ORGANIZAÇÃO DO ESPAÇO
UM OLHAR SOBRE O TEMPO
RELAÇÃO COM A FAMÍLIA
A potência educadora do ambiente escolar
Atividades cotidianas e a percepção infantil
O diálogo necessário para entender o outro
REVISTA
APRESENTA
PUBLICAÇÃO ESPECIAL EM DUAS EDIÇÕES 1
UMA QUESTÃO POLÍTICA Acesso à educação e construção da democracia
R$ 14,90
ESPECIAL DA REVISTA
IMPORTÂNCIA DO CURRÍCULO Aprendizagem, bem-estar e desenvolvimento
Os desafios docentes para educar melhor Uma reflexão sobre políticas públicas e práticas pedagógicas de creches e pré-escolas brasileiras
MARIA MALTA CAMPOS DEFENDE QUE PROFESSORES TENHAM ORIENTAÇÕES MAIS CLARAS 01 capa educacao infantil 1.indd 1
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CRIANÇA QUER MAIS DO QUE ESPAÇO
Pensar em organizar o lugar que acolhe e promove o protagonismo infantil não se reduz às salas de atividades. Na realidade, todas as dependências das instituições de Educação Infantil educam
É
um fato: no Brasil, a maioria dos espaços oferecidos às crianças nas instituições de Educação Infantil não são nada convidativos. Há poucos brinquedos e quando têm estão quebrados, as crianças se queixam, brigam e muitas vezes são obrigadas a dançar e fazer gestos sem contexto algum. Na maior parte das vezes não são desafiadas a fazer coisa alguma. Esta é uma realidade mais frequente do que se imagina no cenário da Educação Infantil em nosso país.
Gustavo Morita
por Lenira Haddad e Maria da Graça Souza Horn
Partindo da premissa de que o espaço é socialmente construído e fruto das interações realizadas por todos os atores que atuam nos contextos de Educação Infantil, nosso propósito aqui é revisitar, primeiro, autores que em tempos mais remotos e contemporâneos consideraram a dimensão espacial enquanto parte integrante da ação pedagógica em interseção com outras dimensões, tais como a organização do tempo, as relações, os tipos de experiências possibilitadas, a observação, o planejamento e a avaliação. Além disso, serão revistos também cri-
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O espaço é socialmente construído e fruto das interações realizadas por todos que atuam nos contextos de Educação Infantil
térios e modos de organizar os espaços, bem como os materiais e os objetos que desafiam a intervenção das crianças no sentido de alimentarem a parceria pedagógica que pode se instalar nos espaços educativos para a infância.
PRIMEIRAS REFLEXÕES SOBRE O ESPAÇO A reflexão e a discussão sobre a organização dos espaços como componente do currículo não é recente. Desde meados do século XIX, já existiam referenciais teóricos que buscavam quebrar o mo-
delo de uma escola baseada em um ensino verticalizado, centrado na figura do adulto, com ênfase na transmissão dos conhecimentos pelo professor, cujos espaços eram compostos por carteiras alinhadas, umas atrás das outras, móveis fixos, e armários chaveados pela professora. O sistema de educação vislumbrado por Friedrich Froebel (1782-1852), por exemplo, era um protesto contra a ideia de que o saber ou a cultura possam ser impostos de fora. Concebia a criança como um todo orgânico que se desenvolve através educação infantil 43
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SEMENTES do nosso quintal. Direção: Fernanda H. Figueiredo. Direção de Fotografia: Rodrigo Menck. São Paulo, Zinga Media, 2011 (inédito). NTSC, cor, HD
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Histórias, poesias
e cantos que da atividade criativa, de acordo com leis tissem sobre eles (Formas de Vida); para encantam a naturais. Ela aprende agindo e através demonstrar princípios científicos, tais imaginação da da ação, sendo a aprendizagem o resulcriança e despertam como: noções de tempo, espaço, causatado de sua vida ativa. Para este edulidade e número, ou relações entre pasem sua mente o interesse na vida e cador, a aprendizagem que não surge sado, presente e futuro, ou movimento, na natureza devem como um resultado de atividade consvelocidade e impacto, ou mesmo relaser valorizados trutiva ou produtiva viola a unidade do ções geométricas de linhas, superfícies organismo e permanece como uma exe sólidos (Formas de Conhecimento); periência morta. e, por último, para desenvolver a consFroebel foi o primeiro educador a inventar ciência estética na criança, através da criação de uma aparelhagem para a expressão das atividades padrões e formas de beleza (Formas de Beleza). das crianças, criando em 1837, antes do KinderOs jogos e brincadeiras ocupavam lugar de garten (jardim de infância), os primeiros objetos honra em seu projeto, assim como a relação dide um grande arsenal que ficou conhecido como reta da criança com os objetos que a rodeiam e o dons e ocupações. contato íntimo com a natureza, através do cultivo de jardins. Histórias, poesias e cantos que encantam a imaginação da criança e despertam em sua mente o interesse na vida e na natureza eram Em Foundations of Progressive Education [Fun- igualmente valorizados. damentos da Educação Progressiva], Liebschner De acordo com Eby, em “Froebel e a Educação exemplifica as diferentes finalidades com que os pela Evolução Orgânica”, Froebel também foi o dons eram apresentados e utilizados pelas crianças: primeiro educador a perceber o significado mais para representar objetos e situações conforme expe- profundo da educação nas relações humanas. rimentados na vida da criança, de forma que ao se Para ele, toda atividade humana, bem como o lembrarem desses eventos e objetos também refle- pensamento, é fruto das relações humanas; assim, 44 educação infantil
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uma criança isolada do contato com outras não tem possibilidade de se tornar humana. Compreendendo a educação como atividade, expressão e relação, criou uma metodologia que previa espaços internos e externos organizados de modo que as crianças tivessem oportunidade de trabalhar e se expressar ativamente de forma individual e em grupos. Froebel organizou uma proposta pedagógica para crianças pequenas em uma época em que conflitos ideológicos burgueses e os emanados do povo conviviam na Europa do século XIX. Neste contexto, pensar em espaços nos quais a brincadeira e a autoatividade infantil pudessem sobressair foi um ato de vanguarda e precursor do que no início do século XX Montessori pontuou em sua metodologia.
