FAUUSP 2015
Matrizes cenográficas: conversações entre arte, teatro e arquitetura
Trabalho Final de Graduação Fernando Passetti Orientação Marta Bogéa
dezembro 2015
Índice
007 Agradecimentos
091 Entrevista: Laura Vinci
011 Percursos
109 Entrevista: Cibele Forjaz
021 Introdução
129 Paulo Mendes da Rocha: arquiteto - cenógrafo
015 Prólogo 033 Laura Vinci: artista - cenógrafa 041 Cenografias 046 Cacilda! 052 Só 058 O idiota - uma novela teatral 072 Pais e Filhos 076 O duelo 082 Na selva das cidades
131 Cenografias 134 Suor Angélica 144 O homem sem qualidades 150 Futebol 159 Entrevista: Paulo Mendes da Rocha 179 Entrevista: Bia Lessa 191 Considerações finais 193 Bibliografia
Agradecimentos
Primeiramente à Marta Bogéa, minha orientadora, pelo cuidado. Por me ajudar a trilhar os caminhos dessa pesquisa, mas principalmente pelos inúmeros atendimentos: às vezes risonhos, às vezes sérios e bravos, mas sempre precisos e preciosos. Àqueles que abriram seus escritórios, casas e vidas para que esse trabalho pudesse acontecer: ao arquiteto Paulo Mendes da Rocha, por me receber em seu escritório e pela boa e longa conversa que se dispôs a ter comigo. À Laura Vinci, pelo cuidado e atenção, pela generosidade tremenda em responder às minhas questões, por me receber em sua casa e por me ensinar cotidianamente no decorrer dessa pesquisa. À Bia Lessa, acessível, generosa e sensível, por me receber em sua casa, por me apresentar ao Paulo Mendes da Rocha e por manter um arquivo rico e organizado. À Cibele Forjaz, pelo café ornamentado de histórias e nuances das peças em que trabalhou com Laura Vinci. Aos meus pais, Edson e Dodi, por serem minha primeira e constante escola. Pelas incríveis conversas depois de assistir a espetáculos de teatro e filmes, por me apresentarem o mundo de uma maneira que sempre será única. À Vera Hamburger, amiga, professora e parceira de trabalho, por sua generosidade em me apresentar ao mundo da cenografia, pelas tantas conversas durante essa pesquisa e por estar sempre por perto me instigando. Finalmente, por aceitar o convite de participar da banca de avaliação deste trabalho. À Myrna Nascimento, por abrir fronteiras e quebrar barreiras quando foi minha professora e por aceitar, com interesse e prontidão, participar dessa banca de avaliação.
Àqueles que estiveram em contato com o acervo do arquiteto Paulo Mendes da Rocha e se dispuseram a trocar informações: à Eliane, secretária do arquiteto, à Catherine Otondo e a Daniele Pisani. À Julia Moraes, por me apresentar o trabalho da Laura Vinci, pelas conversas, pela troca de arquivos e pela amizade. À Duda Arruk, por me mostrar os bastidores do teatro e da ópera, numa parceria duradoura. À Clara Laurentiis, não só por diagramar este trabalho de maneira que apenas uma ótima designer gráfica conseguiria, mas por uma cumplicidade de vida que se reinventa. À Sofia Osório, revisora atenta e cuidadosa, grande amiga desde o berço. Aos queridos, Fabio, Patrícia, Gabriel, Leka, Bernardo e Fernanda, sempre divertidos e descontraídos e também, claro, por me possibilitarem ser tio da Manu, do Dudu, do Felipe, da Laura e do Guto, crianças diferentes e inventivas, com suas brincadeiras que me tiram o chão. Àqueles que são os parceiros do dia-a-dia, que sabem de tudo: à Casa dos Meninos, lugar da vida cotidiana: casa que me apresentou pessoas, conversas e me possibilitou a tranquilidade necessária para concluir essa pesquisa. Em especial ao Lucas Valim, fotógrafo e amigo, por tratar, com a paciência e o cuidado que lhe são natos, as fotografias e croquis presentes nessa pesquisa. À Casa da Mulher pelas conversas, incentivos e descontrações mil, em especial aos quase irmãos, Fellipe e Có, pelas infinitas conversas e ajudas, por uma parceria rara e sutil. Finalmente, àqueles que me ajudaram com risadas, descontrações, cervejas e assuntos mil: a Ana, Fê, Babi, Danilo, Rafa, Julia e Gabi.
