Foram captadas imagens da presença de uma nômade pelas áreas centrais de São Paulo. Sua presença vem ameaçando a estabilidade dos territórios consolidados e do sistema de segurança e vigilância. Tais pistas deram início às atuais investigações que pudessem levar à Mulher .Nômade. As imagens foram publicadas na tarde passada, alertando a sociedade do controle sobre a suspeita. Às duas horas e trinta minutos de ontem, todos os stalkers haviam sido acionados em busca de atualizações sobre a localização da M.N. e de qualquer intervenção espacial peculiar que possa indicar a passagem dela.
introdução p.5
glossário p.7
o biombo p.11
a rede p.17
epílogo p.33
a cortina p.23
conclusão p.31
Trabalho de Conclusão de Curso Julia Park Orientada por Carol Tonetti Em colaboração com Vitor Pissaia, Victoria Menezes, Paloma Neves e Isabella Peano
dezembro de 2016 Escola da Cidade
introdução Numa sociedade disciplinar, onde somos governados pelo Medo, o monitoramento e o adestramento de civis é uma missão prestada cotidianamente através de dispositivos implementados tanto no meio urbano quanto em nossos costumes. Desde a segunda metade do século XX, vivemos numa realidade em que tudo é vigiado e rastreável. Aparelhos de segurança, dispositivos tecnológicos com gps integrado, aplicativos de rede social trabalham para que a Rede conseguisse treinar rapidamente qualquer pessoa em voyeurs e stalkers. Os muros, as grades, as cercas, os interfones, as portarias, as catracas e os alarmes são alguns dos elementos que posicionam a própria arquitetura em estado de alerta contra todo o fluxo externo a ele. Tanto a cidade, quanto seus cidadãos funcionam numa lógica de Panóptico.
Dessa maneira, o território urbano vem se munindo de aparelhos e dispositivos que restringem a permeabilidade espacial como um todo. A cidade vai ganhando blocos rígidos, demarcando e esquadrinhando limites, se caracterizando como espaço estriado. Portanto, vivemos sob uma atmosfera hostil onde somos constantemente vigiados com padrões de movimento definidos, cujos ritmos são instruídos e as circulações obstruídas. Com isso, o fluxo livre, agora um fluxo restringido, se debate de barreira em barreira, ocupando o espaço negativo entre elas através de um ritmo autoral, ele desliza à sua maneira e não obedece à marcha imposta e, por isso, é visto como uma ameaça à ordem e uma insubordinação ao Medo, tornando-se alvo de perseguição.
A Mulher Nômade é a filha representante do fluxo livre. Uma hacker urbana que percebe no espaço negativo saídas de sobrevivência, instituindo TAZ por onde ocupa.
Existem, de fato, falhas na Rede onde dentro do próprio espaço estriado atuam as TAZ, ou Zonas Autônomas Temporárias. As TAZ são ataques E se ela consegue se manter invisível, atravessando qualquer fronteira às estruturas do controle, localizados em variados pontos do espaço que seja através de um modus operandi próprio, pode-se dizer, então, que negativo, onde o fluxo livre vê a possibilidade de ocupação e atuação nunca conseguiríamos alcançá-la, vê-la ou comprovar sua existência. em defesa de sua liberdade. No entanto, elas são atuações temporárias por definição e sem chances de enraizamento, pois apenas existem uma vez que são invisíveis aos olhos da Rede.
Pelo menos até a chegada das novas tecnologias de vigilância.
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glossário sociedade disciplinar- Conceito que Foucault introduz em Vigiar e Punir, 1987. A sociedade disciplinar constitui uma mentalidade coletiva moldada a partir de mecanismos disciplinares e regulamentações impostas por um poder centralizador e institucional, que neutraliza com eficácia qualquer força de contrapoder e resistência a ele. P.242.
Panóptico- “uma espécie de laboratório de poder. Graças a seus mecanismos de observação, ganha em eficácia de penetração no comportamento dos homens” (FOUCAULT, 1987, p. 228).
espaço estriado- Deleuze e Guattari se referem a um território estriado aquele que é instituído pelo aparelho de Estado e que constitui um espaço fechado, sedentário, mensurável e burocrático, em oposto ao espaço liso. Já este é um espaço aberto, sem centro ou unidade, habitado por uma multiplicidade de idéias, fluxos e acontecimentos simultâneos. É um território que não se divide pois não é propriedade. Compara-se o espaço liso ao deserto, onde é o percurso errante que dá forma ao espaço construído- característica do pensamento nômade. O desfazer-se ou desprender-se dos caminhos viciados é o que guia a política do pensamento nômade. (2002, v. 5, p. 191).
