Palavra

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ano 6 . número 5 . 2014

ano 6 . número 5 . 2014 SESC LITERATURA EM REVISTA

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ISSN 2178-1443

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SESC LITERATURA EM REVISTA

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revista

IGNÁCIO DE LOYOLA BRANDÃO | LÚCIA MURAT | RENATA MAGDALENO BRENO SERAFINI | ROBERTO BOZZETTI | CHACAL | SÉRGIO DE CARVALHO PAULO BIO | PAULO CÉSAR DE ARAÚJO | B. KUCINSKI | JULIANA FRANK ANA MARTINS MARQUES | FABIANO CALIXTO | MARCELO DINIZ MARCELO MOUTINHO | MARCELO IKEDA | JOSÉ RUFINO

DEPOIMENTO DOSSIÊ MILLÔR FERNANDES ENSAIOS LITERATURA MÚSICA

TEATRO

ESPAÇO LITERÁRIO CONTO POESIA

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EDITORIAL

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esistência s.f. (sXV cf. FichIVPM) ato ou efeito de resistir 1 qualidade de um corpo que reage à ação de outro corpo 2 o que se opõe ao movimento de um corpo, forçando-o à imobilidade 3 capacidade de suportar a fadiga, a fome, o esforço 4 recusa de submissão à vontade de outrem; oposição, reação 5 luta que se mantém como a ação de defender-se; defesa contra um ataque 6 fig. reação a uma força opressora 7 qualidade de quem demonstra firmeza, persistência 8 fig. aquilo que causa embaraço, que se opõe 9 força que anula os efeitos de uma ação destruidora. (HOUAISS, Dicionário da Língua Portuguesa, 2001, p.2438) Em resposta a inquérito organizado pela revista eletrônica eLyra, o poeta e teórico português Alberto Pimenta chama a atenção para o significado da palavra resistir em sua origem latina: “Consultei o dicionário de latim, procurei resisto/ resistere e achei como primeira entrada ‘parar e olhar para trás’[...] Mas também é, ainda em latim (via a seguir) ‘enfrentar’ e ‘opor-se’, naturalmente, ao caminho em que se vai, só que agora activamente e sem olhar para trás”. Então, voltamo-nos ao tema deste número da Palavra, Literatura e Resistência, e nos damos conta do quanto resistir é – ou deveria ser – uma prática constante em nossas vidas. Olhar para trás, revisitar o passado, mantê-lo vivo pelo fio da memória, e seguir adiante, sabendo-se, hoje, continuação dessa trama infinita do tempo. Este ano marca o cinquentenário do Golpe Civil-Militar de 1964, que instituiu no país um regime político de exceção o qual perdurou por mais de duas décadas. Como resposta à forte censura imposta pelo regime, a palavra assume papel fundamental nas artes. Nessa perspectiva, procuramos trazer ao leitor algumas reflexões sobre o uso da palavra como resistência – em seus múltiplos sentidos – durante os vinte e um anos de ditadura. O artista plástico José Rufino criou a concepção visual da Palavra n.5, abrindo seus arquivos de obras relacionadas ao período da ditadura, distribuindo-as ao longo da publicação como materializações emanadas dos textos dos diversos autores. A obra principal, Plasmatio, construída com documentos originais relacionados a desaparecidos políticos, aparece como ensaio visual e tudo se transmuta em linguagem literária em seu conto Gravura. Neste arquivo, Roberto Bozzetti, Ricardo Chacal, Paulo César Araújo, Sérgio de Carvalho e Paulo Bio traçam um panorama da arte neste período e de como a palavra – e seu silêncio – exerceu papel fundamental na resistência política. Palavra que não estava só. Como veremos na matéria de Renata Magdaleno e no ensaio de Breno Serafini sobre o escritor e cartunista homenageado, Millôr Fernandes, texto e imagem complementavam-se. Ignácio de Loyola Brandão e Lúcia Murat dão depoimentos de suas vivências e de como suas produções estão impregnadas desse testemunho. Na sequência, recomendações literárias do escritor Marcelo Moutinho e do crítico de cinema Marcelo Ikeda. Poemas de Ana Martins Marques, Fabiano Calixto e Marcelo Diniz e contos de José Rufino, B. Kucinski e Juliana Frank encerram este testemunho de como a literatura e a arte trazem em si as marcas de um tempo.

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SUMÁRIO PRIMEIRAS PALAVRAS: Maron Emile Abi-Abib p.5 DEPOIMENTO: Ignácio de Loyola Brandão: Viver uma época real ainda que surreal, paradoxal p.6 Lúcia Murat: Cinema, memória e resistência p.11 DOSSIÊ MILLÔR FERNANDES Renata Magdaleno: Millôr e seus múltiplos estilos p.13 Breno Serafini: R(exist)IR é preciso p.20 ENSAIOS Roberto Bozzetti: O golpe de 64 e a cultura: frustração, resistência e consciência do estrago p.29 Chacal: Novas expressões para um novo mundo p.39 Sérgio de Carvalho e Paulo Bio: O tempo morto do teatro p.44 Paulo César de Araújo: A geleia geral da música brasileira p.50 ESPAÇO LITERÁRIO CONTO B. Kucinski: Efeitos colaterais p.60 Juliana Frank: Siameses p.67 José Rufino: Gravura p.71, Plasmatio p.79 POESIA Ana Martins Marques p.92 Fabiano Calixto p.96 Marcelo Diniz p.100 EU RECOMENDO Marcelo Moutinho: No relato sobre a guerrilha, um sóbrio exercício de autocrítica p.103 Marcelo Ikeda: Duas adaptações de Kafka para o cinema p.104 DICAS Indicações de livros sobre Arte e Resistência Música p.106 Artes Cênicas p.106 Artes Visuais p.108 Cinema p.109 Literatura p.111 BIOS-COLABORADORES p.115 IMAGENS E CRÉDITOS FOTOGRÁFICOS p.119

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PRIMEIRAS PALAVRAS O

Sesc tem consciência de sua responsabilidade com o Brasil e acredita na força da cultura como instrumento essencial ao desenvolvimento da sociedade. Decorre dessa convicção o propósito de democratizar o acesso às manifestações artísticas,reservando olhar especial à literatura brasileira, expressão mais genuína de nossa realidade, modos e inquietações. As múltiplas iniciativas como feiras e jornadas, circuitos de contadores de histórias, saraus de poesia, cafés literários, rodas de leitura e laboratórios de criação, promovidas nas unidades do Sesc em todos os estados e abertas ao público em geral são frutos de uma visão que identifica na literatura, nos seus processos e desdobramentos, estímulo ao aprendizado e à educação. Com o Prêmio Sesc de Literatura, consolidado como um dos mais importantes certames do gênero no Brasil, realizado em parceria com a editora Record, abrimos espaço ao surgimento de novas expressões para a literatura brasileira, tão bem acolhida em nossa rede de bibliotecas fixas e itinerantes, com presença ativa em todo o país na promoção do acesso ao livro e à leitura. Criada no estuário do Prêmio Sesc de Literatura, a revista Palavra, nesta sua sexta edição, reforça seu posicionamento como uma publicação que se utiliza do diálogo com outras artes para instigar nos leitores a reflexão sobre sua realidade, fomentar discussões e oferecer uma perspectiva ampliada do fazer cultural. Com o tema Literatura e Resistência lança um olhar sublinhado pela arte em um período emblemático para a liberdade de expressão, quando a exceção foi a regra, 50 anos após seus acontecimentos centrais. O homenageado é o escritor, desenhista, humorista, dramaturgo e tradutor Millôr Fernandes, cujo talento multifacetado nos legou uma vasta e rica obra. Para compor a edição, reunimos também ensaios, contos e poemas. O projeto gráfico é assinado pelo artista plástico José Rufino. Com esta Palavra, reafirmamos o compromisso do Sesc com a difusão da literatura brasileira, a ampliação e a diversificação do universo de leitores, na esperança de ultrapassar barreiras ainda interpostas ao nosso desenvolvimento. Boa leitura!

Maron Emile Abi-Abib

Diretor-Geral do Departamento Nacional do Sesc JULHO 2014 REVISTA PALAVRA

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DEPOIMENTO Viver uma época real ainda que surreal, paradoxal Ignácio de Loyola Brandão

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inha raiva dos militares começou no dia em que, voltando ao jornal Última Hora, duas semanas após seu fechamento, no dia 1º de abril de 1964, encontrei um elemento novo na redação, o censor. Naquele dia percebi que tudo estava mudado, a liberdade de expressão terminada. Os anos passaram e o torniquete foi sendo apertado com o AI-5, com o Conselho Superior de Censura, com as cassações de políticos, de intelectuais, de líderes estudantis, as prisões, os desaparecimentos,as torturas. Ou se era contra ou a favor, expresso mais tarde no adesivo que estava na maioria dos carros: Brasil, ame-o ou deixe-o. Era ler aquilo e saber com quem se estava falando. Em 1965 publiquei meu primeiro livro, Depois do sol; em 1968 o segundo, Bebel que a cidade comeu e o terceiro em 1969, Pega ele, silêncio. Logo viria o quarto que me colocou na cena literária e política. Jornalista e escritor, belo ser duplo eu era. Se como jornalista sofria a censura (e logo a autocensura, que é pior), logo com meu romance Zero eu continuaria sob o jugo do PROIBIDO. Assim, eu e minha geração sofríamos duro aprendizado. O que marcou o grupo de escritores entre os anos 1960 e os de 1980 foi que ele veio dos meios de comunicação, dos jornais, televisão, rádio e publicidade. Diferente da geração anterior quando a maioria foi funcionário público, trabalhava em autarquias e ministérios, como Carlos Drummond de Andrade, Manuel Bandeira, José Lins do Rego, Graciliano Ramos. Essa minha geração bandeou-se para a literatura, em parte motivada pela ânsia de ver e não poder contar o que via e vivia. A ficção possibilitou transmitir a realidade brasileira como era. Evidente que surgiu uma lei que obrigava

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os editores a submeter os originais a uma censura prévia, para saber se poderiam ou não ser publicados. Nenhum editor acatou tal determinação. As proibições vieram, seguidas. Os militares acreditavam que a literatura poderia colocar as armas nas mãos da população. Nós acreditávamos que podíamos fazer cabeças. Sonhos. Nem um nem outro. Os livros eram expurgados das livrarias, seguidamente. Saltavam romances, novelas, antologias de contos, ensaios, num festival de insanidade e arbitrariedade. Assim, o belo romance A capital, de Eça de Queiroz, foi confundido com O Capital de Marx. Livros de geografia caíram no índex, sem que se saiba por quê. O escritor Renato Tapajós, autor de Em câmera lenta, foi proibido e preso. O editor Ênio Silveira, dos mais ousados e corajosos do país, foi preso várias vezes, sofreu ameaças e perseguições. Também Carlos Heitor Cony, Paulo Francis, Jaguar, Tarso de Castro, Ziraldo e toda a turma do libertário O Pasquim. Ferreira Gullar, Darcy Ribeiro, Thiago de Mello se exilaram, assim como Florestan Fernandes e Fernando Henrique Cardoso, para citar apenas alguns. Osvaldo França Júnior foi demitido da Aeronáutica e Bernardo Élis, da Academia Brasileira de Letras, expulso da Universidade Federal de Goiás. Wander Pirolli, o melhor autor de livros infantis da década, sofreu sérias represálias e ameaças por causa do título de seu livro, O menino e o pinto do menino. Achavam que pinto era pinto, membro, e não pintinho, filho da galinha.

Quando tocavam a campainha da porta, tremíamos. Teria chegado a nossa vez? A cada artigo publicado, ao atender o telefone, vinha a ansiedade: Vai ser agora? Finalmente meu romance Zero, escrito entre 1964 e 1973, saiu na Itália em primeira edição e em seguida no Brasil em 1975. Um ano e meio depois foi proibido. Indaguei ao censor que regia a Editora Três, onde eu trabalhava na época, fazendo a revista Planeta, o que a proibição significava em relação a minha integridade física. — Se o livro for proibido por uma questão política, você poderá ser preso e a editora fechada. Mas se a razão for moral, deixe para lá, esqueça. Logo eu soube, Zero foi proibido por ser atentatório à moral e aos bons costumes. Dias depois, o censor me comunicou (paradoxalmente era um homem culto, agradável, boa conversa) que para não se “chatear” com processos e outras coisas, o Ministério da Justiça preferia proibir livros pela moral. Acrescentou: — Quanto a recolher os exemplares publicados, descanse. A Polícia Federal nem tem viaturas para isso e os agentes vão fazer a maior confusão, livraria não é o ambiente deles. Essa relação com os censores era estranha, alguns avisavam as redações que determinado livro, filme ou disco seria proibido e então tínhamos “chance” de correr ao cinema, ao teatro, à livraria, antes que viesse o veto. Delirante. Certa tarde — acreditem — ele me confidenciou:

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— Em geral são as esposas dos coronéis e oficiais que, desocupadas, comentam livros, revistas, programas de televisão, novelas nas mesas de jogo de biriba de Brasília e então pressionam os maridos. Também as associações religiosas influenciam. Tudo era surreal, espantosamente fantástico. Muitos escritores entre 1968 e 1982 chegaram às escolas, faculdades, associações e foram proibidos de falar, por medo de diretores ou dos conselhos. Os encontros eram realizados numa praça, quadra esportiva, na estação ferroviária, em uma igreja, num espaço qualquer. Momento significativo aconteceu em 1975, quando todos os setores culturais se reuniram no Teatro Casa Grande, no Rio de Janeiro, para o debate que desafiou e confundiu a Polícia Federal, presente na primeira fila. Iniciava-se o movimento anticensura. Em seguida, em 1976, veio a proibição de três livros, Araceli, meu amor, de José Louzeiro, Feliz Ano Novo, de Rubem Fonseca e Zero, meu, que acendeu um estopim no país e gerou uma linha de frente, e o manifesto, que atravessou o Brasil em 1977, colhendo 1.546 assinaturas dos mais representativos intelectuais brasileiros, de criadores a professores, exigindo a imediata supressão da censura. Era possível unir, resistir, lutar. Independentemente de tudo, foi um período fértil para a literatura, música, teatro, porque havia um inimigo comum a enfrentar, a violência de um regime que suprimiu a liberdade. E isso deu forças. O mais curioso eram os escritores de mesas de bar que anunciavam: — Estou com o livro pronto, mas tem o problema da censura... Quando acabou a censura, abriram as gavetas... estavam vazias. Quem tinha alguma coisa a falar, tinha falado, escrito, comunicado.

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DEPOIMENTO Cinema, memória e resistência Lúcia Murat

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u poderia dizer que minha relação com o cinema, como cineasta, começou por acaso. Sempre fui cinéfila. Fiz parte, nos anos 1960, da chamada Geração Paissandu, que se comprazia em ver os filmes do Cinema Novo e da Nouvelle Vague. E, mais que tudo, se comprazia em discutir esses filmes. Talvez o grande prazer fosse a discussão depois do filme, no bar da esquina, pois naquele momento as mudanças de comportamentos estavam nos filmes, a revolução estava nos filmes, e a nossa vida era tão próxima de tudo aquilo que víamos que se confundia com os filmes. Essa era a minha formação, formação que foi fundamental quando comecei a fazer cinema, por acaso... Esse acaso ocorre quando, em 1978, depois de alguns anos como presa política durante a ditadura, resolvo ir à Nicarágua fazer um documentário sobre a tomada dos sandinistas e a queda do ditador Somoza. Hoje, vejo isso com clareza, meu interesse ao ir para a Nicarágua, um país em guerra, era muito mais descobrir o que tinha acontecido com minha geração

na América Latina do que fazer o filme. O acaso (ou a desculpa) era fazer o documentário. O pequeno exército louco foi meu primeiro filme, que sofrendo os problemas da época, demorou seis anos para ficar pronto. Nesses seis anos aprendi também o prazer de fazer cinema, o prazer de poder levantar tantas questões, de trabalhar com som e imagens das mais diversas maneiras, o prazer de perceber que essa combinação pode ser infinita. A partir daí, e em todos os filmes que se seguiram, o racional nunca foi o detonador. Busquei sempre trabalhar com as angústias que sentia e que me cercavam. Foi assim que, quando fiz Que bom te ver viva, meu desejo era falar de uma experiência de mais de cinco anos de psicanálise, em que a questão da tortura foi exaustivamente trabalhada. Em nenhum momento pensei como uma socióloga, analisei como uma cientista política. Foi fruto da minha angústia. Foi assim também com Quase dois irmãos, outro filme que fala da ditadura. O desejo partiu de uma situação concreta que me era próxima: meninas

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da zona Sul que subiam o morro para dançar e acabavam envolvidas com pequenos traficantes. Nesse momento, em que o conflito entre favela e asfalto mais uma vez se revelava, lembrei da situação do muro na Ilha Grande e pensei no filme como um círculo vicioso, em que, geração após geração, não conseguíamos derrubar esse muro. E algumas vezes até o construímos. Passados alguns anos, tendo trabalhado em outros projetos que me eram caros (Maré,Olhar Estrangeiro) pensei que não iria mais fazer filmes sobre essa época. Mas algumas perdas me levaram de novo ao passado. Uma longa viagem é uma homenagem ao meu querido irmão, que perdi tão cedo. A memória que me contam fala de novo da minha geração — mas situado no presente, com os problemas contemporâneos,e surgiu também da perda de uma grande amiga. Cada um desses filmes, tão diferentes entre si, retratam não somente o passado, mas também a época em que foram feitos. Porque no meu entender eles não vieram de uma decisão racional, mas partiram das veias abertas no meu corpo por tudo que aconteceu. E num momento em que o Brasil vê a Comissão da Verdade atuando, a questão da memória tem também o sentido de resistência. Aquilo que sentimos e vivemos naquele período e que a história oficial do Brasil tenta esconder, pode ser visto em filmes e livros. Não apenas como autobiografias, mas como obras, onde o objetivo não é ser panfletário, mas dividir nossas dores e dúvidas. Acho que, num certo sentido, todos esses meus filmes fizeram isso. Dividiram com os espectadores minhas lembranças e emoções. Ajudaram para que essa época não fosse esquecida.

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DOSSIÊ MILLÔR FERNANDES Millôr e seus múltiplos estilos Renata Magdaleno

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o livro Ela é carioca (2010), Ruy Castro enche linhas e linhas com as atividades que Millôr Fernandes desempenhou ao longo da vida: escritor, cartunista, humorista, artista plástico, teatrólogo, tradutor, poeta, pensador, jornalista. Comentando por e-mail o extenso verbete, Castro ressalta que conseguiu escrever “uma visão inteiramente diferente sobre ele, como atleta e como pessoa”. Realmente, impressiona descobrir que Millôr (ainda) era um praticante de esportes e, em 1946, foi um dos criadores do frescobol, atividade tipicamente carioca, que, na época, praticava nas areias de Copacabana. Millôr era também uma figura para lá de carioca. Nasceu no Méier, em 1924, lugar que não trocaria por nenhuma cidade europeia. “Para morar, naquela época, o subúrbio era um negócio maravilhoso — o terreno baldio, o futebol na frente de casa” (MILLÔR..., 2003, p. 31), afirmou em entrevista para o Cadernos de Literatura, do Instituto Moreira Salles (IMS). Depois de 1954, virou uma marca de Ipanema, lugar que escolheu para morar e montar o seu escritório. A vizinhança do bairro cansava de vê-lo em suas caminhadas diárias e era na região também que ele reunia os amigos para longos bate-papos. Mas a passagem do subúrbio para Ipanema foi um caminho longo. O chargista tinha perdido os pais muito cedo e passou parte da infância morando na casa de parentes. Aos 14 anos, em 1938, com a ajuda de um dos tios ele entrou como contínuo em O Cruzeiro, mas, como a estrutura da revista era enxuta, acabou desempenhando diversas funções. Pouco a pouco, galgou posições, passou a trabalhar no arquivo e, em 1939, foi chamado para preencher algumas páginas de A Cigarra, revista do mesmo grupo de O Cruzeiro. Millôr criou para o espaço

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uma seção, “Poste-Escrito”, assinando com o pseudônimo de Emmanuel Vão Gôgo. O sucesso fez com que a atração, que era para ser temporária, se tornasse fixa e, a partir de então, Millôr se tornou uma referência no mundo do jornalismo. Ele assumiu a direção de A Cigarra e ficou à frente de uma revista de quadrinhos e outra de contos policiais. Em junho de 1964, dois meses depois do golpe militar, criou e editou a Pif-Paf, revista quinzenal que dá início à imprensa alternativa no Brasil. Sem se importar com a repressão que já começava a se instaurar no país, fez duras críticas à situação política. O jornal foi fechado por pressões do governo e teve apenas oito edições. A experiência deixou Millôr com uma dívida enorme, mas abriu as portas para que novos veículos alternativos surgissem. Em 1969, ele participou do grupo fundador de O Pasquim, semanário editado até 1991, que teve um papel importante na oposição ao regime militar e contou com a participação de nomes como Ziraldo, Sérgio Cabral, Miguel Paiva e Jaguar. Sem falar nas inúmeras colaborações nos mais diferentes veículos onde assinou colunas e publicou charges, como os jornais O Correio da Manhã, Jornal do Brasil, O Dia, O Estado de S. Paulo, Correio Braziliense, Folha de S. Paulo e as revistas Istoé e Veja. Ao longo de sua trajetória, ainda influenciou uma série de cartunistas, desenhistas, humoristas, jornalistas, pensadores. O caricaturista Cássio Loredano se lembra das primeiras vezes em que teve contato com o trabalho do mestre do desenho e do humor. Ele tinha

dez anos e precisava pedir à mãe que explicasse as charges que via em O Cruzeiro. “Em uma delas, um camarada tentava ler, cercado de mil crianças fazendo barulho e ele afirmava que Herodes tinha razão. Na época, ainda não sabia quem tinha sido Herodes e recorri à minha mãe”, diverte-se. “Eu via isso semanalmente. A obra do Millôr é uma produção muito impressionante e variada e deixa transparecer essa liberdade, que só as crianças têm e que ele nunca perdeu, de atirar para todas as direções e acertar para caramba”, comenta. Se no traço, Loredano trilhou um caminho próprio, na sua formação intelectual, Millôr teve uma influência fundamental. O desenhista recorda as conversas que ouvia na redação de O Pasquim, em 1972. A cultura de Millôr fazia com que se sentisse totalmente ignorante, mas foi um estímulo para que buscasse conhecimento. Anos depois, após muitas leituras e períodos morando no exterior, já era do mesmo grupo de amizade e passou a trocar longas conversas com Millôr. “Ele foi o mentor dessa turma toda, de gente genial como o Jaguar, Ziraldo, Henfil. Um dos representantes máximos do humorismo no pós-guerra. Um autodidata, que se fez por si só. Ele leu tudo e trouxe para o Brasil tudo o que acontecia no mundo. Aprendeu com gente como Steinberg (cartunista e ilustrador) e André François (cartunista) e ficou maior do que muitos desses europeus”, opina. Millôr costumava creditar todo o conhecimento que adquiriu ao longo da vida a uma mestra que cruzou sua trajetória na época do Ensino Fundamental. “[...] tive uma professora que

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admirei o resto da vida, Isabel Mendes, que me ensinou a gostar de estudar, ler; daí em diante eu podia me tornar autodidata.” (MILLÔR..., 2003, p. 31) contou o chargista para o Cadernos de Literatura, mas a professora foi citada ainda diversas vezes em entrevistas e depoimentos. Millôr criou toda uma carreira e uma personalidade. Primeiro, sob a assinatura de Emmanuel Vão Gôgo, pseudônimo que assinou colunas no Diário da Noite; uma seção humorística chamada Pif-Paf em O Cruzeiro, em 1945, e até o livro Tempo e contratempo. Vão Gôgo só sai de cena em 1962, quando Millôr assina a primeira coluna com seu nome em O Cruzeiro. Nome, aliás, também em parte inventado. Os pais o batizaram de Milton Fernandes, mas, no cartório onde foi registrado, quem escreveu sua certidão tinha uma caligrafia muito peculiar. A letra “t” se assemelhava de todo com um “l”, já que o traço que deveria cortá-la estava acima do “o”, como um acento e o “n” se parecia a um “r”. Quando descobriu, aos 17 anos, Millôr adorou e adotou o nome, que pegou em seguida. Ao mesmo tempo em que se estabelecia na mídia, Millôr foi desempenhando suas outras (muitas) funções. Traduziu romances e peças de teatro, entre eles A estirpe do dragão, da norte-americana Pearl S. Buck, em 1942, e a peça A fábula de Brooklin — Gente como nós, de Irwin Shaw, em 1958. Assinou uma série de roteiros para cinema, como o de O judeu, escrito em parceria com Geraldo Carneiro e Gilvan Pereira, filme dirigido por Jom Tob Azulay. Escreveu peças, como É..., feita para Fernanda Montenegro e um de seus grandes sucessos nos palcos, e musicais, como Liberdade,liberdade, escrito em

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parceria com Flávio Rangel e que teve no elenco Nara Leão, Paulo Autran e Oduvaldo Vianna Filho. Os convites de trabalho que recebia eram muitos. O compositor Sérgio Ricardo foi um dos vários artistas que firmou parceria com Millôr. Ele convidou o jornalista, no início da década de 1970, para escrever o texto de um de seus shows. A sugestão de Millôr foi costurar todo o espetáculo com uma única frase: “Todo cidadão tem o sagrado direito de torcer pelo Vasco na arquibancada do Flamengo”. Uma crítica sutil, mas que fez a censura proibir a apresentação. A parceria não saiu do papel, mas a amizade continuou. “Minhas impressões sobre ele são as mais vibrantes possíveis. Sua capacidade criativa, recheada de humor, era imbatível, porque vinha com um poder de síntese digno de um gênio. Sua tirada de humor era redonda e abrangente, com conteúdo e forma de arregaçar qualquer risada”, opina Sérgio Ricardo. Dezenas foram as exposições que realizou no Brasil e no exterior, no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, em uma série de galerias cariocas, no Museu de Caricatura de Buenos Aires. Muitos foram os livros publicados e vários os que ganharam suas ilustrações. O humor, o olhar irônico e o ponto de vista crítico, que podia ser direcionado a uma situação política ou a aspectos do dia a dia, são marcas de grande parte de seus textos e desenhos. Em 1994, lançou Millôr definitivo – A bíblia do caos, com mais de cinco mil frases para fazer rir e

pensar. Entre elas, dicas para os políticos: “Repito um velho conselho, cada vez mais válido, sobretudo pro Congresso: Quando alguém gritar ‘Pega ladrão’, finge que não é com você” (BÍBLIA..., 2010). Além de muitas reflexões sobre a vida: “A infância não, a infância dura pouco. A juventude não, a juventude é passageira. A velhice sim. Quando um cara fica velho é pro resto da vida. E cada dia fica mais velho” (BÍBLIA..., 2010). Cada produção revelava uma mente para lá de criativa. Em O livro branco do humor, por exemplo, publicado em 1975, há uma brincadeira bem-humorada com as palavras e o próprio espaço das páginas. Cada folha em branco recebe uma frase como moldura, escrita em um idioma diferente em cada lateral, como “A vida depois dos sessenta”, “O dia de São Nunca na folhinha”, ou “Branca de Neve sem os sete anões”. A resposta para cada uma dessas ideias jogadas no papel é o próprio espaço em branco no miolo da página. Millôr faleceu no dia 27 de março de 2012, aos 88 anos, em sua casa em Ipanema, depois de uma parada cardíaca. Para muitos amigos e pessoas que conviveram com esse artista múltiplo, ficou a sensação de perda de um patrimônio nacional. “Acho que o Brasil desperdiçou muito esse homem. Ele tinha muito o que ensinar, estava plantado no mundo, à frente de seu tempo (já usava, por exemplo, computador em 1986, para escrever e trabalhar). Tinha uma maneira própria de ser filósofo. Era o Nelson Rodrigues da caricatura. As pessoas têm medo de quem fala a

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verdade na cara e ele descortinava o Brasil”, opina a cantora, biógrafa e pesquisadora Stella Caymmi, neta de Dorival Caymmi e que se tornou amiga do humorista depois de entrevistá-lo, na época em que escreveu a biografia do avô, lançada em 2001.

