#12 Outros Críticos [ano III - novembro de 2016]

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Ed. 1 # cenas musicais

Ed. 2 # o valor da música

Ed. 3 # paisagem sonora

Ed. 4 # artes integradas

Ed. 5 # o improviso como forma

Ed. 6 # estética e política

Ed. 7 # ruínas e cultura

Ed. 8 # corpo, gênero e descolcamentos

janeiro/2014

outubro/2014

março/2014

dezembro/2014

maio/2014

junho/2015

agosto/2014

agosto/2015

Ed. 9 # o artista veste máscaras outubro/2015

Ed. 10 # história, memória e esquecimentos dezembro/2015

Ed. 11 # tecnologias e sensibilidades agosto/2016

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A 12ª edição da revista Outros Críticos encerra um ciclo de ações que viemos realizando nos últimos três anos a partir dos temas propostos em cada uma das publicações. Para encerrar essa temporada, escolhemos como mote o título de uma obra de Paulo Bruscky, “A arte é a última esperança”, e com ela, a sua potência, ambiguidade e “desassossego”, como bem afirmou um dos convidados da seção ‘crítica de boteco’, Moacir dos Anjos, ao refletir sobre a arte política. Ainda participaram da conversa Renata Pimentel e Mery Lemos. A artista visual e escritora Mariana de Matos e o Grupo Bongar são os cernes artísticos e políticos que compõem essa edição, com suas poéticas e reflexões que transbordam de suas artes. O artigo de abertura foi escrito por Ana Lira e compõe um sucinto quadro artístico do Recife e suas variadas movimentações que se cruzam, como vozes de contestação e criação. Incluímos ao tema que intitula essa edição uma interrogação e perguntamos a diversos autores: “Como a arte caminha diante desse tempo?”. Participaram Paulo Marcondes, Priscilla Buhr, Philippe Woll-

ney, Nathalia Queiroz, Roberta Martinelli e Marcelo Coutinho, que versa ao longo de 28 notas que a “Arte é o açoite aos códigos compartilhados que, por se repetirem, se confundem com a verdade”. A equipe da revista, formada por Marina Suassuna, Karol Pacheco e Carlos Gomes, apresenta corpos políticos empoderados nas vozes de Elza Soares, Larissa Luz, Karina Buhr, Iara Rennó e Ava Rocha; periferias criativas e ações artísticas que libertam a alma da violência cotidiana; e micronarrativas estéticas e políticas da música contemporânea brasileira. Os discos de Alessandra Leão, Cosmo Grão, Juliana Perdigão e do duo Walter Areia e Rafael Marques integram a seção de resenhas. O ensaio de encerramento é do cantor e compositor Romulo Fróes, que fragmenta em diversos blocos a música que circundou a sua vida e trajetória artística. Para nós, se entrelaça como elo que potencializa a arte, a criação e o pensamento crítico que tanto nos guiou nesses últimos anos. Até a próxima.

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COLABORADORES

Bruno Vitorino

EXPEDIENTE

Carlos Gomes Edição, mediação do debate e texto Fernanda Maia Projeto gráfico Marina Suassuna (DRT 5556/PE) Jornalista responsável e texto Karol Pacheco Texto Mariana de Matos Artista visual convidada Camila van der Linden Fotografia

Compositor, baixista e colunista do blog Variações para 4

Fernando Athayde Músico e jornalista

GGabriel Albuquerque

Estudante de Jornalismo e integrante do grupo de pesquisa LAMA (UFPE)

Ana Lira

Fotógrafa, artista visual e pesquisadora

Romulo Fróes Cantor e compositor

A ARTE É A ÚLTIMA ESPERANÇA EDIÇÃO 12 - ANO III - NOVEMBRO DE 2016 Esta revista é uma iniciativa do projeto de crítica cultural Outros Críticos, e foi realizada com incentivo do FUNCULTURA (Governo do Estado de Pernambuco). Impressão gráfica: CEPE (Companhia Editora de Pernambuco). ISSN: 2318-9177 Informações ou sugestões: contato@outroscriticos.com www.outroscriticos.com

história, memória e esquecimento

tecnologias e sensibilidades

Ed. 10

Ed. 11

Adquira mais edições da revista em www.loja.outroscriticos.com

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5 artista

convidada Mariana de Matos

6 artigo

14 artigo

por Ana Lira

por Marina Suassuna

SOMOS um terreno permeado de

Corpos políticos, corpos empoderados

38 BOTECO

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Mery Lemos

entrevista

CRÍTICA DE

Grupo Bongar por Carlos Gomes

Moacir dos Anjos Renata Pimentel

Foto: Camila van der Linden

opinião 34

Foto: Núcleo de Produção OI Kabum Recife

Paulo Marcondes Priscilla Buhr Philippe Wollney Nathalia Queiroz Roberta Martinelli Marcelo Coutinho

ensaio 28

Rezo pelo dia em que “presídio” saia do vocabulário da periferia

por Kalor Pacheco

ensaio 48

micronarrativas dos sons lá fora

ensaio 54

por Carlos Gomes

Pode isso?

por Romulo Fróes

Foto: Mauro Restife/Divulgação

60 62 64 66

Alessandra Leão por Carlos Gomes

Cosmogrão por Fernando Athayde

Juliana Perdigão

por GGabriel Albuquerque

Walter Areia e Rafael Marques por Bruno Vitorino

resenhas 3


fotografiavanderlinden@gmail.com facebook.com/camilavanderlindenfotografiia flickr.com/camilavanderlinden 4


artista

convidada

A obra da artista visual e escritora Mariana de Matos está presente na capa e demais textos dessa edição, como diálogo entre o seu trabalho e o tema proposto na Outros Críticos. Formada em 2009 pela Escola Guignard, Universidade Estadual de Minas Gerais, a artista pesquisa Arte e Literatura e se dedica à tradução do cotidiano pela perspectiva da poesia. Desenvolve trabalhos em pintura e costura, interferências em madeira, livros de

artista, cadernos literários e intervenções poéticas urbanas. Tem como objeto de pesquisa elementos do cotidiano, retratos, travessias e relações afetivas. Nos últimos anos, tem se dedicado à fusão de linguagens. Desenvolve a Poesia como Paisagem: proposição literária que busca investigar e mediar a relação entre indivíduos e detalhes comumentemente despercebidos na cidade. Acredita na potência transformadora da arte.

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por Ana Lira Eu pensei em propor um diálogo aberto com este texto; e, por isso, eu o entendo como uma continuidade de conversas que venho tendo com diversas pessoas e a possibilidade das reflexões serem desdobradas no futuro – inclusive, repensando pontos e abrindo a alma para recuar em alguma coisa dita. Contudo, como conversa que a gente pega pelo caminho, engata um fio e segue articulando junto, este texto tem a proposta de compartilhar um pouco das vivências colaborativas que tenho acompanhado em Pernambuco. Estamos encarando um enfraquecimento das políticas públicas de cultura há uns seis anos. As diversas regiões do estado possuem uma produção cultural, cuja influência transborda o campo da arte, em seu aspecto mais institucional (museus, galerias, feiras de arte etc), e tem impactos até na sobrevivência cotidiana de diversas comunidades – pensei no Alto do Moura, mas pode ser igualmente o Morro da Conceição, entre outros. Diante de gesto6


res que administram as cidades – e o estado – como se fossem uma empresa privada e acreditam que a função da arte é apenas prover entretenimento, todo um rico sistema de articulação cultural começou a ser desmontado. Projetos e instituições fecharam, importantes polos esmoreceram na capital e no interior e, no âmbito do poder público, a cultura passou a ser filtrada pelas regras do turismo comercial e do mecenato, como uma tentativa de tirar de cena um legado cultural que não é feito com intuito primeiro de venda. Este legado inclui exemplos nos mais variados circuitos: da música erudita a comunidades tradicionais quilombolas, de agremiações carnavalescas à produção de arte contemporânea, dos artistas de rua a pesquisas com (e sobre) saberes indígenas... e assim por diante. O que não é rentável vai para a pasta “outros” da cultura. Ou é varrido para fora dos orçamentos públicos, a exemplo de uma das primeiras decisões de Michel (Fora!) Temer, que foi fechar o MinC, depois retomado, de forma inadequada, por meio de muita pressão dos setores culturais. Mas, sempre existe chance de termos um aspecto luminoso no meio deste percurso. Ele se 7


apresenta quando os setores afetados por estas escolhas políticas e econômicas conseguem sair da fase de inércia e a criar estratégias para recompor seus modos de atuação. A trajetória de redes e colaborações desenvolvidas por diversos grupos, espaços e comunidades, há décadas, nos situa tanto como um polo de resistência, mas também como território aglutinador de táticas de sobrevivência em tempos sombrios nos campos da arte e da cultura. Em Recife, o setor das artes visuais e das artes gráficas, que sempre atuou muito na rua, vive um de seus momentos mais bonitos, apesar da imensa crise de financiamento de projetos e do fechamento de diversas instituições que apoiavam iniciativas das respectivas áreas. Artistas ativaram de vez a potência das redes tanto de produção e pesquisa, quanto de circulação de seus trabalhos. A produção inclui muitos projetos de rápida circulação, como lambe -lambe, pôsteres, folhetos, stencils, adesivos, zines, performances, ativações de rua e muito conteúdo de circulação on-line. Além disso, editoras independentes, como a Aplicação, foram as primeiras a sugerir que os artistas olhassem para as gráficas obsoletas do centro do Recife como possibilidade de experimentação de linguagens visuais em um maquinário que, possivelmente, seria descartado. Ociosas por causa da implantação das notas fiscais eletrônicas, as

gráficas estão fechando aos poucos porque a quantidade de serviços não consegue suprir a perda causada pela suspensão dos talões de notas impressas. O maquinário e os tipos de papéis que elas trabalhavam, contudo, são muito interessantes para os campos de pesquisa visual. Se antes estes impressores não topavam fazer serviços artísticos porque estavam abarrotados de encomendas de notas fiscais, agora as negociações para produções e parcerias ocorrem em novo patamar, porque os dois lados precisam. Assim, as paredes da cidade e as feiras independentes começaram a receber uma produção cultural – que respinga na arte política – produzida nas gráficas do centrão e nos bairros da periferia da Região Metropolitana do Recife. Este movimento alterou, ainda, não apenas o percurso de alguns artistas, como também criou uma outra rede, baseada em trocas de referências sobre impressores e sistemas de impressão; o que consequentemente fez com que mais gente soubesse dos trabalhos uns dos outros, desdobrando em mais uma camada de processos colaborativos. Este cenário, que eu exemplifiquei com os impressores, mas que também pode ser visto nos setores do audiovisual, da música, da literatura, entre outros. Ele fez com que Recife, nos últimos três anos, tivesse um número muito maior de mostras, festivais e exposições 8


individuais e coletivas, feiras como a Publique-se e a Independente Disso, apesar dos diagnósticos cada vez mais sérios de desmonte na cultura. É que, diante de tamanha retração, ou se reagia ou iríamos todos sucumbir. É claro que houve perdas e diversos espaços importantes fecharam tanto na Região Metropolitana quanto no interior do estado – e outros continuam fechando. Porém, se percebe que alguns destes fechamentos são rearranjos de novas parcerias que permitam uma continuidade dos trabalhos, uma vez que se sabe que o cenário pode não mudar nem tão cedo – principalmente se os perfis dos gestores continuarem os mesmos. Deste modo, enquanto perdemos museus e grandes centros culturais, novos espaços independentes, muitas vezes montados nas casas de artistas, coletivos de artistas, curadores etc, aparecem como que desafiando os prognósticos da falência das políticas públicas culturais. Aparecem financiados por vontade própria, contando com apoios coletivos e com a vontade de artistas de continuar expondo e movimentando a cidade, sobretudo para provocar discussão. Os coletivos do Edifício Pernambuco, A Casa do Cachorro Preto, o Texas, a Caverna Lunar, a MauMau, o CCJ, a 33Crew, as experiências no entorno do Magiluth, entre outros, vêm seguindo as trilhas de iniciativas anteriores. Grupos que aprenderam, na guerrilha cotidiana, a sobreviver (e,

alguns, continuam) e deixaram um legado vivencial simbólico para futuras articulações. Entre eles estão o Movimento Boca do Lixo, a Rede Resistência, a Rádio Alto Falante, o Ventilador Cultural, as experiências coletivas que habitavam a casa de Evandro Q, onde hoje funciona o Iraq, os movimentos da poesia popular no Sertão do Pajeú, entre muitas outras. Iniciativas que, se não estavam envolvidas diretamente com produção de arte, em especial de arte política, movimentavam um sistema de difusão e circulação destas produções. Pensando bem, valeria uma retrospectiva. Se todos estes movimentos organizaram, em suas respectivas épocas, debates sobre novas abordagens e oportunidades para os diversos setores artísticos, o atual cenário puxou novamente uma rotina de discussões sobre política pública. Reuniões, participações em rodas abertas, brigas diretas com os governantes, movimentações via redes sociais, audiências públicas, intervenções nas paredes e atos na rua. Parece que todo dia tem algo intenso para dar conta. Os artistas articulam, constroem grupos enormes, dividem grupos de trabalho. Exigem que outras regiões sejam ouvidas. Uns cansam, outros voltam na semana ou no mês seguinte. Em episódio recente, enquanto se discutia o projeto de alteração do Plano Estadual de Cultura, artistas fizeram grupos para viajar pelo interior 9


com o intuito de fiscalizar a maneira como os governantes apresentavam os projetos em cidades onde debates anteriores não haviam ocorrido. Em outro movimento, saem das caixinhas e agora dialogam com outros atores públicos: movimentos sociais, advogados, contadores, designers, produtores. Envolvem fornecedores de materiais nos debates, puxam a universidade, os pesquisadores das instituições públicas que ainda funcionavam e representações de outras regiões do estado. Discutem valores e planilhas, entendem escolhas políticas, observam movimentos mais amplos e levam os desafios para a própria produção. Dançam em um universo que não estavam acostumados. É difícil, mas é bonito participar. Esta lida cotidiana, é claro, se transforma em projetos artísticos, como as músicas de Helder Vasconcelos, Karina Buhr, entre outros, que circulam para o público por meio de ações como o Som na Rural. Outro exemplo é o Recifusion, organizado por artistas de diversos coletivos que dialogam com a 33Crew, inclusive de outros estados e países. Nos últimos seis anos, eles têm vindo a Recife para grafitar coletivamente os muros de regiões escolhidas pela cidade. Esses projetos se posicionam politicamente no espaço público e têm uma dinâmica que permite uma circulação mais fácil pela cidade. Outras ações artísticas requerem estratégias diferentes porque, à primeira vista, não são vistas por possíveis apoiadores como arte pública. É nesta brecha que atua Lia Letícia produzindo o Cinecão, produzido na MauMau. Ela tem exibido uma produção que raramente seria financiada pelos setores normativos de produção cultural, mas que provocam belas rupturas no sentido convencional de cineclubes. O trabalho de Biarritzz, por exemplo, situado em um contexto recente de webarte, debatendo questões como o desmonte das estratégias de controle do corpo e a liberdade de circulação, está entre as produções exibidas no evento, bem como as sempre inspiradoras obras musicais de Thelmo Cristovam, que possuem uma delicada atitude política e quase nenhum apelo de venda direta. As produções de ambos não são necessariamente distantes do grande público, mas ficam ainda mais sem estas participações no Cinecão. Biarritzz, por exemplo, poderia ter uma fácil inserção em lan house das periferias de Recife, porque lida com linguagens, programas de internet e jogos que os frequentadores dominam bem e ofereçam outros usos. Porém, as discussões que ela e tantos outros jovens poderiam agregar nestes locais são negligenciadas por uma histórica negação da periferia como produtora de

“um dos papéis do artista, no atual contexto, é produzir e incentivar refabulações.”

