntese, como ele fez, porque já tinha sido feita por outras pessoas. O próprio Alceu Valença já tinha feito, e outras bandas. Geraldo Azevedo tem maracatu. No disco De outra maneira, na última música é um maracatu, que depois ele regravou no disco Berekekê, isso, muito antes de Chico Science existir.
Nessa época, como vocês viam o trabalho que Chico Science & Nação Zumbi faziam e, ao mesmo tempo, o trabalho de Antônio Nóbrega, Antúlio Madureira... Por exemplo, Ariano Suassuna criticou o Manguebeat quando surgiu. Era um racha que vocês tentavam resolver, fazendo música, ou não tinha como se resolver isso? Tinham muitas discussões, de diversas naturezas. Desde tipo de timbragem, a gente conversava muito, entre os músicos, sobre opções e... Quer dizer, passou a se conversar um pouco depois. Em primeiro momento, nem se conversava muito sobre 34
isso, simplesmente aconteceu. Acho que isso eram coisas que coexistiam. Talvez o mundo, na época, não fosse tão preto e branco, como é hoje em dia. Acho o mundo hoje mais... Dividido em nichos? É. Na época não tinha essa coisa tão dividida assim. Então, o cara que gostava de Nóbrega também gostava de Chico Science. Ariano sempre teve uma posição de bastião protetor de um certo feudo cultural, que também tem o mérito dele, porque era necessário que alguém se colocasse de uma forma mais crítica, em relação a algumas coisas, pra não ficar aquela coisa de estar puxando só pra um lado. Não pra baixo, mas criando um suporte pra um certo lado. Não sei se da parte da gente havia tanto problema com isso, não. O Sá Grama estava começando, que já era Armorial, mas apontava pra outro caminho. O próprio Antúlio já é Armorial, sem ser. Acho que coexistia. Eu não percebo uma ruptura. Na tua trajetória, como chegou a Orquestra Contemporânea de Olinda? Pra quem vê de fora, a Orquestra parece ser montada para servir ao propósito daquele som. Como se fosse destinada a músicos mais experientes. A Orquestra foi um projeto de Gilú Amaral. A gente já tinha trabalhado em alguns projetos, acompanhando artistas ou em trabalhos individuais. Uma vez, ele fez um show em Olinda, chamou alguns grupos, algo do que seria a pré-Orquestra, e eu fiz parte – a gente é amigo há bastante tempo. Na verdade, o projeto foi ele quem realizou. Ele queria um grupo que fosse essencialmente olindense – se é que existe uma coisa assim –, que tivesse uma pegada de música dançante e elaborada, ao mesmo tempo. Olinda tem uma coisa muito forte com a África. Então, essa referência a gente sempre teve e tem até hoje. Até porque, talvez seja este o elo de ligação de todos que estão na Orquestra, o gosto pela música africana. Então, você vai achar coisas
de Cabo Verde, de Angola. Isso foi no começo do Afrobeat. Tinham os metais. O Fela Kuti foi uma referência, principalmente no começo. A banda foi pensada, houve um direcionamento na construção.
Em “Pra saber ser nuvem”, a guitarra tem uma presença semelhante a uma segunda voz, em que vai costurando as melodias junto ao teu canto. Esse tipo de arranjo é característico no teu trabalho, de uma forma geral, ou foi uma necessidade que quisesse fazer justamente nesse disco? Foi uma coisa do disco. Porque eu queria o “Nuvem” com um conceito claro e definido. Então, pra mim foi natural partir de uma instrumentação única: baixo, bateria e guitarra, embora tenha viola e baixo acústico, mas, estruturalmente, é basicamente a mesma coisa. Tem um pouco a ver com o jeito que eu toco guitarra, com o fato de que eu não me considero um cantor tão desenrolado, é um processo que ainda estou desenvolvendo. Mas por outro lado, já me considero um guitarrista mais fluente. Então, ter a guitarra próxima da voz, também foi um jeito de dizer, “Olha, vamos lá, estou por aqui”. Porque a guitarra é um ambiente que domino mais. Não foi uma muleta, mas algo parecido, onde eu pude me apoiar mais. Tem a guitarra pendurada junto com a voz, uma relação – é verdade, isso. Mas é um disco que tem muito da participação de Tom Rocha e Areia. O disco tem muito do trio, também, diferente do “Arte”, que é um disco que não tem formação fixa – embora tenha Tom e Areia, também, mas tem interferência de muitas outras coisas –, e também possui vários overdubs, eu toco vários instrumentos, no “Arte”. Para o projeto Dois Sons, você gravou duas músicas com Matheus Mota. Como você conheceu o trabalho dele? Quem me falou dele primeiro foi Rodrigo Édipo, numa assim de “você precisa conhecer. Conheça
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esse cara que é legal”. Eu o vi tocando, pela primeira vez, num evento do Outros Críticos, no Paço Alfândega, teve uma entrevista e um show dele. Foi a primeira vez que o vi ao vivo. Ouvi alguma coisa no SoundCloud, depois, fui ver o show. Achei bem interessante o trabalho dele, a forma como ele abordava. É uma coisa muito ímpar dentro do cenário, de uma forma geral. Tem um tipo de musicalidade, cuidado melódico, sofisticação que nem todo mundo dessa área de música mais alternativa tem. Depois a gente se conheceu, dentro do processo da vida. Quando rolou o convite, a gente fez as músicas juntos. Foi massa porque a gente também discutiu se faria o esquema de um gravar a música do outro, mas a gente acabou chegando num consenso que ambos somos, acima de tudo, compositores. Então, por que não compor coisas específicas, né? A gente fez duas músicas, gravamos, chamamos um baterista pra participar, Daniel, e Isadora Melo pra cantar com a gente. A composição das duas músicas foi um processo bem simples, a gente se entendeu muito no processo todo. Não houve nenhum tipo de embaço. Foi tudo muito simples, prazeroso e ambos entenderam a música um do outro. Eu gostei muito do resultado, acho que ele também gostou. Gostaria que você falasse sobre a cultura do show gratuito, principalmente aqui em Pernambuco. Com as mudanças de mercado, o show é a sua principal renda? Eu não gosto de pensar que o show é a única fonte de renda. Até porque eu me considero compositor. Se o show for minha única fonte de renda, estarei em apuros. Talvez o show seja a principal fonte de renda do técnico de som e do cara que aluga o palco, do que está por trás do show. Mas existe música que não é pra show, exatamente. Há formas diferentes de você apreciar aquilo. Esse discurso de que artista vive de show é recente. Garanto a você que não foi
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um artista que começou a dizer isso. Me soa mais como uma coisa de gravadora, ou imposta por algum nicho econômico, e as pessoas acabaram introjetando isso, e começaram a achar que fosse verdade. Mas o show é uma fonte de renda. Existem outras mil possibilidades, assim como existem mil possibilidades de formatos de shows diferentes. Você não pode pensar que ele só tem aquele modelo de formação. Aquilo é um trabalho que ele está fazendo. Mas o cara tem que ser mais do que aquilo, senão ele fica... Não tem valor... Ele precisa ser polivalente artisticamente porque isso é ser artista. Recife vem passando por esse processo, embora eu perceba uma diminuição. Mas teve um período que havia, praticamente, só show de rua. Inclusive, isso influenciou na própria sonoridade das bandas. Você vai ter poucos grupos com músico mais introspectivo, de tocar a música pra ser ouvida. Acabou que tudo ficou virando muito groove, direcionou um pouco a produção do que foi feito no estado – o que não estou dizendo que é ruim, é uma coisa que você percebe, observando. Mas de um tempo pra cá eu percebo um desenvolvimento de grupos que não têm essa postura, que estão vivendo à margem desse formato. Não acho que seja um problema, mas acho que pode ser um problema quando o músico ou o empresário se vicia num único formato. O fato de você estar numa grade de eventos de uma prefeitura ou do governo do Estado, não deve anular o show que você faz com bilheteria. O show feito “pré-pago”, digamos assim, deveria ser a exceção, o incentivo, de alguma forma, para criar um capital de giro, e não a pessoa viver, exclusivamente, do dinheiro do poder público. Que a vida real, na verdade, é a do borderô. Aquela que quando você acaba, recebe o cachê. O outro lado tem mais a ver com questões políticas, digamos assim, de relacionamento. Tem a ver com questões que não estão, necessariamente, ligadas à música.
