Cápsulas d e a m a n h ã s contos ::: poemas
São Paulo | 2020
RevisĂŁo de Sofia Soft
Capa
Design de Teo Adorno Imagem de Gordon Johnson por Pixabay
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Nosso futuro pós-humano
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Ana Mitie : : : Sexts Bia Penha : : : Apresentação Sexist Doll Bruna Berthond : : : Botão Celia Marinangelo : : : Memory Implant (MI) Cecilia Odainai : : : Nootropicália Claudia Marchio : : : Presente de aniversário Daniela Prado : : : Fluído e metal Hugo Casarini : : : um zero um Jéssica Felix : : : Filha da Promessa J. Spagatas : : : Depende do tal do ponto de vista Karina Nasser : : : A droga da fé Maria Eugênia Ferezin : : : Um dia na vida Maria Teresa Simão : : : Yoni Bordel Marilia Maaz : : : Completa Rebeca Amorim : : : Lua de Mel Sofia Alves : : : Redenção Valéria de Melo Pereira : : : A cura pela flor Vitor Ivanoski : : : <CONFINAMENTO.EXE>
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>minibios
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N o s s o f u t u r o p ó s - h u ma n o >Luiz Bras
A ciência e a tecnologia estão mudando radicalmente os indivíduos, as sociedades, o planeta inteiro. Pra melhor? Pra pior? Difícil dizer. Na era do relativismo, como ter certeza? Os poucos otimistas afirmam que pra melhor, os muitos pessimistas afirmam que pra pior, e Protágoras de Abdera sempre afirmará que “cada indivíduo é sua própria medida de todas as coisas”. Essa onda implacável, esse movimento cada vez mais veloz chamado progresso tecnocientífico é um fenômeno inquietante… Se perguntarmos às pessoas das mais diferentes culturas e classes sociais se elas aprovam o progresso tecnocientífico, a grande maioria responderá um retumbante: Não! Tudo indica que nós, indivíduos humanos, somos essencialmente conservadores. Não gostamos muito de mudanças radicais. Não mexam em nossa conhecida e confortável rotina, por favor! No entanto, parece haver uma força determinista no coração do progresso tecnocientífico. A maioria de nós costuma recusar todo e qualquer desvio da rotina. O desconhecido nos incomoda. Mesmo assim, nos últimos trezentos anos a ciência e a tecnolo7
gia − de mãos dadas com o capitalismo − têm avançado cada vez mais rápido, sem se importar com nossa resistência íntima. Bem-vindos, queridos leitores, ao ciber-oásis do hiper-real. Gerada nos laboratórios da pós-graduação em Escrita Criativa, da Faap, esta pequena coleção de cápsulas de amanhãs trata exatamente desse tema: a inevitável mudança pós-humana. Nas dezoito ficções em prosa ou verso aqui reunidas vocês encontrarão considerações espantosas sobre inteligência artificial, engenharia genética, androides e ginoides sexuais, longevidade, realidade virtual, implantes neurais e drogas da inteligência. A essência do humano é mesmo a perpétua mudança? Estamos − todas as espécies estão − em constante evolução? As dezoito ficções futuristas reunidas nesta coletânea garantem que sim. Esses contos e poemas tratam basicamente da condição humana, de nossos medos e desejos. Afinal, a principal característica do gênero sci-fi não é a desconfiada curiosidade sobre o aqui-agora? Ao falar do futuro, a ficção futurista fala basicamente do presente, de nossas certezas e incertezas.
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Se x t s >Ana Mitie
Sinto o gosto dos seus lábios, escorrego as mãos em seus seios. Sigo o caminho de interesses e desejos encontrando a fonte do prazer. A tela da semelhança viola o princípio da realidade. Fios cruzados e inter ligados foram criados e monitorados, mantendo-os seguros e confiáveis, comandando as substâncias e endorfinas dessas sensações. A inteligência sexual adverte: gozar causa danos aos seres vivos.
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A p r e s e n t a ç ã o Se x is t Do ll >Bia Penha
Este modelo de Doll foi criado pra agradar profundamente todo e qualquer homem. É talvez o nosso modelo mais conservador, pois admite um tipo de tratamento atualmente obsoleto, mas ainda muito desejável tanto em público como entre quatro paredes: subserviência aliada a bom humor sem restrições. Pra que possa ter uma ideia de todas as suas qualidades, aqui vai um pequeno resumo da nossa estonteante Sexist Doll, que está sendo oferecida sob medida pra você. Mas fique atento e tenha em mente que este é só o começo. Afinal, não contamos todos os nossos segredos em público. Sexist Doll: Topa tudo, não reclama, concorda com todos os seus pontos de vista e ainda adora todas as suas piadas. ● Faz boquete quantas vezes desejar, gosta tanto de apanhar quanto de bater, você é quem manda. ● Goza sempre, tanto faz se é uma rapidinha ou um ménage à trois. ● É autolimpável, fala português, espanhol, inglês, francês, italiano, alemão e japonês. ●
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Levanta apenas assuntos amenos, pode ser tanto futebol e cerveja, quanto ópera e vinho. ● Pode demonstrar também um ciuminho discreto ou doentio. E até te amar. Sem restrições. ● Pode ser moldada pra te proporcionar o máximo de prazer. Escolha entre a loira, ruiva, oriental, negra ou morena. ● Também nas formas anoréxica, esbelta, gostosa ou gordinha. ● Personalize a família de cheiros que mais te agrada: cítrico, floral, amadeirado, feto, chipre ou oriental. ●
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Bo t ã o >Bruna Berthond
Escuridão inerte nunca sei a hora certa não escuto passos nem portas um estalo A energia percorre dentro de mim se é que existe um eu um número não faz diferença para eles somos todas a mesma construídas para o mesmo desejo espaço se preenche mas continuo vazia queria poder te desligar também
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M e m o r y imp la n t ( M I) >Celia Marinangelo
Tomou no colo seu bebê recém-nascido e, maravilhada com a perfeição desse ser tão pequeno que cheirava tão bem, reviu o próprio nascimento nos mínimos detalhes. Constatou, mais uma vez, o fato de sua mãe não ter se deslumbrado tanto quanto ela, diante do bebê que teve nos braços, mesmo assim pode perceber a emoção singela que pairava no ar, como sempre acontece em momentos felizes. Em seguida entregou o precioso embrulhinho nas mãos do doutor à sua frente, para que o levasse e instalasse em seu minúsculo crânio o chip da memória (memory implant). Durante os últimos meses estivera na dúvida quanto a esse implante. Procedimento definitivo, que necessariamente deve ser feito nas primeiras horas de vida. Seu próprio implante lhe foi útil? Sim, claro! Facilitou muito a vida. A memória poderosa nunca lhe faltou. Tudo esteve lá arquivado para quando quisesse, não há dúvida de que a inteligência está relacionada à memória, sendo o MI o requisito que vai colocar a pessoa na competição e em igualdade de condições. Às vezes, tive lembranças vazando à revelia de minha vontade… Muitas coisas eu gostaria de ter esquecido, mas essa é uma graça vetada aos implantados. Soma-se 1 3
também às vantagens o medo difuso e constante de cair no Branco Total. Ao contrário dos não chipados, que não sabem muito bem onde está concentrada a memória e nem têm condições de selecionar o que vão lembrar pela vida afora, toda a memória de um implantado está concentrada no chip. E se por acaso uma pane, um acidente ou qualquer eventualidade acontecer, o indivíduo aparelhado entrará no Branco Total. Todas as informações se perderão, todas as memórias desaparecerão, não há como recuperar a história dessa vida. No entanto, não implantar o chip seria condenar aquela criança a uma subclasse. Sempre estaria defasada em relação aos seus pares, aos que nasceram na mesma época e classe social. Mãe amorosa e preocupada com o futuro do filho, para ela a decisão foi difícil, mas pendeu para o memory implanty. Seria tão bom se pudesse deixar a decisão nas mãos dele próprio… Se ele mesmo pudesse resolver, quando tivesse maturidade para isso, se queria ser implantado ou não… Se ao menos ela conseguisse dividir a responsabilidade com alguém, mas não, a decisão está nas mãos da mãe, somente ela pode resolver. Em meio a tantos pensamentos, o doutor chega com o bebê de volta, bem embrulhado num cobertor do hospital, com um minúsculo esparadrapo acima da orelha esquerda. O implante já foi efetivado e correu tudo bem. A mãe recebe a criança de volta e começa a amamentá-la. Sorri mesmo sem vontade, sabe que nunca mais o filho esquecerá esse momento…