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Millôr foi uma das primeiras personalidades que Caymmi conheceu quando chegou ao Rio de Janeiro. O compositor deu de cara com o humorista quando fez uma visita na redação da revista O Cruzeiro. Os dois nunca mais se esqueceram desse momento e cultivaram um afeto mútuo, mesmo que a vida tenha feito a dupla percorrer caminhos diferentes. Histórias de amizades célebres estão aos montes na trajetória do chargista. “O Rio não seria o Rio sem esses lugares ativos de inteligência, como era o escritório de Millôr. Ele era amigo do Paulo Francis e de toda uma turma incrível. Todos eles iam lá. Era um líder nato, sem querer ser líder de coisa nenhuma. Mais do que o que ele escreveu, ainda que tenha sido fantástico, foi importante o sopro de liberdade que deu. Era uma personalidade livre. Incrível”, afirma Stella, lembrando que todas as vezes que entrevistou Millôr percebia que ele trabalhava se divertindo. Em 1998, por exemplo, ela o entrevistou para a revista República e, na época, a equipe da redação pediu que ele fizesse um autorretrato para ilustrar a capa. “Quando a revista foi publicada, passei por uma banca de jornais e vi que o jornaleiro tinha pendurado dois exemplares, um em pé e outro de cabeça para baixo. E, quando vi, quase caí para trás, a caricatura invertida era o desenho de um pênis. Ninguém tinha se dado conta disso. Morri de rir”, lembra. Em 2013, a família de Millôr cedeu por dez anos todo o acervo do cartunista que estava guardado em sua cobertura-estúdio, mais de sete mil itens, para o Instituto Moreira

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Salles, com a exigência de que permanecesse no Rio de Janeiro. Cássio Loredano está fazendo a curadoria e catalogação do material, que deve se estender por todo o ano de 2014. Em 2015, a instituição prevê a organização de uma exposição com o acervo do humorista e a publicação de um livro. As múltiplas facetas de Millôr serão apresentadas de forma reunida para o público. Enquanto isso, o site Millôr Online, inaugurado em 2000, conta com grande parte da obra do artista, que também gostava de se classificar como um escritor sem estilo. Referências BÍBLIA do caos: novo evangelho. In: MILLÔR online. São Paulo: UOL, 2010. Disponível em: <www2.uol.com. br/millor/aberto/biblia/007.htm>. Acesso em: 12 fev. 2014. CASTRO, Ruy. Ela é carioca: uma enciclopédia de Ipanema. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.

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CADERNOS DE LITERATURA BRASILEIRA. São Paulo: Instituto Moreira Salles, 1996-2011. Disponível em:<ims.uol. com.br/Cadernos_de_Literatura_ Brasileira/D135>. Acesso em: 12 fev. 2014. FERNANDES, Millôr. O livro branco do humor. [S.l.: s.n., 2010?]. Disponível em: <www2.uol.com.br/ millor/livrobranco/pagina.htm>. Acesso em: 12 fev. 2014. FERNANDES, Millôr. O saite Millôr online, São Paulo, ano 13, n. 656, maio 2013. Disponível em: <www2. uol.com.br/millor/index.htm>. Acesso em: 12 fev. 2014. MILLÔR Fernandes. Cadernos de Literatura Brasileira, São Paulo, n. 15, jul. 2003. Disponível em: <ims.uol.com.br/ Millor_Fernandes/D678>. Acesso em: 12 fev. 2014.

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R(exist)IR é preciso Breno Serafini

“O humorista nunca atira para matar” (Millôr Fernandes)

U

ma das teorias do riso refere-se a um guerreiro atingido por uma lança no diafragma, que riu por três dias antes de morrer. Outras reportam a uma certa erva da Sardenha, que faz as pessoas rirem sem parar, até a morte, daí advindo o termo sardônico, para expressar um tipo de humor muito particular. Além disso, como bem Umberto Eco formulou em O nome da rosa, a partir da hipotética perda do segundo livro de Aristóteles — referente à comédia —, esta, de uma forma ou de outra, sempre serviu para questionar os micro e macropoderosos de plantão, e, talvez por isso mesmo, sempre trouxe embutida em si algum risco, quando não risco de vida. E nada menos do que a obra (e vida) de Milton Viola Fernandes, vulgo Millôr, para exemplificar isso. A transformação de um em outro foi um longo processo, que incluiu o anagrama Notlim e chegou ao mil vezes Millôr atual. Nascido no Rio de Janeiro, em 16 de agosto de 1923 — e tendo como data oficial de nascimento o dia 27 de maio de 1924 —, o Guru do Meyer veio a assumir o novo nome já na adolescência, graças à descoberta do registro impreciso do escrivão na sua certidão de nascimento, que, ao grafar o traço do ‘t’ do nome Milton, deixou-o acima da letra ‘o’, o que foi acrescido de uma incompletude da letra “n”, sugerindo um ‘r’. Isso talvez explique a verdadeira obsessão pela reescritura do nome, uma constante na obra do multiartista, que pode ser exemplificada pelo livro Um nome a zelar (FERNANDES, 2008). A esse respeito, aliás, ele mesmo reconhece a anterioridade do traço gráfico à escrita em sua obra, sendo que, particularmente nesse caso, há uma fusão das duas coisas, já que a letra passa por um processo de elaboração plástica que sugere uma não hierarquização entre grafia e ilustração, no fundo configurando a mesma coisa. Além disso, em alguns momentos de sua obra aparece a proeminência do traço artístico, de que são exemplos: a premiação na Exposição Internacional do Museu da Caricatura de Buenos Aires, juntamente com o romeno/norte-americano Saul Steinberg (em 1955); um cartaz da Anistia Internacional (em 1980); e as muitas e variadas ilustrações em que a paisagem é o Rio de Janeiro, Ipanema ao fundo. Noutros, há

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a proeminência da escrita, também ela artística, que começou com um chamado — já aos 16 anos — para preencher o espaço de quatro páginas da revista A Cigarra (a convite de Frederico Chateaubriand), por motivo de cancelamento da publicidade, com a seção Poste-Escrito, sob o pseudônimo Vão Gôgo. O sucesso dessa empreitada fez com que se tornasse seção fixa e, mais tarde (em 1945), com o mesmo pseudônimo, estreasse em O Cruzeiro a seção O Pif-Paf, ilustrada por Péricles. Além disso, participou das revistas Papagaio (1946), “[...] massacrada nas mãos dos parteiros de O Cruzeiro, a quem ela ameaçava com seu psitacismo” (FERNANDES, 1977, p. 13); publicou, em 1952, Voga (“O melhor é o que está em voga”), que “morreu de tiros pelas costas”, a mando do diretor dos Diários Associados; e, no mesmo ano, trabalhou em Comício (com Joel Silveira e Rubem Braga), fechada, depois de 20 números, segundo ele próprio, por “leucemia administrativa mas teve a redação mais alegre do jornalismo carioca, onde só uma coisa era sagrada: a hora de fechar o expediente e abrir o Haig’s” (FERNANDES, 1977, p. 13-14); e, em 1962, junto com os editores Paulo Francis e Mário Faustino, participou da nova fase da Tribuna da Imprensa, quando “batemos um verdadeiro recorde: o jornal passou da glória à sepultura em apenas cinco dias quando eu escrevi um artigo sobre... corrupção na imprensa” (FERNANDES, 1977, p. 14). Não bastasse isso, no governo Juscelino Kubitschek, considerado um dos mais liberais do país até então,

enfrentou problemas com a censura na estreia do espetáculo Um elefante no caos, por causa do título original — Por que me ufano do meu país — e só conseguiu produzir dois dos seus programas televisivos da série 13 lições de um ignorante, por ter lido a notícia de que a primeira-dama, depois de seis meses em férias na Europa, recebeu a Ordem do Mérito do Trabalho. A tentativa de convencer o censor de que leria sem qualquer entonação foi em vão. Já em 1963, depois de 25 anos em O Cruzeiro, foi demitido sumariamente, por pressão da Igreja, porque ia ser publicado na revista um caderno especial, dez páginas, colorido, de sua autoria — A verdadeira história do paraíso,considerada matéria insultuosa às convicções religiosas do povo brasileiro. Foi salvo do desemprego por colaborar com o jornal português Diário Popular, de Lisboa, o que se sucedeu por dez anos. Pressões à parte, em 1964, já consagrado em sua atuação multimídia, que incluía o jornalismo, a tradução, o roteiro cinematográfico, a ilustração, o texto dramático, a poesia, o humor etc., ajudado por Jaguar, Claudius, Ziraldo e Fortuna, dentre outros, lançou a revista quinzenal Pif-Paf, que durou somente oito números — coagida pela falta de anúncios, considerada a precursora da imprensa alternativa no Brasil. Em 1968, convidado por Mino Carta, passou a colaborar na revista Veja, que queria abrir espaço no Rio de Janeiro, em longeva e frutífera relação profissional com a editora Abril, que viria a durar 14 anos — até dezembro de 1982 (primeira fase). Nela,

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inaugurou a seção Supermercado Millôr (Veja, n. 13, dez./68, p. 42 e 43). A apresentação do novo colaborador, assinada pelo próprio Victor Civita, vale a citação: [...] escreveu três peças de teatro (entre elas Mulher em três atos, Liberdade, liberdade, Um elefante no caos, Do tamanho de um defunto, vários livros (Tempo e contratempo, Lições de um ignorante, Fábulas fabulosas, Papaverus Millôr, Hai-Kais) e shows para a televisão. Mais: editou revistas por conta própria, traduzia Shakespeare e Molière, fez cenografia e letreiros de cinema — e ainda teve tempo para escrever uma série de roteiros cinematográficos. [...] A filosofia de trabalho de Millôr é ‘procurar, em cada gesto da vida, o elemento mais importante do espírito humano, ou seja, o senso lúdico, tá?’ (VEJA, 1968, p. 13). Acompanhava a ilustração uma foto do então jovem artista jogando frescobol, a quem é atribuída a invenção do esporte — o único que não é competitivo, como o atesta o painel ilustrado por ele na Av. Nossa Senhora de Copacabana, no Rio de Janeiro. Além disso, consta, na mesma carta do editor da revista, a afirmação do diretor de Arte Moderna do Rio de Janeiro à época, Aluísio de Paulo, a respeito de seu tríptico Enterro de Mondrian, adquirido pelo Museu: “Dia chegará em que os apreciadores virão a este museu para ver o ‘Entêrro’, como atualmente vão ao Prado de Madri ver Goya”(VEJA, 1968, p. 13).

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No ano seguinte, em junho de 1969, provando que gato escaldado tem medo de água fria, mas nem sempre, vaticinou as dificuldades que os fundadores de O Pasquim teriam que enfrentar: A) O establishment em geral, que, nunca tendo olhado com bons olhos a nossa atividade, agora, positivamente, não vê nela a menor graça; B) As agências de publicidade que adoram humor, desde que, naturalmente, ele seja estrangeiro, lá longe, feito pelo Jacques Tati. [...]; C) A Igreja que, depois de uma guinada de 360 graus, é extremamente liberal em tudo que seja dito por ela mesma; D) A Família, as Classes Sociais, As Pessoas de Importância, Os Quadrados, Os TFM, Os Avant-Chatos, que se fantasiam de Avant-Garde, etcetera” (FERNANDES, 1977, p. 14-15). Por essas e outras, declarava: “Se essa revista for mesmo independente não dura três meses. Se durar três meses, não é independente. Longa a vida a essa revista!” (FERNANDES, 1977, p. 15). O prognóstico, que se revelou equivocado, não o impediu de ser um ativo colaborador do coletivo ícone da imprensa ipanemense, que teve uma vida longa (e tumultuada) no seu papel preponderante de resistência à ditadura, em nome da liberdade de expressão, passando ele gradativamente a ser um dos principais componentes. Tudo sempre pela via da inteligência, do humor e do sarcasmo, num “carioquês” de vários sotaques que repercutia por todo o Brasil naqueles tempos sombrios. Serve de exemplo, já em 1970, a situação em que vários colaboradores do jornal foram presos, pelo fato de terem publicado uma paródia do quadro Independência ou morte, de Pedro Américo, em que D. Pedro aparecia dizendo a frase “Eu quero é mocotó” (http://pt.wikipedia.org/wiki/Millor_fernandes>. Acesso em: 15 dez. 2013). A pronta resposta da caserna apareceu em novembro de 1970, sendo os responsáveis pela editoria (Sérgio Cabral, Tarso de Castro, Ziraldo, Fortuna, Paulo Francis, Luiz Carlos Maciel e Flávio Rangel) presos, sem acusação formal alguma, por cerca de dois meses. Com a redação desfalcada de vários de seus principais nomes, e comprovando o já expresso em seu primeiro artigo no jornal — “nós, os humoristas temos bastante importância pra ser presos e nenhuma pra ser soltos” (FERNANDES, 1977, p. 15), Millôr e Henfil, com a ajuda de colaboradores de última hora, fizeram o possível para manter o semanário em funcionamento, que não deixou de circular uma só vez. Millôr inclusive chegou a escrever a partir do estilo de alguns dos colegas, enquanto as ausências eram justificadas aos leitores como em decorrência de uma “gripe”; inaugurava ele aí, talvez, a função de ghost-writer na literatura brasileira. Além do papel de resistência, a tenacidade do jornal era posta à prova cotidianamente, do que fora exemplo a bomba colocada na sua redação, no dia 12/3/1970, que, felizmente, não explodiu. Na edição de n. 40, são resumidas assim as vicissitudes por que passaram:

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[...] O PASQUIM já está respirando bem. Tentaram asfixiá-lo, tirando-lhe a distribuição, desmoralizá-lo espalhando que nosso redator-chefe não era bicha, desintegrá-lo com uma bomba de fabricação doméstica — a nós, que somos todos tecnologia! — enquadrá-lo através de leis de exceção e esmagá-lo através da liberdade de imprensa — o mais forte tem todo o direito de imprensar o mais fraco (FERNANDES, 1977, p. 58). Mas a fase mais combativa do jornal é considerada por muitos exatamente quando Millôr assumiu a sua direção, no período de 12/9/1972 a 29/3/1975. Na época, era cada vez mais comum os artigos serem cortados pela censura e substituídos por charges de Ziraldo, quadrinhos do Henfil ou crônicas do Ivan Lessa. A censura prévia manteve-se até 1975, quando o semanário foi dispensado de submeter seu material à “análise” dos censores. Mas a liberação coincidiu exatamente com a edição de n. 300, que, apesar da dispensa da tutela, acabou mesmo assim sendo apreendida, por ordem do ministro da Justiça, Armando Falcão. Millôr defendeu, então, que a resposta à arbitrariedade fosse a edição seguinte inteiramente dedicada a satirizar o ministro, mas, sem conseguir convencer o grupo, resolveu deixar o jornal. Não seria o primeiro conflito com os colegas, tendo inclusive sido censurado ainda no período inicial da publicação, antes da vigência da censura oficial, pela própria direção, por seu artigo nominado “Eu me rendo...”, o que gerou a seguinte moral do autor: “liberalidade tem hora” (FERNANDES, 1977, p. 186). E no próprio n. 300, a voz de Millôr era profética, no editorial intitulado Sem censura: Agora o Pasquim passa a circular sem censura. Mas sem censura não quer dizer com liberdade. Pois a ordem de liberação, como a ordem de repressão, não partiu de nenhuma fonte identificável. Nem da Presidência da República, nem do Ministério da Justiça, nem mesmo de um alto escalão da polícia. Veio, como tudo, hoje, da voz menor de um burocrata. De modo que — não nos enganamos! — assim como a ordem veio, pode ser negada amanhã de manhã e o jornal apreendido no momento em que você lê este artigo! [...] Mas continuaremos a trabalhar com liberdade interior, que é nossa e nunca nos tiraram, e com o medo, que é humano (FERNANDES, 1977, p.185).

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Por atitudes como essa, num momento de rara maledicência, seu colega de O Pasquim, Cláudio Melo e Souza, saiu-se com essa: “O Millôr acha que ele é o inventor da liberdade de imprensa” (FERNANDES, 1977, p. 13). Inventor ou não, essa foi uma das suas obsessões, tendo inclusive escrito a orelha de uma edição brasileira do livro Areopagítica, de John Milton, verdadeiro libelo pela liberdade de imprensa, apresentado ao Parlamento inglês, em 1644. Nela, expõe o indispensável Decálogo Milloriano: 1 Só existe um modo de ser livre: ser o opressor. 2 O escravo quase sempre é colaborador de sua escravidão. 3 A Constituição, que institui que todo homem tem direito à liberdade, não conhece o homem-padrão. Ele tem que ser obrigado à liberdade. 4 A liberdade absoluta só existe em momentos-limite, quando não se tem mais nada a perder. 5 A satisfação de nosso ego (liberdade) só é alcançada em detrimento de algum outro (ou de muitos outros) ego. Portanto a liberdade mesmo utópica só poderá ser a média da satisfação de todos os egos. Uma insatisfação. Uma mediocridade. 6 Deve-se exigir toda liberdade dos que estão acima. E ser leniente na exigência de contrapartida dos que estão abaixo. Mas o contrário é mais factível. 7 O carcereiro não pode vigiar o prisioneiro o tempo todo. O encarcerado pode fugir a qualquer descuido. Donde o prisioneiro ser (filosoficamente) mais livre do que o carcereiro. 8 As prisões mais sujas, todos sabem, são as mais livres. 9 Ninguém pode nos dar liberdade. Mas qualquer um pode tirar, a começar pelos pais, trazendo-nos ao mundo em condições inadequadas. 10 Com liberdade total o mais forte domina o mais fraco em nome de sua liberdade, o mais inteligente espezinha o mais ignorante em nome de sua inteligência, o mais belo seduz mais em detrimento do fisicamente destituído. Franklin, ao fazer o lema da Revolução Francesa, Liberdade, Igualdade e Fraternidade, usou o elemento conciliador e humanístico Fraternidade para sugerir um equilíbrio impossível no paradoxo Liberdade x Igualdade (MILLÔR..., 1999, orelha). Já que o verdadeiro guerreiro se conhece é na hora da batalha, sabia Millôr que, passada a tirania, pode subsistir o arbítrio — motivo suficiente para estar sempre alerta mesmo em tempo ditos democráticos. Assim, não se furtou de comprar brigas, preservando seu espaço criativo. Em 1982, por exemplo, saiu da revista Veja, depois de uma longa colaboração, por ter sido admoestado a não fazer campanha para Brizola, na primeira eleição pós-ditadura.

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Depois disso, atuou nas revistas Istoé e Istoé/Senhor, assim como no Jornal do Brasil e em várias publicações do centro do país. Em 2000, criou o site Millôr Online, consequência de ter sido um dos primeiros a utilizar o computador como um recurso de criação, desde 1986, abandonando a máquina de escrever — um pioneirismo à época. Polemista por natureza, enfureceu as feministas, dentre outras críticas, ao declarar, no embalo de Garota de Ipanema, de Vinícius e Tom, que o “o melhor movimento feminino ainda é o dos quadris”. A partir de 2004, voltou à Veja (segunda fase), relação que durou até 2009, quando questionou, na Justiça, o uso das suas páginas (primeira fase) na versão eletrônica da revista patrocinada pelo Bradesco, no que obteve ganho de causa. Ainda entre amigos, polemizou com seu colega Ziraldo, que havia requisitado indenização pelo sofrido na ditadura, já que, segundo ele, “desconfio de todo idealista que lucra com seus ideais”(ISTOÉ..., 1989, p. 24). Polemizou ainda com o deputado Aldo Rebelo, sendo processado por ele, já que criticou o projeto de lei do comunista, que propunha a regulação da gramática, restringindo o uso de estrangeirismos. Segundo Millôr, a proposta era uma “idioletice”, ou seja, um dialeto particular. Segundo Aldo, estava sendo chamado de idiota, o que gerou a resposta de Millôr: “Estava, mas ninguém pode me condenar” (ver: <http://revistaepoca.globo.com/Epoca>. Acesso em 12 out. 2010). Ainda no campo da língua, mas mais simbólico de todos, talvez tenha sido o acontecido por ocasião da reforma ortográfica na língua portuguesa, quando Millôr mostrouse contrariado a aceitar as novas regras. O editor da revista O Cruzeiro, tentando lhe facilitar as coisas, afirmou que teria liberdade total no seu espaço, obtendo a seguinte resposta do escritor: “Você me perdoe, mas você não pode me dar toda liberdade — você apenas pode tirá-la.” (ver: <estadão.com.br> – 15/09/2007 Acesso em: 14 abr. 2008). A defesa ferrenha da integridade de seu espaço criativo foi, desde sempre, a sua maior batalha — ou mesmo a própria guerra. Diferentemente do riso fácil, da chalaça, Millôr conseguiu, através do humor e da ironia, testemunhar o seu tempo resguardado pela (auto) crítica mordaz. No conjunto de sua obra, encontramos uma desconstrução proposital do discurso sério, escudado pela crítica do riso, expondo a ambivalência não só da cultura brasileira, mas do próprio homem universal, em que não há a absolutização de nenhum ponto de vista, de nenhum polo da vida e da ideia. Segundo ele, “humor é você pensar de novo sobre cada coisa o tempo todo. É você desconfiar de qualquer ideia que tenha mais de seis meses de vigência”. Além disso, no seu caso, radicalmente, o que é conteúdo é forma: mais do que nenhum escritor/cronista brasileiro de seu tempo, Millôr instaurou a primazia absoluta da fragmentação em seu discurso, compondo uma linguagem mosaica que pressupõe um leitor disposto a se embrenhar no caleidoscópio da sua narrativa, já que, nas amarras dessa escritura estilhaçada, não há indicação de fio a ser puxado para desfazer a verdadeira colcha de retalhos (patchwork) discursiva. Nesse processo, sabe que entre a graça e a desgraça há um limiar mínimo, que entre o trágico e o cômico, tudo pode ser uma questão de ponto de vista.

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Então, nesses casos, talvez o melhor caminho seja mesmo o do ceticismo, ou melhor, saber que às vezes o cômico pode ser uma defesa contra o trágico. No fundo, ele percebe que “o homem [em seus 15 minutos de fama] é um ator que gagueja na sua única fala, desaparece e nunca mais é ouvido” (Ato V, Capítulo 5), na clássica frase de Shakespeare, em Macbeth. Conforme lida, podemos considerá-la trágica ou cômica — eis o fundamento do espírito humano, seja o leitor cético ou ascético. Apontado por muitos como um dos maiores pensadores brasileiros e um dos de maior inserção na vida nacional, Millôr Fernandes filia-se a uma tradição da literatura brasileira que despreza o oficial, um frasista que perde o amigo, mas não a ética, que sabe que a liberdade individual se sobrepõe a qualquer ideologia ou governo e que faz do humor “a quintessência da seriedade”, construindo com ele uma crítica visceral ao homem de seu tempo. ************ Poeminha com saudade de mim mesmo Quando eu morrer Vão lamentar minha ausência Bagatela Pra compensar o presente Em que ninguém dá por ela (FERNANDES,1984). ************ Referências ÉPOCA. Rio de Janeiro: Globo, [19--]-. Disponível em : <http://revistaepoca. globo.com/Epoca/>. Acesso em: 12 out. 2010. FERNANDES, Millôr. Millôr Fernandes: depoimento [set. 2007]. Entrevistador: Ubiratan Brasil. Estado de S. Paulo, São Paulo, 15 set. 2007. Disponível em: <http://www2.uol.com.br/millor/aberto/millorimprensa/013.htm>. Acesso em: 14 abr. 2008. FERNANDES, Millôr. Millôr no Pasquim. São Paulo: Círculo do Livro, 1977. FERNANDES, Millôr. Um nome a zelar. Rio de Janeiro: Desiderata, 2008. FERNANDES, Millôr. Poemas. São Paulo: L&PM, 1984. ISTOÉ: SENHOR. São Paulo: Ed. Três, n. 1047, p. 24, 1989. MILLÔR Fernandes. In: MILTON, John. Areopagítica: discurso pela liberdade de imprensa ao parlamento da Inglaterra. Rio de Janeiro: Topbooks, 1999. VEJA. São Paulo: Abril, n.