Zonas Autônomas Temporárias (TAZ)- ou Temporary Autonomous Zones é ”uma espécie de rebelião que não confronta o Estado diretamente” (BAY, Hakim, 1991, p. 6). São manifestações invisíveis ao Estado através de ocupações clandestinas, ouse seja, de espaços ainda não reconhecidos pela cartografia do Controle. Sua efemeridade se dá de acordo com o tempo em que se passa desapercebida.
Referências bibliográficas: - BEY, Hakim. Zonas Autônomas Temporárias. http://www.mom.arq.ufmg.br/mom/arq_interface/4a_aula/Hakim_Bey_TAZ.pdf. Acessado em 24/09/2016. - DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil Platôs, Vol. 1. Editora 34, São Paulo, 1995. - __________. Mil Platôs, Vol. 5. Editora 34, São Paulo, 1997. - FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: história da violência nas prisões. Editora Vozes, Petrópolis, 1987. -7-
Foram captadas imagens da presença de uma nômade pelas áreas centrais de São Paulo. Sua presença vem ameaçando a estabilidade dos territórios consolidados e do sistema de segurança e vigilância. Tais pistas deram início às atuais investigações que pudessem levar à Mulher Nômade. As imagens foram publicadas na tarde passada, alertando a sociedade do controle sobre a suspeita. Às duas horas e trinta minutos de ontem, todos os stalkers haviam sido acionados em busca de atualizações sobre a localização da M.N. e de qualquer intervenção espacial peculiar que possa indicar a passagem dela. Logo após o comunicado, a Rede recebeu três informações sobre possíveis zonas autônomas em três localidades diferentes.
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Às 14h45min: o morador do apartamento 191 do bloco D, do Edifício Copan denuncia uma espécie de casulo em frente ao seu escritório nos brises externos do prédio.
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Departamento de Investigação R E DE
Caso #39/2460001-mn Evidência: A
Local: Ed. Copan, bloco D apt. 191 Itens: biombo/tenda de tela (amostra 1)
Relatório: O objeto encontrado era uma espécie de divisória com várias camadas sobrepostas e penduradas por cinco vergalhões de ferro, equidistantes em 40 centímetros, também suspensos pelo brise superior. A instalação estava contida entre brises, com 0,90m de distância e 1,40 de largura, e os dois pilares externos. A divisória era composta de uma tela azul, a mesma que cobre a fachada do prédio, indicando uma certa divisão de espaços entre um lado e o outro, um interno e um externo às telas. A primeira suposição seria de que a superfície instalada pela suspeita funcionava como uma espécie de biombo, configurando seu espaço privado. A sobreposição das tramas resultava num gradiente entre transparência e opacidade, onde havia maior concentração de camadas, mais densa as tramas se mesclavam e quase não conseguíamos ver do outro lado. Desse modo, ganhava-se total privacidade, indicando um abrigo mais resguaradado. Ao iniciarmos a análise tátil percebemos que era possível expandir essa superfície para um volume repleto de compartimentos. Encontramos dificuldades iniciais: não era possível apenas afastar as camadas, elas pareciam estar presas umas as outras, ou costuradas de uma certa forma. Fizemos algumas tentivas de descosturar e extrair alguns fios da trama, no entanto, apenas danificamos o material no processo. Até que percebi que havia um ponto central no lado superior, próximo ao terceiro vergalhão, que parecia ser um nó que travava toda a estrutura das tramas. Ao desfazer o nó, o biombo se propagou por toda a largura do brise e se transformou numa espécie de tenda com diversos nichos de tamanhos variados. Os vergalhões funcionavam como eixos por onde as telas deslizavam, permitindo a abertura e o fechamento das divisórias, ou seja, mutando entre volume e superfície, entre cabana e anteparo, de acordo com as necessidades funcionais da M.N. Quantificamos 10 camadas de sobreposição, 5 compartimentos numa seção transversal e 7 peças no total. Não sabemos para que servem todos elas, mas as dimensões de algumass delas sugeriam alguns possíveis usos: 200CM(L) X 50CM(h) cama ou maca; 40cm(L) x 80cm(h) banco ou cadeira balanço; 50cm(L) X 50cm (h) mesa de apoio;
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Havia duas peças de cadeiras de balanço, separadas pela suposta mesa. Isso levantou uma nova questão na investigação. As imagens captadas sempre indicavam que a M.N. agia sozinha, porém a segunda cadeira se apresenta como um possível sinal de que ela possa estar ocasionalmente acompanhada- a cama não tem dimensões para uma cama dupla e não há uma segunda peça desta, o que indica que o abrigo comporta apenas uma pessoa habitando nele. Portanto, significa que a Mulher Nômade recebe visita(s) que também tem sua identidade protegida pelas tela. Um possível segundo suspeito? Seria outro nômade? Talvez outra mulher nômade?
