sobrevoar o abismo - notas de literatura - colunas de josé juva

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Sobrevoar o abismo – Notas de literatura *** Este arquivo reúne seis colunas sobre literatura que eu, josé juva, escrevi para o blog Outros Críticos, de Carlos Gomes, ao longo do primeiro semestre de 2012. josé juva - Mamífero, poeta, pousa-tigres. Na UFPE se formou em jornalismo e fez mestrado em teoria da literatura – com dissertação sobre o xamanismo na obra do poeta Roberto Piva. Ainda por lá, atualmente faz doutorado, com tese sobre as relações entre a poesia, o mundo natural e o sagrado. Membro-fundador do coletivo casa de marimbondo (artes visuais, literatura, música). Ainda inédito em livro, está produzindo, em parceria com a editora Livrinho de Papel Finíssimo, o primeiro livro de poemas, “vupa”. ***


Fotografia de Robert & Shana ParkeHarrison A POESIA É O VINHO DA VISÃO “Escreve com sangue e aprenderás que sangue é espírito” Friedrich Nietzsche Uma árvore cujas raízes mergulham no inferno e os galhos alcançam o céu – conectando nove mundos. Uma respiração, um contínuo movimento de sístole/diástole, as imaginações sagradas e lúdicas e as perambulações dos macacos nus. Um poema é uma criatura ancestral, selvagem, permanente gravidez fora do tempo e, simultaneamente, uma gravura inscrita na pele do cotidiano, uma planta semeada e colhida no terreno da história. No princípio era o precipício: o xamã dançava e cantava e voava e mergulhava e urrava e pintava. E as visões saltavam aos borbotões, mediadas por sua voz de pássaro e tigre. Um poema é um cavalo. O transporte para os abismos, a passagem para as montanhas cósmicas, a porta para o lado escuro do riso, a escada para o estômago do imprevisto. Um poema é tudo isto. Um poema não é nada disto. Esta não é uma coluna retilínea: não procure aqui a região cervical, a torácica, a lombar e a pélvica. Também não tente colocar cargas verticais sobre esta coluna. Talvez seja mais interessante pensar nesta coluna como uma estrutura formada pela união dos órgãos sexuais das flores das orquídeas. Você pode se afastar um pouco do computador agora. Vá até a geladeira e pegue uma garrafa de vinho, tome pelo menos uns dois ou três copos, tome um pouco de ar, tome nota. Agora entramos na parte em que eu esqueço o chá de cogumelo cozinhando no pequeno fogareiro do quintal, desço da árvore e tento um contato mais ordinário contigo: bom dia, boa tarde, boa noite! Depois de pensar e andar e pensar e andar, tudo isto ao mesmo tempo, decidi que neste primeiro texto para este espaço aqui no Outros Críticos (que irei ocupar neste primeiro semestre de 2012) abordaria tangencialmente as alimentações mútuas entre a vida e a literatura, entre a poesia e a existência. Com a tranquilidade do verbo em primeira pessoa, com o nervosismo do trânsito sanguíneo que pinta a vivência e a escrita, poderei trazer para cá alguns autores estimados, poderei delirar sobre as origens da criação poética posta em movimento pela ação xamânica, poderei recordar e poderei fingir reminiscências, poderei dizer que o rei não pode, seja lá o que for.


Outro salto, outra visão. Revejo os três livros que encontrei um dia na biblioteca da escola, durante o ensino médio, e que passaram a ser companhias, antes e depois das partidas na quadra de futebol de salão: Jeremias Sem-Chorar, de Cassiano Ricardo, Livro de Sonetos, de Vinicius de Moraes e Toda Poesia, de Ferreira Gullar. Estes livros foram cordas por onde subi árvores mágicas, gatilhos para territórios de criação e encantamento; eles marcaram para mim uma diferença fundamental no entendimento sensível sobre a relação entre o mundo e a escrita, entre as palavras e as coisas, entre os objetos e os nomes. A partir dali, eu ouvia o rio correr. E passava a modular as músicas que o vento me soprava, registrava as canções cujos ruídos eu podia ouvir escapando por meus poros. Era divertido ler a escrita erótica/afetuosa de Vinicius e imaginar suas investidas amorosas, a palavra salvando a noite de um homem contra a solidão. Com Cassiano Ricardo, o meu estranhamento e entusiasmo diante do profeta com olho de vidro, incapaz de chorar. Jeremias Sem-Chorar, de 1965, é um canto irônico e triste sobre os desvãos da cidade moderna, o automatismo crescente, o embotamento das sensibilidades, as pessoas tragadas pela velocidade da voragem paranoica. O livro-poema é um sonho profético a respeito da vida em desequilíbrio. Como um aperitivo mínimo, aponto a precisão lúcida e ácida num trecho do poema “sete razões para não chorar”, que abre o livro: “Uns mataram a sede / no suor dos outros / e eu fiquei sem água / nem sal”. Com Gullar, horas lendo e relendo o João Boa-Morte, os poemas de Dentro da Noite Veloz – e a sensação de urgência de um posicionamento de contraposição frente às agruras sociais, a poesia como fagulha para a rebeldia, via de mão-dupla entre os ideais e o comportamento, entre as utopias que nos fazem caminhar e a fome diária. O cardápio não é a refeição, o poema não é a sopa: mas aponta possibilidades de bonança. Só não fique olhando para o dedo que aponta, mesmerizado. Esta questão que envolve a ideia de uma arte engajada pode ser pensada como nos cantos de invocação dos deuses, na magia de preparação para a caça ganhando corpo no xamã. As narrativas mágicas, as atualizações dos mitos não eram um impedimento à ação. Ao contrário, constituíam fortes elementos catalisadores de energias e vontades, estimulantes para a ação coletiva e também reinvenções da jornada de volta, a partilha do alimento do corpo e da alma. Para mim, o exercício de invenção, o magma da criação poética não é um vapor estéril que se desvanece no jogo com palavras, que se fia numa clausura que procura construir uma estrutura entretida com seu umbigo. Uma loucura destas não me encanta, não canta. Antes, a poesia como cura: de si mesmo e do mundo. Antes, a poesia como um sonho profundo e a vigília com o nono olho fecundo. Antes, a poesia como uma sensibilidade paleolítica, um sabre fatiando a carne do futuro, um olho andarilho deambulando pela carcaça do contemporâneo. E um pulso ferido que sonda as coisas do outro lado, como disse Garcia Lorca. A poesia é o vinho da visão. Volto a ouvir o chiado do bule, o chá está pronto.