13, p. 42 e 43, 1968. [Seção] Supermercado Millôr.

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ENSAIO O golpe de 64 e a cultura: frustração, resistência e consciência do estrago Roberto Bozzetti

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uem quer que estude, ainda que da maneira mais superficial, a história e as histórias das manifestações artísticas do século 20, se depara logo, na entrada do século, com as agitadas provocações e manifestos daquilo que hoje, 100 anos depois, é chamado vanguardas históricas: futurismo, cubismo, dadaísmo. Além destes, muitos outros momentos e movimentos — alguns deles — tinham de seu pouco mais que um manifesto, em torno de cujas ideias agregavam-se novos artistas, muitas vezes muito fortuitamente. Essas agitações traziam uma marca ainda hoje imediatamente reconhecível: eram promovidas por uma constelação de artistas, sobretudo jovens que congregavam, articulavam, faziam dialogar diversas formas de manifestações artísticas, da pintura à dança, passando pela literatura, a escultura, a fotografia, o teatro, a música e o então nascente cinema. O que tudo isso desencadeou foi simplesmente a maior parte do que veio a acontecer de importante na arte do século 20. Entre nós, aqui no Brasil, a Semana de Arte Moderna e seus desdobramentos imediatos ao longo da década de 1920 dão testemunho suficiente. Assim, se saltarmos no tempo e dermos uma olhada na primeira metade da década de 1960 brasileira (mas não apenas: basta lembrar os artistas em torno da New York School ou, um pouco mais tarde, na elétrica Swinging London), ressalvando-se, claro, as diferentes dimensões de alcance em escala “planetária”, vemos também o quanto jovens inquietos e inventivos artisticamente agrupavam-se em torno de discussões estéticas que em boa medida faziam reviver à sua maneira aquele espírito do tempo das vanguardas do começo do século: dialogavam os artistas, dialogavam as artes: a música popular, o teatro, a literatura, a poesia e o promissor cinema inflamavam os ânimos a partir de questões estéticas que viriam a desembocar nas propostas apaixonadas de um projeto de país, em incendiárias colocações e provocações ideológicas: as polêmicas internas ao grupo — a exemplo igualmente do que ocorrera nas vanguardas históricas e acabara por ocorrer no próprio modernismo brasileiro ao se fechar a década de 1920 — costumavam contrapor, grosso modo, o par concretismo-bossa nova (os “formalistas”, no rótulo de combate da época) ao que se poderia designar pelo nome genérico “cepecismo” (os “conteudistas” ou, a depender da temperatura dos debates, “zhdanovistas” ou até mesmo “stalinistas”). Não foi por acaso que muito permanecesse semelhante — não igual — ao

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chão do embate “projeto estético/projeto ideológico” de que fala Lafetá (1974) em seu hoje clássico estudo sobre o modernismo de 1930: agora, quer dizer, nos anos 1960, modificado mas não muito, parecia ainda vigorar o (falso?) dilema: “acertar o relógio Império”, na expressão oswaldiana, da cultura brasileira, procedendo a uma atualização de formas, ou, prioritariamente, lidar mais diretamente com a “consciência aguda de país subdesenvolvido”, no dizer de Antonio Candido (1987). Parecia mesmo que as hostes mais aguerridas do debate pendiam apaixonadamente para a segunda opção. Não se deve perder de vista que o exemplo próximo da revolução cubana, em 1959, fomentava muito o ânimo que se queria revolucionário na superação dos entraves do subdesenvolvimento endêmico ao sul do Rio Grande. O que não parecia estar no horizonte de expectativas de ninguém era que o tradicional conservadorismo também endêmico das nossas elites chegasse ao golpe por meio das forças armadas, contando com o decisivo apoio obscurantista das forças mais reacionárias e mais poderosas da mídia. Marcos Napolitano delineia com exatidão o quadro que se desenhou: O golpe militar de 1º de abril de 1964 causou uma enorme perplexidade na esquerda e nos nacionalistas, que, de uma maneira geral, acreditavam na irreversibilidade histórica das reformas propostas pelo governo João Goulart. A queda rápida e sem resistência do governo eleito passou a ser um grande enigma político a ser decifrado. [...] O regime militar implantado em abril de 1964, ao mesmo tempo que dissolvia as organizações populares e perseguia parlamentares, ativistas políticos e sindicalistas, paradoxalmente, não se preocupou de imediato com os artistas e intelectuais. Como é sabido, entre 1964 e 1968 havia uma relativa liberdade de criação e expressão, mesmo sob a vigilância do regime autoritário (NAPOLITANO, 2001, p. 57). Se a mobilização de que falamos vinha de antes e se a repressão não se voltou de imediato para os setores culturais, nada mais natural do que se mantivessem mobilizados os artistas, agora em embates com as novas condições adversas para as atividades democráticas e os projetos utópicos. O terrível era o gosto da frustração, ainda que apenas do devaneio abortado. Não apenas porque até a palavra “revolução” deixara a miragem socialista construída a partir da experiência de Cuba para ser expropriada e ter seu emprego malbaratado no novo quadro, tenebroso: afinal, na terminologia oficial da ditadura, o golpe era pomposamente chamado “Revolução de 64”. Na verdade a frustração era mais funda, uma vez que interrompia a brevíssima experiência democrática que a sociedade brasileira vivera do pós-guerra até aquele momento – e talvez não seja demais repetir o que no entanto tornou-se mesmo um clichê ao se falar do período, com os “anos JK” em seu centro: a euforia criada pela expectativa de que finalmente o país “daria certo” em seu destino modernizante: indústria automotiva, uma arte moderna de

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exportação (em especial a música popular, com a bossa nova), uma nova capital em arquitetura “futurista”, o cinema recebendo prêmios internacionais, conquistas esportivas de vulto no futebol e no tênis, além do horizonte de conquistas sociais vislumbrado no confuso período Jânio-Jango, tudo portava um quê de fatalidade histórica, ironicamente (vendo de hoje) progressista. Porém, não ultrapassaremos esse clichê de “desfile de conquistas modernas” se não atentarmos pelo menos para o fato de que havia efetivamente no Brasil, desde a Era Vargas, o comprometimento com um ensino público de qualidade. É preciso ter isso em mente para que não se pense que a empolgação com o projeto de país nascia, como a flor que a poesia de João Cabral recusa, “do ar, no ar,/ como as brisas”. Ainda que continuasse a ser minoritária a parcela que conseguia chegar ao Ensino Superior, os que atingiam esse patamar vinham com uma substância que, de um ponto de vista de hoje, certamente seria espantosa em termos de formação geral. E, na década de 1960, quando o governo Jango propõe as reformas de base, no bojo das quais vinha também uma reforma educacional de ampliação da rede pública, o que se buscava era consolidar um projeto político humanista, — em terminologia de hoje: de ampla inclusão. Para citar os dois exemplos mais eloquentes fora do eixo Rio-São Paulo, que vinham da década anterior: a experiência de alfabetização de Paulo Freire no governo Miguel Arraes em Pernambuco; a esplêndida gestão de Edgar Santos na Universidade Federal da Bahia. Se é certo que a reforma educacional de Jango era oriunda das elites, tendo sido mesmo formulada como uma espécie de alterna-

tiva “reformista” aos ecos da revolução cubana de anos antes, seu escopo era sem dúvida alguma muito mais generoso do que o que se seguiria no período posterior ao golpe. Darcy Ribeiro, por exemplo, dirá, ao comentar a criação do Mobral (Movimento Brasileiro de Alfabetização) no período Médici em 1970, depois de defini-lo como campanha despolitizadora na educação: “A ditadura reduz drasticamente os gastos com a educação, que de 11,2% do orçamento da União em 1962, caem para 5,4%.” (RIBEIRO, 1986, v. 2051). Ainda que um tanto aleatoriamente jogados aqui, apenas para se dar uma pálida ideia do chão onde então pisava a sociedade brasileira, esses dados ajudam a entender por que foi praticamente imediata e vigorosa a reação ao golpe em 1964 dos setores envolvidos com cultura. Eram predominantemente jovens os artistas que, oriundos sobretudo dos CPCs (Centros Populares de Cultura) da UNE, agora extintos, partiram para a montagem de peças e de musicais nos quais a intenção de resistir aos desmandos do conservadorismo era flagrante: mas se não eram mais montagens em portões de fábrica e comunidades pobres, como no período pré-golpe, em torno desses grupos, reestruturados a partir dos despojos da militância que se extinguira, a resistência punha-se a falar agora para as classes médias urbanas nos espaços mais (ou menos) convencionais das salas de teatro. Permanecia ainda de alguma forma a fé em uma aliança de classes, na qual o vetor popular definisse o nacional. Nesse sentido, em dezembro de 1964, monta-se o emblemático espetáculo Opinião, que reúne num típico tríptico social aquilo que

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representaria a produção musical do campesinato (João do Vale), do par dilemático malandragem-proletariado (Zé Kéti) e das classes médias urbanas (Nara Leão e, num segundo momento, Maria Bethânia). Nos meses seguintes, um tipo de espetáculo assemelhado, com base em pouco mais do que sketches a seguirem o fio condutor de uma trilha musical altamente ideologizada, se faria representar também em Arena canta Zumbi, de Gianfrancesco Guarnieri, que apresentava o jovem estreante Edu Lobo. Algo parecido ocorria em Liberdade, liberdade (Millôr Fernandes e Flavio Rangel), enquanto em Salvador Arena canta Bahia promovia a estreia do que mais tarde será o grupo tropicalista. E, em clave um tanto diferente, Hermínio Bello de Carvalho idealizava e montava Rosa de ouro, na zona Sul do Rio, promovendo a estreia do jovem Paulinho da Viola e da sexagenária Clementina de Jesus. A diferença aludida estava em que aqui se apostava num popular comprometido não exatamente com os ideais do CPC, mas sim no que era assentado no chão da tradição popular propriamente dita, ela mesma portadora de um viés de resistência ante as elites (não necessariamente impregnada do conteúdo politizado que a proposta cepecista propugnava). E convém ainda não esquecer a montagem de Morte e vida severina, “auto de Natal pernambucano” de João Cabral, — que de início não a autorizara —, estreia do Chico Buarque compositor, montagem que inclusive abocanharia, em 1965, um prêmio na França. Em torno da concepção, montagem e atuação desses acontecimentos sucediam-se os debates. Estavam aí presentes muitos dos novos nomes que iriam se firmar na cena cultural nos anos subsequentes. E todos traziam numa das mãos o élan vital e na outra o travo amargo da experiência violentada ou pelo menos podada. Ainda que guardando uma diferença de perspectiva (e prospectiva) importante, que naquele momento não faria ainda sentir seus efeitos: a diferença de gerações. Sobre isso, Antonio Risério é preciso: Mas um matiz geracional deve ser realçado. Esta é, aliás, uma das muitas diferenças existentes entre, digamos, a geração do Caetano Veloso e a geração do Paulo Francis. O golpe de 64 surpreendeu Caetano com um gesto no ar, momento mesmo em que ele se preparava para avançar sua aposta. Francis, àquela altura, já tinha empatado o que havia em caixa (RISÉRIO, 1982, p. 258). Na verdade essas diferenças só passariam a se tornar problemáticas num segundo momento, a partir da eclosão do tropicalismo no final da década. E seriam ainda mais aguçadas quando entre Caetano, então recém-chegado do exílio com Gilberto Gil, e a “patota” de O Pasquim (o decano Millôr Fernandes, mais Jaguar, Ziraldo, Fortuna, Claudius, Ivan Lessa, companheiros de geração e amizade do citado Paulo Francis, além de Henfil e outros mais jovens) as diferenças começavam a tornar duro o convívio: mostrava-se difícil uma sintonia duradoura entre o tipo de neoexistencialismo contracultural a que chegara a aventura dos tropicalistas e o esquerdismo mais tradicional da intelectualidade boêmia carioca, ainda que — ou por isso mesmo — banhado em viés de humor corrosivo. Mas aí já era 1972, possivelmente uma outra etapa, com o tropicalismo de permeio nessa história.

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No imediato pós-golpe, diferenças de projetos e trajetos cumpridos (as “gerações” a que se refere Risério remetem a isso, claro, mais do que a diferenças meramente etárias) não avultavam. As alianças entre essas diferenças é que eram um fato político da maior importância, por sua riqueza. Nesse sentido, intelectuais já entrados em anos mantiveram sólidas atividades que contrariavam frontalmente quaisquer expectativas conservadoras baseadas em critérios meramente cronológicos. Já que falamos dos cartunistas-intelectuais de O Pasquim, convém lembrar que o mesmo Millôr, em atividade na imprensa diária desde os anos 1940, ainda em 1964 começara agrupando-os em torno do Pif-Paf, semanário pioneiro de curta duração. Em outra frente de atuação, é fundamental citar de Ênio Silveira, à frente da espantosa produtividade de sua editora Civilização Brasileira, a Franklin de Oliveira, passando por Nelson Werneck Sodré, Jorge Zahar, Mário Pedrosa, Otto Maria Carpeaux e outros luminares. E destacar na poesia a figura muito influente de Vinicius de Moraes. Vinicius, em verdade, desde meados dos anos 1950, com Orfeu negro, e depois com a bossa nova, iniciara o irreversível trânsito que o levara da poesia escrita para a canção popular. Do Itamaraty para as boates. Mas sua produção anterior ao golpe não se circunscrevera às ousadas aventuras formais no coloquialismo despolitizado da bossa nova castiça, com Tom Jobim. Em 1963 a Marcha da quarta-feira de cinzas, com Carlinhos Lyra, antecipava profética e funestamente o que viria, ainda que o viés tradicionalmente melancólico do gênero marcha-rancho tematizasse mesmo a volta ao

princípio de realidade após a folia, tema, de resto, rotineiro nas canções de carnaval. No mesmo ano, O operário em construção, poema publicado em Violão de rua, série de livros de poesia engajada comandada pelo poeta Moacyr Félix na editora de Ênio Silveira, prevista para lançar 15 volumes dos quais só três chegaram de fato às livrarias, encontrava um tom sóbrio e emocionado de verso popular banhado em catolicismo progressista — próximo, aliás, ao de Morte e vida severina, de João Cabral. Possivelmente, o mais estimulante em Vinicius, e o que sem dúvida responde pelo magnetismo que exerceu, é o fato de que, para os jovens com os quais convivia, estimulava e estabelecia inúmeros nexos de companheirismo e parcerias musicais, sua figura quase mítica (sem falar de sua “aura femeeira”) encarnava muito do que esses jovens haviam aprendido nos anos de sua formação sobre o Brasil, a partir das concepções e obras modernistas. Aqui, a questão de vulto a se considerar: as obras que se criaram sob o signo da resistência ao golpe eram na verdade bastante tributárias do que tinha sido a aventura modernista que se iniciara 40 anos antes. Na década de 1960, o modernismo nada tinha de museu, até mesmo porque sequer vinha de muito tempo sua inclusão nos currículos e livros escolares. E de certa forma Vinicius, por mais que fosse cada vez mais visto com reservas por seus pares letrados (ou por isso mesmo), Vinicius, o “poetinha vagabundo”, respondia por essa presença viva. A presença viva de um legado então recém-canonizado e que o próprio mundo acadêmico apenas começava a avaliar com mais detalhe:

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os jovens artistas em cena tinham se alimentado em seus anos de formação e tinham um convívio mais ou menos cotidiano (e isso muito se deve à boa política de educação pública, como assinalado antes) com os modernistas, de Mário a João Cabral, de Graciliano a Jorge Amado. Talvez um interlocutor mais previsível fosse o ainda mais próximo, geracionalmente falando, João Cabral de Melo Neto. Ou Thiago de Mello, expoente da Geração 45, que se bandeara para a poesia panfletária; ou Moacyr Felix, aglutinador de poetas, novos e “velhos”. Mas o trânsito da “alta” para a “baixa” cultura tinha sido feito por Vinicius, e esse movimento parece ter sido muito significativo na feição que o século 20 tomou entre nós, se examinado do âmbito de uma dinâmica de interações de seus agentes produtores de bens simbólicos. O nosso modernismo potenciava a jovem resistência dos artistas e Vinicius era esse elo vivo e próximo. E atuante. Não que se queira superdimensionar a importância de Vinicius nesse quadro, como se uma suposta “influência” sua fosse detectável em tudo que de importante se produziu no período. Não é disso que se trata. Trata-se apenas de apontar para o fato de que em Vinicius temos a figura emblemática de uma continuidade do projeto modernista, aquilo que neste é, na formulação de Canclini, o projeto democratizador da modernidade, o qual tem como esteio a democratização da produção artística. Se é certo que hoje, quase cem anos depois de seu início, estamos mais aptos a enxergar suas contradições e impasses (tanto quanto os da fase que aqui tratamos), no interior da história da cultura brasileira no século 20, a resistência das artes no pós-golpe atesta aqui o que Antonio Candido chamou de “causalidade interna” (CANDIDO, 1987, p. 153): já naquele momento, o projeto modernista, dialeticamente fazendo-se tradição com o não imediatismo que é próprio às manifestações artísticas, serviu de chão para a aventura estético-política de gerações bem mais novas. Em boa medida, graças, sim, a algumas décadas de sistema educacional público funcionando a contento. Para ilustrar, leia-se o que diz José Miguel Wisnik, que frequentou escola pública na Baixada Santista na década de 1960 (Wisnik nasceu em 1948): O colégio público que eu frequentava [...] era de ótima qualidade. As aulas de português, de literatura, no ginásio e no colégio, eram excelentes [...]. Vários dos professores estavam mobilizados para a vida cultural, organizavam excursões para São Paulo, onde vimos teatro, shows, concertos. Que aquela geração da música popular brasileira, dos festivais, que esses garotos de 23, 24 anos pudessem ter feito aquelas canções, que tivessem tamanho grau de intervenção sobre o país, acho que só foi possível num interregno democrático com escola pública íntegra. Há pouco tempo, numa das vezes que voltei a São Vicente, fiquei parado na frente do Instituto Martim Afonso, sentindo o tamanho do estrago (WISNIK, 2004, p. 487-488).

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A declaração está em entrevista publicada em 2004. Quarenta anos depois do golpe militar, a extensão do “estrago” se nota a olhos vistos. Ainda Wisnik, de um ponto de vista de 2004: “O garoto não tem mais ideia de que pertence a uma vida social que não se compra, mas que é um direito e dever seu” (WISNIK, 2004, p. 488). Difícil avaliar, no entanto, hoje, 50 anos após 1964, depois dos acontecimentos de junho deste 2013, o quanto esse estrago foi eficaz no sentido do “esquecimento” do caráter deletério do golpe. Anteriormente ficou dito que o trânsito da “alta” para a “baixa” cultura foi a dimensão decisiva da dinâmica das interações entre a classe artística, os intelectuais, em suma, os produtores de bens simbólicos no Brasil no período aqui enfocado. Observe-se que no paralelo de onde inicialmente partimos nestas considerações, comparando o fenômeno do intenso diálogo entre as diversas artes nas vanguardas históricas do começo do século 20 e na década de 1960 brasileira, nesta avultou a música popular, que lá estava ausente. A constatação carrega uma feição bastante óbvia e outra, que de óbvia não tem nada. A óbvia é de natureza para começo de conversa anacrônica: fenômeno de massa do século 20, a música popular (implicando autoria, não a criação dita “folclórica”, anônima) existe a partir de um suporte que se lhe foi desenvolvendo concomitantemente, quer dizer, os diversos tipos de suportes onde sons são gravados e que ensejaram a criação e o desenvolvimento da indústria fonográfica. E, claro, nesse sentido a música popular dependeu desde sempre da difusão via mídia de massa: o rádio de início, depois a TV etc. Se é certo que o mesmo valeria para o cinema, cujas primeiras manifestações estiveram presentes nas discussões e interações das vanguardas e nos anos 1960 entre nós com o impulso do Cinema Novo, é justo essa presença e a ausência da música popular no início do século que responde pela faceta menos óbvia da questão: o fenômeno “música popular” assim entendido decorre não apenas do desenvolvimento dos suportes já mencionados como também da emergência e consolidação de sonoridades não europeias no contexto das Américas: a excelência da sonoridade não europeia nos Estados Unidos, no Caribe e no Brasil é um dos fatos estéticos mais importantes da história do século 20. Entre nós, no Brasil, por diversos fatores que aqui apenas foram apontados, a música popular ganha uma relevância que impressiona, justo a partir da eclosão da bossa nova. Não à toa, Vinicius é uma figura chave nesse quadro. Assim, na nova dinâmica do campo da produção simbólica, é significativo que, também oriundo da música popular, o tropicalismo responda pelo momento chave na tensão que se criou e que acabou por tornar mais contraditória e complexa a visão de uma “resistência ao golpe” monolítica ou coesa, como teria sido até então. Parece que os projetos de linguagem mais acendradamente vanguardistas e/ou experimentais se revigoram no cenário que começa por se desenhar em fins da mesma década de 1960: os poetas concretos são os primeiros a, de sua posição em boa medida marginal, chamar a atenção de forma positiva para as propostas que vinham de Caetano & cia. Assim é que no cinema, um muito jovem Rogério Sganzerla em 1968 dá o grito baudelaireano de uma poética cinematográfica urbana radical em seu irado Bandido da luz vermelha sobre o que decreta serem as cinzas do Cinema Novo. Em declaração a Alex Viany em 1970, lê-se: “Não tenho nada com o chamado movimento do Cinema Novo, pois não gosto de seus filmes. Faço uma pequena exceção para Glauber Rocha.”1 O mesmo Glauber, por

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sinal, de fundamental importância para a embocadura dos tropicalistas, e que lançara no anterior 1967, seu Terra em transe, convulsionando de dentro o próprio movimento cinematográfico que o abrigava. Mas que não se enxerguem essas fissuras ou mesmo essa quase cisão na resistência como meramente o resultado de visões individuais conflitantes. Nem seria recomendável algo tão simples ou simplório como concluir que uma “lógica da educação de qualidade” teria sido substituída por uma aviltante “lógica de mercado”. Isso, que é de fato empiricamente constatável, seria, quando muito, tomar consequências por causas. O fato de o país — que por sinal tinha praticamente 1/3 da população de hoje quando do golpe — ter mergulhado no “estrago” de que fala Wisnik (2004), o que inclui mesmo uma espécie de “esquecimento” dos aspectos mais obscurantistas do que foi a ditadura militar (não há jovens no Sul querendo recriar a Arena?), certamente tem a ver com a persistência de estruturas arcaicas em nossa formação e em nosso imaginário, as quais, por sua vez, se integram com enorme dificuldade (quando simplesmente não se esfacelam ou desintegram-se) ao projeto modernizador em curso desde a industrialização, por sinal contemporânea do modernismo propriamente dito. No campo da produção cultural, a complexidade das relações artistas-intelectuais-Estado-empresa só fez adensar-se e, por várias vezes, ganhar estridência. Ou alguém é capaz de se tocar que em 1964 a televisão apenas engatinhava entre nós? Entrevista a Alex Viany O Jornal, 23 de janeiro de 1970. Colhida em http://www. contracampo.com.br/58/incomodosganz.htm. Contracampo – Revista de cinema . Dossiê Rogério Sganzerla, colhida em 17/12/2013. 1

Referências CANCLINI, Néstor García. Culturas híbridas: estratégias para entrar e sair da modernidade. 4. ed. São Paulo: EdUSP, 2004. CANDIDO, Antônio. A educação pela noite e outros ensaios. São Paulo: Ática, 1987. LAFETÁ, João Luiz. 1930: a crítica e o modernismo. São Paulo: Duas Cidades, 1974. MACIEL, Luiz Carlos. Geração em transe: memórias do tempo do tropicalismo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1996. NAPOLITANO, Marcos. Seguindo a canção: engajamento político e indústria cultural na MPB (1959-1969). São Paulo: Annablume: Fapesp, 2001. RIBEIRO, Darcy. Aos trancos e barrancos: como o Brasil deu no que deu. 3. ed. Rio de Janeiro: Guanabara, 1986. RIDENTI, Marcelo. Em busca do povo brasileiro: artistas da revolução, do CPC à era da TV. Rio de Janeiro: Record, 2000. RISÉRIO, Antonio. Avant-garde na Bahia. São Paulo: Instituto Lina Bo e P. M. Bardi, 1995. RISÉRIO, Antonio (Org.). Gilberto Gil: Expresso 2222. Salvador: Corrupio, 1982. VIANY, Alex Viany. O incômodo Rogério Sganzerla. Contraponto: revista do cinema, n. 58, 197, 23jan. 1970. Reprodução da entrevista publicada em O Jornal, 23 jan. 1970. Disponível em: <http://www.contracampo.com.br/58/incomodosganz.htm>. Acesso em: 17 dez. 2013. WISNIK, José Miguel. Sem receita: ensaios e canções. São Paulo: Publifolha, 2004.

