A Análise da imagem e do som (Jaques Aumont, Michel Marie)

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A a n á iis e d a im ag em e d o so m Ao separar assim claramente, por dois capítulos, a análise da narrativa e a da imagem e da banda sonora, parecemos estar a sugerir que se trata de duas abordagens diferentes do filme. Convirá então sublinhar que só efectuamos essa divisão pela facilidade expositiva. De facto, é quase impossível analisar correctamente uma narrativa fílmica sem fazer intervir considerações ligadas ao aspecto visual desta. Tal é absolutamente óbvio no que respeita aos últimos pon­ tos de que tratámos (focalização, ocularização, ponto de vista), de que bastam as próprias designações para indicar a relação com a visão. Mesmo a análise mais puram ente “estrutural” dificilmente pode evitar a consideração das manifestações visíveis das estruturas narrativas; podemos (e sém dúvida devemos) “construir o actancial” com os rostos, o guârda-roupa, as posturas dos actores, mas também com a iluminação, os ângulos dos planos, até com os cenários e, claro, a realização. Reciprocamente, é difícil analisar a imagem sozinha. Natural­ mente, de novo nos deparamos com a formidável questão da narratividade no cinema. Ao Ipngo da história do cinema, muitos filmes enfrentaram esta questão, com o intuito de fugir, totalmente ou em parte, a essa “obrigação” da narratividade (já vamos, a propósito do trabalho com o enquadramento, dar o exemplo de O Homem da Câmara de Filmar, que é um filme decididamente antinarrativo). E provável que em alguns casos de filmes excepcionalmente pouco

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narrativos, se devesse considerar processos de análise só da banda de imagem (é o que sugere Dom inique Noguez ao longo do seu ensaio consagrado ao “cinema ‘underground’ americano”), embora nos pareça que quase sempre a análise da imagem deveria referir-se a alguma categoria mais vasta, comparável à categoria da narrati■vidade. No caso —largamente maioritário, e até hegemónico, nas análises publicadas — de filmes (mesmo tenuemente) narrativos, percebe-se que a imagem é sempre definida tam bém pela narraçáo. Aqui repetiremos o que já afirmámos sobre a análise textual e a análise do filme como narrativa: também náo existe método universal de análise nem para a imagem nem para o som. Nesse campo, a atitude geral do analista implica: 1) que saiba com exactidão até que ponto quer autonomizar a imagem na sua análise (em especial, mas não unicamente, quanto à narrativa); 2) que conheça as funções gerais dos parâmetros visuais num filme e as suas variações na história, e saiba, a partir daí, escolher um a linha directriz de análise apropriada ao filme estudado; 3) por fim, em caso disso, que de igual modo convoque, e adapte, um método extrafílmicò de análise, mantendo-se consciente dos limites de um a tal transposição. Em conclu­ são, não podemos proporcionar nenhum “truque”, nenhuma receita, mas apenas citar exemplos - conseguidos - dessa atitude na prática. Antes de apresentar esses diferentes exemplos de análises da imagem arbitrariam ente divididos, sempre por razões de facilidade didáctica, entre análise do enquadram ento e do espaço narrativo, e análise da plástica e da retórica da imagem, julgamos útil, como a propósito do texto e da narrativa, explorar em algumas páginas o território da análise das artes visuais e sonoras, principalmente da pintura e da música.

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1. O CINEMA E A PINTURA A comparação entre o cinema, a pintura e a música é tão antiga como os primeiros discursos sobre o filme; não vamos aqui prolongar esse exercício retórico mas traçaremos alguns pontos de encontro possíveis entre a análise fílmica e as análises de obras picturais e musicais. Estas têm um a longa tradição, quase tão rica como a aná­ lise da narrativa literária, e podem consequentemente, com toda a legitimidade, servir como disciplinas de referência para a análise do filme. E evidente que a análise plástica e rítmica tem um papel muito importante no estudo de um filme experimental. Por outro lado, o modelo pictórico atravessa toda a história do cinema, do mau gosto estético das primeiras Paixões, ao “novo realismo” contemporâneo. Recordemos de passagem, com o prova, as citações de David por Abel Gance no seu Napoleão (1927), as referências à pintura flam enga em A Quermesse Heróica, de Jacq.ues Feyder (1934), o fascínio de Eisenstein por El Greco, o de Eric Rohmer pela pintura rom ântica do século xix, sem falar de Godard, cuja obra inteira é assombrada por certos pintores e certas questões ligadas à representação pictural: as citações de Renoir, Klee, Picasso, a p a rtir de O Acossado, O Soldado das Sombras e Pedro, o Louco, passando por Goya e R em brandt em Paixão.

E claro que é impossível explicar todas as formas de análise dos últimos séculos. Como em muitos outros domínios, o século XX teve tendência a considerar na sua integralidade um corpus cada vez mais colossal, que depressa ultrapassou os limites da nossa própria cultura para incluir as artes do m undo inteiro; se aproximações formais como a de A rnheim , que já abordaremos, se mantiveram relativamente raras, assistimos em compensação a um florescimento de métodos críticos, históricos e analíticos na linha da “iconologia” de Erwin Panofsky, que combina precisamente a consideração do contexto histórico das obras (em especial fontes externas, por exemplo escritas, susceptíveis de as clarificar) e a análise formal e composicional. Mais um a vez, o cinema só indirectamente é herdeiro da pintura, e por isso estas abordagens analíticas apenas pela sua

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inspiração geral nos podem ser úreis (haveria aliás um interessante paralelismo a observar entre a análise do filme e a análise da pintura nas décadas mais recentes, com tentativas de “semiologização” da análise pictórica que não deixam de corroborar alguns dos problemas da significação no cinema).

1.1. A análise pictórica: alguns exemplos A análise das obras pictóricas desfruta de uma antiguidade muito mais considerável, evidentemente, do que a do cinema. Ela é definida por múltiplas tradições, algumas das quais remontam às reflexões de Platão sobre a imitação artística, que também desper­ taram o interesse da teoria do cinema. Não se trata, para nós, de desenvolver um historial das tradições analíticas da pintura, mas de dem onstrar o seu interesse para a análise do filme. Limitar-nos-emos a dois ou três exemplos. 1.1.1. O s salões de D id e r o t Os célebres “salões” de Diderot, na verdade um dos primeiros exemplos conseguidos de crítica pictórica, são muito reveladores; desde o início impressiona a extensão das descrições, e sobretudo o seu carácter “ficcionalizado”: um quadro dá a ver um. m undo imaginário (aquilo a que chamaríamos um universo diegético) que o espectador-crítico que nele penetra e passeia sente, de certa forma, a partir do interior. Para nós, que pelo menos um século de constantes revoluções formais na pintura nos acostumou à ideia de que o quadro é antes de tudo “a disposição de manchas de cor num a certa ordem”, essa adesão que insiste num suposto conteúdo da tela é algo surpreendente; mas é por isso precisamente que a lição é interessante para o cinema (para o qual a im portante questão da abstracção não é dominante): nas suas análises, D iderot interessa-se sobretudo pela relação do quadro com o seu espectador, com a “crença” que o quadro suscita, com a natureza da encenação representativa, com os meios do efeito realista; ou seja, com a

