Palco de Papel #3

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Editorial (por Claudia Schulz) Há quem pense que se esgotarão as pautas para o Palco de Papel. Esses dias me perguntaram isso. Enganaram-se. Elaborar todo o mês as matérias do nosso informativo cênico é uma correria contra o tempo. Cada um com suas pautas entrevistando, resenhando e, principalmente, escabelando-se para entregar a tempo sua matéria. Não é fácil. Mês passado, por causa dessa correria, alguns textos não foram publicados, mas para essa edição, estão ai. Até porque, essa correria se dá, inacreditavelmente, pela quantidade de pautas. Na verdade, a cena teatral de Santa Maria está tão efervescente que estamos até pensando em dobrar o número de páginas! Aguentem!

atentando para as consequências do afunilamento e da rotina aprisionadora. A riqueza metafórica de “Fim de Partida” propõe ao espectador reflexões sobre a essência das relações humanas, sejam elas conjugais, paternais, fraternais, sociais, existenciais, e é isso que torna esse texto universal e atual. O jogo, que é o que dá sentido à existência dos personagens, é presente o tempo todo nesse texto. Como você trabalhou esse aspecto com os atores André Galarça, Cauã Kubaski, Felipe Martinez e Rafaela Costa?

Em função da limitação física dos personagens (Hamm – cego e paralítico, Clov – manco, Nagg e Nell mutilados) percebi que a maioria desses jogos dava-se no campo da palavra. Assim, pesquisei Vocalidade Poética Hoje Beckett segundo Sara P. Lopes. Ela entende a voz como um (por Daniela Varotto) prolongamento físico do corpo capaz de tocar o espectador, Espetáculo Fim de Partida - foto: Cláudia Schulz fazendo-se matéria e dando forma ao silêncio. Nesse sentido, o processo de criação do espetáculo foi dividido entre o período de livre experimentação vocal e o período de estruturação do espetáculo. No primeiro, trabalhamos com dinâmicas que ampliassem o repertório vocal dos atores. No 12/05/10 segundo, mergulhamos no universo de “Fim de Partida”. No #3entanto, essa obra é tão profunda que a cada ensaio e apresentação realizamos novas descobertas. Como foi apresentar o espetáculo num espaço alternativo? Vocês acham que as adaptações e a proximidade com o público resultaram em algum diferencial nessa apresentação?

“Fim de Partida”, escrita por Samuel Beckett no período Pós Segunda Guerra Mundial e livremente adaptada pelo grupo “Teatro Por Que Não?”, foi mais um espetáculo apresentado pelo Palco Fora do Eixo no dia 05 de maio no Macondo Lugar. Nessa 3ª edição do Palco de Papel, faremos um breve diálogo com o grupo sobre o processo de montagem e apresentações desse espetáculo. Gostaria primeiramente de perguntar a Luiza de Rossi, que é a diretora do espetáculo, como chegou à escolha do texto “Fim de Partida” de Beckett, e como aconteceu o processo de adaptação para os dias atuais. Acredito que a complexidade do universo absurdo de Beckett excitou a mim e aos atores pelo desafio, por propor uma estrutura teatral desfragmentada e cíclica. Beckett apresenta um quadro estático sobre as aflições do homem que sobreviveu ao contexto de guerra e sua fracassada busca por um sentido que justifique existências impotentes e insignificantes. O fantástico disso tudo é que Beckett explora o humor como uma válvula de escape para o sofrimento, revelando o absurdo da condição humana,pois para ele “o homem vive de teimoso que é”. Para adaptá-lo, utilizei-me, como guia, das relações entre os personagens,

Muito importante para o crescimento do espetáculo. Mudar o que está fixado propõe o desenvolvimento de versatilidade e adaptação, tanto para os atores quanto para luz, trilha e maquiagem. Ficamos felizes com a oportunidade e com o resultado, mas sempre haverá pontos fracos nos quais focamos, sempre com o objetivo de perceber como se pode melhorar. É muito interessante e gratificante, enquanto produtores de teatro, atores e diretores, ver os espetáculos montados no curso de Artes Cênicas da UFSM “invadirem” outros locais de Santa Maria e região além do Campus. Como é pra vocês esse movimento de ir além do Arco? É entrar em contato com o mundo real. É fomentar a arte na cidade que nos abraça. É propor um retorno à sociedade que paga penosamente seus impostos. Nós do Teatro Por Que Não? sonhamos com muitas coisas, entre elas está levar nossos trabalhos a variados públicos e espaços, colaborando assim para a formação de espectadores assíduos, motivados a decidir o que irão assistir no teatro, nos quais a decisão de ir já faça parte da sua integração com as atividades culturais fomentadas na cidade.