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ENSAIO Novas expressões para um novo mundo Chacal

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o dia 2 de abril de 1964, com 13 anos de idade, fui à Marcha da Família com Deus pela Liberdade na Candelária. Era uma massa compacta de um milhão de pessoas. Eu, meus pais e minha irmã mais nova. Minha mãe era udenista convicta. Lacerdista doente. Meu pai, meio apolítico, era levado pelo histérico clamor da mídia contra o comunismo. Os militares tomaram o poder três dias antes. Dissolveram o congresso, perseguiram sindicatos e ligas camponesas. Prenderam e torturaram seus líderes. Apesar do fechamento do CPC (Centro Popular de Cultura) da UNE, o campo artístico ficou de certa forma intocado. E ali a resistência instalou suas trincheiras. O movimento tropicalista toma força. Glauber, Zé Celso, Caetano, Gil, Hélio Oiticica e muitos outros artistas surgem nesse cenário pós-golpe. O samba do morro se misturava à bossa nova com Nara Leão e Zé Kéti. O mundo inteiro já conectado pelos mass media entrava pela porta das ruas e das ondas eletromagnéticas. O rock, as drogas, o movimento hippie, maio de 1968, black panthers, tudo estava ao nosso alcance. E isso foi abrindo minha cabeça. Em 1967 entrei para o Colégio Estadual André Maurois, dirigido por Henriette Amado. Seu lema: “liberdade com responsabilidade”. Ali comecei a me interessar por política com o movimento estudantil. As relações humanas começaram a fazer sentido com um grupo de estudo sobre o marxismo. A isso se juntavam meus heróis da contracultura: Jimi Hendrix, Dylan, Beatles, Rolling Stones, os beats, Godard e tantos outros. As manifestações contra a guerra do Vietnã, o pacifismo de Gandhi, a filosofia oriental, a prática da macrobiótica, tudo isso ia formatando um novo modo de pensar que precisava ser expresso. Só a luta contra o regime militar não era o suficiente. Nós não queríamos só uma nova forma de poder, mas exercitar toda nossa força de ser humano. As lutas pelo amor livre, pela libertação das mulheres, dos negros, dos gays e por novos estados de consciência estavam também na ordem do dia. PRIMEIRO CADERNO DE UM ALUNO DE POESIA Até que um dia cai na minha mão esquerda um livro do Oswald de Andrade, poeta que iluminou todo o movimento tropicalista no cinema, na música, no teatro com sua antropofagia seminal. Fiquei três dias boquiaberto. Enfim o poema enxuto, engraçado, o cinepoema. A empatia foi imediata. Passei a colocar meu desassossego nas poucas linhas do poema. Era aquela maneira de escrever que eu precisava para dialogar com o mundo. Ali eu começava a buscar um novo sentido para a vida. Ao menos já sabia como expressá-lo.

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Isso foi em 1970. Em 1971, publiquei meu primeiro livro, Muito prazer. Eram 100 cópias mimeografadas. O dinheiro era curto, as editoras não ajudavam e nós queríamos ser lidos. O livro foi abençoado pela santíssima trindade do underground nacional: Waly Salomão, Torquato Neto e Hélio Oiticica. Era o que me interessava. Tímido do jeito que eu era, aquela aceitação mostrou que o caminho era aquele. Tinha conseguido sair de dentro de mim. E vinha com fome. BACKTRACK Após o AI-5, em dezembro de 1968, a ditadura recrudesceu. Fecharam o Congresso, suspenderam as garantias constitucionais. A censura começou a mutilar música, teatro, cinema, livros. Tentavam exterminar qualquer foco de oposição ao governo. A poesia, por ter um público muito pequeno, foi pouco visada. Em 1972, fui para Londres. A situação no Rio era dura, com os camburões rondando nossos calcanhares e a polícia invadindo os apartamentos por simples deduragem de porteiros e vizinhos. A delação era incentivada pelo governo e pela mídia. Fiz um livro para viajar: Preço da passagem. Agora 1.000 cópias em mimeógrafo eletrônico. O livro trazia várias micro-histórias e um personagem: Orlando Tacapau. Era uma colagem de textos, fotos, desenhos, carimbos com 32 folhas soltas dentro de um envelope. Em Londres tive minha temporada no inferno das drogas, no paraíso do rock. Vi Allen Ginsberg, lenda viva da poesia beat americana. O cara me transfigurou. Sua leitura do “Uivo” e o jeito como entoou um blues, acompanhando-se com uma pequena sanfona, reconfigurou minha noção de poesia, trazendo-a definitivamente para a voz e para o corpo. Em 1973 volto ao Rio depois de um ano na Europa com passagem por Londres, Amsterdã e Lisboa. Por aqui, a poesia marginal se fortalecia. Antonio Carlos de Brito, Cacaso, reunia em torno de si poetas e coleções. Publicava Chico Alvim, Roberto Schwartz, Zuca Sardana, Geraldo Carneiro, Luiz Olavo Fontes nas Coleções Frenesi e Vida de Artista. Depois Ana Cristina Cesar. Livros mimeografados, autofinanciados e distribuídos de mão em mão, tomavam força em todo o país. Aquele processo era altamente subversivo. Abolia o editor, o distribuidor, o livreiro e todos os inúteis pendurucalhos que só faziam emperrar a linguagem e o aparecimento de novos autores. Era nosso grito de independência ou morte! Experimentar era a ordem do dia na poesia. Com a linguagem, com as formas de produção e distribuição. Enquanto isso, a censura tornava árdua a tarefa de se criar no país. Não havia um critério para os cortes e proibições. Os autores ficavam mais tempo inventando um jeito de burlar a censura do que criando livre. Por outro lado, a ditadura unia todos contra ela. Era um inimigo visível. Um espantalho grosseiro, tosco, que tentava eliminar quem se alvoroçava em seu roçado. Nossas hesitações, nossos vacilos, eram relevados, pois tudo era culpa daquele vilão bufo, de farda e quepe. Heloísa Buarque organiza a antologia 26 poetas hoje, mostrando que apesar de bem diferentes, eles não eram divergentes. Naquele momento, lutar contra a ditadura era lutar pela nossa liberdade de expressão. E nossa expressão era aquela poesia suja, descartável, feita no turbilhão das ruas. ARTE & POLÍTICA: NUVEM CIGANA A vida então passou a fazer sentido. Conseguíamos conjugar o prazer de nos expressar poeticamente com a causa social. Não que nossos poemas cuspissem fogo contra os militares e a censura. Era o direito de contar a nossa história, da forma que bem quiséssemos. Em 1975, entra em cena a Nuvem Cigana, um coletivo de poetas, arquitetos, fotógrafos e arruaceiros. Cansados de jogar baralho, um

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grupo de funâmbulos entre 25 e 30 anos, resolveu criar um grupo de produção artística. O foco principal foi a poesia, que estava em evidência, exigia pouco capital e era o lugar de resistência, já que a música, o teatro, o cinema sofriam com a censura e o assédio do mercado. Os poetas eram Charles Peixoto, Ronaldo Bastos, Ronaldo Santos, Guilherme Mandaro, Eudoro Augusto, Xico Chaves, entre muitos outros. E então, trouxemos o poema ainda mais para o corpo, passando a falar nossos poemas. A voz voltava a potencializar a palavra. O poema ganhava corpo. A vida passou a fazer mais sentido. Nossa geração era ligada ao som distorcido das guitarras, o rock era nossa trilha. Por meio dele nossa história era tocada. Nossos heróis eram os cantores. O palco, nossa página em branco. Nosso sonho de artista era ser um Jagger, um Dylan, um Lennon, um Hendrix, um Caetano, um Gil, um Mutante. A poesia estava expressa nas letras. O livro não era prazer tão grande quanto a música. Naquele mundo fragmentado, reconstruído à base de serra elétrica e bate estaca, nosso déficit de atenção já era notório. Éramos talvez a primeira geração televisiva do mundo descartável da sociedade de consumo. E nossos poemas refletiam isso. Quando começamos a fazer nossas artimanhas, nome que a gente dava aos nossos recitais explosivos, anárquicos, a coisa pegou fogo. Era como se a gente fosse uma banda de rock. Só que sem guitarra, baixo ou bateria. Era só o corpo e a voz. Era uma grande novidade aquilo para a época: a performance poética. Fizemos shows em lugares memoráveis como o Parque Lage, o Museu de Arte Moderna e a Livraria Muro, no Rio. Teatro Municipal e FAAP, em São Paulo. Galpãozinho, em Brasília. Além de vários lugares pelo interior do Rio. Aquilo dava para nós um sentido à vida, integrando prazer artístico com a causa social que era a gente ali, solto no mundo, arejando a poesia e confrontando com o nosso corpo o sistema que queria todo mundo cumprindo a ordem unida. Alguns grupos foram contemporâneos da poesia marginal: Nuvem Cigana, Frenesi, Edições Pindaíba (SP), a editora de Massao Ono (SP), Gang Pornô e Folha de Rosto (Rio). A Nuvem Cigana circulou pelas artérias do país de 1975 a 1982, mais ou menos, fazendo uma de suas últimas artimanhas num baile de carnaval no Circo Voador, no Arpoador. ESPANTALHO >>>>>>> AGROTÓXICO Em 13 de outubro de 1978, o general Geisel revoga o AI-5. Seu sucessor, general João Figueiredo, começa o processo de uma ampla distensão conhecida como Abertura. Dominados os movimentos de guerrilha, censurando os artistas, o mercado precisava ser ampliado e era necessário coisas novas para as pessoas consumirem. E esses consumidores ávidos por novidades tinham um nome: o jovem. Então, movimentos subterrâneos que ocorreram nos anos 1970, no campo das artes, vêm à tona. A poesia marginal nas letras, o Asdrúbal Trouxe o Trombone, o pessoal do Despertar, o Manhas & Manias no Rio e o Ornitorrinco, o Pod Minoga em São Paulo, no teatro. Enfim, uma turma que lutou para se manter, renovando a linguagem de sua arte e que agora nos anos 1980, era cooptada pela indústria cultural para alimentar o público jovem. Vem desse período o início de transmutação do espantalho em agrotóxico. O mercado agora tudo açambarcava. A arte crítica, política, experimental, artesanal, independente, agora era carta fora do baralho. A Embrafilme, desde início dos 1970, começa a patrocinar filmes históricos, sem compromisso com a linguagem, numa clara iniciativa de despotencializar qualquer experimentação em favor

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do mais do mesmo para o mercado consumidor. Editoras, gravadoras e os meios de comunicação vão pelo mesmo caminho. O que antes era um inimigo externo e visível — o governo militar/espantalho — passa a ser um inimigo invisível, que se incorpora, que se ingere — o mercado/agrotóxico. A censura se interiorizava. Era a época yuppie, do cartão de crédito e das obras transamazônicas do Brasil endividado até o pescoço, comendo na mão do FMI. No planeta, não mais os protestos e lutas pelas minorias, mas o neoliberalismo de Reagan e Thatcher. Toda revolta é desconstruída pela mídia. O muro cai. O pensamento único passa com seu rolo compressor, transformando o público em privado, defendendo o estado mínimo, desmontando as históricas conquistas trabalhistas e o estado de bem-estar social. ADMIRÁVEL MUNDO NOVO E isso vem até o novo milênio, que traz em seu bojo o ovo da serpente. O nome do contraveneno: Era Digital. Criada no auge de um neoliberalismo agônico em que a necessidade de lucro exaure o meio ambiente, gera desemprego, excluindo imenso contingente do consumo básico e o endividamento crônico de muitos países, a Era Digital coloca em questão umas das maiores ferramentas de dissuasão e controle do sistema: a mídia. Considerada o único meio a produzir discursos, controlar protestos e provocar o instinto do consumo, a mídia tradicional perde espaço para as redes sociais, descentralizadas, interativas, P2P, que geram infinitos discursos. Um veículo absolutamente democrático, horizontal. Um risco para um mundo totalitário como o que vivemos. CTRL C CTRL V O grande meio de comunicação dos anos 1970 era a televisão. A imagem ganhava uma força que a voz na mídia anterior, o rádio, não permitia. As imagens tiveram grande importância na ditadura, quando presos políticos eram apresentados no ar pelo Jornal Nacional, com o rosto devastado pela tortura, renegando seu passado de luta. A máquina audiovisual era derramada em doses industriais para consumo enlatado. A Era Digital, interativa, vira o jogo. Agora é possível criar sem ter que passar por gravadoras e editoras. Os blogs e sites são os mimeógrafos potencializados. A indústria do disco é mortalmente abalada pelo Napster, programa de compartilhamento de arquivos em rede P2P criado em 1999. As redes sociais convocam, e transmitem ao vivo, as manifestações que estouram em todo o mundo. As redes passam a ser controladas pelo poder público, que numa economia de mercado, tem a exclusiva função de vigiar e punir. Mas isso é contra a essência descentralizada da internet. Por outro lado, o digital favorece muito a criação, pelo baixo custo e por permitir o encontro entre várias linguagens. Em pouco tempo, não teremos mais artistas em diversos campos e sim criadores que vão trabalhar com tudo ao mesmo tempo. Cut and copy. CEP 20.000 O Centro de Experimentação Poética (CEP 20.000), um coletivo gigante que começa em 1990 no Rio de Janeiro, com apoio da prefeitura, é novamente a transgressão, a ousadia pelo corpo e voz de dezenas de jovens que cansaram da apatia e da massificação do consumo. É uma reconfiguração da Nuvem Cigana. É a retomada do experimental em todas as linguagens artísticas. Mais que isso, é novamente a arte e a vida andando abraçadas para romper a barreira do tédio e da alienação. O CEP viu crescer três gerações de poetas: Guilherme Zarvos, Michel Melamed, Viviane Mosé, Jorge Romano, Casé Peccini, Boato, Pedro Rocha, Ericson Pires, Éber Inácio, Beatriz Provasi, Domingos Guimaraens, Botika, Alice Sant’Anna, Mariano Marovatto, Augusto Guimaraens, Vitor Paiva e muitos outros. Em 2013, fizemos 23 anos. Quase sempre às turras com a prefeitura que agora tirou o

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apoio direto e nos coloca na arena sangrenta das empresas privadas e das leis de incentivo fiscal. Quem sabe seja o momento de assumir a clandestinidade e voltar à margem? FARIA OU FARÁ 50 ANOS ? E a luta novamente recrudesce. Agora com a lógica digital, descentralizada, ponto a ponto. Difícil para a velha cultura analógica absorver os protestos, sem líderes, sem partidos políticos, sem grandes causas históricas. A história também ruiu. Hoje é muito mais um mal-estar com o excesso de poder das grandes corporações multinacionais, a violência da repressão, as causas pontuais como aumento das passagens e o mau serviço dos ônibus e principalmente contra a mutilação em nosso direito de sonhar, de se manifestar livremente. Neste ano de 2014, a ditadura completaria meio século. Completaria ou completará? Pelo que vem ocorrendo desde junho de 2013, no Brasil, parece que suas garras, adormecidas, voltaram a se afiar. Os conflitos estouram nas ruas, ocupações se espalham pelas cidades. E a vida volta novamente a fazer sentido. Não mais aquele coma induzido com que fomos acostumados durante anos de lobotomia neoliberal. Mas vida, vida nos corpos, por todos os poros de cada um que se manifesta, vida de poder participar da revolta contra os donos do mundo. Novamente a vida faz sentido e volta a unir as expressões artísticas e sociais. Novas pautas que falam de autogestão, do equilíbrio ecológico, da permancultura, do alimento vivo. As pessoas, apesar de ainda confusas, nunca tiveram tanta condição de gritar pelos seus direitos e desejos. Novas expressões para um novo mundo. A aldeia reXiste!

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ENSAIO O tempo morto do teatro Sérgio de Carvalho e Paulo Bio

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incêndio no prédio da UNE, no Rio de Janeiro, é talvez o maior símbolo da ruptura regressiva que o Golpe Militar criou no campo das artes do país. Como se sabe, mal raiava o primeiro de abril de 1964 e grupos paramilitares perfilaram-se diante da entidade estudantil, na praia do Flamengo no Rio de Janeiro, dando desfecho de fogo às ameaças frequentes de alguns dias, algumas delas feitas com rajadas de metralhadoras. Ali, entre várias atividades de um movimento de politização da cultura que se consolidava, construía-se também um teatro para abrigar os trabalhos do CPC, o Centro Popular de Cultura.1 O espaço seria inaugurado em algumas semanas e faziam-se os últimos preparativos para a estreia da peça Os Azeredo mais os Benevides, de Oduvaldo Vianna Filho, com direção de Nelson Xavier. A interrupção violenta na montagem representou um corte no processo de aprendizado dramatúrgico e cênico em curso, não só entre os artistas ligados ao projeto, mas de toda uma geração, que se viu obrigada a modificar o rumo de algumas das conquistas mais avançadas do moderno teatro no país. No momento de violenta reviravolta da mobilização popular em curso, em que a grande maioria dos perseguidos pelo regime de exceção eram lideranças camponesas, operárias e militares de esquerda (sendo o conjunto da cultura de esquerda relativamente poupado até 1968), a investida contra o CPC da UNE indicava, por outro lado, o reconhecimento da força de experiências hoje tão malcompreendidas, mesmo subestimadas, e cuja vitalidade — advinda do interesse produtivo na politização da arte e da modificação do seu caráter de “privilégio de classe” — tinha sido gestada nos anos anteriores.2 O CPC nasceu de uma cisão do Teatro de Arena ocorrida em 1960, quando dois de seus principais integrantes, Vianinha e Chico de Assis, deixam o grupo para participar da montagem da peça A mais-valia vai acabar, seu Edgar. A montagem, toda coral, com recursos de projeção de slides, jogo cômico e musical direto, encenando questões abstratas do marxismo e situação particular do trabalho no Brasil, foi realizada na arena do prédio da Faculdade de Arquitetura da antiga Universidade do Brasil. Ela mobiliza o movimento estudantil do Rio de Janeiro, cria um vínculo entre os artistas, muitos deles ao Partido Comunista, e os intelectuais do Iseb, e agrega jovens descontentes de várias origens, inspirando um movimento semelhante ao Movimento de Cultura Popular(MCP) em Pernambuco. Em pouco tempo o CPC se junta à União Nacional dos Estudantes. 1 Como todos os CPCs, foram interrompidos os experimentos culturais em contato direto com as classes populares. Um exemplo é o filme Cabra marcado para morrer, de Eduardo Coutinho, sobre o assassinato do líder camponês João Pedro Teixeira. Em Pernambuco, todas as sedes do Movimento de Cultura Popular (MCP) foram fechadas pelos militares, com integrantes presos e torturados. 2 SCHWARZ, p.82.

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A INFLUÊNCIA DO TEATRO DE ARENA Mesmo sinalizando uma opção pela ruptura com o teatro profissional, em favor de uma prática de teatro de agitação e propaganda com finalidade política direta, a encenação jamais realizada de Os Azeredo mais os Benevides pelo CPC trazia a forte influência das pesquisas estéticas de atuação e dramaturgia realizadas nos anos anteriores no Teatro de Arena. O pequeno teatro da rua Teodoro Baima, em São Paulo, existia desde 1953, sob coordenação de José Renato. Mas foi somente três anos depois da fundação que sua guinada politizante se deu com o encontro entre os jovens amadores do Teatro Paulista do Estudante (comunistas como Guarnieri, Vianinha, Vera Gertel, orientados pelo teatrólogo italiano Ruggero Jacobbi) e o recém-chegado diretor Augusto Boal, que forneceu instrumentos técnicos para que os interesses dramatúrgicos do coletivo pudessem se desenvolver. Os processos de montagem dos espetáculos do Arena passaram a se fundamentar num novo olhar para o teatro como um todo. Boal introduziu a ideia dos laboratórios criativos, de atuação e escrita. Por meio de longos exercícios, debates e improvisações buscava-se investigar a fundo, tanto as dinâmicas psíquicas (a base dos laboratórios era o sistema de Stanislavksi, com influência relativa do método do Actor’s Studio) como a correspondência social da personagem interpretada. Essa “escola” de interpretação laboratorial, gradativamente mais interessada em questões sociais, fez história no Brasil. Textos passaram a ser escritos pelos próprios integrantes do grupo, eram debatidos, reescritos e encenados. O Seminário de Dramaturgia, que se organiza após o sucesso de Eles não usam black-tie, em 1958, e que dura três anos, fornece elementos para que uma geração ganhasse consciência técnica sobre a possibilidade de escrita de dramas socialmente interessados, ao mesmo tempo em que lança as sementes para a experimentação de recursos teatrais mais narrativos, inspirados nos modelos do teatro político de Piscator, do teatro épico de Brecht, e nas formas cômicas populares brasileiras. A peça mais significativa do Teatro de Arena gestada pelos debates do Seminário de Dramaturgia — Revolução na América do Sul, de Augusto Boal, escrita em 1960 — é um bom exemplo de um processo de aprendizado em curso, que levou a um exame autocrítico dos próprios procedimentos. Não por acaso, sua forma irônica inspira grande parte dos trabalhos do CPC. De estrutura fragmentada, descontínua e narrativa, quase circense apesar de uma trajetória trágica em que um operário é manipulado pela fome e por falsas esperanças, ela apresenta uma personagem central ingênua que é antes objeto da história do que seu sujeito. Ela se distingue muito dos dramas sociais encenados pelo Arena e de certo modo modifica a técnica de dialética dramática utilizada (em que uma personagem autoconsciente, com contradições internas e externas entra em contradição com outras personagens, sendo o conjunto pressionado pelo ambiente social). Foi no Teatro de Arena — ou inspirado por ele — que os melhores dramaturgos do país se interessaram pela representação da vida do ponto de vista popular, em temática ligada ao Brasil miserável, e, por força desses interesses politizados, vieram a adotar uma atitude experimental, o que fazia com que as contradições, sempre produtivas,

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pedissem resolução: quando se queria heroicizar, o assunto obrigava à rarefação do sujeito; quando se queria mostrar uma vítima dramática da violência, a ausência de identidade individual do brasileiro obrigava a uma constatação sobre o caráter servil da personagem. Em outros termos, com toda precariedade das soluções literárias, havia uma atenção ao fato de que o Brasil era uma contradição a ser enfrentada, e de que cabia à cena abrir sua estrutura para que o mais importante, o olhar crítico, fosse estimulado. O teatro da época estava, assim, na linha de frente de um movimento de desmonte do imaginário social-dominante que se irradiou para o cinema e para a canção, inspirado pela movimentação social pós-Juscelino. Um tempo em que, como disse Roberto Schwarz, “nunca o país foi tão inteligente”. O que o CPC tinha de novidade, em relação ao Arena, era a disposição a uma ruptura maior com o caráter estético da produção de arte, a serviço de uma maior prática militante. Já em 1959, Boal se perguntava: “Fazer ‘bom teatro’ para que e para quem?”3 Os integrantes do CPC levaram à frente essa reflexão prática sobre a função da arte — desenvolvendo uma crise do Arena (e de todo teatro anticapitalista) sobre o alcance e sentido da produção de arte nas condições do aparelho burguês. Sabiam que a questão não pode ser resolvida de dentro do campo estético. Quando foi fundado em 1961, o CPC pretendia produzir obras engajadas, em torno dos temas do chamado nacional-popular, e que saíssem às ruas e fossem em direção ao povo. Não bastava a atitude inconformista do conteúdo social, era necessário estabelecer um novo diálogo com plateias populares. Apesar da mistificação potencial ligada à ideia de “arte popular” e, por vezes, a ingenuidade ideológica em relação aos temas que atendiam à pauta do Partido Comunista (no centro deles, o anti-imperialismo e a crítica à suposta burguesia entreguista — a dita burguesia progressista era mais ou menos poupada), a movimentação do CPC gerou rapidamente posições novas e irreverentes. Fomentou um ambiente de experiência artística politizante, o desenvolvimento de um estilo próprio de teatro de agitação e propaganda ainda desconhecido no país, conectou-se radicalmente à atualidade. Mais ainda, a prática do CPC em embrenhar-se pelos grotões da exploração secular brasileira, com viagens por todo o canto, apresentação em favelas, sindicatos, escolas, zonas rurais, mudou não apenas a forma de trabalho dos artistas de teatro, mas o conjunto das perspectivas de criação e de interpretação social brasileira, em todas as áreas da cultura. Se muitas vezes partilharam das ingenuidades populistas e nacional-desenvolvimentistas típicas do período, a verdade é que a história do CPC só será compreendida se não for analisada apenas pelo ideário (de qualquer modo em constante movimento e debate, que não pode ser restrito ao célebre documento de Carlos Estevam Martins), mas sobretudo por sua dimensão prática. Foram jovens artistas que se alinharam aos movimentos sociais populares, vivendo com comprometimento a experiência de um Brasil miserável que revelava tragicamente o avesso do progresso periférico. Conheceram e deram forma de arte a um mundo no qual, conforme a canção final da peça de Vianna: “Se um existe, outro some.” Do programa da peça A farsa da esposa perfeita. Disponível para consulta no sítio: http:// www2.uol.com.br/teatroarena/arena.html 3

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O que importava do CPC não era assim sua crença discutível de que o valor teatral deveria ser medido pela capacidade de atingir as massas (uma contradição com a própria forma de comunicação teatral, sempre pequena, e que gera uma análise quantitativa da ação cultural em termos muito semelhantes aos da indústria cultural), mas sim sua disposição em procurar multiplicar-se e se irradiar concretamente, com qualidade crítica, desenvolvendo, no limite do projeto, o direito de que todos — sobretudo os mais pobres — tenham direito a produzir cultura e não apenas a consumi-la. É significativo que, nos últimos momentos do CPC, no mesmo compasso das hesitações de João Goulart, a comemoração de certo progresso nacionalista de esquerda começasse a ser posta em xeque. É como se houvesse um abalo no tom positivo que envolve as peças e autos cepecistas da primeira fase (mesmo quando o assunto era tratado negativamente), que passam a ser criticados, a despeito de seu marcante vigor experimental, seu sabor de liberdade e das avançadas formas populares e vanguardistas desenvolvidas ali. Vianinha decide escrever Os Azeredo mais os Benevides para a inauguração do Teatro da UNE como um símbolo dessa consciência das dificuldades. A peça contém a procura de um avanço no sentido de uma maior verdade estética da representação, e um regresso aos padrões do drama social de andamento literário, que deveria ser epicizado para dar conta dos temas históricos. A peça encarna contradições de vários tipos. Procura ser épica pela angulação negativa do processo e pela evolução histórica mais larga. Seus temas são os conflitos no campo, a ferida aberta da exploração de classes no Brasil, na região do cacau na Bahia. Retrata um período de 20 anos desde a expansão do cultivo até sua decadência. Destaca o clientelismo da elite, as relações de semisservidão. O proprietário Espiridião aparece inicialmente como o desbravador aventureiro de inspiração nacionalista: “ESPIRIDIÃO — Vou para a Bahia plantar cacau [...] nossas terras estão abandonadas. Isso o Brasil espera de nós.”4 Trata-se, contudo, da mesma figura que, adiante, criará um curral eleitoral entre seus arrendatários, obrigará os camponeses a uma semisservidão prendendo-os às suas dívidas com o armazém da propriedade, expulsará todos da terra quando o ciclo do cacau esmorecer e reprimirá violentamente um espasmo de revolta dos trabalhadores. Tudo isso operado por um empreendedor nacionalista, intelectual, sensível à pobreza, amigo do trabalho meritocrático, afinado, portanto, aos valores humanistas de sociedade moderna. Vemos um proprietário que podia escolher ser patrão ou senhor, de acordo com seus interesses ou caprichos. Todo e qualquer nacionalismo progressista por parte destes aparecia então como de fato era, contingente. Ainda que essa abordagem dialética esteja presente, a narrativa da peça ainda se organiza em torno do centro dramático de um agente responsável (e da consciência geral sobre o sofrimento), o que sentimentaliza a estrutura quando a encenação não consegue fortalecer de modo mais materialista o conjunto das personagens. VIANNA Filho, Oduvaldo. Os Azeredo mais os Benevides. Rio de Janeiro: Serviço Nacional de Teatro: Plano Editorial, 1969, p. 12.