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arte e tecnologia. A experiência da Kabum Recife, fechada recentemente, é uma prova contundente disso, embora as periferias brasileiras sejam, historicamente, espaços de produção e circulação de arte política. É neste circuito, por exemplo, que o CCJ Recife desenvolve um processo de desmonte dos preconceitos contra a inserção da periferia no campo da arte. Para eles, brodagem – no sentido positivo da expressão, que significa estar junto por afinidade – é essencial. Vocabulário cotidiano do coletivo. Desde 2015, contudo, por conta da crise do sistema prisional, em Pernambuco, que entrou diretamente nas casas dos artistas (o Presídio Aníbal Bruno fica na região), os debates internos do bairro intensificaram nos trabalhos produzidos pelo grupo. Este ano, eles iniciaram um projeto de formação cujo subtítulo trazia a seguinte frase: só a ficção pode salvar a realidade. Eu recordei diretamente de um texto da pesquisadora Renata Marquez, que sempre releio, chamado Arte Como Prática de Fronteira. Ela fala que a desfabulação dos territórios é uma das consequências perversas da globalização no sul sociológico do mundo; e coloca que um dos papéis do artista, no atual contexto, é produzir e incentivar refabulações. Pensando na atuação do CCJ Recife, a fabulação é, sim, uma chave-mestra. O esforço de articular parcerias para alguém ser artista, onde o meio social vê a população apenas como mediadores do presídio ou futuros presos, é um ato de resistência radical. Imagina, a brodagem não é para que a moçada simplesmente arrume uma carteira assinada e salário mínimo. Para eles, a finalidade de uma vida é muito mais do que pagar as contas. Isto é apenas um meio de organizar as coisas para que a ativação da existência artística aconteça. Mais político, impossível. 11


Quando se fala deste contexto de criar novos lugares para existir, eu não posso deixar de pensar as vivências em torno do Direitos Urbanos. Desde 2012, há uma intensa produção de cartazes, colagens, livretos, folders, ilustrações, ensaios fotográficos, arte digital, filmes, músicas e manifestos produzidos pelo circuito cultural e por pessoas que não estavam no meio, mas se sentiram ativadas a colaborar. Enviados por e-mails e redes, de forma espontânea, os materiais foram feitos para divulgação dos ocupes ou em reação às questões levantadas no Facebook. As obras do acervo inspirado nas ações do #OcupeEstelita, que vieram tanto por meio das ações do Direitos Urbanos quanto, mais tarde, também pela articulação do Movimento Ocupe Estelita (eles são grupos diferentes) circulou, durante muito tempo, pelas redes sociais, em intervenções urbanas e exposições ao ar livre no Estelita e no centrão do Recife. Estas ações quase sempre eram autônomas e organizadas por grupos independentes. Indivíduos unidos pela empatia entre si, pelas temáticas, pelos trabalhos e pelo que o período está movimentando. Se pensarmos em cenário de produção de arte política, o #OcupeEstelita talvez tenha sido uma das maiores ações de intervenção artística coletiva autogestionada, em Recife, em tempos recentes. O acervo é um mapeamento simbólico de como um grupo social, formado por artistas ou não, reagiu a uma situação de desmonte do patrimônio histórico e das políticas urbanas por meio de uma intensa produção de arte política. A temática das cidades, contudo, já vinha sendo trabalhada no audiovisual há vários anos. Porém, as produções caminharam para um outro patamar de realização a partir de 2010. Filmes como [projetotorresgêmeas] e Eleições: crise de representação – este último não finalizado –, foram articulados a partir de convocatórias públicas, com licença para uso livre de materiais e assinatura coletiva. O primeiro chegou a ter cerca de cinquenta nomes em seus créditos finais. 12


Esta experiência somou a projetos que começaram a ser produzidos por coletivos temporários de artistas e outros setores da sociedade civil, que se organizavam em torno de um filme, e depois se desfaziam, podendo rearticular outros agentes no futuro para novas ações. Desta leva surgiram filmes como Velho Recife Novo e a plataforma Vurto. Elas ativaram, também, a necessidade de produzir novos espaços de discussão e o festival Janela Internacional de Cinema do Recife foi abrindo espaços específicos, como as mostras “O Cinema e o Espaço Urbano”, “Cinema e Cidade”, entre outros, em que os filmes eram seguidos por intensos debates com diversos setores sociais. Deste percurso nasceram outras coisas instigantes, como a Troça Carnavalesca Empatando Tua Vista, que assinou com o Movimento Ocupe Estelita a coautoria do clipe recifense mais comentado de 2015, o Novo Apocalipse Recife. Blogues políticos estimaram um custo de produção de 200 mil a 300 mil reais. Ainda disseram que os realizadores certamente foram financiados por partido. Nos bastidores, os envolvidos gargalhavam. O custo de produção todo não passou de 2 mil reais, divididos por todos os participantes, que foram muitos. Diversos cineastas amigos cederam imagens de arquivo, produzidas em filmes anteriores feitos sobre a cidade, e a equipe principal produziu e editou todo o resto com o que tinha em mãos. Contaram, ainda, com consultorias colaborativas e todo figurino produzido no set pelos próprios participantes. O recente circuito da arte política produzida por estas bandas aflora estas influências, o que é maravilhoso, e nos revela a capacidade de mudar cenários, independente das gestões. Contudo, não creio que devemos estagnar as lutas por uma política pública de arte e cultura decente. Nossos circuitos culturais não respondem somente pelo entretenimento, e têm, na produção articulada e crítica um de seus caminhos historicamente mais simbólicos. oc 13


artigo CORPOS POLITICOS, CORPOS EMPODERADOS por Marina Suassuna

“Quando decidi fazer um disco, olhei pra mim pra ver o que eu tinha de mais intenso e mais verdadeiro pra mostrar, e me deparei com um processo de empoderamento, de me assumir e gostar de mim do jeito que eu sou, do meu cabelo. Não só fisicamente, mas da minha identidade. E a Elza [Soares] estava sempre presente nesse processo. Porque ela é uma referência de mulher negra que esteve no mercado musical durante muito tempo, resistindo, e hoje está no auge de sua carreira. Pra mim, chegar aonde ela chegou dentro de todas as circunstâncias e dificuldades é muito louvável de se espelhar”, disse a cantora baiana Larissa Luz nos bastidores do Festival de Inverno 14


de Garanhuns 2016. Na mesma noite, aos 78 anos, Elza Soares fez toda a Praça Mestre Dominguinhos incorporar seu grito de guerra: “Cê vai se arrepender de levantar a mão pra mim”. Os versos da canção “Maria da Vila Matilde”, de Douglas Germano, estavam na boca do povo como quem evoca um mantra, uma bandeira de luta. Estavam na boca das mulheres como quem se rebela contra anos de violência doméstica, fazendo jus à carga de representatividade que o disco A Mulher do Fim do Mundo reflete para o contexto político e social brasileiro, atualmente tomado por pautas retrógradas. Na breve entrevista que concedeu aos jornalistas antes da apresentação, Elza destacou que “encontros musicais como esse é uma coisa que precisa ser feita mais vezes, essa união de mulheres, acho que a gente tá tendo a resposta que a gente queria”. Naquela noite, o clima era de vibração e unidade feminina. Além de Elza Soares e Larissa Luz, Karina Buhr se apresentava no mesmo palco. Três vozes de timbres, influências e trajetórias distintas, mas ligadas por um denominador comum: a aptidão de fazer do palco um espaço de luta. O empoderamento e a afirmação estavam presentes na postura do palco, nas letras, no discurso e também na reação do público. Mais do que uma homenagem às mulheres, a noite foi um ato político protagonizado por elas. “Karina também tem um discurso super afiado, assim como o de Elza. Esse encontro é um marco que só me faz constatar que realmente estamos indo pra frente”, comentou Larissa Luz após o show. Seu segundo e mais recente disco, Território Conquistado, é um mergulho na estética negra contemporânea, com faixas que homenageiam criadoras negras que a influenciaram, como Nina Simone, a poeta peruana Victória Santa Cruz, a escritora brasileira Carolina de Jesus, a cantora Thalma de Freitas e Elza Soares, que levou sua voz rasgada para a faixa-título. A partir de uma fusão rítmica que dialoga com a perspectiva afro-brasileira, Larissa enfatiza o direito de fala que sempre foi negado à mulher negra. Um exemplo é a canção “Bonecas Pretas”, que provoca uma reflexão sobre a ausência de diversidade dentro do comércio e também da publicidade brasileira. “Sabemos que existe uma diferença entre a mulher negra e a mulher branca, que é a oportunidade. Vejo que existe um movimento de crescimento e que estamos realmente conquistando espaços, por isso meu disco se chama Território Conquistado”, afirma a cantora. 15


Em cima do palco, Karina Buhr grita, provoca, mostra toda a sua fúria, contraria os “bons costumes” com poses e atitudes punks. Sua performance é um contra-ataque à onda de conservadorismo que ganha força no Brasil, entrando em consonância com movimentos feministas e de igualdade de gênero. Antes mesmo de ser lançado, o seu último disco, Selvática, já causara polêmica por conta de sua capa, na qual a cantora e compositora aparece de seios à mostra. Por outro lado, a polêmica contribuiu pra dar visibilidade ao trabalho, que ganhou ainda mais força e reconhecimento do público, além de amplificar a performance subversiva da artista. No show do Selvática, com o qual circula atualmente, Karina chega ainda mais agressiva e debochada. As faixas do novo trabalho ajudam a catalisar esse estilo 16


"Se hoje minha presença cênica traz uma sexualidade feminina, isso não deixa de ser política" Iara Rennó

mais pesado de apresentação. Seu single de estreia, “Eu sou um Monstro”, é um revide ao arquétipo de mulher delicada e recatada enquanto o texto da faixa “Selvática” se apresenta quase como um manifesto contra a misoginia na qual o mundo se transformou. Sempre em posição de combate, ela não abre mão de sua sexualidade, defendendo o direito das mulheres de exporem seus corpos conscientemente, como manifestação de sua liberdade individual sem estar atrelada somente à manipulação masculina. Assumir o corpo sensual como exercício de liberdade é também umas das expressões da cantora paulistana Iara Rennó. “No palco, temos que comunicar a todos os sentidos, falar com o corpo inteiro. Se hoje minha presença cênica traz uma sexualidade feminina, isso não deixa de ser política: é justamente pelo direito de, enquanto mulher, poder ser sexual e ter atitude, tocar, cantar, escrever, dirigir, produzir, cozinhar e ser respeitada em qualquer dessas atividades como artista.” Iara lançou, esse ano, dois discos simultâneos, Arco e Flecha, considerados gêmeos. Arco representa o curvo, o receptivo e é formado por uma banda de mulheres, enquanto Flecha, que representa a linha reta, é formado por uma banda de homens. “Os discursos de um e de outro são diferentes, mas vale dizer que o masculino e o feminino, enquanto princípios e não gêneros, estão presentes em ambos os discos, porque a música não tem gênero. O ouvinte que não lê a ficha técnica jamais vai dizer que tal instrumento é tocado por uma mulher ou por um homem. Talvez até, tendo essa informação, pode achar que é o contrário – que os homens estão tocando no Arco – que é mais pesado e que as mulheres estão no Flecha, que é mais doce. Por isso os discos podem ser vistos também como transgêneros. Acho interessante contribuir pra essa atual discussão sobre gêneros justamente jogando mais lenha na fogueira e não dando respostas. O mais importante são as pessoas e sobretudo sua liberdade de identificação com gêneros ou não. Esse é meu posicionamento político: 17


pela liberdade do indivíduo diante de qualquer paradigma”, defende a compositora. A autonomia que Iara Rennó exerce na composição, assim como sua contemporânea Karina Buhr, Larissa Luz e Ava Rocha, preenche uma lacuna de um espaço que sempre foi majoritariamente masculino. Ao longo da história da música brasileira, o país teve grandes cantoras que não faziam suas próprias músicas, restandolhes apenas o posto de intérprete. Ao assumirem a composição das músicas que cantam, as cantoras dão vasão às questões que as afligem na condição de mulher. Uma vez que o processo criativo é de autonomia feminina, o resultado acarretará numa linguagem com uma outra perspectiva: a feminina, algo de extrema importância democrática num processo cultural. “Se eu fosse resumir numa frase a minha bandeira, seria pela liberdade sexual da mulher negra-índia. Pra mim, é inerente expressar a cultura negra e indígena de alguma forma, acabo levando isso também pro palco. Porque simplesmente o fato de uma mulher negra-índia produzir arte independente no Brasil hoje é um ato político, de resistência. Arte sem política, é entretenimento”, aponta Iara Rennó.

agressividade e o horror das armas que violentam animais e índios. Para chamar atenção à sua causa, Ava passou a fazer uso constante de um cocar de facas. “Substituí as penas por facas para incorporar essa realidade de extermínio dos índios e levantar reflexões sobre a imagem real deles, não simplesmente me restringir a uma imagem pura, estereotipada, que é o que todos apenas querem lembrar”, reflete a cantora, que lançou o segundo disco, Ava Patrya Yndia Iracema. “Eu também queria me conectar com minhas raízes indígenas, e queria me coroar, no sentido de me empoderar do que eu sou e dar uma imagem ao que é Ava Patrya Yndia Iracema.” No clipe de “Auto das Bacantes”, que lançou este ano, Ava não larga mão, mais uma vez, da performance provocadora para levantar uma outra questão: defender a descoberta do corpo feminino enquanto corpo político. “Auto das Bacantes fala antropofagia, Ava Rocha de do devorar o corpo, desalinhar a linguagem, e torná-lo o que ele já é na verdade, um corpo político, vivo e cultural. O corpo feminino enquanto território de potência, magia e criação e também de estupro, de violência, de massacre. Mas como expressão da paciência e da resistência, a mulher luta e goza, no seu corpo e no seu som, no seu corpo e no seu espírito, na cidade ou na floresta, como coisas inseparáveis. Estamos descobrindo a cada dia sobre esse corpo político”. oc

"a mulher luta e goza, no seu corpo e no seu som, no seu corpo e no seu espírito [...]. Estamos descobrindo a cada dia sobre esse corpo político."

Perspectiva semelhante é defendida por Ava Rocha a partir de suas performances que, sempre marcadas por uma autonomia imaginativa, buscam transmitir a

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BONGA R

O Grupo Bongar é formado por Guitinho da Xambá (voz principal e pandeiro), Memé da Xambá (congas, ilú, pandeiro, gonguê e vocal), Nino da Xambá (alfaia, abê, ilú, pandeiro e vocal), Beto da Xambá (pandeiro, ganzá, gonguê, ilú e vocal) Thúlio da Xambá (caixa, alfaia, ilú e segunda voz) e Neta da Xambá (abê, pandeiro, gonguê, ilú, alfaia e vocal). Nessa entrevista com Guitinho, no Centro Cultural Grupo Bongar Xambá, em Olinda, pudemos aprofundar algumas questões presentes na trajetória de 15 anos do Grupo. Como a relação dos músicos com a sua comunidade, as críticas do artista sobre a ausência de políticas culturais, suas composições entre a tradição e o contemporâneo e o prisma religioso que a circunda, a circulação por festivais e a dimensão política da música do Bongar. por Carlos Gomes

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Foto: Núcleo de Produção OI Kabum Recife/Divulgação

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O Bongar nos surpreende, parece um organismo paralelo a nós integrantes. Acreditamos na energia, até porque viemos de uma comunidade tradicional, e que tudo permeia a par tir da nossa questão religiosa. Chegar a 15 anos com uma trajetória de ter 4 discos num grupo de cultura popular, pra mim já é um grande marco. A gente lançou o 29 de junho, que foi um disco bem embrionário. Tínhamos a opção de gravar em estúdio ou no quintal da nossa família. A gente optou pelo quintal porque queríamos ter uma participação e uma identidade orgânica daquilo que a gente vivenciava na infância nos quintais da Xambá. Que é reproduzir os toques religiosos das cerimônias religiosas e transmitir isso para o disco. Já no segundo, Chão Batido – Coco Pisado, a gente estava um pouco mais maduro, e sob a direção musical de Juliano Holanda, a gente foi pro estúdio e começou a conhecer esse ambiente. Foi um disco bem marcante. A própria capa, a gente botou a alfaia de Odé, que é o orixá que rege o grupo, e aquele instrumento na cultura africana de Odé é o que abre os caminhos e direciona para o ambiente no qual a comunidade possa se estabelecer e encontrar a far tura. Era o que a gente estava buscando. O diálogo com o piano, com a viola de Caçapa, com o violão de Juliano. A gente começou a apontar um pouco de hip-hop, na última música “Luz do Meio-dia”, que é uma música minha e tem par ticipação da A Irmandade, Pácua ( Via Sat), e já apontava que o Bongar tinha uma música capaz de dialogar com todos os outros elementos musicais contemporâneos e sem uma ideia de ter que lapidarmos a nossa música. A nossa música é muita profunda, sistemática, orgânica, pelo tempo que ela tem, de ser tradicional. Depois disso, par timos para o DVD Festa de Terreiro, que é uma compilação dos discos e com coisas novas. Foi uma outra forma de a gente viver a nossa música. E o Samba de Gira, não porque são os 15 anos, mas é o trabalho mais maduro e, de cer ta forma, a concepção mais profunda do que é o Bongar, de onde a gente nasce. Ele é fruto de dois universos, o espiritual e o carnal. Ele foi concretizado graças a essa relação que a gente tem com a comunidade tradicional religiosa da nossa família. O disco nasce de um diálogo interessante. Quando eu criei o Bongar em 20 01, o nosso reper tório, 95% dele, era baseado nos cantos religiosos tradicionais do terreiro, que eram cantados nas festas, e alguns cocos que cantavam na festa do dia 29 de junho (festa do Coco da Xambá). E teve uma situação muito simbólica, que só depois desses anos todos é que a gente veio entender. A gente foi tocar no Pátio de São Pedro, e uma Tia nossa, bem ranzinza, que pouco saía do Terreiro, Tia Tila, e na época era a Mãe de Santo que substituiu a minha Tia-Avó Biu, que faleceu em 1993, e ela ficou como minha Yalorixá. Fomos tocar no Pátio e ela entrou com um tio meu, Tio Ciço, filho dela, e com a nossa Tia-Avó Lourdes, que hoje é a Yalorixá do terreiro. Eles assistiram a apresentação e no dia seguinte ela mandou me chamar em casa. Quando cheguei ao terreiro, ela disse: “Olhe, gostei da apresentação que vocês fizeram, mas nada daquilo que vocês cantaram, vocês podem cantar”. Eu saí cabisbaixo e pensando, “E agora, o que é que a gente vai fazer?”. Eu costumo dizer que isso foi o melhor carão que eu levei na minha vida, O Grupo Bongar gravou os discos, de junho (2006), Chão Batido porque a par tir daí eu comecei a escrever música. Quem pega 29 – Coco Pisado (2009), e Samba de as minhas músicas hoje, e faz relação com as cantadas no dia Gira (2016), além do DVD Festa a dia do terreiro: o universo poético, a mensagem simbólica... de Terreiro, que contém show e documentário. A arte dos dois Não fica muito distante do que é cantado nos terreiros. primeiros discos é do ilustrador O lançamento do disco Samba de gira marca a trajetória de 15 anos do Grupo Bongar, e é um disco que contou com muitas participações. Como vocês veem o amadurecimento do grupo nesse tempo?