A história segue adiante... em busca de um final feliz (por Cláudia Schulz) Play-Beckett - Créditos: Rafael Avancini

EXPEDIENTE Redação: Cláudia Schulz e Luise Scherer Entrevistas: Daniela Varotto, Vanessa Giovanella e Atílio Alencar Colunista: Maurício Schneider Revisão: Desirée Tibola e Talita Tibola Programação Visual: Pedro Krum E-mail: palcoforadoeixo@gmail.com

ATENÇÃO Festivais de Teatro do RS – 2010 JUNHO Fetism – SANTA MARIA Previsão de data: 10 a 19 de junho Contato: Cláudia schulz e e Vanessa Giovanella - fetism.rs@gmail.com Festival Estadual de Esquetes Teatrais de Novo Hamburgo Previsão de data: 10 a 15 de junho Contato: Luis Fernando Rodembuch. 51 3593.6947 - 51 9988.1986 Festival de Teatro do Vale do Paranhana - ROLANTE Previsão de data: 21, 22, 23, 24, 25, 26 e 27 de Junho Contato: Joice Costa Festival Estudantil de Esquetes Teatrais de ROLANTE Previsão de data: ( a confirmar) Contato: Secretaria de Educação de Rolante – JOICE: 51 3547.1042

JULHO Festival de Teatro Rosário em Cena - ROSÁRIO DO SUL Previsão de data: 05 a 11 de julho Contato: Paulo Evandro 55 3251.4900 - 55 8408.3308 pauloevandro.pereiradacosta@gmail.com

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Agregando-se ao casting de festivais produzidos pelo Macondo Coletivo, como o Obscure Festival e o Macondo Circus, a 3ª Edição do Festival de Teatro Independente de Santa Maria – FETISM se prepara para entrar em cena como ator principal do calendário de atividades culturais da cidade de Santa Maria. Muitas novidades e singularidades prometem fazer da 3ª Edição do FETISM um marco para a cena teatral estadual, nacional e local. A primeira delas, porém não a mais importante, é que o FETISM foi aprovado pela Lei de Incentivo a Cultura de Santa Maria (LIC) para a captação de 50.000 reais dos 73.500 reais encaminhados pelo projeto, dos quais foram captados apenas 20%. Entretanto, a dificuldade de captação integral do projeto não se tornou um empecilho para a equipe de organização, que vem se reunindo desde agosto de 2009, para colocar em prática aspectos importantíssimos de sua idealização para o ano de 2010.

AGENDA - PROGRAME-SE A agenda do Palco Fora do Eixo! Fique de olho na programação do circuito, mês a mês. 12/05 – Noite do Galo Preto – às 23 horas, no Macondo Lugar. o valor do ingresso é R$ 5,00, ou R$ 3,00 + 1Kg de alimento não-perecível. 29/05 - Noite do Galo Preto – às 23 horas, no Macondo Lugar. o valor do ingresso é R$ 5,00, ou R$ 3,00 + 1Kg de alimento não-perecível. JUNHO – FETISM – Festival de Teatro Independente de Santa Maria: 10/06 – Playbeckett – 20h – Espaço Victorio Faccin 11/06 – Ida ao Teatro – 20h – Espaço Victorio Faccin 12/06 – Uma Estória Abensonhada – 20h – Espaço Victorio Faccin 13/06 – Abajur Lilás – 20h – Espaço Victorio Faccin 14/06 – La Perseguida – 16h – Praça Saldanha Marinho 15/06 – O Homem Banda – 16h – Praça Saldanha Marinho 16/06 – Ao Divagar Se Vai Longe e de Bicicleta Mais Ainda – 16h – Praça Saldanha Marinho 17/06 – Abanico de Soltera – 20h – Theatro 13 de Maio 18/06 – Maldito Coração – 20h – Theatro 13 de Maio 19/06 – La Tragédia – 20h – Theatro 13 de Maio Para maiores informações sobre as atividades do Palco Fora do Eixo em todo o país, visite o nosso blog:

palcoforadoeixo.blogspot.com

Um dos principais, é que esse ano o FETISM deixa de ser um festival competitivo para se tornar uma Mostra Nacional e Internacional. O FETISM sempre buscou valorizar, estimular e fomentar grupos teatrais independentes, ou seja, grupos que firmam sua produção cênica e trabalham de maneira autônoma, buscando seu lugar ao sol. Grupos estes que, com trabalhos de qualidade, circulam entre as fronteiras geográficas e lúdicas e que, esse ano, estarão mostrando seu trabalho ao público santa-mariense. Na programação do 3º FETISM espetáculos locais como “Uma Estória Abensonhada” - ganhador do FETISM de 2009 com o Prêmio Mamulengo de Melhor Espetáculo tanto do júri técnico quanto popular – e “Abajur Lilás” do Grupo Teatro Por Que não?, o qual vem circulando com inúmeros espetáculos em Santa Maria e região, compõem a programação ao lado de espetáculos como “Play-Beckett” do Grupo Jogo de Experimentação Cênica de POA, ganhador do Açorianos de Dança 2010, “Maldito Coração”, que está em cartaz a cerca de 10 anos e tem direção de Mauro Soares e atuação de Ida Celina e de espetáculos internacionais como “La Tragedia”, do Grupo La Escalera da Puerto Madryn/ Chubut/Patagonia e “Abanico de Soltera”, do Grupo Tea Teatro da Argentina. Esse ano, também, o acesso democrático vai muito além da entrada franca dos espetáculos que serão apresentados no Espaço Cultural Victorio Faccin (TUI) e Theatro Treze de Maio, pois a programação invade a Praça


Saldanha Marinho. Na Praça, os transeuntes poderão assistir de camarote o lançamento do 1º Festival de Teatro de Rua de Santa Maria, ideia embrionária da edição de 2009 do FETISM, com os espetáculos “La Perseguida” da Cia Vagamundo de Santa Maria, que retornou da Colômbia recentemente, “Homem Banda” e “Divagar se vai longe e de bicicleta mais ainda”, ambos da Cia Umpédedois de POA e integrantes da Rede Brasileira de Teatro de Rua. Além dos espetáculos a programação oferecerá três oficinas de técnicas teatrais: “Monsieur Flop”, que trabalhará técnica de clown, e “Oficina de Bufão” ministradas por Luana Michelotti e “Dramaturgia do Ator” com Horacio Medrano e Andrea Juliá. Além de todas essas novidades, esse é o primeiro ano em que o FETISM conseguirá pagar cachê para os grupos convidados pela curadoria, colocando em prática o tão sonhado início ao incentivo à autogestão dos grupos teatrais independentes. Em busca de um final feliz, foi o que eu sempre quis, por isso: que venha o 3º FETISM!

apoio do IEACEN (Instituto Estadual de Artes Cênicas do RS), estão acontecendo oficinas de direção, dramaturgia, atuação, etc, fora muitos grupos amadores e profissionais que circulam.” Mas lembra que ainda faltam políticas públicas mais sensíveis ao teatro: “A respeito do poder público, acho que podemos ter mais incentivos à produção santamariense; temos muitos grupos aqui que não querem fama, mas sim ser reconhecidos pelo seu trabalho.” Quando perguntado sobre os espetáculos que destacaria na trajetória da companhia, Helquer protesta de maneira bem-humorada e classifica a pergunta de “cachorra”. Mesmo assim, aponta o já citado “Goiabada com Queijo”, “A Intrusa” e “Os cegos” (ambos baseados em textos de Maeterlinck) e “A verdadeira história... não contada” (de Julieno Vasconcellos e Vagner Vargas) como alguns dos trabalhos mais marcantes da Retalhos . Quanto ao futuro da companhia, está previsto para breve o lançamento do curta-metragem “Às seis horas da tarde”, com roteiro e direção de Helquer.

Cia. Retalhos de Teatro: 15 anos de amor ao teatro

E os planos para os próximos quinze anos? “Muito trabalho e muita merda!!!!!”

(por Atílio Alencar )

DITIRAMBO: “Estava à toa na vida e meu amor me chamou...”

