A prática da contradição no mutirão autogerido

Page 1

A PRÁTICA DA CONTRADIÇÃO NO MUTIRÃO AUTOGERIDO TRABALHO FINAL DE GRADUAÇÃO THAIS MARTINS OYOLA


A PRÁTICA DA CONTRADIÇÃO NO MUTIRÃO AUTOGERIDO Trabalho Final de Graduação Thais Martins Oyola Orientadora: Vera Pallamin

Faculdade de Arquitetura e Urbanismo Universidade de São Paulo Março . 2012


Vera Pallamin, Ermínia Maricato e Ana Barone, pelo percurso necessário na FAU João Marcos Lopes e Cibele Rizek, pela disponibilidade e pelas conversas esclarecedoras em São Carlos

Agradecimentos

Equipe da Usina-CTAH, especialmente à Beatriz Tone, Isadora Guerreiro, Wagner Germano e; aos moradores do COPROMO, especialmente ao Wilton e Honorinda, por compartilharem seus trabalhos e experiências de luta Eduardo Borges, pela companhia e a persistência nos debates Aos meus pais, Dolores Martins e Dangner Ortiz minha irmã, Thauani Oyola e família Moraes Borges Carol Ohashi e Carol Laiate, pelas inquietações compartilhadas Marina Rago, Denise Yui, Bia Falleiros, Marcela Sayeg, pelo semestre de 2010 fundamental a este trabalho Gustavo Motta, Thiago Carmuega, Isis de Vitta, Bruno Braga, Aline Sodré, Juliana Bittencourt, Larissa Guelman, Renata Tsuchiya, Verônica Dantas, Cristiane Higa, Huana Carvalho, Luciana Romão, Higor Carvalho; amigos que, de alguma forma, são parte deste processo Companheiros do Piquete da 7 de abril, especialmente à Carol Carrion, e Wagner Oliveira, pelas experiências de greve dos trabalhadores dos Correios e dos bancários Movimento de Ocupantes e Inquilinos da Argentina - MOI Centro de Estudos dos Direitos da Cidadania - CENEDIC


Os tfg’s do segundo semestre de 2011 tiveram seus términos interrompidos pela invasão da polícia militar na USP com 400 homens. Tal fato culminou, entre outros abusos, na prisão de 73 estudantes em novembro. No final de dezembro, 6 estudantes foram expulsos por terem se manifestado politicamente em anos anteriores. Em defesa da universidade da livre produção de conhecimento, espaço de livre pensamento e crítica, os estudantes da USP estão em greve até 2012. Nesse contexto, não apresentamos nossos tfg’s em período de normalidade. Como estudantes lutamos contra o cerceamento das liberdades no campus, para como futuros arquitetos lutarmos contra a fragmentação, loteamentos, proibições de uso e repressão. Que cidade construiremos se permitirmos que a repressão política domine essa universidade? Por isso, declaramos que estamos em greve. Apresentamos nossos tfg’s na calourada de 2012 com a mensagem: calouros, entrem na luta! Fora PM da USP! Pelas liberdades democráticas! Abaixo o reitor João Grandino Rodas!


Sumário 11 Introdução 17

Panorama e perspectiva histórica do debate: substrato da análise

79

COPROMO: a organização a partir do projeto

123

A prática da contradição no COPROMO: exercício de análise

149 Posfácio 155 Bibliografia 159

Fontes das Imagens


Introdução Quando se trata dos mutirões autogeridos, observa-se uma tendência na superfície do debate – que frequentemente faz as vezes de protagonista – marcada por uma espécie de polarização dos argumentos. Numa primeira aproximação, as abordagens sobre as práticas de construção por mutirão autogerido parecem se dividir principalmente entre as que confluem para sua condenação primária de um lado e, de outro, aquelas que a defendem como solução possível para o problema habitacional brasileiro. No entanto, enveredando pelas questões levantadas por ambos os “pólos” percebeu-se que um enfrentamento efetivo da problemática dos mutirões autogeridos passa por esforços de compreensão tanto dos termos desta contraposição como, fundamentalmente, da perspectiva da tensão e da relação dialética entre eles. A proposta deste trabalho não é, ao final dele, estabelecer uma posição contra ou a favor, mas a de um exercício de compreensão da crítica como um campo da práxis, procurando entender a relação entre as potencialidades e limitações que este tema engendra. Assim, pretendemos reunir, sobretudo, condições para reorganizar e renovar a capacidade de articular as perguntas. Partindo dessas prerrogativas, em busca de uma “dimensão ‘totalizadora’ da análise que, por sua vez, impele ao fato, retorno


13

12

exigido pela dialética entre fenômeno e conceito”1, estabelecemos como estudo de caso a atuação da assessoria técnica USINACTAH junto à Associação por Moradia de Osasco - COPROMO (período de construção: 1992-1998), no bairro Jardim Piratininga, em Osasco. A opção por esta assessoria se fez tanto por questões práticas, referentes às possibilidades de acesso às informações, mas principalmente, por sua proposição que “busca integrar e engendrar processos que possivelmente subvertam a lógica do capital através da experiência espacial, social, técnica e estética contra-hegemônicas”2. A definição deste objeto de estudo, permitirá, dentro da escala do trabalho, uma aproximação do contexto de construção da prática dos mutirões autogeridos enquanto programas públicos de produção de moradia3. Além desse, outro critério de delimitação deste estudo foi a possibilidade de uma perspectiva histórica mais amplas dos processos, marcada, em termos gerais, pelo momento da construção e depois, pelo momento de apropriação 1

RECAMAN, Luiz. “Nem arquitetura nem cidades”. In: ARANTES, Otília. Urbanismo em fim de linha. São Paulo: Edusp, 2001.

2

“Apresentação”. in: sítio da USINA-CTAH, Centro de Trabalhos para o Ambiente Habitado (online, acesso 20.08.2011: http://www.usinactah.org.br/index.php?/apresentacao/ ).

3

Nesse sentido “... a confusão entre plano e programa muitas vezes permite fragmentar e subverter o significado de política pública. Assim, muitas vezes o mutirão – e até mesmo a autogestão – é elevado à condição de política habitacional. ...o caráter político do planejamento da ação estatal é inalienável e na medida em que um programa se estrutura como plano de provisão descolado de uma política que realmente estruture o planejamento da produção habitacional do Brasil, segue que, ao se instalar o mutirão autogerido como sinônimo de política habitacional, desfaz-se a própria possibilidade de existência de uma política pública nesta área”. LOPES, João Marcos de A.; RIZEK, Cibele S. “O mutirão autogerido como procedimento inovador na produção da moradia para os pobres: uma abordagem crítica”. In: ADAUTO, Lucio C.; ALEX, Kenia A. (org.). Procedimentos de gestão habitacional para a população de baixa renda (Coletânea Habitare: v.5). 1 ed. Porto Alegre: ANTAC, 2006, v.1.

dos espaços construídos. A partir dessas condições de reflexão crítica sobre a prática, optou-se por organizar o conteúdo do trabalho a partir de um corte de análise da situação atual do conjunto. Pretende-se, ao longo do desenvolvimento do trabalho, enfrentar este corte do presente enquanto matriz de referência para a articulação com as questões levantadas no debate que se constituiu historicamente, ao mesmo tempo em que este próprio corte será objeto de análise à luz dessas mesmas questões. Para isso, estabelecemos como orientação as reflexões de Roberto Schwarz sobre Francisco de Oliveira: “O atualismo reflete uma exigência teórica, bem como a aspiração à efetividade do pensamento, como parte de sua dignidade moderna. À sua luz, desconhecer a tendência nova ou a data vencida de convicções que estão na praça seria uma ignorância. Nem por isso o presente e o futuro são palatáveis, ou melhores que as formas ou aspirações que perderam o fundamento. As denúncias que as posições lançam umas contra as outras devem ser acompanhadas sem preconceito, como elementos do saber. Esse atualismo sem otimismo ou ilusões é uma posição complexa, profundamente real, base de uma consciência que não se mutila, ao mesmo tempo que é rigorosa.” 4

O corte, portanto, está no momento de apropriação do que foi construído, por aqueles que construíram, e permitirá resgatar se e de que forma permaneceram as questões suscitadas no momento da produção e na organização do trabalho empreendido naqueles 4

SCHWARZ, Roberto. “Prefácio com perguntas”. In: OLIVEIRA, Francisco. Crítica da Razão Dualista / O Ornitorrinco. São Paulo: Ed. Boitempo, 2003. Grifos do original.


14

espaços, isto é, como “a obra realizada de arquitetura esconde e revela o projeto”5. E, no desdobramento desse eixo de pesquisa, estão presentes também as questões que tratam da relação com a cidade, como é enfrentada no projeto e depois, nas formas de apropriação dos conjuntos pelos mutirantes; e da relação entre os mutirantes em si, sobre como e se permanece a organização do momento da construção. Retomando o ensaio de uma dimensão “totalizadora” de análise, entende-se a construção e a apropriação como momentos do mesmo processo que, por sua vez, se constrói para além de si mesmo, quando condiciona e é condicionado pelas dinâmicas da reestruturação produtiva do capitalismo e suas formas de expansão nos espaços periféricos. Definido, portanto, o partido do trabalho, pretendemos estruturar seu desenvolvimento e o produto deste processo em três partes principais, a saber: No primeiro capítulo, procuraremos apresentar questões do debate historicamente constituído a respeito dos mutirões autogeridos, está inserido na problemática da autoconstrução nos espaços urbanos periféricos que, por sua vez, está no cerne do processo de urbanização sob a lógica da expansão capitalista no Brasil. No sentido de evidenciar as principais questões e a forma como retornavam ao debate em diferentes tempos, é necessário salientar que optou-se por uma abordagem que priorizasse a forma como fatos e experiências repercutiram na crítica, mais do que uma reconstituição deles em si. Para isso, buscou-se

5

FERRO, Sérgio. “Arquitetura Nova”. In: idem. Arquitetura e trabalho livre. São Paulo: Cosac Naify, 2006. (Publicado originalmente na revista Teoria e Prática, 1967, n. 1, pp. 3-15. Foi reeditado posteriormente em Arte em Revista, n. 4, 1980 e, Espaço e Debate, n. 40, 1997.

15

estabelecer uma sistematização deste pensamento, na forma do debate político entre autores que apresentam historicamente uma produção relevante e inter-relacionada a respeito do tema. A intenção é ecoar esta dinâmica para a própria estrutura do trabalho, entendendo esta primeira parte como o substrato da abordagem crítica do momento da apropriação dos espaços construídos por meio do mutirão autogerido e as articulações com seu próprio processo de produção. No segundo, pretendemos apresentar uma aproximação do objeto de análise: as condições de surgimento e organização da associação daqueles que seriam os futuros moradores; seus processos de luta; a organização do trabalho no canteiro; como e se a organização inicial se mantém; como os espaços construídos foram apropriados, entre outras questões. E, para esta caracterização, partimos de levantamentos e análises de registros textuais e fotográficos do momento da construção do conjunto; de entrevistas com alguns dos participantes do processo: profissionais da Usina, moradores do conjunto que participaram desde o começo dos processos de discussão e construção do projeto; e da descrição e questionamentos decorrentes da análise dos espaços tal como se encontram hoje. Por fim, no terceiro capítulo, pretendemos retomar as questões levantadas no primeiro capítulo como orientação e em articulação às questões suscitadas no processo de aproximação do objeto. Pretende-se, nesta parte do trabalho, uma operação de confrontação, e articulação entre a experiência concreta e o conceito, buscando uma condição dinâmica da crítica.


Panorama e perspectiva histórica do debate No decorrer das décadas de 1960 e 1970 observou-se, no Brasil, a intensificação sem precedentes do crescimento e reprodução das periferias urbanas, assim como a constituição deste processo enquanto questão fundamental ao estudo do processo de modernização e urbanização em curso, onde os esforços de interpretação desses processos se deram a partir de diversas perspectivas. No entanto, para este estudo, priorizaremos aqueles esforços que se contrapõem a uma visão “etapista” do desenvolvimento, também ao dualismo cepalino6 e, principalmente, ao conceito de “marginalidade”. Entretanto, devido à situação urbana do objeto de referência à abordagem e, reconhecendo a complexidade e a inviabilidade de abarcar o universo do debate, optou-se por delimitá-lo aos seus desdobramentos paulistas. No caso da região metropolitana de São Paulo, partimos dos esforços que se constituíram e se organizaram principalmente em torno do CEBRAP (Centro

6

Comissão Econômica para a América Latina e Caribe (CEPAL), criada pela ONU, em 1948. Para uma análise crítica do dualismo cepalino, ver OLIVEIRA, Francisco. A Navegação Venturosa – ensaios sobre Celso Furtado. São Paulo: Ed. Boitempo, 2003, p.11-15.


19

18

Brasileiro de Análise e Planejamento) e da Universidade de São Paulo7, com maior atenção às reflexões que buscaram a compreensão da metrópole como parte e forma da produção e reprodução do capital, e não como mero suporte dos processos sociais e econômicos8. Além disso, consideramos tratar-se de uma produção relativamente coesa, na medida em que a interrelação e o diálogo entre os autores gera um contexto onde trabalhos e pesquisas frequentemente comentam e respondem umas às outras, diretamente em alguns casos. Assim, para resgatarmos o contexto de formação do debate, estabelecemos como orientação a produção crítica de Sérgio Ferro9, de Francisco de Oliveira e dos autores reunidos no livro A produção da casa e da cidade no Brasil industrial 10. Desta forma, através do resgate desta produção - que também considera o contexto das políticas de habitação então vigentes – buscaremos os fatores que condicionaram a expansão da fronteira urbana por meio dos processos de autoconstrução. 7

Para um balanço do pensamento crítico sobre a urbanização brasileira, nos anos 1970, ver ARANTES, Pedro. “Em busca do urbano”. In: Novos Estudos CEBRAP, n. 83, março de 2009.

8

Ver ARANTES, Pedro. “Em busca do urbano”. Op.cit.

9

Ferro, ao colaborar para a abertura de um campo de pesquisa que traz para o centro do debate a dimensão produtiva da cidade, indicou também os sentidos de uma relação direta entre a autoconstrução nas periferias e o padrão de industrialização do país. Mais precisamente, foram suas anotações, reorganizadas posteriormente nos textos A produção da casa no Brasil (1969) e O canteiro e o desenho (1976) que orientaram uma geração de críticos da autoconstrução nos anos 1970. FERRO, Sérgio. “A produção da casa no Brasil” (1969) e “O canteiro e o desenho”. In: idem. Arquitetura e Trabalho Livre. Op. cit. Para um resumo crítico, ver o prefácio de Pedro Arantes para a coletânea dos textos de Ferro publicada em 2006.

10

MARICATO, Ermínia (org.). A produção capitalista da casa e da cidade do Brasil Industrial. São Paulo: Alfa-Ômega, 1979. Estão presentes nesta publicação os trabalhos dos seguintes autores: BOLAFFI, Gabriel. “Habitação e Urbanismo: o pro-

Breve interstício: o BNH na reafirmação do padrão de autoconstrução

Antes de passar efetivamente à realidade da autoconstrução e ao debate constituído a este respeito, consideramos necessário entender o impacto de algumas políticas habitacionais da época. Representadas principalmente pela criação do Banco Nacional de Habitação (BNH), essas políticas não eram apenas realizadas simultaneamente como também contribuíam fortemente para a intensificação dos processos de autoconstrução na expansão da fronteira urbana. Trata-se de um deslocamento temporário da perspectiva central de análise que, no entanto, subsidiará uma compreensão mais ampla da questão da autoconstrução. Ao longo das décadas de 1960 e 1970 os gastos públicos – decorrentes de algumas medidas anteriores de relativa regulamentação da relação capital e trabalho – teriam sofrido forte retração quando passaram a colidir diretamente com os interesses do capital na disputa do excedente público. Evidenciando, neste contexto, o aparente paradoxo da criação do BNH como instrumento de uma política estatal de habitação. Apenas aparente pois, no decorrer desta breve abordagem, perceberemos como o revestimento ideológico da proposta se articula com as suas reais funções na economia política. O déficit habitacional, da forma como se tornou pressuposto comum a diversas políticas, foi questionado por Gabriel Bolaffi enquanto falso problema ao conformar a ideia de que o acesso à moradia seria essencialmente um problema de insuficiência de estoque. Considerando esta perspectiva da economia política blema e o falso problema”, MARICATO, Ermínia. “Autoconstrução, a arquitetura possível”, BONDUKI, Nabil; ROLNIK, Raquel. “Periferia da Grande São Paulo: reprodução do espaço como expediente de reprodução da força de trabalho”, entre outros.


21

20

então vigente, o autor argumenta que, neste sentido, o Brasil não apresentaria déficit pois produziria quantidade suficiente de moradias para atender a demanda monetária existente. Portanto, no âmbito das políticas públicas, de habitação principalmente, parecia e ainda parece ser praticamente inexistente uma compreensão mais ampla do problema habitacional e que não fosse predominantemente mediada pela lógica de mercado11. Orientado também por essa percepção, Ferro já relacionava e atribuía a criação do BNH à iminência de uma crise de saturação do mercado imobiliário, até então restrito às classes mais altas. Nesse contexto, o autor chamou atenção para o que considerou uma irracionalidade: a manutenção da elevada capacidade ociosa da indústria de materiais de construção, também restrita até então à demanda de construção de habitação para as classes mais abastadas12. No entanto, para Oliveira, esta mesma irracionalidade seria a expressão da própria lógica da expansão do capitalismo em sua periferia, assentada no reforço à acumulação representado por uma distribuição de renda extremamente desigual13. Bolaffi, por sua vez, indicou outra chave de contradição no contexto da criação do BNH. Enquanto reconhecimento público e oficial das prioridades de habitação popular associado a planos físico-econômicos locais e regionais, o BNH fez parte de um conjunto de políticas que, de certa forma, teria minado e substituído a continuidade do debate sobre as reformas de base que,

11

12 13

poucos anos antes, eram compreendidas como medidas cruciais à própria sobrevivência do país enquanto unidade nacional, livre e independente14. A solução ideológica da aquisição da casa própria, na conjuntura do golpe militar de 1964, representou a possibilidade de retomar e conservar a vertente de apoio das massas trabalhadoras, compensando-as psicologicamente pelas fortes pressões das políticas de contenção salarial15. Para Ferro, por trás do revestimento ideológico, a política do BNH já demonstrava seu empenho em “afastar, não apagar” as manchas de denúncia das favelas. E, retomando Engels, o autor argumenta que, ainda que se tratasse de uma preocupação real com as condições de habitação da classe trabalhadora, seria um equívoco considerar este “como se fosse mal isolado de todos os outros da condição proletária”16. A mesma preocupação, segundo Bolaffi, não tardou em revelar suas reais motivações, se dissipando tão logo a conjuntura econômica começava a apresentar sinais de reaquecimento, já por volta de 196717. Nesse sentido, Ferro já indicava a quase inexistência de sindicatos que conseguissem reunir condições para constituir cooperativas habitacionais, visto que os trabalhadores dificilmente suportariam as condições de financiamento pelo BNH. Segundo Ferro, o enorme montante disponível ao BNH – que seria suficiente para promover um processo de industrialização da construção e superar o déficit habitacional em poucos anos 14

Ver BOLAFFI, Gabriel. “Habitação e Urbanismo: o problema e o falso problema”. Op. cit.

15

Idem.

Ver FERRO, Sérgio. A produção da casa no Brasil. Op. cit., p. 78.

16

FERRO, Sérgio. “A produção da casa no Brasil”. Op. cit., p. 87.

Ver OLIVEIRA, Francisco de. Crítica à Razão Dualista / O ornitorrinco. Op. cit., p. 96.

17

Ver BOLAFFI, Gabriel. Habitação e Urbanismo: o problema e o falso problema. Op. cit.

Ver BOLAFFI, Gabriel. “Habitação e Urbanismo: o problema e o falso problema”. In: MARICATO, Ermínia (org.). A produção capitalista da casa e da cidade do Brasil Industrial. Op. cit.


23

22

– já tinha destino certo para ser repartido entre os grandes empreendedores e construtores. Bolaffi também levantou questões nesse sentido, quando criticou a inexistência de qualquer medida no sentido de organizar e, com isso, aumentar consistentemente a produtividade da indústria da construção civil, indicando que a realidade do BNH teria se consolidado a partir de funções alheias aos objetivos manifestos18. Assim, o BNH se realizava prioritariamente como importante agente dinamizador da economia, estimulando a produção da construção civil e, com ela, a indústria de materiais de construção. Este processo se estruturava a partir da captação compulsória de recursos, principalmente do FGTS (Fundo de Garantia por Tempo de Serviço) que eram repassados à iniciativa privada19, onde terminavam por somar-se ao capital em geral que, articulado pelo Estado, era a forma mais abstrata de capital20. Logo, tratava-se de um processo de dinamização e acumulação baseado na tributação do Estado sobre as classes trabalhadoras. onde os recursos dos próprios trabalhadores – acumulados em troca de sua própria estabilidade no emprego – eram empregados na manutenção ou aprofundamento da exploração de sua própria força de trabalho, impulsionando “com novo vigor o absurdo e desumano processo tradicional da construção civil”21. O que se operou, portanto, foi a transformação do BNH

18

BOLAFFI, G. Habitação e Urbanismo: o problema e o falso problema. In: MARICATO, Ermínia (org.). A produção capitalista da casa e da cidade do Brasil Industrial. São Paulo: Alfa-Ômega, 1979.

19

Idem.

em poderoso mecanismo de acumulação, onde as mercadorias produzidas só poderiam ser realizadas encontrando nas classes de renda mais alta o seu mercado22. Nesse sentido, é possível indicar que a provisão habitacional para as classes populares teria se justificado apenas enquanto questão ideologica e, segundo Oliveira, como importante mecanismo de acumulação que se realizou mais como estratégia de emprego do que de habitação23. Reforçando o papel do BNH como dinamizador do processo de acumulação de capital, concentrando e elitizando o destino dos seus financiamentos24. A realidade do BNH no processo de expansão da fronteira urbana, “ao transferir para a iniciativa privada todas as decisões sobre a localização e construção das habitações que financia, […] tem gerado uma cadeia de negociatas inescrupulosas”25. Fatores como: inadequação e péssima localização dos terrenos, 22

Ver OLIVEIRA, Francisco. “Prefácio”. In: MARICATO, Ermínia (org.). A produção capitalista da casa e da cidade do Brasil Industrial. Op. cit.

23

Ver OLIVEIRA, Francisco de. “O vício da virtude: autoconstrução e acumulação capitalista no Brasil”. In: Novos estudos CEBRAP, n. 74, p. 67-85, março, 2006. O professor Paulo Arantes, no ciclo de palestras sobre o período da ditadura militar, promovidas pelo grupo de teatro Arlequins (http://www.youtube.com/watch?v=z-hIYaaMLrg), lança a hipótese de que aspectos relevantes do projeto político da ditadura teriam permanecido mesmo após a abertura política. (Ver também ARANTES, Paulo. “1964: o ano que não terminou”. In: TELES, Edson. O que resta da ditadura – a exceção brasileira. São Paulo: Ed. Boitempo, 2010). Guardadas as devidas diferenças históricas, poderíamos apontar semelhanças entre o BNH e o Programa Minha Casa, Minha Vida (2009), que surgiu com a forte justificativa ideológica de combater o déficit habitacional que, no entanto, se consolidou mais como uma política de reaquecimento da economia, com a estratégia declarada de criação de empregos, após a crise de 2008.

24

Ver MARICATO, Ermínia. “Autoconstrução, a arquitetura possível”. In: idem. A produção capitalista da casa e da cidade do Brasil Industrial. Op. cit.

25

BOLAFFI, Gabriel. “Habitação e Urbanismo: o problema e o falso problema”. Op. cit.

20

Ver OLIVEIRA, Francisco. “Prefácio”. In: MARICATO, Ermínia (org.). A produção capitalista da casa e da cidade do Brasil Industrial. Op. cit.

21

FERRO, Sérgio. “A produção da casa no Brasil” (1969). Op. cit., p. 88.


25

24

associados à utilização de materiais de baixíssima qualidade na construção; e, na conclusão das obras, a venda por preços frequentemente superiores aos de mercado, demonstram apenas alguns dos expedientes utilizados na radical potencialização dos lucros obtidos nas operações financiadas pelo BNH, cujas consequências se refletiam no agravamento dos problemas urbanos. Nessas condições, a iniciativa privada não somente consegue enorme autonomia na aplicação de recursos públicos, visando extrair a máxima taxa de lucro como também, em “contrapartida”, após a conclusão e comercialização das unidades, transfere praticamente todo o risco de realização do negócio aos fundos públicos. O quadro apresentado indica que, pelo menos a partir das décadas de 1960 e 1970, a questão da habitação era tratada predominantemente a partir do mercado. O Estado, ao aplicar seus recursos, buscando garantir retorno e excedente, funcionava como instrumento do capital privado, reforçando a lógica da acumulação. O que exclui, portanto, a maior parte da população da abrangência dos recursos investidos em meio urbano, pelo fato de não constituírem demanda econômica para pagar por esses serviços26. Nesse sentido, a intensificação do processo de reprodução das periferias por meio da autoconstrução demonstraria o impacto pouco relevante dos programas e políticas oficiais na produção de habitação destinada à classe trabalhadora. A questão que levantamos no subtítulo retorna, então, com mais termos. A ineficiência, e mesmo ausência, de um projeto político que abarcasse efetivamente a condução das necessidades

de reprodução da força de trabalho revelam a afirmação do projeto político de expansão e acumulação capitalista no Brasil. O que parecia alheio aos objetivos manifestos do BNH se revela, então, como seu próprio fundamento. E, o estudo da autoconstrução, “por meio de seu papel na reprodução da força de trabalho e na forma que assume o crescimento das áreas metropolitanas”27, nos aproxima da forma “como o espaço socialmente produzido se põe a serviço da acumulação de capital e, em especial, como esse espaço […] sustenta uma atividade produtiva tecnicamente atrasada”28. Constituição da autoconstrução como questão

Para retomarmos a constituição do fenômeno da autoconstrução enquanto problemática, é necessário, mais uma vez, reforçar que partimos da produção crítica que se contrapõe à compreensão do processo de periferização segundo os conceitos de marginalidade e descontrole. Pelo contrário, trata-se de uma abordagem referenciada no autoconstrução em sua perfeita integração à economia urbano-industrial capitalista29. Para aprofundar esse sentido da autoconstrução, citamos Oliveira: “A expansão do capitalismo se dá introduzindo relações novas no arcaico e relações arcaicas no novo, um modo de compatibilizar a acumulação global, em que a introdução de relações novas no arcaico libera força de trabalho que suporta a acumulação industrial urbana e em que a reprodução de relações arcaicas no

27 25

BOLAFFI, Gabriel. “Habitação e Urbanismo: o problema e o falso problema”. Op. cit.

