Captura de um Cavalo Bravo

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE M INAS GERAIS ESC OLA D E B ELAS ARTES Jeannie Helleny da Silva Soares

C A P T U R A D E U M C AVA L O B R AVO

Belo Horizonte 2017





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epois de ouvir em eco uma gravação de áudio do Waly Salomão dizendo: a vida é sonho! A vida é sonho! A vida é sonho! A vida é sonho! A vida é sonho! A vida é sonho! A vida é sonho! A vida é sonho! Inicio esse texto. Vá lá, escreva sua tese de conclusão de curso, fale sobre seus trabalhos, argumente a favor deles, da linguagem utilizada, das possíveis inovações, críticas à sociedade ou trabalho em prol do desenvolvimento da sensibilidade. Eu poderia me sentar em uma cadeira, vestida em tons de cinza branco preto ou azul marinho, com cabelos castanhos e bem penteados em um lindo coque e com unhas das maos feitas e brilhantes ajustar meus oculos e dizer algo como: minha intençao com esse trabalho e afirmar o lugar da arte como lugar de deslumbramento, de crescimento, como lugar especial, peculiar. As imagens hoje sao capturadas e utilizadas para as mais diversas funçoes; percebo numa analise comparativa rapida que pouco sao usadas para finalidades de crescimento psíquico e humano. Vivemos num mundo supersaturado de imagens, onde acabamos por desaprender a ver; ver com verdadeira atençao e desenvolver a capacidade de interpretar, e ate mesmo escolher o que queremos ou nao realmente ver. Nao faço ideia do numero medio de imagens que uma pessoa vivendo na cidade e usando internet ve diariamente, sao muitas, e boa parte e publicidade. Tenho a sensaçao de um armario tao abarrotado de coisas que tudo despenca, algo avesso a elegancia funcional e a saude, algo que cansa mentalmente. Escrevo para aqueles que como eu tem vontade de fazer arte, de entende-la e experimenta -la enquanto reflexao e habilidade, que dao a ela importancia, que acreditam que o estudo da arte talvez possa ser de ajuda para se considerar nossa era de informaçao. Esse trabalho, que chamo “Captura de um Cavalo Bravo”, em homenagem ao quadro do pintor frances Theodore Gericault, e uma curta reflexao sobre o produzir arte e uma compilaçao de trabalhos produzidos ao longo dos anos de estudo, de fazer ou tentar fazer arte. Mas, o que interessa aqui e que quero contar uma historia porque quando cheguei nessa cidade me assustei com o tamanho dos predios, olhava -os admirada,


circulava pelo centro com um chinelo e uma roupa velha por cima de outra roupa velha. Posso chegar na cidade de caminhao, vendo a estrada por suas grandes janelas, parando nos postos de gasolina que com seus nomes contam sobre a distancia em quilometros da capital; de trem, deslizando pelos trilhos junto com muitas pessoas que tambem carregam suas malas de afazeres, desejos ou saudades, e descer na estaçao ferroviaria com seu encanto especial bordado de nostalgias cinematograficas; ou de onibus, onde o mover das rodas contagia o cerebro e o coloca fora dos ciclos viciosos. A capital construiu vastas edificaçoes na minha cabeça, que se tornou sem fim como suas avenidas de edifícios e paredes com outdoors e pixos, onde passaram a existir desde os bairros de inimaginavel riqueza ate as populosas favelas de papelao debaixo das pontes e as crianças que tomam banho numa geladeira velha feita de banheira na beira da estrada. Como os carros clandestinos, anunciava na minha mente todas as cidades: diamantina! Montes claros! Ipatinga valadares coronel fabriciano! Mariana ouro preto! Estar diante da vastidao do mundo trazia a vastidao das possibilidades, necessaria para curar a vastidao das exigencias dos outros. Posso começar a contar sobre a cosmologia da supersaturaçao. A cosmologia se preocupa tanto com a origem tanto com a evoluçao do universo, a supersaturaçao se refere a saturaçao das cores, ou seu grau de pureza. Supersaturar as imagens e como desfazer as misturas cromaticas, uma forma de organizar. A imagem saturada costuma ser tambem contrastada, revelando seus opostos e os colocando em convivencia. Me coloco entao como uma reprogramadora de dados cromaticos. Foi necessario reorganizar tudo, reconfigurar, adaptar-se. Eu nao me sentia pequena, eu me sentia grande, porque meu mundo se movia comigo, junto com meus olhos se movia toda uma percepçao, dicionarios das coisas, enciclopedias de sentimentos, bibliografias de novos conhecidos, etimologia do tempo que muda de significado a cada sol que nasce e a cada noite que chega. Os livros me deram suas maos e invisíveis me levaram para bem longe da minha estranha zona de conforto. Vi um novo ceu e uma nova terra. Porque ja o primeiro ceu e a primeira terra passaram, e o mar ja nao existe. E deus limpara de seus olhos toda lagrima, mas havera morte, pranto, clamor, dor, porem as primeiras coisas sao passadas. Eis que faço novas todas as coisas.














Sumário

A esperança é um inseto saltatório e cor-de-rosa................................................................29

Realidade: o cérebro sob controle................................................................................................42

Para possuir a habilidade de causar um efeito estético é preciso aprender a ver...53

Jogo-do-homem......................................................................................................................................67

Foi encontrada uma caixa de óculos.............................................................................................87

Hotel paris e croquis para dramas..............................................................................................137