Também não sou desse discurso de ter que ficar o tempo todo malhando, porque isso é horrível. Eu não acho horrível. Num dado momento, atrapalha, mas as pessoas têm que se organizar e se adaptar a esse tipo de realidade. Tipo, eu posso não querer pagar pra ver um show do Eddie que ele vai fazer no Marco Zero. Mas o Eddie pode fazer um show que eu queira ver em outro formato, e eles são capazes de fazer, num lugar fechado, com público reduzido. Tanto posso ir ver o show feito no Marco Zero como o outro também, com outro tipo de abordagem. OC
Foto: Renata Pires 37
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opini達o
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Velhos hábitos, novas formas de consumo da música por Raquel Monteath
Lá no início da década de 1990, o vinil fez sua mochila e saiu para passear. Deu uma voltinha por aí, achou esquisito ver suas belas capas de quase 30 cm. serem resumidas aos 12 cm. dos CDs, mas foi paciente. Sabia que voltaria, mais cedo ou mais tarde, assim como no cíclico mercado da moda. Resistiu nas casas de taco de madeira no chão e azulejos antigos, dos mais saudosistas, daqueles que cantam as músicas dos lados A e B em sequência. Não é novidade alguma que, após esse hiato de mais de 20 anos, o formato foi ganhan-
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do cada vez mais notoriedade e representa hoje um crescimento – ainda que tímido – no gráfico do consumo mundial da música. Só no ano passado, o Reino Unido movimentou cerca de 700 mil unidades, segundo dados da The British Recorded Music Industry (BPI), uma das principais associações da indústria fonográfica. O fato simbolizou o melhor resultado de vendas nos últimos 12 anos, e quem liderou a lista foi o duo francês Daft Punk, com o seu álbum Random Access Memories, lançado em 2013.
Do lado de cá, a crescente procura por vinis pode ser percebida em certos nichos de consumo, como feiras e sites especializados, sebos permanentes e megastores. Até a Polysom, única fábrica da América Latina (situada em Belford Roxo, no Rio de Janeiro) reabriu as portas em 2009, diante da crescente procura do público, relançando álbuns raros, como o homônimo disco de estreia de 1973 dos Secos & Molhados, além de lançamentos, como o álbum Efêmera, da cantora Tulipa Ruiz. E a aposta esteve tão certa que a empresa alcançou, em 2013, um crescimento de 140% na produção com relação ao ano anterior. “O que vemos como um ressurgimento do disco de vinil é um fenômeno de nicho, são pessoas que querem manter uma relação material sobre a música. É bom lembrar que quando você compra um álbum no iTunes ou um livro no Kindle você está adquirindo uma licença de uso, que é bem diferente de um produto físico, que posso, por exemplo, deixar para meus filhos e netos”, comenta o músico e designer H. d. Mabuse. Pensando na discussão – e interferências – entre o digital e a cultura desde a época do Manguebeat, Mabuse criou em 2002, junto a artistas, músicos e programadores, o coletivo Re:Combo, que apesar da curta duração, incitou importantes debates sobre a cultura livre e os direitos autorais na internet. À época de sua criação,
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o coletivo chegou a realizar jam sessions via rede, inspirando projetos de colaboração coletiva de música. “É curioso ter em mente: na mesma medida em que uma opção estética (na música) leva a uma forma de produção, quando se mergulha na vertente escolhida, as suas características intrínsecas modificam a música (o meio é a mensagem). Para mim, isso significa apenas que temos vários caminhos para uma produção criativa, seja ela analógica ou digital. Desde que se entenda a produção como parte fundamental do processo musical, não acredito em uma diferença de valor”, afirma. É impossível pensar essa produção desassociada à nova dinâmica que a internet passou a nos fornecer. Para o músico Claudio Nascimento, grande parte da sua influência deve-se também à rede. “Como aprecio música rítmica, o vinil é uma delícia, principalmente se o equipamento for de alta fidelidade. Mas a música é o que realmente importa, o formato é secundário. Acho massa o MP3, se estiver em sua qualidade máxima e com bons headphones ou monitores. O formato FLAC é ainda melhor. Inclusive sites como o Deezer eu acho extraordinários, já que poupam tempo (de baixar) e espaço no HD”, diz, referindo-se ao site francês de streaming musical, cuja filosofia consiste em compartilhar playlists pessoais entre amigos, como uma ‘rede social’ específica em música. “Se eu tives-
se em vinil os discos que eu baixo, acho que nem teria espaço para guardá-los”, conclui Claudio. Além disso, à exceção do CD homônimo de sua banda experimental Chambaril, lançado em 2005, seus três outros trabalhos: Familiar (2008), Trilogia do Caos - O louco, O enforcado, A morte (2010) e Claudio N (2012) foram lançados inteiramente on-line e podem ser baixados gratuitamente. Por outro lado, é possível que as facilidades de produção, distribuição e armazenamento da música na sociedade hiperconectada que vivemos possa ter instaurado certa urgência quanto à materialidade do vinil, aliado a um forte fetiche de consumo pela áurea “vintage” que ronda o formato. Para os músicos Graxa e Stela Campos, que acabaram de lançar seus respectivos Molho e Dumbo em vinis, o consumo da música de radiola vem de um costume da infância, de épocas em que saber a sequência exata do lado A ou B era de praxe. “Gravar em vinil é um sonho antigo. O LP não só tem um apelo visual muito especial, como também dá a possibilidade do artista pensar em canções para cada lado. Essa divisão de repertório fez todo sentido em Dumbo – precisei cortar quatro faixas, mas o resultado ficou bem mais coeso, certeiro”, comenta Stela, que decidiu apostar de vez no formato após ver o resultado do projeto gráfico de Juliana Pontual reduzido na prova do que seria o CD. “Foi brochante”, conta ela, que também lançou o disco no iTunes. “Ao mesmo tempo, a gente vem observando as tendências, claro. O CD é uma mídia muito desvalorizada. Ninguém coleciona mais – a coisa de pegar o disco físico, mergulhar na arte e nas letras durante a audição, transfe44
"O LP não só tem um apelo visual muito especial, como também dá a possibilidade do artista pensar em canções para cada lado." Stela Campos
riu-se toda para o revival do LP”, complementa. Reconhecer a importância dessa memória afetiva fez com que Graxa também optasse por lançar o seu Molho num alaranjado bolachão de 12’’, além do lançamento virtual no Soundcloud, que ele fez em duas etapas – como nos dois lados do disco. “Quando eu era guri, gastava minha grana com livros, vinis e bebidas”, brinca o músico, “mas isso é uma questão de costume, de educação para esse tipo de audição. Tem guri que nem vai se ligar no que eu estou dizendo porque foi ou está crescendo educado a escutar outro tipo de mídia”, diz o músico. Talvez o que tenha incomodado esses e tantos outros artistas que resolveram lançar, simultaneamente, seus trabalhos on-line (em downloads free) e fisicamente (em vinis a preços mais salgados), seja o fato de que se produz muito, e aleatoriamente, no ciberespaço: recebemos e deletamos informações quase sem nos lembrarmos do que aconteceu nos últimos 20 minutos; está tudo visível e ao nosso alcance até quando torna-se invisível por uma tela desligada de computador ou do dispositivo móvel. Seja lá qual for o jeito que se vai consumir uma música, o mais importante é que essa não fuja ao seu processo catártico. Ao invés de procurarmos grandes vilões nessa história toda, é importante considerar a coexistência dos tipos de consumo e produção, sejam eles analógicos ou digitais. As infinitas playlists disponíveis on-line nos oferecem uma nova postura diante da produção fonográfica: a de encarar que as fronteiras praticamente inexistem, são elásticas, e que você, enquanto receptor, é curador do que quer escutar. Adquirir o palpável disco de vinil ocupa, então, outra atmosfera, da subjetividade, do gosto, de um preciosismo – mas sem o peso exato da palavra: é como entender as particularidades de se produzir e consumir fotografias digitais e analógicas. A coexistência de suportes até que se apareça um terceiro, uma novidade. Seja ele qual suporte for, a criatividade humana saberá se manifestar e, se for sábia, extrair dessa produção o que de melhor tiver, sem precisar mandar nenhum formato para passear. OC 45
