PAJ2014 Texto Artigo Veja Um Brado Retumbante

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BRASIL

UM BRADO RE T Nos últimos 29 anos, o país foi às ruas em três momentos decisivos: na campanha das diretas, no “Fora Collor” e nas revoltas de junho. Essas manifestações tiveram origem no desencontro entre os políticos e os cidadãos, na surdez da política em relação à estridente voz da população RINALDO GAMA

A

expressão é latina, tem origem incerta e arrasta consigo uma ideia desconcertante: vox populi, vox Dei. Não, Deus não perdeu a voz — apenas a confiou a um sujeito histórico, plural e frequentemente confundido com multidão: o povo. Nós, o povo.

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BRASIL

UM BRADO RE T Nos últimos 29 anos, o país foi às ruas em três momentos decisivos: na campanha das diretas, no “Fora Collor” e nas revoltas de junho. Essas manifestações tiveram origem no desencontro entre os políticos e os cidadãos, na surdez da política em relação à estridente voz da população RINALDO GAMA

A

expressão é latina, tem origem incerta e arrasta consigo uma ideia desconcertante: vox populi, vox Dei. Não, Deus não perdeu a voz — apenas a confiou a um sujeito histórico, plural e frequentemente confundido com multidão: o povo. Nós, o povo.

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E TUMBANTE

SÃO PAULO, 1984 Leonel Brizola, Mário Covas, Ulysses Guimarães, Tancredo Neves, Franco Montoro e Fernando Henrique Cardoso no comício da Sé, no dia 25 de janeiro; em 25 de abril, a emenda Dante de Oliveira seria rejeitada no Congresso — mas a redemocratização era irreversível

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Brasil

T RECHO

“O POVO, UNIDO...”

Avassaladoras, as três manifestações sociais de maior impacto na recente história política do Brasil receberam de VEJA uma cobertura atenta, extensiva e participativa. O movimento das diretas, o “Fora Collor” e os protestos de junho de 2013 resumem o país. 76 |

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1º de fevereiro de 1984

“A história das manifestações políticas da sociedade brasileira ganhou (...) um novo marco de grandiosidade. (...) Amontoadas por toda a Praça da Sé, 200 000 pessoas gritavam: “Um, dois, três / Quatro, cinco, mil / Queremos eleger / O presidente do Brasil!”

2 de setembro de 1992

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RIO, 1992

CUSTÓDIO COIMBRA/AG. O GLOBO

Grupo de caras-pintadas pede a saída do então presidente da República Fernando Collor de Mello: diferentemente da mobilização da década anterior, organizada sobretudo pelos partidos oposicionistas, dessa vez a liderança coube aos jovens estudantes universitários e secundários, até a vitória

T RECHO R$ 10,90

9 770100 712004

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“Execrado pela multidão (...), Fernando Collor passou a semana na situação de um cadáver esfriando no caixão. (...) Seus próprios ministros e secretários de estado nada afirmam quanto à honra do (...) presidente da República.” 26 de junho de 2013 issn 0100-7122

1992

www.veja.com

Editora ABRIL edição 2327 - ano 46 - nº- 26 26 de junho de 2013

T RECHO “É muito fácil quebrar o vidro que separa a ordem do caos. (...) Podem se passar décadas sem que nada mude, mas uma semana pode concentrar décadas de mudança. Foi o que se viu no Brasil na semana passada.”

Se democracia — do grego ¯ demokratía (de demos, povo, mais kratía, força, poder) — é “governo do povo”, por que os governantes se alarmam demasiado quando nós, o povo, voz de Deus, saímos às ruas, em protesto político? Se república — do latim res publica — é “coisa pública”, por que o estado estranha tanto quando nós, o povo, os donos da coisa etc., tomamos as praças, idem, idem, idem? Simples: porque sabem que, se as ruas e praças se incendeiam, é sinal de que eles, governantes, o estado, já não são sinônimo de povo, de coisa pública. E esse fato tem um cristalino motivo: o governo do povo virou governo de poucos. Aquilo que deveria ser público — o bem comum, cuja construção é a razão primeira da política — se tornou privado. Com graus, pretextos e resultados diferentes, o Brasil experimentou tudo isso, nos últimos 29 anos, em três momentos de inflexão de sua sociedade: na campanha das diretas (1984), no movimento “Fora Collor” (1992) e nas manifestações de junho passado (todos herdeiros da célebre Passeata dos Cem Mil, realizada em 1968). Distintas quanto aos seus propósitos imediatos, essas autênticas marchas da sensatez — descontada a participação dos baderneiros — tiveram a uni-las um horizonte de passos mais largos do que aqueles que lhes deram impulso. E todas foram marcadas por um mesmo agente: a vontade popular. Um exemplo do desconforto dos políticos sempre que há estridência da maioria nas ruas pode ser pinçado da fase das diretas. Em 1984, logo depois do comício gigante realizado na Sé, em São Paulo, um deputado federal da cúpula do