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Percursos
Este trabalho volta-se para o estudo da cenografia enquanto uma das práticas profissionais do arquiteto. A discussão sobre a construção do espaço cênico muitas vezes se vê pouco pautada por argumentos teóricos oriundos da arquitetura, também por conta da restrita bibliografia sobre o tema, porém, a produção de cenografia por parte dos arquitetos é significativa. São abordagens mais diretas em relação ao espaço existente e às maneiras como o arquiteto pode intervir nesses locais. Leituras diferentes de espaço podem aproximar o arquiteto de certas discussões, como usos, escalas, matérias. A cenografia passa a ser um campo de atuação rico para o arquiteto por inseri-lo nessas discussões, por ser um estudo e uma prática a partir de uma vivência em que, entre concepção, projeto, construção e inauguração, uma obra raramente dura mais do que um ano. Assim, é possível analisar de maneira direta os processos de criação em cenografia. A curiosidade e a vontade pelo estudo de cenografia parte das experiências que tive como aluno na FAUUSP, principalmente na disciplina de Design do Objeto, ministrada pelos professores Luís Antônio Jorge, Giorgio Giorgi Júnior, Carlos Egídio Alonso e Myrna de Arruda Nascimento, no ano de 2010, assim como o Ateliê Livre, de Antonio Carlos Barossi e do Minoru Naruto, em 2013. Devo acrescentar a importância da disciplina optativa Fronteiras Permeáveis, realizada na Escola de Comunicação e Artes pela cenógrafa e diretora de arte Vera Hamburger, na qual tive a oportunidade de ser monitor em 2013. Foram disciplinas com um caráter de
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criação mais livre e dinâmico, que instigavam o estudante a experimentar o espaço e a compreendê-lo de uma maneira mais próxima, em uma escala que o inseria enquanto indivíduo participativo e agente transformador do lugar. O primeiro contato com Vera Hamburger aconteceu cerca de um ano antes da disciplina e foi o ponto de partida para essa pesquisa. As trocas e aprendizados no cotidiano de projetos, como a exposição Mais de Mil Brinquedos Para a Criança Brasileira, realizada no SESC-Pompeia no ano de 2012, me introduziram em uma discussão de espaço e do fazer arquitetônico de maneira direta e intensa. Foram oito meses entre projeto e execução, resultando em uma exposição que ocupou toda a área do galpão de vivência do SESC-Pompeia. Ao lado Imagem 01 Exposição Mais de mil brinquedos para a criança brasileira. Foto: Vitor Barão Na próxima página Imagem 02 Planta da exposição Mais de mil brinquedos para a criança brasileira. Acervo pessoal
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O projeto dessa exposição é uma releitura da exposição Mil Brinquedos Para a Criança Brasileira, realizada por Lina Bo Bardi em ocasião da inauguração do edifício do SESC-Pompeia, em 1982. Diversas maneiras de se mostrar brinquedos foram pensadas a partir dos expositores propostos por Lina em1982, como os armários, estantes, mesas e prateleiras, que foram relidos pela equipe de criação, além de expositores aéreos, muito presentes no trabalho de Lina Bo Bardi. A exibição foi pensada em três planos: o chão, a passarela, e o ar. Os dois primeiros, em sua maioria, possuíam uma matéria
Acima Imagem 03 Exposição Mais de mil brinquedos para a criança brasileira. Foto: Vitor Barão Acima e ao lado Imagem 04 Exposição Caipiras, capiaus: pau-a-pique. Fonte: FERRAZ, Marcelo Carvalho. Lina bo Bardi. São Paulo: Imprensa Oficial & Instituto Lina Bo e P.M. Bardi, 2008.
construída e constituída de expositores; o terceiro, por sua vez, era etéreo e onírico, com um céu de pipas, bruxas, heróis, paraquedistas, aviões, etc. O interesse de Lina pela cultura popular foi revelado em obras como Cosme, Damião e Don: bonecos do artesão Benito, de São Luís do Paraitinga, que recebiam os visitantes na entrada do galpão, e as “geringonças” do Mestre Molina da exposição de 1982. Outra questão importante no processo de projeto que remete à exposição original é o cuidado
com o percurso dos visitantes: foi pensado como uma passarela que cruza a lateral do galpão da vivência, no entorno do espelho d’água; pode ser analisado também como a passarela de andaimes do Teatro Oficina, ou mesmo as passarelas de exposições como Design no Brasil, também realizada no SESC-Pompeia em 1982. Outras exposições de Lina foram trazidas para o projeto, como a floresta de bambus e bichos, que é referência aos paus-de-sebo de Caipiras, Capiaus: Paua-Pique, de 1984.
Acima Imagem 05 Exposição Mais de mil brinquedos para a criança brasileira. Foto: Vitor Barão Acima e ao lado Imagem 06 Exposição Design no Brasil: história e realidade. Fonte: FERRAZ, Marcelo Carvalho. Lina bo Bardi. São Paulo: Imprensa Oficial & Instituto Lina Bo e P.M. Bardi, 2008.
Foi um longo processo de entendimento da luz, dos acessos, das características visuais e das nuances daquele amplo espaço que é a vivência do SESC-Pompeia. Realizado o projeto, houve um longo estudo de cores – pela equipe -, e luzes – por Guilherme Bonfanti –, para assim ambientar a fábrica de brinquedos proposta pela equipe, composta por Vera Hamburger (concepção, direção de arte e arquitetura); Álvaro Razuk (coordenação de arquitetura); e os arquitetos Fernanda Carlucci, Luis Fellipe Abbud, Claudia Affonso, Marcus Vinicius Santos e Julia Moraes.
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Essa grande exposição foi marcante para todos que nela participaram, seja pelo trabalho exaustivo de projeto e detalhamento, seja pelo resultado bastante positivo após a inauguração e utilização daquele espaço.