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táctica pela qual o quadro melhor consegue “atrair, deter, agarrar” o espectador. Apesar do carácter obsoleto de toda uma vertente do seu pensamento (a hierarquia dos vários géneros, por exemplo), aqui se encontra, no fundo, uma atitude relativamente “m oderna”, que coloca problemas pertinentes para o cinema. 1 .1 .2 . A percepção v isu a l seg u n d o R u d o lp h A rn h eim Por outro lado, um trabalho mais recente, de aparência bem mais formalista, como o de Rudolph Arnheim sobre o enquadramento e a composição pictórica, respeitaria igualmente ao domínio da análise pictórica —se bem que quase nada tenha a ver com a de Diderot. Desejoso de provar (ou pelo menos de experimentar) um a tese geral (o carácter essencialmente “centrado” da pintura ocidental), A rnheim examina, agrupando-as não por temas mas por modos de composição, obras pictóricas de épocas muito diversas. N um capítulo que trata da acentuação mais ou menos forte do meio (geométrico) do quadro, ele convoca, em poucas páginas, descrições e reproduções de quadros de pintores tão diferentes como Franz Kline, Ingres, Bruegel, Caravaggio, Fra Angélico, Picasso, M anet, Rem brandt, etc. - e trata da mesma forma, por exemplo, quadros figurativos e abstractos. "Q uando vê pela prim eira vez qualquer pintura, o olho tem de enfrentar uma situação inédita: deve orientar-se, encontrar uma estrutura que pos­ sibilite ao espírito com preender o significado dessa pintura. Se o quadro fo r figurativo, a prim eira tarefa é com preender o seu tema. Mas o tema depende da form a, da disposição das form as e das cores - a qual surge em estado puro nas obras 'abstractas', não-miméticas",

E claro que não pretendemos com esta citação muito breve esgotar a substância do livro de Arnheim, mas apenas assinalar o género de ensinamentos que podemos obter para a análise fílmica. A primeira lição - na condição de só transpor o que deve ser trans­ posto —está nessa insistência no nível formal “puro”. É sem dúvida impossível retomar tal e qual as noções de centro, meio, composição e equilíbrio plástico definidas para a pintura; é, além disso, muito

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raro que a compreensão do “tema” de um filme coloque problemas do tipo que Arnheim evoca (os quais em compensação se tornam pertinentes para tratar, digamos, um quadro alegórico como os que se pintavam no século XIX para o Prix de Rome23). Em contrapartida, é sobretudo im portante lembrarmo-nos de que um filme é também um a obra plástica, que busca,.pelo menos parcialmente, um certo tipo de prazer dos olhos; e a seguir, estender à forma fílmica a noção de uma dependência do tema em relação à forma. Por fim, podemos aqui notar, apesar da aparente incom­ patibilidade das problemáticas, que nas suas análises Arnheim, tal como Diderot, pensa sempre no espectador, na relação “estrutural”, diríamos, entre os olhos do espectador e a composição da obra. 1.1.3. Pesca N octurna em A ntibes (P icasso, 1939) an a lisa d o por R u d o lp h A rn h eim Ainda para ilustrar o interesse da análise pictórica, vamos tirar um exemplo concreto do mesmo autor: uma breve análise deste quadro. A rnheim parte da hipótese de que, num bom quadro, a sig­ nificação principal se exprime directamente nas “propriedades da forma visual”. Ele propóe-se seguir o mais de perto possível o que se apresenta perante os nossos olhos, e empreende um inventário descritivo pormenorizado. Distingue três zonas principais na tela de Picasso: o painel vertical à esquerda, que representa a vila e o castelo medieval de Antibes, o medalhão central dos dois pescadores no seu barco, rodeado de luz e de peixes, e no painel da direita duas raparigas sobre um molhe de pedra. Esse molhe, que se encontra em primeiro plano, liga-se a nós directamente, pelas sólidas fundações das paredes na base do quadro: “Depois de assim transportados da esquerda para a direita no quadro, somos apanhados e retidos pelas 23 Concurso anual criado pela Academia Francesa em 1663, destinado à atribuição de bolsas de estudo na Académie de France em Roma aos artistas mais promissores nas artes plásticas, arquitectura e composição musical. Muito prestigiado e popular, o Prix de Rome cessou, na pintura, em 1968. (N. do T.)

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Picasso, Pesca Nocturna em Antibes, 1939. Nova Iorque. Museu de Arte Moderna, Col. Simon Guggenheim.

duas raparigas que, com a sua bicicleta e o seu cone de gelado, os cabelos ao vento e os peitos salientes, parecem estar ali para representar os espectadores indolentes e esteticamente alheados”. Esse ponto de observação serve igualmente de barreira: priva os pescadores de uma parte da comunicação directa que teriam com o observador. “Picasso apresenta a cena central mais como algo para que se olha, do que algo que é”. Arnheim consagra a parte centrai do seu estudo à análise da representação dos dois pescadores, situados na cena central, "fro ntal e plana como uma fachada". Ele contrasta as duas personagens. O pescador da esquerda, que se debruça na borda, olha fixam ente para a água; em bora tenha um olhar intenso, ele é passivo, contem plativo. No entanto anim a-o um turbilhão de form as activas. "Está de bruços, cabeça m ergulhada, os pés no ar, a seguir um eixo oblíquo. Encontra-se sim ultaneam ente no plano da frente e no espaço tridim ensional". Ao contrário, o arpoador em acção, à direita, está postado nas direcções mais estáticas: "as horizontais do corpo e da cabeça, dobradas pelo paralelo do braço esquerdo, tal como as verticais da perna, do braço direito e do arpão, constituem no seu conjunto um edifício estável em pórtico". Arnheim observa que "esse género de contradição

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A A N Á L IS E D O F IL M E paradoxal entre a natureza da acção representada e a dinâmica das formas que a representam não é raro nas artes. Assim, n' A Ressurreição, de Piero delia Francesca, o corpo do Cristo que se eleva é enquadrado de frente, num a serena estrutura de horizontais e de verticais, enquanto aqueles que dorm em , imóveis, estão dispersos ao redor, ao longo de diagonais vibrantes, que se sobrepõem de maneira irracional".