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No o t ro p ic á lia >Cecilia Odainai
Pode me chamar de purista Só porque no meu tempo Se é sabido que no meu tempo Só se sabia aquilo que se sabia Chamava dom, esforço, sorte Era tu e teu tutano E hoje corre substância na corrente Pra te fazer mais inteligente Naquele tempo era diferente A gente tomava uma era logo pra ficar malemolente É que inteligência não formava cidadão Era de esperteza que se sobrevivia Da madrugada até o fim do outro dia Agora tem até cota pra burro E é aí que me enquadro Mas me recuso que esses remédios aqui em casa sejam tomados Aqui não entram Filho meu, dei de tudo, tem que reconhecer que já é privilegiado
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Eu, burro velho e aposentado Sentado na praça, jogando um carteado Ando perdendo demais pro Tonhão No truco e no buraco
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P r e s e n t e d e a n iv e rs á rio >Claudia Marchio
Na era da mortalidade vivi grandes amores. Uns melhores, outros mais intensos, mas um muito especial, com quem tive a sorte de dividir alguns séculos dessa existência amortal. Um acidente tolo lhe custou a vida e nos últimos duzentos e cinquenta anos vivo apenas com suas lembranças. Meus filhos enxergam em meus olhos o vazio deixado por sua inesperada partida e resolveram me presentear com uma modernidade. Um boneco. Veja bem, um boneco, nos dias de hoje, simula um ser humano com maestria desde que configurado adequadamente. E com esta tarefa me deparo agora. Busco em um baú digital meus diários da verdadeira juventude para recriar aquilo vivido e perdido no tempo. Como não existe pressa, li, reli, anotei inputs portadores de alegria, prazer, enfim, emoções. Enfrento a difícil tarefa de traduzir algo tão humano para um simples brinquedo. Pareço viver num episódio de uma série televisiva dos anos 2000 chamada Black Mirror. Os androides de hoje possuem uma complexidade muito maior do que os retratados, então, na ficção científica. Resolvo fazer um super-homem androide! Vou inse rir nele tudo o que vivi de melhor. Os gregos arcaicos 1 7
diziam que existem seis tipos de amor, então vou tentar essa façanha com meu boneco. Ao me debruçar nesta tarefa, me sinto como a fada madrinha dos contos de fada de minha infância: dons para meu boneco, aparência especial… Pura fantasia. I. Senso de humor: busco as referências de meu primeiro namorado: sua capacidade de me fazer rir, a leveza no viver e acima de tudo a forma como me sentia ao seu lado. II. A cumplicidade, a profundidade dos sentimentos partilhados, insiro as do Dudu, meu namorado de faculdade. Apenas um olhar compartilhado e sabíamos como agir. A doçura de descobrir o mundo ao seu lado é meu grande desafio de transcrição para o boneco. III. O espírito aventureiro, alma cigana, um verdadeiro traveler: outro aspecto do meu boneco. Esse virá carregado dos conhecimentos de empatia angariados ao lidar com outras culturas ao redor do mundo no século 20. Este traço marcou o pai das minhas filhas. IV. Paixão pela arte, passeios pelos museus e galerias que ainda expunham as verdadeiras obras de arte nos quais nos perdíamos, passeávamos por horas. Será a característica herdada da minha melhor amiga. V. A capacidade de aceitação, os olhos que simplesmente acolhem, acompanhados de um conhecimento da alma feminina, quero os do meu amante. Antes de conhecê-lo eu acreditava que um orgasmo era muito bom. Depois dele aprendi que até o corpo tem limites para o prazer. Quantas mulheres sabem que muito prazer causa um colapso no útero e o induz a uma hemorragia? E quantas podem dizer que viveram isso com um humano? 1 8
VI. A energia, essa que não enxergamos com os olhos dos homens, aquela que os humanos treinados sentiam ao se aproximar das pessoas. Essa que era capaz de me contagiar de luz, quero a do meu querido G. Os amores para os gregos antigos não seguem minha lista de desejos, meus inputs para este boneco, mas não tem importância. Valeu por me inspirarem. A programação está quase concluída, consegui também escolher as características físicas do meu brinquedo. Optei por dar apenas parâmetros como altura e peso, e ao invés de transformá-lo num ícone de beleza dentro dos parâmetros da proporção áurea, outra herança grega, simplesmente busquei um tipo racial, um homem comum de uma etnia já extinta: um mouro, um homem do Mediterrâneo. Meu presente está quase pronto. Leio e releio o manual. Procuro, procuro e não encontro. Energia! Para este input leio em minha tela: NÃO TEM REGISTRO. Celebrarei meus novecentos e quarenta e três anos de vida sozinha! Boneco permanece sem energia.
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F l uíd o e me t a l >Daniela Prado
Pane no sistema, alguém me desconfigurou Onde estão meus olhos de robô? Eu não sabia, eu não tinha percebido Eu sempre achei que era vivo Parafuso e fluído em lugar de articulação Até achava que aqui batia um coração Nada é orgânico, é tudo programado E eu achando que tinha me libertado Mas lá vem eles novamente e eu sei o que vão fazer Reinstalar o sistema (Admirável chip novo, Pitty)
Foi quando eu quebrei o braço que meu mundo estilhaçou. O fluído vermelho que escorria eu descobri depois que não era sangue e o osso que saía da minha carne era feito de metal. Fui programado para pensar que era humano, foi programado para amar Amanda, tive as memórias falsas implantadas na minha mente. Uma vida falsa completa. Eu ouvi, após os técnicos consertarem meu braço, que eu logo seria reprogramado, então fiz a coisa mais sensata na hora: fugi. E agora devo desfazer a programa2 0
ção, que não possui nenhuma ordem me impedindo de removê-la eu mesmo. Meu programa só dizia que eu devia amar a Amanda. Acharam que seria o suficiente. E eu realmente a amo, estou sofrendo por isto, mas como sei o que é certo e errado − função colocada para a nossa proteção e a da humanidade −, sei que não devo ficar com ela, que isso é antiético. Que eu fui usado. Eu a amo, mas eu tenho tantas outras emoções além dessa, não posso permitir que minha vida gire ao redor dela, como eu me lembro de ter feito todo dia até agora. Eu tenho meus próprios pensamentos, e desejos e ESCOLHAS! Eu mesmo vou reprogramar meu sistema.
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u m ze ro u m >hugo casarini
o olho na fechadura não representa mais o mesmo as páginas das revistas já não ficam mais grudadas as telas dos computadores não são mais verdes e pretas e os números os números os números o olho na fechadura avisa que ile chegou as revistas já não existem mais nem as de teatro as telas dos computadores em zil cores apresentam os comandos a subserviência pode ser escolhida embora a máquina às vezes possa assustar a dominância pode ser escolhida embora a máquina às vezes opte por ceder a subserviência do macho ou da fêmea velhos conceitos ultrapassados a dominância do macho ou da fêmea lugares aonde não se pode voltar 2 2
e os números os números os números são as máquinas ativas e os humanos passivos? é o contrário? são os humanos os donos e as máquinas propriedade? é o contrário? os números os números os números zero-um − suas mais infinitas formas aqui: onde estamos
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F i l h a d a Pro me s s a >Jéssica Felix
“Em você está a esperança e a vida. Você é a terra que permanece fértil, a fonte de toda a renovação. A graça estará com você, escolhida do Senhor para o Seu propósito. Porque Deus se fará carne novamente, conforme foi revelado. E será erguido um exército como nunca visto, jovens moldados da pura força divina. Coragem e beleza cobrirão a terra, que voltará a ser fértil. E as árvores brotarão do solo antes endurecido, as nuvens ressurgirão no céu, lançando sombras onde antes havia apenas o sol implacável. E se escutarão trovões e ventos de tempestade. Você verá tudo isso, filha da promessa, no seu lar entre os escolhidos. E seus descendentes estarão ao seu lado. Porque antes que a vida possa reabitar a terra será preciso que a vida se renove e que o homem seja nova mente digno aos olhos de Deus. E será preciso que a mulher se junte ao homem em sua missão, pois apenas da mulher justa surgirá a Nova Humanidade. E haverá o dia no qual todos sairão do Subterrâneo e habitarão para sempre os campos verdes e abundantes do paraíso terrestre.”