Acima Imagem 07 Exposição Mais de mil brinquedos para a criança brasileira. Foto: Vitor Barão Acima e ao lado Imagem 08 Exposição Mais de mil brinquedos para a criança brasileira. Foto: Vitor Barão Na próxima página Imagem 09 Imagem 3d do projeto cenográfico para a peça Otello
Como resultado da exposição, passei a me interessar pelos usos que um espaço pode proporcionar, além de me atrair para agilidade da construção, por exemplo, se comparada à arquitetura de edificações. Logo, a cenografia passou a ser uma área cada vez mais relevante. Iniciei então uma série de trabalhos com a cenógrafa Duda Arruk, em 2013, com Chris Aizner, em 2014, e com Fabio Namatame, em 2015, em montagens de ópera em São Paulo, Belém e Rio de Janeiro, além de espetáculos de teatro. Com essa parceria, aprendi a importância do diálogo com todos os responsáveis pela criação de um espetáculo de teatro ou ópera, como os processos de criação podem levar a um espetáculo conciso e contundente, ou fragmentado e frágil. Por isso tornou-se latente a produção dessa pesquisa, para entendimento de processos de criação, de direção de arte, de comportamento e de projeto.
Com Duda Arruk é que o teatro e a ópera se aproximaram do meu cotidiano: O Menino e a Liberdade, realizada no Teatro São Pedro em São Paulo, em 2013; Otello, no Theatro da Paz em Belém do Pará, em 2014; O Morcego e Viaggio a Reins, realizados para a EMESP-Tom Jobim e seu curso de Ópera-Studio, em 2013 e 2014; Orfeu e Eurídice, em projeto para o Theatro Municipal do Rio de Janeiro, em 2016. No decorrer desses projetos, discussões acerca de uma direção de arte a partir da cenografia se tornaram mais pertinentes, por ser a visualidade mais presente nas montagens realizadas; articular as equipes de cenografia, luz e figurino passou a ser fundamental para se ter um espetáculo amarrado visualmente. A cenografia de Otello foi um caso em que houve sucesso nesse sentido. A proposta da cenografia partia de uma série de dobraduras, como um origami que, ao facetar a caixa cênica em infinitos planos, se fecha em uma articulação entre piso, laterais e teto, como um diafragma de uma máquina fotográfica.
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Nesta pรกgina e na pรกgina ao lado Images 10 - 14 Otello. Fotos: Duda Arruk
Assim, o transtorno de Otello ao ser enganado por Iago e pensar que sua esposa Desdêmona o está traindo com seu principal capitão, Cássio, é espelhado para o cenário, que no decorrer do espetáculo se fecha em si mesmo, como uma espiral. A busca foi por criar um ambiente opressor, estranho, escuro, como um corpo que apodrece ainda em vida, representação espacial da figura de Otello. O figurino e a luz respeitaram os mesmos preceitos: a dobra, o estranhamento e a criação de diversos planos de visão, a fim de criar um ambiente opressor. A materialidade passou a ser importantíssima para as discussões de cenário: o peso visual dos elementos, suas presenças em cena e as interferências na ação dos atores e cantores são questões latentes na cenografia contemporânea. Encenações que procuram o estranhamento e a inquietação da plateia são procuras que vejo nos trabalhos estudados aqui e visitados durante essa pesquisa.
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Apresentação
A cenografia é uma área de atuação que compreende diversos saberes: as artes plásticas, a arquitetura, a iluminação, o figurino, dentre outros. Por isso, a delimitação do tema se deu por uma artista e um arquiteto, notoriamente conhecidos por terem conhecimentos em diversos campos, por lidarem com questões de linguagem, visualidade e materialidade de maneira direta. A pesquisa se deu a partir de levantamento dos projetos em fotos, croquis e pranchas, além de conversas com os cenógrafos e seus parceiros de criação, os diretores. As entrevistas com Cibele Forjaz, diretora teatral e iluminadora, membro da Mundana Companhia de Teatro e Bia Lessa, principal parceira de Paulo Mendes da Rocha na área da cenografia, ajudaram a esclarecer os processos dos dois cenógrafos escolhidos na área à qual se volta esta pesquisa. No caso de Paulo Mendes da Rocha, a tese de doutoramento de Catherine Otondo foi fonte e meio para acessar, de maneira indireta, os arquivos e mapotecas do arquiteto, pelo levantamento, catalogação e digitalização realizados, assim como a publicação de Daniele Pisani. Finalmente, o contato com os fotógrafos dos espetáculos, Lenise Pinheiro e Gal Oppido, foi fortuito, pois o registro de cenografia e sua publicização são raros na área. Já o acesso às produções de Laura Vinci foi mais simples, pois a própria artista mantém um arquivo pessoal organizado. A artista e cenógrafa Laura Vinci possui uma obra nas artes visuais que é completada por sua produção cenográfica. O ato do fazer é essencial para ela, que costuma trabalhar em conjunto com os colaboradores e diretores num processo horizontal de criação.