João Lin.

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“Pra realizar qualquer ação, a gente comunica aos nossos ancestrais, nossos orixás.” O músico Benjamim Taubkin fala no documentário sobre vocês, que até parece que as suas composições têm 100 anos, ao mesmo tempo em que são contemporâneas.

Foi a primeira vez que você presenciou isso?

Quando ele falou isso, eu fiquei até refletindo depois, porque realmente eu não tinha notado isso. A ficha caiu só depois. Até por situações que vou contar agora. Há mais ou menos três anos, eu recebi um e-mail de um Terreiro de Umbanda de São Paulo. Eles fazem uma festa anual para angariar fundos para o terreiro. Eles pediram pra liberar a música “Na boca da mata”, que eles iam botar num CD e vender para ajudar o terreiro. Eu pedi pra Mari (produtora do grupo) entrar na página e ver o trabalho deles e acabei liberando. Mas ele dizia uma coisa interessante no e-mail: “A gente está usando essa música pra aber tura dos nossos rituais religiosos e as entidades incorporam”. Eu disse, nossa, que loucura. Eu até brinquei: “No

passado a gente foi proibido de cantar e agora estou tendo que liberar pros caboclos descerem na minha música” (risos). Eu tenho uma relação muito for te com a entidade da minha avó e que também a minha tia hoje recebe, que é Zé Molequinho. Um mestre que canta comigo no final de Samba de Gira. Na última música, que é uma composição minha, que minha tia incorporava e eu ensinava o mestre a cantar. E a gente gravou essa situação. Eu estava em casa e a entidade mandou me chamar. Queria que eu fizesse um coco no dia da cerimônia. O engraçado é que quando cheguei lá, ninguém cantava os pontos tradicionais, só cantava os cocos do Bongar durante o rito religioso.

Sim. Eu fiquei... Que negócio louco, o ato religioso em que toda a música é o reper tório do Bongar e não a música que minha tia me proibiu de cantar no Pátio de São Pedro. Então, uma conversão muita louca assim... E daí vem o Samba de Gira. Gira no universo afro-indígena significa a aglutinação de todas as pessoas possíveis do mundo carnal e espiritual. O nosso disco chegou revelando a capacidade incrível do universo musical afro-indígena brasileiro. O quanto a juventude de periferia, preta, compreende esse universo espiritual, religioso, e transformar isso no ar tístico. Pra realizar qualquer ação, a gente comunica aos nossos ancestrais, nossos orixás. Pra

saber a cor do figurino, o nosso reper tório. É um sistema muito complexo, mas pra gente é muito fácil porque nascemos e crescemos dentro de uma comunidade que reproduz ritos há décadas. Pra gente montar um reper tório pra determinados ambientes é fácil devido a essa repetitividade de décadas de ritos. A gente quando vai pro palco, a gente monta pautado na dinâmica religiosa de nossa família. E às vezes as pessoas não entendem, acham que é só uma brincadeira. Mas tem todo um complexo que faz o que a gente é hoje no Bongar. Benjamim e Juliano definiram como “tradicional contemporâneo” no DVD, talvez eu compac tue com eles sim.

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Dentro dessa dinâmica de mercado, com os editais culturais, e a própria existência e manutenção do Centro Cultural do Bongar na periferia de Olinda, como é lidar com o Estado? O que você acha das políticas culturais que existem, se o Centro tem algum apoio...

O centro cultural não foi dado de mão beijada. A comunidade foi reconhecida em 20 06 como quilombo urbano. Três hec tares. Dentro desse perímetro se passou a ter um olhar especial do Governo. Deveria ter, por ser o primeiro do Nor teNordeste e o terceiro do país. Dentro desse espaço qualquer transformação urbanística, a par tir do reconhecimento, teria que ser tratada com muito cuidado. O reconhecimento foi via federal. Depois o município de Olinda também reconheceu. Depois veio a proposta do Governo do Estado da construção do terminal de ônibus. A gente tinha conhecimento que não era possível por lei construir dentro desse perímetro o terminal de passageiros TI Xambá. O local escolhido foi justamente o quar teirão onde tinha a ruína da fábrica de gelo, que dá o nome do local, Por tão do Gelo. Era o único prédio arquitetônico de grande por te que existia da década de 1950 aqui quando a comunidade chegou. Passado o tempo a fábrica se extingue, a Celpe compra o espaço e fica utilizando como depósito de materiais. Depois abandona. Nos anos 1990 ativa como escritório e depois abandona e ficam aqui as ruínas. A gente usava pra fazer ensaio. E aí vem a ideia da construção do terminal. Cientes de algumas leis que vetavam, a gente foi pra cima e o Bongar era totalmente contra a instalação do terminal, por entendermos que esse equipamento alteraria a dinâmica comunitária. Mas infelizmente os governantes que chegaram ali tinham leis pra tudo. A lei do uso do bem comum maior. Eles alegavam que o equipamento como

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o terminal ia atender 54 mil pessoas e se a comunidade tem 3, 4, 5 mil pessoas, não pode inviabilizar o “benefício” para a maioria. A gente entrou na fase das compensações. Como amenizar os impac tos? A gente conseguiu mostrar pra eles a impor tância de ter um centro cultural e também alterar a disposição do terminal. As ruas principais da Xambá iam se transformar em vias de ônibus. Outras ruas iam cor tar pra sair na Zona Nor te do Recife. A gente percebeu que ia mudar totalmente a nossa vida. Porque as ruas onde a gente cresceu jogando bola, fazendo as atividades culturais iam se transformar em vias de ônibus. Conseguimos inver ter a posição do terminal e garantir a construção do centro cultural. Quando vem a proposta do Governo o Grupo Bongar já estava muito for talecido, conhecido pela música. Dentro do próprio Governo tinham pessoas que conheciam o nosso trabalho e sabiam o que isso danificaria a comunidade. Eles nos atenderam, de cer ta forma. Hoje, temos o centro cultural na periferia e fomos contemplados no último Funcultura com o projeto “Um quilombo cultural”. A gente vai montar uma agenda durante um ano com ocupação de matriz africana aqui no Centro. Com cachê e estrutura mínima de apresentação. Consequentemente, a gente está deslocando para um ambiente periférico uma agenda cultural. Algo que a gente já vem realizando desde que a gente recebeu esse centro cultural em fevereiro. Todas as nossas ações estão sendo realizadas por esforços nossos. Até agora nenhum governante do Estado veio aqui pra ver nada.


Foto: Beto Figueiroa/Divulgação

Mas nem pra conhecer o espaço?

Ninguém. A Secretaria de Cultura não veio. A Secretaria das Cidades, que foi a responsável de construir, só veio no período da construção e depois de entregar ninguém mais veio. Acho que o secretário nem sabe que a gente existe. Já saímos em matéria de jornal, lançamento de disco da gente foi matéria de jornal. Eu sei que os governantes ligados à cultura estão sabendo, mas ninguém nem da Secretaria de Cultura de Olinda veio aqui. Porque há um entendimento desse momento que o Brasil vive, da crise moral, política,

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financeira, e principalmente da crise moral da esquerda brasileira, que ela hoje está se cabeceando porque a gente chegou tão per to, teve uma opor tunidade tão gigante de fazer algo diferente e a gente se vestiu com mais do mesmo. Eu não sou esquerdista, não sou direitista. Mas tenho o posicionamento de comunidade. Eu sempre digo, acho que é uma verdade, que depois que a esquerda assumiu o poder, de fato o Brasil se endireitou de vez. Não tem mais esquerda ou direita, tá tudo no mesmo bojo. Os que dizem serem


de esquerda têm que repensar os seus posicionamentos. Nós temos uma posição muito clara. Não apoiamos nenhum candidato e não temos pretensão de apoiar. Porque não acreditamos mais nesse formato. No momento que a política entender a dinâmica da cultura popular ela vai ser mais encantada. Vai ser mais bem ofer tada para a população. Hoje, o Brasil avançou em muitas coisas, mas os governantes locais entendem que fazer política cultural é lançar edital. A gente vivencia a ditadura dos editais. O edital é uma ferramenta que deve sim existir dentro de um processo democrático de política

Como é a circulação do Bongar em festivais fora do país? Dá um exemplo de festival que vocês tocaram.

cultural. Porém, não pode ser a única ferramenta pra manter as comunidades. Quando a gente vivencia a ditadura do edital a gente legitima a eliminação de outras ações. Se você utilizar o edital como o único instrumento de manutenção, se você não for aceito, não for bem avaliado, vão poder dizer: “A gente tem um instrumento democrático, você não teve capacidade de escrever um bom projeto, então, infelizmente o trabalho da sua comunidade não pode ser contemplado”. A gente tem que construir uma política, que dê uma condição que você nem queira se inscrever no edital desse ano. Os festivais de música

Um festival que estamos retornando é o Festival del Caribe - Fiesta del Fuego, em Santiago de Cuba. Pra gente foi muito revelador. A gente durante um mês vivenciou três mundos de extremos paralelos. Fomos para Belfast, na Irlanda, a convite da Secretaria de Cultura de lá. E chegamos num país de primeiro mundo onde demos aulas em escolas públicas onde estavam o filho do gari e o filho do juiz. A gente sem falar inglês, com tradutor, e tendo que entender que a gente foi convidado pelo Secretario de Cultura de lá porque ele veio aqui no festival Olinda Jazz, conheceu a nossa casa e entendeu que o Bongar seria um grupo capaz de fazer um diálogo entre os jovens protestantes e católicos. Passamos uma semana dando oficinas de percussão e entendendo um pouco esse conflito. Depois voltamos pra

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têm que oferecer o ineditismo para o público. O FIG soa pra mim musicalmente uno. O guitarrista toca a semana todinha, só muda o nome da banda. O violonista também. O timbre sonoro, mesmo que seja diferente, mas a identidade daquele músico está presente no festival todo. Só muda a banda. Eu faço essa crítica também para os músicos. E para quem pauta a programação. Claro que quem pauta não tem que dizer com quem o músico vai tocar. Mas isso deixa muito pobre o festival. E todo ano são os mesmos maracatus, caboclinhos. Isso é muito ruim.

nossa casa e em seguida fomos pra Cuba. Chegando lá levamos um “murro na cara”. Saímos da Irlanda, de uma sociedade extremamente rica, de um padrão social incrível, viemos para o Brasil, intermediário, e fomos pra Cuba, que é um extremo total de determinadas situações de vida. Porém, outras incrivelmente muito ricas, como a cultura e o entendimento da relação com a espiritualidade. Na nossa casa a gente não bebe e nem fuma nos atos religiosos. Em Cuba passamos por vários atos religiosos em que o rum e o charuto eram os elementos condutores principais do processo. Isso teve um impac to muito grande pra gente. Ao mesmo tempo, a libido. As pessoas par ticipavam dos atos sem camisa, de bermuda. A sexualidade muito aflorada durante o processo. Algo que não acontece na nossa família.


Foto: Núcleo de Produção OI Kabum Recife/Divulgação

Uma coisa importante do Bongar é que a voz de vocês no palco não é pedagógica, mas há uma preocupação musical, poética... Quando a voz no palco é criativa ela é muito mais potente do que só um discurso...

Justamente. Tem coisas que acontecem com o Bongar. Por exemplo, quando a gente foi tocar na MIMO a minha caixa de e-mails lotou. De vários amigos. “Ah, Guitinho, fala disso, fala isso...”. Eu disse pra Mari que não tinha condições de eu ir para um show e fazer críticas pautadas pelo que as pessoas acham. A gente subiu e fez uma crítica ao próprio festival, que depois o pessoal ficou chateado. Mas a MIMO tem que se abrir mais. É um

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festival que está dentro das igrejas, mas o Xambá e outros terreiros estão aber tos pra receber. Ia ser uma coisa linda levar para a periferia uma par te da MIMO. Um terreiro receber um músico e tocar lá dentro... Você falou bem, a nossa música, a nossa estética já responde um monte de coisas. Mas eu pontuo uma coisa ou outra. Então, uma coisa que o Bongar consegue fazer bem é pegar a própria música e fazer a crítica. oc


ensaio

por Kalor Pacheco

Me pediram para escrever um ensaio para essa tão ilustre edição #12 da revista Outros Críticos, mas não qualquer ensaio, um texto que verse sobre a “arte” e|na|pela|pra “periferia”, uma vez que não poderia ter sido escrito por outra jornalista. Desejo então falar do meu lugar próprio, meu lugar de fala sem subterfúgios ─ mesmo não estando em casa agora, mas em Ouro Preto MG. “Suburbana mas cosmopolita”, me apresento; portanto, mesmo que não escreva da Travessa Vila Velha, 128, Santa Mônica - Camaragibe (onde se situa o meu quintal com cacimba), falarei justamente desse e outros locais mais famosos nas prisões e nos jornais da morte.

Mas em Camaragibe tem Fundação e Conselho Municipal de Cultura, e, antes deles, tem (ou tinha) o já falecido e grande mestre Cacique Luna; a Escola de Samba Couro de Gato e o Boi Rubro Negro de Dona Dora; o multiartista e ativista político Ângelo Fábio; o Canto das Memórias Mestre Zé Negão (e a Sambada da Laia), assim como o Coco de Catucá; os cineastas Carlos Kamara e Olímpio Costa (premiado em Gramado como melhor som pela animação O ex-mágico); os artistas visuais Joana Liberal e Leo Arem, sem falar dos tambores e alfaias da Nação Zumbi, confeccionados pelo mestre, artesão e luthier Maureliano Ribeiro, para citar alguns nomes de lembrança imediata. Muitos destes ─ a exemplo de mim mesma nesta Outros Críticos ─ têm escoado a sua produção artística sobretudo em cidades como Recife e Olinda, de maneira independente ou ainda com o patrocínio do Estado. Eu já estava aqui nas Minas Gerais, participando de uma residência artística contem28


plada pela Fundação Nacional de Artes (Funarte), quando soube que Camaragibe é a irmã caçula que recém-aderiu o Sistema Nacional de Cultura (SNC), do Governo Federal, e portanto poderá começar o incentivo federal para promoção e manutenção de cultura na nossa cidade. O funk não é motivo, é uma necessidade É pra calar os gemidos que existem nessa cidade

Pertinho da Prefeitura de Camaragibe, numa boate que toca brega, um Mané Galinha foi assassinado repentinamente, e há quem diga que “por motivos de inveja”. “Homem”, “mulher” e “jovem assassinado” estão presentes na maioria das manchetes (virtuais ou não) acerca da minha cidade. Na mesma casa de shows, semanas depois, se apresentou o MC Leozinho do Recife, que mandou ao vivo no Facebook um salve pra Pituca, preso há alguns meses no Complexo Prisional do Curado: “Liberdade!” Bateu a saudade dos irmãos no sofrimento Ai como eu queria visitar você lá dentro mande uma visita, dá um alô, trocar uns papo e lembrar com'era bom os tempos do passado... Pra que os irmãos sobreviva no sofrimento Uma visita pra quem não sabe é demais lá dentro Só quem tá lá dentro é que sabe como é! Lá a gente vê as amizades, que é e quem não é!

Pituca (19 anos) mora no meu bairro, e da mesma forma que eu, não foge de uma expectativa social de que lhe ver “preso, pobre ou morto já é cultural” (Racionais MCs). Simpático que é, sagaz também, o jovem poderia ser o que ele quisesse na vida. Mas a escola não o satisfez, aqueles ideais bíblicos da família desandaram, e deu no que não deu. Para quem não tem a oportunidade de escoar a criatividade e capacidade intelectual, “o dom que Deus lhe concedeu” enfim, numa profissão reconhecida pela Lei ou mesmo numa igreja evangélica que agora infesta o Brasil – haverá sempre o crime para acolher esses indivíduos relegados bem dotados: o roubo, o tráfico, a Guerra das Torcidas Organizadas e, por conseguinte, a prisão ou a morte, não sei em qual ordem de terror. 29


Nos arredores da maior penitenciária do Brasil, em Pernambuco, a comunidade recifense do Totó sofre com a presença do Complexo Prisional do Curado ─ que abriga mais de 7 mil presos ─ tendo capacidade para no máximo 1,8 mil. De acordo com uma reportagem publicada na BBC Brasil, o Curado coleciona denúncias de violação extrema de direitos humanos e, segundo especialistas, põe em risco a vida de cerca de 100 mil pessoas que vivem nas imediações. Há relatos de que moradores dos bairros nas imediações foram mortos por disparos feitos de dentro do Curado; bombas lançadas no presídio também destruíram 30 casas a 40 metros de distância, deixando feridos. Dentro dos pátios dessa favela-presídio existem setores conhecidos como "Minha cela, minha vida" ─ nome inspirado no programa federal Minha Casa, Minha Vida ─, espécie de "área VIP" destinada aos detentos próximos do comando do narcotráfico local e que, por isso, conseguem pagar pelo "aluguel".