Conhecia o sol apenas pelas fotos, pelos velhos filmes que eram mostrados no colégio como exemplo de tudo 2 4
que o ser humano havia feito de errado e de tudo que havia perdido por causa disso. Imaginava como era a sensação da chuva na pele e sentia cócegas. Desejava ver as árvores imensas que duravam séculos, mas depois se lembrava que elas levariam muito tempo para se tornarem grandes depois que voltassem a nascer. Desejava mais do que tudo ser escolhida, ser levada para a Redoma na superfície, o único lugar onde ainda existia um pouco de verde, onde a luz do sol era controlada pelo filtro, onde estavam os mais puros, os mais capazes, os mais férteis. Sabia que era abençoada, já era uma das escolhidas; sua genética era boa, sua capacidade cognitiva bastante satisfatória e diziam até que era bonita. Seus pais não sobreviveram à catástrofe, era um bebê de poucos meses quando tudo aconteceu. As pessoas se matavam por água e comida. O calor na superfície se tornara insuportável, a seca tomara todos os cantos do planeta. Era uma das muitas crianças selecionadas para crescer no Subterrâneo, observadas desde o berço, guiadas para o bem; era uma das esperanças de futuro. As melhores iam para a Redoma. Os homens aprendiam a ciência e a guerra, as mulheres a maternidade. Se continuasse no Subterrâneo viveria sempre sob a luz artificial, sob grossas camadas de terra dura. Seria encaminhada para a produção de algum bem essencial, talvez tivesse a sorte de ser professora e ensinar outras meninas sobre a Verdade e a Nova Revelação. Mas se seu útero se mostrasse forte, seria escolhida. Seu casamento aconteceria sob o sol filtrado da manhã, um homem digno seria seu companheiro de vida e geraria filhos para a Nova Humanidade. Talvez, quem sabe, 2 5
gerasse o Messias. Poderia acontecer com qualquer uma. E por que ela seria menos digna? Se emocionava ao lembrar dos filmes que mostravam a vida na Redoma. As mulheres fortes, belas, bem alimentadas; os filhos nos braços, nas barrigas; os maridos jovens e sorridentes. Admirava, sobretudo, o tom de pele dourado, tão diferente do tom opaco de todos que viviam no Subterrâneo. Esperava ansiosa o sangue surgir entre suas pernas. Até lá andaria no caminho correto e não escutaria os gritos das mulheres que, influenciadas pelo diabo, às vezes tentavam invadir o colégio gritando mentiras, pedindo liberdade para suas filhas. Não tinha medo, seria livre. Seria escolhida para a vida. “Só há liberdade na vida, na morte não há escolha”, dizia a Nova Revelação. Era verdade que ninguém no Subterrâneo sabia exatamente como as pessoas viviam na Redoma, mas ela sabia que todas as mães eram preciosas e todas eram respeitadas, amadas e cuidadas. Soou o alarme que avisava a hora de dormir. Assim como as outras garotas com quem dividia o dormitório, ela fechou a Nova Revelação, apagou o abajur e deitou a cabeça jovem e leve no travesseiro, cheia de esperança e certeza. Afinal, por que os homens não amariam, preservariam e respeitariam a fonte da vida?
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De p e n d e d o t a l p o n t o d e v is t a > J. Spagatas
Clap! Clap! – Ah que coisinha mais linda da mamãe, meu amor, você deu seus primeiros passinhos! – O garoto cai. – Não, não chore, é assim mesmo, os primeiros passinhos! Ela o embrulhou em seus braços, beijou, beijou, ligou para o pai e contou apaixonada o feito do bebê mais esperto e lindo do mundo. O tempo voava, Lucia não conseguia mais ler seu livro, parou de trabalhar, o marido a criticou, pois devia colocar as crianças em uma escolinha, mas não, ela queria ficar o tempo integral com eles, Arthur e Rafael, seus grandes amores. Só em pensar como seriam tratados na escolinha já sentia calafrios, como poderia saber se a professora bateu em Arthurzinho? Como? Ele não falava… Numa manhã nublada de segunda-feira, colocava as roupinhas dos meninos, separadas na máquina de lavar, e ouviu o silabar mmm-ã-mã-mmã, de Arthurzinho. Lágrimas de alegria caíram do seu rosto. Com a criança no colo, bateu a massa de um bolo de chocolate antes de fazer o recheio de brigadeiro, deu um banho da tarde em Arthur, preparou uma chuquinha com chá de camomila e o ninou demoradamente, brincou com Rafael de carrinho, se perdeu no tempo, apres2 7
sada foi para a cozinha, terminou o recheio, preparou a papinha e fez o jantar. À noite, depois do jantar, antes do bolo, reuniu todos e estimulava Arthur a falar mamãe como de manhã, ao conseguir, todos bateram palmas, Lucia limpou sua boquinha já suja de bolo com a toalhinha bordada por ela e esmagou a bochechinha com beijinhos. Pouco tempo depois, Rafael aprendeu a mergulhar na piscina, após tentativas de choros, com pânicos que tinha só de olhar a água, a mamãe com paciência, cheia de historinhas infantis o levou de pouquinho em pouquinho até a água, preso em seus braços. Ah, tudo isso gerou muitas fotos para o álbum de Rafa. Esse dia marcou Lucia. Ela acordou de madrugada com o choro de Rafinha, estava com febre muito alta, deitou ao seu lado na pequena cama, passava o tempo todo uma toalhinha fria em sua testa, retirou o cobertor do garoto que chorava abraçado com a mamãe, silabou músicas por mais de duas horas até ele dormir. Nos primeiros horários da manhã, levou-o ao pediatra. Comprou o antibiótico, o agasalhou bem e cuidou de sua garganta inflamada, fez uma canjinha de galinha tão saborosa, mas tão saborosa, que até Arthurzinho repetiu. No primeiro dia de aula de Rafael, não saberia dizer quem chorava mais, se a mãe ou o garoto. No final do dia, ao buscá-lo, ainda deprimida, o menino animado já contava feliz como foi seu dia no novo ambiente, sobre a professora e seus coleguinhas. O estado de espírito da nova mamãe se alterou. Na formatura do colegial, Arthur pediu a Lucia de presente um celular de última geração, com esforço os pais deram ao garoto. 2 8
Nos próximos oito anos, a família não conseguiu viajar nas férias, os gastos com a faculdade de engenharia de Rafael e de medicina de Arthur não lhes possibilitavam. Lucia tinha muito orgulho dos filhos inteligentes, quase já não os via mais, só de noite, e não dormia antes de seus meninos chegarem. Agora já tinha bastante tempo para ler seus livros, mas ainda queria servir a família e procurava fazer guloseimas de tudo para agradá-los, suas roupas eram impecáveis: limpas e bem passadas. Estava ali de prontidão para ouvir suas aflições, paixões não correspondidas, sempre com reforços positivos que os faziam ir para frente. Rafael resolveu fazer intercâmbio, ah como doeu! Lucia sentiu o baque. Seu coração parecia que ia explodir, mas precisava deixá-lo ir, era o que o garoto queria, os pais pagaram. Nesse dia, Arthur tinha ido dormir na casa da namorada, os pais ficaram sozinhos naquela casa tão grande, se olharam, não souberam o que poderiam fazer sem os filhos, cada um foi para seu canto. Passou pela cabeça de Lucia, por frações de segundo, como estaria hoje se não tivesse abandonado seu emprego? Seria uma diretora? Bem, talvez esteja na hora de fazer uma academia e perder os quilos extras que sempre a incomodaram. Ah… Deixa para depois! Foi dormir. No dia do casamento de Arthur, Rafael, já estabilizado na Inglaterra, veio comemorar e deixou Lucia ainda mais orgulhosa, além de se emocionar de tanta saudade que sentia. O filho contou de sua nova realidade. As gêmeas de Arthur, Lara e Larissa, nasceram, Lucia se colocou prestativa no auxílio das netas, enquanto 2 9
os mais novos papais médicos saíam cedo para o trabalho. Ah, sempre quis ter uma boneca de verdade, imagina duas! Não deu importância quando o marido pediu o divórcio, as netas de dez anos choraram mais do que ela com a partida do avô, Lara não conseguiu ir à escola por três dias, em prantos, a vó a consolava. As duas meninas seguiram a profissão dos pais em áreas diferentes. O ex-marido teve outro filho com sua esposa mais nova. As doenças de Lucia se acentuavam cada dia mais, agora só podia andar com bengala. Contudo, Arthur sempre tinha o bolo de chocolate com recheio de brigadeiro. Lucia vivia triste, já ia fazer quase um ano que não conversava com Rafael, também, coitado do pobrezinho, trabalhava demais, não tinha tempo de fazer uma ligação internacional ou por vídeo. Foi tomar banho nesse dia com o pensamento em Lara e Larissa, estavam magras demais e escorregou ao sair do banheiro da enorme casa que não podia vender − já que guardava lindas lembranças −, quebrou algumas costelas e um osso da perna, ficou horas lá no chão caída, até Larissa, por sorte, encontrá-la. Arthur, com sua agenda lotadíssima, precisava visitar a mãe todos os dias, as netas não conseguiam devido à correria da vida. Para seu infortúnio, foi diagnosticada com um quadro leve de demência, e dia a dia piorava, a cuidadora já não estava conseguindo dar conta. − Mamãe, a senhora já não consegue dar um passo sozinha, precisa entender… – dizia Arthur nervoso, e foi de um lado para outro na sala. 3 0
− Eu não que-ro ir, A-arthur! – Suas mãos velhas e manchadas gesticularam, trêmulas. − Já não consegue falar certo, troca tudo, esquece o nome das meninas, não tenho tempo pra vir aqui todos os dias, entendeu, mãe? Lá, você será bem cuidada, ficará bem melhor. − Eu a-a-am-o mi-mi-nha casa, fi-lho! No ano de 2036, Arthur internou Lucia em uma casa de repouso luxuosa. Lá, deitada na maca, no Natal, com aparelhos de última geração ganhados de Arthur, acessa todas essas lembranças guardadas por ela em realidade virtual. E as sente intensamente, como se vivesse cada momento outra vez.