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O valor invisível da crítica musical por Carlos Gomes
“Essas bandas estão pouco se lixando para a crítica musical. Elas não precisam dela.” Diante da notória e propagada crise da crítica cultural, ou mesmo do jornalismo cultural como um todo, observar como a crítica musical tem se movimentado é um exercício interessante sobre o lugar da reflexão na música contemporânea. São leituras que não passam necessariamente pelo texto crítico a que habitualmente estávamos acostumados, aquele reproduzido pelo jornalista especializado em música de algum jornal ou revista impressa, ou pe-
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las postagens de sites e blogs em forma de resenha. Essas são partes da crítica, pelo menos a mais visível ou canonizada pelas relações de troca entre leitores, fãs, músicos, produtores, jornalistas etc, mas não o todo da crítica musical. Sites de compartilhamento de discos, debates, conversas informais, estantes de CDs e vinis, bandas selecionadas para festivais, seleção de melhores do ano, comentários em sites, mensagens de texto, micro-mensagens, pro-
gramas de rádio, programações culturais de gestores públicos, releases, todas essas formas exercem algum tipo de recorte crítico que, em diferentes níveis, querem marcar algum posicionamento. Questões como gosto, julgamento e valor são intrínsecas a esse recorte. A questão está justamente em refletirmos sobre de onde se fala, para quem se fala, e com que intenção se fala, no que diz respeito a cada uma dessas maneiras de se relacionar com a música. A autoridade que se pressupunha ter o crítico, ou mesmo os jornais e publicações de grandes corporações midiáticas, não faz mais sentido nas relações de troca da música contemporânea, sobretudo pelo embaralhamento das identidades ocasionado pelo lugar privilegiado que a internet adquiriu para o consumo de música. A voz da crítica se confunde com a do músico, fã, curador, produtor, assessor de imprensa. A questão que lanço é se a crítica desapareceu ou apenas mudou de lugar, e, se na mudança, perdeu o forte laço que tinha com o questionamento e a reflexão. Para o pesquisador e professor Bruno Nogueira, em entrevista sobre a relação entre a crítica musical e as transformações sofridas pela internet: “Antigamente existia muito menos crítica, muito menos vozes ativas e qualquer reflexão sendo feita. Principalmente, porque não precisamos de uma iniciativa insti-
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tucional para isso. As pessoas estão fazendo isso no Facebook, no Twitter, no Instagram, em seus blogs, podcasts, videocasts etc”. As múltiplas vozes e lugares de exposição da reflexão de que Nogueira fala são importantes como quebra de paradigma da crítica tradicional. Mas se a crítica é o lugar onde as tensões devam se estabelecer para que a música seja mais que a reprodução irreversível de uma estrutura, técnica ou tradição, o aparente novo status da crítica parece apontar para um arrefecimento das ideias. Não há mais choque ou dissenso. Na verdade, até há, mas não como troca de argumentos, ou mesmo de impressões, textos, intertextos, mas, muitas vezes, como agressão pessoal àquele que incomoda ou atrapalha a ordem natural dos acontecimentos. Quando a invisibilidade da reflexão cultural se torna preponderante nos meios tradicionalmente visíveis, outras vozes e seus diferentes interesses se somam aos interesses fundadores das grandes empresas midiáticas. Leia-se troca de favores, publicidade, agendamento. Domesticar a crítica é uma forma de torná-la invisível e desvalorizada culturalmente. “A crítica é o lugar do debate, do contraditório, da reflexão. Mas a questão é: até onde estamos preparados para o debate, a reflexão e o contraditório? Ou preferimos o tapinha nas costas, a falsa ilusão de que o que
fazemos é de fato bom ou mesmo acima da média? Algo me diz que preferimos a segunda alternativa”, questiona o escritor e professor da UFPE Anco Márcio Tenório. Enquanto conversávamos sobre música e seus vários desdobramentos, Hélder Aragão (DJ Dolores) lembrou que há setores do mercado musical que não necessitam, nem sentem falta da crítica musical; o papel do crítico é desimportante para eles, como exemplo, citou as cenas musicais do brega e funk, aplicando esse pensamento aos cenários de Pernambuco e Rio de Janeiro, respectivamente. O discurso de Dolores pressupõe a crítica tradicionalmente exposta por resenhas em jornais ou mesmo em blogs especializados em música. Realmente, se alguma cena musical necessitasse desse tipo de crítica – praticamente extinta – para sobreviver, estaria tão em risco quanto a própria crítica musical. Contudo, o discurso de Dolores – mesmo que claramente a sua intenção
não tenha sido essa – não pode ser generalizado como desvalorização da escrita reflexiva sobre música a par de sua inutilidade para diferentes nichos de mercado; já que o crítico, segundo Daniel Piza, tem a “[...] capacidade de ir além do objeto analisado, de usá-lo para a leitura de algum aspecto da realidade, de ser ele mesmo, o crítico, um autor, um intérprete do mundo.” Diante disso, o valor da crítica musical está para além de seu pretenso poder comercial em alavancar carreiras, servir de estímulo a curto prazo para bandas ou nichos músicas quaisquer que sej a m . Seu valor se faz pelo atrito com ela mesma, uma crítica da crítica disposta a rever seus valores, locais de fala e a produzir reflexão de forma autônoma, sem com isso, negarse a estabelecer diálogos com os diversos setores da cadeia musical. OC
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entrevista O músico, ilustrador, designer e contador de estórias Matheus Mota está perdido. E é essa perdição que dá sentido à sua música. Se a autoironia narrativa do primeiro disco, com suas impressões pianísticas dos barulhos de rua do Recife inventário que ele mesmo criou, lhe pôs numa cadeira que ninguém havia ousado sentar na cena musical contemporânea de Pernambuco, foi preciso perceber que há poucos alunos em sua sala. Ouvindo as músicas de seu novo álbum, se tem a impressão que mesmo que ele abandone a cadeira que ocupa e decida juntar-se festivamente na grande sala dos artistas, o seu lugar dificilmente será ocupado. Matheus, em pouco tempo, vem construindo uma obra singular e diferente de muita coisa, que mal nos acostumamos a escutálo. A música desafia o ouvinte: “Foi isso que eu escutei? Ele disse isso mesmo? Afinado, desafinado, debochado, irônico, bobo? O que é, o que é?” Os perdidos tem aquela coisa do não pertencimento, de estar e não estar. Pois bem, Matheus está sozinho e perdido, e isso faz bem à sua música. por Carlos Gomes.
Foto: Renata Pires 51
Em que pé está a produção de Almejão, prazo de lançamento e convidados? Em abril estarei finalizando a gravação. Há muitos convidados. Ele começou pouco antes de eu lançar Desenho – já estava gravando coisas dele –, tem participação de Fred Lyra, porque a gente usou uma trilha dele, que fiz com ele. Uso a guitarra em uma música. Tem participação de Aninha Martins, Rodrigo Padrão, Luciano Emerson, que faz os sopros, Rodrigo Samico, do Saracotia – tudo indica que ele vai gravar o violão. Em relação à sonoridade do disco, no processo de gravação, o que você está imaginando conseguir com ele? Eu não sei se eu posso me adiantar em relação a isso. Mas enquanto Desenho é muito ligado à música polifônica, concreta, com canção na zona popularesca, o Almejão é um pouco mais temático, no sentido que está mais ligado a uma música livre. Tem muita coisa mais jazzística, com influência de Hermeto Pascoal, uma coisa mais solta. Ao mesmo tempo, as músicas vão se entrelaçando como se fossem uma programação de TV. Ele abre com Faustão me chamando. Editei Faustão dizendo “Mateus Solano” e “Ed Motta”; e parece que ele está me chamando mesmo. O disco abre como um programa de TV. Tem jingles intercalando com as músicas. Então, ainda não sei dizer o que esse bolo todo é, mas ele é mais visceral. Alterna entre canalhices televisivas populares, mas com uma coisa confessional nas letras, é mais agressivo mesmo.
Lançado em 2012, o álbum Desenho, de Matheus Mota, contou com a participação de Aninha Martins (voz), Rodrigo Padrão (guitarra), Thiago Canuto (baixo), da banda Ex-Exus, com João Marcelo Ferraz, Amaro Mendonça e Ricardo Maia Jr nos vocais e D Mingus (sintetizador). O disco foi mixado e masterizado por Roberto Kramer.