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De qualquer modo, é enorme a acumulação de experiência histórica contida nessa peça de Vianinha, como reflexão social e estética. E ela certamente abriria um caminho novo no trabalho do autor e influenciaria uma geração na medida em que suas contradições — a típica luta nacional entre o arcaico e o moderno — obrigavam a movimentos de ativação crítica. A peça, a seu modo, era uma síntese do passado e o anúncio de um futuro. Estão nela presentes a construção dramatúrgica moderna e experimental, a organização produtiva laboratorial e coletiva, a crítica de um teatro que não se contenta em ser “teatro”, bem como uma observação sobre os rumos do país. Como baliza para o próprio CPC, ela encaminhava novas relações entre teatro, literatura e cinema, e sugeria uma desconfiança produtiva da ideologia nacionaldesenvolvimentista. A possibilidade gestada com a construção do Teatro da UNE nos primeiros meses de 1964, seu sentido de um laboratório de cultura anticapitalista (que rompe especializações com novas conexões entre atores, músicos, cineastas, escritores e movimentos sociais) decerto reorientaria o trabalho teatral de muitos, oferecendo um modelo distinto em relação ao do mercado de artes (incluído aí o mercado de cultura de esquerda de então). Conquanto o retorno à sala de espetáculos tivesse algo de recuo com relação aos espetáculos de rua, feitos junto aos despossuídos da cultura, a ideia de construção de um espaço próprio ligado ao movimento social tentava, ao que parece, enfrentar outros ângulos da questão da democratização cultural. O horizonte aberto seria amplo e talvez possibilitasse um ambiente, cujo avanço real estaria muito próximo dos avanços sociais em curso, não fora o “tempo morto que nunca acaba” decretado desde então pelo Golpe.5 Por outro lado, uma outra forma de teatro de resistência existiu até o final da década de 1960, cada vez mais apartada do contato direto com as forças populares. Qualquer posição de real democratização do teatro — também num nível produtivo – tornou-se impossível. As reflexões sobre a ambivalência do progresso periférico, sobre luta de classes, o direito à terra, minguaram ou foram substituídas por debates internos à classe média progressista. Difundiram-se as autocríticas sobre as razões da derrota de 1964, sobre o papel do intelectual de esquerda na luta social, sobre o sentimento de paralisia e a necessidade de combate ao Poder. O teatro pós-golpe cumpriu inegavelmente ainda um papel de grande importância e inventividade até ser quase extinto após o AI-5 em 1968, mas é preciso lembrar que a cultura heroica que persistiu durante o regime de exceção estava aleijada, subtraída do seu vínculo com o conjunto social de outrora. Restou uma fantasmagoria e o esforço de seguir em frente.6 As gerações teatrais que vieram depois tiveram que andar sobre essas ruínas. E por muito tempo não sabiam onde estavam, porque o mato já tudo cobria. Um novo ciclo de politização do teatro no país se iniciaria somente na década de 1990, com a retomada da organização teatral de grupo, mas o sentimento — no auge do neoliberalismo e do pós-modernismo – era de um começo sobre terra arrasada. Quem se interessa por questões da arte na atualidade precisa compreender, de um jeito de outro, essa supressão do passado. A expressão é de Paulo Arantes. Cf. SCHWARZ, Roberto. Cultura e política, 1964-1969. In: SCHWARZ, Roberto. O pai de família e outros estudos. São Paulo: Companhia das Letras, 2008, p. 81; COSTA, Iná Camargo. A hora do teatro épico no Brasil. São Paulo: Paz e Terra, 1996.

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ENSAIO A geleia geral da música brasileira Paulo Cesar de Araújo

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ano era 1964, próximo do Natal. E uma voz e uma canção se fizeram ouvir: “Podem me prender, podem me bater / Podem até deixar-me sem comer / Que eu não mudo de opinião...”. Lançado pela cantora Nara Leão, o samba Opinião, de autoria de Zé Keti, deu título ao disco dela e também a um musical encenado num teatro da zona sul do Rio de Janeiro. Com a ditadura militar recém-instalada no país, era em clima de catarse coletiva que a plateia ouvia esse desafio, que parecia perfeito para aquele momento. O curioso é que Zé Keti havia composto Opinião dois anos antes, em pleno regime democrático. A sua intenção era na verdade protestar contra um programa de remoção de favelas executado pelo governo do então Estado da Guanabara – como indica outro trecho da letra: “Daqui do morro eu não saio, não / Se não tem água eu furo um poço / Se não tem carne eu compro um osso / E ponho na sopa / E deixa andar, deixa andar...”. Apesar de conter versos tão conformistas, Opinião trazia um refrão impactante, aberto, que enfatizava a resistência, e isso bastou para transformá-lo num símbolo de contestação ao novo regime implantado no país. O sucesso dessa música e do musical homônimo indicou e ajudou a definir uma nova tendência na MPB: a da canção de protesto, que já vinha sendo feita por aqui, mas jamais com tanta repercussão. Até então mais conhecida como “musa da bossa nova”, a cantora Nara Leão se viu também erigida a ícone da resistência e das denúncias de nossas mazelas sociais. “Acender as velas / Já é profissão / Quando não tem samba / Tem desilusão...”, cantava ela do mesmo Zé Keti, em 1964; e também Sina de caboclo, de João do Vale, no mesmo disco: “Eu sou um pobre caboclo / Ganho a vida na enxada / O que eu colho é dividido/ Com quem não planta nada...”. A partir daí, quem quisesse fazer a moderna música popular brasileira, herdeira direta da bossa nova, tinha uma receita pronta e bem-sucedida: valer-se de um gênero musical nacional e, na letra, falar da nossa realidade social. O contexto pós-64 favorecia, pois iniciava-se a cobrança por uma música engajada politicamente; e por parte dos artistas, exigia-se uma participação comprometida com a realidade brasileira, fosse ela qual fosse. Mais que aspectos

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estritamente musicais, como melodia ou acordes dissonantes, valorizava-se agora a palavra, a mensagem, o recado do cantor e do compositor. Talvez por isso, anos depois Belchior iniciava sua canção Como nossos pais com a frase: “Não quero lhe falar, meu grande amor / Das coisas que aprendi nos discos...”. Assim como os livros, os discos passaram a ser entendidos como veículos transmissores de cultura, conhecimento e conscientização. Essa ênfase na letra, no discurso da canção, irá facilitar o surgimento de diversos artistas que tinham justamente no traquejo da palavra o seu ponto forte. E em 1965 despontou um dos mais representativos deles: Chico Buarque de Holanda, com seu primeiro disco, um compacto com a canção Pedro Pedreiro. Tal qual ouvia nos discos de Nara Leão, ele se valeu do samba para falar das agruras de um trabalhador brasileiro: “Pedro pedreiro penseiro esperando o trem / Manhã parece, carece de esperar também / Para o bem de quem tem bem / De quem não tem vintém...”. Naquele mesmo ano ocorreu a estreia discográfica de outro poeta da MPB, Caetano Veloso, com a canção Samba em paz, cuja letra é uma afirmação do nosso gênero musical mais representativo: “O samba vai vencer / Quando o povo perceber / Que é o dono da jogada / O samba vai crescer / Pelas ruas vai correr / Uma grande batucada...”. Originário também da Bahia, Gilberto Gil começou a se tornar conhecido após gravar o samba de protesto Roda, em 1965: “Quem tem dinheiro no mundo / Quanto mais tem, quer ganhar / E a gente que não tem nada / Fica pior do que está...”. Na época o jovem Edu Lobo compôs Arrastão em parceria com

Vinicius de Moraes. O sucesso da música fez de sua intérprete, Elis Regina, uma estrela, que também seguia os passos de Nara Leão, cantando aspectos da nossa dura realidade social: “Eh! tem jangada no mar / Eh! eh! eh! Hoje tem arrastão / Eh! Todo mundo pescar / Chega de sombra, João...”. A canção foi a vencedora do primeiro Festival de Música Popular da TV Excelsior, em 1965, marco do início da Era dos Festivais no Brasil, que revelaria vários outros nomes nos anos seguintes. E, assim, ao longo da década de 1960, e sob o regime militar, cantores-compositores como Chico Buarque, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Edu Lobo, e intérpretes como Nara Leão e Elis Regina, — ou seja, a nascente MPB universitária — cantavam samba moderno com ênfase no conteúdo social das letras, procurando afirmar uma cultura nacional-popular. Ocorre que, na mesma época, no mesmo país e sob a mesma ditadura, havia outra importante vertente da nossa canção. E esta se expressava pelo ritmo internacional do rock, chamado aqui de iê-iê-iê. Era a turma da Jovem Guarda, liderada por Roberto Carlos, mais Erasmo Carlos, Wanderléa, Martinha, Jerry Adriani, Wanderley Cardoso, Renato e seus Blue Caps e outros cabeludos de origem suburbana e baixa escolaridade. Para os opositores do regime militar, e defensores da música de protesto, a vertente do iê-iê-iê era vista como alienada e alienígena. Alienada porque seus artistas não se interessavam por política; e alienígena porque a música que faziam era considerada não brasileira. Porém, o fato é que a Jovem Guarda estava criando uma linguagem pop nacional e, a seu modo, também

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protestava. Se não contra a ditadura militar ou a injustiça social, certamente contra a repressão moral e sexual que imperava no país. “É proibido fumar/ Diz o aviso que eu li/ É proibido fumar, pois o fogo pode pegar/ Mas nem adianta o aviso olhar/ Pois a brasa que agora eu vou mandar/ Nem bombeiro pode apagar...”, anunciava Roberto Carlos em 1964. Quatro anos antes de Caetano Veloso bradar “eu digo não ao não” em “É proibido proibir”, um rebelde Roberto Carlos provocava: “Sigo incendiando bem contente e feliz/ Nunca respeitando o aviso que diz: é proibido fumar...”. Não por acaso essa canção será depois regravada por diversos artistas do rock nacional, entre os quais Raul Seixas, Rita Lee, O Terço, Skank, com sua letra ganhando até outro significado, como o de “fumar” no sentido de puxar baseado. Rebelde também era a garota papo firme de que o Roberto falou — tema de sua canção lançada em 1966: “Ela é mesmo avançada / E só dirige em disparada / Gosta de tudo que eu falo/ Gosta de gíria e muito embalo/ Ela adora uma praia/ E só anda de minissaia/Está por dentro de tudo/Só namora se o cara é cabeludo...”. É um retrato da mulher independente, liberada, moderna que descobria a pílula anticoncepcional, a minissaia, o automóvel e a linguagem descontraída de seu tempo. O governo militar não gostou. Um informe do DOPS fazia restrições a um livro didático que trazia impresso a letra de É papo firme, considerada nociva “por fazer apologia da velocidade em detrimento das leis do trânsito, do uso da gíria e do embalo”.

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O “tremendão” Erasmo Carlos cultivava sua fama de mau com a provocativa Você me acende, de evidente conotação sexual: “Meu bem, meu bem /Beija bem devagarinho / Me abraça e me chama de benzinho / Anhan! / Me acende com carinho / Uh! uh! uh! uh! uh! uh! / Me acende!...”. O romantismo exagerado de boleros e sambas-canções que continham imagens como a de “toda quimera se esfuma na brancura da espuma” parecia mesmo coisa do passado. O tom coloquial da narrativa, o uso do linguajar simples, feito de elementos extraídos do cotidiano urbano, tudo isso que caracterizava as letras pós-bossa nova, estava também presente nos versos das canções da jovem guarda. Como em outro atrevido rock de Roberto Carlos, Eu sou terrível, que diz: “Garota que andar do meu lado/ Vai ver que ando mesmo apressado”. Esse verso permite dupla interpretação, pois “apressado” tanto pode significar correr em alta velocidade (infringir leis do trânsito) como também não esperar até o casamento para fazer sexo com a menina (infringir leis morais) – em ambos os sentidos, afrontando o modelo comportamental desejado pelo regime de então. Outro clássico da época — este de temática social e gravado por Elis Regina – é a canção Terra de ninguém, de autoria de Marcos e Paulo Sérgio Valle. Com uma letra que opõe o senhor dono de tudo aos pobres que não têm onde plantar, vê-se esperança no refrão que diz: “Mas o dia vai chegar / E o mundo vai saber / Não se vive sem se dar...”. Nessa estrofe está contido aquilo que a ensaísta Walnice Nogueira Galvão identificou nas canções de protesto da MPB: a mitologia do “dia que virá”. Ou seja, se, por um lado, os

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autores denunciavam a injustiça social no Brasil, por outro nos consolavam com a utopia de que o dia da redenção do povo estaria garantido em algum lugar do futuro. Como pregava Geraldo Vandré em Arueira: “E a gente fazendo conta /Pro dia que vai chegar”; ou Edu Lobo e Capinam em Ponteio: “Eu espero, não vá demorar /Este dia estou certo que vem”. Diz Walnice que isso acaba por negar ao homem o seu papel de agente da história, que passa a ser “o dia”. Ela explica: “Já que a utopia se cumprirá espontaneamente, eu não sou responsável, não tenho tarefas a executar, estou dispensado de agir.” Em 1967 deu-se um racha no interior da MPB, quando Caetano Veloso e Gilberto Gil decidiram agregar à sua música elementos do pop rock internacional. O tropicalismo vai problematizar a canção de protesto e, entre outras inovações — a partir de influências de vanguardas literárias, como o concretismo —, consagrar um estilo de letra ainda mais moderno. Não apenas aquela com narrativa de começo, meio e fim, estilo A banda, de Chico Buarque, ou de lamentos ou exaltações amorosas, tipo Rosa, de Pixinguinha, que todo mundo entende. A canção tropicalista e de seus seguidores vai exigir do ouvinte um processo de decodificação da mensagem. Não é apenas ouvir, mas também decifrar os possíveis sentidos da canção. “Sobre a cabeça os aviões / Sob os meus pés os caminhões / Aponta contra os chapadões / Meu nariz...”, diz Caetano na canção-manifesto Tropicália. Qual o significado dessa letra? O que o autor está querendo dizer? Ou não? Isso vai exigir do público um esforço interpretativo, não será mais uma audição passiva.

A letra tropicalista trazia referências políticas e culturais, do passado e do presente de então, como em Geleia geral, de Gilberto Gil e Torquato Neto: “A alegria é a prova dos nove / E a tristeza teu Porto Seguro / Minha terra, onde o Sol é mais limpo/Em Mangueira, onde o Samba é mais puro...” — verso com citações a obras de Oswald de Andrade e de Gonçalves Dias. Da mesma forma, Baby, de Caetano Veloso, com prováveis referências ao filme A piscina, de Jacques Deraye, e a Carolina, de Chico Buarque, no verso “Você precisa saber da piscina / Da margarina / Da gasolina. Da Carolina...”. Por tudo isso, esta vertente da MPB atingirá basicamente o público de classe média intelectual, que possui capital cultural necessário para entender as diversas referências ou significados da letra das canções. “Há um morcego na porta principal / Cuidado! Há um abismo na porta principal...”, alertava Jards Macalé em Gotham City, de 1972. O que significa isso?, muita gente se perguntava também ao ouvir os versos de Clube da esquina, gravada por Milton Nascimento: “Noite chegou outra vez/ De novo na esquina os homens estão/ Todos se acham mortais / Dividem a noite, e lua e até solidão / Neste clube, a gente sozinha se vê, pela última vez / À espera do dia, naquela calçada / Fugindo de outro lugar...” Nada comparável ao que iria fazer, já nos anos 1980, outro discípulo do tropicalismo, o cantor Djavan, autor de versos como: “Açaí, guardiã / Zum de besouro um ímã / Branca é a tez da manhã...”. Este tipo de letra seria muito útil para driblar a censura, especialmente após dezembro de 1968, com a edição do Ato Institucional nº 5, quando tudo fi-

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cou mais difícil para quem fazia arte ou política no Brasil. Malandramente, muitos compositores passaram a se valer da chamada “linguagem da fresta” — conforme expressão do ensaísta Gilberto Vasconcelos. O sentido das letras podia estar não no dito, mas no interdito, nas entrelinhas. Mais do que dizer, o importante agora era como dizer. “Tudo aquilo que o malandro pronuncia / Que o otário silencia / Toda festa que se dá ou não se dá / Passa pela fresta da cesta”, dizia Caetano Veloso em “Festa Imodesta”, canção que tematizava a problemática da censura. Foi se valendo da “linguagem da fresta”, por exemplo, que Chico Buarque compôs Apesar de você, falando sem falar do então ditador-presidente Emílio Garrastazu Médici. Num primeiro momento, os censores não perceberam o sentido da letra, e a liberaram, pois o compositor parecia retratar uma mulher mandona. Porém, quando a música já tocava no rádio e alcançava vendagem de quase cem mil cópias, veio a ordem de proibição, silenciado-a da noite para o dia. “Hoje você é quem manda / Falou, tá falado / Não tem discussão...”, protestava Chico Buarque, que pouco tempo depois compôs outro samba do mesmo estilo: “E quem me ofende, humilhando, pisando / Pensando que eu vou aturar.../Tô me guardando pra quando o carnaval chegar…” Essa passou. Além de revelar seus próprios poetas-cantores, ao longo desse período a MPB se valeu da grande poesia para enriquecer o seu repertório de canções. Fagner, por exemplo, musicou poemas de Cecília Meireles, de Ferreira Gullar e até da poetisa portuguesa Florbela Espanca, como Fanatismo, em 1981: “Minh’ alma, de sonhar-te, anda perdida / Meus olhos andam cegos de te ver /Não és se-

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quer a razão do meu viver /pois que tu és já toda minha vida...”. O cantor pernambucano Paulo Diniz fez o mesmo com Vou-me embora para Pasárgada, de Manuel Bandeira, em 1976, e com José, de Carlos Drummond de Andrade, em 1972. Drummond também teve seu poema Canção amiga musicado por Milton Nascimento, em 1978. E Gregório de Mattos, o seu Triste Bahia adaptado por Caetano Veloso, em 1972. No ano seguinte, um poema que Vinicius de Moraes havia escrito em 1946, Rosa de Hiroshima, ganhou melodia com os Secos & Molhados: “Pensem nas crianças / Mudas, telepáticas / Pensem nas meninas / Cegas, inexatas...”. Num período em que a atividade musical se tornou caso de polícia no país, recorrer a versos de poetas consagrados talvez fosse também mais uma estratégia de fugir ao cerco do censor. Censura que atingiu também o repertório brega, especialmente do cantor e compositor Odair José. Sim, porque havia repressão política, mas também repressão moral. A evocação ao prazer, à sexualidade, era identificada como ato de subversão — fenômeno, aliás, comum a todos os regimes ditatoriais, de direita ou de esquerda, segundo observou o sociólogo inglês Crane Brinton. “Precisamos tirar das ruas os pederastas, os maconheiros e as prostitutas”, vociferavam agentes da repressão no Brasil. As canções de Odair José tratavam exatamente de temas tabus como esses. Por exemplo: Vou tirar você desse lugar (prostituição), A Viagem (drogas) e Desespero (homossexualismo), com versos narrados em primeira pessoa: “Você diz a todo instante / Que eu não sou, meu bem, aquilo que aparento ser... / Diz até que não demora muito tempo / Quem eu sou todo mundo vai saber...”.

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Essa foi impedida de entrar no disco dele, e o censor justificou: “Pela razão óbvia, concludente, o flagrante de uma anormalidade confessa e aceita, em difusão do homossexualismo, prática considerada antissocial.” Um momento radical desse embate entre música e ditadura no Brasil ocorreu em 1968, quando, num festival, Geraldo Vandré cantou “Pra não dizer que não falei de flores” (Caminhando). O autor ousou a mais contundente crítica jamais feita aos militares numa letra de música popular — e justo quando o Exército controlava os poderes da República: “Há soldados armados, amados ou não / Quase todos perdidos de armas na mão / Nos quartéis lhes ensinam uma antiga lição / De morrer pela pátria e viver sem razão...”. A canção não venceu o festival, mas acabou se tornando uma espécie de Marselhesa brasileira, sendo cantada em diversas manifestações a partir daí. Na época foi proibida e o então coronel Octávio Costa — futuro assessor do presidente Médici — cobrou punição para o compositor sob o argumento de que a Justiça não poderia se calar “diante confido delito, do delito claramente confi gurado, à luz dos refletores, contra a Vanlei vigente”. Perseguido, Geraldo Van dré acabaria fugindo para o exílio pós a decretação do AI-5. Enquanto traçava a rota de fuga, ele compôs com Geraldo Azevedo a Canção da Despedida, premonição da sua própria trajetória a partir dali: “Já vou embora / mas sei que vou voltar / amor, não chora / se eu volto é pra ficar...”. De fato, ele voltou, mas nunca mais exerceu plenamente o seu ofício de cantor e compositor. Quando estava também exilado, Caetano Veloso recebeu algumas homenagens musicais. A mais conhecida e comentada

é Debaixo dos caracóis dos seus cabelos, gravada por Roberto Carlos em 1971. No ano anterior, porém, houve um grande sucesso chamado Quero voltar pra Bahia, do cantor e compositor Paulo Diniz. Era a sua evocação ao artista baiano expatriado, com letra em inglês e português, como se o próprio estivesse cantando de Londres. “I don’t want to stay here / I wanna to go back to Bahia.../ De repente ficou frio / Eu não vim aqui para ser feliz / Cadê o meu sol dourado? / Cadê as coisas do meu país?...” Na época, enquanto alguns protestavam, outros aderiam. Nas janelas das casas, nas vitrines das lojas, nos para-brisas dos automóveis, por toda parte se viam as cores verde e amarela da nossa bandeira. Essa onda ufanista era estimulada pelo “milagre econômico” (tínhamos média de crescimento de 10% ao ano), e por conquistas esportivas, como a da Copa do Mundo do México, em 1970, e a do mundial de Fórmula 1, com Emerson Fittipaldi, em 1972. Acreditava-se que o Brasil tinha se transformado numa grande potência e que havia ingressado numa era de progresso e desenvolvimento irreversíveis. Isso tudo acabaria se refletindo também na nossa música popular, com uma série de canções ufanistas. Uma das mais representativas foi a marcha Eu te Amo, meu Brasil, composição de Dom, gravada pela banda Os Incríveis, que retrata nossa terra como um paraíso erótico tropical e diz: “Eu vou ficar aqui porque existe amor” — respaldo ao radical slogan da ditadura “Brasil: ame-o ou deixe-o”. Quem também deu apoio a este slogan foi Jorge Ben Jor, com um samba adesista, pra lá de ufanista, Brasil, eu Fico, Fico gravado por Wilson Simonal, em 1970: “Este é o meu Brasil / Cheio

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de riquezas mil / Este é o meu Brasil / Futuro e o progresso do ano 2000 / Quem não gostar e for do contra / Que vá pra...”. Esse sentimento de ufania e de otimismo com o país aparecia também na letra de Nada sei de preconceito, samba de Leci Brandão, que reproduzia o mito de congraçamento racial e social no Brasil. “Minha terra é verde-amarela / e meu amigo branco é meu irmão / ele é do asfalto e eu sou da favela / mas existe a integração...” A partir de 1974, com a crise econômica e o fracasso do Brasil na Copa da Alemanha, começaram a rarear as canções ufanistas e também a exposição de verde-amarelo nas ruas. Esse contexto pós-“milagre” era mais propício a reclamações, como a de Raul Seixas na letra da canção É fim de mês, de 1975, que narra a angústia de um brasileiro da pequena classe média que vive no maior sufoco para pagar contas de luz, do gás e do “Kitchenete de um quarto / Que eu comprei pela Caixa Federal, au au au / Eu não sou cachorro, não...” – numa referência ao grande hit brega do cantor Waldick Soriano. “Este ano, quero paz no meu coração / Quem quiser ter um amigo / Que me dê a mão...”, insistiam Os Incríveis em 1976, sugerindo a possibilidade de congraçamento entre os brasileiros. No mundo real, as coisas não eram bem assim, pois o país estava politicamente cindido e clivado por brutais diferenças socio-econômicas. E quem não estivesse atento a isso podia ser alvo das patrulhas ideológicas — expressão cunhada pelo cineasta Cacá Diegues. Caetano Veloso, por exemplo, já de volta do exílio, foi muito patrulhado especialmente após gravar Odara, que indicava sua opção preferencial pelo prazer: “Deixa eu

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dançar / pro meu corpo ficar odara...”. “Dançar, nesses tempos sombrios?”, indagava, na época, a jornalista Ana Maria Bahiana. Sim, responderam as Frenéticas com o megassucesso Dancin Days, tema da novela homônima estrelada por Sonia Braga, em 1978: “Abra as suas asas / Solte suas feras / Caia na gandaia / Entre nessa festa...” O fim do AI-5, em dezembro daquele ano, confirmando o processo de abertura política, indicava também que a década de 1980 poderia chegar num clima mais respirável, sem necessidade de tanta sisudez da MPB — como a que Elis Regina ainda exibia ao cantar Aos nossos filhos, de Ivan Lins e Vitor Martins: “Perdoem a cara amarrada / Perdoem a falta de abraço / Perdoem a falta de espaço / Os dias eram assim...” Mas a própria Elis também relativizava ao começar a gravar na época temas mais soltos e descompromissados como Aprendendo a jogar, de Guilherme Arantes, e Alô, alô, marciano, de Rita Lee e Roberto de Carvalho. O grande sucesso do pop rock de Rita Lee naquela virada de década, quando ela se tornou mania nacional — “Meu bem,você me dá água na boca” — era um indício de que algo renovador estava por acontecer no cenário musical brasileiro. Isso se confirmaria em meados de 1982, com a explosão da Blitz e seu sucesso Você não soube me amar. A partir daí, rádios e gravadoras abriram espaço para outras bandas e cantores jovens como Lulu Santos, Leo Jaime, Barão Vermelho, Kid Abelha, Paralamas do Sucesso, Ultraje a Rigor... surgindo assim o chamado Rock Brasil ou BRock, na expressão do jornalista Arthur Dapieve. “Nós estamos aqui para revolucionar a música popular brasileira, pintar de negro a asa branca,

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atrasar o trem das onze, pisar sobre as flores de Geraldo Vandré e fazer da Amélia uma mulher qualquer”, prometeu na época Clemente, baixista da banda paulista Os Inocentes. A julgar por esse manifesto radical, o Rock Brasil chegava para romper com a tradição da MPB. Pelo menos na sonoridade das guitarras e, principalmente, das baterias, isso ocorreu, pois eram bem mais próximas do rock inglês. Entretanto, em um importante aspecto, eles não escondiam sua formação musical brasileira: nas letras. Tanto na temática — com seus protestos —, como na forma — estrutura dos versos —, era perceptível a influência de Caetano Veloso, Gilberto Gil, Chico Buarque, Luiz Melodia, Djavan e outros ídolos da MPB. Em Cazuza, por exemplo, era possível identificar influências ainda mais antigas como a da romântica Dolores Duran, que ele conhecia dos discos de sua mãe, Lucinha Araújo. O tema que serviu de trilha para as manifestações das Diretas Já, em 1984, foi um debochado rock-protesto da banda Ultraje a Rigor, que a cantora Nara Leão certamente adorou: “A gente não sabemos escolher presidente / A gente não sabemos tomar conta da gente / A gente não sabemos nem escovar os dente / Tem gringo pensando que nóis é indigente

/ Inútil! / A gente somos inútil!..” Naquele mesmo ano Chico Buarque também protestava com o samba Vai passar, evocando “um tempo/ Página infeliz da nossa história / Passagem desbotada na memória / Das nossas novas gerações…” Talvez nem tanto assim, mostrariam os jovens roqueiros. Quando em janeiro de 1985 o Congresso Nacional elegeu o civil Tancredo Neves presidente da República — fato que praticamente selou o fim do regime militar —, chegava às lojas o primeiro disco da banda Legião Urbana. Em uma das faixas, seu band leader soltava a voz em indagações: “Será só imaginação? / Será que nada vai acontecer? / Será que é tudo isso em vão? / Será que vamos conseguir vencer?...”. De forma mais explícita, em outra faixa, ele fazia uma corrosiva e irônica análise da geração que crescera sob o poder militar no Brasil: “Somos os filhos da revolução / Somos burgueses sem religião / Somos o futuro da nação / Geração Coca-Cola…”. Para os militares o show terminava em 1985. Para uma nova geração da música brasileira, estava apenas começando — e essa prometia, através de Renato Russo: “Agora chegou nossa vez / Vamos cuspir de volta o lixo em cima de vocês.”