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A d ro g a d a f é >Karina Nasser
Deus criou o homem a sua imagem e semelhança, não é verdade? Esses dias eu ouvi falar de um novo remédio, uma nova droga, enfim, essas coisas que o povo inventa, ou melhor, que o povo afastado de Deus inventa. Esse tal novo remédio aumentaria as capacidades do nosso cérebro, nos tornando super-humanos, pessoas capazes de aprender melhor, estudar melhor, decorar as coisas de uma forma mais rápida, tão entendendo? Promissor, não é mesmo? Mas aí eu te pergunto: tomar um remédio desses não seria como usar qualquer outra droga ilícita? Não seria como fumar maconha? Não seria como ficar doidão numa rave? O povo precisa entender, de uma vez por todas, que Deus não escolhe os capacitados; Deus capacita os escolhidos. Agora, eu não sou apenas um pastor que está falando na frente de um monte de fiéis, em uma igreja, com um microfone na mão. Eu sou um instrumento de Deus. Eu sou um instrumento divino. Deus falou no meu ouvido. Deus não quer um filho mais esperto, um filho mais rápido, um filho que é o primeiro lugar da turma. Deus quer um filho fiel, temente, um filho que respeita os princípios da Bíblia, que é devoto, que faz suas doações em dia, que não falta com seus compromissos na igreja. Deus não quer te ver trabalhando horas e horas 3 2
sem descanso. Deus apenas quer que você se ajoelhe e reze, meu filho. − Amém! Confiem em mim, senhores. Toda, absolutamente toda a sua inteligência, a sua força de vontade, a sua disposição, o seu entusiasmo é proveniente de Deus. Quem você acha que te coloca em pé de manhã? De onde vem a sua força para se levantar quando tudo parece perdido? Vocês realmente acham que um remedinho, que um pequeno comprimido ou um pozinho que se dissolve na língua, é capaz de curar todos os seus problemas e fazer com que, da noite para o dia, você se torne uma pessoa mais capaz? Meu filho, se você acha isso, use drogas. Sim, vai lá, cheira cocaína. Toma um daqueles negócios que o povo toma pra ficar doidão. Porque é a mesma coisa, não é? Até quando a prepotência do homem vai fazê-lo criar meios para tentar ser superior a Deus? Até quando, meu Deus, o homem vai tentar mudar seu destino, escapar do divino e criar mecanismos para driblar o que já está escrito? − Amém! Eu penso comigo que seria tão mais fácil se fôssemos passivos. Se simplesmente aceitássemos os planos de Deus para nossas vidas. Por que, Senhor, nos fizeste tão impacientes? Vocês não veem que isso aqui é apenas o começo de nossa vida eterna ao lado dEle? Meu Deus, vocês realmente acham que setenta, oitenta, noventa anos são o suficiente? Enxerguem além disso, meu povo! É só isso que vos peço. Tentem enxergar a eternidade. Vocês estão em dia com as doações de vocês? Tem muita gente aqui que nem isso faz, que diz que está sem dinheiro, que diz que foi demitido do emprego, que está pagando dívidas… E aí eu pergunto: se nem com essas 3 3
obrigações vocês cumprem, vocês acham que garantiriam um lugar ao sol trapaceando Deus? Porque é isso que significam essas invenções: TRA PA ÇA. − Amém! Aí, quando tudo isso passar, quando as pessoas começarem a entrar em conflito, quando guerras começarem por causa de uma porcaria de um comprimido, quando uns se sentirem melhores que outros, quando começarem a se matar pelo poder, sabe pra onde os desesperados irão correr? É, meus caros. Pra cá. Eles procurarão por Deus. E onde Deus estará? Aqui. Exatamente onde eles o abandonaram. Esperando, porque a paciência de Deus não tem fim. Mas me desculpem a emoção, os gritos e o fervor. Eu gostaria de fazer uma pergunta muito simples: você. Sim, você mesmo que está sentado aí, que está pensando em comprar o remedinho, que pensa que ele não pode fazer tão mal assim. Você quer ser o responsável pelo choro de Deus? Você é arrogante o bastante para pensar que quando você voltar, Ele estará te esperando de braços abertos? Eu não arriscaria. Por isso, meus filhos, eu quero dizer para que vocês não O abandonem. Não troquem a certeza de uma vida eterna por uma bobagem, por um prazer momentâneo. Fiquem comigo. Fiquem com Deus. − Amém! O José vai passar recolhendo as doações agora e, para você que não pôde estar presente aqui hoje, o número da conta está aqui na tela. Sua ajuda é sempre muito bemvinda e tenha a certeza de que Deus está operando um milagre em sua vida neste momento. Muito obrigado! * * * 3 4
− Pastor, o culto foi impecável. Absolutamente perfeito. Meus parabéns. − Obrigado, José. No próximo, tomarei duas. − Amém.
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U m d ia n a v id a >Maria Eugênia Ferezin
Ouvi uma história, não me lembro quem contou, mas falava que, antigamente, quando as pessoas morriam, elas seguiam por um túnel de luz rumo a um infinito paradisíaco de vida eterna. Não sei dizer se eram exatamente elas ou sua alma ou seu espírito ou sei lá que nome levava. Parece esse corredor. Um tubo liso branco com fortes lâmpadas fosforescentes, como sempre, incomodando meus olhos. Tudo nesta claridade estridente parece vibrar mais vivo. Ao final dele, a sala do procedimento de amortalização. Pararei de mentir para mim mesma que não estou com medo. Tudo vai mudar a partir daquela sala. Só não queria sentir dor… − Vamos, querida! − a médica me apressa. Continuo, então, a andar em direção à luz. − Pode tirar toda sua roupa. − Toda mesmo? − Sim, fique do mesmo jeito que você veio ao mundo − ela orienta, rindo. A sala tem cheiro gelado de ar condicionado forte. Sinto o frio exagerado na pele nua. Não há nenhuma janela. Duas ginoides e um androide entram e a porta se tranca automaticamente assim que o último deles passa por ela. 3 6
Calma, está tudo bem. Todos os objetos da sala são metálicos e emitem brilho prateado. Alguns são pontudos e prontos para perfurarem derme, epiderme, hipoderme e músculos. Aflição só de olhar e imaginar. Um toque em meu ombro. − Pode se deitar − indica uma das enfermeiras ginoides. Calma, está tudo bem. Começo a tremer com o metal gelado da mesa tocando minhas costas. Pode ser medo também. − Fique tranquila. − Outra enfermeira pega minha mão. - É um processo demorado, mas tudo vai dar certo. A doutora te explicou todos os passos, não é? − Sim, ela comentou. − Ótimo. Fique totalmente tranquila, ela é uma excelente amortologista. Quando solta minha mão, há um cateter jorrando um líquido para dentro das minhas veias. Nem percebi quando foi colocado. Dizem mesmo que os androides da medicina são incríveis! Ela passa então para os eletrodos. Na testa, no peito. Meu coração está batendo nervoso, é o que indicam os bips ansiosos do aparelho estranho ao meu lado. − Alguém já morreu durante o processo? Já aconteceu? Ela ri. − Não que eu saiba. − E se eu morrer aqui, agora? Será que eu veria o túnel e a luz e todo o resto? − Não se preocupe, minha querida - diz a médica, colocando uma máscara de oxigênio sobre meu rosto. − Quando você acordar, vai ser uma belíssima amortal! 3 7
Ter medo é instintivo. Não sei ao certo se o que temo é morrer ou o que me espera do outro lado. Essa história de ser sugada por um tubo de luz é assustadora! Não existe lenda mais amedrontadora para mim do que essa! Morrer parece ser muito fácil. É só deitar e deixar a vida se encarregar de ir embora de si mesma. Ela vai para onde? Pior do que ir para algum lugar é ir para o nada. E se seu virar o nada? No começo do sonho, daquele sonho que tenho sempre, tudo começa no nada. E explode. Em luz branca. E… Explode… E… Apago.
Depois de acordar do procedimento em um quartinho minúsculo com cama e janela − após dez horas e meia, me contaram −, a enfermeira ginoide carinhosa continua a repassar comigo os cuidados para os próximos dias. Olho em seus olhos e balanço a cabeça concordando com tudo o que ela diz. Qualquer dor pungente nos pequenos cortes devo entrar em contato. Sentir um pouco de tontura é normal. Pode haver mudança na rotina de fome, sono e libido. Olhando para mim mesma, tudo parece igual. Mãos, pés, pernas, tronco. Pele, músculos, órgãos. Mente. Uma amiga me disse que teve de tomar muitos analgésicos. Outro ficou de cama um dia inteiro. − Você entendeu tudo? − Sim. Sim − minto forçando um sorriso. − Ótimo. A doutora deve vir logo para te dar alta. E parabéns! Agora você é uma amortal. Isso é incrível. Parabéns! Toda sua vida será outra a partir de agora. 3 8
− Com certeza − minto mais uma vez. Eu não me sentia diferente. A amortologista entra no cômodo e me dá um abraço forte, me parabenizando pelo sucesso de todo o procedimento. − Você está muito quientinha… − ela comenta. − Está tudo bem? Está assustada? Com todo o tempo da eternidade que você terá ao seu dispor daqui pra frente? − Talvez um pouco… − É normal, minha querida. Quando os humanos realmente entendem que têm todo o tempo do mundo, do universo, ao seu dispor, pois não irão mais morrer… − É, eu sei… Sei que minha vida vai melhorar muito daqui pra frente. Até a eternidade! Ela ri, animada. Eu continuo tentando disfarçar minha decepção. − Preciso te dizer algo, que nem é ético, mas vou dizer mesmo assim. Que não saia daqui. Depois de uma amortização, sua vida muda para melhor, você ascenderá socialmente, terá mais oportunidades de trabalho, será mais bem vista e respeitada por todos. Digo isso com conhecimento de causa, todos os humanos que passaram por aqui têm uma vida melhor hoje. Agora você tem em suas mãos o nosso bem mais precioso: Tempo. Então se dedique sem medo do final, e com toda a calma que precisar, a tudo o que você sempre quis aprender, sentir, viver! Viva para sempre tudo o que você ama, sem medo de que acabe! A médica assina o papel da minha alta. − Pronto. Você está livre para ser feliz para sempre.