“O que é para ressocializar não permite a ressocialização”, aponta o artista e morador do Totó José Cleiton Carbonel. “Além do que, virou para alguns poucos presos Hotel de 5 Estrelas, onde o cara que vai preso tem lá a sua suíte, tem televisão, tem tudo; e mais: tem o telefone pra pessoa poder ligar pra onde quiser. Enquanto a comunidade não consegue mais. Se você for pro Totó hoje em dia, provavelmente vai ter dificuldade para fazer uma ligação, pois seu celular fica fora de área direto. Por quê? Colocaram uma antena. E ao invés de estar para dentro, e para os presidiários, os infratores, está pra fora. É a comunidade que se prejudica no final das contas. E a gente sabe que isso vem do Governo, né? A Defesa Social falha demais. E a comunidade quer ter sua voz de denúncia através dessa comunicação, dos grafites, a gente vai fazer o empoderamento e fazer valer o direito da gente. E o direito da gente é: Fora presídio!”, explica. Carbonel defende o “momento de fortalecimento da comunicação e da arte popular na comunidade do Totó” e diante disso, uma das principais pautas é o que ele chama de “uma desconstrução do presídio.” Nesse sentido, o Centro Cultural da Juventude (CCJ), do qual Carbonel faz parte têm realizado diversos projetos audiovisuais, conta o comunicador: “a gente tem dois filmes, um é falando do Totó e outro é Fora Presídio, através do projeto ‘Ficcionalizar para Existir’; a gente tem outro filme do ‘Bolão Paz e Amor’, que é um artista da comunidade, porque ao redor do presídio tem muito escrito ‘paz, paz, paz’; e o cineclube que a gente tá lançando aí nesse mês de setembro que é onde a gente vai usar o muro do presídio para exibir os curtas da gente.” 30


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Na mesma Zona Oeste do Recife, uma vez por mês, o refeitório da Colônia Penal Feminina do Bom Pastor, no bairro recifense de Engenho do Meio, serve de sala de projeção de cinema para as detentas vivenciarem o Cineclube Alumia. Acompanhei a sessão do mês de julho, realizada em parceria com o Fincar - Festival Internacional de Cinema de Realizadoras, no qual foram exibidos os curtas-metragens Kbela, de Yasmin Thayná, Do portão pra fora, de Letícia Bina e Quem matou Eloá?, de Lívia Perez. Antes de começar os filmes, quando me vi, já estava lá, no pátio da penitenciária, fumando um cigarro (pagando de doida) e trocando ideias com as detentas.

Uma delas pensou que eu era mais uma “novata”, ao me ver conversando livremente com as outras mulheres presas. Respondi a moça que era de se esperar que me confundissem, afinal, também sou preta-pobre-periférica (como a maioria delas, e com orgulho), mas fui interrompida por uma terceira voz: “Você não é negra”, contestou a outra presidiária, “é da minha cor”. E aproximou nossos braços, como que comparando, e ainda disse: “AQUELA é negra, apontou; e AQUELA, cabocla; mas a gente não”. Não vou detalhar, mas as mulheres insistiam que não éramos negras, por não sermos pretas pretinhas de cor. Tranquilamente, lhes disse que meu avô

nagens do filme de Tuca, que foi presa política na década de 70 na Bom Pastor, esteve na sessão. Isso foi incrível porque elas puderam ver o quanto que o cinema pode se aproximar delas, além de que o debate seguiu uma linha sobre o sistema carcerário e o reflexo dele na ‘reeducação’ delas.”

para ampliação da rede num país onde 3 milhões não estudam; já a segunda, só se for a REEDUCAÇÃO PARA O CRIME. Por exemplo, o Minha Cela, Minha vida do Complexo do Curado é uma das estratégias que o crime organizado colocou para dentro dos presídios. “Você conhece um 'chaveiro' que te indica à direção (do presídio) para ser transferido, e aí você negocia o aluguel com ele”, diz relato descrito pelo pesquisador da ONG Justiça Global, Guilherme Pontes, que acompanhou a visita dos juízes da

Educação e reeducação: a primeira está mais-que-comprometida pela PEC 241, já que barra os investimentos previstos no Plano Nacional de Educação

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é negro, por exemplo, e algo se iluminou entre nós. Naquele dia, acabei compartilhando aquela "lombra do carai" - diziam, assim que se surpreendiam com o filme Kbela, sobre a relação da mulher com a sua afrodescendência – com essas detentas cis e detentos trans, que se viam refletidXs no espelho da telona mas não se reconheciam de imediato; porque é mesmo difícil nos conhecermos quando tudo é negação ao redor.

algumas apenadas não são letradas, logo, é necessário que sejam filmes falados em português originalmente ou dublados.” Isso reflete na identificação das espectadoras com as produções: “Por sempre buscarmos um diálogo com o cinema pernambucano, as detentas sempre se identificam com os cenários e se surpreendem em saber que aqui se faz cinema e, muitas vezes perto de suas periferias e realidades”. Em maio foram exibidos os curtas-metragens Recife, Cidade Roubada, do Movimento#OcupeEstelita; Robeyoncé, do filme coletivo Primeiro de Maio; e Vou contar para os meus filhos, de Tuca Siqueira. Na ocasião, conta o produtor, “uma das perso-

Corte Interamericana de Direitos Humanos, em 8 de junho deste ano.

vérbios 13 (com o grupo 509-E) e Exilado sim, preso não (solo), Dexter também avalia que a crise no sistema carcerário vai além do crime organizado, que segundo ele, reduziu o número de morte nos presídios; e vai na raiz do problema: “eu acho que é necessidade do Estado de provar a sua existência. Eu acredito na educação. Começa por aí. É a base. Tem uma música minha que eu falo que, enquanto uma escola é construída num determinado lugar, já se tem dez prisões a mais para inaugurar.” oc

Igor Travassos, cineasta negro e produtor do Cineclube Alumia, afirma que o recorte do cineclube na penitenciária do Bom Pastor é trazer filmes majoritariamente pernambucanos “porque

Ao site Brasil de Fato, para explicar o termo “Faculdade do Crime”, o rapper e ex-presidiário Dexter cita o exemplo das pessoas que estão no cárcere por terem cometido pequenos delitos – por roubar um botijão de gás, por exemplo – e que passam a conviver com detentos “formados no crime”. “Então você acha que ele vai sair como de lá? Ele vai sair formado também.” Autor dos discos Pro-

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Esta seção traz diferentes vozes sobre o tema central da revista. A partir do mote "A arte é a última esperança", buscamos refletir sobre as relações entre arte e política, criação, poéticas, trabalho coletivo, cooperação, ativismo, entre outras relações que podem transformar o espaço e as pessoas através do lugar que a arte ocupa na sociedade. Diante do momento político, social e cultural que vivemos atualmente, vale perguntar, refletir, sobre o lugar da arte, dos artistas, dos agentes culturais, dos educadores, da sociedade como um todo, como movimento de mudança diante dos golpes macro e micropolíticos que nos cercam nesse tempo. A arte é a última esperança? Como a arte caminha diante desse tempo?

Paulo Marcondes Ferreira Soares Professor do Dep. de Sociologia/PPGS-UFPE.

Ter a arte como a última esperança de nosso tempo, fundamentado num pragmatismo de consumo, impõe-nos reconhecer a sua capacidade de ressignificar convenções em novos processos do fazer artístico. Isto não garante à arte o salvo conduto em face de sua institucionalização como bem fetichizado. O desafio encontra-se na radicalização de sua capacidade de experimentar, de produzir incertezas numa era acomodatícia; produzir seu factum artístico, não-idêntico (Adorno), se a arte não se reduz a conduto de conteúdo político - forma redutora do uso da arte. Só mediado pela linguagem, o cotidiano é fonte de expressão estética. Arte e política implica que processos nela envolvidos resultam de seu diálogo com as transformações do meio. Com as novas tecnologias, a arte passou a operar em sistemas de rede, com a incorporação de novas mídias, maior poder de acessibilidade a produtos estético-artísticos e de sua produção-circulação. Particularmente, uma espécie de ativismo político e estético se cruza, dando forma a novas modalidades de ação, com modelos alternativos de experiências coletivas e subjetivas face aos modos instituídos. Tal cruzamento se manifesta na forma de arte pública, de coletivos; com a utilização de mídia radical ou tática, e procedimentos ético-estéticos de contraposição à arte e mídia comerciais, sem abrir mão, por excelência, das possibilidades inventivas de expressão das linguagens artísticas. Nisso reside a nota de esperança.

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Priscilla Buhr Fotógrafa.

Philippe Wollney

Viver em uma sociedade em que precisamos ser salvos não é fácil. O Brasil vive um momento especialmente estranho: uma democracia abalada, uma presidenta afastada por uma manobra Poeta, produtor cultural e pai de Nina. sobretudo machista, um pensamento reacionário ganhando força, uma violência institucionalizada. Aí nesse caos eu resolvo ter um filho. E “Lutar com palavras é a luta mais vã” feminista que sou ganho de presente o desafio Carlos Drummond de ser mãe de menino em um país que insiste em colocar as mulheres no lugar de belas, Falando de poesia, digo em um poema recatadas e do lar, enquanto os homens no que “a palavra pedra não quebra parlamento votam contra os nossos abortos. vidraça” e que um “tigre de papel / Mas o que isso tem a ver com arte? Tudo. é um texto em dia de protesto”. Aí Uma das minhas principais questões é vem um poeta e também amigo Fred como ensinar o meu filho, homem, a não Caju e rebate que “o discurso não ser machista hoje, em um tempo em que vence / o canhão, mas convence/ quem uma mulher é estuprada por 30 homens, aperta o botão”. Não encaro nossas mas a culpa é dela. Uma das poucas visões como antagônicas, mas estão certezas que tenho é que terei a arte, em níveis de ações diferentes. Sinto que principalmente a música, existe uma ação, uma como grandes aliadas na responsabilidade urgente educação feminista do que um poema em si, não meu filho. Se o que nos dá conta, não justifica. A impõe é o silenciamento luta da arte abarca outro e a submissão, temos território, o território do encontrado na música simbólico. Mesmo quando gritos importantes para a atividade artística tem o empoderamento das cunho de intervenção, mulheres. Nomes como performance, arte coletiva Elza Soares, Lívia Cruz, ou outras estratégias, é Karol Conká, Karina Buhr, no simbólico que a ação Mc Carol e Clarisse Falcão se faz. Como questiona têm mostrado que a figura Augusto Boal em sua feminina vai muito além da A Estética do Oprimido: Amélia; a mulher desse fim “Como a violência pode de mundo é forte, não se se manifestar sem que cala e não permite mais seja exercitada? Pelo a violência. Fica de lado espetáculo, pela estética. a diva figurativa, entra em cena Como se revela e pode ser combatida? a guerreira selvática. Mulheres Pela estética e pelo espetáculo, que se estão, literalmente, salvando suas extrapola onde se torna real e nela se vidas através da arte. É guerrilha completa”. É o confronto na dimensão do diária contra a cultura de estupro, imaginário, o confronto sobre a formação da contra salários menores, contra subjetividade, na linha sutil dos referenciais violência obstétrica e eu acabaria de identidade. Se, o Brasil em 2013, foi “o os caracteres desse texto com ano em que pensamos perigosamente”, me essa lista, mas a perspectiva de questiono como os artistas irão encarar criar um homem em um cenário em as vozes das ruas, como irão encarar que se pode, todo dia, em doses os estudantes secundaristas que estão homeopáticas, através da música ocupando as escolas, como pensar a arte ensinar a respeitar as mulheres é de seu tempo. Porque em determinados esperançoso, apesar de tudo. Temos contextos, “lutar com palavras é a luta mais sim salvação. vã”.

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Nathalia Queiroz Artista visual e ilustradora.

Atalhos não necessariamente conduzem vias mais rápidas. Eles estão mais, a meu ver, como caminho ainda não tão conhecido que poucos ousam tomar. Escolher percorrê-lo traz sempre um risco e um benefício ao menos. Para quem pensa em imediatismos talvez seja a rapidez tal benefício – e o risco, o atropelo. Há, pois, quem busca justo o tempo diluído da paisagem, o inesperado, a aventura. Aflora em si um olhar subjetivo permeado no corpo que caminha com todos os sentidos de um corpo vibrante. Ao criar atalhos, suponho ser preciso um pouco além de coragem na iniciativa, força para abrir espaços, delicadeza ao esgueirar-se e agilidade para os riscos. Há também, e talvez seja esse o ponto, de pulsar em si uma potência imaginativa de visualizações múltiplas entrelaçadas à trilha, névoas de sonhos que alimentam a alma vivaz fazendo valer todo o risco. Sonhos que não estão no futuro previsto ao fim da trilha – como busca o imediatista – mas sim no ante-passo, um ante após outro, como um refrescar-se inesgotável. Em tempos de duras vias normativas cerceadas de invenção, desviantes de ímpeto insubordinável percorrem vias outras, incertas, que para alguns configuram ameaças contra a cartilha de certezas. Certamente os fiéis que a seguem tentarão domesticar os insubordináveis assim como transformar em método o que a eles cabe como estilo. Certamente também não será medido poder ou violência contra quem atue de forma desviante. Assim tem sido dada a subtração da potência do imprevisível no decorrer de toda a história da humanidade. Mas a busca “artista” é pura potência que empurra a caminhada insaciável, capaz de atravessar até mesmo a morte do corpo físico que anda.

Roberta Martinelli Jornalista e radialista. Apresenta o programa Cultura Livre, da TV Cultura.

Arte é importante, porra! A arte pode mudar uma vida? Arte tem poder transformador? Em tempos de conservadorismo e um mundo cada vez mais esquisito a arte é a última esperança? Existe esperança? Esperança é uma paixão triste, segundo Spinoza. Paixão triste é o que nos faz permanecer estáticos, sem avanços, sem mudanças. Então Arte não vai ser a nossa última esperança e sim a última arma num mundo cheio de ódio. Contra o ódio que está cada vez mais forte, temos a arte. Tem maneira mais eficaz e bonita de lutar contra esse sentimento que está dominando tudo? Arte deveria ser ensinada em escolas, todas. Martinho da Vila outro dia me falou: “acredita que antigamente artista era sinônimo de vagabundo? Se a menina namorasse um cara que tocava violão, todo mundo na família ficava preocupado. Não era bom namorar vagabundo”. E eu disse: “sabia que tem gente que acha que artista é vagabundo ainda hoje, em 2016?” E ele: “ahhhh isso é tão ultrapassado que nem cabe na minha cabeça”. Não cabe em nenhuma cabeça. Acredite! Mas no ódio ainda cabe, porque ódio não pensa, não sente. Contra ele, arte.

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marcelo Coutinho Artista e professor de Artes Visuais – UFPE/UFPB.

28 Notas da Invasão: Arte como Aletheia e Política como Dóxa. 1.

“Verdade” para os gregos era A-letheia. (o prefixo “a”, indica uma negação. “Léthe” significa esquecimento). Gosto de traduzir Aletheia ação de “desesquecer”.

2.

Na Grécia Antiga o poeta, o adivinho e o rei de justiça (o sábio), eram aqueles que privilegiadamente não esquecem. E suas palavras, suas falas, inspiradas pelos deuses, tinham o poder de levar aletheia, desesquecimento, aos homens.

3.

13. É na assembleia dos guerreiros que surge, além da fala filosófica, a fala jurídica: a Lei. 14. Expulsos da pólis a poesia e o poeta, a Arte surge, portanto, como sendo ontologicamente bárbara. 15. Arte é força bárbara que sitia a cidade. 16. Teratológica, ela produzirá antídotos para o esquecimento.

Seria de se pensar delicadamente sobre este desesquecimento. Sobre esta clareira aberta pela palavra ou pela imagem...

4.

Este “desesquecimento”, esta aletheia, seria a recuperação da presença de algo que sempre se soube. Mas que estava ocultado.

5.

Inspirada, entusiasmada, efeito de pathos, a fala do poeta é avessa à fala consensual, que firma a ordem política da cidade.

17.

E será este destilar o seu ativismo.

18. Este ativismo não é do tipo de levantar bandeiras, nem produzir discursos claros demais. 19. Clareza, luz e razão são coisas de cidadãos e não de bárbaros. 20. Este ativismo não pode ser panfletário, repleto de palavras de ordem e de comandos. 21. Tais imagens também são frutos de dóxa. Mesmo que seja uma dóxa minoritária.

6.

E será exatamente por isso Platão irá aconselhar a expulsão do poeta da cidade.