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Às 15h05min: o senhor da guarita da rua privada do Banco Bradesco afirma ter uma rede pendurada entre os guarda-corpos da sobreloja do Edifício Investimento e da Galeria Pivô.
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Departamento de Investigação R E DE
Caso #39/2460001-mn Evidência: B
Local: Ed. Investimento / Galeria Pivô Itens: rede de cordas (amostra 2)
Relatório: A rede estava pendurada entre dois guarda-corpos opostos em uma rua privada. A distância projetada entre eles tinha 12,5 metros e se desencontravam em altura, fazendo com a rede tivesse uma leve inclinação. A rede tinha uns 6,5m por 2m e dela descia uma escada de cordas. Toda sua composição era feita da mesma corda (algodão branca com diâmetro de 6mm) e sua trama era inteiramente tricotada, descobrimos isso quando tentamos subir através da escada, os pontos se desfizeram na primeira tentativa. Somente a Mulher Nômade tivesse a leveza ou a rapidez suficiente para poder subir naquela delicada rede. Fico pensando no trabalho que deve ter sido tricotar seis metros quadrados disso, me parece algo interminável pois ficamos no meio de 856,2 metros lineares de corda. Tudo o que restou pendurado lá em cima foi um esqueleto do que antes era a rede. Seu acesso se apresenta como um desafio. A chegada então é uma conquista. A conquista de algo pessoal, trabalhado. A conquista de seu território, seu espaço. Talvez servisse como um lugar de repouso ou descanso, como as redes que os índios usam para dormir. Ou até um mirante, pela sua altura. Era um início de um espaço suspenso, um espaço autoral e manufaturado. A imensidão de sua trama era algo realmente impressionante. A trama do tricô depende de uma sequencia para poder ganhar corpo, um nó só existe através do anterior e, consequentemente, toda a malha se compõe pela interdependência de nós. Toda essa teia estava esticada entre os guarda-corpos, resistindo e se impondo naquele vão. Se não estamos falando de uma única mulher nômade, se aquele espaço é construído através das relações entre outras mulheres nômades, ele ganha um significado coletivo, talvez de reconhecimento mútuo. A rede, portanto, representa uma grave ameaça à proteção da sociedade, podendo significar uma zona de empoderamento de uma força que antes pensávamos ser individual, mas que possivelmente vem ganhando corpo.
NOTA: É preciso reforçar o código de alerta, pois o número de suspeitas se multiplicou numa quantidade incerta.
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Às 15h45min: um transeunte da Galeria Metrópole anuncia ter visto um pequeno monóculo no guardacorpo do segundo andar da galeria, apontando para uma cortina em um dos apartamentos do sétimo andar do Edifício Louvre, logo em frente. A cortina parecia conter alguma mensagem que estava codificada.