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O contato com a cenógrafa gerou uma entrevista extensa e uma boa conversa. Vinci compreende sua atuação enquanto criadora de espaços, marcada pela busca de um estranhamento para quem assiste seus espetáculos. Busca em sua obra a transição e a transformação da matéria pelo tempo e espaço. Ambos, ao pensarem suas cenografias, tornam pulsante a importância da matéria construída para a compreensão e vivência do espaço cênico. Paulo Mendes da Rocha se liga fortemente à figura da diretora Bia Lessa, num ato de criação que parte de uma conversa entre cenógrafo e diretora. O presente trabalho se organiza em dois capítulos: o primeiro refere-se à artista e cenógrafa Laura Vinci, e o segundo, ao arquiteto e cenógrafo Paulo Mendes da Rocha. Inicialmente comento a produção artística de Vinci, enumerando suas obras que, no decorrer dessa pesquisa, passaram a ser fundamentais para compreender seus processos e sua maneira de raciocinar. São obras como “Ampulheta”, realizada para o Arte/Cidade III, em 1997; Sem Título, de 2000; Máquina do Mundo, de 2004; e Boa Praça, de 2010. Levantada a produção visual de Laura Vinci, relações entre sua produção nessa área e na cenografia se estabelecem, num primeiro momento, em uma análise acerca da totalidade de seu trabalho e, em seguida, caso a caso, de acordo com as especificidades de cada cenografia. Há, portanto, um trabalho de levantamento iconográfico, de projetos e de entrevistas, que foi necessário para a realização dessa pesquisa. O segundo capítulo, referente a Paulo Mendes da Rocha, possui a mesma linha metodológica. Em um primeiro momento são levantadas as questões fundamentais que ligam sua arquitetura à cenografia, em seguida, comento a maneira pela qual o arquiteto cria e realiza seus projetos
para teatro e ópera e, finalmente, os analiso. Aqui, assim como com Laura Vinci, foi criado um caminho para se ter, ao máximo, materiais sobre os projetos estudados. Foram realizadas: entrevistas, visita ao escritório do arquiteto e de sua diretora teatral, Bia Lessa, e levantamento de material em forma de croquis, pranchas e fotografias. Portanto, este é um trabalho que traz, em sua raiz, o esforço de levantamento de material em fonte primária, pois grande parte dele aparece aqui de forma inédita.
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Prólogo
Atualmente, a cenografia enquanto um campo das artes cênicas e da arquitetura de espetáculos está intrinsecamente ligada às vanguardas artísticas do final do século XIX e início do XX. Os dois primeiros nomes a romperem com a dependência do cenário junto ao texto e a alterarem a percepção do campo visual da cena foram os cenógrafos e diretores Gordon Craig e Adolphe Appia. Ambos têm seus trabalhos pautados por uma quebra com o classicismo na cenografia, e por isso entende-se a ruptura com a cenografia italiana, marcada pela pintura e sobreposição de painéis e cicloramas com motivos realistas e que buscavam criar uma atmosfera fiel ao que o libreto ou o texto propõe. Appia e Craig trazem a presença da luz e da sombra e, portanto, do volume arquitetural para o espaço cênico, entendem que a cenografia realista e cronológica deve ser alterada e que o ator deve vivenciar esse outro espaço, agora tridimensional. Esse entendimento do espaço não apenas quebra com o ideal de realidade e realismo dos cenários propostos pela dramaturgia, como surpreende o espectador ao transportá-lo para uma atmosfera em que o visível possibilita a ultrapassagem do real. A partir dos ensinamentos, conhecimentos e embates criados por essa nova maneira de se criar o espaço cênico, diversos diretores e cenógrafos ganham força e importância na produção de teatro e ópera no início do século XX. Entre eles, destaca-se o tcheco Joseph Svoboda, nascido em 1920 e com um trabalho que supera setecentas montagens de espetáculos. É, sem dúvida, um dos principais cenógrafos que já existiram, sua importância ultrapassa o campo da cenografia, alcançando a iluminação e a técnica executiva com maestria; filho de marceneiro e formado em arquitetura, Svobada possuiu uma criação extremamente pautada pelo 24
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fazer manual e pelas soluções técnicas. Criou aparatos, spots de luz e novas maneiras de utilizá-los em cena; possuiu uma pesquisa vasta no campo dos materiais construtivos e nas soluções viáveis para seus projetos existirem. Recriou a estética simbológica iniciada por Appia e Craig com a excelência de seus conhecimentos, e, assim, literalmente cunhou o termo cenografia. Portanto, até o final de sua vida, em 2002, Svoboda pensou maneiras novas e eficazes de elevar o espectador para o campo imagético que desejava. Soube trabalhar com o que a indústria de seu tempo produziu: novos mecanismos cinéticos, luminotécnicos e imagéticos. Para ele: “Na montagem de um espetáculo é indispensável uma percepção comum do espaço, do movimento, do ritmo e do tempo, porque exatamente nesta fase é que ficam determinadas a gradação e as mudanças, e se estabelece a relação de cada detalhe com o conjunto da ação teatral, com os objetos e os assuntos relacionados tanto à cena como às projeções cinematográficas. Não se pode programar uma montagem sem que haja um entendimento entre os vários colaboradores. Sempre pensei que a realização de um espetáculo teatral é como um ensaio de orquestra antes do concerto: para uma execução ideal, todos os músicos devem afinar perfeitamente seus próprios instrumentos, que depois irão tocar em conjunto conduzidos pela batuta do regente”. SVOBODA, Joseph, 1997, p. 169, in Gianni Ratto Antitratado de cenografia. São Paulo: Editora SENAC, 2001, p.85. Seguindo a produção de Svoboda, porém extremamente ligados ao espaço construído, outros cenógrafos e diretores surgem a partir dos anos 1970 e possuem grande importância na produção de cenografia atual. São eles, em especial, Peter Brook, Robert Wilson e Robert Lepage. Com eles, o espaço da narrativa pôde ser preenchido com novos elementos dominantes.