22. As sociedades e suas culturas são, portanto, em si mesmas, estruturas de repetição e esquecimento.

7.

A pólis, cidade grega, e sua demo-kratia (demo-kratia, “povo-domínio”, “povopoder”) será montada como sendo fruto de outra fala: a Fala dos Guerreiros.

23. Será dentro do “mercado persa” de repetitivas trocas simbólicas que deambularão indivíduos e se constituirão os códigos de convívio social.

8.

Os guerreiros tinham dois direitos na assembleia: a isegoría e a isonomía. Isegoria é o direito de fala e opinião. Isonomia, igualdade entre os demais guerreiros diante da lei.

24. Arte é o açoite aos códigos compartilhados que, por se repetirem, se confundem com a verdade.

9.

25. Arte é um ato de virar mesas, de atirar todas as moedas ao chão, de acusar o comércio sujo dos vendilhões e de expulsá-los do templo.

Desta fala isonômica entre guerreiros nascerá a pólis e fundar-se-á a fala politikos.

26. Neste sentido a Arte é a promoção do desacordo social.

10. Esta fala consensual não será desesquecimento. Não se ligará a aletheia. 11.

27. Mesmo quando o desacordo é delicado e promove não mais que um luxuoso erro gramatical.

A fala política se ligará à dóxa.

12. Dóxa significa conformar-se a uma norma estabelecida pelo grupo. Escolher, deliberar e decidir diante de uma situação segundo as regras ou normas de um grupo.

28. Arte é “lavar as vista pro mundo”. 1

A bela frase é a maneira de descrever o ato de banhar o rosto pela manhã criada pelo Sr. Bugo, agricultor analfabeto, nascido na região de Santa Rosa, área rural da cidade de São Lourenço da Mata. 1

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A seção Crítica de Boteco promove a cada encontro um debate sobre temas abordados na revista. Com o tema “A arte é a última esperança”, esta edição foi fotografada por Camila van der Linden e gravada no Sexto Andar do Edifício Pernambuco, no Centro do Recife, com a participação do curador e pesquisador Moacir dos Anjos, da poeta e professora Renata Pimentel e da produtora cultural Mery Lemos. A mediação da conversa foi feita por Carlos Gomes, editor da revista Outros Críticos. 38


Foto: Camila van der Linden

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Relações entre arte e política Carlos: Essa ideia de arte e política, ou arte política, a relação entre elas, ou pensar a dimensão política na arte, mas não propriamente o objeto artístico como uma coisa fechada, mas o fato de estarmos aqui no Sexto Andar...

mais consciente de certas coisas. Que assume posturas mais políticas. Aqui dentro do Sexto mesmo. O que eu faço na minha cidade... Bem do interior, que é punk, Carpina. Nem é muito longe nem muito perto. Nem muito velha nem muito nova. Uma cidade de 88 anos e a gente vive dentro de uma caretice, de um formato muito louco. E gente fazendo arte, mesmo que não seja panfletária, que não dê um recado, mas ela de certa forma tá fazendo política.

Mery: É um ato político... Carlos: Então, como pensar sobre a dimensão política da arte nesse tempo em que estamos vivendo agora? Porque tivemos nos 1960 e 1970 por vezes uma arte panfletária, de certo modo engessada...

Renata: Tem dois contextos que a gente pensa aí. Um é: após esse momento que a arte fica linkada a um contexto específico e é por isso entendida como uma arte política, porque responde a um contexto político específico, aparentemente de exceção, não é? Ele é de exceção, claramente, mas é como se hoje a gente não vivesse os de exceção. E hoje a gente está vivendo outro, claramente disfarçado, mas claramente de exceção, do mesmo jeito. E aí fica mais claro que esse fazer político da arte é um existir político. E que o objeto final dele é, na verdade, uma parte processual desse existir. Que aí você começa a não entender o artista como aquele sujeito que cai uma relação de mecenato em que vem um Benjamim que vai falar no autor como produtor, nessa ideia de: sai o gênio romântico, entra o autor como um trabalhador daquele processo. Ou seja, o autor a gente substitui pelo artista em todas as linguagens. Aí você começa a borrar as fronteiras de linguagem. Começa a ter que beber nas várias linguagens. “Renata, se defina.” Aí quando eu vou me definir é baseado em quê? Em que área? Atendendo a quê?

Moacir: Você falou dessa arte política dos anos 1970, um pouco engessada, e hoje nós temos outro entendimento dessa relação entre arte e política. Primeiro, quando a gente pensa nos anos 70 no Brasil, a gente localiza algo que chama de arte política, arte de resistência à ditadura, de confronto à censura, à tortura, ou de denúncia a essas situações. E parece que quando acaba a ditadura a arte para de ser política. Eu acho que há um problema com isso porque desse modo a gente termina considerando arte política num sentido muito estrito. De ser transmissora de um discurso que já existe previamente à própria arte. A arte como um instrumento para transmitir alguma coisa que já se sabe, que se quer divulgar, passar adiante. Que se quer comunicar. Talvez por isso, hoje, passada a ditadura, ou até muito recentemente, a gente achava que a arte não era mais política ou não tinha nenhuma dimensão política. Se a gente entender a relação entre arte e política de modo mais amplo é possível quebrar essa dicotomia: da arte feita na ditadura e da arte feita depois. É preciso pensar na força política da arte não pelo discurso que ela promove, mas em relação às próprias práticas artísticas. A capacidade que a própria arte tem, independentemente de estar ou não enunciando um discurso sobre questões de conflito, de atrito, de nos desacomodar, tirar nosso chão. Arte como algo que nos ensina sobre uma coisa que a gente pensava que já sabia, nos assustando um pouco por isso.

Mery: Sou artista ou sou operária? (risos). Renata: Exato. Você é sempre um híbrido. É professor, mas tem formação em dança. Mas trabalha com dramaturgia, que é dança e teatro. Trabalha com curadoria e com pesquisa, enfim. Você é o quê? Esse híbrido, porque esse olhar o artista, é um olhar político nas micropolíticas, desde na tua cidade punk. O bairro que você ocupa, a universidade em que você ensina, em que você é aquele professor estranho que abraça o aluno. Que tira o aluno de lá pra levar pro teatro. Que pede ao aluno que cobre certas coisas que não podem ser cobradas, que não devem ser cobradas dos seus colegas. Aí, é antiético você cobrar certas ou é antiescroto? Isso tudo é político e é um fazer que vai formando esse

Mery: O próprio fazer já é político, hoje, principalmente nesse nosso contexto. De ter acesso a outras coisas, a outras informações, formas de pensar diante de um mundinho tão cheio de quadradinhos. De coisas preestabelecidas. Pra mim, fazer arte e estar envolvida com pessoas que fazem arte é me levar pra um outro lugar que me torne uma cidadã

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“O próprio fazer já é político, hoje, principalmente nesse nosso contexto.”

Foto: Camila van der Linden

Mery Lemos

discurso artístico e esse sujeito artista. Que é esse sujeito que incomoda. Ao invés de só ser a arte esse caminho que desautomatiza as percepções, como eu gosto de dizer, acaba sendo o procedimento e o processual. Às vezes, você ir para a estreia do espetáculo ou pegar o livro diz muito menos. Eu lembro de, por exemplo, Santa Joana dos Matadouros, Bertolt Brecht; Joana estava ali, fiel, nos “boinas pretas”, fazendo um discurso religioso, depois Joana vai ver os porões dos operários dentro do matadouro, pra ser convencida de que o pobre é miserável porque ele

também é cruel. Aí quando ela vê, diz assim, pra o administrador: “Você não me mostrou a crueldade dos pobres, você me mostrou a pobreza dos pobres, a miséria dos pobres”. Depois, quando ela se dá conta de que onde há homem não deve ser resolvido por Deus, mas pelo homem, aí ela está apontando pro humano. O artista como esse sujeito político do cotidiano. Por isso que ele incomoda tanto. Aí rapidamente, mata Joana, abafa o que ela tá dizendo e a transforma em santa. Tira a potência política dela.

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Formas de representação política Mery: Pra falar sobre ser artista e ser político, trazendo pro contexto geral de hoje, a gente acabou de ver esse golpe e uma das únicas classes que se manifestou contra isso foi a classe artística. Isso é muito sério. Nem a classe trabalhadora articulada, nem os movimentos sociais organizados... Ainda que sem muito efeito... Sem muito efeito não, porque surtiu, como as ocupações dos Mincs... Também foi em quem primeiro bateram, foi nos artistas, mas diante disso tudo, eu só vejo os meus amigos artistas falando...

para mostrar: agora, estou do outro lado. Ou seja, o morro quer estar de um outro lado de uma certa maneira. Essa neutralização é foda. Por isso que me parece que a arte não é a última, talvez a única. Se a gente lembrar de Mário Quintana, a esperança é um urubu pintado de verde. Moacir: Agora, uma coisa que tem emergido nos últimos anos – acho que isso é novo no Brasil, faz uns cinco ou seis anos; de uma maneira forte, de fato – é o campo artístico ser um palco de novas representações na sociedade. Tem todas essas questão que, até então, corriam paralelamente ao campo da arte. Questões de raça, de gênero... Uma série de anunciações de danos na sociedade brasileira que atravessa de um modo muito mais claro o campo artístico do que até há um tempo. Inclusive reclamando para si próprio esse lugar de fala sobre essas questões, se confrontando com artistas que, historicamente, falavam “em nome de” e que agora dizem: Ok. Esse lugar é meu. Essa fala é minha. Ou pelo menos temos que tecer alianças de outras formas, em outras bases. Então, o campo artístico se tornou esse lugar absolutamente atravessado pela política da representação. Pela vontade ou mesmo pela necessidade de determinadas parcelas da população se apresentarem de outra forma. Esta é outra questão que vejo como muito evidente nessa relação entre arte e política, que leva, muitas vezes, a vários conflitos na relação entre o artista e quem ou aquilo que ele quer representar.

Carlos: Eu fico pensando que pode está desarticulado, mas como Renata falou, de forma micropolítica, as periferias podem estar falando e a gente não esteja ouvindo ainda. Mery: Elas estão falando... A gente tá ouvindo, muitas vezes a gente nem gosta. Quando eu falo disso, de uma organização de movimentos, sabe, pra entender que a gente foi lesado nesse processo político de agora. Pra gente não chega muito. Tanto que teve aquele vexame do cara que chamou a favela pra descer e não foi ninguém. Uma mixaria de gente. O cara achou que ia bombar. A galera do morro... Renata: O problema é que o morro agora tem antena, tá lá, plim plim... Mery: Borbulhando. Renata: É aquela história bem clássica da reprodução, do oprimido que quer ser opressor. Aí eu vou de novo pra literatura. Como Machado de Assis que, como estratégia de sobrevivência, vira – um embranquecido, que não era mulato – amigo do escritor mais tradição-família-propriedade-tabaquice-burguesa que o país produziu, que é José de Alencar, a cartilha da mocinha bem-comportada. Da propriedade, da filiação com a fidalguia, sem a bastardia. Ele [Machado de Assis] coloca na ironia dele, o discurso, mas ele se notabiliza, cria a Academia Brasileira de Letras. Aí chega Lima Barreto, que até hoje é visto como um artista que escrevia mal, esquisito, que ninguém sabe exatamente o que fazia, porque ele não fez essa capinha, não botou maquiagem. Não fingiu que não era gago, epilético. Ele era pinguço, mesmo. Então, pinguço não pode. Entra nesse lugar do Prudêncio, o escravo do Brás Cubas. Brás Cubas montava nele quando era criança. Quando Prudêncio ganha um dinheirinho, o que ele faz? Compra um escravo e espanca ele em praça pública

Renata: A representação ganha outra dimensão, como palavra, como termo mesmo. De uma certa maneira, na arte, você tem sempre a ideia da representação. A representação do personagem, do evento histórico, da situação. Mesmo que alegórica, metafórica, metonímica, essa arte faz uma representação. Agora, começa a haver uma representação no campo de uma micropolítica, entendida mais literalmente e numa reivindicação de um discurso e de um lugar de fala. Aí, ela fica ainda mais confusa. É interessante essa confusão, sim. É interessante porque é justamente aí que a Babel começa a pegar fogo. Um artista como Copi que diz: pera aí, esses movimentos de reinvindicação, de representação de gay e lésbica, eu não quero nada disso. Isso tudo é um saco, eu quero outra coisa. Eu quero a possibilidade de transitar, de ser isso, depois ser aquilo. Assim, ele faz brincadeiras

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Foto: Camila van der Linden

“Uma coisa que tem emergido nos últimos anos [...] é o campo artístico ser um palco de novas representações na sociedade.” Moacir dos Anjos

como uma representação que pode ser lida pelo sujeito como um panfleto mesmo, por que depende aí da leitura. Então, o que eu acho que é fundamental na forma política da arte conseguir permanecer – e como ela consegue e a que consegue efetivamente, e que, pra mim, vai se constituir como uma arte de verdade – é essa a que não se dobra em fazer das explicações, argumentaçõezinhas, dos panfletinhos. Quando, por exemplo, ao

invés de dar lição de moral, estou realmente colocando a moralidade e a imoralidade... Mery: Fazer com que as pessoas pensem, né? Renata: Isso. Pra pressionar. No filme Aquarius, do Kleber Mendonça Filho, o espectador vai e julga mal o cara: “que cara filho da puta... Porque ela não tem um peito, ele não quer e vai deixar ela em casa. Tu não sabe a história do cara”. A gente está num discur-

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Mery: Eu entendo que é um momento crônico, de reflexão, mas eu estou meio de saco cheio desse policiamento.

so de palavra de ordem, que é o perigo que eu falo da representação. Quando arte vira palavra de ordem, fodeu. A gente é julgado dessa maneira: quem é você para me representar? Uma vez eu li isso naquela babel que é o Facetruque, né? Você bota um trechinho lá de um texto de Monteiro Lobato que não tem nada a ver com porra nenhuma com os racismos que o acusavam, aí a pessoa vai lá (minha amiga) e bota lá embaixo: é, mas eu nunca li Lobato (ainda começa com uma justificativa bem prazível), mas, mesmo assim, deve ser muito difícil para uma criança negra ser obrigada ler Lobato e se ver representada daquele jeito. Aí, a gente vai educar a criancinha a não atire o pau no gato, o gatinho é seu amigo, não devemos maltratar os animais. Gente, isso é doutrina.

Renata: Não ser cabo eleitoral desse policiamento. Moacir: Eu acho que isso é uma questão muito recente. Acho natural que emerjam essas reinvindicações. Acho que a gente ainda vai passar um tempo nesse processo de conflito e de entendimento de que outras maneiras essas questões podem ser tratadas, sem esse policiamento, o que é fundamental... Mas ao mesmo tempo, sem refrear essas vozes que vêm legitimamente demandando esse lugar de fala. Acho que a gente não tem, ainda, o meio, os filtros, a plataforma para lidar com essas questões. Todos estamos aprendendo...

Objetos artísticos Moacir: Um risco que a gente corre nessa discussão é focar mais naquele que tece um discurso do que na própria obra produzida. Independentemente de quem formula o discurso, é importante a gente entender a capacidade ou não da obra de arte, do gesto, do procedimento – seja qual for a forma que ela exista, da mais sólida à mais etérea – de provocar no outro o desassossego que a gente falou no começo. Nos provocar a reelaborar o modo como a gente entende determinadas coisas. Muitas vezes há uma dissociação entre o direito da fala, ou melhor, o direito de ser escutado – já que mais importante do que falar é ser escutado; não adianta nada você falar sem ser escutado – e a própria fala. Isso que chega ao outro não ser capaz de provocar assombramento. Quero dizer o seguinte: muitas vezes, eu temo que nessas discussões recentes, a gente esteja perdendo a dimensão do que está sendo discutido, se é a obra literária ou a posição de classe, ou o gênero ou a cor da pele do autor. Não é que não sejam importantes essas coisas, são fundamentais, mas eu acho que a gente tem que não perder...

to isso acontece, exatamente? O policiamento passa a ser tão grande que a gente joga fora o bebê, a água e tudo mais. Arremesso vai com tudo. Tem esse lugar tênue. Tem essa coisa de a gente pensar, por exemplo, nesse momento de formação de um pensamento social brasileiro, que é essa viradinha do século XIX pro XX, meu bem, todos eles flertaram com aquela noção de ciência que a gente tem até hoje, que engendrou o naturalismo, a ideia do relatório, do título, de instituição e de institucionalização. Então, a gente ainda está lutando ainda contra essa mesma lógica. A ideia é que essas vozes precisam ser ouvidas porque elas ainda não têm lugar. Os únicos lugares de fala que ainda tem alguma reverberação parecem ser ainda esses. Então, por exemplo, você vê uma exposição como a que está no MASP, remontada a exposição da Lina Bo Bardi, A mão do povo brasileiro. Legitimada por Lina, que é um olhar que, por mais que se entranhe, mas é um olhar que vem de fora. Aí, você diz, mas é o olhar do colonizador, do europeu. Eu fico pensando, o discurso do antropólogo especialista em povos indígenas – com todo o policiamento do politicamente correto (esse termo “politicamente correto” é super mega ultraconservador e a gente não se dá conta), cada vez que ele vai se justificar, usa Pierre Bourdieu, Gilles Deleuze – e eu saio anotando tudo que estava usando para justificar. Ok. Querido, beleza, no fim, olha quem tu usou pra justificar. Então, a gente tem que ser pós-colonial, neocolonial, transcolonial, anticolonial, mas a gente está aqui, no mesmo lugarzinho. Então, é um modo de ler.