Você consegue fazer uma comparação dele com outros discos que foram referência? Acho que o pessoal pode associar a Arrigo, por causa do sopro. Mas o Arrigo está muito ligado ao disco Desenho, mesmo. A faixa “O novo dia” lembra muito Arrigo Barnabé; ou alguns trechos instrumentais que entram, em cada melodia há um mundo, como Caio Lima (Rua) comenta, de vez em quando. Você vai se ater à música toda, mas se você perceber, cada voz vai contando, instrumentalmente, uma história, e que tudo isso converge para o contexto geral da música. Isso se mantém um pouco no Almejão, mas este é menos vazio que Desenho; ele é mais cheio, preza por harmonias, experimentações harmônicas. Não sei dizer, no final, se ele é mais limpo ou mais sujo. Você pode pensar que ele é mais sujo por ser mais alto, mas eu acho, às vezes, mais limpo, tem uma organização mais de música tonal do que Desenho. Quando você fala que ele é música livre, meio jazzística, tem improviso, também? Tem. Inclusive, o que eu passar pra banda, do que a gente prepara pro show, às vezes eu passo, de uma música inteira, dois compassos, pra aprender, só. Vou pre52
zar muito por isso. Tenho uma influência recente dos próprios caras que eu tenho convivido. A sonoridade do Mojav Duo, da Rua, de Juliano Holanda, me influenciou, assim como os shows de música livre que eu fiz com Henrique Correia, o guitarrista novo – a gente fez um show no Cine Direto, no ano passado, vamos fazer esse ano; tocamos no ateliê de Daaniel Araújo –, e em seminários que eu tenho visto de ritmos complexos. Há uma proximidade maior com essa galera. Com Glauco, antes de ir fazer mestrado em Portugal, Mateus Alves. Eu estou falando muito de música com esses caras. Eu não tinha contato com eles em Desenho. Andava com Juvenil e com uns caras que tocam rock. De repente, apareço com um disco que não tem nada a ver com eles, aí comecei a me atrair à música mais alternativa, não muito ligada ao rock.
Então, Almejão vai ter um diálogo com o disco do Mojav Duo, por exemplo, que também está pra sair? Eu tenho o disco inédito do Mojav Duo, há muito tempo. Então, me influenciou muito. A primeira faixa do Almejão gravada foi a que eu gravei com Fred Lyra, que era música minha, mas aí ele fez um improviso – os improvisos de Fred re-harmonizam uma música inteira, mesmo que você passe os acordes, ele tem uma coisa que destrincha e não fica fora da música, tem tudo a ver com a música. Harmoniza com uma coisa ligada à música livre. Ele entende muito de relações matemáticas. Dependendo da altura de uma nota que ele dá, refaz um acorde inteiro. Essas coisas mais estranhas, eu vejo em Desenho, também, mas no Almejão isso está mais consciente, mais racional. Você acha que o trabalho está mais confortável, agora, por conseguir fazer um diálogo sonoro com outras bandas? Eu não sei porque a gente não tocou ainda. Existe a ideia de fazermos show juntos, com a Rua – eu toquei com os caras no fim do ano de 2013, no Solar da Marquesa. Eu quero tocar mais. Mas não que esse diálogo não existisse antes. Antes eu não tinha banda. A maneira como a minha banda foi crescendo, com músicos amadores, amigos que gostavam da música. A gente foi aprendendo junto. Foram saindo e entrando 53
"Almejão é um pouco mais temático, no sentido que está mais ligado a uma música livre. Tem muita coisa mais jazzística , com influência de Hermeto Pascoal, uma coisa mais solta."
membros. Eu considero que os shows que deram certo foram os três últimos, do Coquetel Molotov, do O.N.I. e da Livraria Saraiva. Não ignorando o que existia antes, mas a gente ainda não tinha um nível razoável, era muito iniciante; e já tinha Desenho pra trabalhar, assim não conseguíamos tocar o disco. Se eu pudesse, antes eu já teria feito parcerias com outros músicos. Tem uma coisa, também, o nome do disco, “Almejão”, que é uma gíria de uns amigos de São Paulo, que é uma coisa pra pretensioso. Ao mesmo tempo, é uma autocrítica, porque o disco soa grande, porém tem uma autodepreciação, as coisas bobas do outro. Mas eu falei: “Se eu estou conseguindo tomar uma cerveja com esses caras, vou começar a chamar eles”. Então, vai ter participações só de caras que eu considero bons. Glauco quase gravou um piano, não deu tempo. Posso até tentar pedir pra ele gravar, e mandar de Portugal.
O que você achava bobo em Desenho? Eu continuo achando bobo, também, muita coisa desse. (risos) Almejão é baseado nesses amigos. É a espécie de um cara que tem as suas capacidades, mas ele fala: “Pra se dar certo em São Paulo, você precisa, basicamente de duas coisas: contatos e almejações. Você não precisa ser bom, mas parecer bom”. Paulo César Pereio fala: “Você não precisa ter pau grande, mas tem que ter cara de que tem pau grande”. (risos) No fundo é isso. Tudo o que a gente tem visto de cena são contatos e almejações. Não é, necessariamente, que a galera seja muito profissional. Ninguém é profissional ainda. Embora todo mundo esteja com aberturas pra tocar em carnaval, Coquetel Molotov, Abril pro Rock. Mas o pessoal está com almejações. Estão pensando: “Porra, se está rolando a oportunidade, vou pegar ela com a mão e nesse processo de aceitar a oportunidade, vou me profissionalizando”. O disco é meio isso. Eu não fiquei melhor, não estudei mais nem sei mais música do que an-
tes. Fui mais cara de pau mesmo de alçar novos voos e chamar uma galera pra participar.
O disco pedia essas participações? É porque os caras são pesquisadores. Eles têm uma questão com música de pesquisa. Caio Lima veio me contar que eles fizeram um acordo, na Rua, de existir por dez anos. Isso eu me identifico, eu gosto de pesquisa. A oportunidade de fazer o Almejão é de pesquisar também. Me negar em relação ao anterior. Por exemplo, em Desenho, a ordem das músicas faz um desenho; a primeira música ela tinha que ter um determinado momento. Se o momento cansar, vem uma seguinte, que vai cansar a outra sensação, e vem a seguinte. Isso, eu ainda mantive, inclusive parecido com o outro. Eu preparo, tenho um trabalho danado pra fazer um disco todo, eu queria que a galera ouvisse o disco inteiro. Às vezes, eu preparo um mapa de sensações, de momentos. Uma explosão danada, depois vem uma música superdoce, que Aninha Martins canta.
Se formos pensar, por exemplo, nesse mapa que você fala, numa linha estética entre o Desenho e o Almejão, quais são as principais diferenças e semelhanças entre eles? Eles se completam. Estou percebendo que vou ter a paranoia de fazer discos que formam uma coisa maior. São uma coleção. Meu pai é artista plástico e trabalha com séries. A ideia da série, eu sou bem centrado nisso. Tipo, quinze quadros que são Desenho, vão vir doze ou treze do novo. Eles devem ter uma relação de pesquisa, no ponto onde eu parei no anterior, ou até de continuidade, negação, desenvolvimento. Não é uma ilha, sabe? Só não lancei no ano passado devido a problemas, correrias e outras prioridades. Mas soltei o livrinho Pombo Amigo.
A experiência do lançamento de Desenho, pelo selo Cloud Chapel, e divulgando na internet, mudou a 54
tua cabeça em como lançar o próximo disco? Sinceramente, e falando desse processo do ano passado, a maior parte da audiência, 80% dos plays foi de 2012 ainda. Eu primeiro combinei com os caras do selo de soltar, tinha uma ansiedade dos amigos músicos de lançar, que já viam shows do Varal. Ele teve muito acesso mesmo. Saiu no Diario on-line junto com o disco de Claudio N. na mesma semana. Eu não estou pensando em difusão. Eu fiquei menos pensando em mercado, eu acho. Eu vou querer sobretudo uma banda concisa. A gente está muito mais colaborativo agora, nesse sentido, e tentar ficar mais profissional, divulgando na medida em que for fazendo show. Vou lançar na internet e tentar prensar pelo selo. Eu pretendo fazer tiragens também. O Desenho teve três tiragens. A última foi do mini-vinil, vendeu tudinho. O pessoal gostou. Eu estou querendo fazer essas edições especiais. Porque eu prezo muito pela capa. Essa é uma questão que queria te perguntar, sobre o disco como objeto artístico, ligado ao conceito de álbum. Você acha que o objeto artístico agrega valor para o disco em si? Isso ajudou muito em Desenho, porque o pessoal queria muito ter o souvenir, a grife, o CD. A capa foi lançada seis meses antes. Eu não consegui fazer isso agora. Eu contei muito com Raul Souza, ele ficou muito enrolado com o que tava fazendo, mas vai entregar uma parte do que fez, que foi a colorização da capa. O desenho é meu também. Eu também fiz um teaser em vídeo do Desenho e soltei uns quinze dias antes do lançamento. Me deram uma ideia muito boa agora. Eu quero fazer vídeos pro Almejão. Ele é muito cinematográfico. Várias passagens dele parecem trilhas mesmo. Instrumentais, a própria faixa “Almejão”. E ele tem uns jingles, de 40 segundos, que eu pensei em fazer peças publicitárias mesmo. Ele ainda mantém esse espírito, no Desenho tem um jingle no meio. Mas eu tenho impressão que quando você ouve deliberadamente uma música de três minutos, simples, com verso, refrão, verso, refrão, sabe? Eu acho que a minha música não é muito atraente pra isso. As pessoas não vão de cara falar: “Vou ouvir, comprar isso, já adoro esse cara”. Eu tenho que pensar em coisas atraentes pra capa. Eu envolvo jingles, boto Faustão falando lá. A pessoa pensa: 55
"Pombo-Tirinha: entrevista de emprego", do livro Pombo Amigo (2011/2012), escrito por Matheus Mota e lançado na internet para download gratuito.