Fotografia disponível em bukowski.net COM A ALMA ENCHARCADA DE UÍSQUE, POEMAS E HISTÓRIAS DA VIDA SUBTERRÂNEA “abandonar tudo. conhecer praias. amores novos. poesia em cascatas floridas com aranhas azuladas nas samambaias. todo trabalhador é escravo. toda autoridade é cômica. fazer da anarquia um método & modo de visa. estradas. bocas perfumadas. cervejas tomadas nos acampamentos. Sonhar Alto.” (Roberto Piva) Estivesse vivo, Henry Charles Bukowski estaria com noventa e um anos - provavelmente bebendo bons copos de uísque com um pouco d’água, ganhando e perdendo dinheiro nas apostas das corridas de cavalo, vociferando contra os mortos-vivos que perambulam pelos supermercados, que trabalham nas agências bancárias, que vão e vêm pelas avenidas intermináveis e ensolaradas prenhes de garotos sorridentes e estúpidos e senhoras piedosas. Minha memória é uma plantação repleta de gafanhotos e eu não lembro como tomei conhecimento da obra do velho Buk. Um lampejo de lembrança indica que a obra dele veio junto com alguns companheiros de viagem, outros livros de Jack Kerouac, Allen Ginsberg, Lawrence Ferlinghetti, Henry Miller, Anaïs Nin. As primeiras leituras dos textos do velho safado (dirty old man) foram, a um só tempo, um mergulho vertiginoso no abismo de dores e misérias da condição humana, calcado no registro inventivo e ferino dos devaneios e deambulações de bêbados, prostitutas, trabalhadores braçais, etc. pelas carcaças da realidade, bem como uma corrida com sorriso largo provocado aqui e ali por diálogos deliciosamente nonsense, frases rápidas e certeiras, telegramas surreais de uma alma anárquica encharcada por um cinismo filosófico e por um ceticismo debochado – alma carregada de uma ternura atormentada, capaz de rir de si mesma e estender seu riso sobre tudo, sobre o absurdo partilhado na vida cotidiana (penso aqui numa cena do filme A guerra do fogo: quando os sujeitos estão apreensivos, com medo de um ataque rival, e também entediados, e um deles joga uma pedra na cabeça do outro, ao que todos começam a rir efusivamente, enquanto o sujeito atingido coloca a mão no ferimento, vê o sangue, e também desata numa risada fragorosa).