Renata: Separar ficção do autor e do real. Moacir: É. Mery: “Você está assistindo Woody Allen, cara. Como assim?”. Caralho, adoro Woody Allen, cara. Eu fico morrendo em casa... Renata: Aí, a pessoa diz pra você: eu acho Almodóvar terrível com as mulheres, parece que tem pavor das mulheres. Em que momen-

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Foto: Camila van der Linden

“Quando arte vira palavra de ordem, fodeu. A gente é julgado dessa maneira: quem é você para me representar?” Renata Pimentel

Coletivos Renata: Tem um cara no Sesc de São Paulo. Ele estava coordenando a parte de dança do Sesc Santo Amaro, se chama Marcos Villa. Ele tem um projeto belíssimo que se chama “Modos de existir”, em que ele começou a mapear os coletivos quando começam a existir. Hoje, coletivo já não é novidade. A gente continua se organizando em coletivo porque a gente não achou outro jeito. Até porque, financeiramente, não dá conta também. Isso é político, também.

organização. Aqui a gente está a três anos. A gente se desentende, se entende. A gente se ama, se briga. A gente fica junto. Hoje, todo mundo se ama mais aqui do que tudo. Pra mim é um desafio, eu sou muito individualista e tenho um problema sério de concentração. Então, trabalhar aqui transformou minha visão de trabalho, de convivência, de cotidiano. Tipo, de ter que decidir junto, mesmo, em comum. Claro que bate essa coisa da grana. A gente trabalha com arte, eu sou produtora, não tenho um salário fixo. Então, quando eu

Mery: Total. É opção política e uma forma de

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ia poder manter um escritório? Nunca. Então, aqui a gente divide. Essa equipe tem quatorze pessoas. Faz com que você consiga fazer coisas bem interessantes dentro desse cenário. Nesse contexto político-partidário daqui, de Recife, o Sexto Anda é um oásis. Um lugar onde a gente nunca teve apoio de ninguém, pra nada. As ações são feitas conjuntamente, todo mundo se divide, todo mundo faz sua tarefinha. Isso é político.

só fala de Deus. Aí do cu de Adélia para o cu de Hilda Hilst. Daí pra Ana Cristina Cesar, pra Estamira, pra Stela do Patrocínio. Vamos bagunçar mais isso aqui? Aí vêm as histórias deles e delas. Agora, o espetáculo é costurado pela história dessas pessoas... São as histórias mais comuns, mas que velhinha não fala. Velhinha não tem desejo, né? Não fala dos casos... Do homem vinte e cinco anos mais novo do que eu. Essas coisas começam a aparecer... Isso é essa contaminação e essa política. Parar de julgar. Aí elas reclamam incrivelmente no fim do ensaio. Fizeram a cena, tá linda, tá adorável. Mas dizem: “Mas a gente não tá dizendo, eu estou preocupada com as crianças do futuro...”. Pronto, isso você diz quando acaba o ensaio. Quando você chegar em casa ou no camarim depois, mas na cena não é isso não. Porque você não tem garantia nenhuma de que o sujeito que está ali assistindo vai entender o que você está falando. E quão mais eficaz a gente for em provocar, mais a gente vai deixar com uma interrogaçãosona. O melhor é que não entenda, que fique com a interrogaçãosona.

Renata: Educa até o fazer artístico. Mery: Quando eu entrei aqui eu nunca pensei que eu poderia fazer um filme, mas fui me contaminando. Com essa energia, convivendo, aprendendo, estudando. E aí lancei o meu primeiro curta. E é fruto disso aqui. Questões ligadas à minha cidade que eu tento resolver com arte. Fico resolvendo minhas questões políticas com arte. Quando você (Moacir) falou de política, eu entendi de uma maneira mais ampla. Mas eu já estive dentro de política partidária. Há quatro anos eu fui candidata lá, e depois chego na cidade lançando filme. Eu estou fazendo outra política. O filme é Painho e o trem, meu pai era ferroviário e eu faço uma abordagem a partir das memórias dele sobre as ferrovias que foram desativadas. É um filme extremamente político sem ser um filme panfletário.

Mery: Que ele pense, que faça pensar. Renata: A gente quer que saia incomodado. A gente quer todo mundo agoniado aqui. Com riso nervoso, com choro entalado.

Renata: Discursivo, ensaístico...

Moacir: Quando a gente fala em arte política, seja nas artes visuais, teatro ou cinema, fica característico isso: uma arte que provoca entendimento claro, correto, sem levantar dúvidas, não está te colocando numa situação de desconforto, não tá gerando pensamento, desassossegando você. A natureza da arte chamada política, a meu ver, acho que a gente concorda aqui, é justamente aquela que não te explica...

Mery: Aquilo que você (Renata) falou... Tem poesia, música... Você tira a sua conclusão. Renata: É o que me vem acontecendo. Eu venho fazendo a dramaturgia num grupo de terceira idade, que se denomina “bárbara idade” do Sesc Santo Amaro. São atrizes com dez anos de existência o grupo. São dez mulheres e dois homens. Um deles está afastado nesse momento. O primeiro espetáculo deles era todo em torno da obra de Ascenso Ferreira. O segundo sobre Manuel Bandeira. Agora precisamos falar de uma mulher. Está nessa demanda. Nesse momento, chego eu pra fazer essa mudança. Eu falo com elas pra saber quais poetas elas trouxeram. E eram Cecília Meireles e Cora Coralina. Porque esse era o universo confortável. Ok, vamos lá, começa por aqui... Aí já vou pensando, tá melhor assim, não é um poeta só, são duas vozes. Daqui a pouco eu vou de pouquinho e pouquinho... Traz Adélia Prado. Por que fala de Deus, né? Todas elas têm um Deus no meio do caminho. Aí daqui a pouco vem um poeminha de Adélia Prado que diz: “Cu é lindo”. Eita! E agora? Mas minha gente, é Adélia, que vocês já tinham adorado. É uma velhinha, cinco filhas, professorinha, Minas, aquela coisa,

Renata: Artrita, né? A arte que artrita. Moacir: A arte tem uma pedagogia que funciona através da deseducação. Do desaprender... Renata: A gente volta em Brecht, né? Moacir: Você desaprende aquilo que você pensava saber. A arte te coloca diante de uma situação nova que te faz pensar. Seja através de uma atitude brechtiana, artaudiana, seja qual for o método, o jeito de você chegar, a arte só é política se for uma forma de provocar um desassossego, um incômodo. Pois o que não incomoda só está confirmando uma coisa que já existe. Confirmando padrões, convenções, o que a gente já sabe, e nesse sentido não faz política. oc

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MICRONARRATIVAS DOS SONS LA FORA por Carlos Gomes “a arte é o que resiste, ainda que não seja a única coisa que resiste”. (o que é o ato de criação?, giles deleuze)

primeiro movimento — eu não gostaria de catalogar os artistas em “música política”, “canção crítica” ou mesmo me pôr num “tribunal” da crítica pra limitar e colocálos sobre a mesma seara. mas em síntese, eu penso que há artistas que seguem uma linha reta (“evolutiva?”) na música brasileira, reproduzindo esteticamente via “imitação” – mesmo com algum rigor e experimentalismo – os caminhos já bastante delineados pelos principais compositores dos gêneros e movimentos canônicos da música brasileira. já há artistas que estão nos desvios, deslocamentos, nas “linhas de tensão”, pra usar uma expressão que romulo fróes citou (numa entrevista anterior a mim)... nesses desvios - que variam de artista pra artista (mas há alguns entrelaçamentos, “clube da encruza” 1 é um deles) - o estético-político me parece um espaço de fricção importante. — — aí entra a “crítica como processo”, que (pode) se cruza(r) com a noção de “escritura”, de walter benjamin (“nesse sentido, a obra de benjamin problematiza as fronteiras entre a escrita dita científica, teórica e prosaica e, por outro lado, a escritura fragmentada, opaca, ruinosa que caracteriza tradicionalmente o universo poético” 2 .) e quer na relação com as canções e artistas um espaço de “entrecrítica”, como você fez/escreveu com/sobre siba/rodrigo campos, ou numa “crítica-escritura”, “crítica-política”, (como venho me referindo), distante do lugar de “juiz”, mas ainda sim, crítico. — — a questão é: o que esses desvios querem dizer? o que eles significam? como “cartografar” esses “desvios”? uma música “política” necessita também de uma crítica “política”? como “fundamentar teoricamente” sobre o tema sem cair nas conceituações que fechem "essa música" num espaço restritivo? — “Nos dias 13 e 14 de agosto de 2015, quinta e sexta-feira, a Sala Funarte Sidney Miller recebeu o show Clube da Encruza, formado pelos integrantes do Metá Metá e do Passo Torto. Os dois shows encerraram a ocupação do coletivo Audio Rebel/Quintavant, realizada por Bernardo Oliveira e Pedro Azevedo, na nova série da Funarte”. (Disponível em: http:// www.funarte.gov.br/musica/publico-lota-sala-funarte-sidney-miller-e-aclama-o-clube-da-encruza/. Acesso em 13.10.2016). 2 Do artigo “Walter Benjamin e os sistemas de escritura”, de Márcio Seligmann-Silva. 1

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segundo movimento 1.

é ruidosa. fratura o tempo em muitas camadas. não quer ser nova, vanguarda ou moderna, deliberadamente. é de agora há pouco. canta os mortos, os desaparecidos, os pixos, as ruínas, os corpos, as ruas. é amarga e violenta a escuridão do tempo presente: música contemporânea brasileira, seus desvios, sua narrativa devir.

2. atos de resistência, meu samba, poética: caixa de fósforo, dedos, mãos sobre cordas: palavra, falação, golpe de vista. 3. sambador é uma outra linha de invenção numa poética que culmina agora em canções o que anteriormente o corpo falava com maior intensidade. sua expressão artística está continuamente em movimento: música, dança, tecnologias, máscaras, grupos, bandas; solo. os gêneros musicais, instrumentação, arranjos e letras se entrelaçam, ou se comunicam, como brincadeiras. 4. um novelo, levaguiã terê. 5. o corpo estava em pleno repouso, no sexto andar do edifício que se chama pernambuco, no centro da cidade do recife. os instrumentos eram acústicos. não havia amplificação artificial dos sons. a eletricidade dos corpos, somente. era a música aberta de areia, a melodia narrativa de juliano holanda, o diálogo equidistante entre o bandolim de rafael marques e o acordeon de júlio cesar e entre todos esses lugares, sobre nós e a cidade, a voz dela. vestuário é onde ela agora repousa. sua voz-labirinto faz dos timbres e arranjos um lugar possível para todos sons que queiram se perder. 6. a música distende a sua dimensão política e faz desse nebuloso tempo o seu lugar contemporâneo. uma música dos anos 1930 pode ser tão contemporânea quanto uma dos anos 2010. como uma música lançada neste nosso 2016 pode ser tão panfletária quanto qualquer canção de protesto pedagógica dos anos 1960. o que não significa que a arte política no período da ditadura militar seja necessariamente panfletária. “baby, baby, i love you” foi uma puta sacanagem, nos conta tom zé, os militares não enxergavam política nela, nem a esquerda, direita, “leia na minha camisa”. 7. conheci o compositor tardiamente, na voz de ava

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rocha; isso diz mais sobre a minha incapacidade de me mover para além das minhas limitações para enxergar o outro. a sua dicção, seu modo de projetar na voz palavras desajustadas, com métrica irregular, desnorteada, como torrente de imagens e narrativas, numa escrita-decanção improvisada. mas essa água batizada é de outra correnteza. menos turva, mais límpida. temos nela a canção e sua dobra. o pop e sua dobra. é possível cantar, querer cantar nas dobras das canções. 8. “butterfly” é uma peça que chacoalha e dança, faz dançar. estranha, nessa língua, desconcerta, com seu sotaque, expande esse ser-sambador para muitos outros lugares. 9. ele assombrou os seus fantasmas. desterrou-os. fez do novelo sua estética em processo, sua ave, que voa voa, em muitas direções. sem terra aonde pisar, decerto, de geografia incerta, mas com asas fortes. ali, lobos, rádio cabeça, memória em distorção. vozes tomam o silêncio para recriá-lo épico. o profano e o sagrado estão aqui desnudados. a/b era um movimento de risco; esse novo pássaro que ouço agora é mais do que um animal que voa; perigoso, ele é o que virá. 10. “um samba que fale das coisas do mundo”. um samba se expande como sonoridade e se firma por abrir os caminhos para a música que desloca os lugares habituais de um gênero musical; que fale de uma voz que assume um lugar de artista político, engendrando temáticas, falares, desvirtuando o verbo; das coisas porque cabe maria de vila matilde, oxum, jesus, ele-mesmo-autor, seu ponto de vista, sua máscara; do mundo já que o samba é só o mote para as histórias, suas canções, seus quintais, ruas dos bairros, campinhos, periferias, memória.

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terceiro movimento — a canção política não é necessariamente uma canção que aborda a política institucional nem assume uma postura no âmbito do debate político. ela pode ser/é “política” de outras maneiras. sim! como? — — não seria o momento de superar tanto a “crítica” quanto a “aisthesis”, isto é, a “estética”? a crítica tal como conhecemos a partir do XVIII corresponde a uma operação de deslocamento entre duas passividades/receptividades: o espectador alçado a tribunal do espírito. “arte política”, “micropolítica”, “crítica” e, então, a “música política”. você de fato precisa desses conceitos para trabalhar seu objeto: certa canção brasileira contemporânea? em que medida? —

quarto movimento Os movimentos primeiro e terceiro são conversas que tive com Bernardo Oliveira, crítico musical e pesquisador do Rio de Janeiro, sobre ideias ainda prematuras que venho desenvolvendo para refletir sobre a música brasileira contemporânea. A própria expressão “música brasileira contemporânea” é já conflituosa, mas que eu poderia sintetizar em certa música, também catalogada por vezes como “independente”, que circula em escala menor, seja por pequenas casas de show, selos, publicações como as nossas, festivais, pela internet, e que por vezes consegue furar o olho da grande imprensa e produzir algum tipo de reflexão para além dos seus nichos de circulação. Assim, o terceiro movimento é formado por questões que ele me fez, já o primeiro movimento é feito das reflexões que fiz a partir de algumas dessas questões que ele me enviou.

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O movimento segundo é feito de notas sobre discos que venho ouvindo mais recentemente, e com os quais tenho tido uma relação de diálogo, já que não se trata, no meu caso, de descrever ou interpretar cada um dos discos para o público. Estou vivendo esses discos e essas notas são as micronarrativas que por hora posso produzir, tendo em vista a potência criativa e provocadora que cada uma das obras produziu em mim. São discos de artistas de desvios e devires diferentes. As obras e os artistas permanecem em fluxo, mudando, buscando caminhos, criando suas próprias narrativas. Alguns eu tenho a sorte de acompanhar mais de perto, como Isadora Melo, com o seu primeiro disco, Vestuário. Ou nas transformações de Helder Vasconcelos, desde o Mestre Ambrósio, passando pela dança, até chegar nesse Sambador. Além deles, os novos discos do pianista e compositor Vitor Araújo, com seu Levaguiã Terê; do compositor Douglas Germano, que só vim a conhecer mais profundamente com Golpe de vista, mas que tem produzido há muito tempo, lançando discos solos, com Kiko Dinucci ou sendo gravado por artistas como Juçara Marçal e Elza Soares; e, por fim, o disco do músico Negro Leo, Água Batizada. O que esses artistas partilham? Que diálogo desejo propor aos leitores que tomam contato com esses fragmentos de escrita? Por que quebrar a narrativa em tantos pedaços? Primeiro, segundo, terceiro, quarto movimentos? Não são perguntas que consigo responder no limite deste texto. Porém, esse limite me sopra uma possibilidade de resposta, na verdade. A impossibilidade de interpretar a obra, de julgá-la de um ponto de vista privilegiado, hierarquizado, especializado, me faz experenciar uma “crítica como processo”, numa escrita que percorra desde o objeto artístico até a sua dimensão estética e política, os processos de criação do artista, sua relação com a crítica, com o público e os seus contemporâneos. Nessa escrita, os sons também estão em processo. Partilhamos entre nós esses processos, essas poéticas. O que está por vir, virá; como virá, não sei, mas será fruto desse processo. Quase que silenciosamente, vai reverberar esses sons como micronarrativas, micropolíticas, numa ação persistente, como atos de resistência: cantar, tocar, produzir, circular, escutar, criar, criar, escrever.

quinto movimento — mas às vezes tenho a sensação de que não escrevi nada. de que estou só preparando o terreno para um outro que ainda vai chegar. e tu? — oc 53


por Romulo Fróes

PODE ISSO?

