RECEITA DE JORNALISMO Roberto Civita — numa reunião em 1972, com o então inseparável cachimbo Dunhill e uma gravata de crochê que estava na moda — repetiu duas lições a vida inteira: o compromisso de uma publicação é com os leitores, não com governos, anunciantes ou amigos; e sua independência exige a separação entre Igreja e Estado, ou seja, entre o editorial e o comercial, pois matéria é matéria e propaganda é propaganda
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RECEITA DE JORNALISMO Roberto Civita — numa reunião em 1972, com o então inseparável cachimbo Dunhill e uma gravata de crochê que estava na moda — repetiu duas lições a vida inteira: o compromisso de uma publicação é com os leitores, não com governos, anunciantes ou amigos; e sua independência exige a separação entre Igreja e Estado, ou seja, entre o editorial e o comercial, pois matéria é matéria e propaganda é propaganda
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IMPRENSA
O CRIADOR DE VEJA
O número 1 da revista, com data de capa de 11 de setembro de 1968, começou a ser concebido dez anos antes, quando o jovem Roberto Civita trocou um cargo de prestígio na sucursal de Tóquio do maior semanário de informações do mundo pelo sonho de realizar três grandes projetos no Brasil CARLOS MARANHÃO
O
embrião de VEJA se formou, em 1958, junto da bossa nova, da Brasília em construção, do surgimento da indústria automobilística, da modernização pela qual o país passava no governo
JK e da Seleção Brasileira de Futebol que ganhou nossa primeira Copa do Mundo. Todos esses marcos históricos seriam decisivos para transformar os rumos do Brasil e despertar o orgulho nacional. VEJA, é verdade, demoraria um pouco mais para sair do ovo. O embrião ainda ficaria se desenvolvendo em
PEDRO HENRIQUE
TRECHO
“VEJA quer ser a grande revista semanal de informação de todos os brasileiros (...). O Brasil não pode mais ser o velho arquipélago separado pela distância, espaço geográfico, ignorância, preconceitos e regionalismos: precisa de informação rápida e objetiva a fim de escolher rumos novos. Precisa (...) estar bem informado. E este é o objetivo de VEJA.” Carta do Editor, de Victor Civita (1907-1990), fundador da Editora Abril e diretor de VEJA
silêncio por uma década até que enfim pudesse vir à luz. Naquele ano, o jovem Roberto Civita (1936-2013), depois de se graduar em jornalismo e administração nos Estados Unidos, terminava um estágio na Time Inc., editora que publicava Time, Life e outras revistas de prestígio, e dela recebeu um convite que considerou irrecusável: trabalhar como o número 2 na sucursal de Tóquio. Para ele, seria a materialização de um sonho. Time, criada em 1923, já era o maior e mais influente semanário de informações do mundo. Durante o estágio, ele havia conhecido todo o seu funcionamento por dentro: passou pelas áreas editorial, comercial, publicitária e de logística, chegando a ajudar a distribuir algumas pilhas de edições, em longas madrugadas, nas bancas e em casas de assinantes. Eufórico com a proposta, tratou imediatamente de telefonar para VC, como costumava chamar seu pai.
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Imprensa
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AVENTURA EM MOSCOU Ao desembarcar na capital da então União Soviética para acompanhar a Olimpíada de 1980, RC teve sua bagagem vasculhada e a polícia lhe confscou um exemplar de Veja por considerar a capa ofensiva ao líder comunista Leonid Brejnev. A revista seria devolvida em seu hotel, e ele fez questão de ser fotografado com ela diante do Kremlin
deu que voltaria sob uma condição: queria fazer três revistas. Uma seria masculina, a plaYboY brasileira. outra, uma publicação de negócios, nos moldes da americana Fortune, a futura eXame. “e uma semanal de informações, como a Time”, completou. Vc aceitou. “neste momento não temos condições, pois antes precisaremos nos fortalecer e crescer”, ponderou. “mas, logo que estivermos prontos, lançaremos as três revistas. e muitas mais. eu prometo.” em outubro daquele mágico 1958, rc — que seria tratado assim no ambiente profssional — entrou ofcialmente para a abril. menos de dois anos depois, participaria diretamente do lançamento de QUatro roDas, a primeira revista de conteúdo jornalístico da editora. aos poucos viriam várias outras e inúmeros fascículos, entre os quais a bíblia, a enciclopédia conHecer e a série de receitas bom apetite, todos com um êxito estrondoso. Houve vendas de 1 milhão de exemplares nas bancas. em 1966, surgiu realiDaDe, que publicava mensalmente reportagens extensas, com textos bem escritos e fotos de alta qualidade, sobre temas de que a imprensa brasileira da época quase não tratava, como comj.b. scalco