As leituras foram se sucedendo, um volume foi se sobrepondo ao outro, e livro após livro o encanto e o prazer desdobrado pelas costuras de histórias simultaneamente hilárias e melancólicas ia se afigurando como um pequeno diamante banhado em sangue. A escrita visceral de Bukowski construiu uma imagem corrosiva, ácida e lúcida do artista quando miserável, pleno de compaixão irreverente por toda sorte de vagabundo (e ele próprio um grande e entusiasmado vagabundo, apesar de dezenas de empregos sem sentido e passageiros, apesar do serviço nos correios por anos, um vigarista iluminado pela sabedoria não-domesticada pelo trabalho/tripalium), bebedor sob o signo da solidão num quarto escuro de uma pensão ou hotel barato, camarada obsceno/transcendental datilografando delirantemente a intimidade desconcertante dos espíritos e corpos atravessando uma estação no inferno e seguindo a jornada de trepadas e bebedeiras visionárias. E aqui é oportuno salientar certa interpretação ressentida que toma as narrativas e poemas do velho safado como mera transposição da biografia para o papel – acepção claramente apoiada na ideia subliminar de que a arte deve ser uma engenharia empenhada na construção de uma torre de marfim, um empenho contra a vida, o vivido. Certamente de caráter extremamente autobiográfico, as criações de Bukowski constituem um ensaio de aproximação de si mesmo para acercar-se do mundo e dos homens, uma elaboração criativa da vida como campo de experimentação poética, alargando as margens de manobra para uma escritura “manchada de vinho”, ultrapassando os regimes da tradição e as expectativas sociais e inventando a literatura como chave de possibilidades para o autoconhecimento e para a compreensão do outro, a literatura como um amálgama entre vida e palavra, respiração e leitura, músculos e performance poética, etc. Uma escritura poética mamífera. Os ensaios - “Essais”, tentativas, testes, etc. - de Michel de Montaigne ou alguns slogans do poeta Roberto Piva - “não acredito em poeta experimental sem vida experimental”, “escrevo com o que sobrou da orgia”, podem servir de pistas para indicar, nos textos de Charles Bukowski, o sentido da filigrana composta por uma biopoética. Ou podemos saquear um trecho ilustrativo do próprio Buk: “(...) para muitos, a poesia deveria dizer apenas coisas seguras ou mesmo nada, pois a poesia é um mundo seguro e um caminho seguro para essas pessoas. A delicadeza de sua poesia reside em falar apenas sobre aquilo que não importa. A poesia no mundo deles é como uma conta bancária. (...)”. Ou como registrou no título de dois ensaios, Bukowski escreve “em defesa de um certo tipo de poesia, um certo tipo de vida, de um certo tipo de criatura com sangue nas veias que um dia morrerá”, antes registrando “um ensaio errante sobre a poética e a vida visceral escrito ao longo de seis cervejas (grandes)”. Termino este pequeno artigo, escrito ao longo de quatro lapadas de cana, duas garrafas d’água e vinte pitangas, numa manhã de sábado, olhando para os livros de bolso do Fanfarrão do Absoluto, o velho Bukowski, que deixei em cima da mesa do computador. Tenho comigo: Cartas na Rua, Misto-Quente, Factótum, Notas de um velho safado, Ao sul de lugar nenhum, Hollywood e Pulp. Outros dois, emprestados por um amigo: Mulheres e Pedaços de um caderno manchado de vinho. Dos poucos livros de poemas de Buk em português não tenho nenhum. Torço pela empreitada de algum editor bêbado e de um tradutor chapado: publicar em português volumes da poesia completa, pelo menos uns dois calhamaços, do vidente depravado e sincero Buk. Eles podem começar colhendo palavras por aqui: http://authenticbukowski.com/manuscripts


Ilustração de Alessadro Gottardo OS ANIMAIS E OS MINÉRIOS DA MEMÓRIA “Ver uma corruíra num arbusto, chamá-la de “corruíra” e continuar caminhando é (conferindo-se auto-importância) não ter visto nada” Gary Snyder “Quando um homem não admite que é um animal, ele é menos do que um animal. Não mais, porém menos”. Michael McClure Nove animais: lobo, porco, cavalo, camaleão, cágado, pata, abutre, gerifalto, homem. Ruminando ideias para esta coluna, remoendo o tutano para trazer para cá apontamentos, notas, epifanias de um trickster, estava com vontade de relembrar Hermann Hesse e o encantamento, o arrebatamento que a leitura de suas obras me provocou, uns sete anos atrás. Sidarta, O lobo da estepe, Demian, Knulp, A arte dos ociosos, entre outros, foram leituras provocativas, instigantes. Mas o desejo esbarrou na memória e eu continuei mordendo pensamentos, rabiscando na mente possibilidades. E daí, voltamos como um oroboro para o princípio: nove animais. Tomei uma ilustração de Hesse cindido entre lobo e homem como partida, gatilho para escrever sobre nossas ambivalências a partir das voltas da mente e do corpo sobre a condição da nossa humana animalidade e nossa relação com as alteridades animais – ampliando o espectro para a presença dos animais na literatura em outras paragens. Espalhando alguns livros sobre a mesa, assim chegamos ao primeiro animal: o lobo. Caso tivesse alguma grana para editar um livreto, umas mil cópias ou mais, de algum autor incisivo e fundamental para a sondagem e compreensão da vida em suas vísceras mais vermelhas, recortaria e mandaria imprimir o tratado do lobo da estepe, trecho visionário e iluminado, para distribuição nos engarrafamentos, nas filas dos bancos, nos ônibus lotados, etc. O tratado começa com palavras diretas e certeiras, uma zarabatana ancestral, cuja seta ressoa na nuca:


“Era uma vez um certo Harry, chamado o Lobo da Estepe. Andava sobre duas pernas, usava roupas e era um homem, mas não obstante era também um lobo das estepes. Havia aprendido uma boa parte de tudo quanto as pessoas de bom entendimento podem aprender, e era bastante ponderado. O que não havia aprendido, entretanto, era o seguinte: estar contente consigo e com sua própria vida” (Tratado do lobo da estepe – O lobo da estepe, Hermann Hesse - 1927). Depois do lobo, porcos e cavalo: Napoleão, Bola-de-Neve, Sansão. Você vai (re)ler A revolução dos bichos, de George Orwell, numa vertigem desenfreada. Sátira da busca pelo poder e a burocratização da alma na revolução soviética, o livro pode ser lido como metáfora crítica para condições variáveis de temperatura e pressão. Estão ali o sujeito ensandecido pelo domínio, o indivíduo idealista, o trabalhador alheio aos dentes afiados da vida: “trabalharei mais ainda”, repete o cavalo Sansão ao longo da fábula. Além destes, está ali também o corvo Moisés, com a promessa de uma montanha de açúcar. Com sutileza e ironia, Orwell construiu uma obra deliciosamente cáustica, corrosiva e debochada. Passemos aos camaleões. Com o livro Jardim de Camaleões – a poesia neobarroca na América Latina, o poeta Claudio Daniel organizou um painel variado com algumas vozes que compõem certo modo de estar e apreender o mundo, ao invés de um movimento definido. Poetas da escritura como tatuagem, de convergências, aproximações e diferenças integram a seleção do livro. Nomes como o do uruguaio Eduardo Milán, do cubano José Kozer, do argentino Néstor Perlongher, do peruano Reynaldo Jiménez indicam faces multicoloridas e camaleônicas da poesia latino-americana. Pincemos aqui e ali alguns versos, como convites para a leitura: “e gritava sou feliz, não tenho nada / uma tanga cobre minha nudez”; “Tudo tão leve e ao mesmo tempo tão quente, tão exausto. Nos amolece com sua imensidão o céu como um casaco celeste”; “Nossa oração ao abismo é o mesmo risco do nascido”. Metamorfose: camaleão se transforma em cágado. O escritor e crítico literário Edmund Wilson, dos clássicos O castelo de Axel e Rumo à estação Finlândia, nos conta uma história de euforia e frustração em O homem que atirava nos cágados, presente no livro Memórias do condado de Hecate. Quando filhotes de patos selvagens são mortos por cágados, no lago da propriedade do senhor Asa M. Stryker, este não hesita em tomar o partido dos patos. O conto é uma fábula interessante sobre as maneiras e procedimentos dos humanos em relação aos outros seres da teia da vida. Fica patente a fragilidade, a debilidade das escolhas humanas nos seus sonhos de demiurgo. Outra vida tem uma pata junkie. Em Fup, Jim Dodge nos conta a história de uma pata obesa e incapaz de voar, que depois de ser resgatada de um ataque de um porco-do-mato (em que ela estava fucked up, daí o nome), passa a viver com Jake, um velho viciado em jogos e fabricante de uma poderosa bebida (Velho Sussurro da Morte) e Miúdo, o seu neto. Ao contrário da sorte dos cágados, a pata vive com mimos, celebrando seu apetite com panquecas, queijo, milho, cascas de cebola e tudo mais que lhe dessem. A vivência partilhada entre as três personalidades traz força e singeleza para uma breve história de teor incomum, divertida. Jim Dodge compartilha uma fábula sobre as possibilidades do respeito mútuo e as alegrias dos pequenos absurdos da vida. Tomando a cena de assalto, O Gerifalto: “O amor é nu. É forma e sobressalto. / No azul desta avenida verde-cana / entre mulher e cão, um lobo e asfalto, / um gerifalto passeia sua doidice.” O Gerifalto reúne a obra poética de Celso Luiz Paulini. Há muito lá para ser lido e relido, plenitude de quem ouviu o duende e torce e retorce as imagens do mundo interior e exterior. Paulini é um poeta elegantíssimo, de versos decisivos: “eu sei é azul / azul sereno / mas o teu / no meu brando olhar / me põe extremo”. Acompanham o Gerifalto


outros animais, outras dúvidas, outros delírios e você pode até perguntar pelo Abutre (ou consultar o Gil Scott-Heron). E o homem, bem. Segundo Paulini, o homem: Não pasta. Morde às vezes. Outras vezes, manso se declina Na gama vária de angústia e aflição. Tem no chão os pés. Na cabeça estrelas o atormentam Pois que não sabe (é mártir) Onde pousar o coração”.


Pintura de Andy Kehoe BRUCE LEE E OS LIVROS QUE NÃO LI “Quis tam avidus librorum helluo (quem é tão glutão por livros), quem consegue lê-los? Como há pouco, teremos um vasto caos e confusão de livros; somos oprimidos por eles, nossos olhos doem de tanto ler, e os dedos de folhear.” (Robert Burton) Numa batida relâmpago em minha estante de livros, recolhi treze volumes que ainda não li – por razões diversas. Que sejam eles e não outros agora sobre a mesa do computador, prestes a pontuar as idas e vindas desta coluna, é um misto de acaso e vontade. Sendo parte do acervo, todos estavam na estante e chegaram a isto depois de terem sido adquiridos por mim: seja pelo tema, ou para desdobrar o interesse produzido por uma obra anterior do mesmo autor, pelo desejo de adensar incursões apenas sugeridas noutras paragens, entre outras motivações. Ao escolher escrever sobre livros não lidos, situo-me num terreno de impressões, conduzo-me por uma região ainda imaginada e deixo escorrer por aqui alguns apontamentos produzidos de improviso e algumas visões gestadas numa memória de bastidores, de fugazes elementos de potência que possibilitaram que sejam estes livros e não outros. Pensemos nisto como um exercício de antecipação de uma chuva estranha: olhar para o céu perscrutando seus movimentos, desfiando e desafiando as estruturas e códigos celestes para uma leitura que faça coincidir o intuído e o vivido. Andemos agora sob esta chuva estranha, procurando apreender vetores de força e imaginação incrustados nestes livros não lidos, nesta literatura em suspensão. Corpo e alma – notas etnográficas de um aprendiz de boxe, de Loïc Wacquant, confiscou minhas retinas e pôs meu cérebro a remoer possibilidades de viagem numa jornada de entendimento e percepção da produção de corpo e mente de boxeadores a partir do relato de experiência (“participação observante”) na existência de um cientista social, ele próprio um dos sujeitos envolvidos nesta forja. Wacquant, para compreender a realidade social, inscreveu-se num clube de boxe de um bairro do gueto negro de Chicago. Corpo e alma ... é uma espécie de romance de formação, um registro