Baseada nas ideias de liberdade, atividade e independência, Maria Montessori (1870-1952), médica italiana, desenvolveu na virada do século XIX uma metodologia para trabalhar com crianças de 3 a 6 anos, na qual se destacavam os cuidados físicos e a educação dos sentidos. No artigo “Maria Montessori: uma Mulher que Ousou Viver Transgressões”, Maristela Angotti explica que uma das condições essenciais desta proposta era permitir as manifestações livres das crianças. Esta liberdade se revelava em primeiro lugar na supressão de coações exteriores, como, por exemplo, as exercidas por um mobiliário fixo, e das interiores, como prêmios e castigos. Sua proposta se revelou, na época, revolucionária, enquanto se contrapunha a uma disciplina rígida, pautada principalmente na imobilidade das crianças, na sua dependência do adulto e, principalmente num ambiente onde fosse tolhida a liberdade e a livre movimentação das crianças. Ao contrário disto, um dos principais objetivos da sua metodologia era disciplinar pela atividade e pelo trabalho, num espaço onde as crianças se movimentassem livremente na escolha de tarefas a serem realizadas. Os materiais montessorianos eram de suma importância e permitiam às crianças atividade intelectual, movimentação e a utilização das coisas de forma regrada. Distribuídos em diferentes espaços, eram classificados de acordo com sua uti-
lização: movimento, vida prática, sentidos, além daqueles específicos para o trabalho com a matemática e com a leitura e escrita. Portanto, no espaço interno da sala, os materiais destinavam-se à realização de atividades como as de desenhar,
DESDE FROEBEL E MONTESSORI PREVALECE A IDEIA DE QUE A ORGANIZAÇÃO DO ESPAÇO INTERFERE NO DESENVOLVIMENTO modelar, montar, como também as de reproduzir atividades domésticas como lavar, passar, cozinhar. Neste cenário, o papel do educador era o de intermediar as ações pedagógicas em um espaço onde jogos, brinquedos e materiais especialmente construídos “diziam” o que as crianças podiam fazer ao interagirem com eles. Assim, desde os tempos de Froebel e de Montessori, prevalece a ideia de que a organização do espaço e a forma como disponibilizamos os equipamentos em uma sala para crianças pequenas interferem significativamente no seu desenvolvimento.
CONCEITUANDO ESPAÇO E AMBIENTE Em artigo “A Organização dos Espaços na Educação Infantil”, Lina Fornero faz uma interessante distinção entre espaço e ambiente, apesar de ter a clareza de que são conceitos intimamente ligados. Afirma que o termo espaço refere-se aos locais onde as atividades são realizadas e caracterizam-se por conter objetos, móveis, materiais didáticos e decorativos. Por seu turno, o termo ambiente diz respeito ao conjunto desse espaço físico e as relações que se estabelecem nele, as quais envolvem os afetos e as relações interpessoais das pessoas envolvidas no processo − adultos e crianças. Assim sendo, na perspectiva do espaço, temos as coisas postas em termos mais objetivos; na perspectiva do ambiente, as mais subjetivas. É um todo indissociável de objetos, odores, formas, cores, sons e pessoas que habitam e se relacionam dentro de uma estrutura física determinada. Essa estrutura contém tudo e, ao mesmo tempo, é contida por esses elementos que pulsam dentro dela como se tivessem vida. Fornero afirma que o ambiente educação infantil 45
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“fala”, transmite-nos sensações, evoca recordações, passa-nos segurança ou inquietação, mas nunca nos deixa indiferentes. Na abordagem educativa High/Scope, o espaço é uma dimensão fundamental do currículo, que se opõe à ideia de que a aprendizagem acontece por meio do ensino diretivo ou exercícios sequenciados. A organização dos ambientes deve favorecer
PODEMOS ENTENDER O ESPAÇO A PARTIR DE DIFERENTES DIMENSÕES, LIGADAS AO CURRÍCULO: FÍSICA, FUNCIONAL, TEMPORAL, RELACIONAL a experimentação, promover as interações, encorajar escolhas de materiais e atividades durante todo o dia. O conceito de “aprendizagem ativa”, defendido por Mary Hohmann e David Weikart em Educar a Criança, baseia-se na crença de que a criança aprende por meio de experiências ativas com pessoas, materiais, eventos e ideias. O foco deste processo interativo está nas experiências diárias e na representação destas através da brincadeira, da linguagem, das artes visuais, da música, do movimento, da construção com blocos ou instrumentos da plástica e carpintaria e não nas lições ou aulas sobre pessoas e lugares distantes da experiência da criança. Para isso, os ambientes são cuidadosamente organizados de forma a acomodar um número de áreas de interesse bem definidas (tais como artes, construção, livros, casinha, música e movimento e brinquedos, areia e água etc.), com uma variedade significativa de materiais apropriados, logicamente organizados, facilmente localizáveis e acessíveis.