numa época em que as ligações internacionais demoravam horas até se completar, precisou segurar a ansiedade enquanto esperava o momento de lhe dar a boa-nova e, tinha certeza, receber os parabéns. Vc eram as iniciais de Victor civita, um empresário ousado, empreendedor, otimista e visionário que em 1950, aconselhado pelo irmão, trocara nova York por são paulo, onde fundou a editora abril. naqueles primeiros oito anos, a abril conquistou um crescente espaço no mercado de revistas com uma série de lançamentos em dois segmentos que atraíam um número cada vez maior de leitores: as histórias em quadrinhos, com o pato Donald e outros personagens criados por Walt Disney, e as fotonovelas, gênero que vivia seu auge e desapareceria com a popularização da televisão. Vc queria muito mais do que isso. para que a abril crescesse, contava com a colaboração de roberto, o flho mais velho, e de richard, o caçula, que era estudante e só bem depois participaria dos negócios da família. assim, quando roberto lhe anunciou o convite da Time, sua reação imediata, em vez de transmitir o esperado “bravo!”, foi afrmar que não achava aquilo uma boa ideia. como por telefone seria difícil discutir o assunto em profundidade, mandou uma passagem para que o flho viesse conversar pessoalmente com ele. ao fm de um voo de quase 24 horas que partiu de nova York, com quatro escalas, roberto encontrou o pai e disse que pretendia aceitar a proposta dos americanos. “mas você não queria mudar o mundo?”, provocou Vc. “sim, eu quero”, confrmou roberto. “no japão ou em qualquer lugar do Hemisfério norte, você não vai conseguir”, argumentou Vc. “lá a concorrência é muito grande, e você será apenas mais um. aqui no brasil há tudo a ser feito. Venha trabalhar em um negócio que também é seu. sua alavanca para mudar o mundo será muito maior.” roberto fcou desconcertado com a reação paterna. pediu uma noite para pensar. apesar do cansaço da viagem, não dormiu. no dia seguinte, respon-
portamento, sexo e religião, além de perfs surpreendentes. rc dirigiu realiDaDe durante seu primeiro ano. na redação, instalada no centro da capital paulista, ele discutia pautas, ajudava a escolher fotografas e editava reportagens, em meio à fumaça que saía de seus cachimbos Dunhill. “reunimos uma equipe de jovens e brilhantes jornalistas”, recordaria. a revista vendia cerca de 400 000 exemplares nas bancas. seu sucesso, aliado ao fenômeno dos fascículos e à consolidação de vários títulos, capitalizou a abril e tornou a empresa mais conhecida do público, respeitada no mercado e admirada por uma crescente legião de leitores. Diante de tudo isso, em um clima de relativa estabilidade política e econômica naquele período inicial do regime militar, no fm de 1967,
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após nove anos de gestação, pai e filho acharam que chegara a hora de dar a largada nos complicadíssimos preparativos para o parto do Projeto Falcão, nome codificado do que seria VEJA. “Estávamos prontos”, diria RC. Mas havia imensos desafios pela frente. Foi a mais complexa operação na história da empresa. Em um país com estradas ruins, ferrovias sucateadas e aeroportos precários em que pousavam aeronaves de pequena capacidade, sem contar o lento serviço dos correios, era preciso garantir uma distribuição rápida e segura. Além do mais, não se tinha ideia do que era uma revista de informações, que poria os fatos em perspectiva, contaria não o que já acontecera mas o que estava acontecendo e apresentaria as notícias mais relevantes da semana de forma organizada, analítica e traduzida para o universo do leitor. Era necessário explicar com clareza que tipo de semanário seria esse, tanto para os leitores como para os anunciantes. Era preciso aparelhar a gráfica e garantir uma impressão veloz e perfeita. Fazer as contas. E montar equipes, so-
bretudo a jornalística e a de publicidade, que deveriam trabalhar em harmonia — mas separadas. RC considerava que essa foi uma lição fundamental que aprendeu em sua passagem na Time e nos anos em que estudou nos Estados Unidos. Aplicou-a em toda a sua carreira de empresário e editor: o jornalismo independente exige a separação entre Igreja e Estado, ou seja, entre o editorial e o comercial. Os leitores — e os profissionais envolvidos nas duas áreas — não podem confundi-los. Matéria é matéria, anúncio é anúncio. Outro ensinamento que trouxe foi que a qualidade de uma publicação depende dos jornalistas que a fazem. Para recrutar a maioria deles, RC redigiu pessoalmente um anúncio, veiculado em algumas revistas da casa, dizendo que a Abril procurava “homens e mulheres inteligentes e insatisfeitos, que leiam muito, sempre perguntem ‘por quê?’ e queiram colaborar na construção do Brasil de amanhã”. Das 1 800 pessoas que responderam, 100 foram chamadas para fazer um curso intensivo de jornalismo em São Paulo. No final de três meses, cinquenta se incorporaram