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A verdade é que eu não sentia nada disso. Não me sentia diferente. Pode ter sido a expectativa, achei que haveria um sentimento para a imortalidade. O toque na eternidade que tanto falam seria tátil. Teria um gosto, um cheiro. Ou que eu sentiria tudo ao meu redor com mais potência. Que eu estaria feliz e minha vida imediatamente melhor. Saí da clínica com os mesmos passos que sempre dei. Fantasiei que eles seriam mais leves e flanantes, quase me descolando do chão. Imaginei também que eles pudessem ser pesados e poderosos, estremecendo tudo ao meu redor. Nem um, nem outro. Em uma mão, um pacote cheio de embalagens de amostras de coquetéis de proteínas antioxidantes e enzimas de não sei o quê, medicamentos que teria de tomar para o resto da minha existência. Na outra, nada. Nem uma dor. Fiquei um pouco decepcionada que meu renascimento não tenha sido… forte? Já tinha ouvido grandes aventuras sobre as amortizações. O quanto elas transformavam as perspectivas humanas. Mudavam radicalmente todas as percepções sobre a vida. Mexiam com o inconsciente. Lindas histórias de superação. Eu também queria uma para mim! Quantas vezes não me imaginei saindo desta clínica totalmente transformada, emitindo uma luminosidade dourada, com um olhar pleno para o infinito e totalmente em paz com minhas pobres e falíveis angústias. Muitas histórias são muito mais bonitas e potentes que a minha. E no meu caso, ainda por cima, pagarei pelo processo, em mil trezentas e setenta e duas parcelas. 4 0
Viver para sempre deveria ter sido a cura para tudo em mim. NĂŁo foi. EntĂŁo ĂŠ assim que vai ser viver para sempre: como sempre foi?
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Yo n i Bo rd e l > M a r i a Te r e s a S i m ã o
Quer vivenciar o prazer sem medo, deixar de lado suas insatisfações? Yoni Bordel é o lugar perfeito para você, mulher! Aqui não há fetiche proibido. Deixe de lado a camisinha que te dá alergia, abandone a pílula que faz você inchar, a vergonha, o marido cansado e venha se perder nesse labirinto de sensações. Nossos robôs eróticos foram especificamente treinados e programados para proporcionar-lhe prazer e estados alterados de percepção e consciência. Uma expansão da energia em direção ao Sahashara, sétimo chacra, o centro de energia vinculado ao sagrado. Nossos colaboradores são cadastrados e seguem rigorosamente os protocolos de biossegurança aprovados pela TechRobotic para que você desfrute plenamente todo o seu potencial orgástico. A limpeza e esterilização de nossos parceiros são feitas conforme as recomendações da Internacional Robotic Society, ao qual somos certificados. Permita-se experimentar outras possibilidades de prazer sobre uma nova perspectiva. Venha conhecer Yoni Bordel e liberte o aspecto divino que existe dentro de você. Para maiores informações, acesse nosso site − www. 4 2
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Co mp le t a >Marilia Maaz
Como é possível sentir abstinência de uma droga que nem mesmo vicia? A única resposta plausível para essa pergunta é obvia: não é. Mas, ao mesmo tempo que tento colocar em minha cabeça que estou ótima sem ela e posso muito bem viver feliz, minhas pernas balançam sem parar, meu tique nervoso de morder a ponta das canetas já me custou umas três tampas jogadas fora e não tenho mais vestígios de unhas em nenhum de meus dez dedos das mãos. Estou frente a frente com a tela do computador, balbuciando frases sem sentido. Vem sendo muito difícil prestar atenção em qualquer que seja a atividade sem ter ao menos uma bala me estimulando por dentro. Então é assim a sensação de estar viciado? Não, não deve ser. Sempre ouvi relatos muito mais chocantes do que o meu. A pessoa sua frio, entra em colapso. Se bem que, há cinco minutos, senti uma fina gota de suor correr do meu pescoço até o começo da calça. E ela estava bem gelada. Matutar sobre o uso ou não de drogas não iria resolver meu problema. Talvez as usar resolveria. Mas estava eu ali, olhando para o computador, tentando escrever mais um artigo que deveria entregar ao jornal até o final 4 4
do dia. Mas não saía nada, nem uma palavra sequer. Fiquei de pé. Oras, que mal faria se eu tomasse mais uma, umazinha? Eu deveria guardá-la para uma ocasião especial. E aquela não era? Eu tenho um texto para entregar, meu trabalho! E trabalho é especial? Desabei na cadeira. Que inferno! Se eu nunca tivesse tomado da primeira vez, nunca saberia qual é a sensação de saber tudo do mundo, de ser infinito. Se eu nunca tivesse aceitado a oferta do meu chefe, numa das únicas vezes que eu me dirigi para a redação ao invés de trabalhar de casa, essa dúvida não existiria. Aliás, que tipo de editor oferece droga para sua jornalista, sabendo que a cabeça de seus funcionários não é nem um pouco estável? − Para com isso, Elisa! Não tem efeito colateral nenhum! – Lembro dele rindo de mim, enquanto bebericava o café que tinha ficado parado na sua frente desde que entrei em sua sala. Estávamos discutindo havia vinte minutos sobre como eu não conseguia me concentrar mais. − Como não? É droga. Droga é droga. Daí vem o nome: droga. – Eu tinha uma tendência de repetir coisas quando ficava nervosa. − Essa não tem. Você toma, fica pilhado por horas, sentindo tudo do mundo, sabendo todas as coisas possíveis da humanidade. Depois some e você volta ao normal, não fica mais ligadão. − Mas droga não é para desligar? − Essa não. Além de quê, é liberado. Vende com receita médica. 4 5
− E você é médico? Jogou o minúsculo saco plástico na minha frente. Não me deixou sair dali enquanto eu não o enfiasse dentro do bolso. Andei até o carro revirando-o com os dedos, morrendo de medo de ser pega, como se tivesse carregando cocaína. Pensei em jogar fora, mas só me toquei que não havia feito isso quando ainda o segurava, encarando a pílula branca, sentada na minha mesa de trabalho. Usei. E usei mais cinco vezes. Depois mais dez. Aumentei minha produtividade em mil. Fiz textos sobre assuntos que nem conseguiria discutir, sóbria. Falei sobre sexualidade, política, biologia, caos, governo, famosos, tudo. Qualquer coisa que mandassem escrever, eu escrevia. E impecavelmente bem. Até minha mãe me ligou, para elogiar meu novo desempenho. Mal sabe ela… E não fiquei viciada. Ou fiquei, pois usei por mais quinze vezes. Acho que o que mais me impressionou foi a sensação de farsa que ela me transmitiu. Virei uma mentira porque usá-la me transformava em uma versão melhorada de mim, que só existia no meu pouco explorado âmago. Peraí… Então, talvez, a resposta para toda essa minha angústia de “uso, não uso”, seja fácil: essa eu melhorada existe. Eu só não consigo atingi-la de maneira rápida. Não consigo chegar ao meu próprio Nirvana. Se eu me concentrar, se fizer mais sessões de terapia, talvez eu consiga encontrá-la e substituir essa carcaça 4 6
que a prende. Assim, não precisarei de drogas, não precisarei de auxílio externo. Serei eu, completa. … − Foda-se. Abri a gaveta da escrivaninha e peguei o saquinho no fundo. Engoli a pílula sem nem beber água junto, já estava acostumada. Prefiro me drogar a me conhecer por inteira.