Por trás da ideia de uma organização de espaço para a criança também está o conceito de “criança competente”, em oposição a uma representação de criança incompleta e em necessidade que predominou no passado. Loris Malaguzzi (1920-1994), idealizador da abordagem educacional utilizada nas escolas de Reggio Emilia, Itália, foi um dos defensores desse
conceito de criança “rica em potencial, forte, poderosa, competente e, acima de tudo, conectada aos adultos e às outras crianças”, como se lê em Qualidade na Educação da Primeira Infância: Perspectivas Pós-Modernas. Malaguzzi compara a disposição de móveis e materiais nas instituições de Educação Infantil como bancas de mercado onde as frutas e as verduras estão colocadas de modo a serem vistas e escolhidas pelas pessoas. Para habitar nestes espaços é preciso tirar as crianças da condição de objeto e colocá-las como agentes de sua própria ação e discurso. Significa afirmar que elas são competentes, capazes de organizar suas vidas e participar – com suas diferentes linguagens – nas tomadas de decisões acerca dos temas que lhes dizem respeito. Baseados nesses pressupostos podemos entender o espaço, numa perspectiva definida em diferentes dimensões: a física, a funcional, a temporal e a relacional, legitimando-o como um elemento curricular. Nessa ótica, ele possibilita oportunidades para a aprendizagem, por meio das interações possíveis entre crianças e objetos e entre si. Assim sendo, a disposição do ambiente tanto interno como externo das escolas, as configurações que neles estão delineadas são reveladoras de um projeto de trabalho que pode favorecer as aprendizagens, mas também outras dimensões do desenvolvimento humano, dentre elas a cultura de pares.
APRENDER E DESCOBRIR-SE COM OS OUTROS A importância do meio no desenvolvimento humano foi longamente discutida por autores como Wallon e Vigotski. A partir da perspectiva sóciohistórica de desenvolvimento, ambos relacionam afetividade, linguagem e cognição com as práticas sociais, quando discutem a pessoa humana no seu enfoque psicológico. Ou seja, no entendimento destes autores, o meio social é fator preponderante no desenvolvimento dos indivíduos, fazendo parte constitutiva deste processo. Nesta abordagem, as crianças ao interagirem neste meio e com outros parceiros aprendem pela própria interação e imitação. A implicação pedagógica decorrente desta ideia é a de que a forma como organizamos o espaço interfere significativamente nas aprendizagens infantis e na constituição da pessoa da criança, queiramos ou não. Portanto, quanto mais este espaço for desafiador, possibilitar trocas entre
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Lenira Haddad. Sala de educação infantil do Núcleo de Educação Infantil da Universidade Federal do Rio Grande do Norte – NEI/UFRN
parceiros, quanto mais permitir que as crianças se tornem agentes e independentes do direcionamento adulto, mais fortemente possibilitará a manifestação do potencial infantil.
A organização do espaço e a forma como disponibilizamos os equipamentos em uma sala para crianças pequenas interferem significativamente no seu desenvolvimento
AÇÕES, MOVIMENTO E INTERAÇÕES ENTRE CRIANÇAS Muitos estudos colocam em evidência o poder organizador que o espaço físico proporciona às relações e à ação educativa. No Brasil, as pesquisas realizadas por Mara Campos de Carvalho e colaboradoras contribuem para a compreensão da interdependência entre arranjo espacial e o papel da professora como estruturador no contato entre crianças pequenas na Educação Infantil. Os arranjos espaciais, compreendidos como a maneira como móveis e equipamentos estão posicionados
em salas de crianças, são considerados como um dos importantes elementos ambientais mediadores da interação, tanto das crianças entre si como com o adulto. As análises de ocupação do espaço pelas crianças realizadas em suas pesquisas mostram que a presença de zonas circunscritas fornece suporte para a ocorrência dos agrupamentos entre crianças, ao passo que sua ausência aumenta a ocorrência de aglomeração de crianças em torno da educadora. Em um contexto de espaço amplo e vazio, com escassez de materiais e mobiliários, como é o caso de muitas instituições de Educação Infantil em nosso país, a proximidade com a educadora é mais necessária. Para esse grupo de pesquisadoras, a qualidade de uma instituição educacional está fortemente vineducação infantil 47
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SEMENTES do nosso quintal. Direção: Fernanda H. Figueiredo. Direção de Fotografia: Rodrigo Menck. São Paulo, Zinga Media, 2011 (inédito). NTSC, cor, HD
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O espaço possibilita oportunidades para a aprendizagem, por meio das interações possíveis entre crianças e objetos e entre si
culada à estruturação do espaço, pois a organização dos espaços infantis pode tanto favorecer como inibir a ocorrência de determinados tipos de interações. O espaço organizado em arranjos semiabertos, caracterizado pela presença de zonas circunscritas – áreas delimitadas por barreiras baixas, como estantes, pelos próprios móveis da sala ou por biombos, proporcionando às crianças uma visão fácil de todo o campo de ação, incluindo a localização do adulto e das demais –, além de favorecer as interações de crianças, desempenha um importante papel na formação da identidade e no desenvolvimento das potencialidades das crianças.