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ou trabalhar no sentido avesso, creio que essencialmente a ficçao e o passado editado, remendado, recortado, amassado, como uma folha de papel, uma argila, pintado, passado guache, passado nanquim, passado acrílica, passado lixa. Entendo que a vida e sonho porque as memorias viram símbolos, o que chamo de eu nada mais parece ser que memorias, entulhadas, cirurgicamente guardadas ou embrulhadas em um saco de lixo. Assim ja encontrei toda minha produçao artística, nas caixas, papeis, pedaços de imagens, fotografias, audios, mp4, mp3, avi, jpg, eteceteras. Porque as urdiduras dos trabalhos de arte talvez sejam uma rede de atalhos do pensamento. Ademais, e trabalho, dedicaçao, esforço, entao tecnica. Inicio assim a investigaçao da arte como tecnologia da percepçao, faço um rapido estudo das maneiras de viver imaginadas e suas engrenagens de produzir sensaçoes. Desenho um diagrama, rasuro algumas palavras, substituo -as, encontro coordenadas, respiro e me deparo com o real na luz do sol cobrindo o chao da sala e o ceu emoldurado pela janela e ao mesmo tempo tao ali me comunicando certa tranquilidade da repetiçao dos dias, que agora se apresenta necessaria para escrever esse texto. Ao chegar na cidade a primeira coisa que foi dita a nossa protagonista foi que ela era do interior, surpresa, ela logo percebia que nossa identidade e mais construída pela contra forma do que pela forma. Na verdade, so me era permitido ser aquilo que eu nao era, e estava comprovado que eu nao era. Inicio a ficçao. Ela decidira nao habitar sua vida por completo, precisava se enxergar de fora, ou na verdade, sempre se enxergou um pouco de fora, digamos que uns 10% esta para fora e pode ver o resto solto ali no turbilhao da vida como ela e. Uma pequena parte desses 10% esta aqui escrevendo. Nesse caso vou jogar em aberto. Minha


trajetoria na investigaçao da sensibilidade artística, ou da poesia, passa por varias palavras, vou abri-las aqui, vou apenas estica -las e assim emergirao as entrelinhas, e isso vai compor um grande texto, um livro (da grande biblioteca de todos os livros sonhados do mundo). Essa historia começa na infancia das coisas, que habita as pequenas proporçoes, onde nao cabem ainda os outros, o mundo dos outros entao muito menos. Cabe a admiraçao, a vontade, a imaginaçao, a transformaçao, o medo, o encanto. Cabem muito bem os jogos. Inventar jogos e uma atividade que inclui a projeçao de mundos sinteticos, elementares, simbolicos. Ela começou assim: era jogo, era historia em quadrinhos, era cinema, era qualquer coisa que nao fosse sua propria vida. Reza a sabedoria popular que ao encontrar uma esperança em sua casa nao se deve jamais, mas jamais, mata -la.













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oce esta dentro de um quarto de dormir saturado de objetos dispostos de maneira desorganizada, sujos, empoeirados e com mau cheiro, debaixo da cama existem uns 5 gatos aprisionados em uma gaiola. A percepçao do espaço e um tanto atordoada, hiperestimulada, perde informaçoes gerais e se aprofunda nos pequenos detalhes. Eram filhotes miando agudo, magrinhos e com os pelos desordenados. Do dormitorio voce sai para o quintal da casa e ve uma cadela cega de um olho, com uma coleira no pescoço amarrada a uma grossa corrente presa a um metal cilíndrico encravado num pesado bloco de cimento, ela abana seu rabo e exibe sua língua rosada pra te cumprimentar, uma alegoria: a inocencia. Fazia muito calor, mais de 40°, a terra do quintal era seca e vermelha, duríssima, os muros de cimento e chapisco, uma porta empenada e enferrujada, sem vidros, o portao externo nao tinha mais fechadura e tambem estava empenado. Qualquer um que passasse pela rua poderia entrar ali. Nessa casa os objetos nao eram domesticados pelas pessoas, mas o contrario, a sensaçao era de que estava ali como seres, talvez companhias para uma grande solidao, algo relacionado a Diogenes para a psiquiatra. Mesmo estragados os objetos ocupavam seu espaço e nao podiam ser dispensados, tinham o seu direito de permanecer ali, mesmo sem contribuir com os outros moradores. Ja os animais eram encarcerados, punidos por algo, eu supunha. A estrutura da casa era dura, torta, as portas eram difíceis de manusear, as paredes nunca tinham uma pintura que cobrisse por completo sua estrutura interna. Havia algo sobre a sinceridade nisso, e uma certa coragem em lhe dar com o que normalmente queremos esconder. Esse lugar, essa casa, foi chamada de documento historico da cidade de Ipatinga. Uma historia composta de objetos encontrados nos lixos e caçambas, aquelas coisas que as pessoas nao querem mais por algum motivo, aquilo que se despensa, aquilo que queremos nos livrar. A historia de Ipatinga era pra mim seus excessivos eletrodomesticos estragados, pifados, inuteis, inconvenientes, ladroes do espaço. Percebi a historia como o resto, que por vezes era cuidadosamente embalado nos museus que nao cogitavamos frequentar. Nessa casa se juntava o que as pessoas nao queriam mais, constatei que as pessoas enjoavam das coisas, as coisas deixavam de lhe servir em algum momento. Para as pessoas fora da casa, as coisas nao tinham seu pleno direito de habitar as casas, elas foram feitas para servir o ser humano como aprendi na escola. Me causava uma tristeza ao pensar que


as pessoas poderiam dispensar umas as outras como dispensavam as coisas. Em uma tarde ensolarada de ceu azulíssimo com um brilho de apertar os olhos foram levados para o acervo 300 telefones estragados, dos quais 5 funcionavam ainda. Os telefones foram testados um a um, a maioria dos resultados eram negativos. Eu lia essa imagem como a parte tangível da impossibilidade de comunicaçao. Aprendi que os irmaos nao se interessavam uns pelos outros, porque a vida era muito difícil, que alguns irmaos podiam te explorar se voce nao ficasse esperto, isso quando nao sumiam pelo mundo sem dar sinal de seu paradeiro ou quando nos mesmos havíamos desistido deles por terem algum problema serio na cabeça, como a esquizofrenia. Decidi projetar um horizonte por cima da palavra família e esconder esse horizonte, guardei segredo, fiz-me em copas, decidi falar pouco, so o necessario, criei o gosto pela observaçao, uma observaçao faminta por decifrar enigmas nas imagens, por vezes fui um par de olhos flutuantes. E muito difícil se comunicar, sempre tem uma porçao de ilusao, de erros de interpretaçao, tem gente que desiste de se comunicar. Certa vez vi um filme onde uma moça conversava com a mae falecida atraves de um telefone estragado, guardei essa alegoria do desejo pela comunicaçao. Quando lembro dos objetos descartados que convivia me pergunto do que eu ansiava por me livrar. Sentia a existencia seca, desiludida, o que inevitavelmente me levou a desenhar graficos e criar comparaçoes, com funçao de orientar a mim mesma para controlar os níveis de umidade. Abre-se um horizonte abstrato, inicio o que chamo de projeto de reinvençao do amor. A reconfiguraçao do mundo me parecia urgente, quando digo mundo estou apenas dando uma significaçao afetiva a minha propria percepçao, tal como alguns velhinhos que pressentem o apocalipse. Essa funçao de reconfigurar o mundo ou reinventar o amor me dava fome, uma fome tremenda, talvez eu quisesse engolir todo o universo, engolir tudo atraves da observaçao. Escolhi como profissao ser uma semionauta, me mover na paisagem das ideias e das representaçoes como uma transformadora de energias.