Minha primeira lembrança musical remete à canção “Aos Pés da Cruz”, dos compositores Zé da Zilda e Marino Pinto. Não a formidável gravação de Orlando Silva que tocava sempre em casa, mas a inesquecível performance de meu pai lavando louça. Sendo esta sua única tarefa doméstica, meu pai a desempenhava com indisfarçável entusiasmo, desfilando um precioso repertório que ele aprendeu ouvindo rádio durante sua infância e adolescência entre as décadas de 1940 e 1950 na Bahia. Influenciado pelos grandes cantores daquele período como Francisco Alves, Vicente Celestino, Silvio Caldas, Jamelão, além do já citado Orlando Silva, sua interpretação emulava o canto solene e rebuscado dos seus ídolos. Entre jatos de água batendo nas panelas, pratos e talheres, seu vozeirão grave e potente ocupava toda a casa. Posso ouvi-lo agora mesmo. Quando mais recentemente comprei um gravador, querendo testá-lo (o gravador), pedi a meu pai

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que cantasse “Aos Pés da Cruz”. Minha primeira gravação com meu novo gravador foi a seguinte: “Não tô cantando mais nem pra comprar fiado. Eu não quero cantar não, tô desanimado, tô cantando mais nem no banheiro”.

Elza Soares entrou no estúdio cumprimentando a todos de modo carinhoso, distribuindo beijos e sorrisos. Seria a primeira vez que ouviria os arranjos criados para as canções escolhidas por ela para fazerem parte do repertório do seu disco A Mulher do Fim do Mundo. Posicionou-se bem em frente às caixas de som e pediu para começar a audição. Ao final da primeira música abriu um sorriso ensaiado e olhando pra câmera que registrava aquele momento, soltou um elogio genérico: “Muito bom, essa garotada é muito boa!”. A mesma cena se repetiu com a segunda e terceira músicas que ouve. Depois de ouvir a quarta música ficou em silêncio. Silêncio que se repetiu na faixa seguinte. Durante a sexta música, ainda de costas pra gente, disse em tom sério para si mesma: “vou ter que estudar”. Pausa. Repetiu: “vou ter que estudar”. Pausa. Elza então se virou pra trás e já totalmente desarmada, olhando firme pra gente, disparou: “Mas eu vou destruir!”. A santíssima trindade da música popular brasileira, segundo meu pai: Jamelão, acompanhado da Orquestra Tabajara, cantando Lupicínio Rodrigues.

Nascido em 1971, minha relação com Roberto Carlos se deu inicialmente pelos especiais de fim de ano durante a década de 1980. Durante muito tempo a imagem de Roberto com seus ternos azuis de ombreiras e sua risada caricata me impediu de conhecer e apreciar sua grande obra. No meu primeiro trabalho como assistente de Nuno Ramos na bienal de São Paulo de 1994, em uma de nossas muitas conversas sobre música brasileira ao longo dos muitos dias de montagem, falamos de Roberto Carlos. Eu, com meu discurso já muito ensaiado, expunha os inúmeros motivos para desprezar a música e, principalmente, o artista Roberto Carlos. Do seu lado, Nuno tinha outros e muitos motivos para me convencer do contrário. Enquanto preparávamos a mistura de sal grosso, parafina e breu que preencheria os moldes das esculturas de Mácula, o trabalho de Nuno naquela bienal, cantávamos o imenso repertório de Roberto. Eu para destruí-lo. Nuno para engrandecê-lo. Passado algum tempo, querendo encerrar nossa peleja musical, apelei para a matemá55


tica. Disse a Nuno que apesar de admitir que algumas das canções apresentadas por ele serem realmente muito bonitas, na média, Roberto Carlos era muito ruim. Ao que Nuno prontamente me retrucou: “Não existe média em arte”. E completou: “Não importam os tropeços de um artista, somente o momento em que ele alcança sua grande realização artística, e se isso acontecer uma única vez em toda sua carreira, será por este momento que sua obra será lembrada”.

Anos atrás em uma conversa de boteco, dessas em que perdemos uma noite inteira tentando estabelecer um ranking da música brasileira, finalmente admiti que João Gilberto era maior que o Djavan. Foi nesta hora que Djavan tornou-se realmente grande para mim. Perguntaram a meu pai que nota ele daria para o show de lançamento do meu disco Cão, que ele acabara de assistir. Ganhei um seis.

Diferente da casa dos meus amigos onde Caetano, Gil, Chico, Milton e companhia, dominavam a trilha sonora dos seus pais, a discografia de meu pai era formada unicamente por artistas pré-Bossa Nova. Meu pai sempre me disse que a Bossa Nova e seus “cantorzinhos sem voz” mataram a música brasileira. O coração tem razões que a própria razão desconhece.

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Ao entrarmos no Palácio do Itamaraty logo nos deparamos com sua icônica escada, uma aparição que surge solta no espaço, sem guarda-corpos e que parece flutuar. Já era uma visão impressionante para mim, mas quando caminhando em sua direção descobri seu duplo refletido em negativo, rasgando o piso onde eu estava e revelando o andar inferior, meu coração disparou. Sei muito pouco sobre arquitetura, naquela época menos ainda, mas me lembro de ser a primeira vez


que um prédio me emocionava. Não apenas o gênio de Niemeyer, mas também as obras de arte espalhadas pelo prédio, sobretudo o afresco pintado por Volpi e a parede do auditório projetada por Sergio Camargo, além do exuberante jardim suspenso de Burle Marx e o lindo mobiliário desenhado por Sergio Rodrigues, tudo me fazia crer estar diante de uma espécie de auge da civilização brasileira. Avisado pelo guia que nos conduzia que o Palácio do Itamaraty fora construído para abrigar as solenidades de recepção aos chefes de estado estrangeiros, não resisti à tentação de imaginar a reação dos governantes de grandes potências mundiais, sobretudo os americanos e seu bolo de noiva chamado white house, humilhados diante de tamanha beleza e sofisticação. Fui tomado por um estranho e inédito sentimento cívico. Quis cantar o hino nacional.

mas até aquele momento não havia entendido que seria eu o seu cameraman. Como Alice estava absolutamente linda e tranquila em sua grande hora, eu que nunca havia tocado em uma câmera de vídeo, em pouco tempo relaxei e passei mesmo a me divertir com meu novo ofício. Me posicionei ao seu lado na cabeceira da maca e ensaiei meu plano, uma panorâmica que partia do seu rosto transformado pelas inúmeras e inéditas expressões provocadas pelas contrações, indo até seu ventre, de onde nosso obstetra coordenava suas ações para que o parto transcorresse da maneira mais natural possível. Com o plano escolhido por mim cada vez mais aprimorado e Alice surpreendentemente relaxada, passei a me concentrar na trilha sonora que já rolava solta no computador que havíamos levado. Queria que minha filha nascesse com a música certa. E ela teria muitas chances pra isso, afinal sua mãe havia preparado pessoalmente a playlist e um dos motivos de ter me apaixonado por ela, era nosso gosto musical afinado. Não tinha erro. Ao longo de todo o processo, algumas canções teriam se encaixado perfeitamente caso Olga tivesse antecipado seu nascimento. Não me refiro obviamente às minhas próprias canções, muitas delas em parceira com Alice, que por um jabá absolutamente compreensível neste caso, estavam presentes na trilha. Me lembro especialmente de “Minha Mulher”, do Caetano, não só por seus lindos versos iniciais e perfeitos pra aquele momento: “Quem vê assim pensa que você é muito minha filha, mas na verdade você é bem mais

“Meu pai sempre me disse que a Bossa Nova e seus ‘cantorzinhos sem voz’ mataram a música brasileira.”

Meia é Lupo. Cueca é Zorba. Som é Gradiente. TV é Sharp. Requeijão bom é da Bahia. O que é bom custa caro. Aprendi a ter gosto com meu pai. Para o nascimento de nossa filha Olga, Alice preparou uma longa playlist com quase oito horas de música para a hora do parto que, previsto para ser normal, seria impossível prevermos sua duração. Nosso obstetra, pouco antes de iniciar seu trabalho, me encarregou de pilotar sua câmera de vídeo para que eu registrasse o parto. Registro este que faria parte de seus estudos e que contribuem para o aprimoramento dos partos executados por ele. É claro que havíamos permitido essa gravação anteriormente,

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minha mãe”, mas porque no movimento da minha panorâmica, Olga teria nascido no exato momento em que Caetano cantava: “meu bichinho bonito, meu bichinho bonito, meu bichinho bonito, tudo é mesmo muito grande assim”. Outro lindo momento teria acontecido com “Vento Bravo”, de Edu Lobo e Paulo Cesar Pinheiro na antológica versão do disco Edu & Tom. Os versos que acompanharam meu movimento de câmera no que poderia ter sido o nascimento de Olga, eram perfeitos não só em seu significado, mas também no casamento entre música e imagem. Edu e Tom cantavam juntos “como um sangue novo, como um grito no ar, correnteza de rio, que não vai se acalmar”, quando Olga adiou mais uma vez sua chegada. Quando finalmente nasceu, estava tocando “Fever”, na versão de Peggy Lee, talvez a única canção que eu não teria incluído na imensa playlist de quase oito horas. Foi a primeira malcriação de Olga com seu pai. “Não existe média em arte”, ouvi isso aos vinte e três anos de idade e nunca mais me esqueci.

Itamar se apresentava na TV cantando o repertório do seu disco em homenagem a Ataulfo Alves, quando meu pai passa pela sala de casa com a cara já fechada. “Quem é essa besta?”, me pergunta impiedoso. Comecei respondendo que era um cantor paulista chamado Itamar Assumpção, quando sou interrompido por ele: “Mas isso é Ataulfo Alves”. Respondi que sim e antes que pudesse continuar, fui mais uma vez interrompido: “Mas está tudo errado”. Inutilmente, tentei ainda explicá-lo quem era Itamar e que justamente sua intenção era recriar a obra de Ataulfo para além da simples homenagem, quando meu pai, já totalmente transtornado, desabafa: “Pode isso?”.

Quis lançar um coquetel molotov na direção de quem lançou um coquetel molotov contra a fachada do Palácio do Itamaraty em 2013. Ao entregar meu disco Cão a Jards Macalé, depois de um show seu que eu acabara de assistir, disse a ele o quanto me influenciava e o quanto sua música, sobretudo seu primeiro disco, havia sido referência para aquele trabalho que acabara de presenteá-lo. Jards agradeceu e com as mãos sobre os meus ombros vaticinou: “Vai dar errado!”. O que é bom custa caro. oc

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Língua ou palavra caudalosa

Foto: Tiago Lima/Divulgação

resenha

por carlos gomes Para escrever sobre Língua é preciso expandir a escuta para outros sentidos, outras partes do corpo. É preciso escutar a pele, os olhos, o pelo. Sentir onde o corpo vibrar. Investigar o que escapa ao primeiro, segundo e terceiro contatos com essa escuta. Os objetos musicais, visuais e as relações que se estabelecem entre eles vão se desdobrando em várias camadas de sentido que o nosso tempo ordinário parece querer obscurecer. O tempo de uma canção pode ser um tempo poderoso, potente, mesmo que fragmentado, exposto ao ocaso da vida. A cantora, compositora e percussionista Alessandra Leão vem desde 2014 lançando uma séries de EPs/ discos que, segundo ela, se dividem como “eixos/capítulos: Pedra de Sal – alma e ossos, Aço – carne e pele e Língua – língua”. Essa trilogia de EPs nos deu a chance de tornar o tempo de escuta de cada disco também um tempo mais poderoso, mais singular. Com eles, pudemos ver revelados os resquícios dos processos de criação da artista. A cada etapa, novos mergulhos, escritas, concepções visuais,

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grafismos, performances, sonoridades, parceiros, músicos, compositores, cantos. Com produção musical de Caçapa, a dupla arregimentou diferentes vozes para compor esse intrincado projeto artístico, no qual Alessandra Leão é a sua voz-guia. Entre os mergulhos que se intrincam como tensões, nas canções “Mergulho” 1, de Alessandra e Caçapa e “Foi no porão” 2, de Odete de Pilar, que encerram o disco anterior, Aço, um respiro, um fôlego pode ser sutilmente ouvido na abertura da canção que abre Língua, o disco que encerra a trilogia. “Pássaros, Mulheres e Peixes”, de Alessandra, escrita a partir de texto de Xico Sá, emerge ainda reverberando a sonoridade mais tensa do EP anterior. Mas ao encontrar uma outra voz, a de Ná Ozzetti, os timbres intensos que se cruzam por sobre um baixo que se repete, como que conduzindo toda a ambiência para mais próximo da terra, do chão, tornam as vozes de Ná e Alessandra um novo espaço para a criação artística. Aos poucos, as vozes vão se distanciando das texturas mais reconhecíveis e criando outros


climas, incorporando novas nuances, explorando outras possibilidades. “Joguei Minha Palavra n’Água” tem uma condução extremamente rica nos arranjos e andamento rítmico das guitarras de Caçapa e Rafa Barreto. Ainda que aquela vibração mais tensa ainda esteja muito presente, a partir da “dança” dos sintetizadores, com sua rítmica própria, uma outra dança, própria desse diálogo entre Caçapa e Rafa, começa a se impor, e a permanecer, a partir dali, encontrando na voz de Alessandra e seu lamento-chamado ecoado na letra da canção, mais uma possibilidade de criação coletiva. A música “Língua” é quando essa criação em grupo já está num outro estágio de desenvolvimento. Há nela uma sensualidade que se faz tanto na musicalidade, na letra e no modo como o canto se debruça sobre cada palavra. Cantar os versos não parece suficiente, é preciso seduzir a melodia, “lamber”, “morder”, “ferir” seu verbo, como voz que fricciona cada palavra. “Na minha boca”, uma parceria de Alessandra com Kiko Dinucci, permanece no mesmo campo semântico da faixa anterior, o da sedução como linguagem. Mas nas guitarras de Rafa Barreto e Kiko Dinucci há uma dureza, uma aspereza que se reflete no “bicho”, no “demônio”, na “fera”, no “animal” que o canto de Alessandra entroniza, por sua capacidade de manter a dubiedade da canção. Nada é dado com facilidade. Os bichos somos nós mesmos. Língua encerra a trilogia com as músicas “Doutrina de Oxum”, uma toada tradicional do Tambor de Mina do Maranhão, e “Caudaloso”, uma música de Alessandra com letra de Wilson Freire, que se complementam numa única faixa. O coro de vozes formado por Ná Ozzetti, Juçara Marçal, Luisa Maita, Renata Amaral e Rafa Ella Nepomucemo repete a toada sob a con-

dução rítmica da percussão de Mestre Nico e da bateria de Guilherme Kastrup, músicos esses que estiveram presentes em grande parte do disco. Com eles, a guitarra e os arranjos de Caçapa se firmam como uma das principais forças para a sonoridade do disco. Nessa música, formam com a base rítmica e o coro feminino uma rica comunhão de vozes artísticas. Com os solos pontuados por Caçapa no fim da toada, uma vibração ainda se mantém acesa, por onde a voz de Alessandra se calça para falar-cantar a letra-poema de Wilson Freire, como numa espécie de revelação de sua voz-artista: Não sou caudaloso Nem sou tão perene Eu sou temporário E o meu vau Mais profundo Dá pé, a qualquer pé Descalço

A vibração se esvai, o canto acompanha o derradeiro da canção. Resta a voz-fôlego, insistente, tropeçando na respiração que ainda se ouve – quase no que resta de silêncio – e que anuncia para quem escuta, escutou essa travessia de alma e ossos, carne e pele e língua, que sim, há vida. oc

O disco foi produzido entre junho e agosto de 2015 e gravado no YB Studios (São Paulo, SP). Direção artística: Alessandra Leão. Produção musical: Caçapa. Co-direção artística: Luciana Lyra. Projeto gráfico e ilustrações: Vânia Medeiros. Fotografia: Tiago Lima. Assistente de fotografia: Mica Toméo.