Arnheim questiona o sentido desse procedimento formal: “Com que objectivo é aplicado em Pesca Nocturna em Antibes?”: “Parece apropriado referir aqui que a tela data de Agosto de 1939, quando a iminência da II Guerra M undial ensombrava o horizonte. A luz desse mau agouro, a m atança dos peixes no quadro adquire um significado particular. Vista com a curiosidade indiferente das duas raparigas, mostradas como criaturas de prazer e luxo, a perspectiva do massacre parece irreal, paralisada na sua repercussão pelo seu afastamento, pela incompatibilidade entre a violência e o cenário alegre do porto m editerrânico”. Uma transposição do método seguido por Rudolph Arnheim tropeça de imediato num a dificuldade evidente: a mobilidade da imagem cinematográfica, que praticamente proíbe qualquer análise compositicional do enquadramento (visto que, em geral, as estruturas demonstradas na pausa não “resistem” logo que o filme corre no projector). Essa é a razão de aqui citarmos, como primeiro exemplo, um texto que conseguiu, pelo menos em princípio, superar essa dificuldade: a análise de Fausto, de F. W. M urnau, por Eric Rohmer.

1.2. Fausto, de Murnau, analisado por Eric Rohmer Esta análise não se dedica exclusivamente a um a consideração dós enquadramentos originada pela ideia de composição; ela tenta proporcionar um “quadro” teórico mais geral para a análise da rea­ lização é, mais concretamente, da “organização do espaço” no filme. Rohmer começa assim p o r defin ir três tipos de espaço que coexistem no film e, e a que ele chama espaço pictórico (= a imagem cinem atográfica

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r 5. A A N Á L IS E D A IM A G E M E D O S O M como representação de um m undo), espaço arquitectural (= partes do m undo, naturais ou fabricadas, providas de uma existência objectiva) e espaço fílm ico (= "um espaço virtual reconstituído no espírito, com a ajuda dos elem entos fragm entários que o film e lhe fornece"). Esta tripartição, aliás nem sem pre evidente (ela coloca em especial o problem a da reconstituição do "arquitectural" no sentido de Rohmer, ou seja, daquilo a que chamamos profílm ico), tem a vantagem de delim itar bem e de designar com o parcial o carácter pictórico da im agem fílmica.

N a sua análise da imagem de Fausto como pictórica, Rohmer absteve-se muito inteligentemente de qualquer uso de “grelhas” (género secção de ouro ou outros cálculos proporcionais, de que tanto gostam alguns, e que tão poucos resultados dão). Ele começa mesmo por observar que a picturalidade do filme de M urnau provém sobretudo “de este ter optado por subordinar a forma à luz” (p. 17); a iluminação de Fausto seria mais pictórica do que especificamente cinematográfica: Rohm er tam bém busca (nem sempre é o que mais convence no seu trabalho) aproximações com pintores do claro-escuro como Rem brandt e Caravaggio. Q uanto ao desenho, segundo o analista, joga na prevalência da curva, e mais geralmente numa vincada dinâm ica interna (“nele, é o movimento que produz o desenho”). E nessa questão que a análise nos parece mais notável: Rohmer, graças a um a utilização hábil de esquemas das linhas de força composicionais (decalcados no ecrã da mesa de montagem, a partir das imagens do filme) sustenta a sua hipótese de forma muito interessante, mostrando, por exemplo, como determinadas cenas do filme se baseiam, plasticamente, num movimento convergente reconhecível ao mesmo tempo na composição das imagens e no m ovimento24 (principalmente das personagens)25. O livro é do mais exemplar quanto ao estatuto conferido a essa análise plástica da imagem ná perspectiva de um a análise mais global. Voltando, no fim da sua obra, a definir e marcar “direcções 14 Ver atrás, p. 58. 25 Instituto Cinematográfico Estatal da União, o mais antigo instituto de ensino de cinema, fundado em 1919 pelo realizador Vladimir Gardin. (N. do 1.)

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privilegiadas”, Rohmer reúne os resultados da sua análise em dois grupos: o da expansáo/contracçáo e o da atracçáo/repulsão. Estes dois pares de conceitos representam, segundo ele, não só a característica formal do trabalho plástico sobre o enquadramento em Fausto, como, além disso, se vinculam directamente a um a realização baseada em aparições e desaparições incessantes, e metaforicamente a um a simbologia do filme claramente estrutu­ rada pela forte divisão entre Bem e Mal. Mesmo se às vezes as suas conclusões parecem um tanto forçadas no desejo de encontrar “a” fórmula que atravessaria os níveis plástico, ficcional e filosófico, o método de Rohmer é exemplar por nunca limitar a análise formal (neste caso plástica) nem a um apanhado insípido de esquemas nem a um a fria estatística; pelo contrário arriscando, num terreno à partida pouco favorável, avançar num caminho de interpretação plenamente assumido como tal. Poucos filmes se prestam, de forma tão clara como Fausto, de M urnau, a um a análise composicional e plástica; e por isso são poucas as análises que alcançam esse grau de concentração em tais problemas. Já tínham os encontrado essa preocupação num analista algo particular: Eisenstein. Nele a análise fílm ica (o mais das vezes a propósito dos seus próprios filmes) integra-se numa reflexão m uito mais ampla - que tam bém envolve a realização (principalm ente nos seus cursos no V.G.I.K. *) e sobre­ tu d o a p intura (seria preciso citar aqui as suas numerosíssimas descrições ou análises de q u a d ro s )-e por fim na construção de um sistema estético abrangente, que engloba todas as artes plásticas.

2. A ANÁLISE DA IMAGEM FÍLMICA Não retomaremos aqui as descrições, clássicas na teoria do cinema, da relação entre enquadramento, montagem, ponto de vista e espaço narrativo. N o capítulo anterior evocámos parcialmente os problemas do ponto de vista sob o ângulo narrativo. Vamos agora

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insistir em análises mais directamente centradas nos parâmetros visuais, relativamente autonomizados da sua funçáo narrativa (também náo insistiremos na relatividade dessa autonomia). Na seguinte ordem abordaremos: 1) a análise do enquadram ento e do ponto de vista, 2) a montagem, mais brevemente, 3) o espaço narrativo, 4) a “figuratividade” da imagem fílmica.

2 . 1 . 0 enquadramento e o ponto de vista: Tchelovek s Kinoapparatom [O Homem da Câmara de Filmar] Vamos sublinhar uma evidência: antes de ser um significante do ponto de vista das personagens (o que já estudámos no capítulo 4, em 3.3.), um enquadramento é também um significante do ponto de vista da instância narradora e da enunciação. Por exemplo, as “vistas” dos irmãos Lumière, embora muito breves (50 segundos) e compostas por um único plano, supõem um a colocação da câmara e, correlativamente, o ponto de vista de um observador. Um estudo de Marshall D eutelbaum aborda essas breves bobinas dos Lumière segundo dois aspectos diferentes: um consiste em dem onstrar uma certa estruturação da acção ininterrupta apresentada; o o u tro em exam inar a inscrição espacial dessa acção. É nessa segunda perspectiva que o autor examina com m uita precisão as escolhas de enquadramento dos Lumière (e dos seus operadores), enquanto selecção de um p on to de vista sobre um acontecim ento encenado, e de uma distância relativam ente a esse acontecim ento.