À FOME PRATO COM CONFETES, GARFO E LANTERNA DIMENSÕES VARIAVÉIS 2014





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ezanne e Hayao Miyasaki falaram que aprendem observando o mundo. Parece simples, mas eu demorei bastante para notar como me importavam, por exemplo, as cores. Dos momentos mais aleatorios aos mais propícios estava eu fazendo observaçoes de paletas cromaticas; ao ver um filme o imaginava como cor, um filme inteiro traduzido em cor como se fosse uma pintura de Mark Rothko, esse e amarelo e azul real, aquele e azul turquesa e dourado, esse outro e rosa, salmao e vermelho, vejamos, ha dois tons-atores-principais ate juntar com toda enorme quantidade de figurantes, e de uma cena se extrair uma enor me paleta de cores em pixel. Relembro o classico comentario de Van Gogh em suas cartas a respeito da cor, onde ele fala que as cores se sucedem como que sozinhas, de uma surge a outra numa conversa so delas e quem as olha rapidamente deduz sobre o que ela s falam. O desafio do pintor e dar-lhes vida, a cor na tela e constituída de materia diferente da realidade, seu encontro com a potencia da mesma se da, nao tentando copiar identicamente, mas captando algo na essencia da cor, essa esfera abstrata, que seja tao belo quanto a vida. Isso sim, para ele, seria partir das cores da natureza, essas vistas nao apenas em sua superficialidade, mas em toda sua amplitude que tambem ecoa em nos. E por fim ele afirma que o que produz beleza verdadeira tambem ha de ser verdadeiro. Hoje a tarde as cores das shooting paintings, de Niki de Saint Phalle, novamente me deram uma mao e uma arma pra sair do meu proprio abismo. Bustos de manequins femininos, anjinhos barrocos, cranios, toda sorte de representaçoes escultoricas, corpos masculinos, jesus catolico na cruz, retratos de grandes personalidades ou nao, um homem de cartola sobre um cavalo, garrafas com rosas, bonecas de bebes, uvas, armas de fogo, cabeças de animais trofeus de caçadores,


talheres e monstros, tudo uniformizado em branco, como uma coisa so, uma coisa híbrida, monstro branco seco de vida, mas nao vai ficar assim, de repente, PA PA PA PA PA, um impulso em forma de tiros, e tudo explode, mancha de cor, escorre cor, azul, amarelo, vermelho. Sou do pensamento de nao demorar demasiadamente nas reflexoes sobre os processos sensíveis do trabalho, porque o tempo que e gasto traduzindo em palavras nao se esta fazendo, se vira os olhos tao para dentro que corre o risco de perder -se, ao inves de mirar os olhos nas maos, nos papeis, nas tintas e nas paisagens e figuras do mundo, e sempre, acima disso tudo, na propria vida. Como a pergunta do personagem Marcel no livro “O Caminho de Swann”: “E meu pensamento não seria também, por acaso um esconderijo em cujo fundo eu sentia que permanecia oculto, até para olhar o que se passava lá fora?” Digamos que voce esta passando seus olhos pela neblina de uma distante manha, volte 5 anos na sua vida, volte 10 anos, imagine 50 anos atras, 100, 200, nao, vou te pedir pra imaginar mais de 12 mil anos atras, algo quase como: era uma vez e nao era uma vez numa distante manha envolta em misterio e desse sentimento de humanidade que transcende pequenezas, escolho como cenario esses olhos humanos que veem mas nao tem esse vasto vocabulario para descrever para si mesmos, o mundo. Se conhece pela sensaçao, onde a pre -historia me faz pensar na filosofia de Merleau-Ponty, por sua proposta de retorno a origem da percepçao antes da racionalizaçao, a uma especie de pre -reflexao, o que tambem se entrelaça com a ideia de “aprender” a ver. Imagino essa mulher enterrada no mais antigo rito funerario descoberto pela arqueologia, as lagrimas de tristeza por sua ausencia, o cuidado de pintar seu corpo sem vida em um rito, um rito sem palavras. Começo nesse silencio, que interrompe gemidos, choros e sorrisos, nesse silencio de paz e de tensao, apenas existindo. Como descreve Octavio Paz em “El Mismo Tiempo”: “dentro del tiempo hay otro tiempo, quieto, sin horas ni peso ni sombra, sin pasado o futuro, sólo vivo, como el viejo del banco, unimismado idéntico perpetuo, nunca lo vemos, es la transparencia”. Esse silencio totalmente ausente de palavras, ou talvez fosse o mesmo silencio que voce pode fazer agora, ou nao, nada era como agora, mas estavamos ali. Me pergunto quao especial era desenhar nessa epoca, adentrar a caverna estreita e escura: um refugio.