“Num mergulho vai/ Um tremor que sai/ Da garganta corre o ar/ Chega a me arranhar/ Volto a respirar”. 2 “Se eu mergulhei/ Foi no porão/ Mergulhei, saí de lá/ Atravessei o mar soturno/ Mergulhei foi porão/ Mergulhei foi no porão/ Depressa corri de lá/ Eu dei um pulo e mergulhei/ Depressa caí por lá”. 1

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resenha Foto: Laís Domingues/Divulgação

Cosmograma e Cosmo Grão por Fernando Athayde Acredito que Cosmograma, primeiro disco da banda pernambucana Cosmo Grão, sinaliza a consolidação de uma forma de enxergar o rock n’ roll ascendida na década de 2000: guitarras afinadas em ré ou dó, inúmeros pedais de fuzz, variações bruscas de dinâmica e andamento e intervalos melódicos de quinta diminuta, nona e cromatismos. Além disso, a estreia do quarteto instrumental formado por bateria, baixo e duas guitarras evoca alguns sentimentos e sensações perdidas durante a transição da etapa de composição e ensaio para a de gravação e finalização do áudio. Não hesitaria em apostar que a Cosmo Grão tem um processo criativo que faz uso de jams como elemento catalisador da união entre composição e estruturação dos seus temas instrumentais. Liderado pela guitarra, o som da banda ecoa como algo feito à base da informalidade inerente a um ensaio com os amigos ou da curiosidade comum de querer sempre experimentar algo novo que existe entre os músicos. Também me ocorre que o quarteto responsável por Cosmograma talvez esteja mais preocupado em colocar a mão na massa e tocar seus instrumentos de fato, que sentar para uma reflexão acerca de sonoridades, conceitos, arte contemporânea etc. Dessa forma, quando me deparo com os

nomes de algumas músicas como, por exemplo, “Mg” e “Mabombe”, só posso desconfiar que elas se referem ao estúdio de ensaios MG, no Poço da Panela, e à conterrânea banda instrumental Mabombe. Esse tipo de coisa, embora nada acrescente à composição, nos atinge como um brinde, como uma surpresa de ovo de páscoa, algo que não tem muita utilidade além da diversão descompromissada. Mixado e masterizado por Arthur “Dossa” Soares, um dos caras que mais tira som de guitarra que já conheci nessa vida, Cosmograma tem seu esqueleto gerado a partir das seis cordas. Apesar de enxergar uma clara influência de Tony Iommi em muitos dos riffs do disco, acredito que o interessante mesmo é perceber as pontuais inserções de arranjos e dobras de guitarra, um alinhamento estético que foi quase reinventado e popularizado na última década por Josh Homme e seu Queens Of Stone Age. Adotando escolhas melódicas e harmônicas sombrias, o grupo cria uma zona de conforto que sustenta todo o álbum até ser quebrada definitivamente na última faixa do trabalho, “Noite Soberba”, quando, a meu ver, o Cosmo Grão atinge seu auge. Tocada na que é uma das únicas ou mesmo a única guitarra limpa do disco, a composição captura a tensão 62


das dissonâncias de sua harmonia e tira de evidência a distorção para realçar a criação de uma atmosfera mais cativante e menos gratuitamente agressiva. Apesar disso, para os interessados em timbre de guitarra de rock, Cosmograma é um passeio agradável por pedais de efeito, modelos de amplificador e demais deleites do universo guitarrístico. Gravado no estúdio Casona, em Candeias, o trabalho de estreia do Cosmo Grão chegou a ser lançado pelo selo paulista Sinewave, direcionado aos amantes da música estranha, do noise, do post rock e de quaisquer tipos de experimentações sonoras das mais ruidosas e malucas. E aí acho que vale salientar que, mesmo sendo filho de uma época dominada pelas tags “stoner” e “rock”, Cosmograma também possui um pezinho enfiado no mundo da barulheira de bandas tipo o Sonic Youth e Nirvana. Em “Villa Verde”, sétima faixa do álbum, vale a pena observar como o solo de guitarra é gradualmente destituído de sua função melódica e se torna uma textura à medida que se aproxima do fim. Além disso, em vários momentos de baixa dinâmica do disco é possível notar a presença de arranjos e fraseados enterrados em reverb e alocados no fundo da mixagem, criando aquela sensação de paisagem sonora e de tridimensionalidade. Graças às quintas diminutas, sextas, nonas e demais intervalos soturnos do álbum, tive a sensação de estar penetrando no covil do satanás várias vezes ao longo desta resenha. E aí, apesar de toda essa análise técnica acerca da composição e produção do disco, penso que tão importante quanto isso é tentar entender o contexto em que Cosmograma foi concebido - tentar elencar de forma pragmática algumas das características inerentes ao período histórico e à mentalidade vigente na cabeça dos roqueiros recifenses que andam por aí lotando estúdios pelas madrugadas da Florença dos Trópicos. Em primeiro lugar, todos nós músicos desta cidade convivemos com a frequente aparição do deus Môpa, ou, para os não -iniciados, com a aparição da entidade cósmica que surge em todos os shows recifenses e faz pararem de funcionar os amplificadores, microfones, mesas de som, retornos, pedais etc. Em segundo lugar, existe a ressaca mercadológica dos últimos seis, sete anos, quando os

instrumentos musicais de ponta chegaram à cidade e se tornaram financeiramente acessíveis, gerando um hype incontrolável por adquirir mais e mais equipamento. Em terceira e última instância, eu citaria ainda a popularização das festas de rock e dos grandes festivais, que enfiaram goela abaixo das pessoas várias bandas “pesadas, mas com classe”, tipo o próprio Queens of Stone Age, o Royal Blood ou outras atrações que com certeza já tocaram ou ainda tocarão no Lollapalooza/Rock in Rio. Assim, eu enxergo o surgimento do Cosmo Grão como um reflexo dessa época. O pé no noise eles têm porque depois de tanta môpa, todo mundo no Recife tem infelizmente. Os timbres e as texturas de guitarras eu vejo como algo contemporâneo a várias bandas da cidade, já que há uma década não era tão fácil conseguir uma Gibson Les Paul ou um pedal de distorção da Electro-Harmonix. E, por fim, o aspecto soturno e pesado de Cosmograma eu acredito que tenha vindo da união entre o repertório pessoal dos integrantes e essa incrustação do rock n’ roll stoner, do rock de festival grande, na mentalidade geral do jovem recifense de classe média. Para todos os efeitos, a estreia do quarteto pernambucano é um trabalho digno de audição, pois, embora não soe tão proeminente e artisticamente pensado quanto um Stoner Witch, do Melvins, ou mesmo um Pharmako Dinamica, da conterrânea banda AMP, Cosmograma é um álbum capaz de instigar uma reflexão sobre a cultura e os hábitos de um grupo e de um período histórico. oc

A banda é formada por Chico Rocha (Guitarra), Thiago Menezes (Guitarra), Rafael Gadelha (Baixo) e Cássio Sales (Bateria/Samples). Gravado no Estúdio Casona, Candeias (PE), entre dezembro de 2015 e janeiro de 2016. Arte de capa: Mariana Nascimento. Design: acasográfico.

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resenha

ó, juliana perdigão por ggabriel albuquerque Em “Depois Que o Nove Virou Seis”, uma das faixas principais de seu novo álbum, Ó (YB Music com patrocínio da Natura Musical), Juliana Perdigão delineia uma síntese de sua arte e de sua própria biografia. Como uma exaltação ao processo criativo contínuo e permanente, ela canta: “Tá tudo em mim, minha voz, meu canto/ Tá tudo bem aqui, o que é e o que era/ Tá tudo em mim, eu só não sei se é paz ou guerra”. Mineira radicada há três anos em São Paulo, Perdigão trabalha em frentes artísticas variadas. Cantora e multi-instrumentista (clarineta, flauta, clarone e violão), lançou em 2012 o seu primeiro disco, intitulado Álbum Desconhecido. Como instrumentista, tocou na banda de apoio de Tulipa Ruiz e em grupos como Graveola e o Lixo Polifônico, Corta Jaca e Quatro na Roda, além de participar de trabalhos de Iara Rennó e Clima, entre outros. Ainda trabalhou como atriz no Teatro Oficina, de Zé Celso Martinez Corrêa. Todas essas experiências se acumulam, conectam-se e se hibridizam

Foto: Mauro Restife/Divulgação

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em sua música – em um vídeo de apresentação de Ó, ela chega a comentar que “o teatro trouxe muito pra mim como cantora, que é estar sempre ‘falando’ as letras, pensando naquilo que está se dizendo e trazer pro corpo, de algum jeito encarnar o que está sendo dito”. Perdigão trabalha, enfim, com uma ideia que evoca como uma “canção expandida”, dialogando conceitual e esteticamente com os contemporâneos Rodrigo Campos, Ava Rocha, Alessandra Leão, Kiko Dinucci, Negro Leo, Romulo Fróes e outros que reinventam o corpo cancional a partir da inserção de elementos incógnitas, incertos, exploratórios e arriscados em sua forma. Mas enquanto o chamado “Clube da Encruza” (ou seja, os cruzamentos entre Metá Metá, Passo Torto e parceiros) expõe essa verve experimental em crônicas urbanas ásperas ou mesmo lúgubres, com toques de um realismo mágico sublimado, e Negro Leo o trabalhou com composições baseadas em improvisações livres radicais, Perdigão trilha um outro cami-


nho. Une o Clube da Encruza ao Clube da Esquina, uma mistura que emerge ao longo de todo disco e vai sugerindo a mudança da musicista de Minas Gerais para São Paulo como o tema central que se reflete nas faixas do álbum. Em entrevista ao jornal O Globo, ela pontuou esse choque entre os dois polos: “São Paulo estava no meu primeiro disco, mas, numericamente, ele trazia mais a cena de BH. Agora mergulhei mais fundo nisso. A turma do Clube da Encruza tem uma busca por uma certa aspereza, uma sonoridade ruidosa, com um acabamento menos esmerado do que a gente tem costume em Minas. A gente tem um lirismo, um astral meio telúrico. Em São Paulo é mais cru. O Romulo [Fróes, produtor de Ó] ficava zoando quando a gente queria fazer mais de um take: ‘lá vem a lâmpada mineira’” -- “girar a lâmpada” é uma expressão que brinca com o perfeccionismo, como alguém girando a lâmpada indefinidamente para trocá-la. Essa diversidade de elementos, concepções e motivos diversos que Ó carregam são por si interessantes. Contudo, os elementos soam tão bem conjugados como um todo no álbum, que, ao englobar muitas atmosferas poéticas e sonoras, tem sua tensão dramática enfraquecida. São 17 faixas (sendo duas vinhetas), dentro de um conjunto disperso, sem um fio condutor que dê lastro semântico à unidade. Há momentos de um brilho singular, como o lamento de angústia cortante de “Crack Pra Ninar” (“Me dê a mão/ Eu vou cair além do chão”), composição de Kiko Dinucci interpretada aqui em uma versão crua com a voz límpida de Perdigão flutuando por cima dos destroços sônicos de sua própria clarineta e da guitarra ruidosa de Dinucci. O violão maníaco e hipnótico de Bicho Morto é desconcertante, como se recriando o clima e o universo sombrio de Jards Macalé e Itamar Assumpção. Mas o impacto dessas faixas é substancialmente re-

traído quando elas são colocadas no mesmo balaio de músicas pouco expressivas, excessivamente polidas ou até mesmo convencionais (no sentido ruim do termo), como “Vestida com Brisa pro Mar” (com Tulipa Ruiz), “Mãe da Lua” (com Ná Ozzetti) ou na caricata faixa-título. Enquanto algumas músicas agarram, gemem, tremem, choram e matam (como dizia o citado Macalé), outras soam cômodas, diluídas, placebo. Um equilíbrio mal resolvido, talvez. Em comparação ao anterior Álbum Desconhecido, Juliana Perdigão e sua banda Os Kurva demonstram em Ó um amadurecimento (essa palavra tão banalizada na crítica cultural) de sua proposta sonora e, principalmente, poética. O trabalho ainda desliza na construção de um conjunto orgânico, mas, de toda forma, aponta as próximas rotas possíveis como um prisma luminoso. Nas fanfarras libertinas “Na Frente da Bandeira” e “Hino da Alcova Libertina”, Perdigão, “imoral como todos os meus contemporâneos”, traz o vendaval e “chuta a família mineira”. Num dos versos mais simplesmente geniais do rock brasileiro, Rita Lee dizia: dê-se ao luxo de estar sendo fútil. Nos últimos lances de Ó, Juliana parece seguir o conselho e abraça um espírito de diversão anárquico. É o momento em que sua voz soa mais vívida e rebelde. oc

A banda é formada por Chicão (piano e teclados), Moita (guitarra e baixo) João Antunes (baixo, guitarra e violão) e Pedro Gongom (bateria e percussão). Projeto gráfico do disco: Cecília Lucchesi. Arte: Cinthia Marcelle, Mauro Restife e Juliana Perdigão. Gravado entre junho de 2015 e março de 2016.

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resenha

A Sedição das Cordas por Bruno Vitorino

Brazilian Jazz. Duas palavras amalgamadas numa expressão que traduz, antes de mais nada, uma brilhante jogada de marketing da indústria fonográfica norte americana. O termo foi inventado nos Estados Unidos nos anos 1960 para, a grosso modo, rotular o encontro da bossa nova com o jazz e registra no continuum da História como a música brasileira oxigenou a produção artística de toda uma cena que, apesar de vivenciar as inovações estéticas trazidas pelos instrumentistas ligados ao New Thing, perdia o contato com o grande público, cada vez mais interessado na retórica direta e crua do rock. O resultado foi um sucesso comercial estrondoso que até hoje ecoa, cristalizando-se lucrativa commodity simbólica que produz de bibelôs da sofisticação elitista a verdadeiras (embora, cada vez mais raras) explorações dessa confluência sonora. No entanto, gotejar alguma problematização sobre o termo expõe como ele traz imbuído em si algumas

Foto: Mery Lemos/Divulgação

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questões delicadas: a tensão político-cultural implícita à expressão, a visão caricata e reducionista da música brasileira e as intransponíveis e equivocadas fronteiras estéticas que o brazilian jazz impõe. Uma tag mercadológica que ignora a riqueza e a minúcia da produção musical destas terras e parece não reconhecer o elemento de improvisação e risco incutido em nossa matriz instrumental, como se apenas ao jazz coubesse o direito de ser música improvisada. Assim, insurgindo-se contra esse status quo do mercado de forma orgânica – e não, panfletária – e engrossando o coro dos muitos adeptos do instrumental brasileiro os quais rejeitam as generalizações do rótulo jazz 1, está o primeiro disco do duo Rafael Marques e Walter Areia, Treze Cordas. A simbiose dos músicos e a intenção de respirar como um só estão escancaradas no título do álbum, que faz menção ao somatório das cordas dos instrumentos utilizados pela dupla: o bandolim de 10 cordas de Ra-


fael e o estranho baixo acústico de 3 cordas de Areia, numa expectativa, para além da estética e das implicações musicológicas, voltada talvez à mística do número 13 e certamente à busca da comunhão de espíritos livres no etéreo do som. A capa, com os instrumentistas sorrindo, olhando para o mesmo horizonte infinito que o ouvinte apenas infere, só reforça essa ideia de união na jornada expressiva em direção ao imponderável presente em cada uma das oito faixas do disco. Faixas que, por sinal, expõem não apenas o contraponto tímbrico do baixo e do bandolim, a complementaridade destes dois instrumentos da família das cordas que extrapolam suas funções harmônica, melódica e rítmica para manter a música ali sob seu escrutínio, mas a justaposição das identidades musicais absolutamente contrastantes dos dois músicos. E funciona! De um lado, o jovem virtuose, encarnado na figura de Rafael, que domina seu instrumento como se fosse uma extensão natural de seu corpo e apresenta temas marcados por melodias ricas e imaginativas, sagacidade no encadeamento dos acordes, modulações na dinâmica, um latente senso de humor e por vezes até certa autoironia (que no império do politicamente correto, transfigura-se em ato subversivo); e do outro, o minimalista experimentado, personificado em Areia, que pouco interfere no material temático, apresenta serenos contrapontos nos graves à fúria do bandolim de Rafael e oferece composições focadas no uso dos espaços, da harmonia modal e em sessões de improviso no território aberto do vamp. Por tudo isso, Treze Cordas é mais do que um mero “novo disco” de artistas locais. É, isto sim, o registro contundente do não-conformismo estético de dois instrumentistas que buscam não somente expandir as fronteiras do regionalismo que os

formou, mas derrubá-las. Sublevar-se contra o traiçoeiro conforto dos estilos e a catalogação arbitrária dos rótulos comerciais para conceber uma arte inteiramente humana no âmago. Promover a sedição das cordas. Destaque para os matizes mouriscos e a minudente construção narrativa de “Armoriando Para Egildo”, faixa de abertura do disco escrita por Rafael em homenagem ao flautista Egildo Vieira, integrante do lendário Quinteto Armorial; a métrica irregular (e um tanto enigmática) de “Sem Paredes”, composição de Areia que traz seu característico esquema “tema – improviso – tema”; as reminiscências de latinidade presentes em “Sarará”, música do bandolinista que consegue a proeza de sublimar e intuir não apenas a orquestra de baile, mas todo o baile em si; o virtuosismo com propósito de “Fricote de Mulher”, composição de Rafael em parceria com Beto do Bandolim que além do humor debochado e ingênuo estabelece uma conversa silenciosa com “Desvairada”, choro-valsa de Garoto; o diálogo intenso e permanente estabelecido entre os músicos; a imaginação sem fim e o fraseado de Rafael nos solos; a capacidade de Areia em manter toda a estrutura sonora de pé e a consciência de saber exatamente onde se está na forma. Altamente recomendado. oc

Walter Areia é contrabaixista, compositor e produtor e, por mais de 13 anos, foi integrante da banda mundo livre s/a. Também lançou discos como “Areia Projeto” e “Areia e Grupo de Música Aberta”. Rafael Marques é bandolinista e compositor. Iniciou sua carreira no conjunto de choro Arabiando. O músico também é integrante do trio instrumental Saracotia.

CALADO, Carlos; Jazz à Brasileira in BERENDT, Joachim-Ernest e HUESMANN, Günther; O Livro do Jazz: De Nova Orleans ao Século XXI, SESC Edições, Editora Perspectiva, São Paulo/SP, 2014, pág. 579. 1

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