1 Contemporânea Revista do Mestrado em Artes Visuais — PPGART/UFSM
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1 Contemporânea Revista do Mestrado em Artes Visuais — PPGART/UFSM 3
Reitor Felipe Martins Müller Diretor do Centro de Artes e Letras Edemur Casanova Coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais Nara Cristina Santos Editores Nara Cristina Santos (Presidente) Gisela Biancalana Comitê Editorial Ayrton Dutra Corrêa (UFSM) Gilbertto dos Santos Prado (USP) Icléia Borsa Cattani (UFRGS) Luciana Hartmann (UNB) Maria do Carmo de Freitas Veneroso (UFMG) Maria Lúcia Bastos Kern (PUC-RS) Mara Luisa Távora (UFRJ) Rosângela Miranda Cherem (UDESC) Suzete Venturelli (UNB) Domingos Tadeu Chiarelli (USP) Revisão Elaine dos Santos Apoio Flávia Simone Botega Jappe Capa, Projeto Gráfico e Diagramação Daniel Pereira dos Santos / PACTAcom Periodicidade Semestral ANO 1 • Nº 1 • JULHO 2010 www.ufsm.br/ppgart ISSN XXX
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Editorial Contemporânea, a revista do PPGART/Mestrado em Artes Visuais da UFSM, marca neste ano de 2010 as atividades iniciadas em 2007. A jornada na Pós-Graduação começou com curso lato sensu, a Especialização Arte e Visualidade em 2005 como o primeiro passo para a implantação de um Programa de PósGraduação Artes Visuais/ Mestrado, stricto sensu no Centro de Artes e Letras em Associaão Temporária com o PPGAV/UFRGS. Tendo em vista o contexto em que se inserem hoje as Instituições de Ensino Superior (IES), sobretudo as universidades federais, e os atuais imperativos de sustentação da vida acadêmica em uma universidade pública, a ampliação e abertura de novos Programas de Pós-Graduação são necessidades prementes. Ao dar suporte às atividades científicas de pesquisa, o PPGART, articula uma massa crítica em torno de questões fundamentais relativas à área de Artes Visuais. O fato de a UFSM ter um Curso de Graduação em Artes Visuais com mais de 40 anos de trajetória, reafirma a necessidade de efetivar o papel social da UFSM na região em que se insere, ao oportunizar a oferta de Programas de Pós-graduação. É evidente a existência de uma demanda latente na cidade de Santa Maria ou na região central do Estado, de artistas, agentes culturais, entre outros profissionais, no que se refere à aproximação e reflexão da arte contemporânea. A proposta desta revista do Programa de Pós-Graduação/Mestrado em Artes Visuais vem ao encontro da necessidade de partilhar com este público a investigação consistente desenvolvida por pesquisadores das mais diferentes instituições de ensino superior do país na área de Artes Visuais, com ênfase na arte contemporânea, contribuindo para a construção dinâmica do conhecimento. Nesta edição, inaugural, trata da História e Teoria da Arte.
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O artigo inicial da revista, Como explicar Arte Contemporânea Brasileira para um público internacional, traz as experiências em história e teoria da Arte do teórico Tadeu Chiarelli, a partir de suas experiências curatorias. Com Espaço como questão contemporânea no campo das Artes Visuais: instalação, site specific, in situ a pesquisadora Ana Maria Albani de Carvalho discorre sobre a linguagem da instalação e seus desdobramentos no cenário contemporâneo. Ao tratar da Arte Contemporânea, historiografia e memória, Maria Lúcia Bastos Kern apresenta um panorama de como se configura a história da arte na contemporaneidade. Em Trajetória de vida de artista, Ayrton Dutra Corrêa contribui com uma aproximação de artistas nacionais, sua vida, seus processos criativos, suas obras. No artigo Temporalidade das formas na pintura mural religiosa: uma problemática para a contemporaneidade, Altamir Moreira relaciona temáticas distantes no tempo, mas presentes no discurso da arte. Para finalizar, com O trompe l’oeil e as sutilezas da aparição, Rosângela Miranda Cherem traça uma narrativa em torno da imagem na história da arte. Acredita-se que cada um destes teóricos, contribui com um discurso particular, apresentando pontos de vista distintos da história e teoria da arte, próprios de suas investigações acadêmicas e experiências pessoais, partilhando nesta revista uma parcela do conhecimento da arte na contemporaneidade.
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Sumário Como explicar Arte Contemporânea Brasileira para um público internacional Tadeu Chiarelli Espaço como questão contemporânea no campo das Artes Visuais: instalação, site specific, in situ Ana Albani de Carvalho Arte Contemporânea, historiografia e memória Maria Lúcia Bastos Kern Trajetória de vida de artista Ayrton Dutra Corrêa Temporalidade das formas na pintura mural religiosa: uma problemática para a contemporaneidade Altamir Moreira O trompe l’oeil e as sutilezas da aparição Rosângela Miranda Cherem
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CrĂŠdito
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Como explicar Arte Contemporânea Brasileira para um público internacional I Tadeu Chiarelli1 Ao ser convidado para participar deste Simpósio, resolvi discutir o trabalho curatorial que desenvolvo para o Instituto Valenciano de Arte Moderna (IVAM), de Valencia, Espanha, que ocorrerá entre setembro e dezembro de 2006: uma seleção do acervo do MAM de São Paulo intitulada “Desidentidade: arte contemporânea brasileira no acervo do Museu de Arte Moderna de São Paulo”. “Desidentidade” aborda várias questões sobre a arte contemporânea. Do Brasil. Em primeiro lugar, faz indagar sobre como construir um discurso sobre a fotografia e a imagem fotográfica na arte contemporânea brasileira, tendo um acervo determinado como limite e visando um público internacional. Por outro lado, levanta dados sobre o processo de institucionalização da obra de arte contemporânea, em seu deslocamento dos estúdios dos artistas e das galerias para os acervos dos museus. Neste relato será possível acompanhar como algumas obras passaram por esse processo, até serem integradas ao acervo do MAM para constituírem um núcleo específico. É possível adiantar que todas as obras que participarão de “Desidentidade” têm, em comum, além de pertencerem ao MAM, o fato de serem fotografias ou de terem sido produzidas, em sua maioria, a partir da acoplagem de fotos ou de imagens fotográficas a outros materiais ou objetos. Somente este fato dimensiona a complexidade da mostra, uma vez que se pretende que o público, ao visitá-la, perceba a importância do universo visual produzido pela fotografia para a compreensão da arte que se produz no Brasil desde o ano de 1970. Por outro lado, o termo “desidentidade” também se presta para identificar o processo de transformação passado pela fotografia em sua relação com as artes visuais nesse mesmo período. Se até os anos de 1960 ela foi usada principalmente como base para muitas pinturas, ou então reivindicou para
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1. Graduação em Educação Artística (1979), Mestrado (1989) e Doutorado (1996), pela USP. Orientador e professor junto ao Programa de Pós-Graduação de Artes Visuais. De 1996 a 2000 foi Curador-Chefe do Museu de Arte Moderna de São Paulo, e hoje, integra a equipe de diretores. Em 2007 foi eleito Chefe do Departamento de Artes Plásticas. Atual coordenador do Centro de Estudos Arte&Fotografia e o Grupo de Estudos de Crítica de Arte e Curadoria, ambos no Departamento de Artes Plásticas da ECA-USP.
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2. “La mirada contaminada: otras fotografias? The contaminated gaze: other photographies”, in Poliester. México, vol. 2, n.8, primavera de 1994, pp. 34/43. Republicado como “A fotografia contaminada” in CHIARELLI, Tadeu. Arte internacional brasileira. São Paulo: Lemos Editorial, 1999 pp. 115/120.
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si uma autonomia expressiva — pautada no engajamento político ou na busca de suas especificidades — nos anos que se seguiriam ganha força um processo de hibridação entre ela e outras modalidades artísticas. Essa trajetória da fotografia rumo à mescla com o objeto, a pintura, a instalação, a performance, a literatura, etc., é certo, não foi um fenômeno apenas brasileiro. Porém, quando observada no ambiente local, percebe-se que ela trouxe possibilidades para que o artista enfrentasse tanto a realidade sociopolítica do país quanto sua própria identidade, com um instrumento mais contundente, capaz de contagiar todos os elementos constitutivos do seu trabalho. Porém, os objetivos de “Desidentidade” não se restringem apenas a discutir o processo pelo qual passou a arte contemporânea brasileira quando absorveu a fotografia. A partir de determinados trabalhos, ela estabelecerá uma reflexão sobre outras duas questões fundamentais para a arte brasileira recente: Em primeiro lugar, “Desidentidade” apresentará a superação proposta por vários artistas dos grandes mitos identitários brasileiros — a bandeira nacional; a figura do indígena como símbolo do “verdadeiro” Brasil; a imagem de São Paulo e do Rio de Janeiro, como emblemas da pujança do país. Muitos dos artistas retomam tais mitos para tornar visível a crise que o Brasil passa a viver após a derrocada do projeto desenvolvimentista de Juscelino Kubtschek e o golpe militar de 1964 — crise essa que os governos civis não conseguiriam aplacar, pelo contrário. Em segundo, a exposição salientará a necessidade de o artista brasileiro demonstrar a impossibilidade de projetar uma identidade individual, numa situação como a contemporânea, em que o sujeito, mais do que nunca, encontra-se também envolvido por uma crise que o impossibilita de reconhecerse enquanto detentor de uma consciência plena de si e do mundo. Na última década, em duas oportunidades me detive sobre essas considerações. Refiro-me ao texto sobre fotografia brasileira contemporânea, escrito para a revista mexicana Poliester, em 19942 — que gerou a mostra “A fotografia contaminada”, apresentada no Centro Cultural São Paulo naquele mesmo ano — e à introdução para os catálogos das duas edições da exposição “Identidade/Não Identidade”, que organizei no Museu de Arte
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Moderna de São Paulo — já como curador-chefe dessa instituição3 — e no Centro Cultural Light, no Rio de Janeiro, em 19974. Ciente de que, na curadoria para o Instituto Valenciano, algumas das questões ali tratadas baseiam-se ou são resultado dessas atividades anteriores, examinarei os principais problemas tratados em “A fotografia contaminada” e em “Identidade/não-identidade”, antes de voltar-me para “Desidentidade”. Iniciei uma sistematização do uso da fotografia e da imagem fotográfica na arte brasileira no texto citado para a Poliester. Propuseram-me esse artigo porque já há algum tempo acompanhava alguns artistas que trabalhavam a questão, como Lenora de Barros, Iran do Espírito Santo, Hudnilson Jr. e, sobretudo, Rosângela Rennó. Pelo fato de a revista não ser nacional e dirigirse a um público que pouco ou nada conhecia sobre a fotografia realizada no país — sobretudo aquela desviada do conceito mais divulgado do termo — ocorreu-me construir uma “genealogia” da arte dos anos de 1980 e 1990, buscando no passado da arte local produções que pudessem ser revistas para se transformarem em hipotéticas precursoras daquelas obras que se produzia na época. Ao criar tal linhagem — nunca explicitada, mas contida no sentido geral do artigo e depois na exposição — estava ciente de seu aspecto ficcional. Essa manobra que transforma obras ou artistas do passado em supostos predecessores ou arautos de movimentos ou tendências artísticas que só surgirão num outro momento e numa outra circunstância, é claro, não foi criada por mim. Como se sabe, ela é recorrente na história da arte e da cultura, objetivando operacionalizar o passado para justificar o presente. Usei tal procedimento consciente de seus perigos, mas atento, igualmente, às possibilidades que ele poderia trazer para o início de uma reflexão sobre o tema no Brasil. No texto, antes de propor a referida linhagem, dividi a produção fotográfica brasileira em dois grandes blocos. No primeiro, situei todos os autores que, utilizando a fotografia, desenvolveram, desde o século XIX, o registro da paisagem física e humana local. Embora ciente de que tal segmento representava a maioria dos fotógrafos, não era sobre eles que me propunha escrever. Apesar de não explicitar, era justamente contra esse grupo majoritário que eu opunha a produção que formaria o segundo bloco:
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3. Para tornar clara a intimidade que tenho com o acervo do MAM de São Paulo, é preciso lembrar que fui curadorchefe daquela instituição, entre janeiro de 1996 e dezembro de 2000. Entre 2002 e 2004 fiz parte do Conselho da Curadoria do Museu e, a partir de 2004 integro o quadro de diretores do MAM. Em todas essas atividades sempre tentei contribuir na área de ampliação do acervo da instituição. 4. “Identidade/não-identidade: a fotografia brasileira hoje”, texto republicado in CHIARELLI, Tadeu. Arte internacional brasileira. São Paulo: Lemos Editorial, 1999. pp.132.
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5. Refiro-me aos trabalhos de Geraldo de Barros, Anna Bella Geiger, Iole de Freitas, Hudnilson Jr. e Lenora de Barros. Geraldo de Barros até aquela época era visto apenas como um dos pioneiros da vertente concreta da fotografia brasileira e como pintor concretista e designer. Seus auto-retratos, nitidamente performáticos e produzidos no mesmo período em que realizava suas experiências de cunho concreto, problematizava a visão institucional que vinham lhe conferido. Por outro lado, trazer para a discussão as obras que Anna Bella Geiger realizara nos anos de 1970 usando a imagem fotográfica, também recontextualizava o papel da artista na cena artística brasileira. Por outro lado, o texto também agiu como elemento de recuperação dos trabalhos de performance de Iole de Freitas, Lenora de Barros e Hudnilson Jr..
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aquele da fotografia “contaminada”. Esse último bloco, por sua vez, era dividido em dois grandes núcleos de autores e obras. No primeiro, reuni aqueles que refletiam sobre sua própria identidade, pautados numa subjetividade menos alinhada às questões sociopolíticas; no segundo, juntei os que questionavam de maneira mais explícita suas relações entre o indivíduo e a sociedade. Para traçar essa “genealogia”, busquei dois artistas da passagem do século XIX para o século XX em São Paulo — Militão de Azevedo e Valério Vieira — e, a partir de suas produções, desenvolvi os dois ramos mencionados: o primeiro, sob o signo de Valério Vieira e de sua fotomontagem “Os trinta Valérios”, foi formado por autores que, por meio de procedimentos fotográficos, mergulhavam em suas respectivas subjetividades, em busca do auto-conhecimento. Faziam parte desse grupo, além de Vieira, Geraldo e Lenora de Barros, Rochele Costi, Iole de Freitas, Hudnilson Jr., Rubens Mano, Nazareth Pacheco, Waleska Soares e Márcia Xavier; o segundo, sob o signo de Militão Azevedo e sua obra “Álbum comparativo da cidade de São Paulo”, era composto por aqueles que, por meio da fotografia, refletiram sobre a sua própria identidade em relação à sociedade brasileira em seus mais variados aspectos: além de Militão, Anna Bella Geiger, Jean Guimarães, Rosana Paulino, Nuno Ramos, Rosângela Rennó, Antonio Saggese e Regina Silveira. O texto, apesar de não se pretender exaustivo, teve alguns méritos. Em primeiro lugar, a “genealogia” ali criada tornou-se o primeiro mapeamento de uma produção que, até então, quando comentada, surgia apenas como uma curiosidade dentro da produção de determinados artistas5. Em segundo lugar, lançava para um público mais amplo pelo menos três artistas cujas produções mais tarde viriam a alcançar dimensão significativa: Rubens Mano, Rosana Paulino e Márcia Xavier.* “La mirada contaminada” tornou-se a base da exposição “Fotografia contaminada”, e durante sua montagem percebi que, na conceituação do texto original e, depois, na própria mostra, havia partido de um equívoco conceitual: não era a fotografia que se contaminara pelas outras modalidades, como o desenho, a escultura, a performance e a poesia. Elas é que haviam sido contagiadas pela presença da fotografia no campo da
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visualidade ocidental, a partir do século XIX. Para tal conclusão, bastou observar atentamente os trabalhos apresentados: e nenhum deles teria sido concebido se a fotografia não existisse.6 Apesar dessa conclusão, não redimensionei a mostra e nem sequer seu título porque — percebo em retrospecto — havia ali um interesse maior: era mais importante frisar a diferença daqueles trabalhos em relação à fotografia convencional que se produzia no Brasil (comprometida com a documentação da paisagem física e humana), do que aprofundar questões relativas aos processos de transformação que a arte passara e vinha passando no Brasil e no exterior, a partir da presença da fotografia. Contra a fotografia documental e antropológica, que ainda dominava a cena naqueles anos (e que herdara do Modernismo de 1922 o objetivo de retratar ou construir a identidade do Brasil e do brasileiro), cabia demonstrar que uma “outra” fotografia — aquela “contaminada” — manifestava a impossibilidade de seguir pregando uma identidade coletiva do Brasil, assim como uma identidade individual, concebida no conceito de um sujeito sem contradições. A sociedade brasileira — a partir, sobretudo, do segundo pós-guerra — passara por transformações em seu ingresso problemático na modernidade, e os avanços e recuos pelos quais passava tornava impossível tanto a construção ou manutenção de certos mitos da nacionalidade, como a estruturação de identidades individuais plenas. Se o caráter multifacetado e repleto de discrepâncias da sociedade impedia a manutenção daqueles mitos nacionais, ela igualmente demonstrava a identidade do artista como uma questão sempre incompleta e parcial. Tais considerações eram resultados dos estudos que então realizava sobre o tema da identidade brasileira na arte durante o século XIX e a primeira metade do século XX7. Demonstrar que a “fotografia contaminada” atendia melhor as demandas coletivas e individuais da sociedade contemporânea, ganhava prioridade e se sobrepunha a uma discussão que contemplasse problemas puramente artísticos ou estéticos, ou mesmo as relações daquela produção que me interessava divulgar e à produção artística internacional a qual estava ligada. Por outro lado, as limitações de espaço que geraram o primeiro enfoque
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6. “A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica”, primeira versão. In Magia e técnica, arte e política. Ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Ed. Brasiliense, p. 165 e segs.
7. Entre as décadas de 1980 e 1990 dediquei minhas pesquisas ao estudo da crítica de arte brasileira dos séculos XIX e XX, tendo realizado um ensaio sobre Gonzaga-Duque, minha dissertação de mestrado sobre a crítica de arte de Monteiro Lobato e meu doutoramento sobre a crítica de arte de Mario de Andrade. Nesses estudos estava preocupado em perceber na produção desses dois intelectuais a permanência — com sutis transformações — do desejo de formulação de uma arte com fortes características identitárias. Quando realizei a mostra “Fotografia contaminada” estava finalizando meu estudo sobre a crítica de Mario de Andrade.
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8. Cabe não esquecer que, para o catálogo da exposição “Fotografia Contaminada”, redigi o texto “A fotografia em exposição”, em que tecia uma análise sobre a produção apresentada, tendo como base principal, certas questões tratadas por Philippe Dubois em seu livro O ato fotográfico (Campinas: Papirus, 1993).
9. Apesar de naquele período ainda não ter me dado conta de que essa preocupação da fotografia com a busca da identidade nacional iniciara antes da década de 1950, inconscientemente chamava a atenção para um problema que ainda aguarda maiores estudos: apesar da “chegada” da fotografia moderna no Brasil naquela década, era a fotografia que documentava a paisagem física e humana do país aquela que parecia chamar mais a atenção do público interessado e do público em geral. 10. CHIARELLI, Tadeu. Arte internacional brasileira. São Paulo: Lemos Editorial. pp. 132.