“Tem tudo o que eu gosto, o que eu me identifico, mas o que é essa música?”. Tanto que o Desenho tem uma aceitação de muita gente leiga, que não entende de música. Todo mundo gosta. O show era cheio de criancinha. Porque a maioria dos shows da gente, da cena, vão muitos músicos ver. Os amigos músicos. Mas muita gente que ia ver o Desenho não era músico, nem ligado a teatro, a nada artístico assim. Eu vou pegando a pessoa pela beirada. Através disso: do objeto, projeção, vídeo. Os Ex-Exus faziam muito isso. Quando eles estavam mais ativos.
Fala um pouco do Grupo Varal e da relação dele com o disco Almejão. Está mais próxima. O Grupo Varal atualmente é Daniel Moraes, Thiago Canuto, Igor Menezes, Aninha Martins, Aline Borba e Henrique Correia. E eu. É uma banda muito grande, eu não sei como vai ser. Se eu vou dar uma prioridade maior à cozinha, pra ensaiar mais com os caras. E ir colocando o restante como ornamento, ou já boto tudo junto. Penso em chamar participações pros shows. Henrique Correia é da Jazz Sinfônica, da UFPE. Ele conhece muitos músicos. Seria interessante reproduzir o show como no disco. Aquela coisa grande. Quase sinfônico, o disco. É. Não parece. Não é tanto os instrumentos que fazem aquele som ali. Uma coisa que eu ouvi com Eumir Deodato, ele faz um acorde assim – é que eu realmente não entendo de música, posso estar falando uma merda – e diz: “Esse acorde é igual a este”. Ele destrinchava o acorde em vários dedos, em várias alturas e fazia umas inversões, que dava uma impressão que era maior. Não tem tanta coisa a mais, mas parece que engrandece um pouco o som. Pra dar um exagero. O meu disco é meio pretensioso, meio megalomaníaco. Mas ao mesmo tempo é indeciso, é bobo. Eu não considero um disco pretensioso e megalomaníaco, apesar de ter tudo isso.
Em 2013, o trabalho coletivo foi mais evidente, com você colaborando com Aninha Martins e outros músicos. Isso continua em 2014 com a contribuição de Fred Lyra, Rua, Luciano Emerson, entre outros? Ele continua muito pessoal e autoral. No Almejão eu tenho parceria com umas duas ou três letras com um amigo meu de São Paulo. A gente fez on-line. Eu quero ter parceria, porque eu não consigo me encontrar tanto, embora conviva mais com essas pessoas. Ter a parceria com Juliano Holanda em Dois Sons, eu achei uma das melhores coisas – não no sentido do resultado final, se a gente tivesse tido mais tempo, teria 56
Foto: Renata Pires
Aí, a galera que quer muito a oportunidade, ela vai tender pra manchete. Sinto que as manchetes guiaram muita coisa do que poderia ser uma cena com Glauco e Rua também. Por que não todo mundo? Eu vejo tudo como uma nova cena do Recife 20102020, sabe? Eu vejo assim. Não vou me ater só a um grupo, apenas.
ficado melhor –, mas me senti muito bem, porque é um cara de outra geração, mais velho, com muita experiência, um estilo diferente; e a gente convergiu. Tanto que, no estúdio, ele comentou: “Tinha tudo pra dar errado”. (risos) Porque eu acho que devo dar a impressão de ser muito difícil, mas eu quero muito fazer parceria com todo mundo. Agora, não me interessa gravar piano pra ficar só acompanhando o disco da galera, eu quero algo meio a meio. Se tudo der certo, daqui para frente, eu me encontro mais com esses caras. Até mesmo a galera mais nova.
Quando você fala em manchete, acha que a imprensa tem tido o papel de afunilar tudo num caminho só, mais homogêneo? É. Eu acho. A galera por inexperiência e ansiedade compra um pouco isso. Não sinto a galera questionar tanto, e falar: “Peraí, pô, a gente não é nada disso. A gente é Graxa, Juvenil Silva, mas também é Aninha Martins, Matheus Mota. A gente também é a Rua, pô”. Por que não? O pessoal todo se conhece, se dá bem. Por que o “no mínimo era isso” seria outra cena? Eu vejo músicos mais velhos, uma galera mais profissional, mas é música, tudo é música. Não vejo como uma música superior, por exemplo. Até porque muito do que tem essa “superioridade”, que eu tento me apropriar por influência, por almejação, eu tenho muito da coisa amadora da cena do Desbunde Elétrico. Não sou profissional.
O que aconteceu na cena musical que você estava mais inserido, com o lançamento do “O.N.I. – Objeto Não Identificado”, que depois se transformou em “Cena Beto”; houve participação tua na Temporada Beto, depois fizesse participação com a banda Rua, que já é outro caminho, e gravasse com Fred Lyra, Juliano Holanda. Como você vê tua participação nesses diferentes meios? Sou a interseção de tudo isso. Eu tinha uma banda de rock-punk, antigamente, mas eu não fiquei só nisso. O mesmo é com o jazz. Eu tenho certeza que as coisas jazzísticas que eu faço, por ter um toque de rock no meio ou uma letra boba, o cara do jazz puro, ele vai achar uma bosta. Ele vai achar que estou tirando onda com o estilo dele ou é outra coisa mesmo, mas eu procuro percorrer um pouco em tudo. Se tem todas as esferas fazendo, eu sou aquele pontinho bem pequenininho, no meio. Não só eu, tem vários caras assim, também.
O ano de 2014 será para o lançamento de Almejão e tentar circular com o show? Eu quero circular. Tomara que role os espaços. Vou focar muito nisto, em shows e parcerias. Matheus e Rua, Matheus e Juliano Holanda... Você vai tentar produzir os próprios shows? Vou tentar. De fato, ninguém trabalhou como produtor. Todo mundo vai começar nessa de produtor este ano. Mas um grupo gigante, com duas ou três pessoas organizando... Não deu muito certo. Expôs a gente. Eu queria tentar produzir os shows porque, primeiro, é mais fácil você produzir seu próprio show, porque dá pra conhecer o palco, mas seria legal um produtor junto ajudando. OC
Você acha que há uma desvantagem nisso na hora de receber convites de produtores, ou de acesso ao público? A desvantagem eu senti um pouco, não sei se é coisa da minha cabeça. Mas não acho que é da galera, não. É de você ter uma manchete que tenta resumir tudo em uma coisa só. Então, ela vai tender pra um lado.
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pincelando espaços: a música de walter areia por Bruno Vitorino
Foto: Reprodução/DVD
O Recife nunca foi tão frenético. Saturação, eis a palavra que melhor poderia definir a cidade nos tempos atuais. Como em todo grande centro urbano da atualidade, a capital pernambucana sucumbe às consequências da correria desenfreada dos tempos de liquidez que oprime o indivíduo contra uma muralha de esgotamento moral e físico: vias públicas infartadas, coros de sonoridades ruidosas, gente e mais gente a se esbarrar, bombardeio de estímulos sensitivos fugazes, eternos compromissos, irrevogáveis atrasos; o caos. A cidade grita a
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exasperação! Nesse contexto, como atua a música? Como rota de fuga. Afinal, as pessoas não querem uma arte que as volte ainda mais para a realidade apresentada, querem, ao contrário, escapar dela. Entretenimento puro e simples é o que se espera. Um pano de fundo sonoro-imagético para a submersão na excitação dionisíaca da fantasia. Distração, extravasamento e frenesi; uma trindade sacralizada pela civilização do espetáculo. E os artistas locais, em geral, oferecem o tão precioso soma que cerceia os tormentos, amaina as angústias. A músi-
ca enquanto elixir do delírio.