intelectual e afetivo dos três anos que o autor dedicou aos treinos de boxe – tendo, inclusive, disputado lutas oficiais. A arte de viver para as novas gerações, de Raoul Vaneigem, sempre perambulou pelas minhas listas de livros para serem lidos, desde que tomei ciência dele numa época de mergulho nas doutas sandices do grupo situacionista. Abro o livro fortuitamente, para recortar um trecho: “(...) a violência mudou de sentido. Não que o rebelde tenha se cansado de combater a exploração, o tédio, a pobreza e a morte: o rebelde simplesmente resolveu não combatê-los mais com as armas da exploração, do tédio, da pobreza e da morte. Já que a primeira vítima de tal luta é aquele que se compromete em desprezar sua própria vida. O comportamento suicida se inscreve na lógica de um sistema que tira seu proveito do esgotamento gradual da natureza terrestre e da natureza humana.” Menos hermético que o Guy Debord, penso. Minha imaginação desenha Vaneigem com os dentes rangendo, procurando no caos as possibilidades de um futuro mais mamífero e prenhe de alteridades. As Elegias de Duíno, do poeta tcheco Rainer Maria Rilke, estão entre as obras mais sutis, agudas, sublimes e provocadoras que já li. “Os vivos cometem o erro de distinguirem todas as coisas demasiado bem”. Sob o impacto da leitura dos poemas de Rilke, atravessei rapidamente as Cartas a um jovem poeta. E em seguida, consegui numa feira de livros usados Os Cadernos de Malte Laurids Brigge. E ainda não li este romance. Até comecei a percorrer algumas anotações do Malte, suas ruminações da existência, da morte e a ideia de que a visão não é um dom inato. Ao contrário, um exercício de invenção, buscado e cultivado ao longo de toda vivência. Mas tropecei em sei lá o quê, e deitei o livro de lado. Talvez ainda esteja procurando meus olhos para lê-lo. Foi no finado sítio rizoma.net que li a primeira vez sobre o “neomítico herói do povo” Luther Blisset – “qualquer um pode ser Luther Blisset, basta adotar o nome Luther Blisset. Seja você também Luther Blisset!”. De saída, boas gargalhadas com suas operações de cavalo de Tróia no sistema de mídias corporativas, seus esquemas debochados de fraude e criação artística, suas conspirações dadaístas no coração das cidades. A “situação aberta” do nome Luther Blisset (nome múltiplo, máscara, persona mítica, assinatura para uma multidão sem nome, etc.) empreende uma delirante ação e análise de noções tão caras ao ocidente, tais como a identidade, o valor, a verdade e a individualidade. Estou aqui com o livro da Guerrilha Psíquica em mãos, colhendo aqui e ali frases divertidas, facas críticas da sociedade de consumo e espetáculo. Apesar do sepukku (suicídio ritual japonês), Luther Blisset ainda sorri. Não demora e inicio o percurso na brenha cômica e ácida do melhor jogador de futebol de todos os tempos, Luther Blisset. À sombra da jurema encantada, de Sandro Guimarães, é o resultado das investigações que o autor desenvolveu no mestrado em antropologia na Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Instigando uma reflexão sobre o culto da jurema e o encontro deste conhecimento indígena com o universo da umbanda e do catimbó dentro da região de Alhandra, na Paraíba, Sandro aponta para os legados míticos e simbólicos inscritos nesta prática religiosa. Foi num poema do Roberto Piva que encontrei a menção ao culto e, por sorte, tempos depois este livro chegou às minhas mãos. Evoé, a beberagem sagrada da jurema, em potência, narrada nesta investigação, possa alterar as rotas de percepção embotadas pelo cotidiano da engrenagem cinza do capital. Agora a chuva estranha se transforma numa tempestade. Correndo em campo aberto, posso ver alguns títulos, nomes que pairam por alguns segundos diante de minha vista e somem, produzindo fumaça (ou talvez apenas derrube os livros da mesa, conseguindo gravar na argila da mente informações básicas). E assim, anoto na pupila: O homem que era quinta-feira, de G. K. Chesterton; Teresa Filósofa, um clássico da literatura


erótica, do século XVIII, de autoria desconhecida; O naufrágio do Titanic, de Hans Magnus Enzensberger; O homem que falava de Otávia de Cádiz, do peruano Alfredo Bryce Echenique; Mario e o mágico, de Thomas Mann; As confissões de Max Tivoli, de Andrew Sean Greer; A vida breve, do uruguaio Juan Carlos Onetti; O primeiro homem, de Albert Camus. Um décimo quarto livro, não visto na chuva, nem sobre a mesa? O Tao do Jeet Kune Do, de Bruce Lee.