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sobre o assunto — o curto artigo para a Poliester — ao mesmo tempo em que propiciava o início dessas reflexões, restringia seu aprofundamento8. A preocupação em continuar investigando se a identidade coletiva e individual permanecia um problema para as novas gerações de artistas, me levou a propor, em 1997, a exposição “Identidade/não-identidade”. No texto para essa exibição, eu considerava a fotografia produzida no Brasil dentro de preocupações acerca da identidade nacional, atento ao fato de que esse interesse teria migrado da pintura e da escultura modernista — Di Cavalcanti, Brecheret, Portinari e outros — para a fotografia, transformando esse assunto, em muitos casos, na própria razão de sua existência. Apontava os anos de 1950 como o início da absorção desse interesse com a identidade brasileira pela fotografia, alerta à luta que ocorria em seu interior entre o caráter fundamentalmente documental que até então a caracterizava e seu desejo de, em muitos casos, ser percebida em suas supostas singularidades artísticas9. A essas produções — que, partindo da objetividade do meio fotográfico, mapeava o Brasil e o brasileiro em busca de uma identidade nacional — contrapunha os artistas de “Identidade/Não identidade”. Eles, por meio da fotografia ou da imagem fotográfica, demonstravam a impossibilidade de caracterizar o brasileiro como um tipo social ou individual característico. Dispondo a obra de Anna Bella Geiger, “Brasil nativo/Brasil alienígena” (1977), como marco de uma nova visão crítica sobre a questão da identidade local, afirmava que era a geração de artistas surgidos na década de 1980 quem: (...) ao invés de continuar investindo na busca da identidade do brasileiro, principiou a se preocupar com a explicitação do “apagamento” desse mesmo ser, na verdade, sem traços distintivos dentro da complexidade social do país.10 Na seqüência, afirmava que tal apagamento teria se dado por duas vias: a primeira, surgida contra o antigo desejo de flagrar as supostas peculiaridades da população, postulava a impossibilidade de registrar o “brasileiro”, devido à pluralidade da sociedade local. Para tanto, os artistas investiam em
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propostas com conteúdo social, enfatizando a perda da identidade coletiva sem, no entanto, apelar para os postulados mais tradicionais, definidores da fotografia convencional (entre eles o culto à objetividade), e muitas vezes enveredando para hibridações radicais com outras linguagens. A segunda vertente, por sua vez, embora usasse de estratégias semelhantes às da primeira, tendia a não ter um endereçamento denunciatório evidente, preferindo restringir suas indagações ao campo da exploração da perda da identidade no âmbito individual. No primeiro grupo foram alinhados trabalhos de Chris Bierrenbach, Anna Bella Geiger, Cristina Guerra, Claudia Jaguaribe, Helio Mello, Rosangela Rennó, Paula Trope e Marcelo Zocchio. No segundo, Marcelo Arruda, Rafael Assef, Rochele Costi, Marcela Hara, Rubens Mano, Vicente de Mello, José Luis de Pellegrin, Leila Reinert, Geórgia Volpe e Márcia Xavier, sendo que Rubens Mano, Rennó e Márcia Xavier já haviam participado de “A fotografia contaminada” com outras obras, e Geiger com o mesmo “Brasil nativo/Brasil alienígena”. Aprofundando questões apenas intuídas na mostra de 1994, em “Identidade/Na identidade” evidenciava-se a impossibilidade de, no âmbito da sociedade e da arte contemporânea, continuar a busca da identidade coletiva ou individual, ao mesmo tempo em que se buscava algumas características que unissem as produções ali exibidas, sistematizando-as do ponto de vista técnico e formal. Tendo como oposição as principais correntes da fotografia “direta” que as antecederam, as obras ali apresentadas podiam ser divididas em dois pólos: Por um lado, eram percebidas produções que recusavam a objetividade da imagem fotográfica como interesse principal, chegando, em muitos casos, quase que à abstração e tendo o corpo humano (do próprio fotógrafo ou do modelo) como ponto de partida. Muitas dessas fotografias se aproximavam da pintura, quer pelo caráter bidimensional, quer pelo uso da cor ou de texturas. Por outro, eram observados os trabalhos que recusavam uma configuração de imagem bidimensional, plana, preferindo expandir-se pelo espaço para ganhar uma espessura real e não mais apenas virtual. Nesses, a tônica era a apropriação e o reaproveitamento de imagens fotográficas já existentes11. Finda “Identidade/não-identidade”, foi solicitado à maioria dos artistas
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11. Essas questões serão aprofundadas no decorrer do texto, quando forem comentadas as obras que passaram a pertencer ao acervo MAM.
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12. Doaram obras para o MAM: Marcelo Arruda, Rafael Assef, Chris Bierrenbach, Claudia Jaguaribe, Rubens Mano, José Luiz de Pellegrin, Leila Reinert, Rosângela Rennó, Mauro Restife, Márcia Xavier
13. Ressalte-se, no entanto que desde 1996, também vem sendo dada a devida atenção ao núcleo do acervo que contempla a fotografia direta, o fotojornalismo, a fotografia autoral e aquela de caráter antropológico produzida no Brasil. O MAMSP, em sua coleção, possui um expressivo núcleo desse tipo de fotografia, congregando obras de fotógrafos surgidos no Brasil a partir dos anos de 1950 até a atualidade.
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que doasse uma ou mais obras (dependendo da escolha da curadoria) à coleção do Museu, o que muitos fizeram12. Esta solicitação fazia parte de uma estratégia de atuação do MAM no sentido de constituir determinados núcleos em seu acervo, que pudessem atender a questões específicas do cenário artístico contemporâneo. A partir de “Identidade/não-identidade”, passou a interessar à Instituição formar um núcleo de obras que, por meio do uso da fotografia, problematizassem os mitos da identidade coletiva, as questões relativas à construção/dissolução da imagem individual, além de outras que revelassem concretamente o processo de “desidentidade” pelo qual passava a própria fotografia. Essa estratégia continuou nos anos seguintes, constituindo um dos núcleos mais significativos do acervo do Museu13. Foi dentro da preocupação em constituir esse núcleo, com obras já pertencentes ao acervo, e por outras que ingressaram no período posterior a 1995, que interessou trazer para o acervo do Museu uma série de trabalhos que pontuassem tais questões, permitindo ao observador entender como os artistas tornavam visíveis aspectos da crise que a sociedade brasileira vivencia, aprofundada a partir, sobretudo, do golpe militar de 1964. Agora comentarei uma série de obras que se integraram ao referido núcleo do acervo, com a intenção de configurar suas especificidades — bases para a compreensão da mostra “Desidentidade”. A entrada para o acervo dos “cartemas”, de Aloísio Magalhães, teve grande importância para o núcleo em questão porque essas obras, além de colocarem no contexto artístico dos anos de 1970 o problema da dissolução do artista como autor privilegiado, ao mesmo tempo problematizava uma série de mitos da identidade brasileira, alguns cultuados desde o século XIX. Pela proposta de Magalhães, qualquer indivíduo poderia produzir os “cartemas”. Para tanto, bastava comprar vários exemplares de um único cartãopostal, vendido em locais públicos, e colá-los num cartão duro, produzindo composições em que a objetividade das imagens fotográficas impressas nos cartões-postais era alterada, assim como seu sentido ideológico. Os quatro “cartemas” doados ao Museu, em 1996, apresentavam soluções abstratizantes de imagens de uma locomotiva em ação, de indígenas
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brasileiros, da cidade de São Paulo e da cidade do Rio de Janeiro. A imagem da locomotiva como símbolo do progresso, a figura dos indígenas como símbolo do Brasil “nativo”, assim como as imagens de São Paulo e do Rio — incensadas pelo regime militar — são problematizadas pelos jogos estabelecidos nas composições. Nos cartemas dedicados respectivamente a São Paulo e ao Rio de Janeiro, os elementos simbólicos de cada uma das imagens — São Paulo significando modernidade e pujança econômica; Rio de Janeiro, a conexão supostamente positiva entre natureza e cultura — ficavam comprometidos pelo ritmo de cores e formas que o artista estabelecia na composição, desestruturando as imagens originais. Esses trabalhos, por sua vez, estabelecem conexões com duas obras de Bené Fonteles, de 1980, doadas pelo artista no ano seguinte. Realizadas a partir de fotocópias e páginas de jornal, ambas apontam para questões que, no início daquela década, mobilizavam parte dos artistas conectados com os desafios que passavam o país e o mundo. Em “Corte”, Fonteles refaz a estrutura da bandeira brasileira — símbolo máximo da nação — usando a imagem de um jornal em que aparece um texto e uma foto descrevendo a fome no Camboja. A página do periódico, tratando da fome cambojana, ao ser moldada para formar a bandeira brasileira, conectava os problemas sociais do país asiático à situação de miséria em que vivia parte da população brasileira, sinalizando para uma nova situação que começava a viver o Brasil, agora inserido num universo tendente à globalização. Em “O dedo do metalúrgico”, usando a justaposição de uma mesma imagem do então líder metalúrgico Luis Inácio Lula da Silva, o artista, ao se apropriar da solução formal absorvida da experiência plástica norteamericana dos anos de 1960 (uma única imagem-módulo, repetida várias vezes), dava-lhe, no entanto, uma solução menos opulenta, projetando na figura do líder a esperança de transformação do país. Se essa obra transmite confiança no futuro, uma série de trabalhos também em xérox, de Mário Ishikawa, por ter sido realizada no período anterior àquele clima esperançoso de início de abertura política do qual o trabalho de Bené é fruto, trata do problema do sufocamento da comunicação no Brasil, provocado pela ditadura. Doada em 2003, com várias outras séries produzidas
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para serem veiculadas via correio, essa, em especial, usando o alfabeto de surdos-mudos, estabelece uma metáfora da história brasileira que, apesar da abertura política, da redemocratização e dos governos civis, pouco mudou. A presença da produção desses três artistas no acervo estabeleceu outros encaminhamentos para se pensar a arte brasileira contemporânea, fora dos parâmetros já estabelecidos pelos textos de história da arte existentes. O desestruturar das imagens das megalópoles brasileiras, pelo apagamento da objetividade fotográfica, ou da problematização da mesma, foi proposta por vários artistas, a partir dos anos de 1970. Além das obras de Aloísio Magalhães, ingressaram para o acervo do MAM, entre 1996 e 2000, várias outras que discutiam tal problema. Dentre elas, uma fotografia de Rubens Mano (produzida e agregada ao acervo em 1999), em que a imagem de São Paulo aparece completamente desfocada; uma instalação sem título de Caio Reisewitz (produzida e adquirida em 2000), em que a linha do horizonte de São Paulo — perdida pelo excesso de construções —, era reconfigurada por meio de fotos atuais da cidade e de detalhes de pinturas do século XIX, cujos últimos planos possibilitavam a visão do horizonte da cidade. Também uma série de três obras de José Guedes (produzidas em 1999 e doadas em 2005), em que o artista justapunha às imagens fotográficas desfocadas da periferia de Fortaleza um campo pictórico negro, totalmente monocromático, são exemplos de como os artistas representam a dissolução do conceito de projeto urbano na sociedade atual, comprometendo o uso da imagem das cidades como símbolo do desenvolvimento do país. Também recentemente a artista Regina Silveira doou uma série de serigrafias produzidas na década de 1970, em que sobrepunha a imagens de grandes cidades brasileiras, grades geométricas que, conferindo novos significados às cenas originais, propunham outras possibilidades de compreensão daqueles símbolos de vigor e pujança econômica. Outras obras que entraram para o acervo do MAM, e que também atestam essa necessidade de muitos artistas desestruturarem as imagens redentoras de São Paulo, são aquelas de Márcia Xavier que ingressaram no acervo em 2001 e 2005, em que fotos aéreas da cidade, colocadas em cilindros espelhados, confundem a percepção do espectador em relação à imagem 18
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objetiva da cidade. Doadas após o término de “Identidade/Não identidade”, as obras de Chris Bierrenbach e Marcelo Zocchio, juntamente com um tríptico de autoria de Paula Trope (que ingressou no Museu em 1995), abriram no acervo uma nova possibilidade de se refletir sobre a representação das camadas pobres urbanas. Nesses trabalhos, os postulados da fotografia “engajada” ganham outros contornos. A estratégia de Marcelo Zocchio, ao atentar para a falência do projeto moderno brasileiro, deu-se enfatizando a presença dos sem-teto fotografados por ele. Em “Os sem”, de 1997, ao criar um ritmo visual por meio da cor vermelha que usou para realçar a presença daquelas pessoas nas cenas fotografadas, o artista, formal e ideologicamente, se aproxima do processo de produção dos trabalhos de Aloísio Magalhães, mostrando a dificuldade em se abstrair a precessão da miséria documentada sob o jogo de cor que a anula e, ao mesmo tempo, a enfatiza. Nos “Vitrais” (1996) de Chris Bierrenbach, por sua vez, a população marginalizada das metrópoles surge com uma aura de transcendência que amplia as possibilidades do registro meramente documental da miséria brasileira, praticada por muitos fotógrafos. Paula Trope, usando câmaras pin-hole para fotografar crianças sem-teto e depois lhes entregando a câmara para que elas mesmas registrassem o entorno, traz para o âmbito da arte o olhar do “outro”, esse “outro” que, mesmo por breves minutos deixa de ser objeto para transformar-se em sujeito da experiência. As estratégias para explicitar e compreender a falência do projeto de transformação do país, tanto por parte dos governos militares quanto dos civis que os sucederam, encontram realizações concretas na produção de artistas que, utilizando-se de procedimentos que fogem das modalidades artísticas mais consagradas — a pintura, a escultura e a fotografia “mesmo” -, estabelecem outras possibilidades de compreensão desse fenômeno. Neste contexto, a obra de Rosângela Rennó, “O grande jogo da memória”, (1991/92), pode ser interpretada como uma formulação que ajuda a tornar visível, em termos poéticos e críticos, a questão da invisibilidade efetiva
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daquela parte da comunidade brasileira, alijada de seus direitos de cidadãos. Para tanto, a artista apropria-se não apenas de fotografias de indivíduos anônimos, mas também de um jogo infantil que lida, concomitantemente, com a memória e com o esquecimento. Produzida em 2005, nesse mesmo ano entrou para o acervo do Museu uma outra obra em que presença e ausência, memória e esquecimento, também são os conceitos trabalhados. “Partida”, de Alberto Bitar, longe de qualquer dimensão política ou de denúncia social mais evidente, reflete sobre o tempo e a dispersão da memória a partir da manipulação em computador de uma velha foto de família, em que brasileiros anônimos estão registrados. A figura do índio, desestruturada no “cartema” de Aloísio Magalhães, é igualmente problematizada em outras obras pertencentes ao MAM. “Armário de índio” (1985), de autoria de Farnese de Andrade, (doado pelo artista em 1986), e o segundo, “Brasil nativo/Brasil alienígena”, de Anna Bella Geiger — que tendo participado das mostras “Fotografia contaminada” e “Identidade/ Não identidade” — foi adquirido pelo MAM apenas em 2006. A obra de Geiger apresenta dois conjuntos de cartões-postais. O primeiro mostra uma série de nove exemplares em que são apresentadas cenas de indígenas brasileiros em situações cotidianas, elevados à condição de parâmetros para o conceito de identidade brasileira. No segundo, a artista se faz representar repetindo aquelas mesmas situações, justapondo/ contrapondo àquelas imagens emblemáticas sua condição de brasileira, branca, filha de imigrantes europeus e artista plástica. Se a obra de Geiger revê em chave paródica o mito do índio, a presença de um cartão-postal representando indígenas numa cena de aldeia, em “Armário de índio”, amplia o grupo de obras que, no MAM, questionam os mitos identitários do brasileiro, impostos pelas instâncias de poder. Nela, e em outras obras de Farnese pertencentes ao Museu, percebe-se um artista que constituiu sua poética desenvolvendo um conceito de Brasil pautado na coexistência do arcaico e do atual, equilibrado entre a lembrança e o esquecimento. Farnese de Andrade, com essas obras em que a imagem fotográfica apropriada muitas vezes ocupa um papel fundamental, propõe uma subjetividade cindida, pautada na luta inglória do indivíduo contra os 20
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elementos sociais de repressão: a família, a religião, o estado. O processo de ruína da unidade do sujeito, percebido em Farnese, também pode ser captado em obras de outros artistas que, a partir de 1996, ingressaram no acervo do MAM, investindo na problematização do gênero do auto-retrato. Os trabalhos de Neide Jallageas, (realizado em 1999 e doado no ano seguinte), Edouard Fraipont (realizado em 1999 e doado em 2002), Rafael Assef, Rubens Mano (os dois últimos tendo ingressado no acervo a partir da mostra “Identidade/não-identidade”) atestam como certas técnicas consideradas espúrias pela fotografia mais convencional — o desfocado, a manipulação da imagem por componentes químicos ou por falta de iluminação, a dupla exposição, etc. — podem ser usadas como recursos que salientam as proposições dos autores. Os auto-retratos produzidos por esses artistas apresentam configurações que enfatizam questões propicias para a constituição da subjetividade contemporânea: perda de referenciais, solidão, incomunicabilidade. As obras autobiográficas de Nazareth Pacheco, realizadas em 1993, presentes em “Fotografia contaminada”, em 1994, ampliam e problematizam a coleção de auto-retratos da instituição. Constituída por 15 caixas de madeira (três delas doadas pela artista ao Museu em 2006), com fundo de chumbo e tampo de vidro, nelas Pacheco apresenta uma coleção de documentos — objetos, fotos, cartas, receitas médicas etc. — que atestam o processo de transformação a que foi submetido seu corpo por médicos brasileiros e internacionais, a mando de sua família, para moldálo aos padrões da beleza convencional. Como resultado dessa transformação dos documentos de sua vida em arte, Nazareth apresenta trabalhos que — trafegando por uma tradição que vai do artista norte-americano Joseph Cornell, do francês Christian Boltanski, ao brasileiro Farnese de Andrade — ampliam o conceito tradicional de auto-retrato, redimensionando a problemática da construção da identidade individual na arte contemporânea. Em 1997, uma fotografia de Amílcar Packer tornou-se a capa do catálogo do “Panorama de arte brasileira atual”, principal exposição de arte contemporânea do MAM. Ela mostrava o então jovem artista emergindo da gola de um suéter, uma imagem que denunciava ter sido captada de um
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vídeo. Era um dos primeiros trabalhos de Packer, que depois caracterizaria parte de sua produção por performances gravadas em vídeo que serviam de base para fotografias. Usando o próprio corpo, o artista desnaturalizava as relações que o indivíduo mantém no seu dia-a-dia com as roupas e outros objetos de uso cotidiano (mesas, cadeiras, carpetes, tapetes etc.). Subvertendo essas conexões culturalmente predeterminadas entre o corpo e os objetos mais comezinhos, Packer produz alegorias, às vezes cômicas, às vezes trágicas, dos limites da condição humana na atualidade. Dentro do grande número de artistas que trabalham no Brasil com a questão do apagamento da identidade pessoal a partir de auto-retratos, as produções de Lenora de Barros ocupam um espaço singular. Egressa da poesia visual, a artista desenvolveu, ao longo de sua carreira iniciada no final dos anos de 1970, uma série de foto-performances em que a dissolução do eu é tratada em termos tragicômicos, conferindo ao assunto uma dimensão pouco usual. Finalmente agregados ao acervo da instituição em 2006, trabalhos como “Homenagem a Segall” (presente na mostra “A fotografia contaminada”, de 1994) e “Procuro-me” redimensionam o núcleo de auto-retratos do MAM. Ao trazer para esse universo situações de ordem banal (o ato de escovar os dentes) ou dramática (os cartazes de procura de marginais), estes trabalhos reposicionam as questões sobre a perda de identidade do sujeito na sociedade contemporânea. Esse núcleo de auto-retratos problematizados pelas indagações dos artistas sobre os novos endereçamentos da própria identidade, também ganhou outras possibilidades de reflexão, a partir da entrada de obras de Sandra Cinto, Keila Alaver e Lia Chaia. Nos dois objetos sem título da primeira artista, produzidos respectivamente em 1999 e 2000 (doados ao Museu nesse último ano), sua imagem aparece conjugada a objetos representando elementos do cotidiano — mesa e livros. Sobre esses últimos, Cinto gravou desenhos de ressonância lírica, e sob o tampo da “mesa”, aderiu bulbos de vidro fosco. Todas essas formas, umas prosaicas, outras intrigantes, quando percebidas em conjunto com a imagem fotográfica da artista em repouso, configuram situações enigmáticas, em que a definição do sujeito deixa de se evidenciar pela própria imagem 22
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representada na fotografia, para espraiar-se pelas formas a ela agregadas. “Karen, Eliane, Henry, Keila, Ellen, Sandra e Kellen” (1997), de Keila Alaver, integrada ao acervo em 2006, traz para o núcleo de auto-retratos outro exemplo do processo da manipulação fotográfica como um dado comum na constituição da subjetividade contemporânea. A partir da apropriação de uma foto em que a artista, quando criança, aparece reunida com seis amigos, Alaver acopla a cada uma delas cabeças de bonecas, típicas no Brasil, durante os anos de 1960/1970. O que, num primeiro momento, poderia fazer pensar numa regressão ao universo mítico da infância, aponta para uma questão já percebida na série de trabalhos de Nazareth Pacheco: a submissão de todos à criação de personas que nos protejam no relacionamento com o mundo. Dentro dessa mesma questão, é que pode ser situado “Fotolíngua” (2003, doada no mesmo ano), auto-retrato de Lia Chaia. A artista, sobretudo a partir de uma série de foto-performances que esse trabalho integra, desenvolve um processo de construção de uma personagem — também percebida em alguns de seus vídeos — em que assume o papel de uma figura mítica, dúbio misto de natureza e cultura, que interage com a ríspida situação urbana de São Paulo. Nesse auto-retrato, a imagem da artista, vomitando uma folha de árvore, pode ser interpretada como um emblema da cidade que responde às contínuas agressões que sofre. O corpo de Chaia, transformado em corpo da megalópole — sua individualidade tomada por um sentido especial de coletivo — é o que esse auto-retrato possibilita compreender. Dentro dessa série de trabalhos que questiona as convenções do autoretrato, outra obra significativa é o “auto-retrato coletivo” proposto por Michel Groisman, “Polvo”, produzida e doada para o MAM em 2000. Nessa espécie de performance em grupo, o artista propõe um jogo em que o indivíduo vai aos poucos tomando consciência do próprio corpo — seus limites e potencialidades. Conectada às proposições de Lygia Clark, “Polvo”, porém, traz uma ironia sobre suas próprias regras, evidenciando que nem sempre o contato puramente físico com o outro ou consigo mesmo é a estratégia mais eficaz para a construção da identidade, seja ela coletiva ou individual.* Uma questão que caminhou paralela a essa preocupação com o processo
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de desestruturação, tanto da identidade coletiva quanto da fragmentação da identidade individual, como mencionado, foi o processo de desidentificação que a própria fotografia sofreu nas últimas décadas. Nesse período ela deixou de ser produzida apenas para apelar para suas potencialidades estruturais (caso da fotografia herdeira dos cânones da straight photography e da “Nova visão” alemã), ou de documentação (autoral ou não), para infiltrar-se enquanto imagem e matéria na própria concepção das obras. A produção que vem sendo elencada aqui faz uso da fotografia ou da imagem fotográfica, redimensionando sua capacidade de envolver-se e transformar-se, viabilizando, de fato, a configuração talvez mais plena da subjetividade atual. Dominando todo o cotidiano e, ao mesmo tempo, aparentemente invisível em sua onipresença, a fotografia analógica ou digital criou um mundo em que muitas vezes as fronteiras entre o real e o virtual tornam-se difusas e mesmo intercambiáveis. Parece ser nesse sentido que vários artistas se apropriam do meio fotográfico e pós-fotográfico, conferindo às imagens por eles geradas uma outra espessura que lhes resgate novas possibilidades para continuar de fato significando. Nesse processo, algumas obras que foram agregadas ao MAM conferem à imagem fotográfica uma nova densidade não apenas metafórica, mas também física. O auto-retrato de Rafael Assef, aqui já citado, “Corpo inteiro”, interessa não apenas pela força da imagem que parece em processo de apagamento, (transmitindo uma série grande de possibilidades de interpretação sobre o apagamento da identidade do artista), mas, igualmente, pela espessura avantajada da moldura que o envolve. É como se Assef, consciente da pouca atenção consciente que a fotografia provoca hoje em dia, conferisse à obra uma densidade de objeto tridimensional, garantindo uma efetiva concretude e visibilidade da imagem. Essa mesma característica pode ser observada nas obras de Dora Longo Bahia e Fernanda Rossarolla. Na série de diapositivos que Longo Bahia transferiu para o papel via serigrafia, a inclusão de detalhes realizados em gravura torna perenes os sinais que indicam o processo de apagamento das imagens, causado pelos fungos que atacaram a película em que elas originalmente foram fixadas. Sua 24
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preocupação em criar essas pequenas crostas que dão espessura às imagens contaminadas pela ação corrosiva do tempo, atesta como a necessidade de conferir corpo à imagem fotográfica tornou-se uma questão fundamental para alguns artistas contemporâneos. Ainda na coleção de trabalhos de Longo Bahia no MAM, nota-se essa mesma preocupação em dois back-lights produzidos por ela. Naquele de 2000, Longo Bahia transforma uma outra imagem com pontos carcomidos pelos fungos num objeto espesso que se impõe no espaço não apenas pela luminosidade, mas também pelo caráter encorpado que ostenta. Em “Fúlvio e a medusa” (produzido em 2001, tendo ingressado no MAM em 2006), a artista aproveita o caráter translúcido do alabastro para compor a caixa de luz que ilumina a imagem pouco definida de uma pessoa que parece se esvair. Por sua vez, as obras sem título que Fernanda Rossarolla produziu em 1999 (doadas em 2000), apresentam uma outra solução para esse desejo de encorpar a imagem fotográfica, conferindo-lhe uma consistência que supostamente ela teria perdido, caso se contentasse com o caráter bidimensional do suporte de papel. Nessa série, a artista escolheu fotos de cinco amigas, ampliou-as por meio de fotocópias coloridas, imprimindo-as em tecido num tamanho aproximado do real, antes de almofadá-las. Quando exibidas, o efeito dessas obras resgata os mistérios que envolveram — e ainda envolvem — as relações entre a imagem fotográfica e o observador. Absurdamente reais quando vistas de longe, são como duplos de seus modelos, fantasmas, sombras. A desidentidade do meio fotográfico assumirá, no campo das artes visuais, uma série de estratégias de manifestação que o MAM tem procurado captar e levar para seu acervo. Dentro dessa situação, nota-se um tipo de uso da imagem fotográfica, em que, propositadamente, ela perde qualquer liame com a tradição do flagrante e do “momento decisivo” — que determinaram e ainda determinam muito da produção fotográfica — ou mesmo com a obrigação de ser direta e objetiva. Nos trabalhos de Mariano Klautau Filho e de Guilherme Maranhão — que entraram no Museu em 2005 — a imagem fotográfica, ao se justapor ou mesclar-se a outra, transforma-se em elemento de uma narrativa, em quase-
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14. Walter Benjamin. Obra citada.