Já a necessidade de reinterpretar o papel do adulto, conferindo-lhe um protagonismo mais indireto no contexto educacional, é fortemente sublinhada por Aldo Fortunati em A Educação Infantil como Projeto da Comunidade. Para ele, o deslocamento do eixo de uma visão adultocêntrica para as relações que vincu-
lam as crianças, os adultos e o contexto representa uma mudança de grande importância. Pensar o espaço também como gerador da experiência: 1. representa uma atitude de escuta das suas necessidades das crianças, o que antecipa e apoia o cuidado da relação adulto criança do contexto educacional; 2. ajuda o adulto tanto a amadurecer as expectativas que tem com relação ao protagonismo nas ações que as crianças expressam em seu interior, utilizando as oportunidades presentes, quanto a suavizar sua intromissão sobre a criança, quando a ansiedade dos resultados prevalece sobre a sensibilidade da escuta; 3. constitui um fator indispensável de regulação das emoções e dos sentimentos expressos e vividos tanto pelas crianças como pelos adultos, no compartilhamento das experiências. Segundo Fortunati, “proporcionar ao contexto um protagonismo relacional no que se refere às crianças e aos adultos pode permitir dar sustentação e qualificação às recíprocas expectativas entre ambos, ativando um círculo virtuoso de trocas em que uma condição geral de bem-estar pode abrir o campo ao prazer da experiência”.
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SEMENTES do nosso quintal. Direção: Fernanda H. Figueiredo. Direção de Fotografia: Rodrigo Menck. São Paulo, Zinga Media, 2011 (inédito). NTSC, cor, HD
Atividade lúdica e criatividade são sinônimos. Ambos os processos implicam a criação da ordem a partir do caos
Portanto, nos espaços assim pensados e planejados não basta a presença de múltiplos ambientes nas salas das crianças. Requer também o entendimento de que o adulto não é a figura central nas relações que se estabelecem no processo educativo. Para trabalhar na perspectiva de maior autonomia e agência da criança, é fundamental que o professor seja um observador atento e aberto ao protagonismo infantil, colocando a criança como participante ativo na condução do processo educativo, direcionando caminhos nem sempre previstos em sua agenda.
O ESPAÇO PARA A CRIAÇÃO Em artigo publicado na revista Infância na Europa “De L’Espace pour Jouer, de la Place pour Grandir” (Do espaço para o jogo, do lugar para crescer), Matti Bergstrom e Pia Ikonen, pesquisadoras finlandesas, apresentam uma interessante abordagem do espaço do ponto de vista do desenvolvimento neuropsíquico. Para elas, nosso cérebro tem dois hemisférios, sendo que o mais primitivo, chamado de tronco
cerebral ou “cérebro arcaico”, integra sinais de “caos”, enquanto que o neocórtex, mais extenso e base das funções sensório-motoras, transmite sinais de “ordem”. O neocórtex, a área do cérebro que processa os componentes da lógica e da ordem, ainda não está totalmente desenvolvido nas crianças antes dos 7 anos. Isso explicaria o fato de o comportamento delas muitas vezes parecer “caótico”, pois estão mais sujeitas a seus sentimentos internos e às necessidades imediatas. A confusão e a ordem se fundem ou colidem continuamente na neuropsique, sendo que a colisão entre as sensações interiores e as impressões exteriores e sensoriais provoca uma atividade cerebral intensa misturada às sensações carregadas de afeto. As informações que circulam nas profundezas do mesencéfalo se combinam de maneira imprevisível e não conforme a nossa lógica de adulto. Na criança, a “imagem mental livre”, também chamada de sonho, é muito mais profunda do que nos adultos porque o neocórtex se desenvolve mais lentamente e, consequentemente, os sinais de “caos” são educação infantil 49
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mais fortes que os sinais de “ordem”. É esta imagem mental, denominada pelas autoras de “mundo dos possíveis”, que se reverte em alimento para o desenvolvimento do cérebro e matéria-prima para a criatividade, pois dispõe de material psíquico necessário à percepção dos possíveis realizáveis (ou não) no ambiente externo.