N a sua análise do filme de Dziga Vertov, Jacques A um ont demonstra que a utilização do enquadramento no filme como mani­ festação de um ponto de vista implica que este não seja atribuível a nenhum a personagem, excepto a do próprio “homem da câmara de film ar”26, relativamente abstracta. Ele recorda a desconfiança de Vertov, tantas vezes afirmada nos seus textos teóricos, face a visão 26 As referências são fornecidas no fim do volume.

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espontânea (para Vertov, nunca se vê senão o que já se viu), descon­ fiança acompanhada por uma insistência verdadeiramente obsessiva pela visão como meio fundam ental de apreensão e conhecimento do mundo. Estudar a imagem dos filmes de Vertov pode, apesar disso, parecer paradoxal, na medida em que o próprio insiste na função essencial do princípio de montagem, pois ele é, antes de tudo, montador, e raramente abordou nos seus textos a questão do enqua­ dramento. Isso não impede que O Homem da Câmara de Filmar se caracterize por um tratamento muito particular do enquadramento e pelas composições subtis e deliberadas. As imagens do filme são meticulosamente compostas, e essa característica relaciona-se com o próprio estatuto da obra, defendida pelo seu autor como filme-manifesto, filme “teórico”. De seguida A um ont define as imagens vertovianas por um a série de características especificas: a imagem é primeiro que tudo uma vista no sentido primordial do termo, implicando um ponto de vista, isto é, um ponto onde se coloca a câmara: “N um a cinem ato­ grafia sem cenografia nem realização, todo o trabalho de rodagem concentra-se nesse movimento onde se determina o ponto de vista sobre o acontecimento”. Esse ponto de vista é então pensado como algo radicalmente heterogéneo em relação à representação e à função narrativa. A procura por Vertov de um a outra relação representativa (não-teatral) exprime-se por um acréscimo de centramento das imagens. A fim de dem onstrar essa hipótese, A u m ont confronta a célebre Arrivée d'un train en gare de la Ciotat [Chegada de um Com boio à Estação] ao não m enos célebre plano de Vertov que enquadra um operador deitado na linha férrea. Nos Lumière a câmara está colocada com toda a exactidão para a p a n h a r o acontecim ento na totalidade: "Solidamente instalada no seu abrigo, a câmara deixa aproximar-se o comboio, ao mesmo te m p o que ocupa uma posição privilegiada relativam ente aos m ovim entos no cais; quanto aos figurantes, ordenam-se mais ou menos espontaneam ente em relação a esse pólo da câmara, a que atribuem claram ente um poder, um mais-ver, sobre eles (...) Q u an do film a um com boio, o hom em da câmara de film a r coloca-se de maneira m uito diferente: entre os carris, na posição

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Tchelovek s Kinoapparatom [O Homem da Câmara de Filmar], de Dziga Vertov (1929).


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Tcheloveks Kinoapparatom [O Homem da Câmara de Filmar], de Dziga Vertov (1929).

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Tcheloveks Kinoapparatom [O Hom em da Câmara de Filmar], de Dziga Vertov (1929).

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A A N Á L IS E D O F IL M E de m áxim o risco, e tam bém de uma relação mais 'directa' com o objecto film ado. O hom em da câmara de film ar não se enviesa"

A um ont relaciona essa maneira de tratar a profundidade com duas outras características: a frontalidade do enquadramento e a distância da câmara à acção filmada. Ele salienta os inumeráveis retratos de rostos que encontramos no filme; a frontalidade da filmagem dos objectos (máquinas de escrever, manequins, automóveis, autómatos ou copos de cerveja), a utilização abundante de superfícies e de tons uniformes que dupli­ cam a superfície do enquadramento: os cartazes, as fachadas dos cafés, das lojas, o gosto por súmulas visuais violentas (a chaminé da fábrica em contrapicado muito pronunciado, causando um efeito de perspectiva que foge decididamente à tradição pictórica). A distância mais frequente é a do plano aproximado, quando m ostra os trabalhadores: “nem muito longe nem muito perto, a distância exacta que perm ita garantir, e traduzir por imagens, a co-participação do trabalhador e do ‘kinok’2 , esse outro trabalha­ dor, na causa socialista”. Pelo contrário, os burgueses de caleche são filmados de modo a visualizar a radical separação entre o operador e os temas filmados: neste caso a encenação ostensiva da rodagem apresenta esta como captura, queda na armadilha. Esta análise das imagens de O Homem da Câmara de Filmar, de que só resum im os a prim eira parte, é de pleno direito uma análise fílmica, e um a análise dos parâm etros constituintes da imagem desse filme. Para isso, o autor detectou no corpo do filme, independentem ente da lógica do seu desenrolar, um a série de planos que tentam dar conta da totalidade do seu sistema visual. Os traços característicos do enquadram ento e do ponto de vista no filme rem etem para um a reflexão sobre a percepção visual: as relações semânticas entre os planos só existem na sua coincidência com as relações visuais: 27 Os Kinoki (“olhos de cinema”) eram um colectivo de cineastas organi­ zados em torno de Dziga Vertov no início dos anos 20. (N. do T.)

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5. A A N Á L IS E D A IM A G E M E D O S O M "O plano do eléctrico cortado em dois, se só o jun ta rm os à film agem do divórcio, apenas faz raccord ao nível semântico; próxim o dos outros pla­ nos de eléctricos, que transform a e trabalha visualmente, ele dá acesso a to d o o resto do film e, m uito provavelm ente em term os de sentido, mas tam bém em term os visuais e mesmo plásticos".

Esta é de facto um a análise da imagem, sem nada de um a análise textual, nem de uma análise da narrativa. Da mesma forma, em várias análises de porm enor do seu livro sobre Dreyer, David Borwell refere com insistência, como já assi­ nalámos, casos de trabalho “autónom o” da câmara em relação à narrativa - isto é, casos nos quais o ponto de vista adoptado pela câmara, e as suas variações (especialmente nos chamados “movi­ mentos de câm ara”), são mais ou menos independentes da posição das personagens. Numa análise m uito rigorosa de Vampyr, e particularm ente de A Paixão de Joana d'Arc, Bordwell refere m uitos casos, m inuciosam ente descritos (com o auxílio de fotogram as belíssimos, deve dizer-se), em que a câmara ocupa uma posição, eventualm ente móvel, que é determ inada antes do mais por uma lógica espacial e não por uma lógica narrativa, e que pode abrir uma perspectiva, ou, pelo contrário, o pta r por só m ostrar determ i­ nado espaço detrás de toda uma série de efeitos ópticos, portas, cortinas, etc. Bordwell dem onstra m u ito bem que esse tratam en to do ponto de vista está relacionado com o do espaço fora-de-cam po, e com a ameaça potencial que este incessantemente representa nesse film e de terror. Assim, "o te m p o e o espaço narrativos já não vêm colados ao tem po e ao espaço da câmara. Da lógica causal da narrativa, a câmara limita-se a registar certos efeitos - pânico, sombras ou m orte (...) E do espaço da história, o e nquadram ento recorta o seu próprio 'argum ento', que às vezes se afasta bastante da dom inante dramática".