No Brasil, a cenografia não realista tem seu início com Tomás Santa Rosa. Ele foi o primeiro de uma série de cenógrafos brasileiros a se preocupar com a questão da técnica e não da intuição na prática do fazer da cenografia. Foi discípulo de Candido Portinari, e atuou como pintor, ilustrador, cenógrafo, figurinista, designer gráfico e professor. Segundo Yan Michalski, possibilitou a abertura de caminho para o surgimento de uma vanguarda da cenografia teatral brasileira, composta por Flávio Império, Hélio Eichbauer, Luis Carlos Ripper, Lina Bo Bardi, dentre outros. “A estes, Michalski credita o fato de que a cenografia tenha se tornado, talvez, o setor mais forte do teatro brasileiro, onde a dramaturgia, a direção e a representação muitas vezes não chegavam à altura da ambientação visual”. BULCÃO, Heloisa Lyra, 2014, p.40. Seus trabalhos são marcados por uma discussão a respeito do fazer da cenografia. Busca não só um fazer artesanal e iconográfico brasileiro, mas evidenciar, através deste, a dicotomia de um país arcaico e moderno. Esta é uma característica marcante dessa geração: Flávio Império, Luís Carlos Ripper, Hélio Eichbauer e Lina Bo Bardi trabalham sob o mesmo olhar. Todos, de certa maneira, se engajam não só com o fazer da cenografia, mas com o ensino. Flávio Império, além de arquiteto, cenógrafo e figurinista, se torna professor na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo. Ripper, por sua vez, foi fundamental não só por incorporar esses aspectos de uma iconografia através do artesanal, mas também como um professor para esses artesãos, ensinando-os a técnica da cenografia moderna. Já Eichbauer estudou em Praga com Joseph Svoboda, assim, sua cenografia é extremamente marcada, em um primeiro momento, pelo rigor e clareza formal tcheca, mas também pela delicadeza do fazer de Svoboda que, em seu ateliê, trabalhava quase como um artesão. Ao regressar de seus estudos em Praga, Hélio viaja para Cuba, onde, segundo ele, retoma o uso de cor, pouco empregada nos cenários de Svoboda. Em seu retorno ao Brasil, trabalha 26
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junto a José Celso Martinez Corrêa em O Rei da Vela, espetáculo importantíssimo para o teatro brasileiro. Lina, apesar de contribuir significativamente para a formulação de uma cenografia moderna brasileira, tornando-se referência no que tange o espaço cênico ou expositivo nessa pesquisa, é uma cenógrafa que não está ligada ao ensino. Portanto, os quatro cenógrafos mencionados são importantes por trazerem à discussão da cenografia elementos de um teatro moderno que acontecia na Europa, porém, voltados para as nuances e necessidades dos artesãos locais, transformando-os em cenotécnicos. São fundamentais no pensamento e no fazer de uma cenografia que foge do realismo, que não tenta retomar o aspecto de linguagem fotográfica do teatro. São, sobretudo, fundamentais ao ensino de cenografia e de vivência de espaço. Flávio Império, ao lecionar na FAUUSP, realizando diversos cursos e exercícios experimentais com os alunos; Ripper, por atuar como professor e coordenador na educação de cenotécnicos, cenógrafos, estudiosos de teatro e artes plásticas. Trabalhou na Escola de Artes Visuais do Parque Lage, no Centro de Artes do Tempo e na Fundacen. Hélio Eichbauer, por sua vez, funda a Escola de Artes Visuais do Parque Lage, onde leciona até hoje. Este processo de quebra com o realismo e concepção de uma cenografia moderna brasileira iniciada por Tomás Santa Rosa, seguida por Luís Carlos Ripper, Flávio Império e Hélio Eichbauer, é tratado por Lina Bo Bardi primeiramente em A Ópera dos Três Tostões, de 1960. Neste projeto, Lina propõe um cenário que se insere na arquitetura do Teatro Castro Alves, respeitando e tomando partido do incêndio que o teatro havia sofrido pouco antes. Cria uma cenografia que não possui trocas, mas sim uma arquitetura que possibilita ambientes diferentes
acontecerem simultaneamente. No ano seguinte monta Calígula, também no Teatro Castro Alves, porém, o cenário de maior relevância de Lina foi o de Na Selva das Cidades, criado em 1969 para o Teatro Oficina, e revisitado nessa pesquisa sob o olhar e montagem da Mundana Companhia de Teatro, em 2015. Neste cenário, Lina se vale de elementos cotidianos paulistas para ambientação de cena: são usados colchões, caixas, lonas, panos, papéis, varais, mesas e cadeiras para a ação, e transforma o palco em um ringue de boxe. Além de possuir uma cenografia com poucos elementos, sendo concebida principalmente a partir de objetos de cena, este espetáculo foi fundamental por sua montagem e direção, realizada por Zé Celso, pois foi o primeiro nu completo do teatro brasileiro. Aos poucos, o fazer cenográfico de Lina é permeado por experiências de palco como as do Teatro Oficina, mas também do Living Theatre, de Nova York, e Los Lobos, da Argentina. A partir dessas experiências, começa uma ruptura com o palco italiano e a chamada quarta parede e insere o espetáculo no espaço da plateia, e vice-versa, rompendo om a ideia de um teatro contemplativo. Portanto, esses cenógrafos citados aqui, Flávio Império, Luís Carlos Ripper, Hélio Eichbauer e Lina Bo Bardi, são responsáveis por um processo de transformação no teatro brasileiro no que diz respeito ao fazer de cenografia, sua importância para o espetáculo e, sobretudo, sua criação e concepção junto aos construtores, atores e diretores de teatro.