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fotograma de um filme sempre incompleto, em que imagens do real tendem a se tornar oníricas, conferindo novos sentidos para as elas. O mesmo pode ser estabelecido em relação aos trabalhos de Helena Martins Costa. Ao se apropriar de uma foto de um velho álbum de família, a artista como que surpreende o caráter sempre lacunar da imagem fotográfica, e por isso a submete a transformações. Ela a secciona, tornando-a duas, ela a multiplica, fazendo-a desvanecer. Do índice impreciso (as mulheres estão descansando ou estão mortas?), ao apagamento total do mesmo, a fotografia atesta nas duas propostas de Martins Costa sua natureza mais polimorfa do que possuidora de uma essência plena e indissolúvel. Já nas produções de Alfredo Nicolaiewsky, obtidas por meios pósfotográficos, há como uma radicalização das potencialidades de significação das imagens quando — oriundas dos mais diferentes campos — formam parataxes de apelo simbólico, alegórico. Nelas, a ironia se dá pela capacidade do artista — agora, mais do que nunca, um editor de imagens — selecionar no vasto banco de imagem produzido pela humanidade, aquelas que, assim que reunidas, detonam redes inusitadas de significados. Nessa associação do papel do artista como editor, o MAM possui uma obra que demonstra literalmente esta situação. O livro “Velazquez”, de Waltércio Caldas, ao borrar imagens e texto, impedindo sua visualização plena, retira a virtualidade sempre presente na concepção de qualquer livro, para reforçar seu caráter de objeto que reivindica sua presença física. Tal proposição, entretanto, ao mesmo tempo, não retira o caráter alegórico de “Velazquez”, uma vez que nesse processo de redução à sua mera condição de objeto mudo, o artista não deixa de criticar o processo de consumo da obra de arte, a partir, sobretudo, da proliferação dos livros ilustrados por fotos de obras já consagradas. Com esse trabalho, Waltercio Caldas confirma e transcende as palavras de Benjamin, quando esse afirmou que não interessava mais refletir sobre as relações da fotografia com a arte, mas sim os processos de transformação da arte em fotografia14. E não só a arte, atesta “Velazquez”, mas a própria realidade. Fechando esse núcleo de obras do acervo do MAM, é importante atentar para duas obras que, ao se constituírem a partir da consciência de uma cultura
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material surgida da fotografia, apresentam outras alternativas para se pensar a onipresença da imagem fotográfica no cotidiano, nas últimas décadas. “Principia” (1997/2002), de Vik Muniz, apresenta um aparelho estereoscópico, com uma série de imagens para serem apreciadas. A gratuidade assumida por aquele objeto nos dias atuais, em que as tecnologias para a visualização de imagens ganharam tanta sofisticação, transforma-o num emblema da própria fotografia e do processo de rápida obsolescência pelo qual passaram os instrumentos, objetos e procedimentos criados a partir dos primeiros experimentos para a fixação da imagem no plano, a partir do século XIX. Já em “Biblioteca”, de Rosângela Rennó, dá prosseguimento ao paulatino crescimento da obra da artista no acervo do MAM, obra essa que se caracteriza por evidenciar e problematizar a onipresença da fotografia na sociedade contemporânea, exacerbada pela produção de uma série de objetos produzidos para guardá-la, arquivá-la, conservá-la e esquecê-la. A longa descrição das principais obras que formam o núcleo das “desidentidades”, no acervo do MAM, arrola as obras que participarão da exposição de Valencia, ao mesmo tempo em que estabelece as coordenadas conceituais que nortearam sua concepção geral. Ao ser convidado para conceber a exposição que celebraria o acordo de cooperação entre o Instituto Valenciano de Arte Moderna e o Museu de Arte Moderna de São Paulo, a proposta inicial foi pensar uma exposição antológica da fotografia brasileira contemporânea produzida dentro dos padrões da fotografia bidimensional. Apesar dessa expectativa, considerei que para essa exposição seria oportuno levar uma coleção de obras menos convencionais que demonstrassem outras possibilidades que os artistas brasileiros criaram para o uso da fotografia e da imagem fotográfica. Não desejando corroborar a visão exótica que o público internacional possui do Brasil — paraíso tropical, povoado por um povo sensual, alegre e despreocupado, embora marcado pela violência — e a visão que o próprio país criou para si mesmo em suas instâncias de poder — justamente um paraíso tropical, repleto de sensualidade, mas com uma pujança econômica apreciável, sobretudo em suas metrópoles — foi que optei por reunir os
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trabalhos acima mencionados que, em primeiro lugar, demonstram a desestruturação de todos esses estereótipos. Creio que “Desidentidade — Arte brasileira contemporânea no acervo do Museu de Arte Moderna de São Paulo”, reunindo esses trabalhos que desnaturalizam as noções mais aceitas de Brasil e do brasileiro, constitui um universo de obras que atestam a crise pela qual passa nossa sociedade já faz muitas décadas, apesar de tentativas infrutíferas para superá-la. Não que os trabalhos escolhidos ilustrem essa crise. Produzidos a partir do final da década de 1970, eles a tornam visível e criam pistas para que o visitante da Instituição espanhola possa criar sua própria compreensão dos impasses que hoje vivem determinados artistas no Brasil. Impasses em relação ao desmoronamento das utopias formuladas durante o século XX e que projetavam o país para um futuro de redenção de seus problemas coletivos seculares, em que sua população poderia ter sua identidade recriada, constituída por uma subjetividade permeada pela integração pacífica de seus desejos ao todo da comunidade. Como ponto de partida da mostra, será apresentada a já mencionada série de trabalhos de Mario Ishikawa, que trata da incomunicabilidade. Criada num período de forte repressão política e concebida para ser divulgada clandestinamente via correio, ela, ao mesmo tempo em que atesta como o período ditatorial pós 1964 desestruturava as possibilidades do trânsito de idéias entre os brasileiros cerceados pela censura, servirá de metáfora dos limites da própria exposição: como “explicar” a arte brasileira contemporânea para um público internacional, uma vez que uma exposição sempre parte de um desejo de configurar uma totalidade impossível de ser alcançada?
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Espaço como questão contemporânea no campo das Artes Visuais: instalação, site specific, in situ Ana Albani de Carvalho1 A noção de espaço desempenha um papel significativo na própria delimitação categórica das artes plásticas, definidas historicamente como espaciais e, por este caráter, diferenciadas das outras artes nas quais o tempo prepondera, como a poesia, a música ou a dança. A consolidação da fotografia legitimada como arte e, mais adiante, o investimento em práticas que conduziram, por um lado, à desmaterialização do objeto artístico e, por outro, à inclusão da imagem em movimento através do vídeo e de outras tecnologias, ampliaram o antigo recorte categorial, agora muito mais focado na exploração da visualidade (artes visuais). Neste cenário, o espaço ainda poderia ser considerado como chave conceitual passível de sustentar uma formulação teórica e crítica pertinente para a análise da produção recente? Ou teria definitivamente perdido seu lugar para o conceito de tempo, por exemplo? A possibilidade de responder a estas indagações — e, mais do que isto, a razão de formulá-las — depende do modo como definimos a noção de espaço e o uso que fazemos dela. O texto a seguir contempla algumas questões desenvolvidas em maior profundidade ao longo da tese de doutorado “Instalação como problemática artística contemporânea: os modos de espacialização e a especificidade do sítio”, defendida em 2005, junto ao Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais da UFRGS2, na qual o leitor interessado poderá encontrar a bibliografia pesquisada sobre o tema, assim como a análise de um número expressivo de obras vinculadas às noções de instalação, site specific e in situ. Este artigo concentra-se na apresentação da problemática espacial e em comentar sua importância para o campo da teoria e da crítica voltada à arte contemporânea. O espaço, desde que considerado em sua complexidade conceitual,
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1. Professora e pesquisadora junto ao departamento de Artes Visuais do Instituto de Artes da UFRGS. Doutora em História, Teoria e Crítica de Arte pela UFRGS, crítica de arte e curadora independente (ana_albanidecarvalho@yahoo. com.br)
2. A pesquisa de tese foi desenvolvida na ênfase em História, Teoria e Crítica da arte, sob orientação da profa. Dra. Icleia Cattani e incluiu um estágio (bolsa Capes) junto à École des Hautes Études en Sciences Sociales, em Paris — França, como-orientação do prof. Dr. Jacques Leenhardt, graças a uma bolsa Capes de doutoradosanduíche.
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desempenha um papel relevante no cenário artístico contemporâneo. No que concerne aos diversos aspectos ligados à concepção e instauração da obra por parte do artista, encontramos, nas instalações e nas obras que operam com a especificidade do sítio no qual são expostas, um bom exemplo quanto ao modo como o espaço atua enquanto fundamento e questão. A consideração dos aspectos espaciais de uma obra de artes visuais, por certo, não se restringe àquelas que investem na tridimensionalidade ou se apresentam como objetos. Todos os elementos relativos ao modo como uma obra se materializa — escala, materiais, suporte, disposição no recinto de exposição, etc. — podem ser considerados pertinentes a uma análise de cunho espacial. Entendemos, também, que toda obra de arte partilha — de certo modo, representa ou configura — uma determinada concepção de espaço, podendo apresentar-se com uma peça autônoma em relação ao sítio que ocupa no recinto de exposição, ou defendendo uma postura relacional. Seja como for, as relações entre a obra de arte e o recinto de exposição como espaço compartilhado (obra — espectador — local de exposição), podem ser objeto de uma reflexão ancorada na questão espacial. Nestes termos, tal conceito é pertinente também aos estudos desenvolvidos no âmbito da teoria e da crítica de arte, com especial ênfase naqueles que enfocam temas relativos à exposição, projetos museográficos e curatoriais.
I. Modos de Espacialização 3. Remetemos especialmente para REISS, Julie. From Margin to Center: the spaces of Installation Art. Massachusetts: MIT Press, 2000, no qual a autora aborda as relações entre os termos “instalação”, “exposição” e “ambiente” e seu estabelecimento no vocabulário artístico, entre as décadas de 1960 e 1970.
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Ao longo de nossos estudos sobre fundamentos metodológicos e teóricos, formulamos a noção de modos de espacialização como uma categoria adequada à análise e à compreensão da problemática colocada pelas obras que se configuram como instalações e/ou que trabalham com a especificidade do sítio (site specific) ou, ainda, possuem caráter in situ. O emprego dos termos “instalação”, “site specific” e “in situ” tem sido objeto de atenção por parte de diversos autores3, sendo que a revisão detalhada desta bibliografia escapa aos limites do presente artigo. Trabalhamos com as referidas noções enquanto problemáticas artísticas, nas quais o espaço desempenha um papel preponderante. O que isto significa?
Espaço como questão contemporânea no campo das Artes Visuais: instalação, site specific, in situ
Em primeiro lugar, na medida em que são consideradas como problemáticas, não comportam definições estanques, com limites intransponíveis. Uma instalação pode ou não, a rigor, operar como uma obra concebida e produzida para um sítio específico (site specific, para usar a terminologia inglesa que se tornou usual no vocabulário crítico). Por sua vez, uma pintura, uma fotografia ou uma escultura podem operar como obras para sítios específicos. Em segundo lugar, as instalações, as obras site specific e in situ, distinguem-se pelas diferentes modalidades de vínculos com o local que ocupam (o sítio) quando estão em exposição. O modo como incorporam a presença e as ações do espectador também constitui um dos vetores desta relação entre a obra e o recinto de exposição. De uma maneira resumida, uma instalação decorre de uma operação de instalar, isto é, da disposição de determinados elementos — sejam eles de ordem visual, sonora, etc. — coordenados entre si, por uma coerência de ordem conceitual, poética, e destinados à fruição estética. As instalações envolvem procedimentos de montagem e, por conseguinte, são passíveis de desmontagem. Em outras palavras, podemos desagregar os elementos que compõem uma instalação, o que é impensável no caso de uma pintura ou um desenho, por exemplo. Assim, as instalações estão disponíveis para uma apreciação autêntica por parte do espectador — e, em certa medida, inclusive para o autor da obra, o artista -, somente quando montadas no recinto de exposição. Diferentemente de uma pintura ou escultura — obras que podem ser integralmente apreciadas mesmo quando armazenadas em uma reserva técnica de museu ou no ateliê do artista -, as instalações precisam de um espaço que as acolha. Aqui reside o caráter temporário da instalação, decorrente da possibilidade de sua “des-montagem”. O local da exposição, por sua vez, participa da experiência sensível que temos, junto à obra, em maior ou menor grau de intensidade. Por outro lado, mesmo “des-montada” — e assim, não acessível à fruição por parte do espectador — a obra permanece em sua dimensão conceitual, podendo ser objeto de uma nova instalação, em outro momento e local. Segundo esta linha de raciocínio, a instalação é resultado de uma trajetória de pesquisas artísticas, ao longo da
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“instalação”, “exposição” e “ambiente” e seu estabelecimento no vocabulário artístico, entre as décadas de 1960 e 1970.
4. Tangenciamos aqui a questão dos bancos de dados e dos arquivos digitais, suas capacidades de armazenamento e a durabilidade dos suportes, quando confrontados aos meios tradicionais, como o papel e o negativo fotográfico. Os limites do presente artigo não comportam um adequado desenvolvimento deste tema tão instigante e que ainda aguarda por pesquisas específicas.