2.2. A análise da imagem e a montagem, a relaçáo campo/fora-de-campo Para além do enquadram ento e da proximidade da câmara, a análise da imagem fílmica pode tomar como objecto a relação de plano para plano, ou seja, a montagem. De novo, limitar-nos-emos ao

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exemplo de uma análise fílmica centrada principalmente na função da m ontagem na produção do sentido. Para semelhante problema, é novamente difícil fugir a Eisenstein. 2 .2 .1 . A m o n ta g em em O utubro, de E isen stein O exemplo mais revelador parece-nos ser a análise do prólogo de Outubro, por M arie-Claire Ropars (seguido de um segundo texto de Pierre Sorlin sobre a mesma sequência)28. Em “L’ouverture d 'Octobre ou les conditions théoriques de la révolution” [A Abertura de O utubro e as Condições Teóricas da Revolução], M arie-Claire Ropars analisa os primeiros 69 planos do filme, que constituem uma espécie de prólogo dedicado à queda de uma estátua do czar Alexandre III. E certo que a análise não evita completamente o comentário à acção representada, e, portanto, ao aspecto parcialmente narrativo desse prólogo (manifestantes derrubam a estátua de um czar), mas ela privilegia radicalmente um a série de características formais dos planos: tamanho, eixo, luz, profundidade de campo, duração, fixidez ou mobilidade, “tipo” de representação (“realistaou francamente alegórica). Essas características formais são analisadas sistematica­ mente no trabalho de transformação que se opera de um plano para o outro: transformação, evolução, continuidade e descontinuidade, falsos raccords, retrocesso. Essas operações constituem, a bem dizer, o trabalho da montagem na sequência, visto que o conjunto desses 69 planos não dura mais do que 2 minutos e 9 segundos, e o mais longo estende-se até 7 segundos e 83 centésimos! (Certos planos têm pouquíssimas imagens - 0,16 segundos para o plano 66 - sendo, portanto, quase imperceptíveis; daí a necessidade de os encarar na continuidade da montagem). M arie-Claire Ropars, em função da lógica das acções representadas, e sobretudo das continuidades formais, distingue sete sub-partes, da "cons­ trução" da estátua (através da m ontagem ) nos prim eiros 9 planos, até à sua destruição, m uito breve, em 3 planos. Ela sublinha as contradições que

28 Referências fornecidas no final do voiume.

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Oito planos do início de Outubro, de S. M. Eisenstein (1927).

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A A N Á L IS E D O F IL M E marcam as transições entre os segmentos: passagem de uma ilum inação artificial nocturna a uma ilum inação diurna quando os m anifestantes surgem na escadaria, descontinuidade dos lugares (a estátua, a escadaria, a praça das cúpulas, a frente, o espaço das foices). Interessa-a particular­ m ente o evoluir da representação do derrube da estátua pela m ultidão: ascensão dos pés até a cabeça, em seguida desaparição das personagens durante a tracção das cordas, aparição arbitrária e violenta dos planos de fuzis, dos bastões erguidos no ar, e da floresta de foices, desaparição dos figurantes após o in te rtítu lo central e contraste entre uma ilum inação nocturna semelhante aos prim eiros planos e uma ilum inação diurna que perm ite inscrever a estátua num am biente parcialmente diegético, falsos raccords na queda dos m em bros da estátua, etc.

Esta minuciosa análise da montagem (táo sistemática como longa), que aqui resumimos muito superficialmente, permite à autora alicerçar uma argumentação teórica que integra e justifica todas essas observações: esta contrasta dois tipos de representação (vinculados a duas funções da montagem) —uma chamada “dis­ cursiva”, baseada na iluminação artificial, na descontinuidade, na ausência de âncora referencial; a outra “diegética”, assente numa certa continuidade das acções e dos gestos, numa iluminação diurna, num a determ inada profundidade de campo, na presença das per­ sonagens... N o início, é a estátua que triunfa no espaço alegórico nocturno; no final do segmento, ela cai, em falso raccord, num ambiente totalm ente diferente, diurno, cercado pelas silhuetas de cúpulas em profundidade de campo. Segundo Marie-Claire Ropars, é a acção da montagem alternada e dos planos de foices e de fuzis que provoca essa queda, por inversão do m odo figurativo dos dois campos presentes, enquanto, encerrada no espaço diegético diurno, a m ultidão permanece inoperante. O segundo exemplo que vamos tratar centra-se na análise da relação campo/fora-de-campo numa sequência, relação evidentemente produzida pela montagem. Trata-se do estudo de um fragmento de La Chinoise, por Jacques A um ont29.

29 Referências fornecidas no final do volume. 172


5. A A N Á L IS E D A IM A G E M E D O S O M

2 .2 .2 . A m on tagem e o fora-d e-cam p o em La Chinoise , de Jean-L uc G od ard Estas notas sobre um fragmento de La Chinoise (1967) (72 planos, 8 minutos e 14 segundos) pretendem estudar o trabalho de reescrita do cinema clássico empreendido por Jean-Luc G odard segundo uma série de procedimentos de bloqueio do sistema representativo da transparência fílmica. Trata-se de um a passagem do filme que vai mostrando alternadamente planos de Guillaume (Jean-Pierre Léaud) a apresentar um a conferência política e um a série bastante heterogénea de outros planos: outras personagens da mesma cena, as mesmas e outras (Serge, por exemplo), que náo pertencem à mesma cena, e muitos planos de desenhos e fotografias. Não há qualquer plano de conjunto a enquadrar todas as personagens, o que todavia não impede o espectador de localizar empiricamente relações espaciais parcialmente lógicas (um referente textual global). Contudo, esse espaço referencial é utilizado como suporte diegético de várias ficções relativamente autónomas (a per­ sonagem do tigre de papel, Serge a escrever um a palavra de ordem com giz...). Aumont caracteriza a montagem godardiana como uma estratégia de duplicidade: “por um lado, recuperação e reforço da construção de um espaço de tipo cénico, e por outro produção de um equívoco, de uma incerteza, quanto ao estatuto de certos planos relativamente a esse espaço”. Essa duplicidade é fortalecida por uma representação sistemática que consiste em dispor um a figura diante de um fundo através da sobreposição de dois “planos”, discretos e assinalados como tais, num a sinalização reforçada pelo programa plástico (grandes superfícies planas, paralelas à superfície da imagem, com formas geométricas simples e cores saturadas) e pela frequência muito pouco clássica de planos frontais. Daí o efeito m uito intenso de homogeneidade icónica, de m ono-tonia representativa. Este sistema retira aos planos com “personagens” um pouco mais do seu valor cénico, e reforça a similaridade entre estes e os diversos inserts de grafismos ou fotos que salpicam o fragmento. Um factor

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Fora-de-cam po, contracam po e "outro -ca m po ” em La Chinoise, d eJean-LucG cdard.