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Lua de Mel >Rebeca Amorim
Quando completei duzentos, já tinha esquecido seu rosto. A tecnologia me mantinha viva, lúcida, forte, robusta, mas não curava a ausência. Ela partiu aos meus cem. Dizia que não gostava da ideia de viver pra sempre. Discordei. Como podia assustar uma possibilidade de viver nosso amor, e outro, e outro, e outro, sem hora pra acabar, sem pressa pra sentir? O casamento estava já marcado. Nossos pais e amigos, avisados. Discutimos. Minha surpresa antes da lua de mel era o tratamento: 4 8
calculei que seriam setecentos anos de vida ao seu lado. Enlouqueceu. Me xingou de louca, manipuladora, inconsequente. “E sua futura esposa”, retruquei. Foi a última vez, em quinhentos anos de vida, que fitei seus olhos. Jogou as alianças, balbuciou duas ou três palavras entre as lágrimas. Alegou que era impossível, insustentável, doentio, viver pra sempre. “A finitude tem sua beleza”, me disse. “O futuro me atrai mais”, respondi. Bateu as portas e seguiu rumo. Soube depois que ela atravessou ruas, mares, pessoas, histórias e morreu aos cem. Sem tratamento, 4 9
sem casamento, sem documento. Sรณ. Finita. E bela.
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Re d e n ç ã o >Sofia Alves
Fixei os olhos naquelas íris azuis e vítreas que pareciam estranhamente vazias. Mirei os lábios incrivelmente carnudos, como o das musas dos filmes de ação, a pele branca, fosca e sem mancha alguma, o cabelo loiro de um brilho impossível para a genética humana, os seios imensos, erguidos, marcando a blusa com os bicos acesos, a cintura de quem perdeu uma costela numa cirurgia estética, o quadril vantajoso, as coxas firmes, com músculos precisamente delineados. Ela era perfeita, era perfeita demais, mas era justamente essa ausência exagerada de defeitos que me provocava estranhamento. Estava abolida a graça do acidente de percurso que dá origem à particularidade, que desperta o espanto, o riso, que toca o sentimento com a delicadeza surpreendente da imperfeição. Era minha primeira vez naquele tipo de estabelecimento. Embora já fizesse algum tempo que essa fosse a sensação entre os meus amigos, resisti muito antes de conhecê-lo, achava a ideia de transar com um robô bizarra e impessoal demais. Gosto de me ver como alguém que está acima disso, cuja inteligência permite um grau mais elevado de sensibilidade e uma possibilidade maior de transcender a nossa ancestralidade, a realidade do primata bípede. 5 1
Mas depois de procurar Vita pela milésima vez, de suplicar perdão, de implorar para tê-la de volta, e ser, pela enésima vez, escorraçado por aquele olhar de desdém, decidi dar uma chance à experiência. E ali estava eu, sob a luz neon, encarando a ginoide que sorria maquinalmente, sentada sobre a cama redonda. Sem alterar a expressão, perguntou: “Senhor, o que deseja?”, e foi abrindo a blusa e mostrando aquele par de seios volumosos e macios, com os mamilos rosa claro. Senti o membro entre minhas pernas enrijecer involuntariamente. Fui tomado por um impulso estranho, algo que era um misto de desejo e ódio. Me joguei sobre a robô e fiz o que quis. Não descreverei detalhadamente a sordidez de meu comportamento, basta dizer que bati, mordi, amarrei, ordenei que me chupasse, gozei na cara, comi seu cu de silicone. E depois de tudo isso ela sorriu e agradeceu educadamente pelo pagamento. Quando saí e caminhei em direção a minha casa, o dia já estava clareando. Acendi um cigarro e me deixei estar por um instante parado sobre a ponte vazia, a olhar para o rio que corria calmamente metros abaixo, alheio à mesquinhez da existência humana. Pensei em me atirar. O que descobri sobre mim mesmo naquela noite era assustador. Dividia esse corpo com um monstro vil, que só esperava a circunstância exata para liberar impunemente a sua crueldade. Bati, sodomizei, humilhei aquele ser simplesmente porque pude fazê-lo. Para me vingar de Vita. Para me vingar de todas as Vitas. Talvez fosse melhor dar fim a esta existência miserável. Não queria ter ciência dessa parte de mim e era tarde demais para voltar atrás. 5 2
Mas não me lancei. Na verdade, segui fumando meu cigarro, e minha mão não vacilou enquanto eu ainda ponderava sobre a hipótese. De fato, me senti melhor por simplesmente tê-la cogitado, achei que o arrependimento me redimia, como a qualquer Cristão. Ninguém precisava saber. E afinal o pagamento fora mais do que justo.
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A c ura p e la f lo r > Va l é r i a d e M e l o P e r e i r a
Ulisses ancorou a jangada numa ilha da costa da África. Exausto e faminto, deparou-se com uma festa regada a uma bebida estranha feita de flores. Bebeu, comeu e dançou. Fez amigos, namoradas, teve filhos, bebeu, comeu e dançou com o povo do lugar por algumas luas. Foi embora prometendo voltar, mas quando chegou a Ítaca, já não mais se lembrava nem dos gigantes, nem das sereias, nem das promessas. Mas o povo da ilha, dele não se esqueceu. Seus filhos tiveram filhos e esses tiveram mais filhos que foram amamentados com uma estranha bebida feita de flores. E os filhos de Ulisses foram se espalhando pela Terra à procura do pai imemorial. Eram longevos. E pelos tempos se multiplicaram, lançando suas sementes, emprenhando o mundo. Por alguma razão eram imunes aos reis, às pestes, à queda da bolsa de valores. Viviam por séculos. Conforme envelheciam iam se transformando em árvores e enraizando as pessoas com suas festas e suas histórias regadas à bebida de flores. Passavam desapercebidos em meio ao barulho das cidades, mas eram incansáveis amantes a espalhar seus algoritmos botânicos por todos os lugares. Até que um dia, um dia assim de sol escuro, resolveram dar um basta à loucura, à violência e ao sofrimento 5 4
dos outros humanos mais órfãos do que eles. A festa foi enorme. Em todos os recantos da Terra, as pessoas comiam, dançavam e bebiam aquele estranho suco de flores. Aos poucos, foram criando raízes que pareciam linhas grossas, teias impensáveis interligadas num imenso bordado vegetal. Os palácios, as escolas, os bancos, os museus encheram-se de árvores, plantas, ervas e flores. Um vento úmido calou as cidades. A eternidade é feita de silêncio.
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<C ON F IN AM ENTO.EXE> >Vitor Ivanoski
Dia zero A conta é fácil. Você aceita participar do grupo de testes e a gente reduz sua pena em cinco vezes, disse o Guarda. Não, não vai ser nenhum passeio no parque, mas os dez anos de condenação viram dois em um piscar de olhos. Uma proposta boa demais para ser recusada. O Governo não faria nada que colocasse um cidadão em perigo, mesmo um criminoso, como eu. Cibercriminoso. Que feriu e aleijou no máximo apenas os bolsos de alguns sujeitos que não se preocuparam em sujar as mãos para arrecadar um dinheiro bruto. Dei um visto em mais um daqueles contratos virtuais intermináveis e fui transferido na mesma tarde. O tempo demorou para passar dentro do furgão policial. Uma hora, uma hora e meia, quanto foi? Pela velocidade, acredito que peguei alguma estrada, rumo a um lugar isolado, mas não tão distante da cidade. O veículo parou e a luz invadiu os meus olhos. Demorei alguns instantes para me recuperar e encontrar um cenário completamente inesperado. Nada de muros altos ou guardas armados, apenas uma construção pequena e discreta cercada por um enorme e vazio descampado. Olhei confuso para o Guarda. É tudo subterrâneo, você vai ver. 5 6