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qual a exposição foi assumida como linguagem e não apenas como resultado factual de um conjunto de obras isoladas. Uma obra site specific, também de modo sucinto, consiste em um trabalho concebido, projetado e realizado para um sítio específico. Este último, por sua vez, é considerado tanto por suas características físico-materiais, quanto por sua espessura cultural, social e histórica. É possível produzir uma fotografia site specific, uma escultura ou uma pintura. Em outras palavras, esta noção não funciona como um simples sinônimo de instalação. O mesmo podemos pensar a respeito da noção de in situ, referente a uma obra situada no tempo e no espaço, cuja existência material e semântica opera em consonância com esta mesma localização. Uma obra in situ não é apenas projetada para um local determinado. Ela é produzida efetivamente neste/por este lugar, sendo que suas condições materiais de existência estão necessariamente vinculadas a ele. Na contemporaneidade, um número significativo de artistas trabalha com projetos artísticos nos quais a unidade é conferida pela coesão conceitual e poética, não por uma determinada mídia, suporte, material ou técnica. A atual ênfase na exploração de imagens — sejam elas de origem analógica, digital, fixas ou em movimento — permite espacializações diferenciadas para uma única matriz, incluindo variações de escala, suporte, mídias, resultando em distintos tipos e graus de envolvimento com o recinto de exposição4. Por certo, toda obra — pintura, desenho, vídeo-instalação ou outra — espacializa-se de algum modo, isto é, mantém um maior ou menor grau de autonomia em relação à sua localização no recinto de exposição. De modo
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mais preciso, na medida em que definimos o espaço pelo uso — seguindo as referências do historiador Henri Lefebvre (1976) e do geógrafo Milton Santos (1985) — a questão dos modos de espacialização não se restringe ao âmbito das instalações, das obras in situ e site specifics, ainda que nestes casos seja desejável considerá-los como uma categoria fundamental de análise. “Desaparência (Estúdio)”, da artista gaúcha radicada em São Paulo, Regina Silveira (Porto Alegre, 1939), pode ser considerada exemplar para uma reflexão sobre a noção de in situ e também quanto às diferenças em relação aos graus e tipos de vínculo que uma obra pode estabelecer com o local de exibição. Regina Silveira apresentou este trabalho no espaço de intervenções do Torreão, em Porto Alegre, entre 9 de junho e 6 de julho de 2001. Trata-se de uma imagem em vinil auto-adesivo aplicada diretamente sobre o piso e as paredes da sala constituindo o desenho em linhas tracejadas de um cavalete de pintor e um banquinho, em perspectiva distorcida. A mesma imagem havia
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sido exibida em 1997, no Paço das Artes, em São Paulo, durante a mostra “Ao Cubo3”. A existência físico-material de “Desaparência” está diretamente relacionada a cada um dos locais para os quais é projetada — Regina Silveira faz seus estudos em maquetes, inicialmente — e instalada, já que o vinil adesivo que a constitui não sobrevive à desmontagem. Conceitualmente a proposta permanece, e cada um dos locais — Porto Alegre e São Paulo — funcionam como contextos específicos, marcados por diferenças que ampliam as possibilidades de leitura e fruição da obra. O cavalete e o banquinho remetem à pintura e, mais que isto, ao ateliê do pintor. Em outras palavras, há um modo de produzir arte e de conceber suas relações com o mundo — obra autônoma, auto-referencial, única, original, um fazer com forte presença da marca da mão do artista — distinto dos procedimentos empregados por muitos dos artistas que atuam na contemporaneidade, em especial, Regina Silveira. Daí emerge um dos sentidos possíveis para o jogo de palavras entre “aparência” (que, por oposição, convoca a idéia de “essência” imutável) como signo do fugidio e “desaparecimento”, presentes no título “Desaparência”. As linhas tracejadas — que na geometria indicam uma aresta que não está visível, acima ou abaixo da linha de corte — reforçam esta idéia de algo que des/aparece. Por outro lado, o desenho que percebemos como uma perspectiva distorcida, por estar colado à parede e ao piso, também pode funcionar como a sombra de um objeto ausente. Caminhamos pela sala vazia — o piso de madeira ecoa nossos passos — e indagamos pelo lugar do pintor. Pela lógica do desenho projetado, deveria estar no centro da peça: uma sala de aproximadamente 16m2, pé direito alto (quase 4 metros) e que pode funcionar como um observatório, em função de suas doze janelas. Desta torre, o artista poderia abrir seu olhar e sua janela — metáfora da pintura — para o mundo, sem a necessidade de contaminar-se com ele. Mas chegar a esse centro — que em “Desaparência” será efetivamente ocupado pelo espectador — não terá sido tarefa fácil, como não é fácil atingir e permanecer no topo da hierarquia do sistema das artes. Como sabemos, a pintura permaneceu por lá ao longo de alguns séculos. Para chegar ao ápice do Torreão, porém, teremos que subir por uma escada estreita e íngreme, a ponto de permitir somente 36
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um passante por vez. Lá chegando, a sala vazia nos encara, ocupada por um desenho que se agarra às paredes. Metáfora potente sobre a arte, com a máxima economia de meios: uma obra efetivamente in situ. A distorção da perspectiva e seu achatamento pelo uso da linha tracejada reforçam a função ilusionista e convidam o espectador atento a uma reflexão sobre o papel cumprido por este sistema de representação do espaço — assumido como “a forma por excelência” de representá-lo — na constituição da história da pintura ocidental. Por fim, este “comentário sobre a pintura”5 ganha uma conotação específica quando exposto em Porto Alegre, cidade na qual a artista iniciou sua carreira como pintora6, em contraponto à virada conceitual ocorrida em seu trabalho, acompanhada por sua transferência para a capital paulista. Também sob este enfoque, o Torreão7 em Porto Alegre é um contexto específico para um trabalho in situ como “Desaparência”, de Regina Silveira. Não apenas pelo que (o campo artístico de) Porto Alegre representa na trajetória da artista, mas também pelo lugar ocupado pelo Torreão no circuito da arte contemporânea local.
II. Retomando a noção de Espaço Espaço é um termo com largo emprego na linguagem cotidiana. Ao mesmo tempo, é um conceito-chave para diferentes disciplinas, como por exemplo, a geografia, a arquitetura, a física ou a matemática, para não falar das próprias artes plásticas. Tudo o que existe, em princípio, existe no tempo e no espaço, ou pelo menos, em alguma dimensão espacial, mesmo que não de ordem material ou corpórea. Se considerarmos que as artes plásticas, via de regra, manifestam-se como objeto físico — pintura, escultura, desenho, gravura, possuem uma fisicalidade que lhes é própria e que atua como condição necessária à sua realização e fruição — é quase um lugar-comum dizer que “trabalham” ou operam com o espaço ou mesmo no espaço. Convém lembrar que a delimitação categórica de artes plásticas está historicamente ligada ao conceito de espaço. Podemos encontrar em Lessing, no século XVIII, um dos principais marcos referenciais para a categorização das artes plásticas como artes do espaço, distintas, por sua vez, das artes
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5. Como observou a própria artista, em entrevista publicada pelo jornal Zero Hora, em 9 de junho de 2001 (pág. 5). 6. Entre outros, Regina Silveira foi aluna de João Fahrion (Porto Alegre, 1898 — 1970), Ado Malagoli (Araraquara, 1906 — Porto Alegre, 1994) e Iberê Camargo (RS, 1914 — 1994) durante a década de 1960. Sua transferência para São Paulo ocorre em 1973. 7. O Torreão foi inaugurado em junho de 1993, como local de trabalho dos artistas Elida Tessler e Jailton Moreira, também destinado a cursos, encontros e debates. Sistematicamente, outros artistas são convidados a ocupar e intervir na sala que fica nos altos do casarão, uma espécie de torre, a qual temos acesso por uma escada de madeira íngreme e estreita.
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8. O projeto do Vocabulaire d’ Esthétique teve início em 1931, com a cooperação de Victor Basch e Charles Lalo, que assim como Souriau, foram responsáveis pela cátedra de “Estética e ciências da arte”, criada em 1918, na Sorbonne, em Paris. A primeira edição ocorreu efetivamente em 1990, sob a direção de Anne Souriau, com vários autores responsáveis pelos verbetes. Tradução da autora.
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que operam com o tempo, como a poesia ou a música. Já no século XX, o Vocabulaire d’Esthétique (1990), obra de referência organizada por Etienne Souriau, apresenta uma definição de artes plásticas, como subdivisão do verbete “arte”, nos seguintes termos: “artes que apresentam a visão das obras em duas e três dimensões espaciais, sem sucessão temporal (pintura, escultura, arquitetura, desenho e algumas artes decorativas aplicadas)” (SOURIAU, 1990: 169)8. Jan Mukarovsky, em conferência pronunciada em 1944, apresenta aquela que considera a “definição mais correta” para a indagação “o que são as artes plásticas”: são “aquelas cujo material é constituído por corpos inanimados que atuam no espaço sem que tenha de se levar em conta o tempo” (MUKAROVSKY, 1997: 251). O próprio qualificativo ‘plásticas’ remete ao material empregado pelo artista para a realização de sua obra. Observamos aqui o emprego de um conceito de espaço que enfatiza os aspectos físicos e materiais desta dimensão da existência humana. Esta concepção de espaço, por sua vez, ressalta a imobilidade e a permanência em contraponto ao caráter transitório dos processos que tem o tempo como dimensão chave. Mais que isto, trata-se de um entendimento de espaço que o considera como algo dado, quase um elemento inerte. Não é esta acepção de espaço que prepondera na contemporaneidade. Segundo esse modelo, as artes plásticas gerariam obras que se apresentam como objetos físicos, possuindo extensão, ocupando um local determinado no espaço e nesta dimensão permanecendo à disposição do espectador, a despeito da passagem do tempo. Sua recepção, no entanto, dá-se de modo simultâneo. Diferentemente do texto, da música ou do teatro — cuja apreensão exige uma seqüência temporal, e a totalidade da obra é operada somente no final da performance, com o concurso da memória -, uma pintura, por exemplo, pode ser apreendida de modo imediato pela visão. Em paralelo a este modo de perceber o espaço, a obra de arte é concebida como auto-referencial e autônoma em relação ao local onde por ventura venha a ser exposta para apreciação do público. A moldura (no caso da pintura) e o pedestal (para a escultura) atuam como marcos divisórios na fronteira entre o espaço representado na obra e pela obra e aquele outro, no qual movimenta-se o espectador/contemplador.
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Por outro lado, o espaço concebido pela contemporaneidade é uma noção com espessura cultural, histórica e social. Considerada em sua pluralidade e levando em conta o ponto de vista do observador, enfatiza uma abordagem fenomenológica. A obra de arte que opera esta concepção não aspira à autonomia em relação ao local que ocupa ou frente às condutas do espectador/fruidor/interagente, pois sequer crê em tal possibilidade. O espaço contemporâneo, por fim, recusa qualquer vinculação com a idéia de “neutralidade”, seja de que ordem for. O lugar ocupado pela obra no recinto de exposição não é concebido como um território cujos limites possam ser rigidamente demarcados e sim como um espaço compartilhado (obra X espectador X espaço expositivo), onde forças interagem entre si, muitas vezes, com alto grau de tensão.
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Arte contemporânea, historiografia e memória Maria Lúcia Bastos Kern1 Na presente comunicação, tenho como objetivo refletir a respeito das mudanças de estatuto da obra de arte, com o fim de discutir as questões e os problemas que a arte coloca hoje ao historiador. Para tal, é necessário fazer a revisão de certas questões teórico-metodológicas pontuais da historiografia da arte na modernidade e considerar o problema da memória em face às práticas artísticas contemporâneas.2 Na atualidade, as abordagens historiográficas tradicionais condicionadas aos historicismos, formalismos, à Iconologia e à Semiologia não permitem mais a compreensão da complexidade da arte contemporânea, que se produz a partir de mudanças substanciais em relação à arte moderna, cujas práticas se fundamentavam nas noções de ruptura, originalidade e autonomia. A concepção de arte autônoma foi uma descoberta moderna que conduziu à nova noção de arte, cujo ideal não tinha uma definição estabelecida. Segundo esta concepção, a arte era portadora de ideias e a obra atuava como demonstração das mesmas. Logo, a teoria da arte era realizada através da autoridade de obras particulares, porém consideradas universais.3 No plano historiográfico, conceber a autonomia da arte implicou na possibilidade de desenvolver uma história interna da mesma, sem os condicionantes das funções sociais que pudessem exercer. Assim, a História da Arte estruturou-se como história de formas, cujas análises emanavam diretamente das imagens. Heinrich Wölfflin (1864-1945), seguidor da abordagem formalista, acreditava não apenas na autonomia da arte, mas também na concretização progressiva do absoluto na forma que lhe era inerente. Assim, ela era independente de fenômenos externos, pois os transcendia. O formalismo, apesar de seu fundamento neo-kantiano, era também tributário do pensamento de Hegel, no que se refere à noção de arte como atividade do espírito. Outra questão importante a salientar é que a modernidade supervalorizava
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1. Professora do Programa de Pós-Graduação em História, Coordenadora do Centro de Pesquisa da Imagem e do Som da PUCRS e Pesquisadora do CNPq.
2. O presente texto se constitui como desdobramento de parte das reflexões efetuadas na palestra “Historiografia da arte: revisão e reflexões face à arte contemporânea”, no XXIV Colóquio Brasileiro de História da Arte, em Belo Horizonte, 2004; e foi publicado nos Anais do XXVI Colóquio Brasileiro de História da Arte, 2006.
3. BELTING, H. Le chef-d’oeuvre invisible. Nîmes: J. Chambond, 2003. p. 21-22.
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4. Poderia-se complementar a concepção dualista salientada pelo autor com os artistas que desenvolveram suas pesquisas de teor formal, como foram os casos do Cubismo e Fovismo, que não tinham projeções de atingir o absoluto e nem de desmistificar a arte. 5. MCEVELLEY, T. Art, contenu et mécontentement. La théorie de l’art et la fin de l’histoire. Nîmes: Jacqueline Chambon, 1994, p. 122-4. 6. Os museus descontextualizavam os objetos e ordenavam os mesmos estabelecendo a articulação do passado e do futuro, tendo em vista preservar o caráter sagrado e universal da arte. Ao adotarem certas coleções, resultantes de seleções e exclusões, criaram um sistema de representação da arte que gerou sérias conseqüências para a historiografia, tais como: as classificações, hierarquias e a sacralização das obras-primas. A apresentação de obras eruditas e originais conduziu à valorização de certos objetos em detrimento de outros, às vezes mais frágeis, mas importantes para o estudo da História da Arte. Como a disciplina foi sistematizada no mesmo momento que emergiram os museus, essa se subordinava às suas coleções, seguindo os critérios de valorização das obras selecionadas em detrimento de outras.
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a arte europeia, declarando-a como a encarnação de critérios universais. Logo, um modelo hegemônico a ser seguido, no qual as diferenças estéticas e culturais não eram consideradas e terminavam interferindo na historiografia da arte. O historiador Thomas McEvilley verificou, a grosso modo, que as vanguardas, no início do século XX, se dividiam entre a defesa da concepção romântica e idealista de arte e a atitude crítica em relação aos conceitos vigentes. A primeira era aquela liderada por um grande número de artistas, como Malevitch, Kandinsky, Mondrian, Paul Klee, que buscavam, através da arte, se aproximar do sublime e do absoluto; enquanto Duchamp era a figura emblemática que liderava a postura crítica e desmistificadora da experiência artística, e sua obra tornar-se-ia exemplar para a arte contemporânea. 4 Para este historiador, a arte moderna defendeu ainda dois pontos de vistas complementares e inseparáveis: a história e o indivíduo. A história como força motriz que impulsionava as mudanças e o progresso, ao passo que o indivíduo, estimulado pela importância que a história lhe conferia, era considerado herói ou gênio portador de inovação que acionava o mundo social5. Nesta acepção, o original e o novo eram as forças diretivas da história que geravam o progresso e possibilitavam atingir no futuro a perfeição. Os artistas de vanguarda que renunciavam e se opunham à noção de obra de arte idealista e ao mito do grande mestre de arte, como Duchamp, colocaram em descrédito o estatuto da obra e salientaram o seu anacronismo. Eles assumiram uma posição contrária e crítica em relação às concepções ainda vigentes nos museus6 e academias. No campo da historiografia da arte moderna, observa-se a preponderância do pensamento historicista, visto que muitos estudiosos consideravam os movimentos de vanguarda, a partir da análise das inovações, segundo uma concepção de temporalidade evolutiva e teleológica, cujo fim era o progresso espiritual. Esta acepção de tempo mesclada com o mito do sagrado focalizava o encadeamento ordenado de soluções formais, acentuava o discurso especializado e relativamente independente de outros campos do conhecimento e práticas culturais, assim como valorizava o caráter de gênio dos artistas que inventavam e criavam incessantemente o novo em busca de
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um fim de natureza transcendental. Assim, a abordagem formalista encerrava o processo de interpretação da arte, não conduzindo a outras interrogações, nem ao vislumbramento da sua complexidade. No entanto, permitia a ilusão da existência de unidade na disciplina, pois esse enfoque podia ser utilizado em diferentes práticas artísticas e momentos históricos. As monografias com pretensões totalizadoras também se valiam dessa prática historiográfica, acentuando as relações de sucessão e continuidade em busca da perfeição absoluta da arte. Em face desse modelo historiográfico, as considerações a respeito da recepção, circulação, consumo e usos sociais das obras foram, durante muito tempo, desprezadas. Outra concepção de história vinculada à noção de progresso é aquela cognitiva, oriunda do pensamento kantiano, que tem como principal expoente Erwin Panofsky (1892-1968). Ele adotou o método iconológico que permitia inúmeras respostas para certas questões relativas às artes da Idade Média, do Renascimento e do Barroco, sem colocar em discussão as propriedades essenciais das obras e suas funções. Ao não aceitar os pressupostos do formalismo, Panofsky não olhava os aspectos estéticos e sensíveis da imagem, priorizando as múltiplas fontes literárias para entender os significados das alegorias e símbolos e como estes foram mantidos ou transformados com o tempo em diferentes sociedades, graças ao espírito da época e à sua visão de mundo. A sua história da arte era a história da significação, a qual tinha o caráter informativo ao se deter apenas nas categorias relativas à representação objetiva que homogeneizavam a obra como parte de um conjunto, no qual ela perdia a sua identidade e o seu caráter sensível.7 A História da Arte, como conhecimento objetivo, está marcada pela positividade e ainda presente na historiografia, principalmente naquela que se apóia na Semiologia e/ou na Semiótica, tendo como fim identificar os significados das imagens e as mensagens das quais elas são portadoras. A concepção de que a imagem visível seria legível reduziu o sensível e o visual ao “funcionamento informacional de signos conforme categorias operacionais muitas vezes estreitas”8 e a-históricas. Ao admitir que os signos fossem produzidos no interior dos sistemas sociais e que os mesmos eram convencionais, ela extraiu de suas análises os aspectos sensíveis e
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7. Ver o método iconológico no livro do autor: Significado nas artes visuais. São Paulo: Perspectiva, 1991. 8. HUCHET, Stephane. Passos e caminhos de uma teoria da arte. IN: DIDI-HUBERMAN, Georges. O que vemos, o que nos olha. São Paulo: Ed. 34, 1998. p. 8.
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9. BELTING, Hans. Pour une anthrpologie des images. Paris: Gallimard, 2004. p. 15. Debray observou que a Semiologia não levou em conta as singularidades técnicas e materiais das imagens, tratando-as de forma homogênea. Deve-se salientar ainda que ela privilegia o sincrônico e a estrutura, na qual o indivíduo é submetido à totalidade da mesma. 10. BAUDRILLARD, J. Le système des objets. Paris: Gallimard, 1968. p. 127.BELTING, Hans. Pour une
11. DUBOIS, Philippe. O ato fotográfico. Campinas: Papirus, 1994. p. 95.
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particulares da imagem, bem como o sujeito. Neste sentido, Hans Belting salientou que a Semiologia separou o mundo dos signos do mundo dos corpos, quando reconheceu que o primeiro era originário dos sistemas sociais e de convenções. Quando ela considerou a percepção sensorial ligada ao corpo, esta foi identificada como percepção cognitiva. Para este historiador, o corpo atua como suporte da imagem e exerce o papel de mediação, sustentando que o homem produz na sua memória corporal uma presença muito específica daquilo que ele sabe estar ausente e que lhe permite a elaboração de imagens mentais e semelhantes ao mundo visível (corpo)9. Logo, a natureza da arte não pode ser reduzida apenas ao domínio da informação, mas a outros domínios mais complexos, nos quais a presença física e mental do homem é significativa. A partir dos anos 60 e 70, a arte contemporânea coloca em xeque os pressupostos da arte moderna, bem como da historiografia. As práticas artísticas das últimas décadas, como performances, instalações, happenings, vídeos e as novas tecnologias revolucionam o estatuto da obra de arte e os princípios de perenidade e de peça única, se rebelando contra os museus e o mercado de arte e se alinhando, conforme Jean Baudrillard, ao destino físico dos objetos degradáveis 10. As formas efêmeras da obra são, em geral, desprovidas de intenções originais da arte moderna. O artista não se exprime mais por meio da autoridade da obra assinada, mas faz proposições ou utiliza o seu próprio corpo procurando suplantá-lo, assim como a sua palavra. Em lugar da obra surge o espetáculo, que fica registrado pela fotografia ou vídeo, os quais se constituem como novos suportes de memória. Os happenings, performances e arte corporal não representam nada além das suas próprias ações, nas quais o corpo é ao mesmo tempo objeto, sujeito e suporte. Para Dubois, essas práticas podem ser consideradas “consumatórias, dilapidadoras ou sacrificiais”. Elas não deixam restos, traços ou resíduos. Não existe produto que resulte do ato artístico e nem obra autônoma11. O olhar crítico do artista em relação às convicções da arte moderna — obra perene, autonomia, originalidade, autoria, teleologia — leva à banalização do gesto criador, ao empréstimo de formas, materiais, técnicas e linguagens do mundo massificado e da comunicação, não possibilitando
Arte contemporânea, historiografia e memória
mais ao historiador a manutenção de enfoques essencialmente formalistas e idealistas da obra e do artista, ou apenas dirigidos à representação. Os artistas contemporâneos retornam às artes do passado, fazendo um percurso retrospectivo, sem produzir a retórica das rupturas das vanguardas históricas. Apesar das transformações, suas práticas continuam sendo desenvolvidas a partir de ideias e intenções, porém as últimas não se revestem mais de aspirações utópicas. Belting12 alerta que o papel consciente do olhar retrospectivo do artista e da via percorrida tem o fim de avaliar a natureza da arte e as suas funções, devendo ser também objeto de reflexão pelo historiador. Atualmente, a imagem artística, assim como as imagens da mídia, invade o nosso cotidiano, assumindo mecanismos de circulação e de velocidade que ultrapassam as fronteiras nacionais e se desterritorializam. A sua aproximação com a ciência e a tecnologia possibilita a multiplicação das imagens e a transformação das relações do artista com o objeto, o público e as instituições de arte. As novas tecnologias permitem a revisão de conceitos fundamentados na subjetividade/ individualidade e autoria. No momento em que o público começa a interagir participando de sua elaboração, ele assume o papel de co-autor. Com isto, os estatutos da obra, do autor e do espectador são alterados, já que agora não ocupam posições definidas com precisão. O público não exerce mais um comportamento de contemplação da obra. A sua postura deixa de ser passiva e torna-se ativa ao intervir e interagir com a mesma. No caso das instalações, o público interage no seu espaço, sofrendo a experiência espacial de modo sensível e perceptivo13. Além da questão da autoria evidenciada pelas práticas artísticas14, observa-se também, no campo do conhecimento, o enfraquecimento do sujeito como centro dos processos sociais, cognitivos e criativos, fenômeno que conduz os historiadores da arte a repensarem o modelo científico que focaliza o sujeito como articulador e criador de sentido social. Hoje, a importância reside no mundo social, no papel que a arte exerce neste mundo e no estatuto da obra. Assim, a História da Arte não é concebida apenas como uma história de obras, formas e artistas, mas como cultura visual produzida por homens e grupos sociais que colaboram nas expressões de sentidos de mundo. O estudo da inserção social das práticas artísticas e
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12. BELTING, H. L’Histoire de l’art est-elle finie ? Nîmes: J. Chambond, 1989. p. 79-80. 13. Ver CARVALHO, Ana M. Instalação como problemática artística contemporânea: os modos de espacialização e especificidade do sítio. Tese de doutorado do Programa de PósGraduação em Artes Visuais da UFRGS, 2005. 14. Nos anos 60, Roland Barthes e Michel Foucault já refletiam sobre o problema da autoria no campo literário. Em 1969, Foucault fez uma conferência intitulada “O que é um autor?”, na Sociedade Francesa de Filosofia. Para ele, a revolução da arte e da literatura coloca em xeque o conceito de autor, de duração da obra e de originalidade da mesma. FLECK, Robert. La “mort de l’auteur et les questions de temps, d’original et de conservatio de l’art contemporain. In: Quelles mémoires pour l’art contemporain? Rennes: Presses Universitaires de Rennes, 1997. p. 180. Barthes publica na revue d’Esthétique, 3, 1971, De l’oeuvre au texte, no qual a obra perde a sua proeminência e se situa num nível de interações com outras obras, cujo valor de importância é similar. O autor é descentralizado e a originalidade é desconsiderada. Hoje, a autoria é concebida tanto nos componentes culturais, quanto o sujeito que cria o objeto, como naquele que olha e o interpreta.