5. A A N Á L IS E D A IM A G E M E D O S O M

de unificação vem juntar todos os planos do excerto sob a bandeira da uniformidade e da frontalidade, assim bloqueando o processo de denotação espacial, constitutivo da “cena” do cinema clássico. A análise aprofunda estas observações gerais através de um estudo porm e­ norizado das relações entre fora-de-cam po, contracampo e "outro campo" (o do espectador) numa série de encadeamentos de planos. Ela apoia-se na prim eira série que representa Guillaum e de pé, atrás da secretária, e outras personagens: Serge (Lexde Bruijn), Véronique (Anne Wiazemsky), eYvonne (Juliette Berto), para regressara Guillaume, desta feita sentado. A cada plano as direcções do olharform am uma série alternada com regu­ laridade: cada mudança de plano im plica um "cruzamento", na imagem, dessas direcções. Essa configuração retoma parcialmente a figura clássica dos raccords "vedor/visto". Ora, com o sublinha Aumont, se na verdade esse enquadram ento produz um sentido "norm al" (o relacionam ento m útuo das personagens), ele não se efectua sem um certo "desconforto". Este está ligado a vários m otivos: - esse encadeam ento numa sucessão de raccords de olhares não possui o mesmo valor afirm ativo de um cam po/contracam po clássico. De um plano para o seguinte, a câmara não muda de direcção, parecendo antes deslizar: o seu p onto de vista permanece sempre exterior ao círculo das personagens; - a câmara parece deslocar-se paralelam ente a uma linha imaginária que uniria as personagens, impressão reforçada pela frontalidade inequívoca da film agem : "As personagens marcam sucessivamente, e d efo rm a acen­ tuada, as bordas laterais do enquadram ento, ou, em term os cénicos, os dois foras-de-cam po laterais. Estes alargam o espaço cénico e reforçam a frontalidade de cada plano individual".

Não iremos mais além nesta análise de La Chinoise que apoia estas primeiras observações noutras, baseadas em séries posteriores de planos, e as inscreve num a reflexão mais teórica sobre a relação entre diegese e “cinescrita” no sentido eisensteiniano do termo. Ela tinha o mérito de se interessar pelo estudo de um a alternância não-clássica que desnatura a função habitual do fora-de-campo: a primeira série sobre Guillaume (Léaud) funciona segundo o modelo canónico do modo de instituição de uma realidade, e a segunda, em contrapartida, não possui qualquer realidade cénica: ela joga

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com a repetição de um mesmo processo de metaforização da cena política, localizável no conjunto do filme. Tam bém esta análise tinha como objecto a construção de um espaço cénico independentemente de qualquer referência narrativa.

2.3. O espaço narrativo: A Regra do Jogo, de Jean Renoir N um texto publicado pouco depois, o mesmo autor procurou delimitar o sistema de representação próprio de Renoir nos primeiros minutos de A Regra do Jogo (1939). O próprio título do estudo (“O Espaço e a M atéria”) ostenta um ponto de partida analiticamente não-narratológico e um interesse particular pelos valores plásticos e icónicos presentes no exemplo escolhido. Há m u ito que não só a teoria do cinema, como essa teoria aplicada que é a análise, reconheceram a consubstancialidade da m ontagem e do espaço fílm ico. No seu prim eiro livro, que m uito fez pela popularização da teoria do cinema, Noél Burch começava por examinar "com o se articula o espaço-tempo". Mais recentem ente, e de maneira mais claramente ligada à análise do filme, devemos citar principalm ente o im portante artigo de Stephen Heath, intitulado, de forma elucidativa, "Narrative Space" (O Espaço Narrativo). Partindo da observação do cineasta Michael Snow, de que "os acontecim entos têm lugar" (em Inglês, events take place - que insiste mais ainda na apropriação do lugar pelo acontecim ento, pela narração), Heath m ostra que no cinema narrativo clássico o espaço constrói-se através de uma série de implicações do espectador (pelo mecanismo dos pontos de vista e dos olhares), e que é nessa implicação que se constrói a narração fíim ica. O artigo começa e acaba com dois exemplos analíticos: um, uma sequência de Suspeita, de Hitchcock, onde uma vez mais se prova a im portância da estratégia dos olhares no film e clássico (mas tam bém os constantes desvios, ao longo do filme, em relação a uma suposta norma); outro, um 'excerto de O Enforcamento (Nagisa Oshima, 1968), em que Heath assinala, desta vez, o distanciam ento sistemático para com essas convenções clássicas, e a ausência do herói e do seu olhar onde, logicam ente, seriam esperados. 0 que por fim o artigo de Heath sugere é que o cinema narrativo trabalha para transform ar c espaço (mais ou menos indiferenciado, mero resultado

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5. A A N Á L IS E D A IM A G E M E D O S O M das propriedades miméticas básicas do aparelho fílmico) em lugar, isto é, em espaço vectorizado, estruturado, organizado em função da ficção que aí decorre, e investido afectivam ente pelo espectador de m odo diferenciado, em mudança indefinida a cada instante. Esse constante entrelaçam ento dos olhares da câmara, das personagens e do narrador definiria, em suma, a verdadeira fórm u la básica do cinema narrativo.

Aum ont propõe-se delimitar o sistema de representação do filme de Renoir, abordando lateralmente o nível da figuração, dos efeitos de realidade, e o da representação propriamente dita; e o lugar atri­ buído ao espectador por um dispositivo fílmico de comunicação vinculado aos dois primeiros níveis (figuração/representação). A u m on t tom a o par "figuração/representação" no sentido que lhe deram Jean-Louis Schefer, Louis Marin e (a propósito do cinema) Jean-Pierre Oudart; nessa perspectiva, a figuração é considerada produto de códigos pictóricos específicos (em particular os da analogia figurativa) que induzem um efeito de realidade, sendo a representação aquilo que, dessa figuração, faz uma ficção; a passagem da figuração à representação opera-se graças à marcação do lugar do sujeito-espectador no quadro, processo cuja consequência subjectiva é a produção de um "efeito de real" (impressão de existência de figuras que se julg a terem no real o seu referente).