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Laura Vinci artista - cenógrafa Os diferentes campos de atuação de um artista podem estar intrinsecamente conectados, como se nota claramente no caso da artista e cenógrafa Laura Vinci. Suas cenografias são extremamente marcadas por sua produção no campo das artes visuais. A artista nasceu em São Paulo, no ano de 1962, e iniciou seus trabalhos como artista no campo da pintura, posteriormente migrando para as instalações e para a cenografia. Sempre preocupada com a inserção de suas obras na arquitetura e no espaço construído, ao conceber uma cenografia, Laura Vinci trabalha junto ao edifício para criar uma dinâmica que se transforma no decorrer de um espetáculo, ou no transcorrer de uma instalação artística. Entende o espaço como um corpo fluido, dotado de movimento e que é transformado por este. Utiliza os materiais em seus estados primeiros: o vidro, a areia, a água, o vapor, o metal, o mármore, o pó, a eletricidade, a madeira. Não há, por parte da artista, uma vontade ou um caráter de trabalho manual em suas obras; ela parece compreender com bastante clareza sua inserção dentro de um contexto da história da arte e da escultura que acontece pós Brancusi e Duchamp1. 1 Trabalhado por Rosalid Krauss em Caminhos da Escultura Moderna. Esses dois artistas foram fundamentais para a história da arte por alterarem a concepção de escultura e o papel do espectador neste processo. Há, após ambos, uma preocupação evidente com a discussão entre espaço e tempo para a arte, além da maneira com que a materialidade da arte se insere no mundo.
“É a permeabilidade dos elementos e aos elementos que levou Laura a transitar do ferro ao granito, ao mármore, à areia, ao vapor, ao gelo, ao ar. Mais do que um gosto pela variedade, o que a leva nessa busca é o reconhecimento da passagem e o encadeamento fluido que testemunha o estado de contaminação receptiva e de alteração recíproca na massa do mundo. Essas trocas seriam uma comunicação e um diálogo entre os elementos, se estes
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se comportassem como linguagem. Mas, em vez disso, eles permanecem, entre todos os estados, num estado de mudez e nudez essenciais, mesmo quando intervêm palavras”. WISNIK. 2002, p.19. São diversas as instalações de Laura Vinci que se relacionam com suas cenografias. No campo das artes visuais, Vinci traça um caminho que procura entender os diferentes materiais, suas inserções no espaço e, portanto, como estes o alteram. “A obra de Laura dá forma ao silêncio, ilumina o não dito, torna corpórea a luz. Suas peças são como um retrato do invisível. Valem tanto pelo que são quanto pelo que revelam. É impossível ver uma obra de Laura Vinci duas vezes, ela nunca está exatamente onde já esteve”. DANTAS, 2002, p. 09. A obra de arte passa a existir então quando o observador se encontra no local. Sem aquele que a vivencia, a obra não existe fisicamente, o que fica é seu registro a ser publicado em livros. Segundo Rodrigo Naves, a obra da artista ganha corpo e relevância a partir de sua obra sem título conhecida como Ampulheta, de 1997, realizada para o Arte/Cidade III. Ali, Laura inicia uma trajetória marcada pelas inserções de suas obras na arquitetura e por mostrar, através delas, a passagem do tempo e as alterações que a matéria sofre neste processo. “Era como se a partir daquela instalação a artista tomasse consciência de forças que estavam muito além dela, cabendo-lhe apenas elaborar os instrumentos que transformassem aquela energia dispersa em algo apto a ser experimentado por nossos sentidos – não só pela visão -, sem que, nesse movimento, houvesse uma domesticação dos elementos que eram a própria razão de ser dos trabalhos”. NAVES, 2013, p. 47.
Para este trabalho, 50 toneladas de areia fina foram amontoadas em um pavimento de um edifício que abrigava um moinho abandonado e um furo de 12mm foi feito transpassando a laje deste pavimento, logo abaixo do centro da montanha de areia. Com esse ato, um fio de areia passa a cair de um pavimento do edifício para o outro, formando uma nova montanha de areia no andar de baixo e transformando gradualmente a pilha de areia original, como uma operação de soma e subtração de matéria.