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15. COUCHOT, Edmond. La technologie dans l’art. Nîmes: Jacqueline Chambond, 1998. p. 8. Deve-se destacar que o debate atual não difere muito do teor das reflexões em torno da fotografia no século XIX em face à arte.
16. CAUQUELIN, Anne. Teorias da arte. São Paulo: Martins, 2005. p. 137-8.
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das instâncias de legitimação, circulação e consumo possibilita interpretar a imagem sob outros parâmetros, identificando assim as funções e usos que ela cumpre em determinados meios sociais. A imagem numérica também tem provocado debates no domínio das artes visuais, devido às novas relações que são estabelecidas entre os automatismos técnicos e a subjetividade. Esses debates focalizam, sobretudo, a criação da imagem, colocando-a em xeque, na medida em que esta é concebida desprovida do critério de singularidade e expressividade ao reduzir o ato de criação aos automatismos mecânicos. Edmond Couchot demonstra que o artista, ao operar com a técnica, tem domínio da mesma e um savoir-faire que lhe possibilita deixar traços singulares e suas representações de mundo sob a imagem. As novas técnicas permitem modos inéditos de percepção, de formas de representações elementares e fragmentadas do mundo por meio de símbolos15. Para ele, a tecnologia numérica facilita a associação de imagens íntimas, de sons e de textos que deixam as marcas do autor sob a obra. No entanto, a interatividade entre ele e o público possibilita que este passe pelo mesmo processo de comunicação, de temporalidade e de vivência sensível que o artista. Com isto, o artista não tem mais o estatuto de criador individual que está à frente do seu público e de seu tempo, anunciando o devir. Assim, arte numérica dessacraliza a criação artística e o papel demiúrgico desempenhado pelo artista. Anne Cauquelin salienta que a tarefa do crítico de arte — e eu acrescentaria, a do historiador — torna-se distinta, visto que as imagens são resultantes de cálculos e exigem deles o domínio técnico e a análise dos procedimentos matemáticos que as produziram. É preciso conhecer e se “transformar em operador para testar a validade, a extensão e os usos possíveis da obra”16, assim como se assessorar de conceitos teóricos para refletir sobre a mesma. Além disto, ela destaca também a questão da autoria, já que as tecnoimagens são produzidas por uma equipe. As imagens não têm mais relação com os objetos físicos, visto que elas são criadas a partir de uma linguagem específica, de algoritmos e cálculos. A interatividade faz com que as imagens simulem o real num devir virtual que se conhece ao longo do processo, no qual simulação e interação se
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relacionam. Assim, a tecnologia numérica substitui a simulação do real à sua representação e a obra não é construída pela matéria, mas por símbolos17. No entanto, a arte numérica coloca para o historiador o problema da memória, visto que nem sempre o processo de interação e de construção das imagens é registrado de forma completa pelo artista e pelo público. A cada intervenção ela muda de forma, configurando-se como um objeto inacabado em constante mutação. Neste processo dinâmico, os símbolos também se transformam, bem como os seus significados. Alguns artistas registram em vídeo a obra em metamorfose. Outro aspecto inédito na arte contemporânea é que a obra, por seu caráter efêmero, se modifica a cada exposição, exigindo do artista a reposição de novos materiais e a sua adequação ao espaço do local a que ela se destina. As instalações, por exemplo, que a cada mostra se condicionam à dimensão e forma do espaço, obrigam o artista a repor o material e refazê-las. Verificase assim que a arte abandona a ideia de autonomia tão cara à arte moderna. As vinculações da arte contemporânea com outros campos do saber e das práticas culturais acentuam os questionamentos dos historiadores que até então trabalhavam com o conhecimento especializado e restrito às abordagens cerceadoras, internas ou externas às obras. Além disto, a instabilidade da arte, as polêmicas lançadas, bem como as suas constantes constituições dificultam a sua definição. O que vem a ser arte contemporânea? É o critério temporal que a delimita ou as mudanças ocorridas na essência das práticas artísticas e no estatuto da obra? Como o historiador pode trabalhar com obras efêmeras, cuja memória só é mantida por meio do registro fotográfico, do vídeo e do cd-rom considerando que os mesmos apresentam limitações perceptivas de espaço, volume, dimensões, cores e textura? Como analisar as instalações sem passar pela experiência dos seus espaços, dos sons, dos odores? Como considerar as categorias de artista e público diante da variabilidade das mesmas? Os constantes processos de construção da arte contemporânea, a sua pluralidade de práticas e a ausência de delimitação conceitual dificultam a construção da memória, visto que esta se vincula aos problemas colocados também pela própria historiografia. A história do presente não apresenta
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17. COUCHOT, E. Opus cit., p. 129-131.
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18. Deve-se destacar que o museu de arte moderna adotou os conceitos de originalidade e autonomia das vanguardas e, com isto, continuou sacralizando o artista e a autenticidade de sua obra. A sua concepção historicista possibilitou reafirmar os discursos e ações das vanguardas direcionadas ao progresso e à perfeição futuros.
19. FLECK, Robert. Opus Cit., p. 181.
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uma delimitação de estudo que seja muito diferente da crítica de arte. Ambas enfrentam o problema da parcialidade e da precariedade dos suportes conceituais e do entendimento das funções que a arte exerce no mundo globalizado, e dos sentidos que ela dá a este mundo. A memória se constitui como uma construção que se opera a posteriori das práticas, exigindo reflexões e ações imediatas em face à dinâmica conservadora dos museus e à sua necessidade de adequação, assim como dos arquivos iconográficos. Inicialmente, a arte contemporânea é preterida pelos museus, visto que ela entra em choque com os ideais de obra perene e de gênio criador, caros aos mesmos. Ela, por sua vez, é produzida se contrapondo a essas instituições e às concepções que as orientam. O museu18 como lugar de memória e instituição condicionada por muito tempo pelo idealismo de origem romântica, consagra artistas contemporâneos, cujas obras se direcionam a depreciar a autoria, bem como a colecionar e preservar objetos efêmeros, que por princípio não são produzidos para coleções, interferindo nos objetivos dos mesmos. Os museus de arte contemporânea enfrentam dificuldades para expor e preservar as obras de caráter efêmero, como por exemplo, a arte Povera italiana cujos objetos são construídos com produtos perecíveis, ou instalações produzidas com materiais frágeis, impossibilitando muitas vezes a sua restauração. Em face aos problemas vivenciados com suas instalações, o artista Christian Boltanski, compara a arte atual a uma partição musical, o que dura é a partição e não necessariamente a realização material da obra. Porém, cabe ao restaurador ou ao artista refazê-la. Esta comparação se aplica também ao problema da autoria, já que a instituição de memória deve repor os objetos e peças que compõem as instalações segundo a forma da existência física da obra, refazendo-a periodicamente. A sua temporalidade depende da resistência material do objeto19. É interessante observar que, se por um lado a arte contemporânea cultiva a memória, por outro, os suportes das obras são produzidos com materiais frágeis, cuja conservação é problemática e, até então, sem precedentes. Assim, a memória é utilizada como processo de criação e de retomada da História da Arte ou de antigas lembranças e vivências individuais, mas
Arte contemporânea, historiografia e memória
a mesma não é projetada para a preservação do objeto. O que resta é o registro fotográfico e do vídeo. A memória, assim como a historiografia, também enfrentou na virada do século uma situação de crise, pois o historicismo que a sustentou como concepção de história acumulativa, evolutiva e continuísta do tempo, fazia com que essa tivesse uma função normativa e integradora. As transformações sociais e a crise dos paradigmas na contemporaneidade colocaram em xeque o historicismo, assim como permitiram a consciência da descontinuidade, da pluralidade e da ausência de sentido do tempo histórico. Vive-se o tempo presente e a ideia de futuro se enfraquece, provocando o distanciamento entre o horizonte de expectativas e o campo de experiências20. A excessiva política de conservação patrimonial, na qual a cultura material e não material é preservada, acaba banalizando a memória e estimulando a sua mercantilização. A crise da memória é ainda diagnosticada pela fragmentação dos sistemas culturais e da sua miscigenação nas sociedades contemporâneas21. A historiografia contemporânea, assim como a memória, também opera numa perspectiva descontínua do tempo, devendo construir suas representações sob indícios e traços que ficaram do passado. Porém, os traços que permanecerão para as futuras gerações de historiadores da arte serão bem mais limitados, porque estes não poderão vivenciar de forma sensível as obras, ou conhecerão muitas delas transformadas pela adequação espacial dos museus, pela substituição de materiais ou obras finalizadas, cujos processos de intervenção do artista e público não são sempre registrados na sua totalidade.
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20. KOSELLECK, R. Le futur passé. Contribuition à la sémantique des temps historiques. Paris: EHESS, 1990. p. 311. A primeira categoria, horizonte de expectativas, se refere à experiência do passado atual, cujos acontecimentos podem ser rememorados; e, a última, campo de experiência, pressupõe que ela se cumpra no presente e se constitua como o futuro atualizado. 21. CATROGA, Fernando. Memória, história e historiografia. Coimbra: Quarteto, 2001. p. 33-34.
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Trajetórias de vida de artista Ayrton Dutra Corrêa
Introdução Neste texto são apresentados alguns recortes da pesquisa, realizada com a finalidade da obtenção do título de Pós-Doutor em Arte/Educação pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo. Trabalhei com trajetórias de artistas que contribuíram ou vêm contribuindo com o Ensino de Artes Visuais no Brasil. Suas histórias de vida desvelaram toda a tecitura com relação ao ensino e produção artística ao longo de suas carreiras. A temática escolhida se refere a importância que a mesma adquire na esfera das artes: trajetória pessoal, profissional e artística, bem como suas inter-relações na produção do conhecimento em prol das artes visuais. Como salienta Bosi (1994, p.37) “este registro alcança uma memória pessoal que, é também uma memória social, familiar e grupal”. Evidentemente que ao acionar a memória, as lembranças fluem naturalmente, bem como a identidade de cada indivíduo. O artista como um ser produzido historicamente, ou seja, essencialmente social vem ao encontro das relações entre identidade (o indivíduo como pessoa) processo (direcionamento desenvolvido em sua construção artísticoeducadora) e metamorfose (transformações ocorridas durante sua trajetória). São apresentados nesta síntese, aspectos referentes a três professores participantes da pesquisa de cinco diferentes universidades brasileiras que são: Sebastião Gomes Pedrosa, da Universidade Federal de Pernambuco, Lucimar Bello Pereira Frange, da Universidade Federal de Uberlândia e Milton Terumitsu Sogabe, da Universidade Estadual Paulista. Considerando-se que a arte é basilar para a vida, sem ela o homem não vive nem viverá, pois ela está presente em todos os momentos existenciais do indivíduo, tanto no que concerne à estética do cotidiano como a estética formal o ser humano vive e convive em sua cotidianidade com esta relação
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dialética, em um determinado contexto sócio-cultural. Sob esse prisma a arte se notabiliza, pois é a gênese do desenvolvimento cognitivo e sensibilidade de alunos seja em formação acadêmica superior ou escolar. O fazer artístico instaura-se neste contexto como uma forma de criar, ordenar, configurar, articular e expressar dada realidade. Nesta experiência estão implícitas as configurações de vida dos indivíduos, pautadas dentro de valores coletivos, e expressas a partir de uma materialidade própria, possibilitando a partir das propostas da linguagem, alterações culturais e sociais de todo um grupo. (Corrêa, 2000) Com essas considerações lembramos Maria Helena Andrés (1966) quando diz que o artista é voz que se alteia, mesmo que seja na mudez aparente da pedra, pois como destaca Pereira (1993, p.91) “a arte é a expressão de um sentir particular, externado por diferentes linguagens, decorrentes do simples fato de estarmos vivos, percebermos e nos inquietarmos”. É necessário, pois conhecer as diferentes linguagens pelas quais os artistas se expressam e de que forma as trajetórias pessoal e artística, repercutem em sua produção ou se, se manteve em uma determinada linguagem ou se procura diversificação nas poéticas. Neste tipo de pesquisa, o artista é visto como o sujeito de sua própria vida e conseqüentemente, do processo do qual é um dos atores envolvidos, portanto, o eu pessoal e o profissional são indissociáveis. Assim, na vida de artista plástico com um universo rico e complexo e muitas vezes até contraditório no que concerne aos valores estabelecidos pela sociedade, este é envolvido em uma lógica dialética, onde eventos concretos da vida dos indivíduos e da sociedade são vistos como interdependentes, em um permanente intercâmbio transformacional. Logo, ainda que constituídas de ordenações específicas, dentro de uma materialidade própria, as propostas de linguagem visual envolvem e refletem toda uma atividade humana inserida em uma realidade social. Então, sob a égide da descoberta permanente mesclada por uma aceitação quase incondicional de todo e qualquer pluralismo, identifica-se reflexos da contemporaneidade atual em todas as áreas. Prova disto “é que a arte hoje 54
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vive um período de intensa velocidade de mutação, de um descompromisso com a durabilidade e com a construção coletiva, indicando um tempo em que a estética está ligada à concepção de individualidade” (Corrêa, 2000, p.28). Hoje, a reflexão sobre contemporaneidade artística, nos conduz a crer que essa vive uma profunda indefinição, inclusive no que se refere ao seu valor social. Cientes de que o artista é produto de sua época, desdobrando o seu ser social em formas culturais, considero que nessa interação/ação com o mundo, o indivíduo-artista descobre novas qualidades, reconsiderando até mesmo, valores culturais. Fayga Ostrower (1996) respalda essa situação quando diz: ao aprofundar certos conteúdos valorativos, ou ao afirmar certas necessidades de vida que são negadas dentro do contexto cultural, as soluções criativas que o homem encontra, concretizam sempre uma extensão do real. Ainda que formulem caminhos utópicos, partem do real. (p.125) É precisamente neste domínio de liberdade de criação, diante do contexto sócio-cultural atual que me motivou compreender as relações entre as trajetórias pessoais e artísticas de docentes de universidades brasileiras, através de suas histórias de vida e produção artística, bem como sua relevância para o ensino de Artes Visuais em nosso país em nível de academia. Assim considerada a temática investigativa, esta oferece suporte para o entendimento das relações individuais e profissionais que se entrecruzam no fazer do artista ao longo de sua carreira. Desta forma, um estudo assim contextualizado possibilitou aos pesquisados refletirem sobre sua ação, permitindo a eles apropriarem-se de seus processos de formação e dar-lhes um sentido no quadro de suas histórias de vida. (Nóvoa, 1995)
Trajetórias de vida Entende-se por trajetória vivencial o transcurso, o caminho percorrido por um indivíduo em uma dada profissão e suas relações com momentos de vida. Os estudos sobre trajetórias de vida têm como precursor Ortega y Gasset.
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Isaia (1998) ao abordar essa temática e, especificamente se tratando do autor em pauta destaca que “vida para ele é tempo, duração e, como tal, finitude. A idade do homem se deve ao fato dele estar sempre situado em uma porção de seu tempo, que é finito. Portanto, a vida corre em fases, etapas, idades, que não só se sucedem (trajetória de vida), mas principalmente se enlaçam, convivem em uma mesma duração histórica.” (p. 18) Com relação a esse estudo, o domínio trajetória, vem justamente ao encontro com a construção de Ortega Y Gasset (1970) onde a trajetória é vista a partir da análise de diferentes idades, fases, etapas em que o indivíduo está imerso durante um tempo finito. O tempo vivido envolve um conjunto de anos vivenciados por um grupo de pessoas que compartilham entre si valores, crenças, convicções, estilos de vida constituindo uma geração. Para a ótica de Ortega y Gasset (1970) “hoy – es para uno veinte años; para otros, cuarenta; para otros sesenta... Todos somos contemporáneos, vivimos en el mismo tiempo y atmósfera – en el mismo mundo — , pero contribuimos a formales de modo diferente”. (p.37-38) Com esse conceito geracional é notório que existem não só sucessões de etapas ou idades de quinze anos cada uma, que são infância, juventude, iniciação, predomínio e velhice, como também a interligação entre distintos valores em um mesmo período, ainda que sob a égide de uma geração dominante, que com um modo específico de gestar de governar exerce o predomínio sobre as outras. É a realidade da vida do indivíduo em sociedade, neste sentido Ortega y Gasset (1970) refere que “... la vida consiste, pues, no en lo que es para quien desde fuera la ve, sino em lo que es para quien desde dentro de ella la es, para el que se la va viviendo mientras y en tanto que la vive”. (p.30-31) Nas considerações até aqui expostas é perceptível a inserção do artista plástico em sua existencialidade, pois como lembra Pareyson (1997) “no mundo humano qualquer manifestação coletiva é sempre ao mesmo tempo pessoal: aquilo que é comum é resultado só das contribuições pessoais e age somente através de adesões e de realizações pessoais”. (p.102) Ainda seguindo o pensamento pareysoniano, há na atividade artística a marca da pessoalidade “constitutivo elementar que não pode ser 56
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descuidado, e um caráter de pessoalidade mais especial e profundo que importa sublinhar”. (Idem, p.106) Iberê Camargo (1998, p. 34) diz que “no andar do tempo, vão ficando as lembranças; os guardados vão se acomodando em nossas gavetas interiores”, identificando-se assim o caráter de pessoalidade ou identidade. Neste sentido, o eu individual (artista) tem relação direta com o eu profissional (sua carreira). Abraham citada por Isaia (1998) explicita que La identidad especifica del individuo en su trabajo es el si mismo profesional que da lugar a la concepción propia de sus rasgos, de su actitud hacia los individuos que conoce a lo largo de su trabajo y, por último, los sentimientos y valores que se relacionan con el mismo. El individuo queda así implicado por entero, en todos los momentos de su intervención, en una situación especifica del campo. (p. 13) O eu individual e o profissional, que são indissociáveis envolve um complexo subjetivo: eu real, eu ideal e eu idealizado. No primeiro caso, ocorre a possibilidade do artista dar-se conta, simbolizar o que acontece consigo e suas relações interpessoais. O eu ideal diz respeito ao como o sujeito gostaria de ser como pessoa, seus valores, idéias e aspirações. O terceiro aspecto vai se referir à tendência de ser perfeito. Ainda considerando a questão da identidade Ciampa (1987) adverte que Cada indivíduo encarna as relações sociais, configurando uma identidade pessoal, uma história de vida, um projeto de vida. Uma vida que nem sempre é vivida, no emaranhado das relações sociais. Uma identidade concretiza uma política, dá corpo a uma ideologia. No seu conjunto, as identidades constituem a sociedade, ao mesmo tempo em que são constituídas, cada uma por ela. (p.127) Na relação do indivíduo com a cultura e a sociedade está implicitamente colocada sua identidade que passa pelo plano interpessoal atingindo o intrapessoal, pois ele é um ator sócio-cultural. Para Bonin (1998, p. 63) “toda a atividade humana implicaria numa classificação e interpretação; qualquer percepção ou ação mediada pelo simbólico”, pois é notório que os símbolos e signos que perpassam pela criação humana estão contidos na sociedade, onde os objetos são construídos de forma coletiva e individual revelando
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uma intenção do produtor (arte-educador-artista). Assim, complementando essas reflexões (Ciampa, 1987, p. 171) diz que “as identidades, no seu conjunto, refletem a estrutura social, ao mesmo tempo em que reage sobre ela, conservando-a, ou transformando-a”. Neste sentido a concretude da identidade se desenvolve através da motivação e pelo trabalho, sendo, pois necessário reconhecermos sua socialidade e sua historicidade. Ortega y Gasset (1970) integra esta linha de pensamento no sentido de que “vemos que la más plena realidad histórica es llevada por hombres que están en dos etapas distintas de la vida, cada una de quince años: de treinta a cruenta y cinco, etapa de gestación o creación y polémica; de cuarenta y cinco a sesenta, etapa de predominio y mando. Assim colocado partimos do pressuposto que nenhuma trajetória pode ser vista de forma estanque, mas sim um entrelaçamento entre as diferentes fases, etapas pelas qual a vida e o trabalho do indivíduo se enstabelecem. Ou seja, no desenrolar da vida e no desenvolvimento humano, estão as trajetórias, ambas se entrecruzando numa intricada variedade de relações, que conforme nos aponta Moita (1992, p. 139) “revelam uma atividade de autocriação e de transformação vividas entre a tensão e a harmonia, à distância e a proximidade, a integração e a desintegração”. É dentro desse quadro que se pode enfocar o artista, entendendo que as transformações pelas quais passa ao longo de sua vida estão diretamente ligadas a alterações vivenciais mais amplas, que envolvem a dimensão pessoal e profissional. Assim, Ciampa (1987, p. 36) destaca que “o homem é sempre uma porta abrindo-se em mais saídas. O humano é vir a ser humano. Identidade humana é vida”.