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ESPAÇO LITERÁRIO CONTO

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Efeitos colaterais B. Kucinski

1 A garota dobra as peças de roupa de qualquer maneira e as vai socando rapidamente na valise. É uma moça bonita e esbelta. Veste-se com simplicidade: blusa branca lisa e saia verde-clara quase chegando aos joelhos. Parece muito nervosa. Ao lado, de pé, com as mãos nos bolsos, o velho acompanha seus movimentos, atento. Tem o olhar severo. — Chegando lá, diga que você quer falar com o oficial do dia. — Sim, pai. — Entregue as roupas ao oficial do dia, entendeu? — Sim, pai. — A forma correta é essa, procurar sempre o oficial do dia. — Sim, pai, já entendi. — Covardes. Levaram tua mãe porque não tiveram coragem de prender um oficial. — Disseram que era coisa de meia hora, pai; o tempo de ir ao quartel e voltar; foi por isso que mamãe não levou nada. — Além de covardes, mentem. Você colocou o pijama de flanela? — Sim, pai. — Não esqueça a escova de dentes. — Sim, pai. — E sabonete? Você colocou aquele que ela gosta? — Sim, pai. Coloquei. — E os chinelos, você colocou? — Sim, pai. — Não esqueça, exija a presença do oficial do dia.

— Eu sou filha do coronel e quero falar com o oficial do dia. — Você que é a filha do coronel___?

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— — — —

Sim. E quer falar com o oficial do dia? Sim. Passe por aqui. É um homem gordo, de uns quarenta anos. Tem rosto intumescido e olhinhos miúdos. Veste camisa encardida de cor indefinida, por cima de calças jeans, com os botões superiores desabotoados, exibindo um peito peludo. Não se barbeia há dois ou três dias. De sua boca pende um toco de cigarro apagado. Ele indica com o queixo um corredor estreito e segue-a com certa displicência, o corpo mole, os chinelos arrastando, o olhar fixo nas pernas da menina. — Entre nessa sala, ele diz, abrindo uma porta. A saleta é escura e de paredes nuas. Do teto, por um fio de pontas descascadas, pende uma lâmpada apagada. Num lado da saleta há duas cadeiras velhas e no outro, um colchão encarquilhado sobre tiras de papelão. Um caibro longo e grosso está apoiado no canto dos fundos. Ela hesita. O tipo displicente a empurra de supetão, entra atrás dela, tranca a porta por dentro num gesto rápido e cospe a ponta de cigarro. Ela se volta, espantada. — Tira a roupa. — O quê?! — Você é surda?! Falei tira a roupa! Ele repete e dá-lhe um forte bofetão no ouvido direito. Ela perde o equilíbrio e deixa cair a maleta. Tenta se recompor. Ele desfere outro bofetão, do lado esquerdo, ainda mais violento do que o primeiro. Ela cai de joelhos, as duas mãos apoiadas no piso. Ele a suspende pela parte de trás da gola e a atira no colchão. Ela tenta de novo se erguer. Balbucia: — Eu sou filha do coronel___ exijo a presença do oficial do dia. Com um pontapé, ele a empurra de volta ao colchão e joga-se em cima dela.

Dois minutos depois ele se levanta e fecha a braguilha. — Trate de se arrumar e cair fora. A maleta deixa aí que eu entrego.

2 O velho é conduzido pelo agente prisional à mesa dos fundos. Próximo à entrada, um casal conversa aos sussurros com um rapaz de rosto afogueado e cabeça raspada. Em outra mesa, uma mulher chorosa envolve com as duas mãos a palma estendida de um senhor de fisionomia cansada. São as únicas pessoas na sala de visitações.

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Na mão direita, o velho traz uma sacola de feira que parece pesada. Com a esquerda, segura o chapéu de feltro cinza, do tipo que há anos não se usa. Seu paletó, também dos antigos, de brim azul um tanto puído, sobra nos ombros e forma pregas em suas costas encurvadas. É um homem magro e alto, que já começa a encolher pela idade. Tem cabelos brancos ralos como penugem e apenas nas têmporas. Seu rosto é oval e alongado. Seus olhos são de um marrom pálido, quase amarelo, que parece ainda mais aguado no contraste com as órbitas avermelhadas de quem dormiu mal. Seu semblante é de expectativa. — Como está ela? Ele pergunta, ansioso, ao agente prisional. — Na mesma. A Larissa não muda. Pegaram nela pesado demais. Quem sabe hoje...aguarde nesta mesa. O agente prisional sai pela porta dos fundos. O velho permanece sentado. Muitos minutos se passam. O agente prisional retorna trazendo pelo braço uma moça magra e alta, de cabelos loiros cortados bem curtos. Seus olhos e seu nariz alongado se parecem com os do visitante. O velho se levanta, estende as mãos. — Lalinha, minha filha, como você está? — A moça esboça um recuo, mas o agente prisional a faz sentar-se à mesa, do lado oposto ao do velho. — Quem é você? O que você quer de mim? — Lalinha, sou eu, teu pai, o paizinho, você não me reconhece? — Você não é meu pai; meu pai tem olhos azuis. — Lalinha, de onde você tirou isso de olhos azuis? Meus olhos sempre foram marrons. — Seus olhos não são azuis, você não é meu pai. — Lalinha, eu te suplico... — Meu pai nunca me visitou, nem minha mãe. — Lalinha, o que é isso? Eu já vim três vezes, esta é a quarta...são doze horas de ônibus-leito...a sua mãe não pode, por causa das pernas... — De onde você sabe meu apelido de Lalinha? Quem te deu meu apelido? — Ninguém, minha filha, fui eu que inventei esse apelido, eu sempre te chamei assim, sou seu pai Lalinha, seu pai, minha filha... — Alguém te deu meu apelido. Você não é meu pai. Então eu não ia reconhecer meu próprio pai? Meu pai tem olhos azuis. — Mas meus olhos sempre foram marrons, Lalinha, igual aos seus, você puxou de mim... — Não me chame de Lalinha. Seu guarda me tire daqui. — Lalinha, por favor, eu te trouxe algumas coisas, um par de meias, uns livros, tua mãe fez aquele bolo de mel que você gosta. — Seu guarda, me tire daqui, esse homem está com coisa... O agente carcerário se aproxima e ergue a moça, com delicadeza. O velho estende as mãos de novo. Balbucia desolado: — Não vá, minha filha, não vá, acredite, eu sou seu pai, seu pai.

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O guarda sai com a moça pela porta dos fundos. Retorna em alguns minutos. O velho se ergue, estende ao agente a sacola e diz: — O senhor me faz o favor de entregar a ela. Não diga que fui eu que deixei. Ele dá ao agente uma gorjeta de vinte cruzeiros. — Digo o quê? — Entregue amanhã, diga que foi uma colega, diga o que quiser, só não diga que foi o pai que deixou.

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A sala não tem janelas nem porta. Sua entrada é uma abertura na parede do corredor do lado oposto à sala de interrogatórios. É escura como se fosse apenas um depósito. Mas é ampla e contém cadeiras, uma mesinha, dois sofás e uma pia no canto dos fundos. A mesa está encardida e os sofás puídos e ensebados. O ar, viciado, fede a cigarro, suor e cachaça. Na mesinha há vários copos, uma garrafa de aguardente e outra de água mineral, ambas quase vazias, e um cinzeiro repleto de bitucas. Na pia dos fundos, um negro retinto, jovem, robusto e alto, ensaboa as mãos e o rosto. Num dos sofás, esparrama-se de pernas abertas um homem gordo que aparenta ter uns quarenta anos. Seu rosto é bexiguento e sua tez, escura. Seus olhos avermelhados e com olheiras profundas sugerem uma noite passada em claro. Parece muito cansado. Fuma. Numa das cadeiras, está sentado de pernas esticadas um magrela, mais jovem, de cara macilenta, barba rala e cabelos loiros escorridos. Sua mão esquerda repousa no tampo da mesinha envolvendo um copo com aguardente pela metade. Também parece cansado. Os três policiais vestem calças jeans e camisas amarrotadas. — O chefe mandou limpar a sujeira toda, diz o gordo, em direção ao que lava as mãos, mas sem lhe dirigir o olhar. — Acabamos de limpar, responde o jovem negro. — E a papelada dele, os documentos? — Tá tudo no cofre. — Estou pregado, diz o magrela loiro. — E eu então, que trabalhei ele a noite inteira, diz o gordo. — Mas trabalhou errado, diz um militar que nesse exato momento surge na abertura do corredor. É um tipo alto, magro e ligeiramente estrábico. Está sem quepe e traz as insígnias de coronel. Ele continua: — Levamos um baile de um ano para chegar à identidade e ao endereço do cara e na primeira noite vocês já põem tudo a perder sem conseguir arrancar uma palavra! — Que é isso, chefe? O cara é um puta durão. Tanto assim que deu a zebra que deu. — Tinham que ter dado os intervalos, pro sangue circular. Quantas vezes eu expliquei que sem o intervalo de quatro em quatro horas pode dar gangrena?

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— Mas o doutor liberou, disse que podia continuar. — É outro incompetente. E relapso. Quando deu a merda nem estava mais aqui. Nesse momento surge atrás do coronel um sargento: — Chefe, tem uma pessoa no telefone querendo falar com alguém, é do hospital. — O que ela quer? — Diz que precisa de uma autorização. — Eu cuido disso. O oficial sai, demora-se alguns minutos. Quando retorna, parece pensativo. — O que foi chefe? Pergunta o gordo. — Querem amputar a perna direita dele. A família precisa autorizar porque ele está inconsciente. Dizem que se não amputar já ele não dura dois dias. — O que o senhor acha, chefe? — Vocês é que fizeram a cagada, vocês é que deviam achar. Se ele voltar, vocês garantem que ele fala? Ou não adianta? Ninguém responde. — Eu fiz uma pergunta, quero saber o que cada um de vocês acha – o coronel repete, fitando um, depois o outro. — Você, Baiano, você primeiro, o que você acha? — Eu acho que não adianta, diz o gordo. Depois de tudo o que fizemos, a noite inteira pendurado, não é agora que o filho da puta vai falar. — E você Tição, o que você acha? O jovem negro acabou de lavar as mãos e está se enxugando numa toalha encardida, pendurada num prego. — Talvez sem uma perna ele mude a ideia de tudo. — E você, Picolé? — Sei não, diz o magrela. O cara é durão mesmo. — O Mangabeira também trabalhou ele? Pergunta o coronel. — Também. — Veja se ele ainda está aí. O magrela, que eles chamam de Picolé, levanta-se de má vontade, larga o copo de cachaça na mesinha e sai pelo corredor. Um minuto depois volta com um rapaz moreno, de cabelo crespo, alto e encorpado, trajando calça de ginástica e tênis. Está suado e com uma toalha enrolada no pescoço. — O que você acha Manga? — O que eu acho do quê? — Do cara dessa noite, porra. O Sid. A merda que deu. — Mais merda? Não tô sabendo de nada. — Deu gangrena. O hospital diz que precisa amputar. Ou cortam fora a perna direita ou ele já era. Você acha que se pendurar de novo ele fala? — Duvido. É fita ruim. O cara é truta, não entrega. O coronel medita um pouco. Depois diz, em tom resoluto: — Três a um. Então, está decidido. Sargento, ligue de volta pro hospital e diga que nem o nome dele nós sabemos, muito menos endereço ou telefone da família.

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Siameses Juliana Frank

M

á-mãe aceitou, sem titubear, ser infeliz para sempre com Papai Almofadonho. Era um escritor plagiador cheio de escrúpulos. Reproduziu grandes gênios da humanidade e criou várias frases que ficaram célebres, como essa: “Uma rosa é uma rosa é uma rosa. Não vou sofrer mais sobre as armações metálicas do mundo, como o fiz outrora, quando ainda me perturbava a rosa.” Má-mãe não gostou, porque só Camões, né? Também não agradava as flores dele. Azucrinantes, repetitivas. Preferia asfixiá-las e vê-las irrespiráveis. Romances de papai, todos líricos, ela punha a língua pra fora e retorcia a boca de nojo a cada passada de olhos nas linhas. Ele fingia não se importar, copiava com pretensão petulante ao esperar os resultados já obtidos dantes pelos poetas originais. Passava tardes terrificantes escrevendo: longos são os caminhos da Galileia e curta a piedade dos homens. O destino é o seu próprio contrarregra. Eu vou pegar seu retratinho e colocar numa medalha, pendurá-lo no meu peito onde o coração trabalha. Papai dizia que escrever é um processo fatigante; após terminar suas frases, dormia 20 das 24 horas do dia. Não me impressionava ele ter um semblante muito melhor que o dos gatos. Bom mesmo, para ele, era acordar, ler sua produção diária e sentir orgulho do feito! Escrever não, escrever o padecia. Um dia, Má-mãe pediu para que ele escrevesse algo sobre vaginas. Na veneta de Papai brotou uma história riquíssima de uma mulher árabe e lasciva que viveu no interior de São Paulo. A mulher cha-

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ma-se Uardi, mas ele preferiu “Feliciena” — nome usado uma vez e esquecido nos antros literários. Começou a história. Feliciena era adolescente e tinha um amante para quem dava a Tuchê. Má-mãe interrompeu a narrativa. Não queria que chamasse “Tuchê”. Mas era assim na história original, e ficou para sempre gravada nos orais e anais da literatura — defendeu papai, decidido. Tuchê era o nome da vagina e nada feito, continuou. Feliciena resolveu raspar a Tuchê para encontrar o seu amante e trepar com ele dentro do carro, como fazia aos domingos. Mas não sabia usar a gilete, portanto raspou ao avesso do pelo. Que pamonha!, disse Má-mãe, é como fazer carinho no gato ao contrário. A história já foi publicada e louvada, façamos assim — Papai prosseguiu. Raspada, a Tuchê ficou encarnada, carne viva, dolorida. Aos braços do amante Feliciena atirou-se. Dentro do carro, com o pau latejando, o amante a despiu com um tesão desorientado, mas, ao ver a Tuchê vermelhona, a atirou para fora do carro, gritando – Leviana! Ave de rapina! Rameira barata! Feliciena passeou pela cidade do interior nua, como quis nosso senhor. A Tuchê tão viva na cor de sangue que todos notaram. Pensaram que era doença da depravação. A família a atirou para o próprio azar ou sorte. Feliciena se entregou à jogatina. Apostou no vermelho. Deu preto. Nem um cão entre os amigos Feliciena encontrou. Daí teve mesmo que se prostituir, mas apesar da vagina encarnada e receptiva, era moça de família, bons modos, sabia segurar talheres sem embaraços. Casou-se rapidamente com um homem que odiava... Má-mãe disse: Não! História velha. Cheia de moral. Copie algo valoroso. Mas papai não sabia escolher algo que a agradasse. Má-mãe o encontrou pendurado num lustre trazido por ela do Extremo Oriente. Aos seus pés, uma carta que trazia suas últimas palavras: Não me esperem para o jantar. Suicídio, claro, alternativa de qualquer escritor que se preze. Como não poderia deixar de ser, a carta era um plágio.

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Gravura José Rufino

A

violência que usou para me chutar na cara foi tamanha que o sapato arrancou-se. Não sei de onde tirei forças pra me manter sentado naquele chão escorregadio: mãos amarradas nas costas, corpo nu, exposto contra o ambiente tingido por uma taxonomia completa de organismos de suplício. Mãos amarradas nas costas e o corpo nu, ali, preparado para os linchamentos como um mero suporte: trêmulo, atrativo. Ele trouxe uma lata e deixou do meu lado, e também um tamborete. Eu estava bem no meio da saleta sinistra. Eu era seu boneco, ali, ao lado da lata, e ele sentado num dos cantos da saleta. Primeiro ficou calado. Depois falou umas merdas contra comunistas e continuou, seu comunista de bosta. Eu não temia a dor e, se escapasse dali inutilizado como homem, tendo em vista a obsessão daquele sujeito pelo meu pau, meu saco e também meu cu, não seria dos males o maior, pois já era pai de dois filhos. Aleijado eu não queria ficar, pra não dar trabalho a Violeta e aos meninos. Hoje eu vou cuidar direitinho de você, seu comunista de bosta. O chute na cara quebrou-me alguns dentes, que eu cuspi com a pasta grossa de sangue e também abriu uma coisa que ficou se movimentando acima de um dos olhos. Ele nunca tinha me chutado na cara. Ele teve que parar a brincadeira e foi pulando num pé

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só até recolher sua arma. Foi assim, ridículo, para não molhar a meia, visto que o chão era só mijo, resto de sangue e água suja. Calçou o sapato, escorando-se na parede e eu quase soltei um riso misturado com baba vermelha. Ele ofegava de uma forma tão forte que parecia até um choro, mas não era. Era adrenalina mesmo e o esforço físico desprendido para tamanha violência. Então se sentou novamente no tamborete de algoz e ficou ali recuperando o fôlego. Seu bosta. Somente naquele momento eu percebi o estrago e não era na cara e sim na parte de baixo das costas, nos rins, baço, sei lá. Era coisa em órgão importante, visto que, mais que uma dor, o que eu sentia era uma onda quente tomando conta das minhas entranhas. Devia ser o baço mesmo, rompido, e eu pensava mais no baço do que em outro órgão porque um companheiro da Bahia tinha passado por esse mesmo tipo de brincadeira e saiu com o baço ferrado, partido. Tá achando pouco, comunista safado? Foi aí que eu senti um zunido atravessando meus ouvidos e a saleta arregaçou-se de cabeça pra baixo. Não sei quanto tempo isso durou e o que veio depois. Não sei se a brincadeira continuou e nem como. Só sei que fui despertado do transe com a torrente de água fria. Pensei que fosse me afogar. Logo que a água caiu, eu não sabia direito se estava sendo jogado dentro d’água ou se alguém jogara água sobre meu corpo. Completamente desorientado, não sabia sequer se estava deitado ou de pé. Fui recobrando a consciência aos poucos e então pude focar bem os sapatos do sujeito no nível dos meus olhos. Eu ouvia os gemidos cadenciados vindos de outras câmaras, lambendo minhas feridas como cães que lambem as feridas de outros. Levanta seu bosta, o chefe quer falar com você. Era só o que faltava. Eu estava um trapo, um morto-vivo todo mijado, a bunda suja de merda rala e golfando sangue e o tal chefe queria me receber no gabinete dele. Não demorou muito para que eu sentisse outro jorro de água

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fria. Vamos, vamos; levanta! Tudo o que eu consegui foi me sentar, todo torto, quase sem sentir o corpo da cintura para baixo. Não sentia exatamente dor. Era mais um torpor, uma sensação febril, um inchaço geral. O algoz continuava ali e naquele momento o que eu via era parte das suas coxas roliças, era a trama da calça de tergal e as mãos de dedos grossos que ele batia nas coxas, para apressar minha recuperação. Vamos cara. Dá pra se levantar. Eu não conseguia e se não me apoiasse com as duas mãos ainda amarradas naquela pasta podre do chão, cairia novamente feito corpo de morto. O algoz deixou a sala de entretenimento e voltou com as mãos dentro de sacos plásticos, fazendo vezes de luvas. Vamos, vamos. Levanta. Segurou nos meus antebraços com força e levantou a porcaria do resto do meu corpo, com cara de nojo. Dá pra se segurar? Desamarrou o fio duro quase decepando meus pulsos. Guiou meu resto esfolado até a parede onde ficava a porta de saída e com a voz mais atenuada, quase melosa, vai se segurando na parede. E foi assim que eu fui, deixando um rastro imundo na parede de azulejos. Levei ao pé da letra e fui imprimindo minhas tintas de tortura na superfície lisa, fazendo verdadeiras gravuras. Fiz umas paradas como se estivesse numa via crucis e deixei a gravura do meu corpo em mais de uma posição: de lado, de costas, de frente, só o antebraço arrastado. Eu me esfregava bem nos azulejos frios e o algoz apenas me observava e indicava o rumo. Depois de ter produzido uns bons metros da minha gravura corporal, usando vermelhos viscosos e aguados, sucos retais, babas de boca e outras tinturas orgânicas, o guia me afastou da parede. Tá bom, você tá pensando que é artista é? Eu ainda consegui esticar o braço fraco e gravar a palma da minha mão em vermelhão intenso, tal qual gravura rupestre. O algoz emitiu um som curto, mistura de riso contido e era só o que faltava. Então fui direcionado para um banheiro largo

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com mictórios na parede e vaso sanitário sem tampa, imundo, num compartimento sem porta, e um chuveiro no vão aberto, apenas separado pelo rebaixamento do piso. Ele me soltou ali. Vai, se limpa todo aí. Saiu por uns instantes e voltou com um pedaço de sabão de barra. Eu recebi o sabão da mão dele e trocamos olhares confusos. Ele se afastou e ficou me olhando. Atrás, limpa atrás. Virou-se, urinou, lavou as mãos, as agitou, por falta de toalha. Aquele banho parecia mais uma preparação para a morte, um presságio aquoso. Eu pensava que iam dar cabo de mim, que iam me jogar em algum barranco, simular um acidente, um atropelamento ou qualquer coisa do gênero. Na melhor das hipóteses, seria enviado para a ilha de Fernando de Noronha. Chega rapaz. O major tá apressado. Saí do banheiro ainda me escorando nas paredes, seguindo o algoz pelo mesmo corredor até chegar numa sala que funcionava como misto de refeitório e vestiário dos cabras. Tinha uma mesa com dois bancos compridos ao longo de sua extensão, um armário de portinhas numeradas e cadeados, um varal improvisado com uma corda que atravessava a sala, uma bancada com um pequeno fogão, botijão de gás e umas poltronas velhas de escritório. Lá estavam dois outros sujeitos, um magro de cabelos grisalhos e um moreno. Eles me olharam dos pés à cabeça como quem vê uma sobra de demônio. Um bateu no braço do outro e deixaram a sala como se obedecessem a uma rotina de ética: eu pertencia ao outro algoz, ao meu algoz pançudo de calças de tergal, sapatos sociais e camisa de mangas compridas. O pançudo arrancou uma toalha encardida do varal e jogou sobre minha cara, de onde minavam filetes de sangue. Eu me enxuguei diante de seus olhos, até as partes, e soltei a toalha no chão, pois não conseguia me curvar para enxugar as pernas. Ele empurrou a toalha com os pés para o canto da parede, virou-se e me entregou umas roupas. São suas, veste aí. Eu procurei a cueca, mas só havia as calças, a

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camisa de mangas curtas e as meias. Ele puxou uma cadeira de rodízios e encostou atrás de mim. Eu sentei e vesti a calça até as coxas, com enorme dificuldade, com vontade de arriar o corpo no chão. Vamos rapaz, o chefe tá esperando. É coisa boa. Segurou então nos meus braços, por trás, me levantou um pouco e eu puxei as calças. Vesti a camisa gemendo, mas não consegui abotoar, minhas mãos não tinham controle para aquela tarefa mais delicada. O algoz então puxou os lados da camisa azul-clarinha e abotoou tudo. Sacou do bolso um pente pequeno e me entregou. Eu quase não consegui levantar o braço e tampouco baixar a cabeça. Portanto, o penteado não foi feito por mim. Novamente o algoz executou a tarefa, penteando forte minha cabeleira untada de sangue. Atirou o pente na direção da toalha, me levantou e me segurou pelas axilas enquanto eu fechava o botão da calça, o que demorou uma eternidade. Era impressionante estar ali amparado pelo mesmo sujeito que me torturava, o mesmo que amassava meus testículos, que enfiava coisas em brasa na fenda do meu pau, que mexia tanto no meu cu que eu nem ser dizer o que fazia. Era como se existissem partições no mundo, como se tudo fosse um filme e ao estalido da claquete a cena mudasse de terrível para afetuosa. Eu sentia alguma coisa diferente, havia algo se revelando naqueles olhos gordurosos. Dá pra ir sozinho? Fui então tentando me aprumar na direção do gabinete do chefe. Entra aí, rapaz. Senta aqui – falou o chefe, com entonação animada – o homem tá entregue, sargento. Eu permaneci parado na porta. O algoz estava bem atrás de mim. Deu tapinhas no meu ombro e disse Deus lhe acompanhe. Eu entrei na sala onde o tal chefe estava e sentei em uma cadeira ao lado de um sujeito que já estava sentado na outra. Boa-tarde, camarada – falou o chefe, soltando um riso forçado — o negócio é o seguinte: o amigo aqui vai levar você. Vamos ver se você se apruma rapaz. Você tem costa quente, mas o

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pessoal lá de cima não quer saber disso não. Aproveita tua chance, te orienta e boca calada. Foi naquele momento que eu realmente conheci o medo. A aparência do sujeito que ia me levar era horrorosa, rude. Tinha toda a cara de um matador de aluguel, de capataz de usina. Um silêncio pressagiador lavou o corredor dos suplícios. O homem então se levantou, enfiou as mãos grandes debaixo das minhas axilas e me ergueu com muito cuidado. Colocou meu braço esquerdo sobre seus ombros e me segurou pelas costelas, com muita habilidade. Saímos assim, pelos fundos do prédio. O carro do homem estava no estacionamento de trás, ao lado de viaturas e de uma ambulância velha. Meu instinto de guerrilheiro ainda estava ativo e eu tratei de mapear tudo, enquanto o homem me ajeitava no carro. Deixamos o Recife na direção da Mata Sul e somente enquanto passávamos pela cidade do Cabo foi que o desconhecido abriu a boca. Foi dona Vitória que conseguiu livrar a pele do senhor. Vamos pro engenho Ribeira, do coronel Sampaio. Perguntei então se estava sendo levado pra casa desse coronel e ele disse que não, que eu ia ficar na casa dele, por uns tempos, até a coisa toda se acalmar. Disse ainda que minha mulher, Violeta, tinha mandado roupas, comidas, remédios e uma carta. A casa simples era um verdadeiro enclave de bucolismo no meio da vastidão do canavial. Tudo estava calmo, quase serenando. O capataz me ajudou a descer do carro e me conduziu até o cômodo que passaria a ser meu quarto. Deitou-me com cuidado na cama simples, forrada com lençol branquinho; abriu a janela e eu fiquei ali sendo observado. É esse o homem pai — Muito prazer companheiro. Seu Severino ao seu dispor. Pode ficar tranquilo, aqui é todo mundo companheiro de luta. Recebi a carta de Violeta repleta de recomendações e pedidos, além de uma pequena fotografia dela com Lenine e Leon, sentados no seu colo, como dois bonecos.