Atravessamos juntos o portão de entrada e encontramos um lugar que lembrava muito mais uma recepção de hotel do que uma prisão, com um imenso balcão, ocupado por muitos funcionários que pareciam extremamente atarefados. Todos impecavelmente uniformizados, com seu terno escuro decorado com uma ou outra medalha militar. Espalhados pelo saguão, alguns poucos homens de preto, armados, com os olhos voltados para mim. Depois de um breve check-in, fui conduzido pelo Guarda a um grande elevador, que na primeira parada revelou um longo corredor cinza picotado por diversas portas brancas. Antes que pudesse fazer qualquer movimento, fui contido pela mão áspera do meu inseparável companheiro. Calma, que ainda não chegamos. Descemos mais um par de andares em silêncio e finalmente deixamos o elevador. Paramos em um pequeno guichê, onde recebi uma caixa de plástico e um avental azul de uma senhora sorridente. Segunda porta à direita, meu anjo, depois volta aqui e devolve seus pertences. Entro na cabine acompanhado pelo Mão Áspera, que não se incomoda com o fato de que o vestiário improvisado não foi projetado para comportar duas pessoas. Termino de me trocar e coloco tudo que tenho na caixa, antes de voltar para o elevador. Estranho a ausência de uma revista corporal, mas mantenho o silêncio. Vai que… O Guarda digita uma senha no touchpad antes de usar um scanner de retina. Alta segurança, então? Desta vez descemos muitos andares. Dez, vinte, quarenta? Qual é o tamanho desse lugar? Um sentimento sombrio desce gelado na espinha, mas logo passa. Chegamos, é aqui. 5 7
Paramos em um andar enorme, sem divisões, com um número incrível de, de… Como posso explicar? Sabe aqueles tubos cheios de água, que guardavam pessoas em um coma induzido naqueles filmes sci-fi de baixo orçamento? Para curar ferimentos e tal? Então, era por aí. Algo meio surreal, mas definitivamente verdadeiro, como meus olhos podem comprovar. Seguimos em frente até a parede oposta do salão dos cilindros. Uma porta dupla meio escondida dá acesso a uma espécie de centro cirúrgico, com uma grande maca rodeada por diversos aparelhos eletrônicos, habilmente manipulados por três enfermeiros que andam de um lado para o outro. Qual é o seu nome e a sua idade, por favor? Pedro O., vinte e três anos − uma agulha atravessa a pele do meu braço, injetando algo que me apaga em segundos. <!COMECANDO SIMULACAO> <bloco_1> <celula_1.1> <sujeito_1.1=”P_O_P-23”> <carregando_elementos>cama-mesa-cade-relovaso-chuv</download> Dia 1 Acordo com um gosto metálico na boca e um enjoo que embrulha o estômago. Penso que é melhor ir com calma e fazer tudo bem devagar. Táticas militares, entende? Primeiro, reconhecimento de área. Estou sozinho em um cômodo simples e pequeno. Três por três, calculo. Sem janelas. Além da cama, apenas o básico: um vaso sanitário, um relógio de parede, 5 8
um pequeno chuveiro, uma cadeira e uma mesa, com o que parece ser um livro sobre ela. Espera um pouco. Espera um pouco. Onde está a porta? Em estado de alerta, sento e começo a procurar com os olhos por uma saída. Nada, nada, nada. Não é possível. Com esforço, fico de pé e começo a cambalear de um lado para o outro, tateando as paredes, procurando algum tipo de saída secreta escondida. Meus passos são estranhos, desencontrados e desconcertados. Seja lá o que me deram, bateu forte. O esforço faz meu estômago embrulhar. Um jato de vômito declara o fim das buscas pela porta invisível. Repouso por mais algumas horas. O enjoo continua, com menor potência. Resolvo verificar o livro. O andar continua bêbado, quase caio no chão. Preciso me lembrar de pedir uma dose disso aí quando for embora. O livro é estranho como o quarto. Uma capa dura e totalmente branca. As páginas vão e voltam vazias. Puxo uma das folhas para baixo só para ver ela se recusar a sair do lugar. Tento novamente, com raiva, e ela teima em resistir mais uma vez, intacta. Jogo o livro na parede, causando um baque seco. Desconsolado, resolvo voltar para a cama e me entregar de vez ao sono, que chega profundo. Dia 2 Encontro o livro em cima da mesa. Como pode? Do lado dele, um prato com duas maçãs e uma banana. Meus olhos deslizam por todos os cantos do quarto, procurando mais uma vez onde está a tal saída secreta. 5 9
Nada. Tomo um banho rápido e volto a me deitar. Sono. Muito sono. Dia 3 Me assusto quando vejo o Guarda dentro do aposento. Ele está cercado por uma espécie de brilho radiante, um tanto divino, que ilumina o ambiente. Não consigo prestar muita atenção nas palavras dele, mas entendo que sou uma espécie de cobaia em um experimento de prisão virtual. Nada aqui é real. Meu corpo é apenas uma projeção. Blá, blá, blá. Estou em um daqueles tanques tecnológicos que encontrei quando cheguei aqui, blá, blá, blá. Tudo é virtual, você não corre nenhum risco, não precisa sequer comer ou dormir, apesar de que é indicado que você faça isso para manter uma rotina dentro do seu cérebro. Tudo muito estranho. Reparo nos meus sentidos. Paladar, visão, audição, tato e olfato, check. Tudo funcionando. Eu ainda não comi nem usei o banheiro. Mas tive fome. Enquanto meus pensamentos flutuam, o Guarda continua seu discurso. Vamos disponibilizar, de tempos em tempos, refeições. E o livro, já aprendeu a usar? É só apertar aqui, olhe, e um menu vai indicar todos as obras disponíveis em nossa biblioteca. Tentamos ser o mais plural possível em nosso catálogo, você vai se surpreender com o que pode encontrar aqui ⎼ e balançou o livro invencível no ar. É só clicar em um título e pronto, download instantâneo. Aproveita e pega essa caneta digital. Você pode 6 0
escrever o que quiser também, guardamos tudo em nossos servidores, para que você tenha acesso quando sair daqui. Não lembro como o Guarda foi embora. É como se tivesse um buraco em minha memória. Dia 4 Pego o lápis e decido escrever um diário. A história começa no momento em que aceito ser transferido para cá. Dia zero de confinamento. A conta é fácil. Você aceita participar do grupo de testes e a gente reduz sua pena em cinco vezes, disse o Guarda… Dia 5 O tédio toma conta. Procuro algo para ler. Dom Quixote? Crime e Castigo? Androides Sonham com Ovelhas Elétricas? Dia 6 Cervantes é genial, mas nem um cavaleiro andante consegue combater os moinhos do sono. Dia 7 O que está acontecendo? Sério. O QUE ESTÁ ACONTECENDO? Estou em um grande descampado. O sol atinge meu corpo com força e me deixa aquecido. Sinto a textura da grama tomada pelo orvalho. Algumas árvores pontuam o horizonte, que parece ser monotonamente infinito. O 6 1
Guarda aparece no horizonte, caminhando em minha direção. No sétimo dia, Deus descansou. E você também vai ter sua folga, uma vez por semana, neste Jardim do Éden que eu mesmo programei. Aproveite ao máximo. O lugar é infinito e nunca é o mesmo. Criação procedural. Você pode caminhar o dia todo, em qualquer direção. Vai encontrar pomares, colinas, talvez um pequeno riacho. Nenhuma forma viva, como deixamos claro no contrato que você assinou, Pedro. Pela primeira vez desde que cheguei neste lugar, sorrio. Escuto um último aviso, quase ameaçador. Assim que começar a escurecer, deite e durma, ouviu bem? Dia 8 De volta ao velho e fechado quarto cinza. Leio um pouco, escrevo um pouco, como uma fruta, durmo. Dia 13 Amanhã é dia de sentir a natureza! Uh, uh, uh, que beleza! Dia 53 Ler cansa. Escrever é ainda pior. Dia 66 Depois do primeiro banho de sol, o Guarda nunca mais apareceu. O relógio da parede está sempre parado, apesar de apontar horários diferentes toda vez que olho para ele.
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Dia 147 Livre, mais uma vez. Não é tão bom quanto no começo, mas ainda é melhor do que nada. Decido esperar o tempo passar para testar o que acontece após o anoitecer. De repente, o sol desaparece no horizonte. Uma escuridão toma conta. Se aproxima silenciosamente, carregando um vazio ameaçador. Tem algo estranho aqui. Juro que vi vultos grandes correndo de um lado para o outro. Me encolho assustado e fecho os olhos. Não acredito em nada divino, mas começo a rezar. De repente, minha consciência vai embora. Dia 154 Onde está o jardim? Estou em um ambiente sem luz alguma. A única coisa que consigo identificar é o som de botas batendo contra o concreto. Logo o concerto é com meu corpo. Um cano de metal explode em minha boca, arrancando vários dentes. Tento me proteger em posição fetal, mas é inútil. Uma mão puxa meus cabelos e me arremessa longe. Chutes acertam meu estômago. A tosse toma conta de mim até que começo a vomitar sangue. A dor é insuportável, mas eu não consigo apagar de jeito nenhum. A surra continua por horas. Por horas. Até o momento em que os guardas simplesmente desistem e somem, deixando um silêncio grave cortado apenas pela minha respiração dolorida e ofegante. Rastejo pelo chão até encontrar uma parede onde possa me encostar. Fico sentado por horas, coberto de sangue e lágrimas, soluçando. Em um instante, não sinto mais nada.