O artista como pessoa Nesta dimensão o artista plástico é pensado em uma visão ampla, isto é, um indivíduo construído através das relações inter-pessoais e culturais. O indivíduo-artista como ser sócio-cultural e histórico tem sua relação direta com a identidade, como salienta Jacques (1998) 58
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O emprego do vocábulo apropriação ao invés de adaptação ou introjeção tem o objetivo de destacar o caráter ativo e transformador do indivíduo na sua relação com o contexto sócio-histórico. Contexto sócio-histórico resultante da ação humana enquanto externalização do seu psiquismo que volta a se interiorizar transformando, num processo contínuo de articulação entre o individual e o social. (p.162) A questão da identidade do artista como pessoa, tem suas relações construídas nas repercussões da sociedade que se concretizam como ator social, pois esta identidade se molda e é mediada através das relações sociais. Neste sentido, lembra-nos Iberê Camargo (1998, p.36) “quando eu quero me ver livre, expressar tudo que tenho dentro de mim, lanço o quadro e aparece a imagem.” A identidade como está sendo pontuada tem a ver com as características ou traços de personalidade que o indivíduo deixa transparecer, tanto de maneira voluntária como involuntária em sua obra de arte. As representações sociais que o artista tem de sua visão de mundo vêm ao encontro da personalidade do ser que produz arte. Assim sendo, Jacques (1998) lembra que Esta representação não é uma simples duplicação mental ou simbólica da identidade, mas é resultado de uma articulação entre a identidade pressuposta (derivada, por exemplo, do papel social), da ação do indivíduo e das relações nas quais está envolvido concretamente. (p.165) Esse envolvimento do artista nas relações sociais concretas propicia o acesso à produção da cultura e a relação desta com os significados valorizados socialmente. No domínio das relações interpessoais a teoria vygotskyana enfatiza a sobremaneira que o indivíduo deixa transparecer no processo de desenvolvimento das Funções Psicológicas Superiores, informações (em interação com o social) podendo restaurar seu comportamento e desenvolver uma auto-regulação em relação ao contexto em que se envolve. É a própria identidade individual em relação aos outros, possibilitando a confiança em suas ações, a criação de atitudes diferenciadas, o discurso, a objetivação, a interpretação e a resignificação. Neste sentido Pinho (1989) salienta a questão da relação entre arte e
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personalidade enfatizando que “a estrutura da personalidade tem sido considerada importante instrumento da integração social ou socialização do indivíduo.” (p.31) É através da socialização, ou melhor, de elementos da sociedade e da cultura que o indivíduo assimila os valores sociais. Entretanto, “não se pode determinar que proporção sociocultural do meio é integrada na personalidade, já que isso varia de pessoa para pessoa.” (Idem, p.31) É através da incorporação de elementos provenientes da cultura que as Funções Psicológicas Superiores (faculdades intelectuais) se desenvolvem ou se aprimoram podendo ocorrer o surgimento de novos elementos culturais. Entretanto, como destaca Pinho (1989) “a sociedade e a cultura oferecem a escolha de um determinado número de opções dominantes e valores secundários, entre modelos preferenciais e modelos aceitos ou tolerados, deixando certa margem de decisão aos atores sociais”. (p.32) Para Pareyson (1997), hoje é de extremo significado a consideração “da pessoalidade e a socialidade da arte” (p.101) neste sentido, é bastante presente a questão da identidade do indivíduo, bem como seus sentimentos e emoções na construção artística. Com relação ao aspecto referente ao sentimento pessoal, Pareyson (1997) é enfático ao dizer que Não se pode enfrentar o problema do sentimento na arte sem distinguir, em primeiro lugar, várias espécies de sentimentos: aqueles vividos pelo artista antes da obra, aqueles expressos na obra, aqueles vividos pelo artista ao fazer a obra e aqueles despertados pela obra no leitor: em suma, os sentimentos precedentes, contidos, concomitantes e subseqüentes com relação à obra de arte. (p.84) O artista como pessoa, ou seja, um indivíduo pertencente ao universo sócio-cultural, vai procurar entender a dinâmica humana no entrejogo do eu individual e do eu coletivo. Assim sendo, “a vida de um artista está inteiramente debruçada sobre a arte, inteiramente posta sob sua insígnia”. (Idem, p. 91), pois a personalidade artística e a humana estão literalmente inter-relacionadas. Neste sentido o indivíduo-artista busca captar e configurar as realidades que o cercam, na tentativa de uma compreensão de vida, de si próprio e do mundo. Assim, entendemos o processo de criação e as potencialidades 60
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criativas como inerentes e necessárias às atividades humanas, as quais se circunscrevem nas diferentes dimensões da vida. Assim considerando a construção humana como uma atividade criadora, experiências, valores, compromissos internos e externos (valores coletivos), a criatividade significa uma condição inerente ao ser humano em busca constante de transformação, de mudança. A isto Ciampa (1987) chama de metamorfose “a gente ir se transformando permanentemente. Somos seres humanos, somos matéria; através da prática, a gente vai se transformando” (p.111) e, é justamente nas relações sociais que o artista cada vez mais exercita sua criatividade e como lembra Antonio Ciampa vai se metamorfoseando. Ostrower (1990) lembra que o artista à medida que vai ganhando experiência com a realidade do mundo concreto, elabora imagens mentais, isto significa que à medida que percebemos, compreendemos, criamos e isto ocorrerá sempre através de imagens e formas. No tocante ao artista como pessoa, o ato expressivo é sua marca registrada. Cassirer (1972) alerta que, para um grande artista, as cores, as linhas, os ritmos não são apenas um detalhe de seu aparelhamento técnico: “são momentos necessários ao próprio processo produtivo”. (p.226) Ostrower (1990) destaca que “nas obras de arte, as técnicas acabam se tornando ‘invisíveis’, sendo absorvidas inteiramente pelas formas expressivas” (p.18) assim, o artista plástico adquire seu estilo, sua identidade fala alto. Essa projeção do artista, para Cassirer (1972) dá à “arte os movimentos da alma humana em toda sua profundidade e variedade”. (p.236) O que se percebe na obra de arte não é tão somente o aspecto emocional, mas o processo dinâmico da própria vida, a oscilação entre tristeza e alegria, esperança e medo, exultação, desespero... é o indivíduo em plena ação artística. Assim, “o poder da paixão foi convertido em força criadora” (Idem, p.237) Levando em consideração os desdobramentos apresentados, acredito na indissociabilidade da pessoa e da profissão, pois ser artista depende da relação dinâmica entre estas duas dimensões. “É impossível separar o eu profissional do eu pessoal”. (Nóvoa, 1992 a, p.17).
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Trajetória Artística Como ser social que é, e dotado de sensibilidade exacerbada, o artista plástico vive momentos de grande emoção durante o período da concepção de uma obra de arte. Sua identidade está presente em seu fazer criativo, sua linguagem simbólica explicita-se através de sua produção. Ciampa (1987) ao referir-se à questão da identidade lembra-nos que A identidade é concreta; a identidade é o movimento de concretização de si, que se dá, necessariamente, porque é o desenvolvimento do concreto e, contigencialmente, porque é a síntese de múltiplas e distintas determinações. O homem como ser temporal, é ser-no-mundo, é formação material. É real porque é a unidade do necessário e do contingente”. (p. 199) Neste sentido, o artista plástico é um ser sensível, intuitivo e criativo vivente entre os homens comuns, pois sabemos que este é voz através dos materiais que utiliza para criar suas obras. É através de sua arte que estabelece novas formas de expressão, idéias, e sentimentos. A relação do artista com sua produção, Corrêa (1995) afirma que “o homem como ser criativo que é dotado, busca incessantemente seu crescimento interior produzindo ciência ou arte em prol da humanidade” (p.67) esta busca proporciona o desenvolvimento cognitivo fazendo com que o indivíduo organize as mais variadas situações criativas que desencadeiam uma multiplicidade de situações na organização e produção do conhecimento. É interessante constatar-se que a concepção de trajetória artística (profissional) assim como a pessoal, envolve-se com a noção de geração apontada por Ortega y Gasset (1970). Assim cada geração de artistas apresenta uma maneira peculiar de inteirar-se do mundo que o cerca, gestálo e até governá-lo. Este mundo que se fala é o da arte e a geração é a artística. No que se refere à realidade e tempo presentes que o artista se envolve, Frange (1995, p. 54) reporta-se a David Smith escultor norte americano que diz: ... my time is the most important in the world – that the art of my time
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is the most important art – that all the art before my time … is history, explaining past behavior, but not necessarily offering solutions to my problems. Logo as relações entre o individual e o cultural (público) são expressas pelo artista através de seu processo criador. Para Ostrower (1996) o nível cultural compreende as diferentes formas materiais e espirituais articuladas entre indivíduos de um grupo, bem como sua convivência, comunicação e transmissão à geração seguinte. E o nível individual contemplado como a consciência e a sensibilidade dos sujeitos, a natureza criativa do ser humano, representada nas potencialidades de um ser único, se elabora no contexto cultural. Com isto os processos criativos podem ser vistos como potenciais inerentes ao homem sendo a criação obra constantes nas mais diversas situações sócio-culturais. Sendo assim, no criar estão relacionados aspectos cognitivos e sensíveis do indivíduo, os quais em interdependência possibilitam a configuração de novas realidades. No tocante a memória, trajetória do artista, Iberê Camargo (1998) diz que “as coisas estão enterradas no fundo do rio da vida. Na maturidade, no ocaso, elas se desprendem e sobem à tona, como bolhas de ar. Como se vê, a criação se faz com o agora e com o tempo que recua”. (p.32) Como salienta o consagrado artista plástico, a “memória é a gaveta dos guardados”, todo o clima existencial do homem está presente em suas criações, como diria Iberê “o importante é encontrar a magia que existe nas coisas, na vida”. (Idem, p.33) Ainda considerando o exposto, Frange (1995, p.49) citando Lee Kasner que diz “I am never free of the past. I have made it crystal clear that I believe the past is part of the present which becomes part of the future”.
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Sebastião Gomes Pedrosa Professor da Universidade Federal de Pernambuco, sendo Doutor em Arte pela University of Birminghan – Inglaterra 1993. Possui Curso de Mestrado em Arte/Educação pela Birminghan Polithecnic Inglaterra – 1982. Possui dois Cursos de Especialização. Estudos Curriculares em Art and Design – Birminghan Polithcnic – 1978 e Estudos Visuais: princípios da forma e da cor – Veneza – Itália – 1974. É artista plástico de grande notoriedade, tanto nacional como internacionalmente conhecido e reconhecido. Lucimar Bello Pereira Frange Professora aposentada da Universidade Federal de Uberlândia – Minas Gerais. Atualmente é Pesquisadora Voluntária da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – SP – Área de Semiótica Visual — 2001. Pós-Doutora em Semiótica e Ensino das Artes Visuais pela PUC de São Paulo. Doutora em Arte/Educação na Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo — 1993. Mestrado, também em Arte/Educação igualmente na ECA /USP — 1988. Possui três Cursos de Especialização: Filosofia – Saber e Poder realizado na Universidade Federal de Uberlândia em 64
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1988; História Moderna e Contemporânea – UFU 1985 e Princípios Estéticos da Educação – UFU 1982. Artista Plástica exímia na linguagem do Desenho, tendo inúmeras exposições individuais em todo o país e também livros publicados. Milton Terumitsu Sogabe Professor do Instituto de Artes de São Paulo – SP Universidade Estadual Paulista – UNESP. Doutor em Comunicação e Semiótica – Pontifícia Universidade católica de São Paulo – 1996. Mestrado igualmente na mesma instituição em Comunicação e Semiótica – 1990. Artista Plástico reconhecido pelos seus trabalhos envolvendo Arte e Tecnologia. Atua principalmente com Instalações Multimídia Interativas e Novas Tecnologias em Artes Visuais.
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Temporalidade das formas na pintura mural religiosa: uma problemática para a contemporaneidade Altamir Moreira1 A partir do Renascimento, a pintura mural religiosa passou a ser um elemento fundamental no conjunto das obras consideradas pela história da arte. Nessa fase, tanto o gênero de temática religiosa quanto a técnica mural eram representativos dos feitos de maior criatividade ocorridos na pintura. Isso, devido a uma rara conjunção de fatores sociais, culturais e econômicos, paralelo ao surgimento de artistas de grande habilidade. Artistas que se tornaram célebres, tanto pela força expressiva das suas criações, quanto pela habilidade teórica demonstrada na elaboração de complexos sistemas de representação do espaço e da figura humana. Mas, conforme se constata na contemporaneidade, em algum momento dessa trajetória a pintura mural religiosa deixou de ser um campo de maior evidência e passou a figurar no espaço das criações de menor destaque. Esse afastamento faz com que, muitas vezes, não seja possível estabelecer uma correspondência imediata entre as características do muralismo religioso e as classificações temporais predominantes nas artes laicas. Descompasso cronológico que, invariavelmente, evidencia a problemática atual sobre como situar a arte mural religiosa frente às classificações predominantes na historiografia da arte. E sobre o modo pelo qual podem ser compreendidas as divergentes temporalidades estilísticas correspondentes a esse campo das artes. Diante do problema, que não se esgota ao longo do texto, serão evidenciadas algumas das características que fizeram com que esse gênero artístico fosse deslocado para uma região periférica da história da arte. Análise que, em contrapartida, também discute alguns dos valores que contribuíram para o distanciamento dos modelos historiográficos em relação a esse tipo de produção visual. Essa discussão, que será desenvolvida a partir de questões pontuais da historiografia européia, pretende contemplar, sobretudo, o caso da pintura mural religiosa de igrejas da região central do
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1. Altamir Moreira (1972): Pesquisador de iconologia da pintura mural religiosa. Graduado em Desenho e Plástica pela UFSM, e doutor em Artes Visuais pela UFRGS.
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Rio Grande do Sul. Para este objetivo serão utilizados exemplos baseados em obras realizadas ao longo do século XX, fase histórica cujas principais peculiaridades se estendem até as realizações mais recentes, efetuadas no início do século XXI.
A sincronia inicial A pintura mural religiosa esteve no centro das primeiras sistematizações históricas da arte. E nesta posição permaneceu, pelo menos enquanto as características mais pronunciadas desse gênero eram adequadas para justificar o discurso sobre progressão técnica da representação figurativa. Desse modo, considera-se que, enquanto houve sincronia entre os desenvolvimentos do muralismo religioso e as exigências de virtuosismo valorizadas pela historiografia da arte, esse tipo de pintura esteve entre as criações mais estudadas. Mas, no momento em que fatores como: motivos formais de longa permanência, estilos extemporâneos, abordagens arcaizantes e de baixa qualidade técnica começaram a se evidenciar, o problema que tais obras poderiam representar para o campo histórico foi habilmente evitado pelo recurso de afastamento do foco de interesse, em direção às áreas de maior dinâmica estilística, nas quais essa abordagem metodológica ainda se revelava eficiente. A concepção de história enquanto sucessão de eventos com dinâmica similar às fases da vida humana, se fez presente desde os primeiros tratados que ajudaram a estruturar o campo da história da arte. E, por meio dessa abordagem, as criações de diferentes artistas puderam ser situadas como etapas necessárias para a construção coletiva destinada a culminar na obra dos grandes mestres. Os períodos marcados pela longa permanência das formas eram considerados como fases de estagnação. Pontos sem vida, dos quais, por vezes, emergem gerações de artistas notáveis que por meio de progressos técnicos cumulativos, conduzem a arte até os prováveis limites da engenhosidade. Fase de excelência, instável e curta, que, de modo inevitável, é sucedida por gerações de artistas incapazes de igualar os feitos dos grandes mestres. Situação que configura a etapa final, em que a perda 70
Temporalidade das formas na pintura mural religiosa: uma problemática para a contemporaneidade
progressiva do conhecimento acumulado resulta em decadência artística. Uma concepção histórica desse gênero foi utilizada por Giorgio Vasari (1511-1574) ao narrar a Vida dos mais ilustres pintores, escultores e arquitetos, em uma abordagem biográfica destinada a perpetuar a memória dos artistas considerados mais célebres. Nesta obra, publicada em 1550, e reeditada com acréscimos em 1568, o historiador toscano busca compreender as origens da excelência técnica alcançada naquela época, modo pelo qual identifica, nas criações de antigos pintores como Cimabue e Giotto, os primeiros passos criativos que evidenciam um afastamento em relação às convenções da arte bizantina. A partir disso, o acúmulo de conquistas técnicas individuais deu origem à fase de máxima qualidade artística. Nessa concepção de uma progressiva reconquista dos meios técnicos de representação naturalista, a pintura de Giotto (1266-1337), com os ciclos de murais religiosos, pôde ser considerada entre os primeiros exemplos do tratado histórico, na base do ciclo ascendente de florescimento artístico, destinado a culminar nos grandiosos afrescos de Michelangelo. A fase ascensional do crescente domínio da representação naturalista é entendida como decorrente de um longo aprendizado que se volta tanto para a observação do mundo material quanto para o conhecimento obtido por artistas precursores. Desse modo, as artes deixam de ser apenas um conjunto de criações independentes e passam ser vistas como elos interligados de um processo. Essa relação de dependência é evidenciada por Vasari ao afirmar que: “os pintores têm em relação a Giotto, o pintor florentino, exatamente o mesmo débito que para com a natureza” (VASARI, 1985, p. 57. Tradução nossa). Uma vez que a obra mais admirável de um pintor contemporâneo pode ser vista como devedora dos esforços somados pelas criações que a antecedem. Tal obra já não é considerada como o simples resultado da engenhosidade individual, ela se torna, antes de tudo, um símbolo do gênio criativo de uma região e, também, a parte culminante do longo processo histórico de conquistas cumulativas. A perspectiva histórica baseada na progressão técnica exige uma coerência interna de discurso. Para que essa coerência seja mantida, é necessário que o historiador lance um olhar seletivo capaz de localizar
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uma ordem de sucessão desejável no conjunto de obras produzidas em um período. Entre os diversos direcionamentos estilísticos e variados níveis de habilidade artística, o historiador tende a selecionar apenas aquelas obras que se enquadram na demonstração pretendida. Esse condicionamento se demonstrou funcional na descrição dos recursos criativos da arte mural renascentista, embora não fosse, igualmente, adequado a outras áreas da produção de imagens. Tais limitações, só eventualmente percebidas pelos historiadores, foram destacadas a partir do estudo de obras consideradas mais sob o ponto de vista antropológico do que artístico. Aby Warburg foi um destes historiadores cuja visão não se limitou ao modelo de progressão coerente. Em 1902, ao estudar A arte do Retrato e a Burguesia Florentina, ele chama atenção para o caso dos ex-votos em cera, que eram deixados na Igreja de Santíssima Anunziata, em Florença: Na era de Lorenzo de Medicis, a produção dessas efígies (voti) era altamente desenvolvida e um ramo da arte de alta consideração, dominada pelos Benintendi, discípulos de Andréa Verrochio, que por gerações manteve um amplo negócio de manufatura por meio da igreja e que apropriadamente receberam o nome de Fallimagini (fazedores de imagens) (WARBURG, 1999, p. 190). Mas, apesar do destaque teórico concedido a essas imagens, elas não foram consideradas pelos historiadores da arte subseqüentes. As causas dessa exclusão, para Didi-Huberman, residem no fato de que estas efígies já apresentavam a qualidade figurativa de obras renascentistas, em pleno século XIV, enquanto que o modelo dominante de historiografia esperava que as imagens desse período tivessem aspecto medieval e, além disso, careciam de um aspecto decisivo: “não desejavam ser obras de arte” (1990, p. 263).