Acima Imagens 15 - 16 Sem título. Laura Vinci. Fotos: Laura Vinci
Com isso, mais do que simplesmente transferir areia de um andar para outro de um edifício em ruínas, Laura parece evidenciar, para quem teve a experiência de ver o acontecimento, as diferentes transformações de estado dessa matéria. Nos mostra, de maneira sutil, não só a metamorfose de uma montanha de areia que atravessa um edifício, mas também uma passagem de tempo que, ao contrário de uma ampulheta comum, onde a areia está
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protegida de interferências ambientais por uma redoma de vidro, aqui está sujeita à umidade, ao vento e às possíveis ações de quem passar pelo local. Portanto, transfere o caráter de marcação do tempo linear, como a ampulheta ou um relógio fazem, para marcar um tempo que é aquele vivido pelo edifício em ruínas, sujeito a quem passa por ele e às ações naturais. A trajetória da artista tem seu início no final da década de 1980, com O quarto, e segue, já na década de 1990, com as lâminas de ferro fundido de Verticais que se assemelham formalmente aos trabalhos de Giacometti. Ao lado Imagens 17 - 18 Verticais. Laura Vinci. Fonte: VINCI, Laura. Laura Vinci. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo: Imprensa Oficial, 2003. Na página ao lado Imagens 19 - 20 Sem título. Laura Vinci. Fonte: VINCI, Laura. Laura Vinci. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo: Imprensa Oficial, 2003.
Em 1998, a artista se insere no campo da cenografia com Cacilda!, no Teatro Oficina. Ali, Vinci propõe um elemento que tangencia fortemente as artes visuais. É o O Anjo de Pedra!, um elemento bruto de mármore. A partir dessa criação, começa uma série de trabalhos que se relacionam fortemente com o mármore, seja como piso, como peça ou como pó. São eles: Sem título (2000), Máquina do mundo (2004), Ainda viva (2007), cenografia de Só (2009), Boa praça (2010) e No ar (2011). Nestes trabalhos há uma série de transformações deste material, como diz a artista, sem perdas.
No seu trabalho Sem Título, de 2000, Vinci trabalha a materialidade do mármore em dois opostos. O pó, que envolve as colunas de uma sala expositiva do edifício do Centro Cultural Maria Antônia como um relevo; e o mármore sólido, trabalhado de maneira orgânica, como em Brancusi. Há a contraposição entre diferentes elementos visualmente orgânicos e seu contraste com a ortogonalidade das colunas do edifício onde se inserem, quase como um dicionário formal sobre a matéria branca, que pode assumir a forma de pó, ser trabalhada organicamente em uma peça ou mesmo ser a arquitetura, apesar de não ter sido construída pela artista.
Já em Máquina do Mundo, de 2004, a artista retoma os ensinamentos de sua obra para o Arte/Cidade III. É uma releitura da transformação da matéria pelo tempo e pela ação de uma força. Se, antes, a gravidade era responsável pelo transporte dos grãos de mármore, aqui, há uma máquina, uma esteira rolante que transfere os grãos de mármore de um ponto a outro. Ao passar a ação do transporte de matéria de um ato natural para um outro criado pelo homem, Laura Vinci relê cada grão como uma possibilidade de escultura, quase criando uma genealogia da escultura humana.
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Nesta página Imagens 21 - 22 Máquina do mundo. Laura Vinci. Fonte: www.lauravinci.com.br Na página ao lado Imagens 23 - 24 Boa praça. Laura Vinci. Fonte: www.lauravinci.com.br
Este é um trabalho que foi remontado diversas vezes nos anos seguintes, em lugares distintos, de galerias de arte a cofres de bancos. O local de inserção da obra não é a característica fundamental dessa instalação de Laura Vinci, mas sim a transferência de uma montanha de pó de um ponto a outro do espaço. É a primeira estrutura construída pela artista que demandou um projeto executivo. Finalmente, em 2010, Vinci cria a instalação Boa Praça, uma releitura da cenografia que concebeu para Só e das suas obras nas artes visuais que discutem o vapor, como No Ar (2009) e Choro (2010). É um rebaixo em piso de mármore que configura uma pequena praça onde há vapor de água, quase como uma neblina em um vale de rio. Aqui a discussão é pautada pela transformação visual do espaço construído, é uma instalação artística que tange o campo da cenografia, trazendo o observador como agente transformador desse lugar na medida em que há o estranhamento deste perante um espaço que some à sua frente.