28

26

Ver MARICATO, Ermínia. “Autoconstrução, a arquitetura possível”. Op. cit.

29

MARICATO, Ermínia. “Autoconstrução, a arquitetura possível”. Op. cit. OLIVEIRA, Francisco. “Prefácio”. In: MARICATO, Ermínia (org.). A produção capitalista da casa e da cidade do Brasil Industrial. Op. cit. Ver MARICATO, Ermínia. “Autoconstrução, a arquitetura possível”. Op. cit.


27

26

novo preserva o potencial de acumulação liberado exclusivamente para os fins de expansão do próprio novo”30.

São diversas as dimensões e perspectivas do tema da autoconstrução que podem evidenciar os mecanismos de articulação entre o arcaico e o moderno. Diante da constatação da complexidade e mesmo a indissociabilidade da questão, consideramos necessário, entretanto, partir de um certo grau de categorização das diferentes dimensões a fim de sistematizar o resgate da produção crítica que se constituiu historicamente a respeito do tema. A questão agrária nas primeiras delimitações

Dentre os primeiros esforços de problematização da autoconstrução observamos, ainda em finais da década de 1960 e início de 1970, um vínculo muito presente ainda com a conjuntura de transição econômica da base agrária para a de base urbanoindustrial. Não por acaso, os componentes desta transição já estavam presentes e estruturaram, em parte, os primeiros esforços de interpretação de Ferro e Oliveira, principalmente. Era - e de certa forma ainda é – recorrente o argumento de que a manutenção da estrutura arcaica no setor da construção civil seria fundamental enquanto mecanismos de absorção de mão-de-obra oriunda do campo. Para Ferro, este argumento consistiria um desvio do problema, da principal causa real do êxodo rural, a estrutura retrógrada do campo, e questiona a aparente irracionalidade em apenas remediar, nas cidades, o problema31. No entanto, o autor já reconhecia que a concentração de terras e estrutura de poder no campo encontrava-se intocável 30

OLIVEIRA, Francisco de. Crítica à Razão Dualista / O ornitorrinco. Op. cit.

naquele sistema32. Isso porque a intensa migração campo-cidade reabastecia constantemente os exércitos de reserva, compondo com a lógica de manter baixa a composição orgânica do capital, onde o setor da construção civil figurava como generosa e estratégica fonte de mais-valor. Reforçando a mesma lógica, a economia e esforço dos próprios trabalhadores em autoconstruir sua moradia – uma provisão individualizada, porém, em larga escala – se apresentaria como expediente de rebaixamento do custo de reprodução da força de trabalho e, portanto, do salário. Quer dizer, o trabalhador, por uma necessidade urgente, arranca de suas já restritas possibilidades os meios para prover sua própria casa. Assim, colabora para o aprofundamento de sua própria precariedade, expressa no rebaixamento relativo de seu salário, onde se opera a redução, ou mesmo expulsão, da cota referente à moradia no custo de reprodução da força de trabalho. Este eixo de análise aberto pelos estudos de Ferro, onde a cidade, em sua dimensão mais concreta, é enfrentada como produto da combinação dinâmica entre o caráter retrógrado do campo e a instituição de novas relações de produção, adquire mais nuances no trabalho de Oliveira. Seu texto Crítica à Razão Dualista amplia a abrangência dos argumentos que consideram o “caráter ‘produtivo’ do atraso como condômino da expansão capitalista”33. O subdesenvolvimento viria a ser, portanto, a forma de exceção permanente do sistema capitalista na sua periferia”34. 31

Como parte dessa lógica cabe destacar, sob a perspectiva de Ferro, a construção de Brasília. Em certa altura do texto A produção da casa no Brasil, é possível subentender que a construção de Brasília, empreendida com extensivo uso de mão de obra migrante, teria sido articulada no lugar de um projeto de reforma agrária.

32

Ver FERRO, Sérgio. “A produção da casa no Brasil” (1969). Op. cit., p. 101.

33

OLIVEIRA, Francisco de. Crítica à Razão Dualista. Op. cit., p. 131.

34

Idem.


29

28

O autor incrementa a análise desta relação contextualizando, num primeiro momento, a participação mais efetiva da estrutura rural arcaica nos expedientes de acumulação urbano-industrial. Neste contexto, a estrutura rural representaria não apenas o fornecimento de matéria-prima a baixos preços, como também contribuiria para a formação do custo e preço de reprodução da força de trabalho urbana, seja no fornecimento de contingentes de reserva ou na manutenção rebaixada dos custos dos produtos alimentícios. Na conjuntura da década de 1960, era recorrente também a explicação para o fenômeno da intensificação do crescimento urbano baseada no binômio decréscimo da participação do setor primário de um lado e incremento da participação do setor industrial do outro. No entanto, segundo Oliveira, trata-se de uma explicação que não se sustenta num confrontamento com a realidade concreta pois os índices de crescimento industrial não acompanhavam diretamente os altos índices de urbanização. Para o autor, a intensificação dos processos de urbanização estaria atrelada ao crescimento horizontalizado do setor de serviços, com baixíssimos coeficientes de capitalização35. Nessa perspectiva, Oliveira argumenta que os fatores necessários à acumulação industrial não seriam compatíveis com a capitalização de outros setores, como o de serviços – essencial à sustentação e garantia da acumulação no setor secundário. Assim, os escassos fundos disponíveis à acumulação estavam destinados prioritariamente ao setor industrial, resultando no baixo coeficiente de capitalização e, consequentemente, num crescimento horizontalizado dos setores primário e terciário, com uso extensivo da pura força de trabalho. Nesse sentido, os 35

Idem.

processos de autoconstrução se apresentariam como exemplo bastante significativo de um serviço urbano que, ao realizar-se como forma de economia de subsistência, não apenas colaboram mas potencializam a acumulação nos setores modernos do capitalismo periférico36. Ao longo da década de 1970, em meio à plena expansão das fronteiras urbanas nas principais capitais brasileiras, já era possível entrever a questão da habitação popular se distanciando gradualmente da problemática rural. Oliveira, no Prefácio escrito para o livro A produção da casa e da cidade no Brasil industrial (1979), afirma que a proposta dos autores organizados nessa publicação foi a de pensar um campo teórico especificamente urbano. “não se trata de construir um estatuto teórico próprio para o urbano, mas, ao contrário, procurar determinar concretamente esse urbano. [...] a démarche geral que percorre todos os trabalhos afasta-se das tipologias para (...) entender o que é que de específico existe nesse urbano na produção capitalista no Brasil” 37.

Resumindo o argumento de Oliveira: a habitação popular, neste momento, consistia um dos temas que permitiriam chegar no que havia de concreto nesse urbano, entendê-lo não apenas como locus, mas como forma da expansão capitalista. Não se parte, portanto, de uma leitura estruturalista determinista, mas de entender como as especificidades das condições objetivas se articulam na determinação de formas particulares a processos que são, ao mesmo tempo, generalizados. Por outro lado, como 36

Idem.

37

OLIVEIRA, Francisco. “Prefácio”. In: MARICATO, Ermínia (org.). A produção capitalista da casa e da cidade do Brasil Industrial. Op. cit.


31

30

já dissemos, também não se trata de entender a periferia sob a perspectiva da marginalidade, descontrole e desorganização, recorrente em diversas abordagens a respeito. Tais ideias não se “sustentariam diante de uma análise que se prenda à visão empírica simplesmente, ou ao resultado formal do ambiente físico” e, por este motivo, procuraremos uma abordagem que “se refira aos fatores que intervêm e que determinam a produção deste espaço”38. Com este eixo de problematização, pretendemos enveredar pelas dinâmicas mais internas à autoconstrução e aos seus desdobramentos nos mutirões autogeridos, procurando, sempre que possível, restabelecer as perspectivas mais amplas de sua compreensão como importante mecanismo da expansão periférica do capitalismo. Trabalho e dimensão produtiva da casa

Dentre as primeiras etapas do processo de produção da casa, aquela que é mais decisiva, a aquisição do lote, já evidencia a condição de reforço à acumulação representado pela autoconstrução. Os autores Nabil Bonduki e Raquel Rolnik, no texto Periferia da Grande São Paulo: reprodução do espaço como expediente de reprodução da força de trabalho39, basearam sua análise nas condições e dinâmicas do mercado de lotes existente nas áreas periféricas da região metropolitana de São Paulo. Mas, por ora não avançaremos nas questões relativas ao mercado de 38

MARICATO, Ermínia. “Autoconstrução, a arquitetura possível”. Op. cit.

39

BONDUKI, Nabil; ROLNIK, Raquel. “Periferia da Grande São Paulo: reprodução do espaço como expediente de reprodução da força de trabalho”. In: MARICATO, E. (org.). A produção capitalista da casa e da cidade do Brasil Industrial. Op. cit.

terras em si, mas as que dizem respeito ao acesso e estas por parte do trabalhador. Nesse sentido, retomamos o sentido político da instituição do FGTS para além de sua funcionalidade direta na política habitacional do BNH, a partir do qual os autores conduziram a abordagem. O FGTS servia aos interesses do capital não apenas enquanto importante fonte de financiamento à acumulação, por meio de uma poupança compulsória dos trabalhadores, mas também pelo fato de ter substituído a instituição da estabilidade no emprego. Ao garantir o aumento da rotatividade da força de trabalho sem ônus ao empregador, se tornou mais um dentre os diversos expedientes de rebaixamento dos salários. Porém, com a perspectiva de acesso aos recursos do FGTS, a instabilidade passou a ser instrumentalizada também pelos próprios trabalhadores, que por vezes procuravam forçar a própria dispensa do emprego diante da necessidade de conseguir juntar o suficiente para dar entrada na aquisição do lote ou mesmo na compra de materiais de construção. Ainda assim, em grande parte dos casos, só o recurso ao FGTS não era suficiente, o que demandava a contração de outros gastos - como os destinados à alimentação – e mesmo a inserção da mulher e dos filhos menores na composição da força de trabalho familiar40. Ferro, em finais dos anos 1960, já buscava esmiuçar as condições de produção da casa popular à luz dos diversos fatores que a determinavam. Para o autor, a autoconstrução da casa popular seria, fundamentalmente, a produção de um valor de uso e, por este motivo, orientada pela necessidade imediata e pela escassez de recursos do trabalhador41. Neste contexto, o processo 40 41

Idem, p. 130. FERRO, Sérgio. “A produção da casa no Brasil” (1969). Op. cit.


33

32

de trabalho teria a medida exata de sua utilização mais imediata, onde todo um universo de restrições operaria na determinação da forma concreta do produto casa. Numa breve aproximação deste universo de restrições, surge forçosamente como pressuposto a necessidade de economia de recursos e de tempo. A escassez de recursos determina o material a ser utilizado. Este deve ser, preferencialmente, acessível pelo pagamento parcelado e disponível próximo do local de moradia e em pequenas quantidades, para não haver despesas extras com o frete. O duro limite do orçamento destinado à construção, em muitos casos, é mantido e eventualmente ampliado pela subtração da cota do salário destinada à alimentação. Os materiais e processos de construção, por sua vez, não devem demandar o emprego de nenhuma técnica especial, tampouco a necessidade de mais de um indivíduo ou mesmo de trabalho continuado. Em condições contrárias ou mesmo diversas das citadas, não haveria viabilidade por parte do próprio trabalhador, que dispõe apenas de parcelas de seu próprio tempo. A urgência real no atendimento da necessidade imediata de abrigo e moradia determinam o emprego da técnica onde “os poucos tijolos obtidos devem seguir o modelo garantido, afastado de experiências potencialmente perigosas”42. “A rudeza dos materiais, a primariedade técnica geram o núcleo restrito ao atendimento franco, imediato. A precisão imposta pela economia na produção ressurge como precisão no produto, precisão amarga, não resultado de engenho programado e escolhido, mas depósito obrigatório de diversas carências”43.

42 43

Idem, p.62.

Idem, p. 63.

Para Ferro, esta contradição que se opera na pequena escala apenas reproduz os mecanismos do trabalho em larga escala. O trabalhador, ao mesmo tempo em que lida com os mais avançados meios de produção, é impelido à precariedade de suas condições, ao dispor apenas de si e de pouquíssimos instrumentos no atendimento de suas carências particulares44. O trabalhador, ao afastar-se das “condições de produção negativas que encontra enquanto assalariado perde as conquistas que estas condições lhe permitem”, pois é individualmente que pretende enfrentar e superar a miséria, generalizada nas condições de vida dos trabalhadores45. No entanto, ao mesmo tempo em que Ferro buscava evidenciar as formas como a conjugação de carências do trabalhador determinava o processo de construção da própria casa, observava neste uma possibilidade de aproximação do trabalhador com o seu próprio trabalho e o produto deste. O autor, quando considerava o processo sob a perspectiva da produção de um valor de uso, já encaminhava a discussão do caráter do trabalho envolvido na produção da casa popular. Nessas condições, ao produzir para si, o trabalhador não o faria como força de trabalho vendida, empenhada na valorização do capital, isto é, o trabalho empenhado na autoconstrução da casa não seria considerado a partir de seu puro dispêndio de energia, que produz valores genéricos em valores de uso a ele indiferentes, visando somente sua realização como valor de troca. Assim, as condições de produção da casa própria não seriam hostis ou alheias ao trabalhador que, guiado por sua vontade, produziria com seus instrumentos o seu próprio abrigo, um objeto para seu uso46. 44

Idem, p.62.

45

Idem, p. 66.


35

34

Maricato se aproximou dessa perspectiva quando reiterou a necessidade de estudar a autoconstrução relacionada a uma abordagem mais ampla, porém, sem deixar de se referir aos aspectos que considera positivos: “sem desconhecer a importância de qualquer trabalho artesanal comunitário, isento da rígida divisão de trabalho capitalista, onde há os que controlam e têm uma visão integrada do processo, e há os que executam tarefas parceladas e que portanto não a têm, sem pretender ainda desvalorizar o contato direto do autor (que pensa o produto) ser o produtor (quem o executa)”47. Já Bonduki e Rolnik, ao tratarem da dimensão da ajuda mútua entre vizinhos, colegas, familiares na relação com o trabalho, indicaram a tendência a uma certa mitificação do mutirão como exemplo de solidariedade de classe. Nesse sentido, o mutirão se caracterizaria por uma simples contraprestação de serviços, onde um morador colabora com o outro na expectativa de ser auxiliado quando precisar48. Oliveira, por sua vez, apresenta os aspectos dessa aproximação entre o trabalhador e seu trabalho como “fetiche que recobre um processo altamente alienante, sendo o contrário da desalienação, pois fecha as classes trabalhadoras num “círculo de giz” onde atuam como criadores de uma riqueza social, que volta a ser posta a serviço do capital na medida em que a força de trabalho continua a ser uma mercadoria para o capital. Não se está, pois, frente a nenhum processo de desalienação, como pensa um certo populismo, que perigosamente pretende encaminhar proposições

49

OLIVEIRA, Francisco. “Prefácio”. In: MARICATO, Ermínia (org.). A produção capitalista da casa e da cidade do Brasil Industrial. Op. cit. Grifos do original.

MARICATO, Ermínia. “Autoconstrução, a arquitetura possível”. Op. cit.

50

OLIVEIRA, Francisco de. Crítica à Razão Dualista / O ornitorrinco. Op. cit., p. 59.

BONDUKI, Nabil; ROLNIK, Raquel. “Periferia da Grande São Paulo: reprodução do espaço como expediente de reprodução da força de trabalho”. Op. cit., p. 131.

51

BONDUKI, Nabil; ROLNIK, Raquel. “Periferia da Grande São Paulo...”. Op. cit., p. 130.

46

Idem, p. 65.

47 48

para o conjunto das classes trabalhadoras a partir de experiências que são um reforço à alienação”49. Complementando esta perspectiva, temos o entendimento do próprio autor acerca da casa construída em sistema de mutirão que, por ser resultante de uma produção realizada com trabalho não pago, consistiria uma baixa aparente do custo de reprodução da força de trabalho, contribuindo, portanto, para o aumento da taxa de exploração do trabalho, deprimindo também os salários reais pagos50. Bonduki e Rolnik, todavia, discordaram do entendimento da autoconstrução como “trabalho não pago”, afirmando que o valor de uso produzido, e apropriado totalmente por seu produtor, seria também potencialmente uma mercadoria. Seria, portanto, um trabalho realizado como se o trabalhador fosse, naquele momento, um produtor individual de mercadorias e não vendedor de sua força de trabalho para o capitalista. Para os autores, no entanto, a perspectiva do sobretrabalho, embora não estivesse diretamente no trabalho de construção da habitação em si, estaria no processo de reprodução generalizada da autoconstrução que, ao institucionalizar a baixa de salários, diminuiria a magnitude do trabalho necessário ao custo de reprodução da força de trabalho, aumentando assim a taxa de mais-valor51. Numa outra chave de compreensão, entretanto, há no artigo uma reflexão que coloca em outros termos o “trabalho não pago” diretamente no processo de construção da habitação: a instabilidade no emprego, as horas extras, o trabalho nas


37

36

horas teoricamente livres, associados às condições precárias de habitação, consolidariam um mecanismo de subsistência que implicaria numa não reposição da energia gasta no trabalho cotidiano, num desgaste que a propriedade da moradia não conseguiria recuperar. Nesse sentido, afirmam que, somente através de um forte controle político, de manutenção dos exércitos de reserva, seria possível viabilizar um aprofundamento dessa conjuntura de precariedades na reprodução da força de trabalho52. Oliveira também opera nesta perspectiva, compreendendo-a nos termos de uma superexploração, que seria a condição política de sobrevivência do sistema. Assim, políticas de forte contenção salarial, revestidas também por características repressivas, sustentariam uma condição de superacumulação, necessária esta para que a acumulação real possa realizar-se53. A dimensão política da exploração do trabalho se reflete, portanto, nas formas como o trabalho específico na autoconstrução da moradia pode deflagrar o processo de rebaixamento dos salários, logo, de exclusão do custo da moradia do custo de reprodução da força de trabalho. Ou ainda, como a reprodução da precariedade das condições de habitação das classes trabalhadoras, longe de ser um problema efetivo posto à acumulação capitalista, se apresentava como um dos mecanismos daquela superexploração, logo da superacumulação. Mas, para manter a continuidade e a centralidade da questão do trabalho no debate sobre a autoconstrução, percebemos ser necessária a articulação desta com as circunstâncias de sua contraposição, representada pela forma mercadoria que o valor de 52

Idem, p. 137.

53

OLIVEIRA, Francisco de. Crítica à Razão Dualista / O ornitorrinco. Op. cit., p. 100.

uso “casa” estaria sujeito a assumir. Mercadoria e propriedade: ou a propriedade da mercadoria casa

A partir da dimensão do trabalho que procuramos apresentar, é possível notar uma percepção comum a alguns autores, que tratam a autoconstrução da moradia como a produção de um valor de uso. Ferro, em A produção da casa no Brasil54, já enfrentava o problema da casa autoconstruída como uma exceção aparente ao sistema, pelo fato de sua produção ser determinada prioritariamente por seu valor de uso. Uma exceção apenas aparente porque, ainda que a produção da casa não fosse determinada fundamentalmente por seu valor de troca, “o sistema e o modo de produção capitalista estão presentes sob várias outras formas: no fato do valor de uso particular, na miséria, tornar-se valor de uso social, e aparecer como valor de troca (…); na contradição entre ser operário, expressão social de um sistema de produção avançado, e o fato de ter que recorrer, no atendimento a pressões vitais, às formas mais atrasadas, e mesmo reacionárias, de produção... A produção aparentemente marginal revela o sistema totalmente inclusivo”55. Um importante fator do estado de latência da mercadoria na casa autoconstruída está inserido no contexto da propriedade privada de um valor de uso social. Maricato já havia apontado que “nos bairros mais populosos da cidade de São Paulo, onde a renda média é das mais baixas, o número de moradores proprietários é dos mais altos”56. Ainda segundo a autora, “os baixos salários não 54

FERRO, Sérgio. “A produção da casa no Brasil” (1969). Op. cit.

55

Idem, p. 67.

56

MARICATO, Ermínia. “Autoconstrução, a arquitetura possível”. Op. cit.


39

38

suportam mais as despesas com aluguel além da não existência de ofertas de habitações para as classes populares. Essas condições materiais iriam determinar o alto índice de proprietários de casas na população trabalhadora, e apenas através da autoconstrução seria possível atingir este índice”. A realidade da pequena propriedade urbana alcançada pelo trabalhador revelaria, portanto, as condições para a deflagração da forma mercadoria na moradia autoconstruída. Retomando as condições da dimensão produtiva da casa, Ferro lembra que a situação de carência e precariedades que levam o trabalhador a construir sua própria casa seriam as mesmas que, em outras circunstâncias, poderiam o levar a desfazer-se dela. Como se trata da produção de um valor de uso social, a metamorfose do valor de uso em valor de troca poderia ser acionada tão logo o trabalhador necessitasse, “apontando”, assim, “a existência de mercado de outros miseráveis”57. Entretanto, mais do que mercadoria latente, a produção do valor de uso casa teria como suporte um mercado já relativamente consolidado e voltado para as baixas rendas, isto é, o mercado de loteamentos – muitas vezes irregulares – nas áreas periféricas da região metropolitana de São Paulo, como demonstra a pesquisa realizada por Bonduki e Rolnik58. Partindo principalmente de uma investigação das relações entre os principais agentes envolvidos no que os autores denominaram “empreendimentos capitalistas privados”, a pesquisa contribuiu para ampliar o significado da casa própria no expediente de reprodução da força de trabalho. Nessas condições, a casa representaria para o trabalhadorproprietário não somente a solução do problema de moradia,

como também uma fundamental garantia patrimonial frente à instabilidade no emprego e à ineficiência da previdência social59. Assim, para o trabalhador, a casa se apresentaria como importante possibilidade deste se proteger das mesmas circunstâncias que, outrora, teriam sido instrumentalizadas em sua construção e aquisição, ou seja, a instabilidade no emprego. Bonduki e Rolnik também apresentaram dados que apontam a elevação do nível de renda do trabalhador-proprietário – por meio da locação de sua propriedade ou de parte dela – como objetivo e não a causa da mercantilização do lote. Quer dizer, o trabalhador-proprietário, motivado pela possibilidade de aumento de sua renda, acabava deixando de lado, em muitos casos, a construção da própria casa no lote para dar prioridade à construção da que seria alugada60. Nessas condições, portanto, o esforço do trabalhador na construção em seu lote já teria como finalidade a mercantilização de seu produto, o que introduz novas questões às reflexões que enfrentavam a autoconstrução da casa como essencialmente a produção de um valor de uso. A fim de compreender as circunstâncias que levam à mercantilização da casa autoconstruída será necessário, entretanto, retomar como a dimensão da produção da casa se articula, ao mesmo tempo, com a dimensão mais ampla dos processos de urbanização e, em outra direção, com a realidade subjetiva do trabalhador que, no contexto da autoconstrução, se torna também pequeno proprietário urbano. Nesse sentido, pretendemos apenas avançar algumas questões relativas aos desdobramentos da formação subjetiva do trabalhador para, depois, nos aproximarmos de como a lógica de mercadoria da

57

59

58

FERRO, Sérgio. “A produção da casa no Brasil” (1969). Op. cit., p. 67.

BONDUKI, Nabil; ROLNIK, Raquel. “Periferia da Grande São Paulo...”. Op. cit.

Idem, p. 137.

60

Idem.


41

40

casa se realiza no espaço da cidade. O processo de formação da consciência do trabalhador sobre sua própria condição, tem importante lastro na figura concreta da propriedade privada urbana que, por sua vez, ativa e condiciona os mecanismos de diferenciação dentro da própria classe trabalhadora. Quando Ferro tratou desta questão, embora ainda nos termos de uma eventualidade na exploração do excedente produzido como valor de troca, afirmava que o trabalhador, proprietário do lote, constituía cortiços de péssimas condições, manipulando como mercadoria o valor de uso social que produzira ou obtivera pensando em si61. Assim, o próprio operário se constituiria como “ser em transição” ao alcançar a categoria de “pequeno proprietário urbano”, passando a usufruir de renda não proveniente da venda de sua força de trabalho, mas da venda de seus “bens”62. A partir dos desdobramentos dessa realidade do trabalhador enquanto pequeno proprietário, o autor apresenta as circunstâncias de uma inflexão na formação da consciência deste trabalhador, que interfere no próprio reconhecimento de sua condição de classe trabalhadora. O operário que teve a oportunidade de acumular valores de uso realizaria os pressupostos de uma aspirada ascensão à categoria dos “pequenos proprietários urbanos”, e sua personalidade básica capitalista não seria aquela negadora do sistema, mas unicamente de seu status proletário63.

61

FERRO, Sérgio. “A produção da casa no Brasil” (1969). Op. cit., p. 65.

62

Idem.

63

PEREIRA, Luiz. Trabalho e desenvolvimento no Brasil. São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1965, p. 208. Apud FERRO, Sérgio. “A produção da casa no Brasil” (1969). Op. cit., p. 65.