O problema das simultaneidades No decorrer do século XVII, o exercício de aplicar a visão histórica de progressão totalizadora tornava-se uma tarefa árdua. Diante da diversidade de desenvolvimentos técnicos e de direcionamentos expressivos, a solução encontrada foi a divisão dos grupos mais homogêneos em escolas estilísticas. 72
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Tendência que foi seguida por algumas das obras teóricas do período. Na Itália, por G. Bellori, e na França, por André Felibién e Roger de Piles (ALTET, 1994). Embora o desenvolvimento técnico ainda fosse um valor estimado, as distintas ênfases, surgidas na abordagem da figuração, levaram a pintura a desenvolvimentos cada vez mais divergentes. Percebeu-se que o destaque concedido às técnicas de cor conduzia a um direcionamento estético diferente daquele obtido pelo aperfeiçoamento dos valores do desenho. No campo teórico, discute-se qual das duas ênfases deveria ser considerada superior. Constatava-se, de modo ainda pouco consciente e a contragosto, que a história da arte podia apresentar desenvolvimentos simultâneos, e que isso representava um problema para o modelo unificado de progressão das artes. A fase marcante desse tipo de discussão inicia-se em 1676, quando Roger de Piles (1635-1709) escreve a Apologia a Rubens, obra que acirra o embate entre duas das principais correntes de ênfase técnica. Por acentuar divergências entre os que, com base na arte de Poussin, defendiam a superioridade do desenho e aqueles que, ao contrário, acreditavam na supremacia da cor, tendo como modelo exemplar a obra de Rubens, pintor flamenco, considerado na Apologia como o que soube dar continuidade aos desenvolvimentos da escola veneziana, de Ticiano a Veronese. (CHALUMEAU, 1997, p. 45). Com isso, a resolução buscada para o impasse evitou o caminho da conciliação ou aceitação de valores antagônicos para centrar-se nos meios teóricos de se definir qual abordagem plástica teria o mérito de representar os verdadeiros avanços da pintura. Os valores destacados, mesmo que em campos opostos, não deixavam de ser tentativas de se preservar o antigo modelo cronológico ao se definir qual técnica deveria ter prioridade na avaliação dos indícios históricos de evolução. Algumas obras de artistas europeus, que a crítica do século XVII classificou como pertencentes à tendência colorista, vieram a exercer uma tardia influência sobre a pintura mural religiosa sul-riograndense, desenvolvida ao longo do século XX. E foi provavelmente pela difusão em gravuras populares que tanto as formas criadas pelo artista flamenco quanto aquelas concebidas pelos antecessores venezianos, tornaram-se modelares para o desenvolvimento da iconografia religiosa regional, sobretudo em obras
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concebidas a partir do final da década de 40. Algumas das formas do quadro de Rubens conhecido como Golpe de Lança (1620, Museu de Antuérpia) influenciaram, em primeiro momento, as imagens dos vitrais religiosos produzidos, provavelmente, nas décadas de 40 e 50, pelo atelier Casa Genta, de Porto Alegre, conforme se deduz pelos exemplares observados em igrejas paroquiais dos municípios de Feliz e Guaporé. Por aparente coincidência, Emílio Zanon, pintor oriundo dessa última cidade, utiliza formas similares nas cenas da Crucificação de Cristo, pintadas para as igrejas paroquiais de Monte Belo (1963), Nova Bréscia (1996) e Anta Gorda (2001). Aldo Locatelli, por sua vez, destaca a tradição veneziana em vários detalhes dos murais que realiza. Em 1949, ao pintar o mural da Coroação de Nossa Senhora, na Catedral de São Francisco de Paula, em Pelotas, reproduz as formas de um anjo presente na Glória de Santa Tereza de Ávila, pintada por Giambattista Tiepolo (1696-1770), em 1725, para a Igreja dos Scalzi, em Veneza. Essa forma angélica, já com algumas alterações, é retomada por Locatelli na cena da Coroação de Nossa Senhora, pintada em 1954 na Catedral do município de Santa Maria e, mais tarde, no mural da Imaculada Conceição, pintado em 1958 na Igreja do Santíssimo Sacramento, em Itajaí, Santa Catarina. O legado de outro pintor veneziano é destacado por Locatelli no anjo reproduzido em escorço, na cena da Imaculada Conceição executada em 1954 na Catedral de Santa Maria. Personagem cuja forma é derivada do mural da Glória de São Domingos, que Giambattista Piazzetta (1683-1754), mestre de Tiepolo, pintou em 1739 na Igreja de Santa Maria do Rosário, em Veneza. Voltando-se ao caso da estruturação do campo da história da arte européia, constata-se que, no século XVIII, o modelo teórico, baseado na equiparação das artes a um ciclo vital, alcança pleno desenvolvimento. Embora a idéia de progressão já fosse destacada por Vasari no século XVI, a possível fase descendente de tal processo, apesar de intuída, não havia sido salientada. O que move a narração do historiador italiano é, antes de tudo, a percepção de que os períodos de excelência artística estão fadados ao esquecimento, processo já ocorrido em outras eras do passado. A constatação é de que “o artista vive e adquire fama por seus trabalhos”, mas que, lamentavelmente, 74
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devido ao tempo que tudo consome, não só o artista, mas também as obras e a fama tendem a desaparecer (VASARI, 1985, p. 31). A melancólica missão do historiador consiste em salvar a memória dos grandes feitos, evitando essa espécie de segunda morte (DIDI-HUBERMAN, 1990, p. 78). Vasari, portanto, embora ciente dessa fase descendente, evita dedicar maior atenção a este aspecto do modelo que utiliza. Porém, no século XVII, com os estudos de Johann Joachim Winckelmann (1717-1768) a fase regressiva do ciclo é plenamente incorporada ao esquema. Na obra de 1764, dedicada à História da Arte Antiga, ele busca assimilar os ciclos estilísticos das obras com a dinâmica vital da história da civilização. Desse modo, sob classes temporais e estéticas, ele demarca quatro períodos na Arte Grega: o Antigo, pelas obras anteriores a Fídias; o Sublime, nas obras da geração de Fídias; o Belo, de Praxíteles a Lisipo e Apeles, e o estilo de Imitação que se segue até a morte da arte. Classificação para a qual encontra correspondência na arte de séculos mais recentes, no momento em que associa o estilo Antigo aos antecessores de Rafael, o Sublime a Rafael e Michelangelo, o Belo a Corregio e Guido Reni, e o de Imitação às obras dos irmãos Caracci a Carlos Marata. (CHALUMEAU, 1997, p. 50). Na pintura mural religiosa sul-riograndense, constata-se a influência das formas legadas por alguns desses pintores renascentistas destacados nos escritos iniciais da história da arte. Sobretudo, daqueles que a crítica do século XVII identificava como precursores da tendência acadêmica de valorização do desenho, tais como Michelangelo e Rafael. Pintores cujas obras Winckelmann, no século XVIII, considerou dignas do epíteto de sublimes. Entre os modelos usados pelos pintores regionais destacam-se: o Profeta Isaías, de Michelangelo (1475-1564), cujo modelo Angelo Lazzarini retoma ao pintar um dos medalhões da nave da Igreja de Nossa Senhora das Dores em Santa Maria, em 1959, e a Disputa do Santíssimo Sacramento de Rafael (1483–1520), que foi utilizada por Ângelo Fontanive no mural em Memória ao Congresso V Eucarístico Nacional de 1948, pintado na Igreja de Nossa Senhora da Purificação, em Putinga.
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O problema da multiplicidade Entre o final do século XVIII e o terceiro quartel do XIX, diferentes orientações estéticas contrapõem partidários do romantismo e defensores da tendência tradicional. A ascensão do poder político burguês e a consolidação dos estados nacionalistas laicos coincidem com o deslocamento do foco de interesse historiográfico, outrora voltado para a pintura religiosa. Os temas bíblicos já não exercem o mesmo interesse no momento em que os temas históricos e os eventos políticos heróicos ganham maior evidência na pintura tradicional, mas os valores que levam esta arte acadêmica, neoclássica, a ser situada no topo da escala evolutiva passam a ser questionados. O romantismo cria o primeiro grande problema para a história baseada na progressão técnica, pois no centro dessa tendência surgem alguns artistas que pretendem reabilitar a importância da arte religiosa e que, deliberadamente, buscam imitar as formas mais elementares dos estilos antigos, por meio de abordagens que, perante o modelo histórico vigente, só poderiam ser entendidas como involuções. Em 1810, um grupo de jovens artistas germânicos estabelece um ateliê no monastério abandonado de Santo Isidoro, em Roma. Decididos a dedicar-se à pintura e à vida devota inspiram-se nos modelos anteriores a Rafael, tais como Giotto e Fra Angélico. Logo passam a ser conhecidos como os Nazarenos, devido ao costume de cultivarem longos cabelos divididos ao meio, de modo a imitar a concepção tradicional da fisionomia de Cristo (BLANC, 1883). No campo artístico, buscam contrapor-se às idéias de Winckelmann e ao academismo que consideram contrários à religião. Conseguem alcançar notoriedade nas primeiras décadas de trabalho, mas a linha ideológica que defendem custa-lhes a crítica de personalidades eminentes, como Goethe, que considera que “é a primeira vez na arte que vemos talentos notáveis como Overbeck e Cornelius se comprazerem em caminhar para trás” (Goethe apud BESANÇON, 1997, p. 462). O historiador Jacob Burckhardt, a partir de 1840, também critica a ideologia de colocar a arte a serviço da religião, a afinidade pelos “primitivos” e o fato de rejeitarem os direcionamentos da
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pintura acadêmica posterior a Rafael (GOSSMAN, 2006, p. 01). Jules Schnorr von Karosfeld (1794-1872), um dos artistas pertencentes ao grupo dos Nazarenos, baseado em propósitos humanitários de base cristã, realizou as 240 gravuras que ilustram A Bíblia em imagens (Die Bibel in Bildern), publicada entre 1852 e 18602. Obra cuja divulgação o tornou popular não só na Alemanha, mas também na França e Inglaterra (BLANC, 1883, p. 04). Reproduções tardias dessas imagens foram divulgadas por outros livros religiosos e, por esse meio, vieram a se tornar modelos para as pinturas murais realizadas nas igrejas do Rio Grande do Sul. Na pintura de Lazzarini, os modelos de Schnorr fornecem a base dos temas da Volta do filho Pródigo (1955) e do Paraíso Terrestre (1956), respectivamente pintados nos tetos das igrejas paroquiais de Nova Palma e Faxinal do Soturno. A recusa romântica em adotar as fórmulas dos grandes mestres e em manter a progressão técnica acadêmica difunde-se entre novos grupos modernos que emergem na segunda metade do século XIX, e isso se torna problemático para a historiografia da arte. O abandono dos modelos tradicionais também implica na rejeição dos parâmetros sobre os quais se dimensionavam as evoluções artísticas. O mérito de uma obra já não pode ser avaliado pelo êxito alcançado na assimilação da técnica dos antepassados e no progressivo acréscimo de novas qualidades, uma vez que já não há o interesse expresso de se alcançar similitudes e nem modelos de excelência a partir dos quais se possam avaliar as conquistas. O valor restante, sobre o qual ainda era possível emitir juízo valorativo, passa a ser o grau de diferença. Embora o potencial do pintor em acrescentar variedade aos motivos já fosse um critério prezado no academismo, esse tipo de diferenciação ainda não era uma qualidade definitiva. Ou, pelo menos, não no mesmo grau que alcança após a sucessão de movimentos modernistas, quando se torna um valor hipertrofiado. Diante da multiplicidade de direcionamentos estéticos e da falta de modelos de excelência sobre os quais fosse possível evidenciar direcionamentos de progressão, era de se esperar que a história da arte abandonasse o modelo baseado em linhas evolutivas, mas isso não chegou a ocorrer. O modelo, embora questionado, demonstra inesperada capacidade de adaptação. Se já não é possível avaliar a qualidade de uma obra frente aos antecedentes da
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2. O idealismo de Schnorr pode ser vislumbrado no texto do prefácio da Bibel in Bildern (1852 – 1860). “O objetivo que eu persegui ao publicar esta Bíblia em imagens foi, precisamente, aquele que constantemente se apresentou à minha alma durante toda minha carreira de artista. Eu sempre acreditei que as artes do desenho não tinham por objeto unicamente uma agradabilidade estéril, mas que elas tinham, também, a missão e os meios de contribuir para a educação do gênero humano”. (Schnorr apud BLANC, 1883, p. 04, tradução nossa).
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mesma tendência, passa-se a considerá-la contra as tendências concorrentes. Deste modo, o maior mérito passa a pertencer à obra do artista que alcançar maior índice de diferenciação e novidade. A contínua dinâmica de superação parecia comprovar que o ciclo evolutivo da arte ainda se encontrava em fase ascendente. Não mais pela adaptação e especialização internas ao mesmo gênero, mas por rápidas mutações destinadas a originar novas espécies. A discordância com a absorção acrítica dos valores modernos pela história da arte surge, em primeiro momento, através de pesquisadores que buscaram compreender as imagens produzidas por culturas distantes. Aloïs Riegl (1858-1905) estuda a arte decorativa dos povos mediterrâneos e orientais, normalmente desconsiderados pelos estudiosos europeus. A partir desta experiência, propõe o conceito de kunstwollen (vontade artística), pelo qual a força que origina o devir histórico configura-se na dinâmica determinada pelas possibilidades formais suscitadas pelos próprios motivos artísticos (CHALUMEAU, 1997, p. 89). Aby Warburg (1866-1929), que por algum tempo observou os costumes dos povos tradicionais do Novo México, sugere uma interpretação histórica baseada num desenvolvimento não progressivo, e sim oscilatório, no qual as imagens são interpretadas como objetos que consolidam tendências psicológicas básicas de razão e irracionalidade. Forças que, em alguns períodos, estabelecem uma tensa concorrência e que, em outros, se alternam com diferentes intensidades (FERRETTI, 1989). Entre aqueles estudiosos que se limitaram às imagens européias, também se destacam algumas resistências ao padrão histórico evolutivo. Heinrich Wölfflin (1864-945) buscou encontrar critérios menos subjetivos para a arte ao estabelecer conceitos bipolares de diferenciação formal que possibilitavam classificações neutras, pelas quais tanto as obras do barroco quanto as do renascimento poderiam ser estudadas sem a necessidade de considerar as novas tendências como resultantes do progresso ou degradação dos estilos anteriores. Erwin Panofsky (1892-1968), por sua vez, distancia-se da análise da evolução das obras em si para dedicar-se à dinâmica interna dos motivos abordados pela arte figurativa em diversos períodos históricos. Todos estes pesquisadores, apesar dos divergentes valores adotados, evitaram utilizar na história da arte critérios estéticos que associam superioridade artística 78
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como grau de oposição aos elementos tradicionais. E – talvez, não apenas pela falta de distanciamento apropriado – evitaram abordar a problemática progressão das tendências artísticas que lhe eram contemporâneas. Porém, no decorrer do século XX, a multiplicidade das tendências modernistas foi destacada por historiadores que se dedicaram a divisar, no universo das orientações estéticas divergentes, aqueles grupos mais hábeis em representar o caráter evolutivo da história da arte. Embora essa tarefa fosse imprescindível, a limitação do foco de interesse nas vanguardas excluiu grande parte dos desenvolvimentos artísticos de menor dinâmica, e mesmo parte dos representantes tardios de um academismo que, contrariando a história, se recusava a morrer. Os direcionamentos passadistas e regressivos, como aqueles representados pelas formas mais rudes ou “primitivas” de povos periféricos, raramente chamaram a atenção dessa história da arte e, quando isto ocorreu, foi por mérito dos próprios artistas modernos que vislumbraram naquelas formas étnicas um meio de aplacar, temporariamente, o insaciável desejo de novidade. Pelo menos, nas primeiras quatro décadas do século XX, a pintura mural religiosa produzida no interior dos templos católicos não despertou o interesse da história da arte. Pois as tendências estéticas vigentes nestes espaços já não acompanhavam os desenvolvimentos ocorridos nos espaços laicos. Mesmo na França, país em que se originam muitos dos movimentos modernistas, a renovação da arte mural religiosa só ocorre após a Segunda Guerra Mundial, quando, já no início da década de 50, acontecem sucessivas inaugurações de igrejas que apresentam murais com tendências estilísticas modernas. Essa renovação se dá através de obras ousadas para o contexto religioso, mas que retomam linhas de desenvolvimento expressionista ou de simplificação fovista, em grande parte já ocorridos no início do século, tanto nas artes laicas quanto na pintura religiosa produzida fora das igrejas. No Brasil, as experiências de Portinari realizadas na metade da década de 40 na Igreja da Pampulha (MG), apesar de inspiradas em experiências cubistas do início do século, só foram aceitas pelas autoridades eclesiásticas no final da década de 50. A historiadora Anna Paola Baptista acrescenta, ainda, outras igrejas ao número de experiências modernistas brasileiras. Entre as
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mais antigas, destaca: a Igreja de Nossa Senhora da Paz, pintada em 1944, por Fulvio Pennacchi (1905-1992), artista que se considerava um “futurista”, mas que devido à afinidade pela pintura religiosa e à gramática estilística em que denotava a admiração por artistas do Quatroccento italiano, por vezes, foi marginalizado pela crítica; a Igreja de Cristo Rei, pintada por Emeric Marcier (1916-1990), em 1946, com linhas figurativas despojadas, mas que não foi bem recebida em um período de crescente valoração das tendências abstratas, do mesmo modo que as telas religiosas enviadas por ele para a II Bienal de São Paulo (BAPTISTA, 2002, p. 206); e a Igreja de Cristo Operário, com pinturas murais realizadas por Volpi (1896-1988), em 1951, obras desconsiderados pelo próprio pintor, que por longo tempo se recusou a assiná-los porque os considerava como um trabalho menor, feito com o único objetivo de ganhar o seu sustento (BAPTISTA, 2002, p. 275). Estas experiências demonstram as várias faces do preconceito estético frente ao descompasso que havia entre a modernidade que vigorava nas artes laicas e a modernidade incipiente da pintura mural religiosa. Na região central do Rio Grande do Sul, os primeiros índices de modernidade podem ser divisados na experiência isolada de Locatelli na série de quadros da Via-Sacra, pintados entre 1958 e 1960, e que foram afixados nas paredes da Igreja de São Pelegrino, de Caxias do Sul. Ao longo dessa obra distinguem-se alguns objetos figurativos extemporâneos e inusitados nas cenas religiosas, numa tendência que revela a conjunção de elementos surrealistas e expressionistas. Com grande proximidade temporal, Lazzarini realiza, em 1959, pinturas relativas aos temas da Morte do Justo e da Morte do Pecador (figura 1), na Igreja de Nossa Senhora das Dores, em Santa Maria. Composições que preservam, em grande parte, elementos da iconografia divulgada em gravuras do final do século XIX, mas cuja estrutura iconográfica remonta aos manuais renascentistas da Boa Morte (Ars Moriendis) e à temática medieval da disputa pela alma dos mortos. Portanto, pode-se dizer que nessa região diferentes tendências e padrões estilísticos se desenvolviam com grande proximidade cronológica e geográfica. Diferenças que não podem ser reduzidas aos tradicionais esquemas históricos europeus de progressão técnica. 80
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A partir dos exemplos destacados, pode-se perceber que a pintura mural religiosa da região centro-rio-grandense, concebida ao longo do século 20, se estrutura como um verdadeiro mosaico de tendências estilísticas. Um conjunto imagético heterogêneo elaborado por pintores com diferentes níveis de habilidades artísticas que, apesar de trabalharem em regiões próximas, não chegaram a estabelecer processos evidentes de troca de influências ou de progressão técnica. Caso em que as afinidades formais mais evidentes decorrem, sobretudo, do uso predominante de uma figuração baseada em modelos tradicionais da pintura renascentista e barroca, além de derivações concebidas sobre gravuras religiosas de inspiração romântica. Concepção de visualidade que não pode ser compreendida como um fenômeno ultrapassado. Pois, o conjunto das imagens influenciadas por essa concepção continua a ser ampliado, no alvorecer do século XXI, com raros índices de modernidade, paralelos a sobrevivências de temáticas populares de longa duração que remontam à arte medieval européia. O antigo tema da Morte do Pecador (figura 2), que chegou a ser absorvido em uma das obras do artista mineiro Farnese de Andrade (1926–1996), demonstra que, de maneira crítica, a arte contemporânea já problematizou este tipo de permanência de longa duração. Questão que já foi enfrentada pela história cultural na análise das imagens produzidas pelas culturas periféricas, mas que ainda precisa ser aprofundada pela historiografia da arte para que seja possível o desenvolvimento de abordagens metodológicas mais adequadas. Abordagens que possam dar conta de imagens “não contemporâneas”, ainda que produzidas na contemporaneidade. Enfim, um aparato teórico que possa competir com o modelo de historiografia ancestral que tende a privilegiar apenas os valores de progressão técnica e inovação. Isto, em detrimento das imagens com dinâmica de mudanças mais lentas, mas que nem sempre possuem menor importância cultural.