O começo de A Regra do Jogo, inserido de forma clássica entre duas fusões, compreende quatro fragmentos sucessivos: o aeroporto, o apartam ento dos La Cheyniest, o serão em casa da Senhora de Marrast, e a discussão entre Robert e Geneviève na manhã seguinte, no mesmo apartamento (34 planos no total). Após a recepção entusiástica a A ndré Jurieu no aeroporto de Bourget e a “inverosímil panox^mxo.z-travellingque inaugura o plano e o filme e que logo de início arrasta o espectador e o deixa suspenso num fio, o do microfone e o da narrativa”, o filme introduz-nos, com bastante brutalidade, no apartam ento dos La Cheyniest. O primeiro plano do interior do filme logo descobre um espaço em profundidade, onde a perspectiva se apoia, tal como na pin­ tura clássica, em toda uma série de truques para os olhos (veja-se a reprodução do plano 7): principalmente o pé do candeeiro, à esquerda, e a cortina à direita, cuja produção de efeitos sumptuosos

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de realidade não permite que lhes sejamos indiferentes. Nunca como aqui o enquadramento foi tão parecido com a “janela aberta sobre o m undo” de que falava Alberti; tudo se passa como se a câmara, durante esses planos de descoberta do apartamento, estivesse por trás de um a das paredes da sala, que de repente se tornara transpa­ rente ou invisível; observamos através de um espelho sem estanho, e Christine, e em seguida Lisette, evitam o nosso olhar. O espaço é-nos oferecido como unitário, penetrávei, extensível.


5. A A N Á L IS E D A IM A G E M E D O S O M

Início de A Regra do Jogo, de Jean Renoir (1939).

O espaço é unitário, porque a sua construção emprega, sem as ostentar, todas as ''costuras" da realidade. A transparência, discretam ente negada por uma espécie de "exibicionism o" do enquadram ento, é, não obstante, garantida no essencial por um jo g o de constantes reenquadramentos no interior dos mesmos planos, pela riqueza sóbria, na sua diversidade, do trabaiho de raccord (movimentos, gestos, olhares), e enfim pela repetição, nos vários planos, de to do um sistema de form as recorrentes: - ele é todavia penetrável, como dem onstra, não sem afectação, o con­ jun to de planos de Christine no toucador, ou como confirma a amplitude, a

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1 A A N Á L IS E D O F IL M E variedade e a flexibilidade dos m ovim entos de câmara que acompanham as deslocações incessantes das personagens; - e le é extensível, porque baseado no jo g o com binado e acentuado da perspectiva e da profundidade de campo, e na m ultiplicação dos efeitos visuais, portas de corredores, espelhos. Mais tarde, na festa do castelo, tal será ainda sistematizado: o espaço não cessará de expandir-se, exuberante.

O espaço da cena seguinte, na casa de Geneviève, é mais obvia­ mente unitário por integrar um plano-sequência. Mas agora não se trata de penetrar no espaço, ou de o estender. Percorrido por movimentos de câmara que parecem assentes numa dobradiça, o plano decompõe-se, escande-se, encadeia-se em si mesmo, sem que consigamos transpor a '“rampa” invisível que nos separa das personagens. Realçado por essa incapacidade de o atravessarmos, e tam bém pela insistência dos olhares em evitá-lo absolutamente, a realidade oculta do cenário teatral nunca como aqui está tão presente. Teatro algo particular, mas teatro mesmo assim; a câmara desliza como poderia ser um cenário a deslizar - com naturalidade relativam ente à ficção: estamos no espaço da m entira e da exibição mundanas.

Um breve encadeado e a personagem de Geneviève conduzem-nos à cena “da m anhã seguinte”: reiteração da ligação e precaução retórica não isenta de duplicidade, pois ao mesmo tempo esse “mesmo” lugar é irreconhecível: o fundo da cena abriu-se numa vista para o Trocadero, a mesa de bridge já lá não está e sobretudo a coluna que dividia o salão em dois desapareceu como por encanto; os dois budas, mudos e pouco visíveis, ficaram como únicos pon­ tos de referência. E desta vez o espaço é tratado por um a escrita estritamente cinematográfica, precipitando-se rigidamente numa implacável sucessão de campos/contracampos (com a consequente ampliação da grandeza dos planos) apertada entre dois planos para localizar a acção. O espaço é m uito praticável: entra-se nele com a câmara, mas na posição de terceiro excluído que a sutura implica; somos apanhados no mecanismo da escrita cinem atográfica, aqui utilizada sob a form a da mais fo rte e codificada das figuras de raccord. No fu nd o é um bom exem plo da trans­

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5. A A N Á L IS E D A IM A G E M E D O S O M formação mais simples e mais canónica que o cinema pode efectuar na cena teatral: um bom exemplo, clássico, da cena fílmica.

Com estes três fragmentos sucessivos, temos três variantes, três amostras de um mesmo sistema de representação, aquele que se baseia na postulação de um certo espaço referencial apercebido como real, através de uma construção abstracta, convencional, assente num duplo conjunto de procedimentos: os da profundidade e os do raccord e da sutura. Para esta grande unidade de princípio, a individualiza­ ção de cada momento e de cada cena é apenas questão de escala: o espaço é mais ou menos penetrável, mais ou menos isotrópico, mais ou menos contínuo. Não que as diferenças se anulem: assim, o espaço “m undano” do espectáculo e da mentira, o apartamento de Geneviève, opõe-se fortemente ao espaço íntimo onde se joga a verdade, em casa de Christine; mas há uma preocupação singular de garantir uma denotação espacial coerente e clara. A análise detém-se em seguida no sistema representativo em funciona­ m ento nos prim eiros planos (no aeroporto de Bourget), para sublinhar a diferença destes; o sistema é constituído por fragm entos de espaço sobrepostos. A um ont mostra com o essa "desfiadura" do espaço repre­ sentado é acompanhada por um discurso sobre a "cor", a densidade do negro que os flashes ofuscantes dos fotógrafos rompem, e de onde por duas vezes emerge fu gid io o fantasma leitoso do avião Caudron; e sobre a luz, com os reflexos dançantes do inquietante microfone de Lise Elina, dos seus cabelos, dos fuzis dos guardas, na própria textura da imagem: os m ovim entos da m ultidão, tratada como massa indistinta, montões de cinzento, manchas a que se não dá te m p o de ganhar figura, como se o espaço fílm ico já só consistisse nas suas partes iluminadas.