“E o que produz espelha, também, agora, como produz: o indispensável para sua subsistência, resultado tosco de individualismo auto-suficiente, é a miniatura frustante do lar burguês, isolada, fechada, marcando nítidos os contornos de sua posse […] na expectativa de transbordar sua racionada necessidade e a afirmar sua admissão a pequeno burguês, senhor de capitalzinho.”64

As condições para a cisão do trabalhador com sua própria condição e, provavelmente, com sua própria classe se estruturam numa tensão recorrente ao longo do debate que se constitui. No entanto, para seguir com a perspectiva da tensão existente na relação da casa produzida como valor de uso e sua forma mercadoria, bem como na relação do trabalhador com a sua própria condição, será imprescindível tratar o processo de autoconstrução a partir de sua dimensão urbana. Autoconstrução da cidade

A fim de apontar as circunstâncias e condições urbanas que poderiam deflagrar a mercantilização da casa autoconstruída, seja eventual ou propositalmente, partiremos do processo de urbanização e institucionalização dos componentes do custo de reprodução da força de trabalho. Maricato, identificando alguns fatores da integração entre o arcaico e o moderno, se referiu à presença de produtos de tecnologia moderna de produção nas casas em processo de autoconstrução ou, por outro lado, quando, apesar da imensa gama de aparelhos eletrodomésticos disponíveis encontramos um exército de trabalhadores domésticos no centro do modo de vida modernizado65. Para Oliveira, os serviços pessoais 64

FERRO, Sérgio. “A produção da casa no Brasil” (1969). Op. cit., p. 65.

65

MARICATO, Ermínia. “Autoconstrução, a arquitetura possível”. Op. cit.


43

42

prestados diretamente ao consumidor e até mesmo dentro das famílias, seriam da mesma forma um reforço à acumulação, uma vez que estes serviços, para serem prestados fora das famílias, exigiriam uma infra-estrutura que as cidades não dispõem e, evidentemente, uma base de acumulação capitalística que não existe66. Oliveira, no entanto, ao enfrentar a questão da casa popular a partir, essencialmente, de sua dimensão produtiva, apresentou sua contraposição em relação à possibilidade do produto resultante da autoconstrução constituir-se em mercadoria. No Prefácio escrito em 1979, o autor afirmou que se tratava da “produção de um bem – a casa, ou obras públicas, ou a igreja – que não é mercadoria, mas que, por sua vez, serve como suporte da reprodução da mercadoria força de trabalho. Trata-se, também neste caso, de como se dá a produção de uma riqueza social (...), que não é capital, mas é posta a serviço do capital, na medida em que contribui para rebaixar seja o custo de reprodução da força de trabalho, no caso da residência, seja o custo da urbanização, no caso de pequenas obras públicas feitas por moradores em seus bairros, em suas ruas”67. Entre os autores pesquisados, no entanto, não há acordo sobre esse desdobramento da questão promovido por Oliveira. Assim como Ferro, Bonduki e Rolnik, Maricato também apresentou indícios sobre como as casas autoconstruídas poderiam se tornar mercadorias. Primeiro quando se referiu à propriedade da casa como “propriedade de um capitalzinho”, tal como Ferro já havia 66

67

OLIVEIRA, Francisco de. Crítica à Razão Dualista / O ornitorrinco. Op. cit., p. 100.

OLIVEIRA, Francisco. “Prefácio”. In: MARICATO, Ermínia (org.). A produção capitalista da casa e da cidade do Brasil Industrial. Op. cit. Grifos do original.

denominado; e depois, quando tratou da atuação do Estado como intermediário entre empreiteiras e moradores para obras de melhoria nos bairros populares (asfalto, calçamento, etc.). Consequentemente, a incorporação de mais trabalho nessas áreas acabava por expulsar para áreas menos urbanizadas aqueles que não poderiam arcar com as prestações relativas ao pagamento da obra e, aqueles que viam vantagem em vender a casa já valorizada pela perspectiva das melhorias urbanas68. Bonduki e Rolnik também enfatizaram a necessidade de uma abordagem efetivamente urbana da casa autoconstruída, quando afirmaram que, “dado o estágio atual do desenvolvimento das forças produtivas e o grau de complexidade da cidade capitalista, a habitação operária não é apenas um abrigo, mas também um conjunto de equipamentos de infra-estrutura urbana a ela vinculados”69. Nesse sentido, a pesquisa realizada pelos autores forneceu importante base empírica à compreensão das circunstâncias da realização da casa autoconstruída como mercadoria, a partir de sua relação direta com os processos de urbanização. O panorama apresentado por esses autores, sobre as condições do mercado de loteamentos periféricos, indicaria que o reforço à acumulação não se realizaria apenas pelo rebaixamento do custo de reprodução da força de trabalho, como também pela forma como este custo condiciona os desdobramentos internos ao processo de urbanização. O empreendedor do loteamento, que intencionalmente negocia lotes intercalados ou que determina vazios entre os empreendimentos, potencializa sua taxa de lucro 68 69

MARICATO, Ermínia. “Autoconstrução, a arquitetura possível”. Op. cit.

BONDUKI, Nabil; ROLNIK, Raquel. “Periferia da Grande São Paulo...”. Op. cit. p. 120


45

44

ao se aproveitar dos expedientes de rebaixamento do custo de urbanização pois, segundo a pesquisa, a simples ocupação de alguns lotes já valorizaria o loteamento70. Assim, a população, que não teria outra escolha a não ser a de se sujeitar a morar num bairro carente de qualquer serviço – com exceção do transporte público –, seria a pioneira no processo de incorporação de trabalho em certas regiões da cidade, o que acabava colaborando com as condições de sua própria expulsão, caso não conseguissem acompanhar e sustentar a valorização. “Quando os loteamentos são abertos, a quantidade de trabalho social neles realizado, ou em seu entorno – cristalizado em equipamentos de infra e superestrutura, transporte, acesso, etc, assim como pela própria construção de moradias – é minima. Isso ocorre, como já vimos, pela prevalência dos baixos salários, que não permitem ao trabalhador a aquisição de lotes cujo preço incorpore o investimento necessário à implantação dessas melhorias. Os primeiros moradores, passando por uma série de sacrifícios, são diretamente responsáveis pela valorização dos lotes: ocupam o bairro através da construção de suas casas, reivindicam transporte coletivo e equipamentos em geral, enfim, agem de modo a viabilizar o aumento do trabalho incorporado no loteamento. A consequente valorização das moradias culmina um processo de certa forma previsto pelo morador quando da aquisição do lote e que constitui numa das razões de opção pela casa própria”71.

Associando esta questão à relação entre proprietário e inquilino - ainda que, enquanto trabalhadores, não houvesse grande distinção de condições – observou-se que, na perspectiva da urbanização, estaria em curso um processo de diferenciação que tende a se aprofundar. A pesquisa de Bonduki e Rolnik

aponta que o proprietário se diferencia do inquilino na medida em que já teria passado por um longo processo de sacrifícios, tendo sido pioneiro num loteamento carente de infra-estrutura, enquanto o inquilino paga para usufruir das atuais “vantagens” locacionais do bairro72. E, diferente da autoconstrução da moradia, serviços como o de saúde, educação, transporte, fornecimento de energia elétrica, não comportariam soluções “primitivas”73. Frente aos processos de institucionalização e urbanização dos expedientes de reprodução da força de trabalho, observou-se, no entanto, uma conjuntura de forte retração dos já escassos subsídios estatais às classes trabalhadoras, servindo de “exemplo da linha geral adotada pelo Estado na condução das necessidades da reprodução da força de trabalho. A política da habitação está relacionada também à da saúde, saneamento básico, cultura, transportes, que, por sua vez, estão relacionadas com a política salarial”74. Além disso, trata-se de uma conjugação de políticas que, ao se realizarem concretamente no espaço da cidade, operam também a forma mercadoria do solo urbano. Maricato relaciona a autoconstrução aos processos de valorização fundiária, construindo o argumento de que, “se a infra-estrutura urbana e equipamentos também constituem mercadorias, se a política habitacional é centralizadora e elitista, e se por outro lado o salário é mantido a um nível abaixo daquele que permitiria a compra desses bens, as necessidades são em grande parte supridas pela prática da construção”75. 72

Idem, p. 141

73

OLIVEIRA, Francisco. Crítica à Razão Dualista / O ornitorrinco. Op. cit., p. 100.

70

74

71

75

Idem. Idem, p. 143

MARICATO, Ermínia. “Autoconstrução, a arquitetura possível”. Op. cit. Idem.


47

46

Bolaffi acaba explorando mais a questão fundiária quando já discute, de certa forma, a função social da propriedade. Para o autor, “o padrão periférico de crescimento decorre da existência de mecanismos econômicos que conferem ao solo urbano funções econômicas alheias à sua utilidade intrínseca enquanto bem natural e ao papel que deveria desempenhar na composição e na organização do espaço requerido para as atividades públicas ou privadas da população”76. E, buscando compreender o funcionamento dos mecanismos econômicos, o autor reafirma a natureza política do problema e aponta a ineficácia do planejamento urbano atrelado a uma ausência de meios reais e efetivos de controle do solo urbano. O sociólogo Lucio Kowarick analisou o problema habitacional a partir da relação entre as condições de exploração do trabalho propriamente ditas e a dimensão urbana de sua realização77. Para o autor, trata-se de um equacionamento entre “as condições de pauperização absoluta ou relativa a que estão sujeitos os diversos segmentos da classe trabalhadoras” e “o processo, que decorre do anterior e que só pode ser plenamente entendido quando analisado em razão dos movimentos contraditórios da acumulação do capital, que pode ser nomeado por espoliação urbana, que é o somatório de extorsões que se opera através da inexistência ou precariedade de serviços de consumo coletivo que se apresentam como socialmente necessários em relação aos 76

níveis de subsistência e que agudizam ainda mais a dilapidação que se realiza no âmbito das relações de trabalho”78. Neste ponto, é fundamental o questionamento da atuação do Estado ou, como se verificou, a ausência de um projeto político deste que abarcasse a condução das necessidades de reprodução da força de trabalho. Até que ponto a omissão não é, na verdade, a afirmação de um projeto político de expansão e acumulação capitalista no Brasil, fortemente sustentado por mecanismos de precarização e rebaixamento das condições da força de trabalho. Para Kowarick, o processo de dilapidação das condições de vida dos trabalhadores, através da superexploração do trabalho e da espoliação urbana, estaria diretamente relacionado à capacidade de organização da classe trabalhadora em defender seus níveis salariais e condições de trabalho em geral79. Nesse sentido, Oliveira já havia apontado o caráter político da acumulação, quando argumentou não haver qualquer automaticidade no sistema que possa resultar em redistribuição – provavelmente se referindo naquele momento à tese de “fazer crescer o bolo para depois reparti-lo”. Ainda segundo Oliveira, apenas “dois fatores poderiam se opor à tendência concentracionista quase inerente ao sistema capitalista: o promeiro é a escassez de trabalho […] mas as evidências empíricas reduzem o poder de explicação dessa dialética econômica quando ela está desligada da organização da classe trabalhadora […] da possibilidade de que, politicamente, possam fazer-se ouvir e respeitar”80. Bolaffi, por fim, concluiu em seu texto que os fatos que haviam ocorrido durante os anos

77

78

Idem. Grifos do original

79

Idem.

BOLAFFI, Gabriel. “Habitação e Urbanismo: o problema e o falso problema”. Op. cit. KOWARICK, Lucio. A espoliação urbana. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979. É necessário salientar que Kowarick enfrentou a questão do déficit habitacional como um problema aparente ao sistema, uma vez que a condição urbana precária da classe trabalhadora, longe de constituir obstáculo à acumulação, opera, na verdade, em sua reafirmação e expansão.

80

OLIVEIRA, Francisco de. Crítica à Razão Dualista / O ornitorrinco. Op. cit. Grifos do original


49

48

da ditadura militar “só contribuíram para acentuar a natureza política dos problemas, despertando a consciência de que problemas políticos exigem soluções políticas”81. Entre os trabalhos referenciados até então, é possível perceber, em diferentes graus, um sentido comum da necessidade de uma resposta política por parte da classe trabalhadora às condições de exploração impostas. Pois, até mesmo o que se apresenta como problema funcionaria, na verdade, como solução do aprofundamento da exploração e, assim, acumulação, demonstrando que o sistema não encontra o seu limite por si. Tendo em vista a perspectiva das possibilidades de organização da classe trabalhadora, procuraremos lançar luz às questões que surgiram e que se reformularam a partir das condições de enfrentamento da luta de classes, em finais dos anos 1970 e ao longo da década de 1980. Dimensão política da cidade: a emergência dos movimentos populares

Num breve retorno aos fatos, procuraremos compreender como as questões, e as formas como estas foram suscitadas ao longo do debate da década de 1970, podem ter constituído base para as demandas dos movimentos populares que, naquela altura, já começavam a ganhar corpo. E, principalmente, como as experiências realizadas pelos próprios movimentos populares teriam reorganizado e redimensionado aquelas questões nos desdobramentos posteriores do debate. Cibele Rizek, Joana Barros e Marta Bergamin, em artigo publicado em 2003, já havia analisado a articulação entre o debate e as 81

BOLAFFI, Gabriel. “Habitação e Urbanismo: o problema e o falso problema”. Op. cit.

formas pelas quais este “repercutiria em outros campos da produção intelectual e estética, vinculando áreas diversas entre si, tais como as discussões de arquitetura, de seu lugar social, de suas possibilidades de democratização e a compreensão dos movimentos e lutas sociais urbanas. Estas dimensões se cruzam […] em um conjunto de heranças que se constituiriam, nos anos 80, no âmbito das questões e das lutas pela democratização, dos atores e movimentos sociais, da afirmação de sua autonomia e do tema da ‘autogestão’”82. Bonduki e Rolnik, já haviam apontado alguns indícios de uma organização nesse sentido quando argumentaram, por exemplo, que os primeiros moradores de um loteamento agiriam de modo a aumentar o trabalho incorporado no local e arredores, reivindicando transporte coletivo e equipamentos em geral. Trabalhos do começo da década de 1970 também já anunciavam a hipótese de que as reivindicações populares por serviços urbanos poderiam transformar o morador em um cidadão em formação, como é o caso do texto “O desenvolvimento de São Paulo: cultura e participação”83, embora os próprios autores já reconhecessem as limitações dessa modalidade de “participação” de horizonte imediato, ainda muito distante das formas clássicas de “cultura cívica” e de “opinião pública”84. Trata-se de uma conjuntura política que se forma 82

RIZEK, Cibele; BARROS, Joana; BERGAMIN, Marta. “A política de produção habitacional por mutirões autogeridos: construindo algumas questões”. In: Revista Brasileira de Estudos Urbanos e Regionais, v. 5, n.1. Maio de 2003.

83

KOWARICK, Lucio; CAMARGO, Cândido F. de; CARDOSO, Fernando Henrique. “O desenvolvimento de São Paulo: cultura e participação”. In: CASTELLS, Manuel (org.). Imperialismo y urbanización em America Latina. Barcelona: Gustavo Gili, 1973.

84

ARANTES, Pedro. “Em busca do urbano”. Op. cit.


51

50

principalmente ao longo da década de 1970, onde diversos fatores teriam colaborado para acirrar as condições de surgimento de inúmeras manifestações de organização popular. Entender este processo implica em partir de uma noção de deslocamento do conflito social de classes para fora da relação salarial direta, que ocorreu tanto por parte do Estado como por parte dos movimentos sociais, ainda que em sentidos contrários. No deslocamento por parte do Estado, temos a atuação do regime militar que, ao mesmo tempo, promovia intensa repressão aos movimentos organizados a partir do trabalho e, por outro lado, tentativas de reconquista ideológica das classes baixas através das promessas de casa própria. Assim, o próprio regime teria colaborado involuntariamente para as formas de organização fora do espaço de trabalho, nos bairros de periferia85. Retomando Kowarick, “a espoliação urbana só pode ser entendida como produção histórica que, ao se alimentar de um sentimento coletivo de exclusão, produz uma percepção de que algo – um bem material ou cultural – está faltando e é socialmente necessário”86. Nessas condições, portanto, os movimentos sociais também teriam operado seu deslocamento da relação salarial direta, na direção dos direitos da cidadania e das políticas públicas87. Ainda assim, o movimento sindical no ABC, por exemplo, demonstrou que a frente de disputa na relação salarial direta não teria sido esvaziada. E, nesta ótica,

podemos argumentar que a conjugação de políticas públicas e serviços urbanos também estruturariam, embora indiretamente, a relação salarial, relativizando, deste modo, algumas condições desse deslocamento. José Fábio Calazans explora os termos de uma articulação entre a organização a partir do chão de fábrica e os movimentos de bairro, em que estes foram construindo paulatinamente sua autonomia - embora num primeiro momento ainda estivessem bastante vinculados às Comunidades Eclesiais de Base. Para Calazans, os trabalhadores das fábricas começaram a ter um papel forte mas, na medida em que o regime inviabilizava uma organização a partir das próprias fábricas, o trabalho do bairro passava a ser uma contribuição importante para formação de núcleos operários das próprias indústrias88. Para Pedro Arantes, o processo de autonomização dos movimentos populares também se realizava em relação ao Estado, onde “o governo militar […] não tinha mais para a classe trabalhadora as mesmas ambiguidades do pacto social anterior e, por isso, ela procurará libertar-se de sua tutela”. Entretanto, “as novas reivindicações muitas vezes permaneciam restritas a demandas específicas e momentâneas e acabam capturadas pela política tradicional da troca de favores, impedindo sua expansão como luta pela universalização dos direitos”89. Segundo João Marcos Lopes, no entanto, a mediação do Estado nesses processos de organização popular acabava sendo inevitável, tanto pela via do reconhecimento jurídico, de certa

85

ARANTES, Pedro Fiori. Arquitetura nova: Sérgio Ferro, Flávio Império e Rodrigo Lefevre, de Artigas aos Mutirões. São Paulo: Editora 34, 2002.

86

KOWARICK, Lucio. “Espoliação urbana, lutas sociais e cidadania: fatias de nossa história recente”. In: Espaço & Debates, n. 40, p. 105-113. São Paulo: NERU, 1997.

87

ARANTES, Pedro Fiori. Arquitetura nova: Sérgio Ferro, Flávio Império e Rodrigo Lefevre, de Artigas aos Mutirões. Op. cit. Grifo no original.

88

MARICATO, Ermínia; CALAZANS, José Fábio; FINGERMANN, Luís. “Formação e prática profissional do arquiteto – três experiências em participação comunitária” (Depoimentos). In: Espaço & Debate, n.8.

89

ARANTES, Pedro Fiori. Arquitetura nova... Op. cit.


53

52

forma necessário à legitimação frente à ordem vigente, como pelo fato do Estado constituir a principal fonte de recursos para o atendimento das demandas dos movimentos populares90. Essa condição da contradição demonstra que as novas formas de organização e ação coletiva não passariam isentas de suas próprias ambiguidades frente à perspectiva de transformação social. Este questionamento também está presente no trabalho de Arantes, quando comenta que, na tensão constante entre a luta por direitos sociais e as reivindicações mais imediatas e isoladas, entre a transformação do Estado e a sua assimilação pela política tradicional, os movimentos sociais oscilariam entre ruptura e submissão à ordem91. As contradições que iam surgindo ao longo deste processo de formação e reelaboração das práticas políticas populares, se manifestavam de diversas formas, conforme as especificidades das demandas dos movimentos. Assim, a partir desta constatação, nos interessa enveredar pelas condições e contradições mais específicas aos movimentos de moradia, procurando compreender como se deu continuidade à problemática formulada ao longo do contexto dos anos 1970. Fatores como o esgotamento da política habitacional do BNH, cuja relevância no atendimento às necessidades de habitação das classes mais baixas se mostrou irrisória e, a legislação de parcelamento do solo, que nas áreas periféricas acabou restringindo ainda mais o acesso à terra urbana; associados, por sua vez, ao forte viés ideológico da casa própria, teriam colaborado significativamente para determinar as formas de enfrentamento

praticadas pelos movimentos de moradia. A ocupação de terras urbanas vazias, por exemplo, passou a se difundir como estratégia dos movimentos por moradia, publicizando, assim, a luta popular. No entanto, segundo Arantes, “as ocupações começavam de forma precária, com pessoas querendo repartir lotes e já montar barracos, mas as lideranças, apoiadas pelas pastorais, conferiam o caráter de atos políticos”92. Se tratava, porém, de um ato político de enfrentamento e oposição que revelava, por outro lado, o pressuposto da conciliação com o sistema. Arantes destaca a dubiedade desta contraposição, em que a estratégia de ocupação teria a finalidade de integração, uma vez que aquela não consistia uma crítica à propriedade privada em si, mas uma exigência de sua universalização, como direito de todos”93. A reboque deste processo, onde a prática das ocupações se tornava cada vez mais organizada e consolidada entre os movimentos de moradia, surgia uma série de discussões que colocavam as formas de cooperação e o saber popular como laboratório do futuro, pensado como possibilidade de uma nova sociedade94. E, neste contexto, a prática do mutirão para a construção da casa, a partir principalmente de sua característica de cooperação, passava a ser repensada e reelaborada como possibilidade de conscientização e organização popular. Nesse sentido, todo um conjunto de demandas que, de um modo ou de outro, se combinavam com os anseios e movimentos pela democratização do país95. 92

Idem.

90

LOPES, João Marcos. Sobre arquitetos e sem-tetos. Texto inédito, cedido pelo autor em julho de 2011.

91

ARANTES, Pedro Fiori. Arquitetura nova... Op. cit.

93

Idem.

94

RIZEK, Cibele; BARROS, Joana; BERGAMIN, Marta. “A política de produção habitacional por mutirões autogeridos: construindo algumas questões”. Op. cit.


55

54

Na conjuntura particular aos movimentos de moradia, o sentido da política na prática do mutirão era pensado a partir, principalmente, da articulação entre movimento social e profissionais das áreas da arquitetura e urbanismo - organizados posteriormente em assessorias técnicas -, reivindicando o direito à moradia e ao acesso aos recursos públicos para a realização de experiências de provisão habitacional96. Datam já do início da década dos anos 1980 as primeiras experiências de produção habitacional organizada pelos próprios movimentos sociais, junto às assessorias técnicas que, neste primeiro momento, ainda estavam bastante vinculadas à estrutura institucional de algumas universidades. Na FAU-USP, já era possível observar esforços nesse sentido quando um grupo de professores, reunidos em disciplinas integradas, procurava aproximar o ensino da arquitetura das condições de produção de habitação nas periferias da cidade de São Paulo. O intuito era o de pensar as formas de “transferência de conhecimentos e tecnologia adequados à população da periferia […] Nos termos de Sérgio Ferro, estava se constituindo um desenho da produção e não para a produção, negando a dominação do trabalho”97.

95

Idem.

96

Uma contribuição fundamental para a reflexão sobre a possibilidade política do mutirão foi atribuída também à iniciativa do engenheiro Guilherme Cunha Pinto em finais da década de 1970 e início de 1980. O engenheiro produziu um filme junto às cooperativas uruguaias de habitação e exibiu, na época, o material para diversos grupos envolvidos com os movimentos sociais em São Paulo, introduzindo novas referências sobre a construção da habitação por ajuda mútua. Para uma dimensão mais apurada destes fatos, ver BARAVELLI, José Eduardo. O cooperativismo uruguaio na habitação social de São Paulo: das cooperativas FUCVAM à Associação de Moradia Unidos de Vila Nova Cachoeirinha. Dissertação de Mestrado. FAU-USP, 2006.

97

ARANTES, Pedro Fiori. Arquitetura nova... Op. cit. Grifo no original.

No decorrer dos anos 1980, profissionais formados na própria FAU-USP começaram a atuar em outras instituições, dentre as quais, destacamos o Laboratório de Habitação na Faculdade Belas-Artes. Citando Arantes: “o Laboratório funcionava em moldes semelhantes à disciplina integrada da FAU-USP e, por outro lado, era inspirado na Cooperativa do Sindicato de Arquitetos de São Paulo (que também dava apoio a grupos de sem-teto) e no cooperativismo uruguaio, tendo, assim, objetivos mais ambiciosos: implementar concretamente suas iniciativas e interferir na política habitacional da cidade”98. Em 1986, o Laboratório foi fechado violentamente, mas as experiências tiveram continuidade, em parte, nos Laboratórios da UNICAMP, da FAU-Santos e da PUC de Campinas. Nesse sentido, o contexto de formação dessas experiências, de reflexão e crítica prática aos processos convencionais de produção habitacional, teria contribuído para abrir novos campos de pesquisa, onde a economia de recursos e a reflexão sobre novos processos de organização e divisão do trabalho poderiam resultar em efetiva qualidade projetual e construtiva da habitação. Como desdobramento das possibilidades de conscientização sobre o próprio processo produtivo, pretendiase também a afirmação dessa proposta de provisão habitacional como realidade da ação política, como espécie de experimento emancipatório a se realizar nos trabalhos de construção civil99. A proposta é a de refletir sobre processos que possam constituir a subjetivação do construtor – e futuro morador –, a partir de sua 98

Idem. Sobre a história da atuação do Laboratório de Habitação ver: BONDUKI, Nabil. Habitação e autogestão: construindo territórios da utopia. Rio de Janeiro: FASE, 1992.

99

RIZEK, Cibele; BARROS, Joana; BERGAMIN, Marta. “A política de produção habitacional por mutirões autogeridos: construindo algumas questões”. Op. cit.


57

56

aproximação determinante em todas as dimensões do processo: na discussão do projeto, do planejamento da obra, nas formas de organização do trabalho no canteiro, no controle e administração dos recursos, etc. No escopo da atuação dos movimentos populares por moradia, a visibilidade da proposta de construção de moradias por mutirão autogerido foi favorecida por um contexto em que se fortalecia “a ideia de que as tensões e antagonismos entre Estado e Sociedade Civil, característicos do período da ditadura militar, teriam cedido lugar para uma ‘postura de negociação’, para ‘uma aposta na possibilidade de uma atuação conjunta , expressa paradigmaticamente na bandeira da participação da sociedade civil’ ”100. Ao mesmo tempo, diante do aprofundamento da crise de modernização, a prática de construção por mutirão já começava a ser incorporada pelo próprio aparelho estatal. Retomando o sentido da tensão entre embate e conciliação, neste processo de assimilação da construção por mutirão pelo Estado, o que se observou foi uma “verdadeira redução da ação pública, transferindo grande parte do ônus habitacional para os próprios demandatários”101. Assim, à medida em que se estabelecia como forma de atuação dos movimentos por moradia, a construção por mutirão passava também a ser institucionalizada como política pública, recomendada, inclusive, pelo Banco Mundial e outras agências internacionais. Neste processo, evidentemente, o viés de politização, que buscava estabelecer práticas de emancipação popular através da produção da moradia, foi anulado. A 100

Idem.