Em seu projeto autoral, o compositor e baixista Walter Areia propõe justamente o oposto do que oferece a indústria do entretenimento: a introspecção. Suas composições, ao invés de harmonizarem com as demandas lúdicas do Recife hipster, apresentam-se como um contraponto dissonante ao establishment pop cult, pois se voltam para o aspecto contemplativo, inesperado e íntimo do fazer arte. Seus temas instrumentais, de poucas notas e traços simples, são construídos sobre um alicerce modal de breve movimentação harmônica que dão à sua música um caráter ambíguo. A música é, afinal, aberta, logo as resoluções imperativas do esquema tonal padrão – IIm7 / V7 / IMaj7 – são por demais conclusivas para quem deseja eliminar ao máximo as amarras nas sessões de improvisação. Além disso, o uso dos espaços e a constante sensação de poco rubato contribuem bastante para a índole flutuante dos temas, de tal modo que se pode afirmar que Areia escreve não as notas, e sim, os silêncios. É o que ele deixa de fora do pentagrama que dá à sua música as infinitas possibilidades de interpretação que elas carregam em si. Como um arquiteto que, ao se lançar em investigações sobre a forma, começa por tentar entender a composição do vazio, Areia estrutura com pausas suas edificações sonoras.
Fruto da aprovação no Funcultura, o recém-lançado DVD do Areia e Grupo de Música Aberta faz um belo registro dessa música tão ampla. O disco traz uma apresentação do entrosado quarteto formado por, além de Areia (contrabaixo), Ivan do Espírito Santo (saxes soprano e tenor), Júlio César (acordeão) e Cássio Cunha (bateria), mais uma faixa extra
O Areia e Grupo de Música Aberta lançou em 2011 o EP Para Perdedores. Dez anos antes, o Areia Projeto lançava o disco Décima Lua. Walter Areia faz parte de outras bandas, como a Mundo Livre S/A, e em 2014 estreou no Terno de Areia, com Maíra Macêdo (bandola) e Hugo Linns (viola).
com depoimentos dos integrantes sobre a música e o grupo. Ao que parece, todo o formalismo inerente à produção de um projeto tão grandioso não comprometeu a intensidade do combo. O que se vê são músicos inteiramente familiarizados com as composições e consigo enquanto parte e todo, transmutando o ato de tocar no exercício interpretativo dos vazios reais e subentendidos insuflados na música pelo compositor e dialogando entre si, dentro do clássico esquema “tema – improviso – tema”, através da construção espontânea do discurso poético. Como numa peleja de cantadores. Destaque para “A Joia do Universo” e a articulação modal do Si eólio com o Dó lídio que se impõem como realidades inteiramente distintas, mas indissociavelmente ligadas. Em uma palavra: contemple! OC
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resenha
estamos morrendo na américa do sul por Carlos Gomes
Foto: José de Holanda/Divulgação
Se a costumeira cobertura midiática nos inclina a classificar todo trabalho construído sob uma assinatura de solo – aqui falamos do disco Encarnado (2014), de Juçara Marçal –, a escuta das 12 faixas nos revela uma sonoridade coesa e estilisticamente possível a par de uma intimidade que só o entrosamento de uma banda pode nos dá. O cerne da sonoridade de Encarnado está no encontro de Juçara Marçal (voz), Kiko Dinucci (guitarra) e Rodrigo Campos (guitarra/cavaquinho). Neles, há uma vida inteira de possibilidades de amadurecimento artístico, sobretudo nas experiên60
cias repartidas em Metá Metá, para a voz-canto irrepreensível de Juçara e os experimentos na guitarra de Dinucci em Metal Metal, e no quarteto Passo Torto, mais profundamente em Passo Elétrico, em quando se dá a tradução do rock pela língua do samba desfigurado, no encontro das guitarras percussivas de Dinucci com os dedilhados cíclicos de Campos. São dessas experiências encarnadas na poética “Juçara Marçal”, que cada escolha, arranjo ou maneira de cantar, começa a se tornar mais compreensível se conhecemos de perto a voz guia de todas essas novas canções, autorais e inéditas de uma outra forma, mesmo as regravações, por-
que reconstruídas pela voz e poética alcançada pelos músicos. Ao interpretar de modo tão singular essas canções, os músicos de Encarnado tornam-se também autores, compositores involuntários das recriações que tomam para si. Poder, aliás, que também faz parte dos grandes intérpretes da canção. Tendo a morte como mote, tema que cerca as letras, poemas, narrativas, lendas e contações de estórias que conduzem o ouvinte pelas faixas do disco, os timbres e ruídos do duo de guitarras são como corpos se debatendo antes da morte. As cordas da rabeca etérea de Thomas Rohrer e o sopro do sax de Thiago França são como um assombro, a voz do ente Morte se aproximando. O canto de Juçara é a memória da vida, ligação do que é terreno com o sobrenatural. De tal modo, “Velho Amarelo”, “Damião”, “Queimando a língua”, “Ciranda do Aborto” e “Presente de Casamento” são as canções que melhor definem a imagem poética que o álbum preconiza, delas, imagens como “Quero morrer num dia breve”, “E agradece a bondade e o cuidado/ De quem te matou”, “Não enxergo o final, interrompo o tempo aqui”, “Pra você descansar no meu braço/ No meu braço/ Aos pedaços”, “No meio do incêndio/ Queimando em silêncio”, são breves recortes que aliados à sonoridade provocam uma tensão no lirismo condicionado das canções carregadas de imagens idealizadas, tão comuns nos dials da maioria, das também condicionadas, rádios brasileiras. As presenças de Siba, Gui Amabis, Tom Zé e Itamar Assumpção, além dos parceiros mais habituais de Juçara, como Douglas Germano, Kiko Dinucci, Rodrigo Campos, Romulo Fróes, entre outros, no corpo de compositores do disco, dão um fôle-
Nos anos 1990, Juçará fez parte dos grupos Vésper e A Barca. Padê, de 2007, foi lançado em parceria com Kiko Dinucci, que posteriormente lançariam mais dois discos com o trio Metá Metá, do qual também faz parte o músico Thiago França.