Para as autoras, atividade lúdica e criatividade são sinônimos. Ambos os processos implicam a criação da ordem a partir do caos. Em ambos os casos, a ordem estabelecida é perturbada para dar nascimento a novos pensamentos fortuitos. Muitas vezes, a ideia de que as atividades lúdicas preparam as crianças de forma eficaz para a vida na sociedade leva à organização de tais atividades, de forma a reproduzir o mundo lógico e ordenado dos adultos e não a lógica das crianças. Atividades estruturadas desta forma não permitem que a força caótica do tronco cerebral seja acionada para eliminar qualquer criatividade. É a brincadeira livre que permite à criança penetrar no mundo dos possíveis e lhe oferecer a liberdade necessária ao seu desenvolvimento cerebral.
AS CRIANÇAS PRECISAM DE ESPAÇO E LIBERDADE. ORDEM EM EXCESSO IMPÕE O RISCO DE RESTRINGIR SUA CAPACIDADE DE APRENDIZAGEM As crianças precisam de espaço e liberdade. A ordem em excesso impõe o risco de restringir a sua capacidade de aprendizagem. A natureza é colocada pelas autoras como o melhor ambiente para a promoção da brincadeira, pois representa um mundo caótico repleto de possíveis “viáveis”. No ambiente natural, as crianças estão à procura de qualquer pequeno detalhe e absorvem tudo ao seu redor. Para as autoras, a liberdade e o espaço oferecidos pela natureza também devem ser levados em consideração na concepção dos espaços interiores dos contextos de Educação Infantil. As estruturas devem conter muitos espaços vazios (compreendidos como vazios de ordem), para permitir às
crianças preenchê-los livremente, sem limitar o espaço dos possíveis. Claro que precisamos tanto de ordem quanto de organização, ressaltam as autoras. No entanto, os espaços fixados entre quatro paredes, tais como salas de aula na maioria das nossas escolas, não estão apropriados a essa necessidade. A tensão entre ordem e caos na ação criativa da criança é também abordada em pesquisa do arteeducador Paulo Nin Ferreira, O Espírito das Coisas: um Estudo sobre a Assemblage Infantil, para quem as assemblages e colagens, assim como os desenhos, surgem numa ação lúdica. De um lado a organização do espaço, a distribuição do mobiliário e dos materiais da sala podem funcionar como facilitadores da criação, de
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Ana Teixeira
NOVOS ESPAÇOS, NOVAS IDENTIDADES
outro, criar significa viver alguns momentos no caos. Para este autor, a própria natureza da atividade de construção solicita da criança uma ampla circulação pelo espaço em busca dos materiais para sua realização.
Para dar suporte ao devaneio lúdico é preciso ter um espaço estruturado, assim como dispor o tempo de ação de forma simples e clara. Para Ferreira “espaço e tempo são elementos organizadores da criação, são solos firmes sobre os quais o devaneio flutuante da criança pousa e se orienta. A autonomia da criança pode ser identificada observando-se
Todas as crianças aprendem e constroem conhecimento experimentando ativamente o mundo que as cerca, o que inclui o contato com o outro
O impacto de uma mudança estrutural dos espaços da criança no contexto de Educação Infantil foi verificado no processo de reestruturação da creche da Vila Alba, município de São Paulo, no início da década de 1980, conforme relatado em A Creche em Busca de Identidade. O projeto previa a reorganização dos espaços das crianças menores e maiores com esse tipo de zonas circunscritas. Nos berçários os espaços foram reorganizados de forma a conter espaço de circulação e movimento, uma área com atrativos para brincadeiras e outra mais apropriada ao descanso. Para os grupos maiores, o projeto incluía uma nova organização dos ambientes com diferentes áreas de interesse, tais como casinha, jogos e teatro, música e história, artes, de forma a possibilitar acesso aos materiais, possibilidade de circulação entre os espaços internos e externos, maior diversificação de atividades, com ênfase nas atividades criativas e expressivas e valorização da brincadeira. A proposta contrastava com a tradição dos espaços vazios, armários trancados e uma sistemática de atividades estruturadas que centralizavam no adulto todas as etapas do processo. O impacto dessas mudanças no comportamento das crianças e adultos foi significativo. Uma criança menos contida e mais inteira revelou-se nessa experiência, com maiores possibilidades de contato com seus próprios interesses, desejos e necessidades, conquistando seus espaços com mais autonomia. A interação entre crianças aumentou consideravelmente, observando-se grande procura de parcerias entre elas, especialmente de idades diferentes, para construírem juntas, descobrirem novas regras, ou criarem novas possibilidades de uso do material e brincadeiras. Uma nova identidade do profissional também se delineou, voltada mais a observar as crianças, descobrir suas capacidades e potencialidades, apoiar e ampliar seus interesses e preferências, perceber os momentos em que a presença adulta era requerida e maior disponibilidade para registrar e avaliar sua prática.
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sua ação intencional, seu movimento pleno de motivação criativa, ao lado de um adulto que acolhe e observa, pois o espaço e o tempo de trabalho também refletem as relações de poder que se instalam entre adultos e crianças”.