101

ARANTES, Pedro. “O lugar da arquitetura num ‘planeta de favelas’”. In: Opúsculo II, Porto: Dafne, março 2008.

provisão habitacional por mutirão estava sendo remodelada, prioritariamente, como “política alternativa” de baixo custo, com a “vantagem” de se beneficiar e ainda reforçar a estrutura política da troca de favores. Embora este tenha sido o tom do processo de institucionalização das práticas constituídas pelos movimentos populares, a gestão de Luiza Erundina na Prefeitura de São Paulo (1989-1992), por exemplo, conseguiu se reaproximar do sentido político proposto da produção de habitação por mutirão autogerido102. “Trata-se do processo de formação das assessorias aos movimentos que acabam por ocupar um lugar central não apenas na produção de habitação social por mutirões autogeridos, mas também como eixo de um conjunto de transformações desta forma de produção de habitação em política ao mesmo tempo oficial e alternativa, especialmente durante o governo municipal de Luiza Erundina”103.

102

“As primeiras experiências de produção de habitação por mutirões oficiais datam dos anos 80 em São Paulo, no governo municipal de Mário Covas (1983-1985). Quando o Partido dos Trabalhadores passa a governar a cidade (gestão Luiza Erundina), o Funaps (Fundo de financiamento de habitações) é rearticulado e começa a financiar parte importante da política habitacional. Várias linhas de financiamento originaram-se desse Fundo: Funaps Comunitário (mutirões horizontais autogeridos), Funaps Vertical (mutirões verticais), Funaps Favelas e Funaps Cortiços (o que menos pôde avançar). Em toda negociação entre o movimento de moradia e o poder público a contrapartida oferecida foi o trabalho que viabilizaria a produção de unidades habitacionais de melhor qualidade com baixos custos, assim como a adaptação dos projetos de arquitetura às demandas dos moradores”. RIZEK, Cibele S.; BARROS, Joana. Mutirões autogeridos: construindo e desconstruindo sociabilidades. In: FRUGOLI Jr., Heitor; et. al. As cidades e seus agentes: práticas e representações. Belo Horizonte: Puc Minas/Edusp, 2006, p. 385, nota 12.

103

O programa habitacional por mutirão e autogestão municipal é herdeiro da elaboração dos movimentos e Laboratórios de Habitação da Belas-Artes e da Unicamp. RIZEK, Cibele; BARROS, Joana; BERGAMIN, Marta. “A política de produção habitacional por mutirões autogeridos: construindo algumas questões”. Op. cit.


59

58

A partir da abertura política proporcionada pela gestão Erundina, movimentos e assessorias técnicas puderam consolidar algumas experiências, conseguindo expandir a discussão para o âmbito do governo estadual de São Paulo, resultando na criação do Programa UMM104. No entanto, mesmo com a relevância das experiências realizadas durante a gestão Erundina – e talvez, também devido a elas – “algumas das críticas contundentes tanto à assimilação do mutirão como política oficial, como às dimensões que a ele se associaram de modo cada vez mais integrado”105 vêm, de certa forma, se dissipando desde então. No decorrer da década de 1980 e 1990, pudemos verificar, portanto, que a produção habitacional por mutirão vem se desdobrando em diversos significados, que, de certa forma, coexistem tanto nas iniciativas em que movimento popular conseguiu fazer prevalecer algumas de suas principais condições políticas, como aquelas institucionalizadas e esvaziadas de conteúdo político, não ultrapassando a dimensão mais imediata. Ainda assim, tratava-se de uma forma bastante restrita de produção habitacional se comparada às formas convencionais de produção, cujo resultado pode ser observado na extensão de conjuntos habitacionais pela periferia da cidade. Com a breve apresentação dessas circunstâncias, pretendemos reconstituir o debate sobre os mutirões autogeridos à luz das questões suscitadas pelas próprias experiências realizadas 104

União dos Movimentos de Moradia. “O Programa UMM da CDHU, de responsabilidade do governo do Estado de São Paulo, foi um programa habitacional autogestionário discutido com o governo estadual (gestão Fleury, PMDB, 1991-1994) pela UMM e assessorias técnicas”. RIZEK, Cibele; BARROS, Joana; BERGAMIN, Marta. “A política de produção habitacional por mutirões autogeridos: construindo algumas questões”. Op. cit.

105

Idem.

desde então. Em detalhes, trata-se de compreender como as experiências que procuravam se contrapor, de alguma forma, à lógica capitalista, por meio da reflexão sobre a prática de produção habitacional, condicionaram os desdobramentos no debate sobre a autoconstrução revisitado na problemática dos mutirões autogeridos. Novas orientações ao debate: contribuições da prática

A experiência do mutirão autogerido, ao ser pensada como enfrentamento do problema habitacional por meio de um resgate da experiência popular, suscita uma série de contradições. Algumas configuram permanências da problemática da autoconstrução, mas que se articulam com as questões que vão surgindo ao longo das experiências e seus processos, reconfigurando, portanto, novas perspectivas para questões anteriormente formuladas. Ao lidar com esta correlação, pretendemos compreender como o mutirão autogerido, ao mesmo tempo em que propõe formas de resistência à expansão da lógica capitalista, pode também colaborar para sua reafirmação. Pudemos perceber até então que existe um sentido comum entre os diferentes argumentos, que inserem a autoconstrução funcionalmente num contexto econômico e político mais abrangente. Enquanto uma das formas de expansão do capitalismo no Brasil, a autoconstrução contribui para o rebaixamento do custo de reprodução da força de trabalho, ao mesmo tempo que seu sobretrabalho contribui para o rebaixamento do custo de urbanização. E, no debate que se seguiu às experiências de mutirão autogerido, observamos que esta questão permanece como importante substrato para outros desdobramentos mais específicos.


61

60

Ao refletir sobre o mutirão autogerido, Oliveira manteve, de uma forma geral, as mesmas questões que havia formulado sobre a autoconstrução nos anos 1970. Nesse sentido, o autor, em texto publicado em 2006106, retoma que o fato de uma parcela significativa da classe trabalhadora ter casa própria, ao mesmo tempo acarretaria e seria atribuído ao rebaixamento do custo de reprodução da força de trabalho. Assim, “a industrialização no Brasil teria sido sustentada por duas fortes vertentes: a primeira foi a vertente estatal, pela qual o Estado transferia renda de certos setores e subsidiava a implantação industrial; a segunda se deu a partir dos recursos da própria classe trabalhadora, que autoconstruía a sua habitação e com isso rebaixava o custo de reprodução”107. Desta forma, o capital se reproduziria a partir da autoconstrução, entre outros fatores, rebaixando o custo de reprodução da força de trabalho, logo o salário. Por esta perspectiva, a autoconstrução seria “estranhamente um mecanismo de acumulação primitiva, pois a casa construída daquela forma não seria capital”108. Para o capital, essa seria uma forma de eliminar dos custos de produção, o custo da habitação que existiria na formação 106

OLIVEIRA, Francisco de. “O vício da virtude: autoconstrução e acumulação capitalista no Brasil”. Op. cit. Este texto é resultado da Conferência apresentada no seminário de pesquisa “Políticas habitacionais, Produção de Moradia por Mutirão e Processos Autogestionários: Balanço Crítico de Experiências em São Paulo, Belo Horizonte e Fortaleza” realizado na FAU-USP em outubro de 2004. E os textos “O Anão Caolho” de João Marcos Lopes e “Notas ao Vício da Virtude” de Sérgio Ferro foram escritos em resposta ao primeiro.

107

OLIVEIRA, Francisco de. “O vício da virtude: autoconstrução e acumulação capitalista no Brasil”. Op. cit. Associando esta tese ao fato de o BNH ter se estruturado, em parte, a partir de recursos do FGTS, poderíamos dizer, nestes termos, que mesmo a vertente estatal teria sido sustentada, em parte, pelos recursos oriundos das classes trabalhadoras.

108

Idem.

do custo de reprodução da força de trabalho, logo de seu preço e, portanto, do lucro, através do incremento da taxa de maisvalia109. Desta forma, Oliveira parece partir de um conceito de acumulação primitiva, não baseado na expropriação da propriedade, mas na expropriação do excedente de trabalho, no caso da autoconstrução, quando o trabalho cristalizado na casa é retirado de seu próprio custo de reprodução. Em resposta à crítica de Oliveira, Ferro retomou Marx ao lembrar a diferença entre preço e valor onde, dependendo das circunstâncias (como a oferta da mercadoria força de trabalho muito maior do que a procura), o preço pode oscilar muito em relação ao valor. Desta forma, antes da autoconstrução promover o rebaixamento do valor da reprodução da força de trabalho, seria

109

A redefinição proposta por Oliveira sobre o conceito de acumulação primitiva de Marx, em sua reflexão sobre a agricultura, pode contribuir para esclarecer este aspecto de seu argumento: “(a agricultura) é um complexo de soluções cujo denominador comum reside na permanente expansão horizontal da ocupação com baixíssimos coeficientes de capitalização e até sem nenhuma capitalização prévia: numa palavra, opera como uma sorte de acumulação ‘primitiva’. O conceito, tomado de Marx, ao descrever o processo de expropriação do campesinato como uma das condições prévias para a acumulação capitalista, deve ser, para nossos fins, redefinido: em primeiro lugar, trata-se de um processo em que não se expropria a propriedade – isso também se deu em larga escala na passagem da agricultura de subsistência para a agricultura comercial de exportação -, mas se expropria o excedente que se forma pela posse transitória da terra. Em segundo lugar, a acumulação primitiva não se dá apenas na gênese do capitalismo: em certas condições específicas, principalmente quando esse capitalismo cresce por elaboração das periferias, a acumulação primitiva é estrutural e não apenas genética. Assim, tanto na abertura de fronteiras ‘externas’ como ‘internas’, o processo é idêntico: o trabalhador rural ou o morador ocupa a terra, desmata, destoca, e cultiva as lavouras temporárias chamadas de ‘subsistência’; nesse processo, ele prepara a terra para as lavouras permanentes ou para a formação de pastagens, que não são dele, mas do proprietário. Há, portanto, uma transferência de ‘trabalho morto’, de acumulação, para o valor das culturas ou atividades do proprietário, ao passo que a subtração de valor que se opera para o produtor direto reflete-se nos preços dos produtos de sua lavoura, rebaixando-os”. OLIVEIRA, Francisco de. Crítica à Razão Dualista / O ornitorrinco. Op. cit. p. 43.


63

62

o enorme contingente de exército de reserva que contribuiria para o rebaixamento do preço da reprodução da força de trabalho. “Em vez da sequência: autoconstrução, queda do valor da força de trabalho, baixa de salários (o que na teoria vale), na realidade a que opera é outra: exército de reserva de força de trabalho abundante e sempre alimentado, baixa substancial do salário, baixa ainda maior do que sobra para a moradia, pois a alimentação é prioritária, autoconstrução quase obrigatória. Sem dúvida, se atingirmos uma mais que hipotética situação de equilíbrio entre oferta e procura de força de trabalho, tal baixa de salário terá repercussões e, então sim, a autoconstrução seria um erro se o capital continuar então a comandar”110.

Neste sentido, podemos dizer que Ferro demonstra uma pequena inflexão em relação aos seus argumentos formulados em finais dos anos 1960, perspectiva da qual também se aproximou Maricato111:de que a autoconstrução seria a arquitetura possível a que estariam forçados grande parte dos trabalhadores. Por outro lado, Ferro reiterou sua posição de outrora, respondendo ao argumento de Oliveira sobre a possibilidade da casa autoconstruída constituir-se ou não em mercadoria. Oliveira continuou afirmando que “habitação popular não tem valor de troca porque é impedida por dois processos: impedida pelo próprio rebaixamento. Por ser apenas produto do trabalho do futuro morador, não cria valor, não se constitui em mercadoria. O outro obstáculo é que a renda é baixíssima em todo o conjunto das populações pobres. Portanto, não há renda para criar um mercado imobiliário”112. Contrariando este argumento, Ferro 110

FERRO, Sérgio. “Nota sobre ‘O vício da Virtude’”. In: Novos Estudos CEBRAP, n. 76, p. 229-234, novembro de 2006.

111

MARICATO, Ermínia. “Autoconstrução, a arquitetura possível”. Op. cit.

afirmou que “o autoconstrutor, inicialmente, só pensa em si e na sua família. Mas, pouco a pouco, espremido pela miséria seu valor de uso passa a contar também como valor de troca”. Reafirmando, assim, a existência de um mercado imobiliário entre as classes populares, como o aluguel de cômodos, barracos, extensões visando a locação, etc113. Assim como Ferro, Lopes também se contrapôs a Oliveira, marcando em termos diferentes a sua posição. Segundo Lopes, quando Oliveira afirmava que a casa resultante desse processo não se constituiria em mercadoria por não estar incluída no custo do capital, considerava apenas o modo de produção da autoconstrução, apenas enquanto trabalho abstrato e, por isso, a definição de que se trata de um mecanismo de acumulação primitiva. Ao fazer isso, Oliveira desconsideraria a casa enquanto produto de um trabalho. Para Lopes, “é neste ponto [do argumento de Oliveira] que desaparece o ‘salto mortal’ inevitável, a lacuna entre produto e mercadoria, o tempo e o hiato necessários à metamorfose da casa em mercadoria, calcificando uma ‘posição determinada e oposta à outra posição’ ”114. O que, por sua vez, teria contribuído para a afirmação de Oliveira de que a casa autoconstruída não é e nem poderia ser mercadoria. Praticamente todos os autores citados neste trabalho apresentaram posições e argumentos que contrariam essa hipótese de Oliveira, apresentando evidências de um mercado imobiliário formado pela autoconstrução. Porém, quando Oliveira encaminha 112

OLIVEIRA, Francisco de. “O vício da virtude: autoconstrução e acumulação capitalista no Brasil”. Op. cit.

113

FERRO, Sérgio. “Nota sobre ‘O vício da Virtude’”. Op. cit.

114

LOPES, João Marcos de Almeida. “O anão caolho”. In: Novos Estudos CEBRAP, n. 76, p. 219-227, 2006.


65

64

a discussão sobre o “setor informal”, em O vício da virtude, se aproxima dessa perspectiva de mercantilização: “[sobre as áreas onde a autoconstrução incide com mais força] no passado a gente podia dizer que a cidade ia se construindo dessa maneira e resolvendo a questão da habitação por meio da uma espécie de insuficiência do capital – insuficiência de acumulação capitalista – que ia pavimentando o chão da transformação de tudo em mercadoria”115. Nesse sentido, retomando o entendimento de Oliveira sobre o processo de expropriação do excedente de trabalho, podemos indicar formas como este processo também pode operar os mecanismos de valorização fundiária urbana. Citando a pesquisa de Bonduki e Rolnik: “será entre as periferias que a população de baixa renda se deslocará no sentido do gradiente declinante da renda diferencial, ou seja, de uma periferia para outra mais carente, reproduzindo seu espaço para reproduzir sua força de trabalho”116. A partir desta constatação, podemos lançar a hipótese de que o trabalho empreendido na construção da casa seria também a incorporação de trabalho no processo de expansão da fronteira urbana, através da criação de um valor que não é apropriado – pelo menos não integralmente – pelo trabalhador, mas por outros setores da cidade através da renda diferencial. * * * Em determinado momento de seu argumento, Oliveira chega 115

OLIVEIRA, Francisco de. “O vício da virtude: autoconstrução e acumulação capitalista no Brasil”. Op. cit. Grifo nosso.

116

BONDUKI, Nabil; ROLNIK, Raquel. “Periferia da Grande São Paulo...”. Op. cit. p. 120

a reconhecer a virtude da proposta dos mutirões autogeridos, porém, enquanto excepcionalidade, pois “exatamente porque ele é excepcional que pode ser bonito, pode ser uma boa solução arquitetônica, pode ser urbanisticamente interessante, mas não pode ser generalizável”117. O autor afirmou que a concepção do mutirão autogerido enquanto solução, no entanto, parte de duas constatações falsas: a primeira é a de que não haveria recursos estatais para resolver o problema da habitação; e a segunda estaria em pensar o mutirão como solução universalizável, pois seus pressupostos só valeriam para alguns nichos bem específicos. E, nesse sentido, a generalização da proposta foi criticada por pressupor “que a maior parte da força de trabalho esteja desempregada e possa, portanto, utilizar as horas de folga para construir a própria habitação”118. A universalização dos mutirões como solução para a habitação também era vista com reticência por Maricato, Lopes e por Jorge Oseki, cuja fala está documentada na sessão de debates registrada no texto O vício da virtude. Oseki pontuou brevemente que, quando o mutirão se torna política pública, “perde a característica de antipoder e passa a ser cooptação pura. É tutela total do Estado e os mutirões viram de fato trabalho gratuito”119. Neste ponto, é pertinente situar o processo de institucionalização da provisão habitacional por mutirão – ainda que não ampliada programaticamente -, articulada à financeirização das economias e dos orçamentos públicos. Oliveira argumenta que nesta 117

OLIVEIRA, Francisco de. “O vício da virtude: autoconstrução e acumulação capitalista no Brasil”. Op. cit.

118

Idem.

119

Idem


67

66

conjuntura, por onde o Estado se funcionaliza como máquina de arrecadação para tornar o excedente disponível ao capital, as políticas sociais teriam se transformado em antipolíticas de funcionalização da pobreza, em lugar de um projeto efetivo de mudar a distribuição da renda120. Maricato levanta a mesma questão em outros termos, a partir de um exemplo concreto: o Mutirão do Colégio Adventista, que tinha a participação de uma assessoria técnica da UNICAMP. “Se for necessário generalizar essa assessoria, o Estado terá que dispor desses técnicos. E aí se introduz uma diferença grande. Quando os técnicos são incorporados ao aparelho de Estado, a população acaba perdendo aquele pessoal que está ao lado dela, que não só lhe presta assessoria, mas que lhe dá força até na negociação com o próprio Estado”121. A autora, portanto, demonstra seu ceticismo quanto ao mutirão autogerido poder constituir-se em política institucional viável para resolver o problema da habitação, e aponta como importante fator desta inviabilidade a distância entre a máquina administrativa e as condições de vida da população. No entanto, repensa os termos dessa inviabilidade se, por outro lado, houvesse condições para estabelecer um núcleo - assim como o que as cooperativas uruguaias dispõem – “independente do aparelho de Estado, assessorando questões tecnológicas, de projeto, de divisão de trabalho, de gestão de canteiro, etc”122. Mas, ainda segundo Maricato, naquele contexto de profundas

demandas, seria necessária a articulação de diversos modelos de provisão, onde o mutirão seria uma das possibilidades. Lopes também reconheceu que as exigências e expedientes operacionais e administrativos do poder público seriam incompatíveis, por princípio, com as ações autogestionárias. Para o autor, “parece que é no momento em que a ‘ação política’ vira ‘programa’ que seu conteúdo político se esvai, transformando o que era disputa em pura ação instrumental”123. Mas, apesar disso, admitiu que ainda se busque a reprodução programática do mutirão como resposta em forma de política de universal de provisão habitacional frente aos problemas de moradia do país. Para Oliveira, atacar de fato o problema habitacional do país significaria fazê-lo pelos meios do capital, elevando o que ele chama de “nível da contradição”. O mutirão, no caso, rebaixaria o nível da contradição quando propõe o enfrentamento do problema “por meio dos pobres”124. O autor defendeu que a forma de provisão habitacional endereçasse a construção da habitação ao seu caráter de mercadoria, realizada diretamente a partir de fundos públicos, com juro zero. “Trata-se do seguinte: todo crédito ou empréstimo é um adiantamento sobre a renda futura. Se você faz um empréstimo supõe que o mutuário terá renda futura para pagar. Trata-se então de um empréstimo a custo zero. É preciso tirar renda de outros setores da sociedade e operar a redistribuição. […] Com o dinheiro do Fome Zero daria para subsidiar o custo da Caixa Econômica Federal e entregar a habitação ao mutuário com juro zero, porque isso não supõe necessariamente que

120

OLIVEIRA, Francisco de. “O Estado e a Exceção: ou o Estado de Exceção”. In: Revista Brasileira de Estudos Urbanos e Regionais, v.5, n.1, maio, 2003.

ele terá renda futura”125.

121

MARICATO, Ermínia. “Os mutirões em questão: os mutirões de São Paulo e reforma urbana” (Entrevista). In: Revista Proposta: experiências em educação popular. FASE. Ano XII. Setembro de 1987.

122

Idem.

123

LOPES, João Marcos de Almeida. “O anão caolho”. Op. cit.

124

OLIVEIRA, Francisco de. “O vício da virtude: autoconstrução e acumulação capitalista no Brasil”. Op. cit.


69

68

Quando parte da questão do déficit habitacional, Maricato se aproxima do argumento de Oliveira ao defender também a solução do problema da habitação por meio do Estado, a partir de uma política de produção em massa, empreendida pelo que ela chamou de Estado empresarial, e financiada pelo FGTS “com a construção direta pelo Estado, mas com controle e fiscalização da população”126. Oseki, porém, afirmou que se trata de uma ideia de certa forma datada, pois esta forma provisão onde o Estado financiaria a habitação popular, e na qual ele e tantos outros também já acreditaram, não teria funcionado nem nos países centrais, “o subsídio necessário para construir conjuntos habitacionais é tão grande que poucos países conseguem manter isso. Tanto que estão deixando esta questão para o mercado”127. Partindo do pressuposto de que a casa popular só contaria com o mercado dos operários e empregados, em contraposição a Oliveira, Ferro questionou se a massa de mais-valia paga pelo trabalhador-comprador da casa seria muito menor que a perda de salário promovida pela autoconstrução. Segundo Ferro, a “massa de mais-valia realizada assim, considerando as taxas escandalosas de mais-valia, poderia surpreender, mesmo se o salário se aproximasse do valor da força de trabalho sem autoconstrução ou se comparássemos com a perda de salário que a autoconstrução é acusada de causar”128.

127

Quando Maricato e Oliveira defendem a provisão habitacional pelo Estado, parecem ter em vista a possibilidade de reapropriação, por parte do trabalhador, do valor produzido por seu trabalho não pago, subvertendo, de certa forma, a lógica de mercado do momento da produção. Assim, parece ser nesse sentido que Oliveira trata da elevação do nível de contradição no enfrentamento do problema habitacional, defendendo uma luta centrada no acesso aos ganhos da produtividade por parte das classes menos privilegiadas. Para o autor, um enfrentamento pelo mutirão rebaixaria o nível da contradição, uma vez que opera e reproduz as formas de manutenção das perspectivas de acumulação. No entanto, em um sistema onde o direito à moradia se realiza prioritariamente a partir do mercado, as possibilidades de redistribuição em forma de subsídio – quando este é explorado privadamente – podem se converter em reforço à manutenção ou mesmo expansão das altas taxas de lucro dos setores relacionados à construção civil. E este impasse apenas reafirma a necessidade de um enfoque sistêmico para uma real efetividade da política de habitação, que está vinculada à “da saúde, saneamento básico, cultura, transportes, que, por sua vez, estão relacionadas com a política salarial”129. Em princípio, segundo Maricato, o mutirão não seria fórmula nem para resolver e nem para organizar o problema da habitação, pois alcançar a casa própria não seria uma demanda revolucionária. Ainda assim, enfatiza o que acredita ser fundamental nos mutirões: a recuperação de um objetivo político, a autonomia, a autogestão e a elevação do nível de consciência. Oseki entende os mutirões autogeridos como campo de

128

129

125

Idem.

126

MARICATO, Ermínia. “Os mutirões em questão: os mutirões de São Paulo e reforma urbana”. Op. cit. OLIVEIRA, Francisco de. “O vício da virtude: autoconstrução e acumulação capitalista no Brasil”. Op. cit. FERRO, Sérgio. “Nota sobre ‘O vício da Virtude’”. Op. cit.

MARICATO, E. “Autoconstrução, a arquitetura possível”. Op. cit.


71

70

pesquisa, como um lugar possível onde a arquitetura conseguiria de novo um conteúdo social forte, com potencial de construir o que Lefebvre chama de nichos de contrapoder. No entanto, não deixa de considerar o mutirão como sobretrabalho, reconhecendo a perversidade das periferias autoconstruídas. Segundo ele, enquanto campo de pesquisa, o mutirão “não bate de frente, nem de lado, nem de nada”130. No entanto, não deixa de ser central a relevância da autogestão na produção de moradias, dimensão esta que “não é inseparável do uso do trabalho dos mutirantesmoradores, como atesta a ideia de reforçar a autogestão economizando, sempre que possível e na medida do possível, o uso do trabalho gratuito”131. Quando tratou da diferenciação do objeto em si do lugar estrutural que ele ocupa, Lopes reconheceu que a autoconstrução era estruturalmente sobre-trabalho, e concorria significativamente para o rebaixamento relativo do custo de reprodução da força de trabalho, na medida em que se realizava como auto-atendimento subtraído da composição de seu salário. No entanto, o autor argumentou que “o que se imaginava nos anos 1980 era que seria possível atuar no ‘entre’, naquele intermezzo entre o objeto e o lugar estrutural que a produção da moradia ocupa, requalificando as relações entre agentes e o modo de se pensar o objeto arquitetônico moradia”132. Lopes acredita que o processo de organização autogestionária em torno da concretude da produção da própria moradia constituiria ainda uma abertura para novas

formas de organização da cidade. Pois, como arquiteto, ainda atuava nas periferias das cidades pretendendo politizar o ato de projetar. Por isso a reiterada ênfase na autogestão e não necessariamente na construção em si133. Ferro parece manter um maior grau de otimismo, mesmo em relação à Maricato e a Lopes, quanto às potencialidades dos processos autogestionários. Resgatando uma passagem do Manifesto Comunista, lembra que “os proletários não arriscam senão a perder as correntes que os aprisionam”, e a união que Marx pregava é a dos que não tem mais nada a perder, dos totalmente carentes134. E nesse ponto, Ferro se mostra otimista com a possibilidade, ainda que remota, dos mutirões se constituírem como cooperativas de produção. Assim como Marx, Ferro valoriza essas iniciativas, menos como solução que como meio para consolidar a consciência de classe, da ativa e da desempregada. Por outro lado, na chave das limitações enfrentadas durante os processos de construção das moradias, Lopes argumenta que, aos poucos, os arquitetos que trabalhavam junto aos mutirões, foram descobrindo que a atuação “em busca da transformação do objeto não significava, por decorrência simples, a transformação da estrutura. Aquele mutirante era produtor de um valor de uso e possuidor de um valor de troca ao mesmo tempo, e tinha clara consciência disso”135. Na própria organização do trabalho em canteiro, porém, a proposta de caráter autogestionário e emancipatório se depara com

130

OLIVEIRA, Francisco de. “O vício da virtude: autoconstrução e acumulação capitalista no Brasil”. Op. cit.