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Departamento de Investigação R E DE
Caso #39/2460001-mn Evidência: C
Local: Ed. Louvre, apto 708/ Galeria Metrópole, segundo andar Itens: cortina; lente (amostra 3,4)
Relatório: A terceira pista era, em realidade, dois objetos. O primeiro localizado no segundo andar da Galeria Metrópole na face voltada para Avenida São Luís, onde havia uma espécie de monóculo de lente vermelha, preso ao guarda-corpo da varanda. A lente estava presa na primeira barra do guarda-corpo e tinha uma haste de arame com 40 cm de altura e um aro circular do mesmo arame com 5 cm de diâmetro, coberta com uma película de gelatina vermelha. Ao nos aproximar, essa espécie de monóculo apontava para o prédio da frente e, mais especificamente, para uma janela no sétimo andar, onde se via uma cortina colorida composta de figuras geométricas. A cortina cobria parte da janela da sala, com 4 m de comprimento por 1,30 m de altura. Era feita de patchwork em pedaços de tecidos coloridos transparentes, cortados e costurados formando o que, através do monóculo, pareciam ser códigos. A lente vermelha filtrava certas cores desta pele e outras se sobressaiam. Era nitidamente uma mensagem, mas não se sabe exatamente o que estva escrito, até descobrirmos uma etiqueta em uma das alças da cortina com caracteres do alfabeto coreano. O Laboratório de Códigos já enviou uma declaração de que sejam possíveis decodificações do coreano. Estão agora tentando combinações para ver o que está escrito na mensagem. Mas pelas dimensões das figuras, estimamos que seja do tamanho de uma sentença. A evidência 03 difere das outras duas pois é a única que aparenta ser meramente expositiva. Não conforma uma espacialidade, mas demarca sua passagem por um território, como se fosse um bandeira fincada em terra recém-descoberta. E, assim como as outras, está lá para ser percebida, não só pelo morador do apartamento no sétimo andar mas por outras pessoas que passam pela galeria. De fato, estas sabem que contém uma mensagem mesmo que não sirva para elas compreenderem. Talvez remeta um pouco a idéia dos tags de grafite existentes em nossos muros, que simbolizam marcas de expressão de transgressores de propriedade, anunciando sua livre ocupação desrespeitando as nossas fronteiras de proteção. Essa é uma possível leitura para a última evidência encontrada da Mulher Nômade, sua bandeira ou a marca de sua liberdade de expressão.
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Departamento de Investigação R E DE
Caso #39/2460001-mn Evidência: C Tradução de: língua nômade para: coreano (1)
LABORATÓRIO DE CÓDIGOS Local: Ed. Louvre, apto 708/ Galeria Metrópole, segundo andar Itens: relatório de tradução_revisão 01
Relatório:
Estudo 01- deciframento de códigos nômades: 20cm
20cm
tradução código tradução código
vogais
consoantes
módulo máximo
Escrita na cortina:
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Escrita filtrada na cortina:
Possível tradução:
유n ô 목m 민 da e s
여 성 들 은
m u l h e r e s
저 항 한 다
r e s i s t e m
자 유 로 운
l i v r e
“As mulheres nômades resistem/ Existência livre”
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존 재
e x i s t ê n c i a
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conclusão A nômade nos induz a um deslocamento involuntário, fragmento do seu próprio fluxo e resultante de uma tentativa mal-sucedida de sua captura. Nos coloca em movimento de uma corrente produzida por ela através de evidências de sua presença deixadas para trás. Ao decorrer da investigação, percebe-se que ela não é uma viajante solitária que busca refúgios para si, dentro de uma realidade distópica, mas para outras mulheres nômades, instalando pontos de inflexão de fronteiras estabelecidas pelo espaço estriado e levantando reflexões sobre seus valores. As instalações representam três manifestações da Mulher Nômade contra o meio opressor de seu fluxo livre. Ao ocupar estrategicamente o limiar do espaço privado e da cidade, ela se posiciona contra a sociedade disciplinar e ao mesmo tempo que funda pontos de apoio para suas semelhantes. Portanto, mais do que responder aos dispositivos de segurança e vigilância, busca a conquista de um território comum e significante, dentre um conjunto singular, seja ele temporário ou mínimo. Seus mecanismos de funcionamento, por mais simples, são extremamente frágeis e específicos, como se apenas um técnico especializado pudesse manipular essas estruturas. Essa fragilidade e especificidade é o que demarca sua temporalidade, pois à mão alheia a intervenção sofre danos desde o primeiro toque. Sua delicadeza não sugere uma precariedade material ou uma fraqueza em sua estrutura conceitual/ política, apenas confirma seu caráter de Zona Autônoma Temporária. Apesar das TAZ também serem definidas como ações invisíveis, o biombo, a rede e a cortina se posicionam de forma declarativa no espaço, como se quisessem ser vistas. Todas as três são suspensas do nível da rua e extremamente visíveis, não só anunciando a existência das Nômades como também provocando um assunto a ser debatido e não apenas exterminado. É desse modo que suas zonas autônomas funcionam como uma máquina de guerra deleuzeguattariana1, lutando contra a força que as borram como indivíduos e as tratam como uma minoria que resiste a um pensamento generalizado e dirigido por uma mentalidade conservadora. Portanto, as conquistas espaciais representam também um empoderamento coletivo, sobre o qual está baseado a privacidade, a resistência e a liberdade de expressão. Essa tríade de princípios são os valores pelos quais a Mulher Nômade vence suas dificuldades diárias, se impondo para que possa defender o que é de sua natureza: uma existência livre.