Lenira Haddad. Sala dos bebês, Obra Social Paulo VI, Lisboa, Portugal
ESPAÇOS PARA TODOS Em muitos países, a tradicional separação dos programas destinados à educação da criança pequena nos setores de saúde, bem-estar e educação também se refletiu na concepção e utilização dos espaços destinados às crianças. Em muitas creches destinadas às crianças pequenas ou aos filhos de mulheres trabalhadoras, a preocupação com a limpeza e rotinas de higiene, saúde e nutrição marcou esses espaços. De outro lado, a preocupação com a preparação com a escola influenciou demasia-
damente na organização dos espaços das crianças maiores, optando-se por um mobiliário antiquado, lousa e armários altos e trancados, poucos desafiadores e atraentes para as crianças. No documento Indicadores da Qualidade na Educação Infantil (2009), uma das sete dimensões abordadas é destinada a “Espaços, materiais e mobiliários”, em que são apontados os requisitos básicos que os ambientes físicos de educação infantil devem garantir para atender às múltiplas necessidades das crianças e dos adultos que com elas trabalham. Essa dimensão é abordada em três aspectos: 1. espaços e mobiliários que favorecem as experiências das crianças; 2. materiais variados e acessíveis às crianças; e 3. espaços, materiais e mobiliários para responder aos interesses e às necessidades dos adultos.
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Vamos usá-los como roteiro para sugerir algumas pistas para a criação de ambientes que contemplem a compreensão de criança, aprendizagem e educação infantil exposta ao longo deste texto.
Todas as crianças, sejam aquelas bem pequenas ou maiores, sejam aquelas com dificuldades físicas e mentais, aprendem e constroem conhecimento experimentando ativamente o mundo que as cerca, o que inclui o contato com o outro. Portanto, os espaços das crianças devem necessariamente ser acolhedores, receptivos, instigantes, desafiadores, permitir escolha, manipulação, descoberta, transformação e experiências com seus pares.
Os espaços dos bebês certamente deverão dar conta das necessidades das crianças pequenas de ampla movimentação, da interação física com os objetos e outras crianças, do exercício sensóriomotor, do aconchego e da segurança dada pelo adulto. Devem permitir a exploração ativa do ambiente onde se inserem por meio de todos os sentidos; a descoberta de características e relações dos objetos e materiais por meio de experiências diretas; a manipulação, transformação e combinação de materiais variados; o uso do corpo com propriedade; a interação com outras crianças; e a conquista gradativa da autonomia na resolução de suas necessidades. A harmonia das cores, das luzes, do equilíbrio entre móveis e objetos, a própria decoração da sala influenciarão na sensibilidade estética das crianças ao mesmo tempo em que permitirão que elas se apropriem dos objetos da cultura na qual estão inseridas. Deste modo, é recomendável que sejam definidas áreas diferenciadas nos espaços para crianças bem pequenas que permitam: 1. brincar com diferentes objetos, com texturas variadas, para tocar, colocar na boca, abrir, fechar, móbiles para puxar, jogos de encaixe e de montar, espelhos seguros e na altura das crianças para que possam brincar e observar a própria imagem diariamente; 2. reunir-se em grupos, ouvir histórias e fazer arte; 3. a movimentação segura e desafiadora: engatinhar, subir e descer, correr, percorrer superfícies de diferentes alturas definidas no chão por meio de colchonetes, estrados, escadas, rampas e túneis, grandes blocos de espumas, bolas, arcos e pneus; 4. descanso e sono, onde tetos rebaixados por tecidos leves como tules, por exemplo, e móbiles que facilmente se movimentam, ajudem as crianças a relaxar; 5. espaço apropriado à troca de fraldas, com objetos e desafios que também ali as convidem a olhar-se em um espelho no teto, a tocar objetos dependurados e ao alcance das mãos Hubert Montagner, médico Intervenções e pesquisador francês na área da psiquiatria infantil, após anos de nos espaços pesquisa focalizada nas interações podem promover entre crianças e na constituição de a interação vínculos afetivos, demonstra como entre bebês intervenções nos espaços podem promover a interaçãos entre bebês. educação infantil 53
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Dá exemplos que ilustram situações em que pela simples colocação de paredes com orifícios de tamanhos e formas diversas as crianças se procuram, se acham, focalizam o olhar, se tocam e criam enredos de se esconder e de se procurar. Pelo desafio de ram-
NA MEDIDA EM QUE CRESCEM, AS CRIANÇAS ESTABELECEM NOVAS E MAIS COMPLEXAS RELAÇÕES, FRUTO DE MODIFICAÇÕES E CONQUISTAS pas e escadas imitam marchas e galgam percursos, os quais muitas vezes não imaginamos que crianças tão pequenas possam transpor. Mostra como as crianças são capazes de complexas interações instigadas pelo desafio que os espaços propõem. Na medida em que crescem, as crianças estabelecem novas e cada vez mais complexas relações, fruto de importantes modificações e conquistas nos planos afetivo, motor, mental e social. Assim, os espaços destinados a elas também deverão modificarse, a fim de proporcionar-lhes condições e situações que venham ao encontro de suas necessidades. Assim outros móveis, objetos e acessórios se tornam indispensáveis para povoar o espaço das crianças maiores e a proposição de áreas circunscritas é ainda mais importante. À medida que vão crescendo, as crianças se interessam mais por contar e ouvir histórias, brincar de faz de conta, construir estruturas, elaborar representações gráficas, assim como discutir o planejamento do dia, jogar coletivamente e partilhar, com seus pares, momentos destinados às atividades que envolvem todo o grupo. Espaços que possibilitam movimentar-se, escolher, criar, edificar, espalhar produções, fazer de conta, permanecer sozinhos, trabalhar em pequenos grupos ou em grandes grupos devem ser pensados e planejados.