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aul Klee falava sobre encontrar a passagem que leva do desenho a pintura, são muitas as passagens entre linguagens artísticas, entre áreas do conhecimento, entre a imaginação e a vida. E muitas são as formas de potencializar a arte. O artista francês Daniel Buren em seu texto “limites críticos” faz uma grande provocação criativa usando as imagens do chassi, da tela e da pintura para comentar momentos históricos da arte, onde ele faz seis desenhos, dois para cada momento histórico e afirma “A sua presença (museu/galeria) tornou-se embaraçosa” e “Nós o riscamos do mapa da mesma forma que o ready-made “anulava” a pintura” e por fim: “veremos mais adiante que num segundo momento tudo isto gentilmente reintegra o museu e seu quadro cultural, para o maior deleite dos passantes, ainda extasiados por terem sido levados tão longe.” O texto de Buren caminha num sentido de criticar a preservação dos valores burgueses numa vanguarda dita revolucionária, mas o que me interessa aqui é o sentido de expansão das maneiras de perceber e vivenciar o trabalho artístico. Saindo do contexto dos grandes trabalhos e dos grandes museus, voltemos ao contexto daqueles que iniciam seus estudos em arte. Por exemplo, localizar o próprio corpo no trabalho artístico pode ser entendido como um caminho de entrega e expansão, expansão também de escalas. Lampião dizia “minha casa é meu chapéu” e Leonilson dizia em seu diário “meus trabalhos são meu anjo da guarda” e a vida do artista é seu processo de criação. Essas são formas de entrega. E a entrega é uma forma de investigação. Vou me ater um pouco a essa ideia da entrega, que também traz seus riscos e vícios, portanto se apresenta como um complexo caminho. Em um livro sobre


técnica de representação teatral, a autora Stella Adler comenta que os estudantes de teatro, antes de iniciar seus estudos já chegam despedaçados física e emocionalmente com problemas como timidez, insegurança e falta de disciplina, e ela diz “são um sinal de vida que quer progredir, partindo da insensibilidade e do vazio para a maturidade estética.” Van Gogh falava da tristeza material dos artistas e que ele preferia uma melancolia ativa. No mundo antigo dizia-se que um longo trabalho da alma pode produzir melancolia, já na idade média acreditava-se que a perda da razão era uma punição de deus para uma alma pecadora, ou que tristia, tristeza, era o pecado do cansaço do mundo. No renascimento o filósofo humanista Marcilio Ficino acreditava que essa infelicidade era uma manifestação de nosso anseio pelo grande e pelo eterno. Outras crenças da época eram de que a melancolia era um prérequisito para a inspiração e que o filósofo, o pensador profundo e o artista precisavam estar em contato com ela. Também se falava que o cérebro do melancólico era embebido de bile negra e ao rolar os olhos para dentro este via uma escuridão por toda parte; imagino ser uma estranha e pesada escuridão. No século XVII a melancolia virou moda por ser identificada a genialidade e grande profundidade da alma, noção que percebo viva ainda hoje em algumas pessoas. No século XX percebe-se um grande aprofundamento do tema através da psicanálise, psiquiatria, psicobiologia, filosofia, entre outros tantos campos de estudo. Nos anos 50 chegamos ao citalopram, fluoxetine, sertraline, fluvoxamine, paroxetine e venlafaxine. Esses parênteses sobre a doença da melancolia, ou depressão, serve para trazer essas imagens e comentar uma situação específica, quando a entrega artística se depara com a dor, e me pergunto quão longe podemos ir, não nas questões mais profissionais da arte como fala Buren, mas nas questões internas, dos corações das pessoas, como Leonilson que diz mostrar seu coração para o público. Sobre o encontro com a dor através da arte, começo a pensar a partir das maneiras que lidamos com os pensamentos difíceis. Em 1994 foi desenvolvido pelos criadores da terapia metacognitiva o Trought Control Questionnaire para avaliar


diferenças individuais de controle do pensamento e suas relações com a vulnerabilidade emocional. Resumidamente, a escala compreende cinco subescalas que medem essas estratégias: a distração, fazer algo que você gosta para aliviar o pensamento da dor; o controle-social, que seria perguntar para as pessoas ao seu redor se elas têm pensamentos semelhantes; a preocupação, que seria se centrar nesses pensamentos negativos e ficar preso neles; a punição, ou seja, se punir por ficar triste e a reavaliação, que seria tentar reinterpretar o pensamento e compreendê-lo. A terceira e a quarta estratégia são associadas a neuroticismo e preocupação patológica, e sobre as outras três estratégias é possível que sejam marcadores positivos de saúde mental e exerçam uma proteção contra a vulnerabilidade emocional. Mas essas informações não estão aqui para pensar a arte como terapia, apesar de a princípio fazer arte quando se está triste seria sempre uma forma de distração e reavaliação, porém por vezes ela pode ir de encontro à estratégia da preocupação. Há uma história que ouvi sobre ensinar a uma criança que esta escolha um lugar secreto, onde ninguém a encontre, e que desenhe ali um círculo, e imagine que ali nada nem ninguém pode ter acesso a ela, esse seria um espaço só seu, sua individualidade. Penso que as grandes obras são essas que nos acompanham e se tornam presentes em momentos da vida, mais que presentes, agem como potencializadoras de nossa força. Compartilhar a intimidade pela fotografia, vídeos, diários de áudio e performances são algumas das estratégias muito potentes de ir de encontro a esses lugares.




















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e sua família paterna Ultra Violeta havia herdado a baixa estatura e a curiosidade pelos objetos descartados pelos outros, quando pequena colecionava pedrinhas roubadas dos montes de brita das construçoes e pedaços de chips de aparelhos eletronicos, materias-primas para jogos de tabuleiro e pequenas engenhocas com pilhas, motorzinhos e luzes de pisca -pisca. Certo dia, ao voltar do mercado encontrou numa calçada uma caixa de papelao, surrada, descartada e estava cheia de oculos. Haviam oculos de varios forma tos e cores, designs e personalidades, cada um deles poderia ate mesmo receber um nome proprio: Sr. Jose, Dona Beth, Ana Carolina, Andre, Maria Clara, etc. Entao ela os provou, e com cada um deles podia enxergar de uma maneira distinta, variava do astigmatismo a miopia, dos oculos de sol ao estrabismo. Logo percebeu que aqueles objetos materializavam o funcionamento de seu cerebro, onde dois de seus oculos mentais eram facilmente percebidos: os oculos do pesadelo e os oculos rosa fucsia, esses dois eram responsaveis por reconfigurar o mundo de tal maneira incompreensível aqueles ao seu redor, dessa forma ela confirmava sua tese, so poderia mesmo estar usando oculos metafísicos. O sol ja começa a cair, ela recolhe a caixa com as duas maos, equilibra a sacola de compras por cima, e com certa dificuldade caminha para casa. Violeta havia sido diagnosticada com personalidade transtornada, antes de tudo precisava entender a si mesma, desde a pre -adolescencia as autoanalises eram frequentes, começou com uma brincadeira na qual ela se dividia em 7 eus diferentes, ela ilustrava os eus e isso era um jogo de tentar se entender. Minha cabeça funciona como um computador cheio de abas de texto abertas, em cada uma delas escrevo pensamentos que irao virar açoes, apenas administra-las ja e um trabalho. Tenho mentalidade paranoica, por isso criei gosto especial pela geometria, o incansavel vício em ligar pontos distantes se tornava um grande caos de rabiscos mentais, mas com a geometria posso transforma-lo em belas composiçoes. Fiz um estudo simples: o Eu Absorve o mundo, o Eu esta diante de imagens