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ESPAÇO LITERÁRIO POESIA

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Ana Martins Marques

A imagem e a realidade Refletido de um poema de Manuel Bandeira

Refletido na poça do pátio o arranha-céu cresce para baixo as pombas – quatro – voam no céu seco até que uma delas pousa na poça desfazendo a imagem dos seus tantos andares o arranha-céu agora tem metade

Ícaro Em sua boca a palavra amarelo cintila como um girassol e então beijá-la me acenderia por dentro como uma lanterna e a intimidade seria impossível – como ser íntimo do sol?

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Constelação

Faca

Toda uma noite observando a distante constelação das tuas costas

Como chamar faca

unindo os pontos talvez algum destino se desenhe

enfiada no peito?

tanto aquela enfiada na fruta como aquela como chamar fruta tanto o sol polpudo da laranja quanto a lua doce da lichia?

são sempre setas e bestas esfinge, cabra, centauro

como chamar peito tanto o peso oco do meu coração quanto o peso oco do teu coração?

o que me negas dão-me

Mudança Em caixas nossas coisas as cadeiras e as xícaras os travesseiros e as plantas os livros e os sapatos soltas na calçada revelam que a ideia provisória de ordem era isto apenas: uma ideia provisória com a qual vivemos neste quarto nestes quatro últimos anos como se fosse isto: a vida e agora tudo se mistura novamente os vestidos e os versos os talheres e os tênis as meias e as mentiras após um pequeno dilúvio pessoal tudo se mistura e então reparte os discos e o desejo os pensamentos e os pratos a samambaia e a saudade em duas direções em pontos quase opostos da cidade

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Fabiano Calixto SOL VERMELHO Em memória de todos aqueles que, além de acreditar, lutaram por um mundo melhor

1. cada vez que você respira é como se um anzol mergulhasse fundo em minhas retinas e arrancasse do abismo dos meus olhos lágrimas de outro coração um coração baleado ao meio-dia por um soldado do governo sob um sol de chumbo e miséria um coração engolido pelo monstro do SNI meu coração queimado com pontas de cigarro seu coração, exausto e quebrado, no pau de arara estuprado pelas hóstias elétricas do Papa cineminha obsceno do maldito empresário dinamarquês corações trocados por moedas pelos cabos anselmos pelos generais, pelos fascistas, pela classe média corações estourados, carregados sujos e semimortos pelos covardes combos da folha da manhã da garganta da gárgula a noite carbônica derrama-se sobre os párias e vira-latas sobre todo o concreto armado sobre os cadáveres 2. come panetone com mostarda, louco, e vê nos food trucks as cabeças humanas prontas para petisco vê as bocas podres da rataria capitalista cheias de água e pus e sede de sangue despida brutalmente pelos policiais, fui sentada na “cadeira do dragão”,

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sobre uma placa metálica, pés e mãos amarrados, fios elétricos ligados ao corpo tocando a língua, ouvidos, olhos, pulsos, seios e órgãos genitais 3. Bacuri ávida, a utopia saliva feito carne viva Bacuri luta contra a manseira, essa rosa fria Bacuri gênio da guerra retórica, libertária lábia Bacuri que sabia que só a coragem é sábia Bacuri

Bacuri nosso carnaval não chegou e estes dias choram pela aurora batalhadora mas ainda há tempo de repassar aos moços a metralhadora de sonhos (os malditos agora depois de nos quebrar o coração nos cobram a luz do verão) não há mais cobertor de lã para o seu intenso frio sul-americano e seus olhos ainda fitam, camarada, a fantasmagoria do centro da cidade

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4. no rádio, Inglaterra x Tchecoslováquia chumbo na luz dos postes, bala na Variant look, we don’t like this kind of method but it’s the only way to save our political prisoners you know very well they are suffering all kinds of tortures and some of them are going to be murdered apenas é noite há sardinhas de semolina, cebolas roxas um madrigal lúgubre nas artérias ... 40 presos políticos em liberdade 5. Capitão! Ó meu Capitão! ... meu Capitão não responde seus lábios estão pálidos e quietos ... para você, mil ramos de flores e toda a multidão nas ruas

6. Marighela, nossos olhos ainda choram no futuro vazio escuro e baço onde um velho de olhos citrinos e bigodes escuríssimos

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que por por com foi

teve os rins rasgados uma baioneta se recusar a amamentar tubarões seu suor enterrado com suas muletas

a lua pregada no céu como a angústia nesta redoma de recusas onde o rastro dos astros se faz perceptível algumas campânulas azuis perfumando a palavra adeus 7. não somos os únicos mortos da aldeia, Tito agora vejo você tocando violão num dia qualquer de inverno com seus óculos grandes, barba de Trotsky numa fotografia do arquivo dos Frades Dominicanos antes de ter conhecido a sucursal do inferno antes de terem te dado a “hóstia sagrada” antes de terem esmagado seus testículos toda vez que passo pela Bento Freitas (vindo da rua Aurora — onde estão enterrados os pés de Mário de Andrade) lembro da Livraria Duas Cidades lembro destes versos seus: uma Nazaré humana, abrigo dos pobres, sustento dos fracos em paisagens distantes agora é um dia de nevasca forte sem vinho, pão ou parábola os sonhos todos estilhaçados num dia frio na copa de um álamo é melhor morrer do que perder a vida

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Marcelo Diniz

Meu desejo é lustrá-la com flanela, e lê-la quando limpa e cristalina; reler-lhe o que se vela na mais fina fioritura da lã que a desnovela; desejo-lhe prazeres de donzela livre que, no tálamo, declina, em si, libidinosa e sibilina, as sílabas que só dos lábios dela; desejo-a nua, ainda que vestida, despida em seu mais íntimo palácio; desejo-a sua e minha, despossuída; desejo-me seu, pois, não desejasse-o, não provaria a língua a crisálida tampouco o mel que avia a flor do lácio.

Roubar de toda rima o riso leve, roubar do leve a pena e, desta pena, roubar o instante branco da serena queda e roubar da queda a calma breve; roubar do breve o brilho que se atreve, e, do súbito brilho, a mão pequena que no vazio soube ser mais plena, e, do vazio, o nada em que se escreve; roubar, roubar, roubar, roubar, roubar, e de tanto roubar, roubar também o sentido que houvesse no roubar, e, ao roubar sem sentido, roubar sem receio de a si mesmo se furtar até não ser mais nada de

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ninguém.

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- O que será dos versos que escrevi? perguntou-se uma vez um poeta sério Que sejam lapidares no minério, que conservem a suma do que vi! Perplexo - O que estou fazendo aqui? por sua vez, perguntou-se o joco-sério, respondendo em paródia e despautério - Este mundo é somente um rir de si! - Se tudo ri de tudo e nada resta, se, desde sempre, pouco importa o assunto, há de ser esquecido até o que presta; se ainda assim eu limo, eu meço, eu junto, teimoso, um verso ao outro, testa a testa, o que eu faço de mim? — eu me pergunto.

Para movê-lo, gire a manivela cuja polia liga o molinete, até que, todo tenso, o galhardete estique toda mola da arandela; se a ponta desnivela, a bolidela de leve na cabeça do alfinete basta para que cada bastonete encaixe-se no bico da arruela; além deste macete, um peteleco bem dado no rebite da ampulheta acelera a bobina deste treco que roda a carrapeta da roleta e destrambelha todo o cacareco da rebimboca até a parafuseta.

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EU RECOMENDO No relato sobre a guerrilha, um sóbrio exercício de autocrítica Marcelo Moutinho

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o fim de 1978, o então exilado político Fernando Gabeira caminhava pelo Champs-Élysées quando se deparou com os jornalistas Milton Temer e Ziraldo. O encontro acabou redundando em uma longa entrevista ao jornal O Pasquim, da qual participou também o antropólogo Darcy Ribeiro. Foi essa conversa, em que Gabeira falou sobretudo a respeito de sua experiência na resistência armada à ditadura militar, a gênese do livro O que é isso, companheiro?, lançado um ano depois. Li a obra pela primeira vez quando ainda era adolescente, na ânsia de compreender melhor o Brasil e suas contradições. Mais tarde, o texto foi fundamental para minha monografia de conclusão no curso de Jornalismo, que versou sobre a trajetória política de Gabeira. Misto de ensaio e compêndio de memórias, o livro relata a participação do autor no sequestro do embaixador norte-americano Charles Elbrick, a posterior prisão e o exílio na Europa. A perspectiva maior, no entanto, é a reavaliação das ações da esquerda durante o período autoritário. Gabeira afirma, sem hesitar, que a opção pela luta armada foi um equívoco e explicita o hiato existente, na época, entre as aspirações dos militantes dos movimentos organizados e os anseios da população em geral. Hiato que talvez persista ainda hoje. Com mais de 300 mil exemplares vendidos desde a primeira edição, O que é isso, companheiro? tem um registro sóbrio e até algum humor. Ao narrar os acontecimentos em primeira pessoa, Gabeira se vale de técnicas ficcionais e deixa patente que se trata de uma visão absolutamente pessoal. O questionamento do autor quanto às próprias escolhas se exprime como exercício de autocrítica. Mas, para além disso, ajuda a iluminar, sem glorificação do passado, um período sombrio da história brasileira.

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EU RECOMENDO Duas adaptações de Kafka para o cinema Marcelo Ikeda

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daptar uma obra literária para as telas do cinema é sempre uma tarefa árdua, pois trata-se de duas linguagens distintas. O cineasta precisa sempre mostrar – o cinema, como diria André Bazin, assim como a fotografia, tem como referente o real. Temos o escritor e o cineasta. Dois autores distintos; duas linguagens distintas. Um bom filme não necessariamente surge de uma obra literária exemplar; ou ainda, uma obra literária exemplar não necessariamente produz bons filmes. É preciso, então, um diálogo. Não é possível, portanto, fidelidade plena entre o livro e o filme: o filme é um outro, uma obra de outra natureza. O livro precisa ser um ponto de partida para o cineasta, antes que uma meta de chegada. Por outro lado, acredito que o cineasta deve ser generoso: transpor uma obra literária para o cinema é, antes de tudo, encontrar um equilíbrio justo entre o gesto do escritor e o olhar do cineasta. Ainda que o cineasta transponha a obra para suas próprias intenções autorais, é preciso uma certa responsabilidade para que o filme não violente por completo a essência do trabalho do escritor. Neste espaço, penso em particular nas singulares obras de Franz Kafka, um dos mais admiráveis escritores deste século, cuja radicalidade da linguagem, seu humor corrosivo, sua objetividade cristalina, sua límpida descrição do absurdo da condição humana, tornam a tarefa do cineasta uma missão nada trivial. Pois a literatura de Kafka também se baseia em mostrar: não há espaço para a psicologia, para a introspecção intimista. Mas como mostrar? Dois cineastas, em particular, produziram adaptações de obras de Kafka que, sem deixar de dialogar com a natureza dos trabalhos do escritor, ao mesmo tempo podem ser inseridos num trabalho de linguagem que remete à própria pesquisa desses notáveis realizadores, ou seja, que desvelam uma pesquisa cinematográfica.

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O primeiro deles é Orson Welles em O processo. Alijado da indústria holywoodiana, Welles transpôs a obra de Kafka para um sentido político que sugere os ecos do nazismo, do macartismo norte-americano e da própria Guerra Fria. Esteticamente, Welles utilizou uma fotografia em preto e branco com planos longos e movimentos de câmera sinuosos, aliados a uma grande profundidade de campo, que é a marca do estilo do realizador desde seu clássico Cidadão Kane. Assumidamente não linear, Welles abre seu filme com uma narração que resume o famoso conto “Diante da lei”, que, inserido no livro de Kafka, ocupa os últimos capítulos. Como uma espécie de prólogo, o filme se inicia com um tom austero, com a leitura de trechos do conto pelo próprio Orson Welles, que não deixa de ser uma síntese das preocupações éticas, estéticas e políticas de ambos os realizadores. Uma adaptação ainda mais radical da obra kafkiana é Relações de classe, realizada por Jean-Marie Straub e Danièle Huillet em 1983. Trata-se de uma adaptação do romance inacabado – aliás, como todos os romances de Kafka - Amerika. O livro dialoga com O processo em algumas das obsessões do escritor: o absurdo da lei, a crítica ao capitalismo como opressor da liberdade do indivíduo, o clima de pesadelo que se aprofunda por meio de uma espiral crescente. A adaptação dos dois diretores radicaliza as premissas de Kafka: não há no filme planos gerais dos Estados Unidos (inclusive, o filme foi filmado na Alemanha). Importa muito mais uma construção cênica em que o próprio movimento dos corpos é cooptado pelo sistema, por uma decupagem meticulosa, em que o olhar, os gestos e o tom da voz expressam a falta de liberdade do protagonista, que para ser alguém, precisa, antes de tudo, ter um emprego. Se o cinema de Welles possui uma languidez barroca, um certo sensualismo, o cinema de Straub-Huillet opta por uma aridez minimalista, com extremo rigor da mise-en-scène, que dialoga politicamente com o teatro brechtiano e aponta para o teor político do livro. Ainda que com opções de linguagem diferentes, acredito que Welles e Straub-Huillet, dois grandes cineastas do cinema moderno, resgataram a essência do discurso de Kafka, embora dialogando com as questões intrínsecas à sua própria trajetória como realizadores. Se deixaram de mostrar – esse eterno dever dos cineastas –, ambos souberam lidar com o enigma Kafka apostando em elipses que desnorteiam o espectador, preservando a violência e o impacto das obras de Kafka, seu teor especialmente político, mas também abrindo espaço para o indizível, para o mistério, para o não dito. É isso que torna O processo e Relações de classe grandes filmes, porque, por meio deles, é possível ver Kafka refletido num espelho, em que também se pode vislumbrar o precioso trabalho de Welles e Straub-Huillet.

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DICAS

Música CALE-SE, A MPB E A DITADURA MILITAR Manu Pinheiro, Livros Ilimitados — Singular,2011 CALE-SE - A MPB e a Ditadura Militar parte da análise de um dos períodos que mais marcaram a História do Brasil e a produção cultural do país àquela época. Apontando as letras das canções compostas nos anos mais duros da ditadura (1964 a 1974), reforça a ideia de que a música serviu – e serve - como uma importante ferramenta de comunicação, carregando mensagens (as mais variadas possíveis) com as palavras e frases que formam suas letras. Em uma época em que a censura restringia o acesso da população brasileira à informação, a música (aqui representada pelo segmento MPB) torna-se, de fato, um importante porta-voz.

JORGE ANTUNES UMA TRAJETÓRIA DE ARTE E POLÍTICA Gerson Valle, Editora Sistrum, 2003 Jorge Antunes tem a tranquilidade de quem chegou aos 60 anos (completados em abril) com bagagem abarrotada de mais de 300 composições e a certeza de que é a vanguarda. Jorge é pioneiro da música eletroacústica no Brasil. A revolução para Jorge Antunes, não assume, em momento algum, seu tradicional feito militar. Há a revolução estética. E há luta política. A obra de arte, para Antunes, parece seguir um caráter messiânico de libertar os povos sem necessitar pegar em armas, fuzilar ninguém.

Artes Cênicas TEATRO DO OPRIMIDO E OUTRAS POÉTICAS POLÍTICAS Augusto Boal, Cosac Naify, 2013 Teatro do oprimido é o livro mais conhecido de Augusto Boal - foi traduzido para as principais línguas do ocidente e do oriente. Nela estão os fundamentos teóricos e técnicos desenvolvidos por Boal nos anos seguintes em obras que falam às pessoas comuns e vão muito além do palco, ganhando ruas, praças, escolas, parlamentos e clínicas, na tentativa de nos libertar das opressões impostas e das que criamos dentro de nós mesmos.

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OFICINA: DO TEATRO AO TE-ATO Armando Sérgio da Silva, Perspectiva, 2008 O conjunto da Rua Jaceguai foi, na década de 60, o veículo pelo qual o palco nacional incorporou algumas das pesquisas mais renovadoras do teatro contemporâneo, chegando, em 1967, com a montagem de O Rei da Vela de Oswald de Andrade, a uma expressão cênica, se não a uma linguagem, inteiramente original do ponto de vista artístico e profundamente significativa do ponto de vista da realidade brasileira. Através de um estilo fluente e acessível tanto ao leigo quanto ao estudioso, Armando Sérgio da Silva levanta historicamente e analisa criticamente a trajetória cênica deste marcante grupo paulista. A CRÍTICA DE UM TEATRO CRÍTICO Rosângela Patriota, Perspectiva, 2007 O livro focaliza a obra e o pensamento de um dos mais inventivos e vigorosos dramaturgos do teatro brasileiro na segunda metade do século XX - Oduvaldo Vianna Filho. Sem deixar de lado, e mesmo ressaltando a importância das preocupações sociais e políticas que marcaram a produção deste autor, Rosângela Patriota vai além das trilhas mais usuais das interpretações correntes e aprofunda o exame das contribuições estéticas da narrativa teatral de Vianinha, mostrando que também ele, timbrou em pôr em cena um dos princípios maiores do tablado ‘participante’, isto é, que ao conteúdo revolucionário deve corresponder uma forma revolucionária, tendo trabalhado os dois elementos em conjunto na realização de suas peças, sem subestimar um em relação ao outro.

TEATRO DE ARENA Izaías Almada, Boitempo, 2004 Num dos momentos mais criativos da cultura brasileira, o final dos anos 1950 e início dos 60, o teatro desempenhou um papel tão importante quanto a música e o cinema. Até o surgimento do Arena, a tendência dominante no teatro brasileiro era o rigor formal, quase solene, da mesma forma que a política era coisa de adultos. Rompendo o fosso entre atores e espectadores, na arena do teatro da rua Teodoro Baima aprendia-se concretamente o que dizia Brecht sobre a relação entre arte e revolução, entre política e cultura, entre música e teatro. Este livro preenche uma lacuna bastante séria, estabelecendo um primeiro marco na literatura que se faz necessária para a compreensão desta experiência teatral tão viva e fecunda como foi a do Oficina.

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Artes Visuais ARTE DE GUERRILHA: VANGUARDA E CONCEITUALISMO NO BRASIL Artur Freitas, Edusp, 2013 Arte de Guerrilha examina a produção de artistas de vanguarda no Brasil no período da ditadura militar, entre os anos de 1969 e 1973. O objetivo de Artur Freitas é o de especificar, no interior da produção dita contracultural, as estratégias da arte de guerrilha, ou do “projeto conceitualista” como prefere, que reagiram à repressão política, à perda de direitos e à censura às artes, frutos do AI-5. O autor elegeu algumas obras como sintomas do imaginário do período, priorizando a interpretação cuidadosa de seis obras, ou intervenções, de três artistas: Cildo Meireles, Artur Barrio e Antonio Manuel. ARTE COMO QUESTÃO: ANOS 70 / ART AS A QUESTION: THE 1970’S Org. Gloria Ferreira, Instituto Tomie Ohtake, 2009 Na década de 1970 (mas ainda compreendendo pouco antes e pouco depois), havia, em todo o mundo, um “solo comum”, como diz a crítica carioca Glória Ferreira: era tempo em que “todas as certezas, parâmetros e valores foram questionados” e, como parte desse contexto, a arte contemporânea quis firmar seu lugar, repensar seu papel, inserir o teor político e crítico nas obras. É o período que se costuma identificar como o da arte conceitual, em que os artistas “buscavam dar formas para conteúdos políticos” - em se tratando do Brasil, a questão política entrou nas criações não somente como “resistência à ditadura militar”, mas também como “defesa do espaço da arte contemporânea”. AS CAPAS DESTA HISTÓRIA - MEMÓRIA GRÁFICA DA RESISTÊNCIA A DITADURA MILITAR José Luiz Del Roio, Vladimir Sacchetta e Ricardo Carvalho, Escrituras, 2012 O livro reúne imagens de jornais alternativos, clandestinos e produzidos no exílio entre 1964, ano do golpe, e 1979, quando foi aprovada a Lei da Anistia. A obra traz ainda capas de jornais considerados precursores das publicações dos anos de chumbo. São imagens de publicações que rodaram no exílio, em países como Chile, México, Suécia, Itália, França, Portugal e Argélia.

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EM BUSCA DO POVO BRASILEIRO: ARTISTAS DA REVOLUÇÃO, DO CPC A ERA DA TV Marcelo Ridenti, Unesp, 2000 Aproximar-se do “povo” era uma das aspirações mais caras tanto dos militantes de esquerda quanto dos artistas e intelectuais brasileiros durante a ditadura civil-militar de 1964-1985. O novo país que eles almejavam construir, necessariamente, brotaria das raízes nacionais. O que os inspirou nessa busca, que refluiu após o triunfo da lógica do mercado global, nos anos 1990? Que herança teria deixado?

Cinema O DIA QUE DUROU 21 ANOS Direção: Flávio Tavares, Brasil, 2011 Em clima de suspense e ação, o documentário apresenta, em três episódios de 26 minutos cada, os bastidores da participação do governo dos Estados Unidos no golpe militar de 1964 que durou até 1985 e instaurou a ditadura no Brasil. Pela primeira vez na televisão, documentos do arquivo norte-americano, classificados durante 46 anos como Top Secret, serão expostos ao público. Textos de telegramas, áudio de conversas telefônicas, depoimentos contundentes e imagens inéditas fazem parte dessa série iconográfica, narrada pelo jornalista Flávio Tavares.

CABRA MARCADO PARA MORRER Direção: Eduardo Coutinho, Brasil, 1984 Início da década de 60. Um líder camponês, João Pedro Teixeira, é assassinado por ordem dos latifundiários do Nordeste. As filmagens de sua vida, interpretada pelos própios camponeses, foram interrompidas pelo golpe militar de 1964. Dezessete anos depois, o diretor retoma o projeto e procura a viúva Elizabeth Teixeira e seus dez filhos, espalhados pela onda de repressão que seguiu ao episódio do assassinato. O tema principal do filme passa a ser a trajetória de cada um dos personagens que, por meio de lembranças e imagens do passado, evocam o drama de uma família de camponeses durante os longos anos do regime militar.

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MARIGHELLA Direção: Isa Grinspum Ferraz, Brasil, 2012 Carlos Marighella foi o maior inimigo da ditadura militar no Brasil. Este líder comunista e parlamentar foi preso e torturado, e tornou-se famoso por ter redigido o Manual do Guerrilheiro Urbano.