131

RIZEK, Cibele; BARROS, Joana; BERGAMIN, Marta. “A política de produção habitacional por mutirões autogeridos: construindo algumas questões”. Op. cit.

132

LOPES, João Marcos de Almeida. “O anão caolho”. Op. cit.

133

Idem.

134

FERRO, Sérgio. “Nota sobre ‘O vício da Virtude’”. Op. cit.

135

LOPES, João Marcos de Almeida. “O anão caolho”. Op. cit.


73

72

limitações, sobre as quais, diante da urgência da sobrevivência, a crítica parece ter emudecido136. Neste ponto, o artigo Rizek, Barros e Bergamin, no qual analisam duas experiências de construção por mutirão autogerido em São Paulo137, aponta questões que ainda foram pouco debatidas, relacionadas principalmente ao trabalho e sua organização em canteiro. Embora a proposta do mutirão autogerido seja a de promover uma reflexão sobre a reaproximação entre o trabalho físico e o trabalho intelectual, entre o trabalhador e seu trabalho, buscando diferenciar-se das práticas hegemônicas de produção do espaço, a hierarquia e a divisão social do trabalho ainda seriam aspectos bastante presentes na realidade do canteiro. Rizek, Barros e Bergamin, reconhecendo a necessidade de novas verificações empíricas para aprofundar esta questão, apontam que “o trabalho de construção por mutirão […] se estrutura de modo estritamente hierárquico, dependendo dos saberes técnicos das assessorias que determinam a estrutura, o modo, o ritmo, a divisão de tarefas a serem cumpridas, nos limites da escassez, elemento determinante do uso do trabalho dos futuros moradores”138. A reafirmação desse aspecto - para o qual se pretendia (e ainda se pretende) construir uma crítica – está necessariamente relacionada à gestão da precariedade e da necessidade, uma vez que a urgência na construção de moradia muitas vezes dita o ritmo de uma

reaproximação com a lógica de produtividade hegemônica. Por outro lado, a experimentação de uma proposta pedagógica e política de formação e subjetivação dos trabalhadores envolvidos, em muitos casos, acabava se tornando coadjuvante de um direcionamento à capacitação profissional, por meio de “programas de geração de emprego e renda”, que também foram elevados à condição de política oficial através de parcerias e cooperações de todos os tipos139. Outro relevante aspecto relacionado, também pouco debatido e tratado pela crítica até o momento, diz respeito ao trabalho não pago empregado na construção das moradias. O não reconhecimento formal e institucional deste - uma vez que seu tempo e atividade não são contabilizados para efeitos de recolhimento do INSS, tampouco para amortização ou abatimento no valor a ser pago no financiamento - se contrapõe ao reconhecimento, por parte do Estado, deste trabalho, através do cálculo que efetua para a viabilização de construção de moradias por mutirão140. Nesse sentido, a invisibilidade oficial do trabalho não pago “indica também a possibilidade de sua classificação, nomeação e mensuração para além das relações ‘comunitárias’ da associação dos moradores e destes com as assessorias técnicas, o que impede ainda sua consideração pelos cálculos da previdência e seguridade pública, que desaparecem, assim, dos custos da produção social de habitação”141.

136

RIZEK, Cibele; BARROS, Joana; BERGAMIN, Marta. “A política de produção habitacional por mutirões autogeridos: construindo algumas questões”. Op. cit.

137

A primeira experiência – o Cazuza – localiza-se em Diadema e foi construída em duas etapas: entre 1990 e 1992 e entre 1994 e 1998. A segunda experiência – a União da Juta – localiza-se no bairro de São Mateus, zona leste de São Paulo e foi construída entre 1994 e 1997.

138

RIZEK, Cibele; BARROS, Joana; BERGAMIN, Marta. “A política de produção habitacional por mutirões autogeridos: construindo algumas questões”. Op. cit.

139

RIZEK, Cibele; BARROS, Joana. “Mutirões autogeridos: construindo e desconstruindo sociabilidades”. Op. cit. p. 377-401.

140

RIZEK, Cibele; BARROS, Joana; BERGAMIN, Marta. “A política de produção habitacional por mutirões autogeridos: construindo algumas questões”. Op. cit.

141

RIZEK, Cibele; BARROS, Joana. “Mutirões autogeridos: construindo e desconstruindo sociabilidades”. Op. cit.


75

74

A escassez de mais desdobramentos no debate a respeito dessas questões, consideradas centrais – já que diretamente relacionadas à dimensão por onde justamente se pretende a experiência de emancipação popular, ou seja, a de repensar as relações e a organização do trabalho –, apenas expõe um dos impasses da contradição, reforçando a necessidade de uma reaproximação da própria crítica com o canteiro do mutirão autogerido. Retomando o sentido dos limites da proposta, numa perspectiva transversal à todas as dimensões, Maricato observou certo distanciamento dos movimentos de moradia entre si e também em relação a questões mais conjunturais. Nesse sentido, a autora questionou se a organização para a construção da moradia, que se faria também a custo de muitas lutas, não estaria impedindo um envolvimento mais direto em dimensões mais abrangentes da luta popular142. Observação esta que evidencia mais uma vez a tensão entre a urgência no atendimento da necessidade de moradia e a formação e organização política dos movimentos. Para Oliveira, o que é considerado como “solução virtuosa” estaria mais próximo de uma situação de coerção, que se instauraria mediante a necessidade de forjar uma identidade, uma comunidade ilusória, que não “plasmaria nenhuma experiência a não ser a da carência”, e que não resistiria um dia depois de concluídas as casas, pois a coesão desapareceria junto com a ilusão”143. Nos estudos de caso analisados no artigo de Rizek, Barros e Bergamin, as autoras apontaram que “não é incomum

a dissolução dos laços constituídos no período de mobilização e engajamento […], que se esfacelam em um conjunto importante de conflitos internos, em territórios isolados, violentos e murados, com problemas de inadimplência em relação aos órgãos financiadores, assim como com problemas internos que chegam a impedir a continuidade da organização dos moradores e os espaços comuns”144. Longe de se restringirem a querelas individuais ou isoladas, esses conflitos internos constituem - no âmbito das experiências de construção por mutirão autogerido -, uma das dimensões mais aparentes e imediatas do denominado processo de “desmanche” das políticas públicas e dos direitos sociais. Nesse sentido, os processos de dissolução da sociabilidade estariam relacionados tanto com “as novas formas do trabalho e do desemprego, oculto e aberto, como com as especificidades deste outro momento de financeirização do capital”145. O momento de apropriação dos espaços construídos coletivamente, diante do poder de diluição da dinâmica de acumulação representado pela metrópole, demandaria, em muitos casos, a sujeição do trabalhador às condições do mercado de trabalho, uma vez que a prestação da moradia estaria entre as dívidas mais priorizadas. Por outro lado, a condição de manutenção da sociabilidade para além do momento da construção, em muitos casos, parece ter forte inclinação “comunitarista” e “privatizante” onde, na mesma esteira do “desmanche” das políticas públicas e da desresponsabilização do Estado, “o discurso de autonomia popular em relação ao poder público revela tragicamente uma

142

MARICATO, Ermínia. “Os mutirões em questão: os mutirões de São Paulo e reforma urbana”. Op. cit.

143

OLIVEIRA, Francisco de. “O vício da virtude: autoconstrução e acumulação capitalista no Brasil”. Op. cit.

144

RIZEK, Cibele; BARROS, Joana; BERGAMIN, Marta. “A política de produção habitacional por mutirões autogeridos: construindo algumas questões”. Op. cit.

145

Idem.


76

visão de ‘desnecessidade do público’ e, em última instância, do Estado”146. A tensão constante entre a necessidade reconhecida pelos movimentos de integrar o espaço construído pelo mutirão ao espaço público da cidade, e a ausência do poder público no fortalecimento desta mediação, “monta um cenário no qual as dimensões “privatistas e privatizantes” se encrustam na vida coletiva, ganhando vulto, legitimando-se como forma possível de contraposição da população às agruras cotidianas.”147 Assim como no momento de produção, o exercício do direito à moradia expõe a tensão entre a dimensão da carência e a proposta política de produção habitacional, onde estas demandam tempos e aberturas diferentes que, na realidade das experiências, muitas vezes se incompatibilizam. A emergência deste conflito, no entanto, não deve ser ocultada mas, mais uma vez, evidenciada no centro do debate, resgatando o sentido da política e do dissenso. A partir deste breve resgate das questões suscitadas ao longo da prática historicamente constituída pelos mutirões autogeridos, procuramos evidenciar a sua condição enquanto campo de tensão entre suas limitações e potencialidades, entre as dimensões mais imediatas e as mais amplas dessas experiências. E, ao analisar uma dentre as diversas experiências que constituem este universo da produção habitacional, pretendemos percorrer a via desta tensão, numa espécie de ensaio onde essa realidade concreta possa não mais se apresentar tão definitiva.

146

Idem.

147

Idem.

77


COPROMO Jd. Piratininga, Osasco - SP 1000 unidades Construção: 1992 - 1998 Financiamento: CDHU [1]

A Associação por Moradia de Osasco – COPROMO surgiu em 1990, a partir da consolidação de algumas conquistas de outra organização, a Associação Pró-Moradia “Terra é Nossa”, constituída em 1989. Formada por moradores da favela de mesmo nome, a Associação “Terra é Nossa” se formou para viabilizar a construção de moradias em um terreno de propriedade da COHAB, remanescente da época em que sua abrangência ainda era metropolitana. Enquanto corriam as negociações com a própria COHAB para a aquisição do terreno, a Associação contratou, com recursos próprios, a assessoria técnica Usina-CTAH para a elaboração de um projeto arquitetônico e urbanístico destinado ao assentamento de 500 famílias148. A assessoria técnica chegou a elaborar os projetos executivos, geométricos, de terraplanagem e de 4 tipologias de habitação. A associação, porém, alegando não dispor de mais recursos 148

Memorial Descritivo – COPROMO, sem data. Documento do arquivo Usina-CTAH.


81

80 Região Metropolitana de São Paulo

1

para a continuidade da remuneração da Usina, entendeu que poderia prescindir do acompanhamento desta na fase de obras, executando-as em regime de autoconstrução. No entanto, a Usina, mesmo mediante o rompimento da contratação procurou garantir algumas diretrizes essenciais ao bom andamento da obra149. À medida que as obras avançavam, passavam a chamar a atenção de muitos dos que passavam pela avenida Getúlio Vargas. Curiosos, a princípio, observando a movimentação, passaram a sondar a possibilidade de também conseguir um lote para construir. Diante da procura que aumentava, “mobilizaramse inúmeras famílias a partir do simples fato de reconhecer que a organização do povo carente de terra e teto estabelecia caminhos reais para a solução do problema de moradia de cada um”150. E, na perspectiva de ampliar o movimento de luta por moradia em Osasco, a Associação começou a patrocinar o cadastramento dessas novas famílias. Dada a escala da procura, a associação começou a sondar as possibilidades de conseguir uma outra área, do outro lado da avenida, mas pertencente à mesma gleba de propriedade da COHAB. O contato com a Usina foi retomado, a fim de que ela elaborasse uma análise ocupacional desta nova área, que viabilizasse verticalização e autogestão151. Solicitou-se também à assessoria que acompanhasse os processos de negociação da gleba com a COHAB e, com demais órgãos públicos – como a Prefeitura de Osasco, Caixa Econômica Federal, CDHU -, para viabilizar o financiamento das obras. Enquanto isso, a

[1] . Situação urbana do COPROMO 1. 2. 3. 4. 5.

COPROMO FITO - Fundação Instituto Tecnológico de Osasco AACD Hospital Público Amador Aguiar SESI

6. 7. 8. 9.

Escola Estadual Walter Negrelli Av. Getúlio Vargas Rodovia Castello Branco Área da Associação Pró-Moradia “Terra é Nossa”

149

Idem.

150

Idem.

151

Idem.


83

82

própria associação atuava simultaneamente em outras frentes, promovendo os primeiros movimentos de ocupação desta outra área pretendida que, na época, estava em obras para a construção de uma pista de motocross. Quando as obras do “Terra é Nossa” já estavam em fase de finalização, a reboque da ocupação desta nova área a associação foi desmembrada, dando origem à Associação por Moradia de Osasco – COPROMO. Uma das primeiras iniciativas da ocupação consistiu em improvisar uma sede para a nova associação, onde se pudesse realizar reuniões de coordenação, além de receber novas inscrições e as contribuições das famílias cadastradas. As notícias do cadastramento se espalharam ainda mais e, já em meados de 1990, a associação contava com 16 mil famílias inscritas152. As pessoas que vinham até à Associação, o faziam por indicação de parentes, amigos ou vizinhos. Mas não só, por exemplo, um dos moradores entrevistados afirmou ter tomado conhecimento, na fila de emissão da Carteira de Trabalho, da notícia de que “um vereador estaria arrumando terreno para as pessoas”. Cadastro das famílias e procedimentos da associação

No ato da inscrição, cada família inscrita deveria contribuir com uma quantia inicial em dinheiro e depois, mensalmente, com uma quantia para a manutenção das atividades e formação de uma poupança da própria associação. Além disso, firmava-se também o compromisso de pelo menos um representante de cada família cumprir 16 horas semanais de trabalho, preferencialmente aos finais de semana. Enquanto as situações do terreno, do projeto

e das obras ainda não estavam definidas, as 16 horas semanais eram cumpridas nas participações em reuniões da associação ou, quando não havia avanços significativos que justificassem uma reunião, todos eram dispensados da obrigatoriedade de comparecer. A associação procurava manter um calendário quinzenal de reuniões gerais para discutir o andamento dos projetos e das negociações com o poder público, que contavam com a participação de todas as famílias, da coordenação, da assessoria técnica e da diretoria153. Como neste momento a sede era apenas improvisada, a associação conseguiu negociar a utilização do espaço de uma escola pública dos arredores para sediar algumas das reuniões gerais e, quando não havia outra alternativa, estas acabavam sendo realizadas, assim como as assembleias, ao ar livre, na própria área pretendida. Primeira fase de negociação - Cohab

A gleba pretendida pela associação tinha 108 mil metros quadrados154 e a análise ocupacional elaborada pela Usina previa o assentamento de 2.500 famílias155 em dois padrões de ocupação: ao longo de todo o setor voltado para a avenida Getúlio Vargas, estavam previstas habitações unifamiliares sobrepostas e; no setor restante, estava prevista a verticalização em edifícios de 5 153

Para a formação da diretoria, estavam previstas eleições a cada 2 anos na associação.

154

Esta área corresponde hoje, à área ocupada pelo próprio COPROMO e ainda, à área ocupada pela FITO (Fundação Instituto Tecnológico de Osasco), pela AACD e pelo Hospital Amador Aguiar. Ver imagem [1].

155 152

Idem.

Memorial Descritivo – COPROMO, sem data. Documento do arquivo Usina-CTAH.


85

84

pavimentos (térreo mais quatro pavimentos). Após muitos impasses nas negociações do terreno com a COHAB, a associação teria conseguido arrecadar entre seus membros recursos suficientes para pagar o preço de mercado da área. Porém, quando as negociações começaram a avançar neste sentido, o então prefeito de Osasco, Francisco Rossi, sabendo da real possibilidade da associação comprar a área, decretou a desapropriação desta para fins de interesse social156. Ou seja, a negociação da área deveria ser tratada dali em diante diretamente com a Prefeitura de Osasco e não mais envolvia uma operação de compra e venda convencional. Nessas circunstâncias, no entanto, com este dispositivo legal a própria associação se reconheceu ser legítimo seu direito àquela área, uma vez que suas demandas configuram interesse social.

a

Início das obras da sede

O decreto foi, então, determinante para a consolidação da ocupação do terreno, que prosseguiu com o início do mutirão nos trabalhos de limpeza da terra e preparação do terreno, e de construção de uma nova sede da associação, com projeto elaborado pela Usina junto à coordenação. Com o início das obras da sede, a associação e a Usina chegaram à conclusão de que esta demoraria muito a ficar pronta caso os trabalhos se concentrassem somente aos finais de semana. Assim, estabeleceram que as obras teriam andamento também ao longo da semana, com a participação não obrigatória daqueles que pudessem comparecer também durante a semana. A construção da sede prosseguiu neste 156

Segundo o relato de um dos moradores entrevistados no COPROMO, em 27 de maio de 2011.

[2]

Imagem [2] . Área pretendida inicialmente. a. Localização da primeira sede da Associação


87

86

esquema de trabalho e, mesmo com a aplicação de multas diárias e embargos recorrentes por parte da prefeitura, se transformou num instrumento de pressão e também obstáculo a eventuais medidas de expulsão. Contabilização das horas de trabalho não obrigatórias

O compromisso firmado pelas famílias diz respeito apenas à obrigatoriedade do cumprimento das 16 horas semanais de trabalho e, por isso, o trabalho além deste compromisso era considerado de outras formas. No momento da inscrição, cada família recebia um número que correspondia à sua ordem de chegada na associação, porém, não se tratava de um número definitivo. Este correspondia também a um sistema de classificação das famílias associadas e poderia mudar conforme a pontuação acumulada de cada uma. As horas de trabalho cumpridas além das 16 horas semanais, eram consideradas para a elevação da pontuação e, portanto, colaboravam para alterar o número de classificação. Neste sistema, a participação em reuniões e em manifestações também era revertida para a elevação da pontuação das famílias que pudessem comparecer mais. Embora não houvesse, a princípio, a definição de quais seriam os benefícios daqueles que estivessem melhor classificados, esse sistema de diferenciação pareceu ser bem aceito entre os membros. Segunda fase de negociação – Prefeitura de Osasco e CDHU

A combinação entre a consolidação da ocupação na área, e as recorrentes manifestações, organizadas pela associação, na prefeitura de Osasco, engendrou as condições para a abertura das

negociações. Até então a prefeitura se recusava a negociar com aqueles que considerava “invasores”, ainda mais organizados em torno da liderança representada por um vereador, na época, de oposição ao partido do prefeito157. Após diversas dificuldades impostas pela prefeitura durante as negociações, chegou-se, por fim, a um acordo onde a gleba inicialmente pretendida seria dividida igualmente entre as duas partes na negociação, Prefeitura de Osasco e Associação. No entanto, a prefeitura impôs a condição de que a sua parte deveria corresponder a todo o setor voltado para a avenida Getúlio Vargas, segundo relato158, de forma a “encobrir as coisas feias que a associação construiria”. Concomitante ao processo de negociação com a Prefeitura, a Associação buscava, em outras frentes, possíveis fontes de financiamento para a construção de mil unidades. Como o acordo reduziu pela metade a área, a análise ocupacional elaborada pela Usina precisou ser revista e, assim, manteve-se a proposta de verticalização, que já estava prevista para o setor da gleba correspondente à associação. As dificuldades enfrentadas tanto na relação com a prefeitura quanto com os órgãos que poderiam operar o financiamento se

159

Segundo o relato de um dos antigos coordenadores da Associação, parece que a mudança de partido do vereador Didi também teria contribuído para este processo de rompimento da associação com a União dos Movimentos de Moradia (UMM), cuja maioria integrava o Partido dos Trabalhadores (PT).

157

Trata-se do vereador Didi - morador da favela “Terra é Nossa” e uma das principais lideranças no contexto das duas associações referidas - que na época das negociações com a Prefeitura de Osasco ainda fazia parte do Partido dos Trabalhadores. Posteriormente, migrou para o PSDB e, segundo alguns relatos ouvidos, esta mudança teria contribuído para as negociações sobre o financiamento da obra com a CDHU, empresa do governo estadual, na época (e desde então) sob gestão do PSDB.


89

88

estenderam por aproximadamente 2 anos, até meados de 1992. Como a demora já começava a prejudicar fortemente as condições de mobilização entre famílias e, naquele momento, já havia alguma perspectiva de avanço nas negociações com a CDHU para o financiamento, decidiu-se que as obras seriam iniciadas com os recursos da poupança formada pela associação. Esta iniciativa se mostrou fundamental para manter um relativo grau de coesão e mobilização entre as famílias que permaneceram na associação que, nesta altura, devido à demora e à indefinição, já lidava com um cenário de inúmeras desistências entre as famílias. Vínculo da associação com a União dos Movimentos de Moradia - UMM

Muitas das manifestações onde a associação procurava garantir uma significativa participação de seus membros estavam relacionadas ao vínculo estabelecido entre esta e a UMM. Sempre que possível a associação, além de participar das manifestações por moradia em outras cidades – São Paulo principalmente – enviava regularmente uma comissão de representantes em reuniões com outras associações e movimentos de moradia da região metropolitana de São Paulo. A UMM, enquanto espécie de central da mobilização na região metropolitana tinha importante peso político nas negociações com o poder público, para a viabilização de projetos de unidades de habitação que seriam direcionadas e distribuídas entre as associações vinculadas a ela159. Nesse sentido, a vinculação com a UMM conferia à associação de Osasco, maior peso político e maiores possibilidades de viabilizar o seu projeto junto ao poder público. 159

Ver nota 104. p. 58.

No entanto, segundo o relato de um morador160, o peso dos movimentos e associações da zona leste de São Paulo era muito maior, e se refletia na destinação, para esta região, de grande parte das unidades negociadas entre a UMM e o governo estadual. Diante dessas circunstâncias, a associação teria entendido que enfrentaria muitas dificuldades caso continuasse tentando viabilizar o financiamento das unidades pretendidas através da UMM e, por isso, passou a buscar paralelamente seus próprios canais de negociação, sem intermediações161. Essa decisão implicou num gradativo rompimento com a UMM e, embora a associação ainda enviasse algum representante às reuniões gerais, era cada vez menor o esforço de assiduidade e participação. Organização da nova sede da associação

Após a firmação do acordo, a sede construída, que estava localizada na área que coube à prefeitura, teve que ser demolida e depois reconstruída na área correspondente à da associação. A reconstrução, nestas circunstâncias, já não contou com a mesma preocupação dispensada à sede anterior, pois o foco dali em diante era a construção das unidades habitacionais propriamente ditas. Ainda assim, a estrutura da sede manteve o seu programa básico. Além de espaço para reuniões de coordenação da obra, do espaço administrativo de controle e compra de materiais, a 160

Entrevista realizada em 27 de maio de 2011 com morador que também fazia parte da coordenação.

161

Segundo o relato de um dos antigos coordenadores da Associação, parece que a mudança de partido do vereador Didi também teria contribuído para este processo de rompimento da associação com a União dos Movimentos de Moradia (UMM), cuja maioria integrava o Partido dos Trabalhadores (PT).


91

90

sede contava com um espaço para as crianças enquanto seus pais trabalhavam na obra e também com uma cozinha. Esta, porém – segundo uma das moradoras entrevistadas – não chegava a configurar um espaço de uso coletivo, pois para seu uso costumava-se cobrar uma taxa básica referente às despesas com água e gás. Não se chegou a uma sistematização dos custos e trabalhos na cozinha para viabilizar o preparo de refeições regulares para todos que compareciam para trabalhar na obra. Esta condição, portanto, implicava em significativa restrição do uso deste espaço que, na maioria das vezes, era destinado somente ao preparo de refeições para alguns dos membros da coordenação e da assessoria técnica. Quando muito algumas pessoas a utilizavam para esquentar a comida trazida de casa, mas muitas vezes nem isso. No entanto, o relato de outra moradora pode indicar um relativo deslocamento, para o próprio canteiro, de um uso mais coletivo do espaço para refeição, onde alguns grupos de tarefas, mantinham o costume de compartilhar, internamente entre seus membros, os alimentos trazidos de casa. Mas ainda assim, o momento da refeição, que costuma criar aberturas para uma maior sociabilidade, pareceu ter, neste caso específico, sua dimensão coletiva relativamente restrita. Partidos do projeto

O projeto elaborado pela Usina, e discutido com a associação162, consiste em edifícios cuja verticalização está limitada a 4 pavimentos acima do térreo, com 4 unidades de mesma tipologia 162

Nos relatos ouvidos e nos registros consultados não conseguimos obter mais detalhes a respeito de como se realizaram as discussões entre assessoria e associação em relação ao projeto.

em cada nível. Cada unidade possui aproximadamente 63 m² de área construída e 54 m² de área útil, com o programa de 2 dormitórios, sala, cozinha, banheiro e área de serviço. A obra se realizou em 3 etapas, concluindo mil unidades no total. O partido construtivo consiste em um sistema combinado de alvenaria estrutural e circulação vertical em estrutura metálica, que seria montada antes do início das obras de alvenaria para também ser utilizada durante a construção, contribuindo para garantir a circulação segura dos trabalhadores ao longo da obra– diferente do improviso de andaimes. Além do mais garantiria uma significativa eficiência nos custos de uma estrutura que teria função tanto durante a obra como depois de sua conclusão. Outro sentido importante do partido projetual, reforçado por integrantes da própria assessoria, estaria relacionado à decisão de manter aparente a alvenaria estrutural, revelando o índice do trabalho concretizado, como evidência da mão do trabalhador no produto construído. Trabalho e organização do canteiro

O trabalho no terreno - que havia começado antes mesmo da definição da situação com a prefeitura e, portanto, em parte incorporados por ela após a partilha – começou a ser direcionado para a construção das unidades a partir do projeto que, naquele momento, já estava bem encaminhado. Neste momento, começou-se a aprofundar as discussões sobre a organização e o planejamento do trabalho em mutirão, que culminaram na definição do que se chamou “grupos de tarefa”. A formação destes grupos se deu da seguinte maneira: identificava-se primeiro, entre os membros da associação, aqueles que já tinham experiência na construção civil e tinham interesse


92

em exercer a mesma função na obra; aqueles que reunissem essas condições – e eram poucos os que reuniam – seriam os coordenadores de cada grupo especializado de tarefas como, por exemplo, o grupo de escavação, de alvenaria, de hidráulica, de elétrica, etc; depois consultavam os demais sobre quais seriam as tarefas de maior interesse para cada um, de forma a compor cada grupo. Definida esta primeira configuração dos grupos, organizavam-se pequenos cursos práticos básicos referente às tarefas a serem realizadas em obra, numa dinâmica que, segundo relato, pareceu se aproximar da relação mestre-aprendiz. Os cursos práticos já estavam em andamento quando os trabalhos de terraplanagem e fundação começaram. Para a locação dos primeiros 8 edifícios, a associação contratou os serviços de um topógrafo e, em seguida, começou o trabalho de movimentação de terra. Nesta fase, não havia recursos para a contratação de equipamentos para a terraplanagem, o que implicou num uso extensivo da mão-de-obra dos futuros moradores aos finais de semana, na base da pá e do carrinho de mão. Seguiu-se, então, a fase de implantação das estacas, depois a construção dos vigamentos de fundação e os trabalhos da empresa contratada para a montagem da estrutura de circulação vertical. Toda sexta-feira era elaborado entre os coordenadores dos grupos uma programação das tarefas a serem realizadas no final de semana onde, também, eventuais dúvidas eram esclarecidas entre coordenadores, o mestre de obras e a Usina. E, foi durante esses encontros que, assim como aconteceu no processo de construção da primeira sede, chegaram à conclusão de que a obra demoraria muito a ficar pronta caso se mantivesse os trabalhos apenas aos finais de semana, o que poderia acarretar em novas ondas de desmobilização.