Referências Bibliográficas ALTET, Xavier barral I. História da Arte. 2 ed. Campinas: Papirus, 1994. BAPTISTA, Anna Paola. O Eterno ao moderno: arte sacra católica no Brasil,
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anos 1940–50. 2002. [Tese de Doutorado em História Social – Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, UFRJ] BESANÇON, Alain. A Imagem Proibida: uma história intelectual da iconoclastia. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1997. BLANC, Charles. Histoire des peintrres des toutes les écoles: école allemande. Paris: Renouard, 1883. CHALUMEAU, Jean Luc. As Teorias da Arte. Lisboa: Piaget. 1997. DIDI-HUBERMAN. Devant L`Image: question posée aux fins d`une histoire de l`art. Paris: Minuit, 1990. FERRETTI, Silvia. Cassirer, Panofsky, and Warburg: Symbol, Art, and History. New Haven – London: Yale University, 1989. GOSSMAN, Lionel. Unwilling Moderns: The Nazarene Painters of the Nineteenth Century. 2006. Disponível em: <hhtt://19thc-artworldwide.org/ autumn_03/articles/goss_print.html>. Acesso em: 04/06/2006. LASSERE, Henry. Les Saints Évangeiles. Paris: [s.n.], 1888. [Disponível na Coleção Eichemberg, Acervo da Bibioteca Central, UFRGS] VASARI, Giorgio. Lives of the artists: a selection translated by George Bull. London: Penguin, 1985. WARBURG, Aby. The Renewal of Pagan Antiquity. Los Angeles: Getty, 1999. (Texts & Documents).
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O trompe l’oeil e as sutilezas da aparição Rosângela Miranda Cherem1
Arte e ilusão ou o atual como persistência do remoto Na tela de René Magritte intitulada A Condição Humana, reconhecemos um ambiente em que o que se destaca é uma janela protegida em seu interior por uma cortina e em cujo lado externo se deslinda uma paisagem. Porém, nessa aparente simplicidade figurativa, um elemento mais estranho parece se interpor: entre a cortina e a janela há uma tela sobre um cavalete, cuja paisagem é exatamente a continuidade do que se pode avistar fora do recinto. Assim, fiel ao enigmático título que remonta a uma das mais antigas questões da arte, o que o artista parece colocar relaciona-se ao fato de que a ilusão não se constitui apenas num atributo da imagem artística, mas na mais sutil das realidades, artifício ou recurso pelo qual o que nos circunda se torna familiar e se humaniza. Ironizando o excesso de realidade e ultrapassando a presença redutora das coisas para alcançá-las naquilo que volta como inquietante e longínqua aparição, o pintor problematiza plasticamente aquilo que, ao mesmo tempo, funda e solapa o fenômeno do olhar. Neste ponto particular em que o pensamento incide sobre a tela, uma outra questão parece se acrescentar: poderia a História da Arte, como história das sensibilidades e percepções sobre a imagem, ser pensada como um hipertexto e como tal acolher as questões irresolutas que lhe precederam numa espécie de espelho ou projeção infinita? Possivelmente considerando tal pergunta, em As tentações de Santo Antão, Gustave Flaubert armou um cruzamento de longas e saturadas evocações, numa espécie de sonho incomensurável ou ambição de contemplar todos os livros e de constituir um bloco perfeito de imagens pilhadas e empilhadas, desviadas e condensadas, singularmente montadas a partir de inumeráveis fragmentos. Diante desse entendimento, em que medida uma obra de arte pode ser considerada como um universo ou labirinto-portátil, constituído por uma
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1. Doutora em História pela USP e Doutoranda em Literatura pela UFSC, Professora de História da Arte no CEART/ UDESC, possui publicações e pesquisas sobre História das Sensibilidades e Percepções.
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espécie de multiplicação das refrações e incontáveis profusões da mesma matéria, apesar de recorrentemente refeito e recolocado? Em outras palavras, se por vezes parecem abandonadas ou esquecidas, resolvidas ou superadas, não são sempre as mesmas inquietações sobre a imagem que insistem em retornar, ainda que sob o manto enganoso de que acabaram de nascer tanto para a arte, como para sua história, teoria e crítica? Tentando alcançar alguma resposta para tais perguntas, talvez fosse conveniente dispensar o conforto de três procedimentos. Um, que considera a clave das continuidades, quer sobre vida e obra, estilos e escolas ou que toma a obra de arte como mera expressão de sintomas culturais, políticos, econômicos ou mesmo psicanalíticos. Neste caso, haveria que considerar que a precisão documental pode apenas multiplicar o excesso interpretativo, sem jamais ultrapassar os efeitos anestésicos desenvolvidos por aquilo que Baudrillard chamou de pensamento gorduroso. Tampouco se trata de considerar os feitos humanos como grandiosos, notáveis ou ordinários, clave onde se opera o ressarcimento e salvação, posto que esta já houvesse sido confrontada, pelo menos desde que Nietzsche considerou a origem como artifício e desde que Bataille compreendeu o lugar da poeira como equivalente inexorável das ações humanas e suas ambições vividas ou imaginadas, duradouras ou efêmeras, extraordinárias ou insignificantes, sagradas ou profanas. Já o outro procedimento que poderia ser dispensado é aquele que se apóia nos clichês de que toda obra de arte é historicamente produzida e que todo fenômeno artístico está historicamente delimitado. O contraponto para este caso seria a compreensão de que a obra de arte não conhece história e de que seu alcance tem mais a ver com a suspensão dos encadeamentos cronológicos e a re-instauração do enigma, potencializado pela conexão entre descontinuidades distintas e um olhar inquieto que encontra na particularidade do detalhe o irredutível que retorna. Assim, se a forma da linguagem é finita, os lances que permitem realizar uma espécie de pensamento-delírio não o são, sendo que é exatamente na criação como operação de esquecimento que se produz uma ilusão continua e incessantemente renovada de que arte é sempre desvio do existente e, como tal, criação de mundo. 86
O trompe l’oeil e as sutilezas da aparição
Para manter a reflexão num território menos hermético, observemos a gramática do trompe l’oeil. Nem realismo, nem mero ilusionismo, mas uma modalidade pictórica particular, cujo efeito hipnótico hipertrofia o engano dos sentidos. Diferentemente do espaço pictórico concebido pelo olhar renascentista como evasão e cuja precisão racional se sustenta na busca mais perfeita de re-apresentação do mundo, o trompe l’oeil não conduz, mas vem ao encontro e invade o campo do espectador produzindo um rasgo que alcança e atinge aquele que se encontra diante da obra.2[1] Assim, sustentada pelos truques do sombreado e das formas decupadas, confundindo o próximo e o distante, o interior e o exterior, o sombrio e o luminoso, a superfície bi planar se torna dotada de uma carnalidade em sua mais fiel e real aparência. Ao mesmo tempo, apresenta-se como uma espécie de espelho que projeta uma hiper-presença palpável da coisa ausente, registro de uma presença que se afirma mediante o desfalecimento da realidade e permite pensar o real que emerge na sua condição enganosa e imanente.3[2]
2[1]. MILMAN, Miriam. Le Trompe-L’oeil. Les illusiones de la réalité. Genève: Suisse. Editions d’Art Albert Skira S.A., 1994
3[2]. BAUDRILLARD, Jean. A Arte da desaparição. R.J.: Ed. UFRJ / N-Imagem, 1997. Capítulo I
A ultrapassagem de tetos e paredes Consideremos as paredes das vilas romanas, posteriormente relidas nos palácios renascentistas, destinadas ao desaparecimento da própria parede e à conquista de uma outra dimensão, cujas fachadas e colunas ilusórias permitem a mobilidade do espectador diante da falsa superfície sem ponto central. Muitos outros exemplos parecem se desdobrar desta espécie de truque arquitetônico-pictórico, desde a intarsia, trabalho em madeira marchetada cujos efeitos de perspectiva simulavam janelas e portas no espaço fechado e privado dos studiolos, até os panoramas do século XIX que, reproduzindo e divulgando as paisagens tropicais na Europa, permitiram realizar a fantasia de catalogar e reter o mundo, ao mesmo tempo em que proporcionava uma viagem exótica sem sair de casa. Todavia, para além dos nobres ou dos burgueses mais abastados, a abertura de uma fenda visual para o alhures deve ter marcado igualmente os cristãos que costumavam freqüentar as igrejas renascentistas e olhavam para a
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arquitetura e a paisagem dos afrescos de Giotto e de Masaccio (fig. 01) ou para o espaço tridimensional apresentado nos painéis e retábulos de Van der Weiden. Igualmente, a conquista da exterioridade desses espaços pode ser compreendida através dos tetos das igrejas barrocas, cujos rasgos para o infinito eram produzidos pela pintura de um céu aberto onde os santos e anjos se apresentavam debruçados sobre balcões, observando o devoto, conferindo crenças e cuidando de sua fé como lanceiros atentos, cujos olhares estavam destinados a atravessar cada destino. É o caso dos anjos entre nuvens, pintados por Manuel de Ataíde no teto de Igreja de São Francisco de Assis em Ouro Preto, bem como da visão dos santos nas sacadas celestiais no teto da Igreja de Santo Antonio em João Pessoa, Paraíba (fig. 02). Por sua vez, ecos daquela virtuosidade exagerada ou apenas desejo de produzir novos efeitos sobre o cotidiano, encontram-se nos trabalhos de muralistas como Diego Rivera, particularmente num afresco intitulado A elaboração de um afresco, destinado ao Instituto de Artes de São Francisco, onde o artista e seus assistentes são retratados de costas, trabalhando sobre andaimes (fig. 03). Mais recentemente, há ainda as fachadas de certos prédios de cidades como Paris ou Nova York (fig. 04). Recusando uma parede inumana e indiferente, através de uma operação que reverte a planaridade para torná-la apenas efeito de espaço anterior ao próprio mundo real, estas superfícies simulam uma terceira dimensão, compensando uma parte das paisagens relacionadas aos enredos urbanos e aos cenários impessoais e banalizados em seu cotidiano.
O corpo (in) animado, segredos da encarnação O que dizer em relação aos corpos dos santos e anjos pintados nas grisalhas que revestiam os retábulos ou aos afrescos com querubins escultóricos que cobriam tetos como os da Capela Sistina? Impossível ignorar a vida própria que adquiriam aquelas figuras, investidas de uma carnalidade anatômica em seu aparente cansaço como solução pictórica, descolando-se e autonomizando-se como prefiguração de estátuas entalhadas em madeira ou esculpidas em mármore (fig. 05). 88
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Em certo sentido, cada uma daquelas formas bidimensionais parece conter o que Frenhofer disse diante de sua pintura para Poussin e Probus: vocês não esperavam tanta perfeição! Estão diante de uma mulher e ficam procurando um quadro4[3]. Bem verdade que a questão desses corpos remete à dramaturgia do invisível obtida pela eficácia da imagem como incorporação do sagrado, apresentando-se como um fenômeno paradoxal da visão alcançado pelo delírio como experiência mística, empreendimento pictórico cuja força dirigiase aos efeitos de transfiguração onde o divino se revelaria.5[4] Muito tempo antes que a pop art potencializasse o efeito hiper-figurativo ou que a publicidade recortasse os corpos fotografados para apresentá-los como quem recebe o consumidor na porta das lojas, cantoneiras em forma de retratos-vivos eram incorporadas como solução decorativa legitimada pela gramática pictórica. Obscenidade da pintura: um corpo feminino recortado, nem tela e nem escultura (fig. 06). Nesta espécie de hiper-realismo encantado, delineando o reino enganoso dos sentidos, o retrato se tornava uma espécie de natureza-morta, assinalando a vitória da realidade plástica dos objetos. Assim, se Rosalind Krauss pôde dizer que o falso e o genuíno já não se constituíam em princípio da arte desde os findos oitocentos6[5], talvez seja possível pensar que um outro princípio, afirmado pelo trompe l’oeil, já estava se forjando anteriormente.
4[3]. BALZAC, Honoré. A obra-prima ignorada. S.P.: Comunique, 2003, p. 52
5[4]. DIDI-HUBERMAN,George. Devant l’image. Paris: Lês Editions de Minuit. 1990, capítulo 4.
6[5]. KRAUSS, Rosalind. La originalidad de la Vanguardia y otros mitos modernos. Madrid: Ed. Alianza 1996, Cap. 1.
Um mundo povoado por objetos e a desmaterialização do suporte Partindo da pintura de certos nichos destinados a servir como vanitas, pode-se observar uma espécie de tipologia do trompe l’oeil. Contemporânea das soluções barrocas, possível combinação e releitura dos afrescos das catacumbas e do relicário medieval, em tempos em que as arcas eram substituídas pelos armários, esta gramática pressupõe um tipo particular de interação com o espectador, não só distinta como oposta às anamorfoses, cujos lances de adivinhação pressupunham uma figuração de aparência incerta e forma duvidosa, alcançada apenas pelo relance dos sentidos. Por sua vez, o trompe l’oeil caracteriza-se como um jogo visual cujas regras são semelhantes a uma charada associada à exatidão documental
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e à evidência da verdade, mas instalando precisamente nesse ponto as confusões entre o estranho e o familiar que invadem a ambigüidade da percepção e produzem inumeráveis enganos, levando à constatação das
7[6]. DERRIDA, Jacques. La vérité en peinture. Paris: Flammarion, 1978, capítulo 4.
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incertezas que se escondem na precisão. Nessa solução pictórica mais real do que a realidade, se destacam os contornos duros, as sombras escuras, além das formas decupadas e com reduzida perspectiva. Em casos onde se destacam nichos e estantes, predomina um flagrante da ironia artística: em meio à imagem de coisas em desalinho ou entre objetos pilhados e empilhados para fins de coleções com naturalias e artificialias, a presença de livros e caveiras, freqüentemente registrando o gosto e o repertório do proprietário (fig.07). Outras vezes, destacam-se formas problematizadas como espetáculo do mundo, onde o exterior se projeta no interior de um objeto como transparência e luz. Mas eis que o que se revela neste registro não passa de um engano que resplandece como luz artificial projetada no vazio de um jogo que apenas encena a superficialidade do mundo. A sedução torna-se então vertigem, resultando numa perda repentina da identidade que ressurge como imagem alucinada do próprio desaparecimento, imersa em éter vazio (fig.08). Recurso que insiste em afirmar que o olho é traiçoeiro e sua certeza uma fraude, ao demonstrar sua magia o trompe l’oeil se torna uma espécie de obscenidade da obra. Exagerando a aparência do real, as coisas são desnudadas de aura, portadoras de uma exatidão que atinge aquele que para elas se voltam, desfazem a evidência do mundo através do recurso de uma mutação que embaralha os sentidos, especialmente produzindo uma confusão do código visual. E, posto que nesta cenografia não haja um ponto de fuga, a centralidade retiniana é substituída pela realidade táctil, desdobrando um jogo de casualidade que se afirma pelos objetos e seres que servem para fazer pensar a condição frágil e precária da existência, através dos vestígios por ela deixados e que a ela são remetidos. Bem antes de Derrida problematizar a pintura como uma espécie de cheque cruzado remetido ao portador — cuja verdade está contida na obra mas cuja fatura só pode ser descontada na boca do caixa, ou seja, considerando sua própria materialidade e singularidade mais irredutível 7[6]
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— os pintores do trompe l’oeil executaram suas obras simulando montagens de desenhos e gravuras rasgadas, sobrepostas, amassadas e/ou pregadas, apresentando-as ora como procedimento que encenava o inacabado, a displicência e o abandono, a desordem e a desorientação, ora como artefato garantido e atestado por uma espécie de bilhete explicativo pintado como se fosse um pequeno bilhete disposto sobre a tela. Sob diferentes variações, as modalidades figurativas se tocavam como também compareciam os registros escritos (fig.09). Do mesmo modo, simulando gravuras emolduradas sob a proteção de um vidro quebrado ou telas dispostas sob molduras estragadas, como se a pintura tivesse sido feita sob madeira de má qualidade, envelhecida e/ ou decomposta ou, ainda, como se papéis e esboços fossem pregados e objetos acabassem ali encostados e abandonados, buscavam soluções que tanto ironizavam o meio como contribuíam para a desmaterialização dos suportes convencionais (fig.10). Bem antes do aparecimento dos ready mades e das assemblagens ou que as rachaduras do Grande Vidro pudessem ser assimiladas como solução estética, os procedimentos pictóricos encontravam-se com indagações sobre a natureza da obra de arte, posto que o que vemos talvez nunca seja aquilo que vemos.
O que se vê é aparição Ampliando a vertigem sobre o quadro ausente, pode-se recorrer ao exemplo das telas do século dezessete, cujo tema era nada menos do que o reverso da tela. Assim, problematizando o irrelevante, sem perspectiva e sem ponto de fuga, retornava o esquecido da realidade nua e crua da moldura e do chassi, reafirmando a obra através de sua denegação (fig. 11). É particularmente neste caso que o trompe l’oeil permite reconhecer os traços da irreverência e rebeldia artística que antecederam ao modernismo. Mesmo antes do romantismo, visibiliza-se um artista marginal em relação aos estilos e convenções do seu tempo, que se mascara e desmascara, submetendo sua criação aos jogos de montagem, ironizando tanto a aura da arte como as relíquias que deixavam de ser sagradas para fazer parte dos gabinetes de curiosidade e das coleções,
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compostas pelas mundanidades científicas e pelos objetos que passavam a povoar a vida privada. Igualmente, é possível reconhecer um comitente ou destinatário urbano que não se submete ou alcança os cânones aristocráticos e que guarda suas afinidades com o pitoresco que se aninha no reino do particular e do interessante, do curioso, do sombrio e do irônico. Bastante significativo é o trompe-l’oeil atribuído a Jean van der Vaart e intitulado Violino suspenso (fig.12). Trata-se de uma tela colocada atrás de uma porta e que só pode ser vista quando a mesma está aberta, fazendo surgir uma outra porta convenientemente fechada, com batentes virtuosamente decorados em baixo-relevo em cuja parte superior está pendurado um violino. Embora só a segunda porta seja tela, ambas apresentam um conjunto de maçanetas e orifícios para as respectivas chaves, além das dobradiças. Assim, a fatura exige que, ao perceber o detalhe, o olhar retorne ao ponto onde foi fisgado. Porta-tela, porta-violino, tela-porta, o jogo é tão perfeito que um transeunte apressado pode nem perceber o truque, passando desatento e ignorando ou confundindo a tensão que existe como armadilha e faz gravitar uma passagem entre o impossível e a fantasia, o impenetrável e a contigüidade. Separado por quase dois séculos, não é difícil compreender o trabalho de Duchamp exigindo que um olho guloso atravesse as frestas de uma porta para só então encontrar-se com a instalação L’ etant donné.
Cenografia do engano Variações do véu, a cortina como a porta são figuras recorrentes na história da arte e problematizam a imagem em sua condição ilusória, pelo menos desde a antiguidade com Plínio, o Velho, e a conhecida disputa entre Zêuxis e Parrasio. Assim, se Zêuxis atraiu os pássaros para as uvas que pintou, Parrasio o derrotou por haver pintado um véu tão convincente que seu oponente viu-se obrigado a perguntar o que fora pintado atrás dele. O feito acabou por demonstrar o triunfo do olhar sobre o olho, ou seja o engano do olho evidenciava o fato de que a própria pintura era uma espécie de véu, permitindo indagar sobre aquilo que se encontra atrás ou através dela. Desde então, podese considerar a obra de arte como um jogo onde velar é desvelar, sendo ambas 92
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faces de um mesmo fenômeno, posto que o artista somente pode contornar aquilo que jamais alcança, nada mais fazendo do que figurar a experiência do vazio a partir de desarranjos e desencontros, na ilusão de reencontrar a coisa como paradoxo da criação. De volta à questão delineada no início do texto, eis a insistência da cenografia da revelação como operação enganosa e a persistência do triunfo absoluto da ilusão como condição humana.
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