ao time pioneiro da revista. Ao mesmo tempo, o diretor de redação, Mino Carta, preencheu os postos editoriais mais importantes com contratações de peso. A faixa etária dos profissionais era semelhante à dos jornalistas de REALIDADE, na casa dos 30 anos. Juntos, RC e Mino foram conhecer na Europa e nos Estados Unidos os maiores semanários de informação que existiam no mundo. Na volta, começaram a ser preparadas — e impressas, com capa, reportagens e anúncios — treze edições experimentais, batizadas internamente de números zero. A cada semana, como um feto em formação, a revista foi ganhando o rosto que teria ao nascer, com a data de capa de 11 de setembro de 1968, exatamente dez anos após o surgimento do embrião. Preservados na biblioteca especializada em imprensa que RC montou no mezanino de seu grande gabinete de trabalho, no 24º andar da sede da Abril, na Zona Oeste da capital paulista, com janelas voltadas para o Rio Pinheiros, aqueles números zero foram inteiramente anotados e criticados por ele. Com caneta de tinta azul e lápis dermatográfico vermelho,
A gestação em quatro momentos ZERO ONZE Neste outro número zero, o destaque foi para as ações armadas da esquerda. Havia também matérias sobre o Galaxie, da Ford, e o sonho do estádio do Corinthians
ZERO DEZ Antes do lançamento, foram feitas treze edições experimentais completas como esta, com capa, reportagens e anúncios. Eram chamadas de números zero
ZERO DOZE Duas semanas antes de VEJA ir para as bancas, o assunto principal era a crise do mundo comunista após a invasão da Checoslováquia, que seria o tema de capa do número 1
ATRÁS DO LEITOR Depois dos 700 000 exemplares iniciais, a circulação despencou. Esta edição de maio de 1969, anotada desde a capa com a letra arredondada de RC, é do período em que as vendas não chegavam a 100 000 cópias por semana
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A caneta do editor Desde os números zero e as primeiras edições, RC assinalava em cada página as falhas que encontrava e mandava o exemplar anotado para a redação
marcou erros de informação, falhas de estilo, imprecisões, fotos inadequadas, tipos de letra difíceis de ler, conclusões que considerava equivocadas. Podia ser duro (“Complicado, longo, chato”, apontou em um texto), minucioso (“Frases longas demais” — contou em uma delas 46 palavras) ou até condescendente (“Quase bom”). Em um artigo que se referia ao Brasil como “subdesenvolvido”, corrigiu e deu o tom que a revista seguiria: “Cuidado! Não somos. Sugiro dizer, sempre, ‘em desenvolvimento’”. Marcava repetições desnecessárias de palavras e sublinhava títulos que não aprovava. Com uma única canetada, deu o nome definitivo de uma das seções mais lidas da revista, o único que permanece inalterado até hoje: “Gente”. Nos quase 45 anos seguintes, Roberto Civita repetiu, por escrito, em reuniões ao vivo, por telefone e mais recentemente por teleconferência, sugestões, dúvidas e cobranças como essas em cada uma das 2 308 edições de VEJA que, sem exceção, mesmo quando se encontrava em férias, passaram por seu crivo de editor — cargo no qual fazia questão de aparecer no topo do expediente da revista. A última delas circulou no Carnaval passado, quando ele se internou para uma cirurgia. Morreria três meses depois, deixando como um dos legados a concepção, a criação e a consolidação da maior e mais influente revista da história da imprensa brasileira, cuja trajetória até aqui é revivida nas próximas reportagens desta edição, que ele certamente leria com o orguß lho e o espírito crítico do pai. 36 |
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“Matéria boa. Não muito bem escrita”, apontou nesta reportagem no número 1
“Pouco claro.” Durante a vida inteira, ele exigiu, além da precisão das informações, a clareza nos textos, jornalísticos ou não
“Fecho ruim.” Matérias de qualidade, costumava dizer, precisam ter começo, meio e fim
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Troca certeira: em um dos números zero, colocou com lápis vermelho dermatográfico o nome da única seção da revista que permanece inalterado até hoje
Números errados nas distâncias da Terra à Lua e da Terra a Vênus
“Só os industriais?” Não se cansava de repetir: “É preciso perguntar, perguntar. E ler, ler” “Mon Dieu de la France!” — para uma frase longa e confusa
“Complicado, longo e chato.” O texto assim criticado é do primeiro zero, quando o nome da futura revista, ainda sigiloso, saía como BACD ESPECIAL 45 ANOS ≤ | SETEMBRO, 2013 |
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