Ilustração de Christian Northeast DEPOIS DE LER, DEPOIS DE VER, DEPOIS DE OUVIR “(...) eu posso abrir os olhos para a lua aproveitar o medo das nuvens mas o céu roxo é uma visão suprema minha face empalidece com o álcool eu sou uma solidão nua amarrada a um poste” (Roberto Piva) Pedro Tamen, poeta português, publicou um livro intitulado Depois de Ver, parte do título que joguei ali em cima, pra nortear esta coluna. Os poemas do livro, baseados no princípio de écfrase (grosso modo, técnica retórica de transcriação de uma representação visual para uma representação verbal), foram escritos após o contato do autor com diversas pinturas – quadros servindo como fagulhas para a criação poética. Intuitivamente, bem antes do contato com o conceito de écfrase, também incorri na prática da escrita “depois de ver”, tateando aspectos, pontilhando problemas e apontando soluções estéticas que, simultaneamente, remetessem para o trabalho visual que serviu como gatilho, bem como funcionasse autonomamente, deslindando novos sentidos. A literatura se espalhando e respirando outros ares e linguagens. O cinema, por seu turno, vez ou outra, suga algumas questões da literatura, apropriando-se de suas narrativas. Alguns debates pós-sessão indicam descontentamento de uns, deslumbre de outros, pelos modos como o diretor recriou a atmosfera das histórias literárias, às vezes verdadeiros monumentos no inconsciente coletivo. Por vezes, mais salutarmente, segue-se com a distinção entre as duas linguagens e suas maneiras distintas de apresentar e representar a natureza das coisas da vida. Com uma pequena tempestade de nomes, caminhemos por uma senda multicolorida de experiências fílmicas que partilham do princípio depois de ler – baseadas, adaptadas, livremente inspiradas na literatura. E estendendo a lógica afetiva de tal simbiose, sempre pensei nas possibilidades de um instigante contrafluxo entre a literatura e o cinema (uma literatura depois de ver). Elenco a seguir algumas possibilidades deste trânsito, numa lista mezzo improvisada, mezzo articulada racionalmente. Entram aqui filmes que bebem na fonte dos livros e logo depois, possíveis livros que beberiam o elixir de filmes. Dos filmes que me lembrei de trazer para cá, integrantes desta seara de filmes que adaptam obras literárias, os mais antigos são de 1971: Laranja Mecânica e Decameron.


Stanley Kubrick, na recriação de Laranja Mecânica, do Anthony Burgess, e Pier Paolo Pasolini, no desdobramento da vertigem ágil do Decameron, de Giovanni Boccaccio, apresentam obras densas, violentamente sedutoras, quase descoladas das experiências literárias originais – algum tempo sutil depois de ver. Outros filmes conseguem resultados de autonomia similares, mesmo em praias tão distintas quanto as da animação Fritz, the cat (tradução de Ralph Bakshi, de 1972, para o universo junkie de Robert Crumb) e a comédia pop Alta Fidelidade, dirigida por Stephen Frears em 2000, “depois de ler” o livro homônimo do Nick Hornby. Alguns resultados são tão certeiros, tão fortes, que projetamos, como numa visão de retrovisor, as imagens da película para o texto. Pensemos aqui no caso de O homem duplo (2006), segunda experiência com a técnica da rotoscopia, do diretor Richard Linklater, para a ficção científica de terror policial do Philip K. Dick. É uma experiência complicada, um exercício de vontade delicada ler o texto sem as pálpebras cobertas “rotoscopicamente” depois de ver o filme. Em muitas ocasiões, os filmes acabam servindo como motor para a redescoberta de livros, ou para a indicação de obras que pairavam no ar modorrento das pilhas de lançamentos e bobagens, ou ainda servindo para ultrapassar barreiras linguísticas, antecipando traduções de obras e agindo como uma introdução. Este elemento “pedagógico” é presente no filme End:Civ, de Franklin López. Lançado no ano passado, a produção é uma reelaboração do pensamento do ativista ambiental Derrick Jensen, principalmente do livro Endgame (ainda sem tradução portuguesa). Sem esgotar as possibilidades de discussão ao redor da ideia do percurso destrutivo do ambiente natural provocado pela civilização humana ao longo do tempo, o filme elabora um painel variado e bem fundamentado das mazelas e flagelos que a civilização tem perpetrado no coração vivo da natureza. Alguns filmes ainda estão na minha lista de espera. Este é o caso do Almoço Nu, incursão do David Cronenberg, em 1991, pelo cenário drogadito de William S. Burroughs. Outros saíram dela recentemente, caso de Mutum, de Sandra Kogut, adaptado da obra Canto Geral, de João Guimarães Rosa. Mas ainda não li este canto geral e fiquei apenas com a vastidão silenciosa que a diretora espraiou pela película, torcendo a mente para ir ao texto imaginado de Rosa. Com Sidarta (1972, direção de Conrad Rooks) a situação foi desastrosa. Hermann Hesse é um dos escritores de que mais gosto e Sidarta (1922) certamente é o livro dele que mais reli. Sempre pensei nas possibilidades de uma adaptação genial, algo que remetesse ao filme Zen, de Banmei Takahashi, por exemplo. Mas, depois de ter descoberto a existência da criação do Conrad Rooks, vasculhado na internet, baixado e visto o filme, restou uma impressão de algo diluído, uma garapa insuportável e nada salutar. Não se trata aqui de pensar fidelidade ao texto ou algo que o valha. Mas as interpretações, a fotografia, as locações, as arestas do roteiro, nada sequer próximo de um bom filme. A experiência me deixou com um pé atrás para outro achado que acreditei fecundo: O lobo da estepe, adaptação livre do diretor norte-americano Fred Haines, de 1974, para o romance homônimo do Hesse. Ainda não me joguei, não deixei a visão chegar e encontrar o lobo e o homem numa projeção de cinema. Talvez logo menos. Não tenho notícia de um contrafluxo cinema-literatura, obras literárias recriadas do coração das películas. Penso que seria um excelente exercício, inclusive para pensarmos no estatuto descentralizado que a literatura ocupa num tempo vertiginoso de imagens. Segue uma lista provocadora, de livros que eu gostaria muito de ler, escritos por sei lá quem, num jorro depois de ver. Um destes livros, talvez o mais divertido, bizarro e nonsense, seria Americanos Feios, recriação da série de desenho animado Ugly Americans (2010), de Devin Clark. Outras pérolas, talvez gestadas por um escritor romeno, seriam Gato preto, gato Branco (1998), de Emir Kusturica e Quem está cantando aí? (1980), de Slobodan Sijan. Adoraria ler as peripécias dos grupos envolvidos nos filmes, esticando suas ações, seus perfis psicológicos, desdobrando intuições, aumentando caminhos percorridos, tudo por fazer dentro do movimento de um