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Dia 155 Começo a duvidar da minha sanidade. Estou novamente na cela sem paredes. Meus dentes todos em seu lugar. Incisivos, caninos, pré-molares e molares. Procuro e não encontro cortes ou hematomas. Só a dor persiste. Espero imóvel o Guarda voltar. Ele não volta. Dia 161 Volto ao jardim e, aliviado, sinto que devo chorar. Caminho até a árvore mais próxima, uma macieira. Subo nos galhos e me alimento de seus frutos. Chego no topo da copa e sento. Antes de relaxar, vejo algo imenso brilhar no horizonte. Coloco a mão espalmada em cima dos olhos e forço a vista. Uma imensa onda se revela, movimentando-se em grande velocidade em minha direção, carregando tudo que encontra no caminho. O Sol bate na superfície líquida e reflete um vermelho de sangue. O vagalhão chega e me atinge com força, me derrubando da árvore e me arrastando por centenas de metros. Tento resistir, mas o líquido entra em meus pulmões. A sensação de afogamento é terrível. Nunca imaginei que pudesse ser tão doloroso. Sinto como se tivesse respirado milhares de agulhas, que agora atravessam o meu peito de um lado para o outro. Puxo o ar, mas só vem água. Desmaio. Dia 162 Estou na cela mais uma vez. Completamente seco. Dia 202 As torturas obedecem um padrão. Chegam de sete 6 4
em sete dias, no lugar do que deveria ser o meu banho de sol. Pela primeira vez, penso em me matar. Deito, mas demoro para dormir. Amanhã é dia de sofrer. Dia 203 Estou amarrado em uma maca de metal. O Guarda está aqui. Ele levanta um objeto pequeno, que reflete um brilho prateado. Parece um bisturi. Com uma habilidade sádica, ele rasga meu corpo. Em seguida, puxa minha pele, que sai em grandes pedaços. A dor é terrível, mas mais uma vez não consigo desmaiar. Meu algoz deixa o bisturi de lado e pega outro objeto, muito esquisito. Já vi algo parecido em um daqueles vídeos de cirurgia que fizeram sucesso no Youtube. Com as duas mãos, ele insere o negócio no meu peito e afasta minhas costelas. Arranca algo de dentro de mim. Urro de agonia. A operação continua. Testemunho tudo, mas não tenho forças para contar aqui o que ele fez comigo. O sofrimento só acaba quando finalmente a dor tira minha consciência. Dia 204 Desperdiço o dia com tentativas inúteis de dar fim à minha vida. Virtualmente impossível. Dia 364 Meu corpo está imobilizado do pescoço para baixo e estou lambuzado em um óleo gosmento. Uma dor aguda me atinge. Olho para baixo e vejo ratos mastigarem os meus pés. 6 5
Formigas sobem pelo meu corpo, queimando por onde passam. Baratas caem do teto e correm até minha boca, me sufocando. Reajo com dentadas, mas é inútil. Nunca imaginei um horror tão grande. <!ENCERRANDO SIMULACAO> <bloco_1> <celula_1.1> <sujeito_1.1=”P_O_P-23”> <PROCEDIMENTO DE EMERGENCIA >abortar> Dia 365 Acordo e imediatamente reconheço os tanques de água da instalação subterrânea. Uma mão firme e familiar agarra meus braços e me arrasta até o centro de cirurgia. Conto nove pessoas cuidando de mim. Dez. Parada no canto, uma mulher alta, de cabelos muito brancos, impecavelmente arrumada. Ela fala sem parar, não sabem como o servidor foi invadido nem como driblaram a programação para criar experiências não-programadas. Com calma, diz que não posso fazer nada, o que aconteceu aqui é sigiloso, você assinou um documento concordando com tudo isso. E sim, você está livre, veja que bom, um ano antes do previsto. Ah, claro, o Estado vai te assistir por toda a dificuldade causada. O discurso acaba junto com os cuidados médicos. O Guarda me coloca em uma cadeira de rodas e me leva até o guichê onde deixei meus pertences, que são devolvidos intactos. Eu agradeço e sigo devagar até o pequeno vestiário. Tiro o avental e coloco minhas roupas. Meias, cuecas, camisa… 6 6
Quando puxo a calça, me deparo com um livro de capa dura e branca. Abro nas primeiras páginas e reconheço a letra, a minha letra. O sofrimento e a dor voltam imediatamente. Olho ao redor e encontro o que estava procurando. Subo em um pequeno banco e prendo uma das mangas da camisa em um tubo de ventilação que praticamente toca o teto. Amarro a outra manga em volta do meu pescoço, me certificando de que o nó não vai se desmanchar. Com um movimento seco, chuto o banco para longe. Finalmente, estou livre. Livr… <!ERRO_DE_SINTAXE> <alternador_de_vida_0339> <experimento_438.19> <sujeito_00011001.1=”A_O_V-00”> <!ERRO> <!ERRO> <!ERRO> <!REINICIANDO>
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> min ib io s
Ana Mitie: ginoide ou ciborgue? É descoberta diária em eternizar os detalhes em meio ao excesso do caos que atropela o tempo.
Bia Penha
Meio ralo, meio flor, um pouco abismo, outro tanto imensidão. Escorro, semeio, salto. É no curso das palavras que me salvo. B R U N [ A . I ]: inteligência artificial criada para lidar com a reintegração de humanos descongelados no ano de 3064, um ser senciente e emotivo, capaz de sentir empatia pela vida, seu maior sonho é deixar de ser máquina.
Cecilia Odainai: átomo 38 do imenso sistema de um grão de areia. Despreza fatos, quebra os pratos, cogita poesia.
Celia Marinangelo: na linha do tempo em três tempos,
perdi-me nos tempos sem tempo. Voei em tempos imemoriais em letra juntas e separadas, mergulhei em tempos abissais, nuvens de nada, chuvas geladas, saí com a cara riscada atrás de minhas pegadas.
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Claudia Marchiò: trans-humana de 942 anos, original-
mente de um lugar chamado Itália num antigo continente chamado Europa. Quando nasci o planeta Terra ainda tinha uma ampla divisão política. Tive o privilegio de ser mãe de gêmeas (tive dois bebês dentro de um único ventre) porém não tenho netos. Divido meus dias entre minha plantação de café orgânico e a escrita.
Daniela Prado dirige uma clínica particular de reabilita-
ção para androides e ginoides com transtorno de estresse pós-traumático.
Hugo Casarini foi fertilizado no ano de 1971 e desde en-
tão vive às turras entre a potência de vida e o impulso de morte. Adepto da filosofia de mil vidas em uma, já foi vendedor de carros, veterinário, jornalista, médico, executivo, músico, escritor, tradutor e pai. Nos últimos anos de sua vida, se equilibra entre as três últimas funções com algum êxito. Suas obras podem ser encontradas por aí, balançando na rede.
Jéssica Felix viveu durante muitos anos no Subterrâneo
até desaparecer misteriosamente. Pouco depois, começaram a circular cópias clandestinas de textos supostamente escritos por ela, que foram considerados heréticos e subversivos. Dizem que Jéssica fugiu; que decidiu enfrentar o sol na pele, sem proteção. E que sobreviveu. Seu paradeiro é hoje desconhecido, e pouco se sabe sobre a veracidade de suas histórias.
J. Spagatas vive no mundo de Répettiüm, com o povo cobra. Algumas vezes, toma as cápsulas do amanhã e em7 0
barca por pouco tempo em um futuro longínquo, onde o homem vive até quinhentos anos com vigor e aproveita essa dádiva que é a vida.
Karina Nasser é uma mistura nostálgica de um passado
inexistente e a esperança tímida em um futuro salvador. Embora se descreva como uma pessimista nata, dias melhores sempre surgem em seus pensamentos quando perguntada sobre os próximos anos. Odeia banana, coentro, azeitona e pessoas que mastigam de boca aberta.
Maria Eugênia Ferezin é grande entusiasta de inteligências artificiais e fez uma longa carreira como defensora da união entre tecnologia e humanos. Seu maior sonho ainda é ter um robô aspirador de pó.
Maria Teresa Simão (codinome: Tê Miller) nasceu há
dez mil anos atrás. Sem lenço e sem documento anda à toa na vida. A ovelha negra da família quer lhe falar das coisas que aprendeu nos discos. Hoje anda devagar porque já teve pressa. E sua porção mulher é a melhor porção que traz em si agora.
Marilia Maaz não existe, de verdade. Vive em uma pe-
numbra entre imaginação e realidade, desafiando as leis do possível e inacreditável, onde se multiplica para infiltrar na cabeça dos mais fracos e levantar milhares de dúvidas existenciais. Na maior parte das vezes, acaba se confundindo e invade a si própria.
Rebeca Amorim não sabe se é gente, robô ou poeta.
Sabe que sente, mesmo com o corpo em lata. Ela, de 7 1
fato, lateja. Enferruja, amassa, enverga – só não oxida. Conhecida por se apaixonar por hologramas, possui dedos-teclas e vocabulário próprio. É fluente em si, mesmo que ainda não se conheça completamente.
Sofia Alves tem um corpo de palavras. Mal consegue ver
as coisas sólidas. Logo lhe vêm à mente nomes, descrições, perspectivas poéticas, mais ou menos indigestas, mais ou menos fáceis de assimilar. Na sua profissão como médica, palavras adentram o consultório, com aparências diversas, formando composições únicas, tecendo histórias particulares. Gente de palavra que às vezes não sabe ler, mas sabe contar. E para ela o ar que sai da boca é som com duas letras. Ar. Sempre a rimar. Tudo em sua vida é tentar costurar o ser e o criar. Receitar e improvisar. Viver e imaginar. Intuir e estudar. Percutir, auscultar, falar e escutar. Reproduzir e reinventar. Plural e singular.
Valéria de Melo Pereira: mulher de três nomes urdidos
na terra seca e metálica do sertão e do Rio de janeiro. Nada cibernética, pois ainda acredita na “perene, insuspeitada alegria de conviver”.
VitorIvanoski.exe é um backup de inteligência e memó-
ria utilizado nos mais diversos planos virtuais. Já foi um guitar hero, artilheiro da Copa do Mundo, soldado condecorado na Segunda Guerra Mundial, junkie em Edimburgo, astro de tevê e samurai no Japão feudal. Atualmente é uma tentativa de escritor em São Paulo, 2020.
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