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Brasil

BRASÍLIA, 2013

EVARISTO SÁ/AFP

ANDRÉ DUSEK / ESTADÃO CONTEÚDO

Diante dos holofotes, manifestantes têm a sombra projetada em uma das cúpulas do Congresso Nacional: comando descentralizado, pauta extensa e diversificada e algumas das reivindicações iniciais atendidas pelas autoridades e pelo poder constituído em poucas semanas, diante da velocidade de difusão e expansão do movimento

QUATRO MESES DE AGONIA

VEJA dedicou dezessete capas (a maioria delas reproduzida abaixo) à crise política

27/5/1992

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17/6/1992

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EVARISTO SÁ/AFP

PDS, o partido governista — cujo nome não se escreverá aqui para não trazê-lo de volta do esquecimento —, criticou o atendimento da vontade popular, saindo-se com esta: “Hitler fez o nazismo com 100% do povo a seu favor”. VEJA, em sua edição de 1º de fevereiro, tratou de corrigi-lo: ainda que a tese tivesse a sua lógica (pois maiorias podem errar), o Führer só chegara ao cargo de premiê, em 1933, pelo sistema indireto, “no bojo de uma coligação parlamentar, já que o partido nazista era minoritário”. “Há pouco me perguntaram quantas pessoas estão nesta praça — 300 000? 400 000? A resposta é outra: aqui estão 130 milhões de brasileiros”, discursou, emocionado, o então governador de São Paulo, Franco Montoro, que dividiu a Sé com outros nomes da política (Tancredo Neves, Mário Covas, Leonel Brizola e dois futuros presidentes, Fernando Henrique Cardoso e Luiz Inácio Lula da Silva), da MPB (Chico Buarque, Milton Nascimento), do teatro e da televisão (Fernanda Montenegro, Irene Ravache) etc. Para além do caráter pluripartidário e multiartístico, chamava atenção no comício a presença de exércitos de anônimos, de todas as classes sociais. Ali estava representada, se não a totalidade dos brasileiros, como proclamara Montoro, certamente a maioria da população. Apesar das ruidosas concentrações ocorridas pelo país afora, a proposta de eleição direta para pre-

sidente da República seria derrotada no Congresso exatos três meses após o evento da Praça da Sé, em 25 de abril de 1984 — mas o caminho para a redemocratização se tornara irreversível. Irreversível a tal ponto que o primeiro presidente eleito pelo voto direto desde 1960, Fernando Affonso Collor de Mello — como se disse, a maioria também pode errar —, acabaria arrancado do Planalto não por um golpe gestado nos quartéis, e sim pela vontade popular, expressa, de novo, pela voz das ruas. O povo põe, o povo dispõe. Dessa vez, em lugar de acertos pluripartidários, a mobilização ganhou a cor dos jovens, os caras-pintadas, arregimentados por entidades como a União Nacional dos Estudantes (UNE). Aprovado o encaminhamento do impeachment, Collor acabaria renunciando ao cargo em dezembro de 1992. VEJA participou diretamente de todo o processo, deslanchado sobretudo após a publicação da histórica entrevista do irmão do presidente, na edição de 27 de maio de 1992. Enquanto as diretas foram derrotadas no Congresso e se passaram quatro meses entre o início do rol de denúncias contra Fernando Collor e seu afastamento da Presidência da República, os protestos de junho de 2013 obtiveram vitória em algumas de suas reivindicações originais num espaço de poucas semanas (o aumento da tarifa de ôni-

bus em São Paulo, o gatilho de tudo, durou 22 dias). A velocidade da resposta foi diretamente proporcional à rapidez com que as manifestações ganharam demandas — fim da corrupção, derrubada da PEC 37 (que limitaria o poder de investigação do Ministério Público), melhora na educação e no sistema de saúde, moralização nos gastos com a Copa etc. —, cresceram em volume de gente nas ruas e se espalharam pelo país. Perplexa, a presidente Dilma Rousseff chegou a ficar quase duas horas acuada no interior do Palácio do Planalto, enquanto do lado de fora uma multidão se exasperava contra “tudo isso que está aí”. Um “choque de democracia” — para usar o título do e-book do professor Marcos Nobre, da Unicamp, sobre as revoltas de junho. Formado à margem dos partidos e de entidades de classe ou afins, o movimento possuía uma liderança tão difusa quanto o seu arsenal de reivindicações — o que dificultou ainda mais a reação dos políticos de todos os matizes. Dilma fez pronunciamento nacional em cadeia de rádio e TV e convocou governadores e prefeitos para firmarem ações contra os males reclamados. O Congresso, atônito, correu para derrubar a PEC 37. Pode-se baixar a guarda? Não. O caso do deputado-presidiário Natan Donadon — cuja preservação do mandato teve voto favorável da Câmara — dá a impressão de que os políticos ß seguem surdos a uma certa vox.

que apeou Fernando Affonso Collor de Mello do Palácio do Planalto

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