casamento arranjado embebido na música cigana (Gato...) e de uma viagem, verdadeira odisseia, num ônibus movido a lenha e improviso (Quem...). Aguardo com curiosidade a possibilidade de germinação destes fluxos. Um movimento de escritores depois de ver. E assim poderíamos ler as histórias: de um grupo de jovens, assaltantes bissextos de farmácias, financiando seus movimentos de vida (Drugstore Cowboy, de Gus Van Sant); de um taxista “lúcido e louco”, misantropo perambulando na noite (Taxi Driver, de Martin Scorsese); do sonhador insone, deambulando de sonho em sonho, sem vigília (Waking Life, de Richard Linklater); das fissuras e abismos entre natureza e cultura, o macaco cientista (A natureza humana, de Michel Gondry); das variações em torno de vários táxis ao redor do mundo as trocas e encontros inusitados entre motoristas e passageiros (Uma noite sobre a terra, de Jim Jarmusch); de um liquidificador filósofo, cúmplice de assassinato (Reflexões de um liquidificador, de André Klotzel) e de um inventor nos grotões do Brasil obcecado pela ideia do perpetuum móbile/movimento perpétuo (Kenoma, de Eliane Caffé). E após estas idas e vindas entre literatura e cinema, esta conversa, este exercício depois de ler e depois de ver, não custa indicar as possibilidades (já testadas em alguns caminhos) inscritas depois de ouvir. Estes são os mojobooks, livros baseados no universo de discos. Faz tempo que vi a ideia vingar por aqui, em terras brasileiras, mas não acompanhei desde então. Fiquei apenas mastigando a ideia de escrever alguma coisa depois de ouvir o Bryter Layter, disco de 1970, do Nick Drake. Algum livro chamado Aurora Amanhã, ou então Claridade na garganta do futuro. Nem sei, continuo ouvindo o disco, talvez o livro saia um dia. Enquanto isso, mandem para mim o que vocês criarem depois de ler, depois de ver, depois de ouvir.


Magic Carpet - Colagem de Beth Hoeckel Se perguntarem por mim: fui à praia parir poemas “(...) Sento sem pensamentos perto da estrada de troncos Chocando um novo mito Olhando as salamandras O último caminhão já se foi (...)” Primeiro Canto do Xamã – Gary Snyder Resolvi espalhar por aqui uma série de divagações, apontar sendas e bifurcações todo tempo; resolvi espalhar uns poemas – frutos que já trouxe pra perto e outros que ficarão mais próximos nos próximos meses. Olho para a mesa e faço um mapeamento dos nomes que deixei sobre a mesa: Gary Snyder, Michael McClure, Roberto Piva, Rodrigo Petrônio, Allen Ginsberg, Ferreira Gullar e uma coletânea de outros tantos nomes, organizada pelo Claudio Daniel e o Frederico Barbosa. Vou aqui fechar os olhos e tomar um livro aleatoriamente e anotar o que diz. E assim vem até mim (e agora até vocês) este poema do Snyder: Como a poesia chega a mim Ela vem tropegando por sobre os Seixos à noite, fica Acuada fora do Alcance da minha fogueira Vou ao seu encontro no Limite da luz Gary Snyder será um dos autores cuja obra eu pesquisarei para interpretar a irrupção das imagens da natureza e do sagrado na poesia – junto com trabalhos de Dora Ferreira da Silva e Leonardo Fróes. Conheci a obra dele ao me debruçar sobre a poesia do Roberto Piva e sua torrente de literatura embebida em literatura e vida. Grande divulgador do