que comunicam, que refletem em algo dentro de si. O Eu se multiplica como imagens de varios Eus possíveis em um estadio de espelhos: a contra forma do Eu, o Eu supersaturado, a silhueta do Eu, o Eu desfocado, etc. Imagino a manipulaçao de uma imagem e todas as possíveis formas nascidas desta, como num editor de imagens digitais, voce pode dessaturar a imagem, aumentar seu contraste ou diminui-lo ate restar apenas um cinza uniforme, voce pode inverte-la, recorta-la, etc. O Eu poderia ser essa imagem, infinitamente multiplicada dentro de si mesmo na medida que reflete o mundo. No filme Persona, de Ingmar Bergman, a personagem atriz, em seu silencio acaba por ser um espelho impenetravel para a personagem enfermeira, que acaba por ver seu reflexo de uma maneira bastante angustiante, uma estranha magica acontece e as duas personagens se mesclam. Penso no medo de me deparar com o outro. Ao percorrer olhos, palavras, gestos, crenças, afirmaçoes, inseguranças camufladas, desejos disfarçados, inicio a direçao de uma peça de representaçoes das verdades de alguem. As marionetes sempre me encantaram e nesse teatro do tentar vislumbrar a razao das preferencias, os trajetos percorridos, os dias dif íceis, o caminhar por vezes tao leve, entre outras sensaçoes, os bonecos sao assemblages decoradas com símbolos imprecisos e seus cabelos estao embaraçados. Assisto a uma percepçao possível que finge nao ser a minha e sim a do outro. Abrem-se as cortinas e surge a vida do outro espetacularizada, onde corro o risco de me desinteressar por mim mesma. Ao assistir o filme percebo que ao agir como a atriz, um par de olhos flutuantes, passo a responder com a angustia e o desinteresse por si mesma da personagem enfermeira. Percebo, entao, que desejar habitar o outro implica em uma grande dor. “Meu corpo está pesado como chumbo quando o jogo sobre a cama. Passo imediatamente à última profundeza do sonho. Esse corpo, que se tornou um sarcófago com alças de pedra, jaz em perfeita imobilidade; o sonhador emerge dele, como um vapor para circunavegar o mundo. O sonhador tenta em vão encontrar uma forma e um contorno que se amoldem a sua essência etérea. Como um alfaiate celestial, ele prova um corpo em seguida do outro, mas são todos do tamanho errado. Finalmente é obrigado a voltar ao seu próprio corpo, a reassumir o molde de chumbo, a tornar -se


prisioneiro da carne, a prosseguir com o torpor, a dor e o tédio. Domingo de manhã: acordo inteiramente revigorado. O mundo está diante de mim, inconquistado, imaculado, virgem como as zonas árticas.” Henry Miller, Sexus I Sempre me agradaram os retratos, quando me faltava dinheiro ia a rua com um caderno, uma caneta e alguns pasteis de cores escolhidas oferecer retratos as pessoas que jantavam nos restaurantes da cidade. Eram curiosas as reaçoes de satisfaçao ou insatisfaçao com o desenho, o desejo de parecer belo ou de que o desenho retratasse tal como era a pessoa e haviam tambem alguns que acreditavam que ele tinha o poder de retratar a alma ou algo do tipo. Gostava de fazer croquis destas pessoas desconhecidas, esquecer de mim por uns minutos e me concentrar numa fisionomia que provavelmente jamais veria outra vez. Decidi caminhar ate o centro para ver a cidade, ela que me acolheu justamente em sua transitoriedade, minhas despedidas teatrais, dramas pessoais e minha mania de andar escrevendo. Belo Horizonte e seus falsos contos de fadas, sua area hospitalar repositorio de lagrimas, ela morta no 12° andar da santa casa enquanto cachorros de pelucia fucsia e verde limao latem de oculos escuros, suas crianças andando pelas ruas com grandes olhos admirados, meus fones de ouvido, meu frenesi pos-adolescente, meu sexo perfeccionista, seus palcos esperando shows em silencio, suas lojas de 1,99. Chove no centro da cidade de lotericas, mega sena cega, sua sorte paralítica, seus jovens fumantes na rodoviaria, minha adrenalina de todas as viagens, seu asfalto molhado, seus bombons caríssimos e enjoativos, minha labirintite, seu jeito de conversar sem olhar nos olhos, um homem sujo de terra debaixo da ponte e o lixo dos hipermercados, minha lentidao e suas lampadas led piscando, nosso amor improvavel. A liberdade que encontrei na capital me inebriou, com ela sonhava desde a infancia. Com 12 anos sofria por nao ter um canto meu em casa, morava em um lugar apelidado de tapera, sem portas e sem espaço para a individualidade, o que anos mais tarde aprendi a reconhecer que seu valor residia numa sensaçao que so consigo descrever atraves de uma pintura: Os Comedores de Batata, de Van Gogh. Nomeei