ELES NÃO USAM BLACK TIE Direção: Leon Hirszman, Brasil, 1981 Em São Paulo, em 1980, o jovem operário Tião (Carlos Alberto Riccelli) e sua namorada Maria (Bete Mendes) decidem casarse ao saber que a moça está grávida. Ao mesmo tempo, eclode um movimento grevista que divide a categoria metalúrgica. Preocupado com o casamento e temendo perder o emprego, Tião fura a greve, entrando em conflito com o pai, Otávio (Gianfrancesco Guarnieri), um velho militante sindical que passou três anos na cadeia durante o regime militar. DIÁRIO DE UMA BUSCA Direção: Flavia de Castro, Brasil, 2010 O jornalista Celso Afonso Gay de Castro morreu aos 41 anos, na cidade de Porto Alegre, em circunstâncias suspeitas. O militante político de esquerda foi exilado durante a ditadura militar brasileira. Durante esse período, ele percorreu diversos países, como Argentina, Venezuela, Chile e França, sempre carregando consigo sua família. Uma vida marcada pela história da luta armada, exílio e ausência. Sua repentina morte deixou seus familiares com um vazio e um mistério, que a filha Flavia tenta desvendar. CARA OU COROA Direção: Ugo Giorgetti, Brasil, 2012 João Pedro (Emílio de Mello) é um diretor de teatro bastante atarefado com os ensaios para uma nova peça. Nas folgas do trabalho ele recebe ocasionalmente a visita de um integrante do Partido Comunista. Paralelamente, Getúlio (Geraldo Rodrigues) e a namorada Lilian (Júlia Ianina), ambos idealistas, decidem colaborar com a resistência à ditadura militar, abrigando dois fugitivos. Eles decidem escondê-los na casa do avô de Lilian (Walmor Chagas), um militar da reserva.

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O ANO EM QUE MEUS PAIS SAÍRAM DE FÉRIAS Cao Hamburger, Brasil, 2006 1970. Mauro (Michel Joelsas) é um garoto mineiro de 12 anos, que adora futebol e jogo de botão. Um dia sua vida muda completamente, já que seus pais saem de férias de forma inesperada e sem motivo aparente para ele. Na verdade os pais de Mauro foram obrigados a fugir por serem de esquerda e serem perseguidos pela ditadura, tendo que deixá-lo com o avô paterno (Paulo Autran). Enquanto aguarda um telefonema dos pais, Mauro precisa lidar com sua nova realidade, que tem momentos de tristeza pela situação em que vive e também de alegria, ao acompanhar o desempenho da seleção brasileira na Copa do Mundo.

Literatura NÃO-FICÇÃO AS DUAS GUERRAS DE VLADO HERZOG: DA PERSEGUIÇÃO NAZISTA NA EUROPA À MORTE SOB TORTURA NO BRASIL Audálio Dantas, Civilização Brasileira, 2012 O autor e um dos protagonistas de As duas guerras de Vlado Herzog, recorre às suas próprias memórias, além de leituras, depoimentos e da apuração rigorosa do contexto em que a morte de Vlado ocorreu para reconstituir a verdade dos fatos por trás do dramático episódio, tomando como ponto de partida a saga da pequena família Herzog em fuga desesperada da Iugoslávia para a Itália, durante os dias de horror da Segunda Guerra Mundial. O QUE É ISSO, COMPANHEIRO? Fernando Gabeira, Companhia de Bolso, 2009 No final da década de 60, Fernando Gabeira envolve-se na guerrilha urbana, tornando-se um dos homens mais procurados do país, mergulhado até o pescoço em ações espetaculares que iriam transformar radicalmente a sua vida - e a de muitos outros. Em 1979 o jornalista lança O que é isso, companheiro?, em que busca compreender o sentido de suas experiências - a luta armada, a militância numa organização clandestina, a prisão, a tortura, o exílio - e no qual elabora, para a sua e para as gerações seguintes, um retrato autêntico e vertiginoso do Brasil dos anos 60 e 70. Relato lúcido, irônico, comovente, o livro se transformou num verdadeiro clássico do romance-depoimento brasileiro e foi filmado pelo diretor Bruno Barreto.

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A DITADURA ENVERGONHADA | A DITADURA ESCANCARADA | A DITADURA DERROTADA A DITADURA ENCURRALADA Elio Gaspari, Intrínseca, 2014 Lançados entre os anos 2002 e 2004, a série de livros A ditadura envergonhada de Elio Gaspari, traça um panorama dos anos de chumbo do país desde os primeiros anos do regime militar brasileiro, com o golpe de 64 até a edição do Ato Institucional no 5, em dezembro de 68 até o desmonte gradual da ditadura militar empreendido por Ernesto Geisel e Golbery do Couto e Silva. RABO DE FOGUETE: OS ANOS DE EXÍLIO Ferreira Gullar, Verbo, 2010 É um relato autobiográfico sobre um momento conturbado da história brasileira e também latino-americana. Durante os anos mais sangrentos da ditadura militar, não restou ao poeta Ferreira Gullar outra opção além de passar à vida clandestina ou ser preso e submetido à tortura, um dos principais pilares de sustentação do regime. O autor decidiu inicialmente esconder-se na casa de amigos, mas, ao perceber que as ameaças aumentavam, resolveu deixar o país. IMPRESSÕES DE VIAGEM – CPC, VANGUARDA E DESBUNDE Heloísa Buarque de Hollanda, Aeroplano, 2005 As “impressões” dão conta do período final da década de 50 até a queda do Ato Institucional n° 5, em dezembro de 1978. Em sua viagem, a autora investiga três momentos recentes da produção cultural brasileira: a arte revolucionária do Centro Popular de Cultura (CPC), o Tropicalismo e sua censura à intelligentzia de esquerda, a proximidade com os canais de massa e o desbunde, arte marginal do início dos anos 70, alternativa à produção e veiculação do mercado. JORNALISTAS E REVOLUCIONÁRIOS NOS TEMPOS DA IMPRENSA ALTERNATIVA B. Kucinski, Edusp, 2003 O livro recupera a memória de importante e rico período da imprensa brasileira, a dos jornais ditos “alternativos” que circularam no país nos anos da ditadura militar. Apresentado originalmente como tese de doutorado junto à Escola de Comunicações e Artes da USP, o livro apresenta um panorama do surto alternativo, distinguindo as várias categorias de jornais e as situações em que foram criados.

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MARIGHELLA, O GUERRILHEIRO QUE INCENDIOU O MUNDO Mário Magalhães, Companhia das Letras, 2012 Nesta narrativa repleta de revelações, o jornalista Mário Magalhães investiga as várias facetas do biografado. Em ritmo de thriller, reconstitui com realismo desconcertante passagens pela prisão, resistência à tortura, operações de espionagem na Guerra Fria e assaltos da guerrilha a bancos, carros-fortes e trem-pagador. Mas também recupera a célebre prova de física respondida em versos no Ginásio da Bahia e poemas de amor. Isso sem negligenciar a influência internacional de Marighella e seu Minimanual do guerrilheiro urbano, guia que correu o mundo e virou cult nos anos 1960. REPRESSÃO E RESISTÊNCIA – CENSURA A LIVROS NA DITADURA MILITAR Sandra Reimão, Edusp/Fapesp, 2011 Este livro aborda a censura oficial à cultura e às artes e, especificamente, a livros de ficção de autores brasileiros durante a Ditadura Militar Brasileira. O estudo dos atos censórios do Departamento de Censura e Diversões Públicas (DCDP) em relação a livros nos possibilita delinear alguns elementos dos mecanismos de censura e também refletir sobre a repercussão desta censura no universo da produção da cultura brasileira. FICÇÃO SANGUE DE COCA-COLA Roberto Drumond, Geração Editorial, 2004 Com uma história de ritmo alucinante, na qual ditadores, artistas, personagens da vida real e fictícios se entrelaçam numa atmosfera de tragédia e sonho, Sangue de Coca-Cola é um cruzamento magistral da mais crua realidade com a mais sedutora fantasia. K. B. Kucinski, Cosac Naify, 2014 Um jovem casal desaparece sem deixar o menor sinal. Pânico na família e nas amizades, buscas incansáveis, qualquer fiapo de informação reacendendo esperanças, sofrimento indizível com a agonia da incerteza. Mais tarde a realidade se impôs, trágica e definitiva: eram militantes da resistência e tinham sido sequestrados, torturados e assassinados. Talvez na “Casa da Morte”, em Petrópolis? Nada foi confirmado e eles continuam na lista dos “desaparecidos”.

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AMORES EXILADOS Godofredo de Oliveira Neto, Record, 2011 O romance envolve um desesperado triângulo entre o catarinense Fábio, o baiano Lázaro — expatriados em Paris que integram a célula política Aliança Socialista Libertadora — e a francesa Muriel, que namora o primeiro e antes teve um caso com o segundo. “Amar no exílio potencializa a sensibilidade”, define Godofredo que, na mesma época em que se passa a ação do livro, estudou literatura na França.

VIDAS PROVISÓRIAS Edney Silvestre, Intrínseca, 2013 Expatriados, separados no tempo e na geografia, Paulo e Barbara compartilham, além da experiência do exílio, o estranhamento pela perda de suas identidades, o isolamento e a sensação de interrupção do curso normal de suas vidas. Em seu terceiro romance, Edney Silvestre cria um vigoroso retrato das transformações que ocorreram no país e no mundo nos últimos quarenta anos, com uma trama que viaja pelo Chile, Suécia, Estados Unidos, França e Iraque. OS CARBONÁRIOS: MEMÓRIAS DA GUERRILHA PERDIDA Alfredo Sirkis, Record, 1998 Considerada a melhor história dos anos de chumbo, vencedora do Prêmio Jabuti, a narrativa de Sirkis se refere a um período de 43 meses, entre outubro de 1967 e maio de 1971. Um relato sobre o movimento estudantil de 1968 e seu esmagamento pelo regime militar; como um jovem secundarista se torna um guerrilheiro urbano; o sequestro dos embaixadores da Alemanha e da Suíça e a libertação de 110 presos políticos; as façanhas e os dilemas de Carlos Lamarca; a crise e a destruição da guerrilha. Um testemunho real, eletrizante e cheio de suspense.

1968: O ANO QUE NÃO TERMINOU Zuenir Ventura, Objetiva, 2013 O jornalista Zuenir Ventura promove um retrato dos acontecimentos que fizeram do ano de 1968 um divisor de águas na história do Brasil e do mundo, além de colocar em pauta o processo brasileiro de democratização. Além de ser uma obra de excelente jornalismo, o volume presta relevante serviço à revitalização da consciência democrática do país.

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BIOS - COLABORADORES ANA MARTINS MARQUES nasceu em Belo Horizonte, em 1977. Publicou A vida submarina (Scriptum, 2009) e Da arte das armadilhas (Companhia das Letras, 2011 - Finalista do Prêmio Portugal Telecom).

B. KUCINSKI é a assinatura literária do jornalista e professor titular da USP (aposentado) Bernardo Kucinski. Já publicou cerca de 20 livros no Brasil e no exterior, entre os quais Jornalistas e Revolucionários, Jornalismo Econômico (prêmio Jabuti) e Síndrome da Antena Parabólica. Entre 2003 e 2005 foi assessor especial da Presidência da República. Em 2011 publicou seu primeiro romance, K. já traduzido em várias línguas. Foi finalista de prêmios literários no Brasil e no exterior, entre os quais o prêmio São Paulo de Literatura e o Portugal Telecom. Atualmente, dedica-se apenas à ficção. Acaba de publicar pela Cosac Naify a coletânea de contos Você vai voltar pra mim. BRENO CAMARGO SERAFINI nasceu em Santiago-RS, em 14 de março de 1961, e reside na capital gaúcha desde 1969. Doutor em Letras pela UFRGS, com tese sobre a obra de Millôr Fernandes. Trabalha, desde 2002, na Fundação de Economia e Estatística (FEE), desenvolvendo atividades de revisão e editoração. Em 2010, lançou o livro de poemas independente Mosaico Laico e criou seu blog Deleituras (<www.brenoserafini.com.br>). Em 2011, publicou o livro de poemas independente Geração Pixel. Em 2013, lançou Millôres dias virão, pela Editora Libretos, em Porto Alegre. Tem ainda um livro de poemas infantil — Bichos de todos os reinos — ilustrado pelo cartunista MOA (no prelo). CHACAL, RICARDO DE CARVALHO DUARTE nasceu no Rio de Janeiro em maio de 1951. Publicou em mimiógrafo, em 1971: Muito prazer, Ricardo. Em 1972, Preço da Passagem, dando início à Poesia Marginal no Brasil. Em 1973, viu Allen Ginsberg em performance em Londres. Ficou muito impressionado. Em 1975, retoma a oralidade da poesia no Rio. Happenings poéticos chamados Artimanhas foram realizados nesse período no Rio e pelo Brasil, pelo grupo Nuvem Cigana, uma espécie de poetas beats brasileiros. Chacal é criador e produtor do Centro de Experimentação Poética — CEP 20.000 — um acontecimento multimídia mensal, que há 23 anos revela nomes no cenário musical, poético e dramático do Rio. Chacal lançou 14 livros. Em 2007, Belvedere, suas poesias reunidas, pela Editora

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Cosac Naify (Prêmio APCA 2008). Em 2010, publicou suas memórias pela editora 7Letras em Uma História à margem. Em 2012 saiu pela Companhia das Letras, o livro para adolescentes, Murundum. Em 2012, estreou como ator e autor, o monólogo autobiográfico Uma História à Margem. FABIANO CALIXTO nasceu em Garanhuns, PE, em 8 de junho de 1973. É poeta e vive em São Paulo. É mestre em Teoria Literária e Literatura Comparada pela Universidade de São Paulo, USP. Publicou os seguintes livros de poesia: Algum (edição do autor, 1998), Fábrica (Alpharrabio Edições, 2000), Um mundo só para cada par (Alpharrabio Edições, 2001), Música possível (Cosac Naify/ 7Letras, 2006), Sanguínea (Editora 34, 2007), A canção do vendedor de pipocas (7Letras, 2013), Para ninar no nosso naufrágio (Corsário-Satã, 2013), Equatorial (Tinta da China, 2014) e Nominata morfina (Córrego/Corsário-Satã/Pitomba, 2014). IGNÁCIO DE LOYOLA BRANDÃO é escritor e jornalista e nasceu em Araraquara em 1936. Tem 40 livros publicados entre romances, contos, crônicas, viagens, obras infantis e uma peça teatral. Ganhou o Prêmio Jabuti com O menino que vendia palavras, considerado a Melhor Ficção de 2008. Escreve quinzenalmente no Caderno 2 de O Estado de S. Paulo.

JOSÉ RUFINO é artista plástico e escritor. Desenvolveu sua jornada artística passando da poesia para a poesia-visual e, em seguida, para a arte-postal, seguida de desenhos, pinturas, gravuras e grandes instalações. O universo do declínio das plantações de cana-de-açúcar no Brasil conduziu seu trabalho inicial. Filho de ativistas políticos, é conhecido pelos trabalhos de caráter político. Já participou de quase 200 exposições, incluindo Bienal de São Paulo, Panorama da Arte Brasileira e Bienal do Mercosul. Realizou grandes mostras individuais: Museu de Arte Contemporânea, Niterói; Centro Cultural Banco do Brasil, Rio de Janeiro; Museu Oscar Niemeyer, Curitiba; The Andy Warhol Museum, Pittsburgh; Casa França Brasil, Rio de Janeiro, entre outras. Recebeu em 2009 a Bolsa Funarte de Criação Literária para desenvolvimento do romance Desviver (ainda inédito). É autor da Cosac Naify, onde lança em breve seu primeiro livro de contos Afagos <www.joserufino.com>. JULIANA FRANK nasceu em São Paulo, em 1985. É roteirista e escritora e vive atualmente no Rio de Janeiro. Escreveu os livros Quenga de plástico e Cabeça de pimpinela (7Letras, 2011 e 2013), e o romance Meu coração de pedra-pomes, publicado em 2013 pela Companhia das Letras. Participou da coletânea 50 versões de amor e prazer: 50 contos eróticos por 13 autoras brasileiras, da Geração Editorial. Seus textos também foram publicados no caderno Ilustríssima, da Folha de S.Paulo, e nas revistas Cult e Lado7.

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LUCIA MURAT realizou seu primeiro longa Que bom te ver viva em 1988, revelando-se como cineasta dedicada a temas femininos e políticos. Em Doces poderes (1996), retoma o tema político, sob a ótica das campanhas eleitorais. Em Brava gente brasileira (2000), aborda a relação entre colonizadores e índios e em Quase dois irmãos recorre ao conflito de classes. Depois desses, produziu O olhar estrangeiro (2005), Maré (2007), Uma longa viagem (2012) e A memória que me contam (2013). Recebeu muitos prêmios, incluindo festivais de Brasília, Rio, Mar Del Plata, Gramado e Moscou.

MARCELO DINIZ é professor do Departamento de Ciências da Literatura (UFRJ), tradutor, poeta e letrista. Autor dos livros Trecho (Aeroplano/ Biblioteca Nacional: 2002) e Cosmologia (7Letras: 2004) e das plaquetes “...,...” e De amor e sobre (Oficina Raquel: 2006 e 2008). Sua produção mais recente se encontra nos blogs: <marcelodinizmaisum.blogspot.com.br> e <interexclam.blogspot.com.br>.

MARCELO MOUTINHO nasceu no Rio de Janeiro, em 1972. É escritor e jornalista, com pós-graduação em Comunicação e Imagem (PUC-Rio), e autor dos livros A palavra ausente (Rocco, 2011), Somos todos iguais nesta noite (Rocco, 2006), Memória dos barcos (7Letras, 2001), além do infantil A menina que perdeu as cores (Pallas, 2013). Organizou as antologias Dicionário Amoroso da Língua Portuguesa (Casa da Palavra, 2009), Contos sobre tela (Pinakotheke, 2005) e Prosas cariocas – Uma nova cartografia do Rio (Casa da Palavra, 2004), das quais é também coautor, e a seleta de ensaios Canções do Rio – A cidade em letra e música (Casa da Palavra, 2010). Escreve crônicas semanalmente na revista Vida Breve (<www.vidabreve.com>) e é colaborador do suplemento Prosa (O Globo).

MARCELO IKEDA é professor do Curso de Cinema e Audiovisual da Universidade Federal do Ceará (UFC). Cineasta, dirigiu inúmeros curtas e o longa Entre mim e eles. Autor (com Dellani Lima) do livro Cinema de garagem: um inventário afetivo sobre o jovem cinema brasileiro do século XXI. Mantém o blog de críticas www. cinecasulofilia.blogspot.com e www.marceloikeda.com.

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PAULO BIO é doutorando em Teoria do Teatro, com mestrado pela Universidade de São Paulo sobre o pensamento teatral de Oduvaldo Vianna Filho, realizado sob orientação de Sérgio de Carvalho.

PAULO CESAR DE ARAÚJO é historiador, jornalista e doutorando em Ciência Política. Estudioso da história da música popular brasileira, colabora com os principais veículos de comunicação do país. É autor dos livros Eu não sou cachorro, não (Record, 2002), Roberto Carlos em Detalhes (Planeta, 2006), e O réu e o rei – minha história com Roberto Carlos, em detalhes (Companhia das Letras, 2014). Atualmente é professor da rede Faetec e do Departamento de Comunicação Social da PUC-Rio.

RENATA MAGDALENO é jornalista, pesquisadora e professora de Literatura. Faz pós-doutorado na Uerj, onde pesquisa os rumos da crítica literária contemporânea, com bolsa Faperj.

ROBERTO BOZZETTI é professor de Teoria da Literatura no Curso de Letras da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ). É autor de dois livros de poesia, A tal chama o tal fogo (2008, com poemas da década de 1980) e Firma irreconhecível (2010), ambos editados por Oficina Raquel. Mantém o blog Firma irreconhecível <http://robertobozzetti.blogspot.com.br>, é autor fixo de Mallarmargens, revista de poesia e arte contemporânea <www. mallarmargens.com> e membro do corpo editorial da RBEC – Revista Brasileira de Estudos da Canção <www.rbec.ect.ufrn.br>.

SÉRGIO DE CARVALHO é dramaturgo e encenador da Companhia do Latão, doutor em Literatura Brasileira, professor de Dramaturgia e Crítica na Universidade de São Paulo.

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IMAGENS E CRÉDITOS FOTOGRÁFICOS OBRAS DE JOSÉ RUFINO Capa: Deditio, 2010 (detalhe). Madeira, ferro, alfanjes de aço e máquinas de escrever; dimensões: 125 x 170 x 283cm; acervo: Sergio Carvalho, Brasília; fotografia: Ding Musa. Página 1: Ad Corpus I, 2013; bloco de concreto exumado de área de conflitos da Ligas Camponesas na Paraíba, concreto, pigmento e mirra; dimensões: 55 x 40 x 47cm; acervo: José Rufino; fotografia: Adriano Franco. Vista na exposição Violatio, 2013/2014, Museu Brasileiro da Escultura, São Paulo. Página 2: In dubio pro reo, 2012. Madeiras, vernizes, malha e estrutura de ferro; cadeira e espinhos de imbuia; dimensões: 195 x 120 x 120cm; acervo: Sergio Carvalho, Brasília; fotografia: José Rufino. Página 9, 37, 38, 49, 58, 65, 66, 69, 70, 77, 78, 90: Desenhos da série Incisus marmori, 2006. 15 Desenhos sobre páginas de livro antigo de oficina mecânica; dimensões: 31 x 39cm. Acervo: José Rufino. Fotografia: Adriano Franco. Página 10: Desenho da série Cartas de Areia, início dos anos 1990. Colagem e parafina sobre envelope de família; dimensões: 8,7 x 15,5cm; acervo: José Rufino; fotografia: Edgard César. Página 80-89: Plasmatio, 2002-2014 (detalhes e vistas parciais da instalação). Instalação de dimensões variáveis. Têmpera (monotipias à maneira de Rorschach) sobre papéis originais relativos a desaparecidos políticos brasileiros; móveis de madeira; cordões, carimbos, aroma. Obra já exposta na XXV Bienal Internacional de São Paulo, Pavilhão da Bienal, 2002; Museu de Arte Moderna Aloísio Magalhães, Recife; Museu Oscar Niemeyer, Curitiba; Programa Copa da Cultura, Embaixada do Brasil, Berlim, 2006; Museu de Arte Contemporânea, Niterói; acervo: José Rufino, Museu de Arte Aloísio Magalhães – MAMAM, Museu de Arte Contemporânea de Niterói, Sérgio Carvalho, Alfredo Setúbal; fotografias: Paulinho Muniz, Domingues. Página 94,95. Deditio, 2010 (detalhe), acervo Sérgio Carvalho. Fotografia: Ding Musa. Página 102: Desenho da série Cartas de Areia, início dos anos 1990. Técnica mista sobre envelope de família; dimensões: 9 x 15cm; acervo: Moacir dos Anjos; fotografia: Edgard César.

CHARGES DE MILLÔR FERNANDES Páginas 14, 16, 18, 19, 22, 24 e 28: Millôr Fernandes. Espólio Iconográfico Instituto Moreira Salles do Rio de de Janeiro.

OUTROS CRÉDITOS Página 125: Paulo César Araújo, foto de Jorge Bispo.

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EXPEDIENTE Sesc | Serviço Social do Comércio Presidência do Conselho Nacional Antonio Oliveira Santos Departamento Nacional Direção-Geral Maron Emile Abi-Abib Coordenadoria de Educação e Cultura Nivaldo da Costa Pereira PUBLICAÇÃO Projeto Editorial Gerência de Cultura Gerente Márcia Costa Rodrigues Coordenação Flávia Tebaldi Equipe de Literatura Flávia Tebaldi Frederico Girauta Henrique Rodrigues Equipe de Artes Visuais Caroline Souza Leidiane Carvalho Lúcia Mattos Edição Assessoria de Comunicação Diretor Pedro Hammerschmidt Capeto

Diagramação e Editoração CM Comunicação Adriano Silva Carlos Macedo Claudia Duarte Estagiários de Produção Editorial Diogo Franca Thiago Fernandes Produção Gráfica Celso Mendonça ©Sesc Departamento Nacional, 2014. Av. Ayrton Senna, 5.555 – Jacarepaguá – Rio de Janeiro/RJ CEP: 22775-004 Telefone: (21) 2136-5555 www.sesc.com.br Tiragem: 15.000 exemplares Distribuição gratuita ISSN 2178-1443 Todos os direitos reservados e protegidos pela Lei nº 9.610 de 19/02/1998. Nenhuma parte desta publicação poderá ser reproduzida sem autorização prévia por escrito do Departamento Nacional do Sesc, sejam quais forem os meios e mídias empregados: eletrônicos, impressos, mecânicos, fotográficos, gravação ou quaisquer outros. Os textos assinados são de responsabilidade dos autores e não refletem, necessariamente, a opinião da revista.

Supervisão Editorial Jane Muniz Fernanda Silveira

*As entrevistas foram concedidas por telefone e email, em 2013.

Reportagem Renata Magdaleno*

Agradecimento: Instituto Moreira Salles

Revisão Elaine Bayma Tathyana Vianna

Para sugestão ou recebimento de exemplares, entre em contato conosco pelo seguinte endereço eletrônico: ascomsecretaria@sesc.com.br

Concepção Visual José Rufino

Escreva-nos, sua opinião é muito importante para o aprimoramento da revista!

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ano 6 . número 5 . 2014

ano 6 . número 5 . 2014 SESC LITERATURA EM REVISTA

772178 144008 9

ISSN 2178-1443

WWW.SESC.COM.BR/PALAVRA

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SESC LITERATURA EM REVISTA

01

revista

IGNÁCIO DE LOYOLA BRANDÃO | LÚCIA MURAT | RENATA MAGDALENO BRENO SERAFINI | ROBERTO BOZZETTI | CHACAL | SÉRGIO DE CARVALHO PAULO BIO | PAULO CÉSAR DE ARAÚJO | B. KUCINSKI | JULIANA FRANK ANA MARTINS MARQUES | FABIANO CALIXTO | MARCELO DINIZ MARCELO MOUTINHO | MARCELO IKEDA | JOSÉ RUFINO

DEPOIMENTO DOSSIÊ MILLÔR FERNANDES ENSAIOS LITERATURA MÚSICA

TEATRO

ESPAÇO LITERÁRIO CONTO POESIA

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