ÁREAS DE INTERESSE Conforme mencionado anteriormente, a abordagem High/Scope propõe áreas de interesses em cada uma das salas de crianças, como também nos espaços externos. Nos espaços internos, as áreas sugeridas são: artes, construção, leitura e escrita, casa, música e movimento e brinquedos. As áreas
são circunscritas com prateleiras e móveis baixos de forma a assegurar a visibilidade das crianças, dos adultos e dos materiais, estes organizados de forma acessível e fácil localização. Para cada uma dessas áreas são indicados os materiais específicos assim como sua localização. Por exemplo, é recomendado que a área da casa contemple vários ambientes para o faz de conta (quarto, sala, cozinha, beleza, fantasia, garagem etc.) e esteja equipada com objetos que possam suscitar enredos de cozinhar, comer, dormir, cuidar das bonecas, ir às compras, às festas, levar o bebê ao médico. Ao contrário dos ambientes definidos da área da casa, a área da construção ou blocos requer espaços vazios para a edificação de estruturas que crescem, são destruídas ou se transformam, de forma que deve ser bem apetrechada de estruturas e objetos como blocos grandes, veículos, animais, cartões, tecidos etc., porém não deve conter móveis que impeçam que as construções se alarguem. Dado o frequente intercâmbio observado entre essas áreas, recomenda-se que estejam localizadas próximas uma da outra.
A área de livros requer um espaço aconchegante e confortável para acomodar a leitura, o reconto, ou a escuta e o manuseio de livros e revistas. Tapetes, almofadas, poltrona ou sofá, uma diversidade de tipos de livros, assim como fantoches e materiais para escrever são sugeridos. A área de artes reúne todos os tipos de materiais que dão suporte às atividades de desenho, pintura, modelagem e colagem, tais como tintas, pincéis, rolos, papéis de diferentes texturas, formas e tamanhos, lápis para colorir, barro, tesoura, cola, materiais naturais como pedras, conchas, pedaços de madeira etc. Devem-se prever pontos de água para lavagem de pincéis, piso fácil de limpar, aventais para uso da criança, diferentes superfícies de trabalho tais como mesas, cavaletes e parede, locais para secagem e exposição das produções, como varal e mural. Uma descrição detalhada das áreas propostas para crianças bem pequenas e maiores da abordagem High/Scope, tanto nos espaços internos quanto externos, encontra-se em Educar a Criança e Educação de Bebés em Infantários: Cuidados e Primeiras Aprendizagens. Não é objeto deste artigo fornecer um receituário para a organização dos espaços, in-
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Fundação de Pesquisas Educacionais High/Scope, MI, EUA
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Na proposta High/Scope, as áreas são circunscritas com prateleiras e móveis baixos de forma a assegurar a visibilidade das crianças, dos adultos e dos materiais
clusive porque se considera que não há um único caminho a seguir. Nossa intenção, ao contrário, é indicar tendências encontradas em diversas experiências que possam servir como norte para esse empreendimento. Nesse sentido, podemos afirmar que a combinação de ambientes mais e menos estruturados está presente em muitos países.
Nos países nórdicos, tais como Dinamarca, Noruega, Suécia e Finlândia, um novo padrão arquitetônico passou a prevalecer a partir da década de 1970, substituindo-se o tradicional modelo de estruturas compartimentadas (salas paralelas ligadas por um corredor), por estruturas modulares diferenciadas e personalizadas. Na Suécia, esses módulos em geral são compostos de duas ou três salas para cada grupo de crianças que variam em tamanho e função. Em geral compreendem: uma sala central, onde crianças se encontram, tomam as refeições e desenvolvem atividades em mesas, que também comporta saletas anexas ou “nichos” de leitura e faz de conta; uma sala não estruturada, para atividades de construção, jogos e repouso;
um hall de entrada para colocar pertences. Os centros de Educação Infantil também contêm ambientes comuns a todas as crianças da escola, como sala para movimentos amplos (ou ginástica), ateliê de pintura e marcenaria e sala para atividades com água. A Dinamarca destaca-se pelo investimento nos espaços externos, além dos internos. Oferecer à criança maiores oportunidades de estar ao ar livre é um assunto de grande interesse nesse país e tem proporcionado o aprimoramento de áreas externas existentes, a criação de novos designs e formas de conciliar permanência na instituição e em área verde e, sobretudo, planos de atividades especialmente elaborados para a convivência mais intensa junto à natureza. A pré-escola do bosque decorre desse contexto, particularmente da descoberta de que áreas verdes promovem maiores oportunidades para a brincadeira e experiências. As crianças brincam com as coisas que encontram na mata: constroem cavernas e usam folhas e galhos no jogo imaginativo. Pescam em córregos ou pequenas lagoas, pesquisam sobre pequenos animais e insetos encontrados no solo, desenvolvem contato próximo com os elementos da natureza: água, ar, terra e fogo, e exploram sistematicamente seus sentidos. Contar