93

A solução definida foi semelhante à anterior, mas com o diferencial de que a mão-de-obra que trabalharia durante a semana seria contratada, quando possível, entre os próprios membros da associação. Esta dinâmica de trabalho já havia sido adotada na contratação de um dos membros da associação como mestre de obras. Segundo seu relato, como já havia exercido esta função em empregos anteriores começou oferecendo ajuda para tocar a obra e orientar os trabalhos no canteiro. Neste ínterim, entre a construção da primeira sede e o início das obras dos edifícios, a direção da associação fez uma proposta de contratação de seus serviços como mestre de obras, ressaltando, no entanto, que não conseguiriam equiparar a remuneração com as do mercado de trabalho. Este morador, que já fazia parte da coordenação e estava desempregado na época, aceitou as condições da contratação e passou a trabalhar como mestre de obras, com trabalho remunerado nos dias de semana, e trabalho não pago aos fins de semana. Da mesma forma, ocorreu com os trabalhadores que foram contratados, entre as próprias famílias da associação, na fase de construção da primeira etapa. E, quando as possibilidades de contratação entre os associados não eram suficientes, procurava-se a contratação entre seus parentes e amigos, ou mesmo nas regiões do entorno do conjunto. Porém, ainda que a contratação tenha sido feita entre aqueles trabalhadores com experiência na construção civil, houve a necessidade de verificação dos conhecimentos em construção e de uma instrução básica para trabalhar com o sistema construtivo de alvenaria estrutural, que difere dos sistemas convencionais de viga e pilar de concreto. Este trabalho executado durante a semana era mais direcionado para agilizar e complementar os trabalhos executados aos finais de semana. Neste sentido, os operários contratados tocavam


95

94

as atividades mais específicas à execução da obra como, por exemplo, levantar as paredes estruturais, instalar os kits de hidráulica montados nos finais de semana, entre outras atividades. Durante a semana, continuavam a comparecer algumas pessoas que tinham disponibilidade além das 16 horas, mas suas horas eram contabilizadas apenas no sistema de classificação. Estas geralmente ficavam encarregadas das atividades de apoio à obra, como, por exemplo, as de montar o escoramento para as tarefas previstas para o fim de semana seguinte, desmontar escoramento do que já estava pronto, transportar e redistribuir os materiais para os lugares onde seriam utilizados, etc. E, aos finais de semana, o trabalho em mutirão ficava encarregado de fazer “a parte grossa da obra, a parte de colocar as lajes, a parte de ferragem, a de concretagem, de escavação”, como afirmou o mestre de obras. Ainda segundo o mestre de obras, havia um esforço constante para que os finais de semana não ficassem esvaziados, para quando era programado maior volume de trabalho, contando com o maior comparecimento das pessoas em canteiro. Aqueles que, eventualmente, não pudessem cumprir suas 16 horas obrigatórias aos finais de semana, deveriam providenciar alguém que pudesse trabalhar em seu lugar. Nestes casos, geralmente compareciam os parentes, mas havia casos de contratação de outras pessoas para a substituição em um dia específico. Mediante a impossibilidade destas alternativas, restava à família pagar, pelo dia da ausência, o correspondente ao valor de mercado da hora de trabalho de pedreiro. No entanto, o valor pago pelo dia ausente não se equiparava ao dia trabalhado, valia menos, implicando também em quedas na classificação geral desta família. Esta regra estipulada pressupunha o desestímulo à pratica de substituição do trabalho por dinheiro pois, se todos fizessem desta maneira não haveria como viabilizar concretamente a obra,

sendo o trabalho de cada família em esquema de mutirão essencial neste sentido. Para o mestre de obras, tratava-se de também de estimular o compromisso e a participação das pessoas na obra e na própria associação, ressaltando a importância da relação entre as famílias, em “trabalhar e decidir as coisas juntos”163. Composição da força de trabalho

Sobre os critérios de divisão do trabalho no canteiro, existe um aspecto próprio ao mutirão autogerido que muitas vezes se apresenta como elemento estrutural das relações de trabalho que se estabelecem: a diversidade dos trabalhadores, em relação a gênero, idade e experiência anterior, principalmente. A participação feminina no canteiro mutirão autogerido, quando não ultrapassa numericamente a masculina, chega muito perto de se equiparar a ela. No caso específico do COPROMO, não reunimos as condições necessárias a um levantamento mais preciso dos fatores e graus da composição feminina. No entanto, os relatos ouvidos, de certa forma, subsidiam esta hipótese. Correndo ainda o risco da imprecisão, podemos indicar a partir dos relatos apenas, que esta participação ocorreu em praticamente todos os graus de especialização do trabalho, porém, mais concentradas nas tarefas menos qualificadas, equivalente ao trabalho executado pelos serventes. Dos relatos de moradoras, percebemos que muitas eram encarregadas do transporte de materiais: “Tinha mais mulher na obra, trabalhavam mais de ajudante de pedreiro. Eles faziam do jeito deles, nós não, a gente não tinha que falar, porque a gente também não sabia, eram eles que sabiam e decidiam. Aí eu subia lata de material na corda, 163

Entrevista realizada em 27 de agosto de 2011.


97

96

carregava carrinho de massa, de areia, de cimento, só que não punham muito porque mulher não aguenta; eu subia pra servir massa para os que estavam rebocando e assentando os tijolos lá em cima (…) eles faziam do jeito deles, nós não, não tínhamos o que falar”164. Aqueles que tinham mais idade, cumpriam suas horas de trabalho nas tarefas de apoio à organização do canteiro como, por exemplo, controlando a presença daqueles que chegavam para trabalhar, guardando seus pertences pessoais, no almoxarifado, no controle de materiais, ou mesmo cuidando das crianças que eram levadas à obra quando os pais não tinham com quem deixá-las. Os que tinham mais familiaridade com rotinas administrativas, ou mesmo com informática cumpriam a jornada semanal de 16 horas, nas tarefas de compras e controle de materiais e outros procedimentos mais administrativos relativos à Associação. Mas, para estas tarefas a Associação acabou contratando trabalhadores pois, como havia expedientes todos os dias, seja dos trabalhadores contratados seja dos mutirantes, era sempre necessário ter alguém na Associação para supervisionar os trabalhos, fazer os apontamentos daqueles que compareciam, encomendar e receber materiais, etc. Ainda que o trabalho em mutirão contasse com essa diversidade de tarefas, muitas sem relação direta com o peso do trabalho em obra, a divisão do trabalho no canteiro se manteve a mesma no decorrer das obras. A possibilidade de executar outras tarefas, diversas às atribuições iniciais definidas nos grupos, acabava mais restrita a uma mudança pontual, de alguém que quisesse mudar de grupo, ou; quando a tarefa atribuída inicialmente não fosse mais necessária – como por exemplo os grupos responsáveis 164

Entrevista realizada em 06 de agosto de 2011.

pela escavação, necessários às etapas iniciais somente. Neste caso, o grupo poderia escolher uma nova atribuição, ou então os membros deste passavam a integrar outros grupos de tarefas já existentes. E, dentro desta dinâmica, o máximo de revezamento que ocorria, era entre as atividades relativas a uma mesma tarefa. No entanto, é necessário pontuar que a possibilidade de maior participação em várias etapas do trabalho se apresentou em obras posteriores da Usina como questão a ser enfrentada, com experiências onde os trabalhadores atuam em diversas atividades ao longo de todo o processo de construção. Mudanças no projeto a partir dos processos de trabalho

[3-4]

A questão da diversidade dos trabalhadores em regime de mutirão, por sua vez não é uma condicionante apenas nas formas de organização e divisão do trabalho, mas também nas decisões de projeto vinculadas aos processos de trabalho. Já apresentamos que o partido construtivo, de combinação entre estrutura metálica e alvenaria estrutural, buscava garantir as condições de segurança do trabalho, contemplando principalmente a atuação de trabalhadores não profissionais ao longo da obra. A escada metálica, pensada para ser montada antes da execução da alvenaria armada, teria duas funções principais: a de ser uma estrutura segura para a circulação vertical dos trabalhadores, e a de representar um gabarito para a orientação da construção em alvenaria estrutural. No entanto, as necessidades de manter o andamento da construção determinaram alguns descompassos entre a execução dessas duas etapas onde, embora em alguns edifícios a montagem das escadas e o levantamento da alvenaria tenham seguido o curso inicialmente pensado, em outros edifícios seguiu-se a ordem inversa.


99

98

Imagens [3-4] . Escadas instaladas antes da alvenaria

Imagens [5-6] . Alvenaria levantada antes das escadas


100

Os processos de trabalho em canteiro também determinaram outras mudanças no método construtivo, onde, de acordo com os relatos, um dos exemplos mais significativos estava relacionado à solução para as lajes. No começo, pensou-se no método mais convencional de construção de lajes, que envolve o emprego de vigotas e lajotas e concretagem na finalização. Ao todo 3 lajes inteiras foram construídas, à mão, neste esquema. Porém, segundo o mestre de obras, ao observarem o caráter sacrificante deste trabalho, que demorava um dia inteiro de extensivo uso da mão-de-obra disponível para finalizar apenas uma laje, a coordenação da associação e a Usina começaram a reavaliar as possibilidades de mudanças no método construtivo. Foi neste contexto que estabeleceu-se o contato com um fornecedor de lajes pré-fabricadas, cujos custos financeiros seriam mais altos se comparado com o sistema vigota-lajota, mas que poderiam ser compensados de outra forma, como na economia de trabalho e de tempo que esta mudança acarretaria. Deciciu-se, então, pela adoção das lajes pré-fabricadas que, no canteiro, eram içadas pela força humana, no sistema corda e carretilha, pois neste aspecto não houve margem financeira para a contratação de equipamentos. Em vez disso, priorizaram a economia de trabalho e tempo que alcançariam com a contratação de serviços de usinagem e bombeamento de concreto, igualmente necessário na contratação das lajes pré-fabricadas. Financiamento pela CDHU

Quando aproximadamente 25% da primeira etapa da obra, referente à construção de 8 edifícios, já havia sido executada com recursos da própria associação e, após sucessivas negociações realizadas concomitantemente, a CDHU, por fim, aprovou o

101

financiamento do empreendimento, porém não sem tensões e conflitos. Um dos primeiros obstáculos colocados pela CDHU na viabilização do financiamento foi o fato da obra já ter sido iniciada. A alegação principal era a de que seria muito difícil a liberação de recursos públicos para o financiamento de uma obra que não teve acompanhamento de nenhum técnico da CDHU. Antevendo esta possibilidade, a Usina e a associação se precaveram ao registrar minuciosamente todos os procedimentos, custos e utilização de materiais e outras informações necessárias em um diário de obra. A resistência por parte da CDHU também transpareceu na fala de um técnico numa das primeiras visitas de avaliação da obra, reproduzida por um dos entrevistados, de que a CDHU dificilmente financiaria “um projeto de classe média alta para pobre”. Deixando claro o viés das propostas habitacionais da própria CDHU, de que a qualidade da habitação não era uma questão a ser enfrentada na provisão para as classes mais baixas. Os impasses também diziam respeito à avaliação das pranchas de projeto apresentadas pela Usina para o andamento da obra. Segundo o relato do mestre de obras, nas reuniões entre associação, assessoria e CDHU esta costumava colocar muitos obstáculos, chegando a exigir muitas vezes que pranchas inteiras fossem refeitas. Outro fator para a situação de impasse estava relacionado à viabilidade formal e legal de uma obra financiada a partir de duas fontes de recursos distintas. E, especificamente nestas condições, a solução encontrada foi a restituição à associação, por parte da CDHU, de todo o valor gasto nas obras até aquele momento, reconfigurando a situação de um financiamento integral.


103

102

as fases subsequentes da obra poderiam ainda demorar muito, se organizaram para tocar por conta a construção de alguns dos 50 edifícios previstos em projeto. Estas famílias organizadas conseguiram construir, por conta própria, um total de 320 unidades, distribuídas em 16 edifícios. As demais 520 unidades das 1000 previstas, foram construídas em etapa posterior, com financiamento integral da CDHU desde o início.

Definição dos moradores da primeira etapa

Quando a CDHU assumiu o financiamento, estabeleceu uma série de requisitos a serem cumpridos pela associação para o andamento da primeira etapa, com 160 unidades. Dentre os requisitos, constava a exigência da entrega, por parte da associação, de uma primeira lista com a definição de 160 famílias e mais 80 suplentes. Porém, não se tratava ainda de uma lista definitiva, pois até a entrega das chaves a mudança na listagem ainda era possível. Em assembleia geral da associação, ficou decidido que a definição destes futuros moradores deveria ocorrer em sorteio, realizado de acordo com a proporção das diferentes faixas de renda das famílias. Primeiramente, foi realizada uma apuração das famílias que se enquadravam em cada uma das faixas de renda estipuladas em assembleia e, a partir da proporção verificada, eram definidas quantas unidades seriam destinadas para cada faixa. Definida esta proporção, os sorteios foram promovidos entre as famílias pertencentes a cada faixa de renda. Para a CDHU, somente a lista com os nomes era suficiente naquela ocasião, mas, a própria associação aproveitou o ensejo para definir também para qual unidade, dentre as 160, iria cada uma das famílias sorteadas. E, neste ponto, a classificação de cada família, que até então não havia sido determinante em nenhuma decisão, foi adotada para que as famílias melhor classificadas tivessem prioridade na escolha dos apartamentos. Contudo, o sorteio realizado pode ter representado mais uma condição de arrefecimento na mobilização e no envolvimento de todos os membros da associação no processo de construção. Algumas famílias, que reuniam melhores condições financeiras e não haviam sido sorteadas naquele momento, percebendo que

Quebras na mobilização

[7]

O impacto do sorteio tomou as formas de uma divisão entre as famílias, que foi sentida também nas dinâmicas de trabalho no canteiro. As 160 famílias sorteadas se voltaram mais para os trabalhos de construção de suas unidades. As 320 famílias que construíram com recursos próprios seguiram da mesma forma. E, os demais, enquanto as obras das fases subsequentes não eram iniciadas, distribuíam-se nos trabalhos do que já estava em andamento. Este evento do sorteio se insere, porém, num contexto de outras circunstâncias ao longo da obra que evidenciam a tensão relativa aos esforços de mobilização do grupo. Nessas condições, contratempos comuns em obras ou mesmo na organização se, por menor que fossem, implicassem diretamente na demora ou adiamento dos prazos previstos, poderiam gerar ondas de desmobilização e, em casos extremos, a desistência de algumas famílias – ainda que a esta altura fossem menos frequentes. Para se ter uma ideia, dos 16 mil inscritos na associação, naquela altura ainda compareciam apenas pouco mais de 2 mil165. 165

Segundo relato de um morador que trabalhou como mestre de obras, chegou-se a negociar, na mesma época, um terreno na região para o assentamento das famílias


105

104

Moradia provisória

Segundo os relatos ouvidos, uma grande parte das famílias associadas, neste ínterim entre o momento da inscrição e até depois de iniciadas as obras, viviam em habitações ou mesmo cômodos alugados em favelas da região ou em bairros precários. Os aluguéis pagos oneravam muito a capacidade financeiras dessas famílias e algumas, no decorrer das obras, tomaram a iniciativa de improvisar moradias num terreno público, lindeiro ao conjunto. Este movimento, que começou pontualmente passou a ser sistematizado pela própria associação, que se propôs a organizar a ocupação, estabelecendo parâmetros mínimos e fornecendo materiais básicos para a construção. E, mais do que organizar, a associação passou a estimular a mudança das famílias para este assentamento provisório, argumentando que o valor que seria destinado ao aluguel poderia ser economizado para formar uma poupança para a fase dos acabamentos internos de cada uma das unidades. Isso porque o contrato com a CDHU somente previa os acabamentos nas áreas comuns do conjunto. No interior da unidade e mesmo nos espaços de circulação de cada prédio, os acabamentos ficavam a cargo dos próprios moradores. Todos os moradores ouvidos chegaram a morar nas instalações provisórias e avaliaram positivamente a iniciativa da associação, principalmente por conseguirem eliminar os gastos com o aluguel que não estariam entre as mil que morariam no COPROMO. Porém, neste processo o IBAMA teria questionado a regularidade de ocupação no terreno pretendido. Provavelmente devido a esse impasse, aqueles que não estavam entre os mil acabaram desistindo aos poucos de permanecer na Associação. Coincidência ou não, ainda segundo o relato, não demorou muito para ocuparem irregularmente o sítio em questão.

[8]

antes mesmo da entrega das unidades. Pois, no caso de algumas famílias, a situação precária do alojamento pouco diferia das condições anteriores de moradia onde, ainda por cima, tinham que pagar o aluguel. No entanto, a avaliação positiva não foi apresentada sem ressalvas, onde as principais queixas se referiam à questão da violência, do tráfico de drogas, entre outros fatores relacionados. Mas parece ter havido certa coexistência, quando não coincidência, entre o grupo dos moradores e o grupo envolvido com a criminalidade. Nos relatos femininos, chamou atenção o risco representado pelo vazio da obra aos que tinham que passar por ali, à noite, para chegar ao alojamento. Um destes relatos pode nos revelar os termos de alguma coexistência: uma moradora entrevistada afirmou ter boas relações com um rapaz que estava envolvido com atividades criminosas, onde este, quando ela voltava à noite do trabalho, a acompanhava por todo o trecho do canteiro de obras até deixá-la em segurança no alojamento. Rompimento com a Usina

Quando as obras da primeira etapa já estavam bastante avançadas, as relações entre Usina e associação já se encontravam em pleno processo de desgaste, que se acentuou com o resultado das eleições para diretoria da associação, culminando pouco depois com o rompimento definitivo entre ambas. Nos diversos depoimentos ouvidos, os termos dessas divergências entre a Usina e os membros da chapa vencedora naquele ano, liderada principalmente pelo vereador Didi, não ficaram muito claros. Chegou-se a comentar que as cobranças por parte da associação teriam se tornado excessivas, exigindo a presença quase diária dos arquitetos responsáveis pela obra. Por outro lado, houve


107

106

b

c a

Imagem [7] . Modalidades de financiamento

Imagem [8] . Foto aérea do canteiro

Primeira etapa - 160 unidades (25% iniciados com recursos próprios e depois financiado integralmente pela CDHU).

a. Obras das 160 primeiras unidades b. Obras dos prédios construídos por recursos próprios c. assentamento provisório das famílias

Segunda etapa - 520 unidades (financiamento integral pela CDHU).

320 unidades construídas integralmente com os recursos próprios das famílias


109

108

menções sobre as discordâncias nos modos de conduzir os trabalhos em canteiro. Segundo o relato de um dos arquitetos responsáveis, os principais questionamentos por parte da Usina estariam relacionados às formas como o vereador, enquanto principal liderança, conduzia a dinâmica de decisões da associação às suas intenções políticas e, na querela com a Usina, não teria sido diferente. Provavelmente, ocorreu um embate de ordem política, que teria colaborado determinantemente para o rompimento. E, neste enfrentamento, permaneceu o lado que contava com mais apoio e, no caso, maior popularidade entre as famílias, a chapa vencedora das eleições e sua principal liderança. O vereador Didi era e parece ser ainda bastante popular entre as famílias da associação. Seu nome foi recorrentemente lembrado, nas falas de praticamente todos os moradores ouvidos, por sua presença constante “de bermuda e chinelo igual a todo mundo” e, não só nos momentos decisivos, como também no cotidiano da obra. Em mais de um relato, seu nome era lembrado como um protagonista do processo, atribuindo a ele as principais conquistas da associação, como se apenas a atuação dele tivesse conseguido viabilizar todo o projeto. Embora o rompimento tenha sido definitivo, não implicou necessariamente numa saída ausência completa da Usina daquele momento em diante. Inicialmente, existiu a preocupação, por parte da Usina, de indicar uma outra assessoria técnica para acompanhar as obras já em andamento e, no caso da primeira etapa, já em fase de finalização. Nesta transição, que se estendeu por alguns tempo, a obra teria andado muito pouco e só seu ritmo regular quando a nova assessoria, a Teto, de fato assumiu. No entanto, segundo o mestre de obras, a Usina – enquanto autora do projeto – era constantemente consultada quando surgiam

dúvidas no decorrer da obra. E, também neste sentido, a postura dos arquitetos da Teto, como uma mera executora do projeto, foi criticada pelo mestre de obras que, por sua vez, tinha seu trabalho diretamente afetado pelas constantes interrupções para a consulta à Usina. Entrega da primeira fase

Enquanto as obras da primeira fase estavam próximas de serem concluídas, em meados de 1996, a CDHU estipulou um novo prazo de regularização e entrega da documentação necessária pelas famílias que morariam nas primeiras 160 unidades. Nesta ocasião, somente aqueles que tivessem reunido toda a documentação exigida dentro do prazo poderiam dar entrada no processo de financiamento e receber as chaves do apartamento. Diante dessas condições, muitas famílias que estavam entre as sorteadas não conseguiram providenciar a documentação a tempo, tampouco entre os suplentes conseguiu-se completar a lista de 160 famílias, necessária à entrega da primeira etapa. Assim, muitas famílias que não haviam sido sorteadas acabaram entrando nesta listagem, justamente por conseguirem regularizar a tempo tudo o que era necessário. Esta nova definição possibilitou um rearranjo das famílias nas unidades a serem entregues, onde aqueles que constavam já na primeira lista tiveram mais uma chance de escolha dos apartamentos. Enquanto os demais que entraram perto da conclusão desta etapa não tiveram outra opção, a não ser escolher entre os apartamentos restantes deste rearranjo. Quando os apartamentos foram, enfim, entregues, chegou a existir uma certa resistência de algumas famílias em fazer a mudança imediata para o apartamento, por eles não terem ainda


110

os acabamentos mais essenciais, como os das áreas molhadas, por exemplo. Muitas queriam permanecer no alojamento até conseguirem concluir toda a fase de acabamento interno das unidades. No entanto, tratava-se de uma exigência à entrega das chaves pela CDHU e, aos moradores, não havia outra escolha senão a de mudar imediatamente. Ocupação e rupturas

Neste sentido, se a ocasião do sorteio já havia representado um freio à capacidade de mobilização do grupo, a entrega das chaves da primeira etapa representou de vez rupturas, em diversos sentidos. Primeiramente, a quase totalidade das famílias que se mudaram para as unidades concluídas na primeira etapa não continuaram mobilizadas nas obras dos edifícios restantes. Segundo relatos, quando isso chegava a acontecer, geralmente era em substituição a alguém que não poderia comparecer nos dias obrigatórios, em troca da remuneração pelas horas de trabalho. No mais, foram predominantemente aqueles não contemplados na primeira etapa que deram andamento às etapas restantes, concluídas em pouco mais de dois anos depois da entrega da primeira, entre 1998 e 1999. Esta situação de separação se realizou concretamente, em seguida à mudança dos primeiros moradores, com a instalação de grades ao redor do conjunto formado pelos 8 edifícios. Os argumentos apontados são novamente os relativos às condições de segurança, semelhantes aos apresentados na fase do alojamento provisório. Morar próximo à áreas de construção que ficam vazias durante a noite poderia representar diversos riscos e, por isso, a grade construída se tornaria uma das condições

111

de viabilidade da convivência entre os prédios em obras e os já ocupados. O imediatismo neste processo de mudança das primeiras famílias para as unidades acabou se refletindo também na forma a maioria dos moradores resolveu o impasse dos acabamentos internos. Muitas famílias, buscando rapidez e eficácia no uso de seus próprios recursos nesta fase, recorreram a soluções individuais para dar andamento às obras consideradas prioritárias a cada apartamento. A organização em mutirão mal chegou até esta fase, permanecendo, quando muito, nas obras de acabamento das áreas de circulação de cada edifício, mas apenas entre as famílias respectivas a cada um deles. No mais, em grande parte das unidades, cada família contratava, entre contatos familiares e de amigos, um profissional mais especializado para executar os serviços de acabamento à sua maneira. E, nestas condições, ocorreu de um mesmo profissional trabalhar para várias famílias, por já conseguirem ter as referências e os resultados de seus serviços. Embora não tenham ocorrido esforços para a organização do trabalho nesta fase, existiu um esforço por parte de alguns moradores de organização coletiva para a compra de materiais. Aconselhados pelo mestre de obras, mais familiarizado com a dinâmica do comércio de materiais de construção, os moradores se deram conta de que poderiam alcançar economias significativas caso se reunissem para comprar os materiais básicos como areia, cimento, etc. No caso dos materiais de revestimento de fato, como o piso, tintas, forros eram adquiridos em compras mais individuais, por questões de preferência e também de capacidade de pagamento de cada família. No âmbito deste relato, parece estar em curso um processo intermitente de desdobramentos das condições de desmobilização


112

e desagregação, que vai atravessando todas as escalas de convivência, da cidade à unidade habitacional. Atualmente, os esforços de organização coletiva de outrora ficaram restritos às questões de administração condominial que, no caso da primeira etapa do conjunto, não ultrapassa nem o perímetro das grades que separam os 8 primeiros prédios construídos. E, o que se iniciou como forma de garantir a segurança entre as duas fases distintas do projeto por meio de uma separação física, se desdobrou como uma separação administrativa, onde cada grupo define seu próprio síndico, suas regras de condomínio e sobre o recolhimento e administração dos valores da contribuição condominial pagas pelas famílias. Esta separação é inclusive percebida na fala dos próprios moradores primeira etapa em relação aos demais, constantemente denominados como “os 840” ou “o pessoal de lá”. Ou mesmo quando alguns dos entrevistados entre “os 160” se queixaram das iniciativas da CDHU em construir quadras, pista de skate e um espaço para reuniões para “o pessoal de lá”, privilegiando-os no investimento de recursos. No setor “dos 840”, em alguns edifícios os moradores decidiram instalar grades e interfones de forma a restringir o acesso daqueles que não fossem os moradores do prédio em questão, incrementando os dispositivos de separação e segregação dos espaços. Dentre os 8 prédios do primeiro núcleo, algumas famílias chegaram a esboçar a mesma iniciativa, sedimentada na idéia de que “nesse mundo que a gente vive, quanto mais seguro melhor”. No entanto, a proposta não teria sido bem aceita entre muitos moradores daquele núcleo, que argumentaram que as grades representariam um sério obstáculo à segurança contra incêndio. E, como não houve maioria ou consenso nesta decisão, nenhum dos 8 prédios, até o momento conta com estes as grades.