Foto tirada no automático - Comemoração de 15 anos da Retalhos

(por Luise Scherer) Ditirambo 3. Foto: Marcelo de Franceschi

2010 é um ano de comemoração para o teatro santamariense. Afinal, não é todo dia que uma companhia independente completa 15 anos de atividades ininterruptas, colecionando prêmios e reconhecimento Brasil afora. Estamos falando da Cia. Retalhos de Teatro fundada pelo ator, diretor e professor teatral Helquer Paez em 1995 e que desde então vem movimentando o universo das Artes Cênicas em Santa Maria. Helquer conta que a Retalhos surgiu a partir do processo de montagem do espetáculo “Goiabada com Queijo”, uma releitura do clássico Romeu & Julieta, de Shakespeare, na época em que ainda cursava teatro na Universidade Federal de Santa Maria. A necessidade de dar continuidade ao trabalho, cujo resultado obteve muitas críticas positivas, inspirou-o a montar a companhia e a planejar uma temporada com o espetáculo em questão. Em pouco tempo, a Retalhos de Teatro já estava produzindo num ritmo intenso e conquistando espaço na cena cultural local. Ainda antes, Helquer atuou junto ao Grupo Presença, de Pedro Freire Júnior, experiência que contribuiu para que formasse sua própria companhia. Sobre a movimentação na área teatral no sul, Helquer comenta com entusiamo as inciativas que compõem o cenário das artes cênicas por aqui: “O movimento teatral no sul é muito rico. Temos vários festivais de teatro no RS, projetos com o

Está nas raízes do teatro a peregrinação festiva, entusiástica e exuberante pelas ruas das cidades, onde sátiros e faunos (atores travestidos) cantavam, dançavam e recitavam em homenagem aos deuses - principalmente Dionísio. O nome desta festa popular era Ditirambo, assim como o nome que o Palco Fora do Eixo (Movimento para divulgação, circulação e potencialização do fazer teatral de cias independentes de Santa Maria) escolheu para a sua celebração. Os atores participantes do Palco Fora do Eixo repetem essas festividades para comemorar a apresentação de mais um evento teatral na cidade. Você, alguma vez, já viu um grupo de artistas costumizados, cantando e dançando pelas ruas de Santa Maria? É o cortejo ditirâmbico passando por você, para anunciar que logo haverá um espetáculo teatral sendo apresentado. Receba os folhetos que eles distribuem e você verá qual, quando e onde. O nosso grupo é democrático e receptivo: quem quiser participar do cortejo é só mandar um e-mail para palcoforadoeixo@gmail.com e perguntar quando vai ser a próxima Ditirambo, e aparecer no dia devidamente caracterizado. É isso aí, minha gente! Viva o Teatro, viva Dionísio! Evoé!!!


Fala Tu (por Vanessa Giovanella)

DANIEL REIS PLÁ. Ator, diretor e professor de teatro, natural de Pelotas RS, graduado em Interpretação Teatral pela UFSM, realizou em 2007 um “estudo acerca do diálogo entre teatro e meditação no processo de formação de atores”, no curso de Doutorado em Artes na UNICAMP. Ao final do mesmo ano foi à Índia, visando aprofundar conhecimento e vivência da meditação budista. Como foi essa experiência por lá Daniel? Falar da minha experiência de três meses na Índia é falar, por mais piegas que isso possa soar, de um processo de transformação pessoal, é relatar uma peregrinação, não religiosa, mas no sentido de que ao me tornar estrangeiro abriu-se a possibilidade de eu encontrar a mim mesmo, ou partes de mim, antes desconhecidas. Esses meses foram um período de ser estrangeiro a tudo. De início eu não entendia o idioma, nem a linguagem corporal, não conhecia os costumes, nem os cheiros, nem o funcionamento dos telefones públicos... Depois de três dias em Delhi, fui para Bodhgaya, no estado de Bihar, no nordeste do país, onde se localiza o Tergar Institute, lá estudei meditação e filosofia budista e morei por dois meses. É o estado mais pobre do país e, talvez não por acaso, é onde se encontram alguns dos lugares mais sagrados para hindus e budistas, incluindo-se onde o Buda Shakiamuni atingiu a iluminação, e no qual se erigiu um grande monumento que todos chamam carinhosamente de grande estupa. Como foi tua vivência como “sr. Galíncola” teu palhaço/clown por lá? Após um mês de curso o professor principal e abade do mosteiro, Yongey Mingyur Rimpoche, iria pra outra cidade, e decidiu jantar conosco antes de viajar. Como é o costume, as pessoas se reuniram para oferecer algo a ele, em gratidão aos seus ensinamentos. Alguns prepararam um jantar especial, outros ofereceram dança ou cantaram ou tocaram e eu, não tinha nada. Só tinha um nariz de palhaço, o pente e a gravata do Galíncola, que levei, pois achava que sendo ele eu mesmo, seria um absurdo não levá-lo à Índia. No finalzinho das oferendas, corri para meu quarto e peguei meus apetrechos. Disse ao Rimpoche que não tinha nada bonito pra oferecer, como os outros, não sei cantar, nem tocar e muito menos dançar. Pedi desculpas e coloquei o nariz. Toquei no pente Beethoven e samba e depois, subindo na mesa, mostrei o que é que a baiana tem, até cair, literalmente. Os olhos do Rimpoche brilhavam e ele ria sem parar. Seus assistentes, tibetanos refugiados, olhavam intrigados para a bola vermelha que o “brazilian guy” vestia e queriam entender a transformação, uma vez que eles não têm a mesma referência ao palhaço que nós temos. Depois do improviso, meu professor me chamou e falou que, sendo o objetivo do budismo trazer felicidade a todos os seres, a oferenda do riso era uma das melhores. Pediu para ver o nariz e na saída, no momento das oferendas de kathas - lenços de seda que representam nossas aspirações positivas e que são oferecidas às pessoas no sentido de lhes desejar coisas boas - ofereci meu nariz a ele, que o pegou, fez uma oração e o devolveu ao meu nariz. Duas semanas depois, o professor de meu professor iria consagrar o mosteiro onde estávamos. Ele tem quase a mesma importância política que o Dalai Lama e na hierarquia