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A área de artes reúne todos os tipos de materiais que dão suporte às atividades de desenho, pintura, modelagem e colagem
histórias, cantar, explorar os arredores com bicicletas, assim como cozinhar ou esquentar sua comida na fogueira fazem parte de seu cotidiano. Em Reggio Emilia, a organização e a estética dos espaços são o ponto-chave dessa abordagem. O espaço de encontro da escola da infância denomina-se “piazza” (praça), onde também se encontram materiais do faz de conta, permitindo que as crianças utilizem o espaço de diferentes formas. Ao redor da piazza encontram-se as salas dos grupos etários, com grande diversidade de materiais e um miniateliê. As salas possuem janelas largas para entrada de luz, voltadas para o exterior, criando uma continuidade entre o espaço interno e externo. As crianças encontram tudo o que precisam para os seus projetos e atividades em prateleiras abertas, bem organizadas, com materiais que foram selecionados com antecedência e colocados em recipientes transparentes pelos professores. O espaço documenta, fala, através de exposições temporárias e permanentes de trabalhos das crianças, juntamente com fotografias que registram o processo do trabalho e transcrições de comentários e das conversas das crianças. Todas as escolas são equipadas com um grande ateliê e um atelierista, local privilegiado para o de-
senvolvimento das múltiplas linguagens. Para Lóris Mallaguzzi, o ateliê quebra a organização tradicional da “escola da palavra” e introduz uma cultura diferente que ajuda brotar as linguagens e movimentar as formas de pensar. Com a “escola do fazer” em contraposição à “escola da palavra” a expressividade gráfica e pictórica foi introduzida e poten-
TODAS AS DEPENDÊNCIAS DAS INSTITUIÇÕES DE EDUCAÇÃO INFANTIL, INTERNAS E EXTERNAS, TÊM POTÊNCIA EDUCADORA cializada, como lembra Giordana Rabitt. Pensar em organizar espaços que acolhem e que promovem o protagonismo infantil, a cultura de pares e a “escola do fazer”, não se reduz às salas de atividades. Na realidade todas as dependências internas e externas das instituições de Educação Infantil educam. Os critérios e os princípios que apontamos como fundamentais para a organização dos espaços das salas das crianças se estendem às demais dependências educação infantil 57
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FORTUNATI, Aldo. A Educação Infantil como Projeto da Comunidade: Crianças, educadores e pais nos novos serviços para a infância e a família: A experiência de San Min. Porto Alegre: Artmed, 2007. Reprodução
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A organização e a estética dos espaços são o pontochave para um trabalho significativo no ateliê
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da instituição. Desde o hall de entrada, os corredores, a cozinha, o refeitório, os banheiros, as salas de atividades múltiplas até os pátios internos e externos, o princípio norteador de sua organização é convidar as crianças a estar neles, a conviver, descobrir e criar juntos nestes espaços. Todos estes ambientes podem facilitar o crescimento das crianças em todas suas potencialidades, devendo responder às necessidades da criança de sentir-se inteira biológica e culturalmente. Maria Antônia Jaume destaca dentre estas necessidades aquelas que dizem respeito à afetividade, à autonomia, ao movimento, à socialização, à descoberta, exploração e conhecimento. Especialmente na área externa estas necessidades devem ser contempladas com especial atenção. Ao lado dos equipamentos tradicionalmente ali encontrados (balanços, escorregadores, baldes e pás), também deverão estar contemplados outros espaços, como o destinado aos jogos e brincadeiras mais tranquilos, com oferecimento de jogos e brinquedos como carrinhos, cubos, bichos de plástico; o destinado ao faz de conta, como casa da árvore, casa de boneca, cabana; o destinado a aventuras,
como pontes entre as árvores, cavernas e buracos. É necessário pensarmos que a segurança dos pátios não pode tirar o desafio que se impõe nestes locais, tampouco o desafio deve oferecer perigo para as crianças. Pensar na organização dos espaços internos e externos das instituições de Educação Infantil é, antes de tudo, abrir-se para a magia e o encantamento das crianças, que, como diz o poeta Manoel de Barros, medem o tamanho das coisas com a intimidade que têm com as coisas.
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Lenira Haddad é doutora em Educação pela Feusp, mestre em Psicologia Escolar pelo Ipusp e psicóloga. Atualmente é professora adjunta da Universidade Federal de Alagoas. Autora do livro A Creche em Busca de Identidade e Vários Artigos sobre Educação Infantil (Loyola, 2002). Maria da Graça Souza Horn é doutora em Educação pela UFRGS, mestre em Educação pela PUC-RS. Atualmente é Professora Convidada da UFRGS, Conselheira da Escola Projeto, Conselheira da Editora Artmed e Professora do Centro Universitário Ritter dos Reis. Autora do livro Sabores, Cores, Sons, Aromas: A Organização dos Espaços na Educação Infantil (Artmed, 2004) e Projetos Pedagógicos na Educação Infantil em parceria com Maria Carmen Silveira Barbosa, (Artmed, 2007).
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