113

Sobre a separação do conjunto entre “os 160” e “os 840”, houve questionamento da própria CDHU, que ganhou a causa em um processo que exige a derrubada dos gradis que separam as duas partes do conjunto, mantendo-se somente as do perímetro ocupado pelas mil unidades. Dentre os moradores “dos 160” entrevistados, uma boa parte demonstrou clara resistência em cumprir a ordem judicial, justificando que ali já haviam consolidado a convivência entre as famílias e, por isso, preferiam manter uma administração própria, separada do resto do conjunto. Nesse sentido, chegaram até mesmo a insinuar que algumas pessoas “de lá” estariam envolvidas com drogas e criminalidade. Porém, o argumento apresentado para manter a separação se enfraquece quando o confrontamos com a realidade do conjunto dos 160. Não reunimos as condições necessárias para uma aferição precisa mas, segundo o relato do síndico, mais da metade das famílias que participaram da construção já não morariam mais no conjunto. Das famílias que saíram, algumas ainda se mantém proprietárias e locaram seus apartamentos, enquanto outras de fato venderam. Segundo os moradores, os apartamentos no COPROMO estariam valendo atualmente em torno de 110-125 mil reais. Alguns dos entrevistados relatam que algumas famílias, com o dinheiro da venda de seus apartamentos, teriam conseguido voltar para a terra natal, ou então teriam conseguido comprar uma “casa boa” nos bairros da região – muitos destes originários de assentamentos outrora irregulares ou favelas urbanizadas. Com o curso deste processo é, de certa forma, inevitável uma gradual substituição de população onde padrões de renda um pouco mais elevados - com condições de arcar com os custos de compra do apartamento já valorizado e mesmo com os custos


115

114

de aluguel – ganham mais espaço frente aos antigos moradores que, por sua vez, viabilizaram o conjunto. Para estes moradores, embora o valor da prestação do financiamento seja menor do que costumavam pagar no aluguel, o novo padrão de vida demanda o compromisso com novas despesas166. Manter a unidade, significa arcar formalmente com as despesas de água, energia elétrica, gás e com a contribuição condominial para a manutenção dos espaços comuns167. A urgência representada pela necessidade da moradia que, durante a construção, se constituía numa abertura a um campo de experimentação de novas práticas de organização do trabalho ainda que se organizasse a partir do trabalho não pago - , durante a ocupação impelia o morador a voltar ao trabalho, a voltar-se para a mercantilização de sua força de trabalho, necessária ao cumprimento dos compromissos financeiros da nova condição de pequenos proprietários urbanos. Constituir este relato, ainda que breve, diz muito das tensões entre proposição e realização, entre resistência e reafirmação, entre mobilização e fragmentação que se verificam tanto no debate como na aproximação deste caso específico. A contradição compõe o fundamento do processo e, para o propósito deste trabalho, será a via de constituição de nossa análise, em que confrontaremos as principais dimensões até então apresentadas. 166

Numa avaliação dos relatos ouvidos, conseguimos estimar uma média entre 80 e 120 reais na parcela do financiamento paga à CDHU. Houve um caso onde, ao dar entrada na aposentadoria, a moradora conseguiu quitar o apartamento com o saldo de seu FGTS.

167

A contribuição condominial, na parte dos 160, destina-se basicamente à manutenção dos espaços comuns e pagamento de funcionários – quatro são moradores do conjunto e se revezam na portaria, e um é contratado de fora e realiza o serviço de limpeza das áreas comuns . Não existe, ao que parece, a formalização do vínculo de trabalho, apenas o pagamento de salário e do INSS, na modalidade de autônomos.

Imagens [9-10]


117

116

Imagens [11-12]

Imagens [13-14]


119

118

Imagem [15]

Imagem [16-17]


121

120

Imagem [18-19]

Imagem [20-21]


123

A prática da contradição Ao longo dos capítulos anteriores, procuramos evidenciar como as contradições se apresentaram no debate que se constituiu sobre os mutirões autogeridos e, como se manifestaram nos processos de organização e construção do COPROMO, referência concreta de nossa abordagem crítica. Este levantamento da produção crítica e a aproximação do objeto, no entanto, apenas deixou mais nítida a diversidade de concepções abarcadas pelo universo da proposta autogestionária de construção por mutirão. Por este motivo, mais uma vez reiteramos que a pretensão do trabalho não é dar conta desse universo mas, tão somente, entender como as questões mais gerais se manifestam concretamente no caso escolhido. O que, provavelmente, nos deixará com mais perguntas do que respostas sobre o tema. No momento propositivo da experiência de provisão habitacional por mutirão autogerido, de articulação entre assessoria técnica e movimentos populares por moradia, já seria possível identificar uma chave da contradição que se apresenta de diferentes formas ao longo de todo o processo: uma forte tensão entre a dimensão emancipatória proposta e a realidade da carência das famílias envolvidas, uma vez que a proposta se


124

sustenta na mobilização daqueles que não tem acesso à moradia, tampouco aos recursos necessários para tal. Citando Rizek e Barros: “da autonomia caminha-se para uma forma consentida e vista como virtuosa de gestão da precariedade, da necessidade, da falta da casa, elemento estruturador das possibilidades de acesso à cidade”168. No caso do COPROMO, podemos dizer que as circunstâncias de formação da associação já demonstram indícios desta tensão, onde a mobilização se deu a partir de uma necessidade imediata de moradia, ou seja, a situação de carência estruturou as condições para a organização dessas pessoas em torno da luta política pela moradia. Quando não era possível resolver individualmente a questão do acesso à moradia, por meio da autoconstrução, a organização em associações e movimentos se torna um meio possível de acesso a esse direito. Esta percepção fica bastante nítida na fala de um dos moradores: “isso gratifica bastante […] ver aquelas pessoas de idade que conseguiram seu financiamento, a sua casa. Porque, por exemplo, 20 anos atrás, os que tem 60 anos hoje tinham uns 40 anos na época e, ganhando um salário mínimo, vai numa instituição financeira pra fazer um financiamento e não consegue, jamais consegue. E, via associação conseguiu, como ela, como mil conseguiram. Se fosse hoje, esse pessoal também não conseguiria.”169

Como elemento estruturador, a gestão da carência representada pela necessidade da moradia, se constitui também como fator fundamental à manutenção da coesão e mobilização das famílias 168

RIZEK, Cibele; BARROS, Joana. “Mutirões autogeridos: construindo e desconstruindo sociabilidades”. Op. cit.

169

Entrevista realizada em 06 de agosto de 2011.

125

envolvidas, uma vez que esta condição parece ser afetada praticamente na mesma medida do eventual distanciamento da perspectiva de conclusão das obras e obtenção da casa. O vínculo e, depois, o rompimento da associação do COPROMO com a União dos Movimentos de Moradia, pode ser entendido como possível desdobramento da gestão da necessidade da casa. Além disso, expõe alguns termos da preocupação de Maricato em relação ao distanciamento dos movimentos por moradia das questões mais conjunturais, uma vez que este movimento de aproximação com uma dimensão mais ampla da luta por moradia na metrópole pareceu ser ainda bastante pautado por interesses mais específicos. Uma aproximação que visava a possibilidade de dispor da estrutura de mobilização e dos canais de negociação com o poder público já estabelecidos pela UMM, procurando viabilizar o atendimento de demandas mais específicas à associação do COPROMO. Indícios de uma tendência à priorização das demandas imediatas sobre as formas de organização política com dimensões mais amplas de enfrentamento, reforçando uma condição de participação política ainda muito condicionada pela troca de favores. Tanto que os esforços de participação na UMM duraram tanto quanto as perspectivas de retribuição em forma de novas moradias. Quando a associação percebeu que as prioridades da UMM se concentravam nos movimentos da zona leste de São Paulo, passou a participar cada vez menos das reuniões gerais organizadas pela entidade. Nesse sentido, não se pode deixar de observar que as condições desse rompimento, relacionadas à urgência no atendimento da demanda de moradias, eram as mesmas que contribuíram para que o vínculo com a UMM se estabelecesse. Na chave da participação política mediada por interesses


126

de ordem mais imediata, é preciso questionar até que ponto se opera uma situação de administração da carência, onde a participação de todos, em todas as etapas do processo, se efetivaria também através de mecanismos análogos aos da troca de favores. Por exemplo, nas etapas de negociação, discussão do projeto, organização das atividades em canteiro, entre outras, a participação das famílias estava sujeita a um controle de presença que poderia interferir no sistema de classificação daquelas dentro da associação, que, por sua vez, poderia determinar vantagens ou desvantagens futuras. Por outro lado, é necessário reconhecer as possibilidades dessa participação, mesmo questionando as formas como esta se efetiva nos processos de organização em torno da produção habitacional por mutirão autogerido. Nesse sentido, os espaços onde essa participação se realizava poderiam constituir uma importante abertura a novas experiências de sociabilidade e de pertencimento, bem como a possibilidade de tratar e discutir questões que poderiam ampliar as dimensões mais imediatas de obtenção da casa própria. Além disso, a abertura para se discutir as necessidades, partidos de projeto e de construção com os próprios trabalhadores e futuros usuários poderia colaborar para uma reaproximação entre desenho e prática construtiva, para um exercício do que Ferro denominou de desenho da produção e não para a produção. Nesse sentido, o contexto de formação dessas experiências, de reflexão e crítica prática aos processos convencionais de produção habitacional, colaborou para a abertura de novos campos de pesquisa, onde a economia de recursos e a reflexão sobre novos processos de organização e divisão do trabalho poderiam resultar em efetiva qualidade projetual e construtiva da habitação. A experiência do COPROMO e também outras,

127

como a União da Juta, já demonstravam avanços nesse sentido: seja na qualidade projetual que se pôde alcançar, com unidades maiores se comparadas com as produzidas por empreitada global pela CDHU; seja na qualidade construtiva, com o emprego de materiais de melhor qualidade. Nesse contexto, é possível observar como a organização coletiva pode enfrentar a condição de escassez de recursos imposta pelos órgãos financiadores, representando um maior controle sobre a destinação dos recursos e sobre as prioridades e possibilidades do projeto. Mas ainda cabe a pergunta: até que ponto o esforço de ampliar e democratizar a dimensão participativa nos processos de trabalho, que buscavam aberturas para discutir os termos de uma reaproximação entre o trabalho intelectual e o manual, entre o trabalhador e seu trabalho, não estava submetido a uma lógica de coerção e de interesses imediatos? Uma vez que sem mobilização não há obra, sem obra não há casa e, afastando-se a perspectiva da casa, dificulta-se ainda mais as possibilidades de restituir a mobilização, o que poderia levar a um processo irreversível de dissolução. Não à toa, a questão da mobilização se apresenta como um campo de disputa constante, entre a dimensão mais imediata da carência da moradia e a tentativa de afirmação dessa proposta de provisão habitacional como realidade da ação política, como experiência de emancipação a se realizar nos trabalhos de construção civil. Na fase de construção, a dimensão da carência também se apresentou como importante condicionante das relações e da organização do trabalho em canteiro. Embora já estivesse presente na fase de ocupação da terra e construção da sede, esta tensão se tornou mais manifesta na fase de construção dos edifícios, quando a necessidade de manter a motivação e a mobilização levou à decisão de iniciar as obras com os recursos próprios da


129

128

associação, enquanto as negociações com a CDHU ainda estavam em aberto. Também estava manifesta quando, já no decorrer das obras, chegou-se à conclusão de que, somente com trabalhos aos finais de semana, a obra demoraria muito a ficar pronta, representando possíveis riscos de esvaziamento da associação ao longo do tempo. Assim, diversos foram os expedientes utilizados para manter a agilidade da obra: a contratação quase formal de mão-de-obra entre os trabalhadores membros da associação, que continuavam cumprindo seu trabalho não pago aos finais de semana; os cursos de capacitação que, de certa forma, procuravam garantir a especialização dos grupos em suas respectivas tarefas; a opção por métodos construtivos mais caros, mas que representavam economia de trabalho e de tempo na obra, etc. Para que o canteiro não se esvaziasse, foi preciso uma estratégia de organização do trabalho que, em muitos aspectos, se aproximou das práticas hegemônicas dos canteiros tradicionais, objeto de crítica da proposta de construção por mutirão autogerido. Observou-se, por exemplo, algumas circunstâncias de reposição de uma dimensão hierárquica na divisão do trabalho, determinada principalmente pelo grau de qualificação dos envolvidos. O método construtivo de alvenaria estrutural não fazia parte do repertório cotidiano da autoconstrução, logo, mesmo entre aqueles que já tinham experiência na construção civil, foi necessário um período de aprendizagem e adaptação a este método. O que, por sua vez, parece relativizar os termos de uma arquitetura próxima do saber popular pois, até que ponto o método construtivo difundido e sedimentado pela autoconstrução na cidade não seria ele próprio uma adaptação, ou mesmo reprodução, da construção civil convencional? Mesmo em relação aos grupos de tarefas, embora todos tenham

sido ouvidos sobre as atividades que cada um teria mais interesse em exercer, sua forma de organização acabava restringindo as possibilidades de revezamento entre as atividades em canteiro, indo de encontro ao sentido proposto de aproximação do trabalhador de todas as etapas do trabalho coletivo. Na medida em que as escolhas teriam priorizado uma maior produtividade do trabalho para manter a mobilização, o espaço pedagógico da experimentação e da formação política pelo trabalho parecia se reduzir, reforçando sua divisão segundo critérios de qualificação, chegando até mesmo a reproduzir certos aspectos da opressão de gênero na distribuição das tarefas. Além do depoimento que apontou esses aspectos da divisão do trabalho, em que as mulheres acabavam exercendo as atividades menos qualificadas - análogas a de serventes e ajudantes de pedreiro -, algumas falas de moradoras contribuem para percepções em que a qualificação também implicava em relações de poder: “eles que faziam do jeito deles, a gente não... a gente não falava nada não, porque a gente também não sabia. O pessoal que conhecia mais, moradores daqui mesmo que construia, que assentava os blocos, que tinham experiência nesses serviços... nós éramos ajudantes, não tem ajudante de pedreiro? Era a gente...”171 “ele [o mestre de obras] tinha que administrar o serviço, então ele tinha que dar ordem, e a gente tinha que ouvir e ficar quieto, né... ninguém podia ficar bravo

170

Como já apontamos no capítulo anterior, uma maior participação dos trabalhadores nas diversas etapas do trabalho se apresentou em obras posteriores da Usina como questão a ser enfrentada. Pois através das possibilidades de alternância entre trabalhos mais pesados e mais leves ao longo de todo o processo de construção, seria possível refletir sobre a consciência do trabalho realizado como parte do trabalho social.

171

Entrevista realizada com uma moradora em 24 de junho de 2011.


130

com ele”172

E, em resposta a esta fala o mestre de obras expõe, mais uma vez, a prioridade da demanda pela casa, da dimensão mais imediata do processo: “porque o objetivo nosso era isso aqui (apontando para os prédios ao redor), hoje estar todo mundo na sua casinha, mesmo quem gostou ou não gostou do meu jeito, da minha atitude, do meu jeito de agir...”173

Além disso, a hierarquia acabava sendo reposta até mesmo pelos regimes diferenciados de trabalho, remunerado e gratuito, sem perder de vista, no entanto, o corte de gênero. Nesse sentido, uma moradora entrevistada revela sua percepção a respeito dos processos de diferenciação pelo grau de qualificação que também se refletiam em relações de poder, objetivas e subjetivas: “Tinha mais mulher na obra, trabalhavam mais de ajudante de pedreiro... porque muitos moradores que iam morar aqui às vezes o marido trabalhava pra fora, tinham o emprego deles e as mulheres vinham trabalhar. Os homens que trabalhavam aqui também não iam trabalhar de graça, os pedreiros, os que assentavam bloco, eles tinham que ter o salário deles, porque eles tavam construindo pra todo mundo, não só pra eles...

Eu: mas a senhora também tava construindo pra todo mundo. Ah, mas com a gente era diferente, a gente não era os profissionais... então a gente não ganhava nada, só tinha os nossos pontos.”174 172

Depoimento de uma moradora, durante a entrevista realizada em 27 maio de 2011.

173

Entrevista realizada em 27 de maio de 2011.

174

Entrevista realizada com uma moradora em 24 de junho de 2011.

131

Estas aproximações da questão de gênero ajudam a qualificar alguns dos impasses enfrentados pela proposta de mutirão autogerido. São processos de subjetivação que são, em certa medida, inalcançáveis para a duração e a dinâmica do debate no período de construção onde, de alguma forma, poderia haver a abertura para o enfrentamento dessas questões. O aprofundamento de uma análise nesse sentido, no entanto, demandaria um esforço direcionado para esta questão, com graus de complexidade incompatíveis com o tempo disponível para esta pesquisa. Por outro lado, essa mesma composição diversificada da força de trabalho teria contribuído com alguns limites à priorização da produtividade do trabalho frente a outras questões. Dadas as especificidades do canteiro autogerido, com atividades de apoio não encontradas no canteiro tradicional – como a manutenção de um espaço para abrigar os filhos enquanto os pais trabalhavam na construção, por exemplo -, mesmo as pessoas que não reuniam condições para aguentar a intensidade dos trabalhos na construção poderiam compor a força de trabalho no mutirão autogerido, exercendo atividades compatíveis com suas condições físicas. É necessário, portanto, pontuar essa diferença em relação à práticas hegemônicas de produção do espaço, que descarta seus trabalhadores tão logo apresentem restrições ao pleno emprego de suas capacidades físicas no trabalho. A impossibilidade de algumas pessoas em acompanhar a rotina do trabalho de construção no canteiro autogerido, seja por questões de idade ou enfermidade, não foi fator de exclusão do acesso ao produto do trabalho coletivo. Nesse sentido, o trabalho era reconhecido em seu caráter útil à coletividade, e não em seu caráter abstrato de puro dispêndio de energia. Retomando a dinâmica do canteiro segundo critérios de produtividade do trabalho, consideramos, por exemplo, o


133

132

descompasso que ocorreu entre a montagem das estruturas metálicas de circulação vertical e a alvenaria estrutural, como mais um importante indício da contradição que aproxima o canteiro autogerido do canteiro tradicional. Para o ritmo considerado necessário ao andamento da obra, em alguns momentos não houve margem de tempo para compatibilizar esses processos, resultando nos casos onde a alvenaria subiu antes da montagem das escadas. Nesse sentido, a condição da carência, que tornava urgente o andamento das obras, se sobrepunha ao partido construtivo, que priorizava este sistema como garantia à segurança do trabalho. Manter a mobilização das famílias nas obras significava também, ao mesmo tempo, aproximações da escala de produtividade do canteiro tradicional, bem como a sobreposição desta, em alguns momentos, à própria questão da segurança do trabalho. A mudança para as lajes pré-fabricadas pode ser entendida também pela perspectiva da produtividade, mas marcando outras diferenças fundamentais em relação à lógica dos canteiros tradicionais. Durante a construção de duas lajes pelo método tradicional de vigota e lajota, verificou-se que haveria a necessidade de mobilizar o trabalho de muitas pessoas de uma vez para uma mesma tarefa - além de ser um processo de trabalho bastante extenuante a todos os envolvidos. Com isso, chegouse à conclusão de que se continuassem a construir as lajes do mesmo modo, além do intenso desgaste, corriam ainda o risco de reduzir sensivelmente o andamento das obras. Assim, a decisão pelas lajes pré-fabricadas, mesmo representando custos maiores, se baseou na perspectiva da economia de tempo e de trabalho. A economia de trabalho - quando não representa economia de tempo, ou quando a manutenção do uso extensivo de mão de obra não ameaça as altas taxas de lucro - não é, necessariamente, uma

questão a ser enfrentada no canteiro tradicional, principalmente quando este tem à sua disposição um abundante exército de reserva que colabora para o rebaixamento do preço da força de trabalho. “Porque se arriscariam os capitalistas se, com o know-how adquirido, hábitos depositados, equipamento amortizado, administração e operários com comportamento conhecido e controlado produzem e vendem?”175

No caso do mutirão autogerido, as decisões sobre economia de tempo e trabalho não são orientadas pela taxa de maisvalor. Diferente do canteiro tradicional, os processos que economizam trabalho e tempo, embora geralmente mais caros, seriam bastante desejáveis na produção habitacional por mutirão autogerido, mesmo diante do orçamento restrito disponibilizado pela CDHU. Neste contexto, portanto, é possível compreender como a proposta de “mais autogestão e menos mutirão” tem sido uma questão central nas experiências que se sucederam. A questão que se apresenta então, é: como, no limite da escassez de recursos, pode ser possível trabalhar com uma perspectiva de experimentação de processos que economizam tempo e trabalho? E como essa perspectiva pode se articular com a proposta político-pedagógica, que se baseia na experimentação de novas formas de organização do trabalho? Essa tensão constante, e reiterada a cada etapa, entre os movimentos de aproximação e afastamento da lógica produtiva capitalista, que também se refletiu nos graus de mobilização ao longo de todo o processo, demonstra como o mutirão autogerido pode encontrar suas limitações nas mesmas condições em que 175

FERRO, Sérgio. “A produção da casa no Brasil” (1969). Op. cit.


135

134

ele próprio se estrutura, na mobilização que se viabiliza através da carência. As possibilidades de reaproximação e apropriação do trabalho em sua dimensão útil e social estão, no contexto dos mutirões autogeridos, condicionadas à necessidade urgente daquele que realiza o trabalho, podendo acirrar incompatibilidades com o tempo da experimentação e da crítica prática do trabalho. Mas é a partir desta fissura que se pretende questionar o trabalho em seu caráter abstrato, logo, o trabalho produtor de valor de troca, genérico em sua medida. Mas ao mesmo tempo em que esta parece ser a fissura de uma abertura possível à discussão do trabalho pode se revelar como condição de obscurecimento da crítica necessária ao trabalho do canteiro autogerido. Ao propor a crítica ao sistema capitalista, o mutirão autogerido acaba atuando dentro da faixa que o próprio sistema atribuiu à autoconstrução, reproduzindo seu expediente que compõe com a acumulação: o trabalho não pago, envolvido no processo de rebaixamento de seu próprio custo de reprodução. O mutirão autogerido no COPROMO, tendo como um de seus pressupostos o trabalho não pago, acabou deslocando para a exceção as condições do trabalho remunerado. No entanto, era o trabalho não pago que seguia invisibilizado em meio aos processos de construção, onde o trabalhador, afastado das “condições negativas que encontra enquanto assalariado, perde as conquistas que estas condições lhe permitem”176. Nesse sentido, o trabalho não pago não deixava rastros para além das dimensões comunitárias, seu reconhecimento oficial estava praticamente circunscrito ao contexto de organização interna da associação. O trabalho não pago realizado não contava como tempo de contribuição à previdência social, tampouco era 176

Idem.

considerado no cálculo das prestações devidas à CDHU, apesar de ser contabilizado como fator de redução dos investimentos em provisão de habitação por mutirão. “O círculo de não reconhecimento do caráter contratual e contabilizável do trabalho mutirante se completa no contrato individual de financiamento que, em nenhuma cláusula, traz qualquer referência a esse trabalho na obra, nem mesmo no pagamento das parcelas do financiamento.” 177

A insatisfação de uma moradora revela a percepção dessa questão: “A gente não devia mais estar pagando esses apartamentos, porque praticamente fomos nós que fizemos. Eles cobram 25 anos, e eu falo sem medo de errar, 25 anos e muitas coisas que o CDHU precisa fazer aqui, e eles não estão nem aí.”178

Nesse sentido, a proposta de manter a alvenaria aparente, revelando os vestígios do trabalho vivo, se apresenta como um fator de contradição em meio aos processos em que este mesmo trabalho se torna invisibilizado. O sentido da contradição também se apresenta na força de trabalho que é contratada e remunerada para realizar, durante a semana, o mesmo trabalho, não pago, que realizam aos finais de semana. Desta forma, o trabalho passava a ser contabilizado e enunciado publicamente à medida em que passava de regra à exceção do mutirão autogerido, quando fugia ao escopo da carga semanal obrigatória de 16 horas. Outro aspecto que se evidencia na contradição, diz respeito 177

RIZEK, Cibele; BARROS, Joana. “Mutirões autogeridos: construindo e desconstruindo sociabilidades”. Op. cit.

178

Entrevista realizada com uma moradora em 24 de junho de 2011.