minha nova morada de “a casa de pombos”, esta que mudou de endereço 9 vezes em apenas 5 anos, uma homenagem a heroína do livro “O Despertar” de Kate Chopin, que abdica do marido, dos filhos e de seu papel de dona do lar. “Constatei alegremente que a seriedade da existência com que os adultos haviam me enchido os ouvidos, em verdade não pesava muito na balança. Passar nos exames não fora brincadeira, estudara seriamente, tivera medo de levar bomba, tropeçara em obstáculos e cansara-me. Agora não encontrava resistências, sentia-me em férias, e para sempre. Parecia-me que me entregava a um novo jogo: o jogo de ser adulto” “Os vestidos nunca me haviam interessado muito, assim mesmo tive o prazer de vestir -me de acordo com minha fantasia. Todas as manhãs pintava-me alegremente, uma placa vermelha em cada maçã, muito pó de arroz, batom nos lábios. Achava absurdo que a gente se vestisse com mais apuro nos domingos que nos dias de semana, pra mim todos os dias seriam feriados então eu me ataviava em todas as circunstâncias da mesma maneira.” Simone de Bouvoir, Na Força da Idade Descobri que haviam muitos microcosmos para habitar e me reajustei para ser uma peça solta. Havia uma infinita pesquisa do viver pela frente. Enquanto tomava um banho quente pensava na etica como uma bolha na qual podemos estar imersos e nos deslocar de uma bolha a outra a medida que mudamos de territorio social. Em cada lugar adentramos tambem em um novo universo etico e estetico, as vezes viajamos para o mundo de alguem, de onde trazemos souvenires de ideias. Vivo transitando entre esses territorios, tentando guardar apenas o que me interessa. Em constante adaptaçao e mutaçao, pulando de casa em casa como num jogo de amarelinha. A ideia de casa como centro e deslocada quando essa passa a ser entendida no plural. Me vejo a saltar de uma a outra, buscando nesse movimento o acolhimento e a estabilidade. Me agradam os objetos leves e coloridos, alegres, moveis, tal qual um jogo infantil, onde ainda pretendo preservar certa simplicidade dos olhos rapidos e sobrios.


Violeta inicia uma investigaçao no elementar das coisas, o primeiro objeto de pesquisa sao as cores, de onde criou o habito de fazer um calendario de cores para se tornar consciente de suas mudanças de humor. Coloria religiosamente seu calendario cromatico, e com o tempo cada cor foi adquirindo um carater especial, revestida de memorias. Ela tinha escrito em seu diario: “Escolho ver o cinza, apos esbarrar num buraco negro da alma consigo finalmente sair do calor escuro do cobertor pra ver a luz da manha e vejo o cinza medio levado pelo vento de maio nas ondas de agua da enorme lagoa. Cinza porque e o avesso no medidor calometrico da minha mitologia da supersaturaçao. E tao pacífico quanto caminhar nesta orla e perceber que ando apenas a interpretar uma tragedia todos os dias, tal como uma atriz encarno a pobre moça que se ve asfixiada, molestada pelo sentimento de paixao que cultiva por um rapaz do qual espera ansiosamente apenas os piores comportamentos masculinos. Nao quero mais nada desse papel rubro, quero o cinza. O cinza das manhas calmas e cafes preparados com carinho, o cinza do cotidiano que se repete, nos desp edimos com um beijo antes de sair cada um para seu caminho e tudo, ate o transito engarrafado e leve, leve como um degrade de cinza se esbranquiçando. E a noite e escura, como o cinza que se escurece ate dormir.” Ontem Violeta quebrou um espelho, acabava por quebrar justo tudo que mais amava. O leitor deve estar se perguntando o porque do espelho, explico, em algumas culturas, como na japonesa, o espelho e venerado nos templos xintoístas por carregar em si o simbolismo da realidade como ela e, por carregar o poder de revelar as coisas tal como sao, um valor tambem admirado no ser humano: revelar -se como e, ser fiel as suas palavras, ser transparente, apenas ser o que e, pois a natureza o fez perfeito, basta ele ouvir a sua propria natureza. Depois de chorar o espelho quebrado, passa a incorporar esse valor de forma acolhedora, bastava ela ser o que era, nao seria necessario se transformar para o outro, e tambem o absorveu com certo encanto pelo que nao conhecia: uma realidade unica e soberana, a realidade que o espelho reflete.




















A série Apyreyma, realizada em técnica mista, através da digitalização e sobreposição de imagens, tem seu nome oriundo do tupi antigo, que significa infinito ou sem fim e pronuncia-se “apúhréúhma”. É um trabalho que utiliza como sua fonte formal o antigo jogo chinês Tangram, também conhecido como o jogo das mil peças. De acordo com Samuel Loyd, o perito americano em puzzles, o deus Tan inventou o puzzle há 4000 anos e explicou-o nos Sete Livros de Tan. Cada volume continha mais de 1000 puzzles que supostamente ilustravam a criação do mundo e a origem das espécies. As sete peças foram tiradas do sol, da lua e de cinco planetas - Marte, Júpiter, Saturno, Mercúrio e Vénus. Segundo alguns, o nome Tangram é uma corrupção da palavra inglesa obsoleta 'trangam', que significa puzzle ou bugiganga. Outros dizem que derivou do barco cantonês tanka, onde raparigas entretiam os marinheiros americanos. Outros explicam que a palavra derivou da dinastia chinesa Tang. Uma história conta que o Tangram foi inventado por um homem chamado Tan acidentalmente quando ele tentava reunir as peças de um azulejo partido. Na Ásia é chamado de 'Sete placas da Sabedoria'. Na China dão-lhe o nome de "Ch'i ch'iao t'u" ou de 'sete peças da astucia'. Minha série apyreyma continua essa velha história, como se as peças de madeira estivessem dormindo em sonho, entre sobreposições de presenças e estados de transparência.
















AMBULANTES 300 BOLAS DE VINIL SORTIDAS DIMENSÕES VARIÁVEIS 2013




















C

orpo amado, Violeta Parra ouve músicas latino americanas e é abraçada por certa paixão ingênua pela vida, seu anjo da guarda voltou a sentar na beirada de sua cama e desde então as coisas tem mudado à medida da luz solar que recebem. Chá também é água com açúcar e ela espera ver suas personagens da fumaçomancia do próprio cigarro, como o Sr. Lúcio Cardoso. Seu mundo era uma pequena seleção, objeto por objeto, pessoa por pessoa, os lugares a se frequentar eram poucos. As viagens eram sempre à mesma cidade do interior na qual foi criada, mas todas tinham o soberbo encanto de uma grande viagem. Era muito bem acostumada ao incrível, que a tratava com agradável cordialidade, aparecia entre suas roupas sendo dobradas e posicionadas nas gavetas da velha cômoda, ela tinha todas essas pequenas coisas, que eram suas histórias, dobrava história por história e as colocava em seus devidos lugares. Ela tinha também o amor de poucas pessoas, muito caras a ela, e podia pagar passagens de trem para viajar de tempos em tempos. Definitivamente seu mundo não era grande, era tão pequeno quanto seu corpo que espreguiçava pela manhã ou quanto seus pés que normalmente não encontravam o chão ao se sentar. Melodias em espanhol continuavam a pintar cada canto daquele quarto, pinceladas de uma esperança que rima com as primeiras palavras desse escrito.