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epílogo Ao longo do desenvolvimento conceitual deste trabalho, se apresentaram questões pessoais que definem o eixo central da estrutura que compõe a narrativa, mesmo que de forma subentendida. Tais questões são baseadas no meu posicionamento frente a minha formação- filha de sul coreanos imigrantes que chegaram em São Paulo nos anos 70- e o contexto urbano em que cresci. Estar inserida em um ambiente dicotômico coreano-brasileiro me trazia questionamentos sobre a minha identidade e o convívio com pessoas de origens distintas aumentava com o passar dos anos e, ao mesmo tempo em que eu me distanciava de um ninho predominantemente coreano, também me sentia em descompasso com o círculo de pessoas com quem me relacionava, tanto nos costumes cotidianos quanto na mentalidade e na forma de debate. Me deparei com muitas barreiras físicas e culturais, cuja obediência e a disciplina -valores coreanos extremamente fortes- já adquiridas me impediam de explorar outros caminhos. Mais tarde eu descobriria que essas inquietações também estariam dentro de outras pessoas, que dividem o mesmo pano de fundo que o meu: a primeira geração de mulheres coreanas que cresceram em São Paulo. As mulheres de famílias coreanas que constituem a primeira geração radicada em São Paulo passam por conflitos semelhantes a medida que se espera delas um papel submisso e passivo. Todas elas são educadas, adestradas e instruídas a um certo modo de falar, de se portar, de pensar e de agir em relação a uma cadeia hierárquica (e sexista) e que vai além de um código de ética, mas quase como um voto de confiança que se deposita em nós para que carreguemos uma tradição e valores simbólicos de uma mentalidade congelada dos anos 60 da Coréia do Sul. O conflito se dá a partir do momento em que se convive com outra cultura, um tanto menos conservadora (mesmo que ainda bem tradicional), onde se encontra um pouco mais de espaço para se debater questões polêmicas e contraditórias, questões como o feminismo e, ao discutir e se posicionar de forma assertiva, ainda sendo mulher, não é julgada como alguém que se posiciona fora de seu devido lugar. O que também me chama atenção não é apenas a situação ambígua em que essa geração se encontra, mas a circunstância ainda mais conflituosa da geração anterior a nossa que detém ainda menos poder de expressão e auto-posicionamento. Conversando com pessoas próximas e outras que fui conhecendo melhor, outras mulheres coreanas-brasileiras, percebemos que a questão da subordinação da mulher coreana na sociedade não é de maneira alguma discutida abertamente. Percebemos também que existe dentro desta comunidade um sentimento de pertencimento coletivo muito forte, o que faz com que a maioria das mulheres que compartilham desse quadro, sigam com isso e se sintam até confortáveis nele. Mas até mesmo elas já sofreram algum tipo de repreensão seguido de abusos verbais, psicológicos ou até mesmo físicos. Tudo isso é colocado para debaixo do tapete e os problemas são silenciados deixando esses segredos pairando no ar. Tais questões não verbalizadas me fizeram refletir sobre a história que queria narrar nessa ficção científica que serve de suporte para um comentário pessoal dessa realidade em que eu faço parte. O que a heroína representaria e contra o que ela estaria lutando? Minha intenção com este trabalho de caráter fictício se baseia na vontade de representar um desejo de libertação feminina, inicialmente pessoal, mas profundamente coletiva.
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Este trabalho é dedicado às Catarinas, Paulas, Stephanes, Teresas, Anas, Yaras, Claudias, Carolinas, Marias, Josefinas, Lúcias, Gabrielas, Nathalias, Andréias, Fernandas, Vivianes e Reginas das famílias Park, Choi, Hwang, Lee, Chang, Kim, Lim, Choo. Agradeço à Victoria, Paloma, Isabella, Vitor e Marcelo Boni pelas falas, percepções, mãos e coração. Ao Pablo pela grande contribuição. À Regina pela generosidade. Ao Guilherme Pardini, Vapor 324 e à Galeria Pivô por abrirem as portas. À Fernanda, Helena, Marcella, Nico, João, Venzon e às irmãs Canepa pelo apoio infinito. Ao Gerab, Bravin e Tenuta pela assitência. Ao Pedro Lopes pelas reflexões. E à Carol Tonetti e ao Shundi Iwamizu pelas discussões.