136

às circunstâncias em que o trabalho não pago não pôde ser realizado. A impossibilidade do cumprimento eventual das horas obrigatórias, implicava a restituição, de alguma forma, do trabalho não realizado. A solução encontrada foi a de que a família ausente deveria compensar monetariamente as horas de trabalho não cumpridas, de acordo com padrões sociais de remuneração daquela atividade: o valor de mercado da hora de trabalho de um pedreiro. No entanto, se o valor devido era equivalente às horas de trabalho não cumpridas, não o era em seu reconhecimento pela associação, pois a hora de trabalho cumprida monetariamente valia menos que a hora trabalhada de fato. E, como tentativa de acertar este descompasso, a família que tivesse que recorrer a esta forma de cumprimento das horas era penalizada com quedas na sua classificação. Pois a constatação era de que se todos só pagassem não haveria ninguém para construir. A respeito dessas condições, cabe questionar se não é, no mínimo, controverso o fato de um trabalho que não existiu, que não foi realizado, poder ser visibilizado por um padrão monetário, ao passo que o próprio trabalho vivo e regular em canteiro não se manifesta em qualquer figura social fora dele. Mas, por outro lado, parece haver neste processo a percepção de uma certa centralidade do trabalho, de um reconhecimento efetivo da natureza do trabalho vivo e útil. O que não quer dizer que este processo de reconhecimento do trabalho ocorra sem tensões com aquilo que pode vir a ser mercadoria. Embora a finalidade deste trabalho não seja a produção de uma mercadoria mas, antes de tudo, de um valor de uso, trata-se de um valor de uso social e de um produto que é socialmente generalizado como mercadoria. A pressão para a metamorfose do valor de uso ‘casa’ em mercadoria é constante e reiterada pela dinâmica de urbanização e pela situação do trabalhador na

137

cidade. A este, diante da instabilidade das condições do trabalho assalariado e de dificuldades, ou mesmo impossibilidade, da venda de sua força de trabalho, resta enfrentar essas questões enquanto pequeno proprietário urbano, na mercantilização (aluguel ou venda) de sua propriedade. Desta forma, num regime tradicional de propriedade privada, partes do trabalho coletivo passam a ser apropriadas individualmente, deflagrando a contradição entre trabalho social e propriedade privada. Mas aquela que era a produção coletiva de um bem comum, ainda que refletido em bens individuais – a relação entre conjunto e unidade -, para ser mantida, demandava um grau de urgência que impelia o trabalhador, novamente, à solução individual de sujeição às condições do trabalho assalariado. Uma condição coletiva que é também enfrentada individualmente. Esse processo repõe a tensão da quase incompatibilidade entre o tempo da necessidade e carência, e o tempo da formação política e crítica. O que se procurava experimentar como alternativa ao modo de produção capitalista e, até certo ponto apartado deste, tem pouco espaço para se consolidar, pois logo os trabalhadores teriam que voltar às condições produtivas de mercantilização de sua força de trabalho, para conseguir manter o que, a custo de muitas lutas, foi conquistado. Uma pesquisa que teria sido importante neste sentido seria a de verificar se a experiência dessas práticas de organização do trabalho, que se pretendiam críticas ao sistema capitalista, puderam ter algum efeito nas formas como esses trabalhadores voltavam a enfrentar individualmente as condições do trabalho assalariado, isto é, se havia algum impacto na percepção deste trabalhador em relação à organização a partir do espaço do trabalho assalariado. As experiências de organização em canteiro autogerido conseguiam ultrapassar as fronteiras daqueles mesmos espaços construídos por elas, ou o período de


139

138

mobilização em torno da construção dos espaços de moradia? A experiência do COPROMO demonstra como a necessidade urgente da casa se tornava, dependendo das circunstâncias, ora condição à mobilização, ora à desmobilização. A necessidade de eliminar os custos do aluguel, que onerava muito a capacidade de consumo de boa parte das famílias envolvidas, levou à construção do alojamento provisório, no terreno lindeiro ao conjunto, enquanto as obras ainda estavam em andamento. Apesar dos relatos não terem se aprofundado tanto sobre este momento da ocupação, a organização e construção do alojamento provisório pareceu ter significado, apesar de todas as ambigüidades, um reforço à sociabilidade que se constituía em canteiro. Até o momento do sorteio dos moradores da primeira etapa, todos tinham iguais possibilidades do atendimento de suas demandas. No entanto, depois do sorteio, apenas 160 dentre as mil famílias teriam a perspectiva concreta de serem atendidas, as demais ficaram sem a definição de quando conseguiriam, finalmente, morar no conjunto. Neste momento, ocorreu um primeiro movimento mais forte de atomização em grupos, demonstrando a urgência no atendimento da demanda pela casa, que agora forçava a desmobilização. O grupo dos 160, o grupo de 320 famílias que construiu com recursos próprios e o grupo restante praticamente se fecharam em si, em seus núcleos, numa tentativa de não perder de vista a finalidade da obra, a produção da casa. A tendência à atomização dos grupos pareceu ter se aprofundado após os eventos que marcaram a entrega e ocupação dos edifícios da primeira etapa, onde aos poucos cada família se fechava em torno de sua unidade tão somente. O sentido da política voltava a se fragilizar com estas quebras de mobilização, em que a concretização do trabalho na moradia se sobrepunha às

outras dimensões da autogestão, pois tão logo os primeiros 160 ocuparam suas respectivas unidades, já deixaram de participar da continuidade das demais etapas, chegando até a estabelecer fisicamente esta separação. Mais uma vez, os compromissos financeiros assumidos com o financiamento da casa dentro da estrita capacidade financeira dessas famílias, associados ao regime jurídico de propriedade privada acabam tendo papel central nos processos de fragmentação e atomização das famílias. A construção coletiva dos espaços dava lugar à individualização dos trabalhos na fase dos acabamentos internos, e a organização coletiva que ainda permanecia já não era mais em função do trabalho coletivo, mas mediada pelo conceito de propriedade dos espaços. Isoladamente, cada família buscava seus meios de conservar a sua propriedade privada de um trabalho coletivo e, para isso, se sujeitavam novamente às condições impostas pelas novas formas do trabalho e do desemprego. E, nestas mesmas condições, a obra construída coletivamente passa a ser apropriada individualmente como mercadoria, último recurso de mobilização financeira em tempos de dificuldade. Nesse sentido, cabe perguntar sobre as implicações subjetivas desta nova condição de pequeno proprietário urbano alcançada pelo trabalhador. Retomando Ferro: “o operário que teve a oportunidade de acumulá-los (os valores de uso) realiza o pressuposto de suas aspirações de ascensão à ‘categoria dos pequenos proprietários urbanos’: sua personalidade básica capitalista não negadora do sistema, mas unicamente do status proletário”179. Como estas questões se enfrentam com as possibilidades enunciadas pelo próprio Ferro, anos depois, de 179

FERRO, Sérgio. “A produção da casa no Brasil” (1969). Op. cit.


140

que as experiências de mutirão autogerido poderiam constituir um meio “para consolidar a consciência de classe, da ativa e da desempregada”? Nesse sentido, parece que a lógica capitalista consegue disputar e reconquistar, em algumas dimensões, estes territórios constituídos com a proposta de organização popular para a sua crítica. O que fundamenta a necessidade de retomar um caminho da crítica que, segundo Rizek e Barros, teria sido deslocada “da articulação de formas de produção arcaicas e modernas, sua problematização a partir do lugar do trabalho, e nos modos de acumulação que fazem da cidade seu território privilegiado”180. Assim como a questão da habitação não é isolável das demais condições da classe trabalhadora também não o é da cidade. Cabe então retomar a questão a partir de uma perspectiva urbana da proposta de produção habitacional por mutirão autogerido e seus desdobramentos na dinâmica de apropriação e expropriação do trabalho incorporado na cidade. O trabalhador, seja no canteiro autogerido ou no canteiro da autoconstrução, colabora para o processo de incorporação de mais trabalho em determinadas regiões da cidade, pois a construção de sua moradia acarreta uma série de demandas por serviços básicos (alguns possíveis também de serem empreendidos individualmente, como os pequenos comércios) que, no decorrer do tempo, contribuem para a valorização dos arredores. No entanto, os processos de valorização, através da incorporação de mais trabalho e do rebaixamento do custo de urbanização, não se restringem apenas às suas regiões, uma vez que, através da renda urbana diferencial, contribuem para estabelecer novas referências de valor a 180

RIZEK, Cibele; BARROS, Joana. “Mutirões autogeridos: construindo e desconstruindo sociabilidades”. Op. cit.

141

praticamente todo o conjunto da cidade. E assim, constitui-se uma das bases para a especulação fundiária em territórios onde não existem controles à apropriação privada do trabalho social incorporado na cidade. O COPROMO está situado na região norte de Osasco, que passou a concentrar, a partir de meados da década de 1970, grande parte dos assentamentos precários da cidade. Mas, sua localização, ao lado de uma importante via estrutural de ligação entre a zona norte, o centro de Osasco e a Rodovia Castello Branco, e próximo a importantes equipamentos institucionais vem passando por um processo de valorização. Assim como as áreas das favelas próximas que começaram a receber investimentos para obras de urbanização, algumas, inclusive, fazendo parte do Programa de Aceleração do Crescimento, do governo federal. Esses processos de valorização da região associados às pressões econômicas que costumam recair sobre a classe trabalhadora em geral, contribuíram para estabelecer um significativo índice de substituição da população dos moradores do COPROMO. A proporção de novos moradores – que já teriam um padrão econômico mais alto, uma vez que podiam pagar pelo trabalho incorporado dos moradores anteriores, e que estavam presentes na fase de mobilização e construção do conjunto -, atualmente já estaria estimada em mais de 50%. Nessas condições, quais seriam as possibilidades e as formas de permanência da organização coletiva neste processo de fragmentação e dissolução das redes de sociabilidade constituídas no momento da produção das moradias? No COPROMO, observou-se que os resquícios de uma organização mais coletiva estavam praticamente restritos à manutenção dos espaços comuns que, em muitos momentos, permanece apenas como espaço intersticial entre as unidades, com poucos momentos de


142

uso efetivamente coletivo. Este processo pode ser entendido a partir do contexto apresentado por Rizek, Barros e Bergamin, onde aquele grupo de pessoas, diante da incapacidade do Estado em garantir as demandas mínimas e procurando se proteger das agruras cotidianas, teria como recurso mais imediato e próximo se fechar numa lógica “comunitarista”181. A justificativa de promover um ambiente seguro, apartado dos “perigos” da cidade e que deveria ser compatível com a nova condição de proprietários urbanos, afastava as possibilidades de uma sociabilidade urbana mais direta, o que acaba reforçando o aspecto privatizante dos espaços comuns, com as demarcações, os cerceamentos representados pelos portões, grades e muros. Um esforço de afastamento do conjunto em relação à sociabilidade urbana que acaba apenas reforçando os termos de uma aproximação entre o conjunto e a lógica da cidade capitalista – seja no modelo de privatização dos espaços, seja na condição que empurra novamente esses trabalhadores a uma situação urbana de super-exploração do trabalho. No caso do COPROMO, estes processos acabam sendo amparados pela própria forma deste ambiente construído. Embora observamos que tenha havido avanços significativos na qualidade da construção, dos ambientes internos construídos, estes não pareceram se estender, na mesma medida, às possibilidades de evidenciar a dimensão urbana desses espaços. Assim, cabe a questão: de que forma a proposta política do mutirão autogerido, a experiência de novas formas de produção e política, podem permanecer após o momento da produção, se a maneira como esta proposta se realizou no espaço da cidade permanece respon181

RIZEK, Cibele; BARROS, Joana; BERGAMIN, Marta. “A política de produção habitacional por mutirões autogeridos: construindo algumas questões”. Op. cit.

143

dendo da mesma forma que a cidade se apresenta hoje? Como a cidade aparece no projeto ou como ela se ausenta dele? Mesmo diante de todas as questões enfrentadas e os avanços da proposta, o conjunto acaba reproduzindo formalmente algumas das condições que pretende criticar, o edifício isolado no lote e separado da rua, da cidade. Formalmente, o conjunto está voltado pra si, e não há espaço físico constituído a uma dimensão efetivamente urbana. Não seria importante pensar nas formas como esta construção política se apresenta concretamente no espaço ao longo do tempo? Se a produção é política, é necessária a busca de uma forma que explicite e que seja produto, de fato, dessa política. Do produto que revela o trabalho para o produto que seja a própria forma política deste trabalho. E, neste sentido, a dimensão urbana surge como substrato fundamental a este campo de pesquisa. Pois acreditamos que o espaço urbano ainda pode ser retomado como um território de reconhecimento e de luta de classes, mesmo diante de uma conjuntura de novas dinâmicas do trabalho que contribuem para a aparente dissolução desse conflito, mesmo em meio aos trabalhadores que incorporam valores que lhe seriam alheios, como os valores de pequeno proprietário urbano. “Quando as esperanças do desenvolvimentismo chegaram ao fim, ao longo dos anos 70, as perspectivas de democratização brasileira começaram a se desenhar pela constituição de uma sociedade civil que se fundava não a partir do associativismo civil, nem de ONGs investidas da roupagem virtuosa da capacitação técnica e política, mas da presença surpreendente de uma novidade que tinha no movimento sindical seu principal protagonista, problematizando no centro desta cena pública as figuras e as formas do trabalho e a presença dos trabalhadores. O que marca a discussão dos anos 90, paradoxalmente, é o desaparecimento


144

destas formas e destas figuras do trabalho, substituídas pelo ativismo e associativismo, pelo ‘comunitarismo’”182. Desta forma, reafirmamos a necessidade de retomar o enfrentamento da questão da democratização brasileira a partir do trabalho, procurando pontuar brevemente alguns aspectos que o diferenciam do enfrentamento a partir da luta pela moradia. A organização a partir do trabalho teria como substrato da mobilização as condições do próprio trabalho, seu espaço e suas relações, presente no cotidiano de todo aquele conjunto de trabalhadores. As demandas e as lutas – ainda que não contem com a adesão de todos os trabalhadores têm forte dimensão e abrangência coletiva, e as conquistas nessas disputas acabam se estendendo a todo aquele conjunto de trabalhadores, geralmente sem exceções. Porém hoje, mesmo essa dimensão coletiva da luta encontra sérias limitações impostas pelos processos de crescente terceirização e precarização do trabalho, que impõem diferenciações, separações, cerceamentos, tratamentos, remunerações e direitos distintos entre trabalhadores que trabalham no mesmo lugar, muitas vezes entre aqueles que realizam os mesmos trabalhos. Se o ambiente e as relações de trabalho constituem um espaço importante e possível ao reconhecimento desses trabalhadores enquanto parte da mesma classe, esses processos atuam na dissolução dessas possibilidades. E se têm contribuído efetivamente nesse sentido, o que dirá no espaço da cidade, articulado a outros tantos mecanismos de dissolução da sociabilidade? No caso dos movimentos de moradia, trata-se também de uma luta organizada coletivamente, cujo substrato é a ausência do direito à moradia. É na carência que esta mobilização se baseia, 182

Idem.

145

onde as conquistas efetivas acabam sendo restritas, a cada tempo, a determinados grupos, a determinados movimentos, no limite da unidade habitacional unifamiliar. Neste aspecto, as restrições não parecem se diferenciar tanto daquelas impostas pelos processos de terceirização, que também delimitam a abrangência das conquistas a determinadas categorias. Portanto, trata-se de uma sociabilidade estruturada em vínculos muito frágeis que, em muitos casos, costumam durar até o atendimento das necessidades de moradia, às vezes nem isso. O limite do reconhecimento enquanto classe parece estar expresso no limite da propriedade privada da moradia. Mas, a cidade estruturada pelos processos de especulação fundiária e segregação espacial, produz regiões inteiras de população praticamente homogênea, formada por trabalhadores empregados e desempregados, onde o espaço construído também poderia constituir um espaço do reconhecimento desses trabalhadores enquanto classe. Nos anos 1970 e 1980 estes espaços formaram grandes campos de experiência da organização e mobilização popular. Mas hoje, é bastante comum o limite da própria casa, ainda que precária, representar o limite ao reconhecimento, mais uma vez o conflito entre o reconhecimento dese trabalhador enquanto tal e enquanto pequeno proprietário urbano. As condições que enfrentam enquanto trabalhadores são as mesmas que os impelem à situação de proprietários. Nesse sentido, parece ser urgente retomar o trabalho, nas formas do emprego e do desemprego, como o lugar da disputa, do enfrentamento, e do rompimento dos cerceamentos da precarização e terceirização, articulado ainda aos conflitos urbanos que podem questionar a lógica da acumulação e privatização do trabalho social incorporado no espaço da cidade, ainda que nem sempre questionem a propriedade privada.


146

Por fim, queremos deixar formuladas as perguntas: por onde é possível hoje, abrir espaço ao reconhecimento das novas formas em que a luta de classes se opera, ao reconhecimento da opressão sistêmica em vez dos processos de inclusão pelo consumo? Como abrir espaços para que a luta de classes seja não apenas visível, mas deflagrada e enfrentada, e não dissimulada, ocultada e eliminada (em seu sentido mais violento)?

147


149

Posfácio Um risco que corremos ao escolher o COPROMO como referencial concreto das questões do debate, foi o de provavelmente não contemplar os desdobramentos e questões enfrentadas pelas experiências mais recentes de produção habitacional por mutirão. No entanto, as experiências recentes ainda não podem apresentar os processos de continuidade e ruptura do momento de ocupação em contraposição ao momento da produção. Por isso, como forma de reconhecer e indicar as novas questões e enfrentamentos das experiências mais recentes, reproduziremos abaixo um trecho do material divulgado pela própria Usina-CTAH: O projeto que estamos realizando com o movimento e as famílias beneficiárias pretende indicar uma outra forma de fazer a cidade, que poderia ser prevalente num contexto de implementação da Reforma Urbana no Brasil. Contudo, iniciativas e experiências como essa ainda são absolutamente minoritárias. Sistematizamos a seguir quais os nossos pressupostos e características almejadas pelo projeto e no que se diferenciam dos conjuntos tradicionais executados pelo Estado e construtoras, com o objetivo de que em algum momento pudessem nortear a política pública de habitação:


151

150

a) Integração de usos múltiplos complementares à moradia, entre eles, áreas comunitárias, áreas de lazer, espaços para cultura, educação, geração de trabalho e renda etc. Com isso, favorecer uma experiência integrada em que várias esferas

e do projeto em que colabora. Caracterizar um espaço de trabalho em que os coletivos de produtores atuem de forma diferenciada do que quando submetidos à empreitada privada.

da vida passam a ser reunidas e articuladas entre si, potencializando seu papel

g) Compreender o mutirão como espaço de trabalho coletivo, político e festivo, que

transformador.

deve ocorrer nos momentos em que a obra exige grandes frentes de mobilização

b) Integração do empreendimento ao tecido urbano do entorno, com térreos de

de esforços. Fortalecer o mutirão como momento excepcional de aprendizado e

uso múltiplo abertos para as calçadas e para a vizinhança, ao invés de conjuntos

organização popular e reduzir sua presença cotidiana, prolongada e desgastante

murados e periféricos. Terrenos inseridos na malha urbana existente e infra-

ao longo do período de obra. Os mutirões devem ser dias especiais, de grande

estruturada, permitem uma integração interessante entre o conjuntos e os bairros.

mobilização, festivos no trabalho e ao seu final, resgatando seu significado social, cultural e político de ação direta.

c) Garantia da participação no projeto, com a definição das suas características por meio da interação entre assessoria técnica e população beneficiária, como

h) Indicar desse modo uma outra forma de construir as cidades e seus territórios e

meio de atingir projetos com tipologias variadas e áreas construídas maiores, que

de fortalecer as associações de trabalhadores na luta por seus direitos, por cidades

refletem o desejo e o direito das famílias por uma moradia digna, nem sempre

melhores e por um país mais justo e democrático.183

obtida quando uma empresa privada, guiada pelo lucro, ou órgão estatal decidem a qualidade dos empreendimentos.

d) Utilização de terras públicas ou desapropriadas pelo Estado, com a manutenção da condição fundiária estatal e cessão de uso coletiva, o que evita a fragmentação, privatização e individualização de lotes. e) Utilização de tecnologias sustentáveis, com redução do uso de concreto e aço, preferência para cerâmica e materiais locais. Possibilitar a adoção de sistemas de reuso de água, tetos-verdes, hortas urbanas, captação de energia solar, regulação térmica natural no interior das unidades, coleta seletiva de lixo etc.

Nesse sentido, é possível observar como o debate e a produção crítica mais recente já teriam repercutido no campo da prática dos mutirões autogeridos, pelo menos enquanto novas questões a serem enfrentadas. A continuidade da dimensão dialética de compreensão deste tema dependerá, então, das novas e velhas questões que surgirem das transformações dos processos de autogestão e de construção da casa e da cidade; e dependerá também de como estes processos permanecerão após a conclusão dos trabalhos em canteiro, de como as rupturas e continuidades se articularão na fase de ocupação e exercício do direito à moradia. * * *

f) Realização da obra por autogestão, com os trabalhadores no controle do processo de planejamento, compras e contratações. Favorecer a contratação de cooperativas de fato e de trabalhadores da comunidade desempregados na forma de coletivos de construção para geração de renda. Tomar todas as iniciativas necessárias para a segurança e saúde do trabalhador em obra, bem como a compreensão do processo

183

“2010 - Projeto Habitacional Vila Monte Sion - Suzano-SP”. In: sítio da USINA-CTAH, Centro de Trabalhos para o Ambiente Habitado (online, acesso 10.01.2012: www.usinactah.org.br/index.php?/s/vlmontesimon/).


152

Na época em que este texto foi escrito, no entanto, a dimensão do debate e da experiência parecem perder seu espaço necessário diante da resposta policial do Estado às experiências da política. A resposta militar que tem sido dada a diversos conflitos e questões sociais em território nacional, a saber: a repressão policial às greves em Jirau, às greves nos canteiros dos estádios da Copa, a militarização dos territórios “pacificados” no Rio de Janeiro, as operações da Polícia Militar no campus da USP, na região da Cracolândia-Nova Luz e, na reintegração de posse do bairro Pinheirinho em São José dos Campos; apenas escancaram a urgência da luta pela retomada dos espaços da política, esvaziados pelas bombas de gás e pelas balas de borracha e de chumbo.

153


155

Bibliografia ARANTES, Otília, VAINER, Carlos & MARICATO, Ermínia. A cidade do pensamento único: desmanchando consensos. Petrópolis-RJ: Vozes, 2000. ARANTES, Otília. Urbanismo em Fim de Linha. São Paulo: Edusp, 2001. ARANTES, Pedro Fiori. Arquitetura nova: Sérgio Ferro, Flávio Império e Rodrigo Lefevre, de Artigas aos Mutirões. São Paulo: Editora 34, 2002. ARANTES, Pedro Fiori; DINIZ, Heloísa ; TONE, Beatriz Bezerra ; LOPES, João Marcos de Almeida. Paradoxos dos canteiros autogeridos. Reportagem (Belo Horizonte), v. Ano V, p. 49-50, 2005. ARANTES, Pedro Fiori. “O lugar da arquitetura num Planeta de Favelas”.In: Opúsculo II, Porto: Dafne, março de 2008.


157

156

ARANTES, Pedro Fiori. “Em busca do urbano”. In: Revista Novos Estudos CEBRAP, n. 83, p. 103-127, março de 2009.

MARICATO, Ermínia (org.). A produção capitalista da casa e da cidade do Brasil Industrial. São Paulo: Alfa-Ômega, 1979.

FERRO, Sérgio. Arquitetura e trabalho livre. São Paulo: Cosac Naify, 2006.

MARICATO, Ermínia. “Os mutirões em questão: os mutirões de São Paulo e reforma urbana” (Entrevista). In: Revista Proposta: experiências em educação popular. FASE. Ano XII. Setembro de 1987.

FERRO, Sérgio. “Nota sobre ‘O vício da Virtude’”. In: Novos Estudos CEBRAP, n. 76, p. 229-234, novembro de 2006. KOWARICK, Lucio. A Espoliação urbana. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979. KOWARICK, Lucio. “Espoliação urbana, lutas sociais e cidadania: fatias de nossa história recente”. In: Espaço & Debates, n. 40, p. 105-113. São Paulo: NERU, 1997. LOPES, João Marcos de Almeida . “O anão caolho”. In: Novos Estudos CEBRAP, v. nº76, p. 219-227, 2006. LOPES, João Marcos de Almeida ; RIZEK, Cibele Saliba. “O mutirão autogerido como procedimento inovador na produção da moradia para o pobres: uma abordagem crítica”. In: ADAUTO, Lucio Cardoso; ALEX, Kenia Abiko. (Org.). Procedimentos de gestão habitacional para população de baixa renda (Coletânea Habitare; v.5). 1 ed. Porto Alegre: ANTAC, 2006, v. 1, p. 52-83. MARICATO, Ermínia; CALAZANS, José Fábio; FINGERMANN, Luís (Depoimentos). “Formação e prática profissional do arquiteto – três experiências em participação comunitária”. In: Espaço & Debate, n.8.

OLIVEIRA, Francisco de. Crítica à razão dualista / O ornitorrinco. São Paulo: Boitempo, 2003. OLIVEIRA, Francisco de. “O vício da virtude: autoconstrução e acumulação capitalista no Brasil”. In: Novos estudos CEBRAP, n. 74, p. 67-85, março, 2006. OLIVEIRA, Francisco de. “O Estado e a Exceção: ou o Estado de Exceção”. In: Revista Brasileira de Estudos Urbanos e Regionais, v.5, n.1, maio, 2003. RIZEK, Cibele; BARROS, Joana; BERGAMIN, Marta. “A política de produção habitacional por mutirões autogeridos: construindo algumas questões”. In: Revista Brasileira de Estudos Urbanos e Regionais, v. 5, n.1. Maio de 2003. RIZEK, C. S. ; BARROS, J. S. “Mutirões autogeridos: construindo e desconstruindo sociabilidades”. In: FRÚGOLI JR, Heitor; ANDRADE, Luciana T.; PEIXOTO, Fernanda A. (Org.). In: As cidades e seus agentes: práticas e representações. 1 ed. Belo Horizonte: Editora PUCMINAS/ EDUSP, 2006, v. , p. 377-401.


159

Fontes das imagens Arquivo Usina-CTAH [Capa], [4-6], [9], [11], [13], [15-17] Acervo pessoal de Wilton da Costa Lima [3], [8], [10], [12], [14] Acervo pessoal Thais Oyola [18-21] Google Maps [1-2], [7]


160


Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.