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Recostada no sofá aparentemente macio, mas velho, esburacado, com alguns dos pregos de sua estrutura de madeira brotando pra fora, segura o enorme controle remoto, ela mesma remota em sua própria vida, assiste canais de todos os tipos, as desventuras de Dante nos infernos do amor, o amor melancólico, o amor psicótico, filmes de terror B nada engraçados, chora, muda de canal, a adolescência sonhando acordada dançando de fones de ouvido nas calçadas iluminadas com uma mochila colorida pendurada em seu corpo por uma das alças, a mãe que ora docemente por sua felicidade no interior do estado, o pai brincando com um gato manhoso, a estrada de noite vista pelas rodas do ônibus de passageiros, aquele vento de fim de tarde sozinha e o medo e o corpo que treme escondido debaixo das roupas de lã, as ovelhas que nunca vi na vida, a menina andando de chinelo pedindo comida na padaria do Rio de Janeiro juntando dinheiro pra voltar pra casa, a casa que não é minha mas as vezes chega a parecer, os anos que se passam deixando poucos rastros, os canais vão mudando, você se esquece do que assistiu anteontem, imagina que sua cabeça guarde em algum lugar, que você não tem mais acesso, não foi em vão, mas se foi.

** * * * **** *** * Sentada no quarto escuro, porque a lâmpada queimou ontem e o pequeno gato mia e me olha, algo acabou de morrer dentro de mim e lá vem o luto dos esforços, o luto das esperanças, milhares delas, insetos enterrados em covas enfeitadas com pequenas pedras e flores selvagens. Fujo num tropeço infantil para os insetos porque há algo muito dolorido no velório das pequenas esperanças, cotidianas, presentes em cada sorriso ao tomar um café, em cada vez que se deita na cama quente e sonha. No velório de cada pequeno sonho estão ao redor dos caixões abertos várias de mim mesma, comentando sobre os defuntos, vangloriando seus feitos ou criticando seus erros, tentando encontrar algum consolo em palavras


vagas. Hora de fazer a cirurgia, retirar a parte morta com cuidado para não danificar as que ainda estão vivas. O corpo está cansado, parece ter finalmente acabado uma série de repetitivos exercícios do olhar, de força-lo para tornar toda desilusão explicitada à sua frente algo motivador, pintado toscamente de colorido. Agora aquele cansaço abraçado pelas lágrimas quentes, de quem não vai mais se esforçar, um suspiro longo, um alívio triste, não, um alívio mais do que qualquer coisa, apenas exausto. Vislumbro o fim desse coração pesado que carrego há um tempo. Quase não a reconheço mais, mas ela está ali parada diante de mim, uma esperança real, viva, brilhante, inocente, despida daquela verdade esmagadora de quando temos certeza que estamos nos esforçando em vão, já mapeamos todo o território, é mais que improvável que algo vindo irá nos surpreender. É muito difícil reconhecer a esterilidade, a menopausa da compreensão mútua, deliro, mas não era infinita a capacidade de transformação do ser humano? Nunca foi querida, uma velha senhora me diz, e me fita do espelho.

** * * * **** *** * Imagino uma música doce tocando ao fundo, algum rosa pálido com um ciano todo desencaixado fazendo tudo se mover, ali está ela, romanesca, a primeira definição que ganhou da psicóloga. É difícil escrever em uma única linha, as vezes queria juntar essas palavras de forma mais sincera e dizer que por fim é só mais uma história apaixonada, que não é sobre mim mesma, mas é para os outros, para os outros se esconderem ali, se protegerem, acho que eu sou uma casa, na verdade quero ser como uma casa. Senti falta da casa muitas vezes, e aprendi o tanto que ela é necessária, mas é uma casa para a alma, uma casa para o eu que pulsa louco e triste e esperançoso e desejante. Fico confiante em mim quando sou casa, o abrigo é a segurança, se eu mesma já for esse abrigo, já está resolvido o primeiro passo para seguir enfrentando o mundo, essas sinfonias de guerra, essa tristeza, esse


Schoenberg. Talvez Jung chamava isso de self. Agora toca uma música animada, jovem corajosa, uma música de ouvir em plena viagem, viagem essa que discorre dia após dia. Os dias vão passando preguiçosos e mornos girando suas rodas, volto em alguns lugares que outras pessoas inventaram, para beber uma água, uma água que brilha muito, brilha tanto que faz brilhar os olhos. As vezes é difícil definir uma diferença sólida entre o tempo que passo sonhando e que passo vivendo. Quando eu paro e desenho continua sendo esse lugar do sonho, em todos os seus sentidos, desde um delírio até uma vontade de fazer algo que não existe ainda, ou melhor, ser algo que não existe ainda. Se criar de novo a cada dia, um trabalho que me faz sentir viva, preciso dele. Minha vida amorosa está horrível, é importante organizar ela, como organizo um quarto de dormir, passo um pano com cheiro de lavanda para finalizar. As vezes ouço assim: não se preocupe com nada, mas tem umas outras vozes que vem dizendo, se preocupe com tudo, não, eu quero só fazer poesia na verdade e observar o mundo, observar o que é isso de existência, não consigo me distanciar dela o suficiente para vive-la no automático. Pode ser visto como um defeito, mas é uma ferramenta, me sinto útil quando descubro que isso é uma ferramenta para fazer coisas que não existem ainda. Tem em mim um movimento de dentro que tem um impacto tal qual uma tempestade. Percebo. Esse verbo, inteiro, integral. Essas músicas todas tocando ao mesmo tempo, sobrepostas. Isso é agora. 03:39, o tempo não existe parece, acordo todos os dias como se estivesse à uns 15 anos atrás e percebo que agora já é outro tempo, ele vai correndo, um rio quando ele se enche de água e começa a correnteza forte, que carrega quem estiver no caminho.