go aos rodeios dentro do tema “morte da canção”, retirado da famosa entrevista de Chico Buarque que dava como morto o formato canção, tendo atingido seu período de êxito durante o século XX. Entretanto, a audição das composições apenas desse grupo que colabora com Juçara em seu disco, revela o quanto a canção pôde se reinventar depois do “fim”. Ouvir Juçara Marçal encarar a morte arrancando da voz muito mais que a expressão de uma técnica, em que gritos, silêncios e grunhidos também são elementos constituintes da canção, nos dá outra alegria ao nos depararmos com uma música, não aquela habitual do “que bonito, que melodia, que voz doce”, mas daquela que estranhamente diz “que feio, torto, amargo e incrível”. Tudo isso é canção. É o que nos faz enxergar vida, mesmo diante da dor ou da morte. Com isso, a aparição de Encarnado se torna peça fundamental para entendermos a morte/vida da canção brasileira no início do século XXI. Estamos diante dos corpos, estamos morrendo na América do Sul. oc
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fitas demo, videoclipes, psicodelia e um elefante chamado dumbo por Guilherme Gatis Foto: Silvia Costanti/Divulgação
Uma das cenas do filme infantil Dumbo, da Disney, sobre o elefante que queria ser estrela de circo, mas sofria com a chacota de todos por ter orelhas muito grandes, nos mostra uma série de alucinações psicodélicas sofridas por Dumbo com bolas de sabão que viram elefantes em forma de camelo, trombas em forma de trompete tocada por elefantes que pisoteiam outros elefantes que viram um elefante andando em pé com seu corpo de diversas cabeças de elefante. O trecho, do tempo em que os processos de animação tinham fortes traços de experimentação – mesmo em títulos voltados para o público infantil, como nesse
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caso – foi aproveitada pela produtora Estúdio Vranda como videoclipe da música “Take me Back to the Planet Earth Alert”, a nona faixa do álbum Dumbo, de Stela Campos. Outra paisagem sonora proposta por Stela Campos para Dumbo é o videoclipe da canção “Work”, última faixa do álbum. Gravado em parceria com a cineasta Maria Clara Escobar, o clipe é uma colcha de retalhos de um arquivo de imagens pessoais coletadas pela própria Stela. Um aquário, uma exibição de manobras automobilísticas, um golfinho, um garoto andando de skate com o pai, gatos e muitas paisagens capturadas das jane-
las de trens e carros fazem parte do repertório visual do vídeo. Essa costura de arquivos de tempos e locais diferentes, junto com o psicodelismo do desenho animado, são dois registros que unidos conceituam o elefante de Stela Campos. As duas referências imagéticas, tal como fotografias sobrepostas, mesclam elementos e texturas que resultam numa nova imagem diferente da anterior, com novos sentidos e referências. Algumas das composições do álbum são o primeiro registro gravado de canções que estavam arquivadas apenas em fitas cassete. São músicas da época da fita demo, que existiam apenas como uma ideia, como “Be a Bad Son”, primeira faixa de Dumbo, com uma levada que lembra PJ Harvey, menção confessada pela própria Stela, ou “I Walk Alone” e “Red Alert”. Além de PJ, referências como Stereo Lab, em “Candy Shop Fire” ou a guitarra de “Travelling Man”, que lembra o Lemonheads, podem ser citadas para tentar enquadrar as músicas do álbum às referências ao rock de garagem dos anos 1990. Mas as canções de Dumbo não soam datadas. Apesar dos vários anos com essas canções guardadas, ele não é um álbum coletânea de sobras e demos. Essa unidade evidente nas canções vem da proposta da cantora, que em alguns casos refez as letras, os arranjos e acrescentou novas músicas nesse processo de sobreposição de referências entre o novo, as fitas demo e os arranjos psicodélicos. O trabalho de garimpagem e criação foi tão prolífico que algumas músicas ficaram de fora – uma parte do material produzido não entrou em Dumbo, que poderia ser álbum duplo, mas que foi enxuto para não encarecer o projeto. As sobras, quem sabe?, podem (ou poderiam) surgir num projeto posterior, que já tem apelido: Mogli. O álbum foi gravado em quatro meses, no segundo semestre de 2012, no Estúdio Casa do Mancha, em São Paulo, e teve a produção de Diogo Valentino, da Supercordas. O guitarrista Felipe Giraknob, da mesma banda, também participou das gravações, junto com o tecladista Léo Monstro (da banda de Lu-
A ideia de usar os elefantes psicodélicos do filme Dumbo como videoclipe não é exclusiva de Stela Campos. Os australianos da Tame Impala fizeram o mesmo com a canção “Elephant”. Se você não viu o clipe de Stela ainda, vá ver, assim como o do Tame Impala, e constate a felicidade criativa que pode surgir das referências cruzadas entre Campos, a banda australiana, elefantes e Walt Disney.
lina). Clayton Martin, baterista do Cidadão Instigado, também fez parte do time Dumbo, que teve ainda a participação da ala feminina das cantoras-compositoras Lulina, Laura Wrona e Juliana R. Vitor, de nove anos, filho da cantora, também empresta a sua voz em “Take me Back to the Planet Earth”. Lançado em vinil e disponível para download no site da cantora no sistema de “pague o quanto quiser” – para baixar de graça, basta digitar “0” na área que especifica o valor – o álbum é o quinto da carreira de Campos e o primeiro que registra canções apenas em inglês. Pela naturalidade com que canta e constrói suas canções, fica a impressão de que ela já poderia ter lançado antes o seu álbum em inglês. A trajetória musical de Campos, iniciada na década de 1990, é peculiar: oriunda da cena alternativa de São Paulo com o Funziona Senza Vapore, banda remanescente do grupo Fellini, Stela liderou no Recife o Lara Hanouska, espécie de lado B do movimento manguebeat, onde Campos também iniciou sua carreira solo de discos como o Céu de Brigadeiro (1998) e participou de trilhas sonoras de filmes e coletâneas. oc 63
resenha
da vitrola para a película por Leonardo Vila Nova
Foto: Marcelo Lyra/Divulgação
Contar uma história de cinema (ou em cinema) requer diversas linguagens interagindo entre si para constituir uma mensagem única, que comunique ao público as mais diferentes sensações (encantamento, medo, surpresa, incômodo, um sem fim...). Isso disposto em milhares de fotogramas que se sucedem em cenas e mais cenas. Tudo devidamente articulado: as imagens, seus recortes e combinações, os textos, a luz... e a música. Sem dúvida, a música tem um papel fundamental para essa leitura. Portanto, criar trilha sonora para cinema exige uma sensibilidade ímpar e a compreensão exata e generosa por parte do compositor, cujo papel é mergulhar frontalmente na natureza do filme, se despir 64
de si e ser a alma sonora desse filme. Para isso tudo, é necessário lançar mão de uma astúcia tamanha, que tem como propósito dar uma identidade a algo que, por si só, já tem um poder simbólico e discursivo poderoso. O paraibano Hélder Aragão – ou DJ Dolores, como é mais conhecido – já é (d)escolado nisso. Há cerca de 15 anos, ele tem contribuído com a atmosfera musical de diversas produções cinematográficas locais e/ou nacionais. Um apanhado desse trabalho está registrado em Banda sonora (2013), disco que lançou, no fim do ano passado, nos formatos vinil e CD. O álbum traz 11 faixas que permearam filmes dos mais variados diretores, sobre as mais variadas
temáticas. Produções tão díspares entre si, como Narradores de Javé e Amor, plástico e barulho, por exemplo, estão devidamente representadas através de suas músicas. Cada uma com sua história pra contar, sua memória e seu relato particular. Em Banda sonora, a identidade sonora de Dolores é profundamente marcante, consegue se destacar explicitamente em cada uma das faixas. No entanto, ela toma formas diversas a cada minuto, assim como é a sua música, um liquidificador de referências – dub, zouk, polka, bolero, sons nordestinos, salsa, entre outros paladares sonoros. Independente da natureza do filme, toda a sua antropofagia, que lhe é característica, está lá. Cada música se confunde, em persona, com a identidade de cada filme, como se fossem indissociáveis. Isso fica mais perceptível para quem viu algum (ou vários) dos filmes presentes no disco. Ao ouvir determinada música, a lembrança de uma cena, ou do filme em si, é imediata. Mas, ao mesmo tempo, as músicas conseguem funcionar muito bem independentemente, reafirmando essa particularidade do arcabouço sonoro de Dolores. Para dar “liga” a essa variedade sonora que Dolores faz se desenrolar ao longo do disco, ele delineou um caminho que se assemelha a um roteiro, que é disposto de forma bem distinta nos dois lados – A e B. Do lado A estão quase todas as músicas cantadas, mais “pops” e dançantes, que se encaixariam perfeitamente no clima de qualquer show de DJ Dolores. Destaque para “O amor vai” na trilha do filme Estradeiros, de Renata Pinheiro –, na voz de Jr. Black, e, sem dúvida alguma, para a irreverente “Polka do cu”, que já se tornou o “hit-mór” de Tatuagem. A canção foi composta, por sinal, em parceria com Hilton Lacerda, diretor do longa. Já no lado B, Dolores aciona a sua verve mais experimental, com temas mais viajados, “lombrados”, essencial-
Banda Sonora é um lançamento do selo Assustado Discos, com patrocínio da Natura e realização do Ministério da Cultura.
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mente instrumentais – com exceção de “Álcool”, na voz de Isaar. Aí, chamam a atenção “Azougue” – um arrebate sonoro – e “Setubal”, com sua ambiência soturna e perturbadora, fechando o disco. Essa música, por sinal, faz parte da primeira leva de trilhas que Dolores fez, no anos 90, quando ele encarou o desafio, pilotando um PC 286, de criar temas para o curta Enjaulado, de Kleber Mendonça Filho. Ela voltaria a aparecer, anos depois, a pedido do mesmo Kleber, em O som ao redor, seu aclamado longa, que coleciona premiações mundo afora. Da primeira à última faixa de Banda sonora, abre-se um panorama impressionante da capacidade de Dolores em transitar por inúmeras paisagens sonoras – por ser uma compilação de trabalhos diversos, talvez isso soe bem mais aprofundado do que em seus discos de carreira. Assim, é importante lembrar – e no disco isso fica bem claro – que a atuação de Dolores como músico profissional anda em paralelo com a história do cinema pernambucano. Algo que vem se metamorfoseando, se reprocessando, em constante renovação, assumindo novos discursos e posturas. E nesse diálogo entre imagem e som, as possibilidades de transfiguração são ainda mais amplas e mais interessantes. OC
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viagem progressiva em lucifer rising por Jeder Janotti Jr.