zen-budismo na América do norte, Snyder foi um dos mais importantes poetas da geração beat. Mergulhemos noutro poema. Agora o autor escreve Quanto aos poetas: (...) O primeiro Poeta da Água Ficou no fundo por seis anos. Recoberto de algas. A vida em seu poema Deixou milhões de minúsculos Rastros diferentes Se entrecruzando pela lama. (...) Michael McClure, outro nome da beat, poeta de olhar atento para a poesia como respiração e atenção à galeria de mamíferos, sujeito da leitura de poemas para leões e dos poemas tântricos fantasmas, escreveu: Point Lobos: Animismo É possível meu amigo Que se eu tivesse uma grande barriga O lobo sobrevivesse da gordura Mascando vagarosamente (...) Deixando os beats de lado por hora, pois ainda volto com algo do Ginsberg, tomo o Toda Poesia, do Gullar, nas mãos, para deixar os olhos correrem soltos para pescar algum poema para cá. Gullar foi um dos primeiros poetas de quem tive notícia, ainda perambulando pela biblioteca da escola. E surge o poema Internação, uma das coisas mais delicadas e doidas e vivas que já li: Ele entrara em surto E o pai o levava de Carro para A clínica Ali no Humaitá numa


Tarde atravessada De brisas E falou (depois de meses Trancado no Fundo escuro de Sua alma) Pai, O vento no rosto É sonho, sabia? Desde que li que “o vento no rosto é sonho”, reiteradas vezes o verso ficou girando na cabeça, como uma memória da pele, nos instantes em que o vento passava por mim. Algo semelhante ao que aconteceu/acontece com o poema/mantra/música do Walter Franco: “tudo é uma questão de manter: a mente quieta, a espinha ereta e o coração tranquilo.”. Outra boa surpresa veio na caudalosa e visionária poesia de Rodrigo Petrônio, que já nem lembro como fui dar conta da existência. Em seu Pedra de luz, podemos ler a gestação mítica, a fricção entre o poeta e o mundo: No sentido da terra I Se eu abro meu pulso para uma estrela e a chuva em coro vem Arar meu dorso. Se procedo liquido da boca da madeira e Poe ela canto o canto Circular de um morto. (...) Não sou o guardião dessa terra anônima. Apenas nomeio o que a mão não toca. Encarno o que a lava não sonha. E cumpro as estações que nosso Olhar nos veda. E para trazer para perto o Leminski, ainda que indiretamente, vejamos agora Leminskiana, do poeta e antropólogo baiano Antônio Risério (autor de livros instigantes como Textos e Tribos e Oriki Orixá):


Querido enigma: Estou bêbado. Vou, como se diz, Pisando nas asas. Paro numa estrela E sorteio o mar. Mas estranho - e muito – O meu e o teu Linjaguar. Este poema está na antologia Na virada do século – poesia de invenção no Brasil, organizado pelo Claudio Daniel e pelo Frederico Barbosa. Outros bons nomes aparecem por lá (Arnaldo Antunes, Carlito Azevedo, Glauco Mattoso, entre outros.). E Roberto Piva, um dos poetas inventores, um dos experimentais (com vida experimental) indispensáveis para visões mais libertárias e mágicas sobre a literatura brasileira, comparece nesta breve coluna com um trecho do poema Meteoro: (...) Eu apertava uma árvore contra meu peito Como se fosse um anjo Meus amores começam crescer Passam cadillacs sem sangue os helicópteros Mugem Minha alma minha canção bolsos abertos Da minha mente Eu sou uma alucinação na ponta de teus olhos. O crítico Alcir Pécora, organizador das obras reunidas de Roberto Piva indica a proximidade, o fluxo, um viés mais beat na poesia de Piva neste período, neste primeiro surto de publicação do poeta – com Paranoia, donde extrai o poema Meteoro e Piazzas. Além do diálogo com os norte-americanos vagabundos iluminados da beat, podemos encontrar conversas de Piva com Walt Whitman e Fernando Pessoa, bem como com Blake, Rimbaud, Hart Crane, Mário de Andrade, Murilo Mendes, Jorge de Lima. E no que tem de verso longo, enumeração caótica, discurso não-linear carregado de imagens de estranhamento, Piva é um criador também leitor, também interlocutor de Allen Ginsberg. Leiamos o Salmo Mágico, do autor do Uivo:


Porque o mundo está à beira do abismo e ninguém sabe o Que virá depois Ó fantasma que minha mente persegue de ano para ano Desce do céu para esta carne trêmula Colhe meu olho fugitivo no vasto Raio que não conhece Limites – Inseparável – Mestre Gigante fora do tempo com todas as suas folhas caindo – Gênio do Universo – Mágico do Nada onde nuvens Vermelhas aparecem (...) Com estes poemas espalhados por aqui, posso ir até à praia. Deixar a visão chegar, com a espinha ereta, o coração tranquilo, com o vento no rosto e a mente quieta, observando os meteoros, as pedras de luz que desvelam os enigmas do sentido da terra, inventando a fogueira e a lama, antecipando os mergulhos na água. Fui à praia, mas antes escrevi este bilhete que deixei pendurado no olho esquerdo do furacão da alma mordida por vespa: há um imenso trabalho para a boca vegetal da loucura: comboio de corças incendiadas deusas cuspindo gafanhotos sobre os dorsos dos tigres imigrante chinês traduzindo poemas anarquistas italianos bolas de gude feitas de pequenos sóis palhaço ancestral revirando as cinzas da fogueira de ossos gnu guardando gravetos na gaveta do inverno.


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