** * * * **** *** * Organizar uma mala de viagem ou selecionar as coisas poucas e preferidas e transporta-las junto a um novo espectro seu respirando em outra condição


climática. Neblina vagos vagões sujeitos e passageiros bem guardados no interior das malas de anteontem e de depois de amanhã. Vou coar o excesso de conectivos. Objetos ou sujeitos orbitam na cama. Algumas gotículas moldam ternamente seu ritmo cardíaco. Sonhei com uma bicicleta rosa sob a grama verde esperando na chuva. De costume, estranho meu próprio contexto mutante de vez em vez sob distinta antropológica e distorcida lente psíquica, apenas empilhando análises falhas, anos-luz da urdidura que tanto procuro. Essa história começa quando descubro uma fenda de uns 2cm no portão de casa pela qual era mais fácil verificar se o caminhão do meu pai estava estacionado na porta, ou seja, se meus pais ainda não haviam chegado. No cardápio do hotel paris tem conhaque dreher dose 50 ml e vista para os nóias do velho centro de Vitória cheia de portos de enormes braços mecânicos em alto contraste ao entardecer. A visagem individual ou delírio existencial se derrama sobre si mesma, meus compromissos e ritmos e rotinas dilatados, eu dilatada, Moleques de rua fugiram de casa em doses homeopáticas. Enquanto meus encantos de strass made in china parecem perder o brilho com o tempo. Acho o hotel paris muito engraçado. Os noivados de diamantes e celofane pousam sentados nos barcos que não são os de sainte-maries para os fotógrafos profissionais. Uma moça corre na beira do mar fugindo com toda a potência de seus músculos dos galanteios das rendas brancas e dos olhares desapaixonados dos glacês mais doces. No fim da festa estou a caminhar com os pés sujos, o corpo suado e os olhos brilhando os faróis dos carros que passam e passam e passam. Enquanto sinto um tanto de frio. A noite cai escurecendo as entrelinhas dos olhares, descascando amanhãs sonhados. Farinha de trigo – fermento biológico – açúcar – margarina – sal – ovos – leite morno e 1 lata de doce de leite. Breve, a areia marinha foge de seus pés. Que saudade dos silêncios confiantes nos quartos de roupas íntimas, dos corredores de bibliotecas sozinhas, dos caminhos bifurcados, todas essas estações paradas sob trilhos que permanecem, mesmo vazios.

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Quando passo o batom, como se fosse um giz pastel, (ela sempre me falava isso quando me via na frente de um espelho...) um giz, numa folha branca, naquele momento eu era essa folha, branca, inteira, vazia, a preencher. Esse é o giz, mas não era giz, era batom. O batom era tal qual um colete à prova de balas ou um revólver, de uma personagem de comics, com um rosto e um corpo igual ao de todas as outras personagens femininas da revista, esse lugar era seguro, é impessoal. Bang bang. Que bom que esse cigarro não apaga fácil, me encanta o que não apaga fácil. A rodovia, é tarde da noite. O vento. A luz dos carros que passam é a única iluminação, fugaz, o brilho dói os olhos, não devo olhar diretamente para os faróis. Já a escuridão é acolhedora, sozinha, a noite sorri docemente enrolada em seu lençol cintilante. Logo irá amanhecer, você vai acordar em outras camas, andar por outras ruas. A carruagem! Pinocchio. irão recolher as crianças vadias. Pinocchio, eu não quero ser como você. Às vezes eu perco o keep it real. Tenho que deixar as coisas livres de significados obsoletos. Quando você voltar para casa o feitiço vai acabar. Saramago, o muro que você falava, que cortava igualmente (mas não era igualmente) tanto um quanto outro, o lugar que os pés se assentavam (que também não era o mesmo lugar) essas duas pequenas ilhas, esse minúsculo arquipélago humano, um aqui, outro além, e o letreiro que você disse, o vi, estava escrito: ABISMO, não passar, remember. E quanto a você senhor pássaro, vindo assim de repente direto da minha infância, por que me destes o medo do abandono? Fez parte de algum inimigo oculto isso? O grande jogo de inimigo oculto das almas? Além abismo, abismo além, além dos abismos. Mas não, remember.

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Quando tinha 7 anos fugi do planeta que vivia, coloquei os objetos que mais gostava: um mini dinossauro cor-de-rosa de plástico, um caderno brochurão sem pauta, um conjunto de canetinhas 8 cores, algumas pedras bonitas que achara entre as britas de construção - tão desencaixadas quanto eu - tudo numa mochila rosa com um patinho mágico que cantava bip bip bip, vesti minha capa de chuva da invisibilidade e meu chapéu conector de outras vibrações e fiquei ali no quintal de casa por uns minutos, que duraram anos. Foi nesse dia que fui embora de vez. Hoje se comemora o natal, penso no verbo comemorar, deve ser celebrar a vida, pois se trata de um rito sazonal repetido pelos seres humanos desde sempre, comemoramos o girar do planeta em torno do sol, comemoramos o movimento, a renovação. Senti o natal por um curto instante, em que corri até o portão da vila para abrir o portão para minha tia e percebi o quanto o céu estava estrelado. Será que há algum rei mago disfarçado de estrela no céu? E tinha mesmo, uns minutos terrestres já foram tempo suficiente para me banhar em alguma vibração psíquica de tranquilidade, a respirei inteira e guardei em um potinho, dentro de mim, como um perfume para momentos de necessidade. A todo o momento enquanto escrevo vejo a fita rosa amarrada no meu braço, um nó da vontade, da vontade de inverter tudo, a vontade do alquimista. Belo Horizonte insiste em me expulsar daqui, só pra provar minha força, dona exigente essa tal de belo horizonte, exigente e estimulante, cresci mais uns três centímetros do meu chakra coronário, de uma só vez que até doeu. Preciso de antenas cada vez maiores para sobreviver, acho que um dia chegarei a ter uma wi-fi do sentimento, aí vou conseguir parar de machucar as pessoas. Já tenho alguns equipamentos: um microscópio para potencializar as alegrias minúsculas e um telescópio para projetar os sonhos longe, como uma corda ancorada. Como esse texto em construção, segue a vida para ser tecida, há muito trabalho, anseio para experimentar novos pontos com a lã aprendidos nessas viagens às 300 léguas submarinas da alma, por isso, logo assim, me despeço





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