Foto: Pedro Matallo/Divulgação
Nem sempre a viagem esperada é permitida. Mesmo que envolva expectativas, horizontes e bagagens alinhavadas; muitas vezes, inesperadamente, estamos diante de uma inevitável queda livre. Se para os aficionados do revival udigrudi psicodélico, o primeiro disco da banda Anjo Gabriel, O Culto Secreto do Anjo Gabriel, foi uma viagem astral pelas veredas instrumentais do início dos anos setenta, o pretensioso Lucifer Rising está mais para uma bad trip.
São cerca de 35 minutos que demoram a passar, e como! Mas que não se iludam os otimistas do tempo, não se trata de outros modos de vivenciar suas passagens, e sim, do acionamento do
lado conservador e diletante de parte do rock progressivo; pastiche da forte psicodelia dos sessenta, com volteios em paisagens musicais cujos efeitos parecem ser só o de evocar reiteradamente a própria construção dos efeitos. Como aquele clichê do observador estático diante das obras congeladas na paisagem dos museus.
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Como paliativo, deve ser lembrado que se trata de uma obra, no mínimo singular, o fazer de uma trilha sonora alternativa ao controverso projeto homônimo (um filme de início dos anos setenta) do diretor Kenneth Anger, musicada, renegada, pelo guitarrista Jimmy Page e só lançado em poucos vinis em 2012.
Na verdade, a ideia da banda foi gestada dentro do “Play the Movie”, um evento do Festival No Ar Coquetel Molotov, em que músicos dos arrecifes e arredores, imaginam novas trilhas musicais para filmes já realizados.
Como se pode imaginar, o projeto é no mínimo arriscado. Mesmo levandose em consideração as críticas animadas que circulam na internet e um suposto distanciamento da proposta inicial de Page, muitas delas parecem fruto de uma defesa do circuito restrito, e cult, dos colecionadores de vinis raros e de curto alcance, do que de análise da proposta sonora. Até porque, ao contrário do que foi propagado em muitos desses sites, como trilha sonora em sentido amplo, a música de Jimmy Page é bem mais efetiva. Quando comparadas, percebe-se na proposta do guitarrista do Zeppelin uma preocupação na articulação com as imagens, o que fica difícil de ser notada diante do preciosismo da Anjo Gabriel, que parece querer desgarrar-se das imagens para afirmar a grandiosidade da paisagem musical.
O vinil foi lançado com uma tiragem de 500 cópias, com distribuição nacional da Ripohlandya e Rock Company. Na Europa, o vinil é distribuído pela Pactus Records.
o punk e a disco, para nos fazer rever todos esses espaços autocentrados normativos dos jovens brancos, másculos, classe média, oriundos dos conservatórios que queriam transformar o desbunde de Hendrix e Doors, com seus erros e deslizes, em uma exibição masturbo conservatória perfeccionista.
A parte um, ou lado A do vinil, consegue reeditar o lado mais egóico e individualista de álbuns como Ummagumma, do Pink Floyd. Mesmo que a faixa 2, ou o lado B do LP, acionem um riff à la Black Sabbath com Deep Purple, o lado alienado da escuta progressiva, já decadente em meados dos anos setenta, insiste em permanecer como matriz de uma escuta. Assim como, na primeira faixa do disco, somos lembrados todo o tempo, de forma insistente, que estamos diante de lagartos e volcanos, da lisergia psicodélica que já não acontecia no campo, nos espaços amplos bucólicos fora das cidades e sim, nas arenas criadas para simular essas escutas e sensações. Ainda bem, que logo depois surgiram
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Não que o progressivo não tenha produzido grandes momentos no rock e sim, que tal, como a trilha Lucifer Rising, da Anjo Gabriel, também é cheia de egolombras. Para quem, como eu, esperava algo próximo ao Culto Secreto do Anjo Gabriel, fica a lição. Esse ranço de ojeriza, esse desenlace de algumas facilidades da canção e suas simplicidades pode agradar aos tais ouvintes defensores de uma escuta pra poucos, pra músicos, mas essa viagem pode ser uma bad trip, reservada somente aos iniciados no mundo das pequenas tiragens que não conseguem dormir se tiverem de partilhar, para além dos preciosismos, algo com aqueles que não sentem prazer somente de sonoridades exclusivas e excludentes (ou de filmes cultuados visto por poucos e comentados por uns poucos mais). OC
coluna guia prático para a crítica cultural: OK, computer! por júlio rennó Abaixo de um dia hermoso, os planos mais criativos cochilam. Mas é preciso furtar palavras, antes de tudo, furtá-las. Os melhores álbuns da semana não chegarão pelos correios ou ficarão empilhados na mesa de alguma redação de jornal. Pelo contrário, é preciso disponibilizá-los para o furto. Eu não! “Ô Pereba! Você pensa que eu sou algum babaquara para ter coisa estarrada no meu cafofo?”, me assombra um conto de Rubem Fonseca. Então, calo, navego, estilhaço, volto, avanço, linko, destaco, copio, copio novamente, dou a fonte, a referência, e vou embora para o mesmo lugar.
A modernidade caçoa dos jovens que cultuam seus hábitos vinis. Como se no futuro pudessem caber, numa mesma prateleira, Cartola e Arcade Fire; não cabem, já que não existem mais prateleiras. Não é preciso mais entrar com os olhos turvos, carregando uma mochila com enchimento, espreitando-se pelos corredores de uma loja de discos, sob o olhar constante de câmeras emperradas e os seus escassos ângulos. Não é necessário tamanho esforço. Rir do furto com um grupo de amigos: “O que conseguiu?”. Um ladrão de galinhas nunca se engana.
Os rituais estão cada vez mais escassos. Lembro de quando saía de casa para tomar um ônibus em direção ao centro da cidade, indo à procura de um bom disco por duas ou três lojas. Na primeira, promoções, catálogos, remasterizações, preços em conta. Na segunda, mais distante, lançamentos, raridades e hypes de galeria, fedendo a mijo na penumbra de alguma lâmpada que insiste em falhar. Também camisas, negras e brancas. Outras cores ainda não haviam sido inventadas. “Quem é esse cara?” “Ave Sangria, uma das bandas mais importantes dos anos 70. É daqui.” “Vou levar Samba pra burro, de Otto”. A imprensa paulista é mais confiável que um dono de loja de galeria que aluga discos e desilusões. Na terceira loja de discos, a última da jornada, localizada por trás de um velho cinema às margens de um velho rio. Caminhava já mais cansado, ainda heroico, por um outro montante de lojas: relógios, fotografias, comida barata, salas secretas, detetives. Quase sempre, uns quadros de bandas bonitas e charmosas me recebiam. João Gilberto, Belle and Sebastian, outrem. Quase sempre, uns solos de guitarra que duravam aproximadamente o tempo em que eu permaneceria na loja. Não mais, não menos. O homem, com cara de turco, não adorava receber o meu silêncio, muito menos os meus discos difíceis de encontrar: Into The Sun, de Sean Lennon; Calado, de Romulo Fróes e Máquina de escrever música, de Moreno +2, me custaram alguns telefonemas e viagens. Mas nada me aborrecia. Outro dia – mas muito distante desses meus dias – fui pela última vez até essa loja. Levei a minha namorada para conhecer o tal lugar. Ao entrarmos, reconheci imediatamente alguns quadros e álbuns bons demais para se desfazer, já que eram quase que como quadros de uma galeria de arte particular, expostos apenas para ver e ouvir, não para levar. O homem, ainda turco, não parecia ter envelhecido, assim como o cheiro e a música do lugar. Mas aquele espaço já não cabia em mim, nem tampouco a minha companhia aparentava alegria em permanecer lá. Ela, imprensada pela pilha de discos, não achou charme nenhum na loja. Aceitei o fato de que já era de outro tempo, não mais daquele. E, sem escolhas, decidimos atravessar a ponte a caminho de uma megastore qualquer. À noite, na tela fria de uma infinidade de blogs, sites e indicações, repousamos sob a música líquida que certamente desaparecerá diante de nós. Ligeira, rápida demais.
Não há cercas. Não há cães ao redor das cercas. Apenas um jeito delicado e furtivo de pensar: OK, computer! Nós somos ladrões. Mas do quê? Do quê? OC 68