2.4. Plástica e retórica da imagem: a máscara e a íris em Nosferatu, eine Symphonie des Grauens As análises anteriores não estiveram isentas de considerações plásticas. O arbitrário da nossa apresentação da análise do enqua­ dramento, da montagem e do espaço narrativo deveu-se apenas aos

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objectivos didácticos, e muitas vezes, como já notámos, as fronteiras entre estas diversas análises são frágeis. Vamos agora abordar uma análise daiconicidade de um filme através de todas as suas extensões plásticas, retóricas e, mais alargadamente, culturais, apoiando-nos no ensaio que Michel Bouvier e Jean-Louis Leutrat consagraram a Nosferatu, eine Sympbonie des Grauens, de F. W. M urnau (1922). O livro de Bouvier e Leutrat, surgido em 1981, figura entre as análises fílmicas mais ricas e densas publicadas em França. Ele compreende duas partes distintas: a primeira analisa o film e globai e sinteticamente em oito capítulos, e a segunda inclui docum entação histórica exaustiva e uma sequência fotogram ática integral. O m étodo seguido inscreve-se na herança da iconologia de Panofsky: todos os elementos do film e são escrupulosamente dissecados e clarifi­ cados por numerosíssimas referências culturais aos valores metafísicos e plásticos do rom antism o alemão. O m odo de exposição, m uito pouco didáctico, refreou sem dúvida a influência que este notável ensaio deveria te r conhecido desde a sua publicação. O estilo dos autores é às vezes bastante difícil; procurámos reproduzi-lo a fim de lhe assinalar a per­ sonalidade. Incluim o-lo tam bém no nosso quinto capítulo com o ponto cimeiro das análises da imagem porque as suas perspectivas não são nem textuais nem narratológicas; voltarem os a ele no capítulo 7 ("Análise e história do cinema").

Bouvier e Leutrat dedicam-se principalmente a determinar, na totalidade do filme, as utilizações da superfície do enquadramento destinadas a produzir efeitos de terror (ligados ao emprego da técnica da íris), efeitos de realce (os fundos luminosos “não motivados”), efeitos metafóricos (recorrência de certos motivos gráficos ou geo­ métricos) e efeitos emocionais (uso de linbas oblíquas). Vamos reter alguns exemplos que não dispensam, evidentemente, o conjunto da análise dos autores. N o início do capítulo 2, Bouvier e Leutrat fazem a aproximação do célebre plano de Ellen, vestida de negro, sentada num banco junto do cemitério, à beira do oceano (plano 325, ver fotograma), a dois quadros não menos célebres de Caspar David Friedrich, Mulher à Beira-Mar e Cemitério de Convento. Os autores observam:

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5. A A N Á L IS E D A IM A G E M E D O S O M

“Nas telas desse artista, as imagens do mar, das falésias, as cores frias, a própria luz ou o enquadramento acabam por fazer vacilar a autonomia do sujeito que olha, servindo a expressão para que se imponham as aporias da distância”. Na imagem de Nosferatu, Ellen está colocada na fronteira entre as vagas, “transportadoras da ameaça mortal, e as terras de onde surgirão os seus amigos”. O que ela contempla é o mar, e o vazio. Essas imagens, após uma abertura com íris, permanecem delimitadas por uma máscara. Os autores indicam que se a abertura com íris pode figurar o aumento da luz a partir da obscuridade, também pode lembrar essa indiscrição ou esse voyeurismo cujo motivo tantas vezes se inscreve nos contos fantásticos românticos (por exemplo, em O Homem de Areia?®). O fantástico liga-se aqui a um certo retiro, e “essa fuga anónim a equivaleria ao movimento que difere a aparição do monstro, tal como ele costuma ser descrito”. A máscara traz assim algo de inquietante - como se na sua sombra se refugiasse o marginal. A sua aliança com os planos aproximados das personagens que olham, ou com os enquadramentos “assina­ lados” (como a primeira imagem do filme, o plano picado de uma torre) faz com que a presença só se torne sobretudo significante (na imagem) de “um indizível que a ameaça, ou do pressentimento que a assombra”. Para Bouvier e Leutrat, a composição de certas telas de Friedrich, como Falésias de Cal na Ilha de Riigen, oferece o equivalente de um a máscara fílmica: o primeiro plano das ervas e árvores compóe um a forma circular sombria que rodeia as falésias brancas recortadas sobre o mar. Eles observam que o filme propõe várias vezes ao espectador o revezamento do olhar e um chama­ mento a cada plano: “mas a estranheza conquista esses planos onde o olhar parece só afrontar-o infinito, e se perde, imóvel como o de um morto (planos 259, 443), ou fascinado, sujeito à vertigem (269) ou ao horror (384)”. 30 Der Sandmann, no originai, é um conto fantástico de E. T. A. Hoífman, datado de 1815. (N. do T.)

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Plano 325 de Nosferatu, eine Symphoniedes Grauens, de F. W. Murnau (1922).

Falésias de Cré na Ilha de Rugen, de C. D. Friedrich. W interthur, Fundação Reinhart.


5. A A N Á L IS E D A IM A G E M E D O S O M

Plano 259

Plano 443

Plano 269

Plano 384

No capítulo 5 os autores expandem a sua análise dessa funçáo muito particular da máscara e da íris no filme. Numerosos planos aproximados de personagens a olhar são revestidos por uma máscara: a fragmentação que essa proximidade implica, assim como a eliminação do fundo e da profundidade de campo, é reforçada por esse sinal, “de modo que esses planos não contribuem para escorar a unifica­ ção cenográfica, e não pedem necessariamente um contracampo”. O perigo não reside num determinado ponto de vista que permita relativizar a distância ao Outro. Nas íris, “a ameaça que emana de uma impessoalidade difusa na atmosfera, dissolvida no ambiente, arranja maneira de se fixar, parece surgir do próprio marginal, para onde se teria retirado a presença anónima que lhe está na origem”. Um exemplo: Um plano em picado revela, desde a prim eira imagem do film e, por trás de um campanário que desfigura o enquadram ento, a vila ao fundo. No extrem o oposto, o film e term ina com um contrapicado da silhueta do

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U

Li d ii

A A N Á L IS E D O F IL M E _____________________________ h e te r c

Plano 586

Plano 222

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Plano

^

liás alheio reudiana (i sem dúvid ral que se

Plano 14

castelo em ruínas a recortar-se sobre o céu. Nessa últim a i existe máscara nem ameaça; em compensação, desde a,() . ;cra ameaça im inente, mas oculta, confirm aria pela emoçãc essencial e trágica. A sombra circular das máscaras e íris, f

conceitos j ormes resis l; ‘Ve injustifiu

a.

ameaça à identidade, de certa form a avalia a autonom iaa c a personagens. Graças a esses efeitos de máscara nasce o pnalogia;e do tema, e impõe-se a atribuição a um poder anónimo, ce-ese un exto irradiante, dessa dependência aterradora. se ta rr

nQS

de um a a& A íris pode aparecer, ainda segundo a análise de Bo m cert!o texto é trat, como 'u m a secção de cone que serve para uma retanibé^ ^ intencic geométrica elementar da perspectiva”, equivalendo as huls, =ntre suj e fechamentos com íris a movimentos dessa secção. Nesse 0 c o ia q Lie| e s p a l manifestaria indirectamente um processo de apropriaçãcler{Lini £St^ }n forn O enquadramento não seria uma janela, mas o desdobis; eXp] demarcação pela íris; a acentuação da centralidade e o po ;on0ra insistente que ela parece traduzir permitem intensificar ,e n ce de inquietude e suspeita que ela imprime às imagens. cnf IC

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la de s ao vo------- —------ -



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