budista ele é considerado um dos maiores professores ainda vivos. No dia de seu aniversário, fizeram uma festa para ele e Mingyur Rimpoche pediu-me que oferecesse o palhaço mais uma vez. Não sabia o que fazer, pois não tinha levado nada, e então decidi fazer um número em que eu boto um ovo. Cozinhei o ovo, combinei com um colega holandês como ele me ajudaria com o “parto”, fechei os olhos e fui. Eram cerca de quatro da tarde quando chegou a minha vez. Eu tinha um pouco de medo pois havia muitos monges recém-chegados do Tibete e do Butão que nunca haviam tido acesso à cultura do ocidente, além de autoridades religiosas e os sempre presentes guarda-costas do exército indiano, incumbidos de proteger o aniversariante de atentados. Antes de mim, além de outras manifestações, um grupo de indianos que trabalhavam na limpeza apresentou uma coreografia de um dos filmes indianos, um presente para meu clown. Botei o nariz, pedi que repetissem a música e entrei imitando-os. A platéia ocidental riu imediatamente, os tibetanos e butaneses olhavam espantados, inicialmente sem entender o que fazer diante daquele ocidental com cara de indiano, com uma bola no nariz, vestindo um sobretudo e aparentemente sem nada por baixo. Aos poucos, eles foram relaxando, o aniversariante ria, e quando abri o sobretudo revelando que estava de bermuda todos riram juntos. Depois todos aguardaram ansiosos as “dores do parto”, riram do palhaço que do grito passou a cacarejar e do ovo que caiu “misteriosamente”, trazendo na casca a frase “happy Birthday Tai Situ”. Devagar, Galíncola se aproximou do mestre, cabeça abaixada, com o ovo nas mãos. Para espanto de todos, Tai Situ pegou o ovo e sorrindo colocou no centro da mandala que lhe foi oferecida, o lugar mais importante, como a confirmar que o riso e a alegria são aquilo de mais precioso que se pode oferecer. Nos outros dias, os monges que não falavam inglês, apontavam pra mim e sorriam apontando para o nariz, pediam para os amigos traduzirem agradecimentos, e pediam explicações sobre o que era aquilo, qual era a mágica da bola vermelha. Pra mim a mágica era o fato de que, num mundo de invasores e exilados, de culturas e línguas diferentes, existe algo que nos torna iguais, o riso, e um outro algo que pode nos unir, a arte. Naquelas duas apresentações, para pessoas que nunca tinham visto um palhaço ocidental, descobri que a arte é uma linguagem universal, pois ela fala aos sentidos e se constrói na relação entre as pessoas. A magia do nariz vermelho está no fato de que é possível fazer rir mesmo quem não entende nossa língua, mesmo os guarda-costas armados, escondidos e quando rimos, não temos nome nem nacionalidade, somos irmãos humanos. Pra terminar, como ficam tuas impressões como pessoa e como pesquisador depois dessas vivências? Como pesquisador, não sei o que dizer, mas como gente, quero acreditar que sim, um outro mundo é possível. E pra mim, é isso que a Índia ensinou.


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