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Cenografias
Como visto anteriormente, o fazer de cenografia de Laura Vinci está intrinsecamente ligado à sua produção no campo das artes visuais. Laura não só se vale de materiais comuns em suas instalações para discutir seus cenários, mas também reitera neles discussões latentes. Deve-se dizer que, se seu trabalho de cenógrafa é influenciado por suas criações artísticas, a recíproca é verdadeira. Ambos partilham as mesmas discussões, temas e argumentos. Os projetos de cenografia nascem, em grande medida, da discussão e do convívio entre a cenógrafa, os atores e a direção, num ato de influência mútua. É uma prática comum de Laura levar boa parte de seu acervo de ateliê para os ensaios, criando ali uma situação física que supre as demandas dramáticas. Acredita em um tipo de teatro que é representado por diversos grupos hoje em dia no Brasil, um teatro de criação coletiva, fruto de um trabalho imersivo de texto, ensaio, improviso e ação cênica. Diverge de uma visão de teatro na qual o diretor é o elemento gerador da concepção teatral, figura que demanda soluções de projeto por parte das equipes criativas. Laura Vinci surgiu como cenógrafa no espetáculo Cacilda!, no Teatro Oficina. Ali, segundo ela, foi sua escola. Local onde aprendeu, através de José Celso Martinez Correa, a criar espetáculos onde os atores são agentes transformadores e criadores da cenografia, principalmente no período de ensaio dos espetáculos. Foi ali também que conheceu a diretora e iluminadora Cibele Forjaz, com a qual realizou diversos trabalhos junto à Mundana Companhia de Teatro. Outro espetáculo tido como escola para ela foi O Idiota, por ter sido uma peça
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que surgiu a partir do improviso dos atores e do ato de fazer em conjunto. Ali surgiu um método de trabalho em cenografia, tanto para Laura Vinci, quanto para a Mundana Companhia de Teatro. Para Vinci, o teatro é um meio de transformação de mundo, e justamente por isso o trabalho coletivo é fundamental. Enxerga a questão da autoria de uma maneira não sólida, mas sim permeável por todos os que participam ativamente de uma concepção de peça teatral, por isso suas cenografias são muito marcadas pela possibilidade de o ator, assim como o observador, ser um agente transformador daquele espaço: o ator, por literalmente criar e improvisar em cima das arquiteturas criadas por Laura; o observador, por estar, em grande parte de seus espetáculos, fora do lugar físico de uma plateia usual de teatro. Em seus cenários fica evidente sua escolha por um espaço fluido e dinâmico, que possibilite a maior quantidade de ações dos atores e que tenha o mínimo de elementos fixos para este lidar. Em O Duelo aparecem praças; em O Idiota, passarelas e ruas; em Só, um quarto. Esses espaços são conformados, em sua essência, como ambientes limpos, onde os objetos de cena, muitas vezes trazidos pelos atores e em conjunto com estes, cumprem o papel de ocupa-los. Laura Vinci raramente se torna uma “cenógrafa de prancheta”; quando isso ocorre, a parte de desenho está a cargo de algum assistente. De qualquer maneira, as propostas que envolvem construção de cenário são marcadas por uma simplicidade formal oriunda das escolhas: são andaimes e arquibancadas que não demandam requintes formais. Quando perguntada sobre seu processo de fazer, Vinci responde: “(...) então monta na hora, pendura na hora, eu gosto disso, porque é fácil desmontar e tirar, é leve. Tem uma agilidade que eu gosto. Quando é estrutura: no Duelo tinha estrutura. Aí sim, aí tem planta, aí tem projeto, aí tem que ver engenheiro, peso... As arquibancadas a gente fez, fez
um teatrinho que viajou pelo Brasil. Então a prancheta é aí, mas eu desenho muito pouco. Para as minhas coisas eu desenho muito pouco. Eu desenho numa cadernetinha pequenininha. Eu projeto muito pouco, nem desenho bem. É meio tosco. Mas computador hoje ajuda muito para construção espacial. Para objeto não faz sentido”. VINCI. Entrevista concedida em 02.09.2015. A pesar de ser uma cenógrafa que privilegia o trabalho horizontal, Vinci certas vezes encontra uma figura de diretor “concebedor” e centralizador do espetáculo cênico, o que altera sua maneira de perceber o espaço e, portanto, o resultado encontrado no palco. “Eu estou muito em crise com essa estrutura do diretor que é o concebedor, que é o cara que manda e você é um mero empregado. Pelo amor de deus... é horrível essa situação, eu acho uma estrutura completamente ultrapassada. Como você trata os atores e toda a equipe como um simples... não tem uma troca criativa”. VINCI. Entrevista concedida em 02.09.2015. As diferentes maneiras de conceber um cenário podem acarretar resultados distintos. A artista Laura Vinci sempre terá a palavra final sobre suas obras, porém, ao produzir cenografia, isso não necessariamente acontecerá. Em um processo horizontal, é influenciada por atores, diretores, iluminadores e figurinistas em uma dinâmica de troca. Já em uma organização vertical, há uma concepção do espetáculo pelo diretor, o que faz com que as definições finais tenham que passar pela aprovação desta figura. Enquanto desenho de palco, Laura possui um traço que privilegia a modulação e a retícula, eximindo-se, com isso, de criar qualquer tipo de cenografia realista ou naturalista. Assim, suas principais fontes de inspiração são oriundas das artes plásticas, ou de cenógrafos artistas, além da referência a Rolf Borzi e Peter Pabst, cenógrafos parceiros de Pina Bausch. Anish Kapoor, Alselm Kiefer, Jannis Kounellis. São propostas de espaço que buscam o estranhamento no observador. 42
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Acima Imagens 25 - 26 Primeira sagração da primavera. Pina Bausch. Fonte: http://corpoemdanca.com/ wp-content/uploads/2012/08/ sagracao1.jpg
Acima Imagem 27 La salle des Pierres. Jannis Kounellis . Fonte: https://www.flickr.com/photos/ renaud-camus/5102075504 Ao lado Imagem 28 Elektra Alselm Kiefer Fonte: http://seenandheardinternational.com/2011/10/madrid_ elektra_bychkov_grueber_jmirurzun_ jflaurson/
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Cacilda! 1998 Texto José Celso Martinez Corrêa Direção José Celso Martinez Corrêa Iluminação Cibele Forjaz Local Teatro Oficina
Nas páginas anteriores Imagem 29 Cacilda! Foto: Maurício Shirakawa Na próxima página Imagens 30 - 31 Anjo de pedra Fotos: Nelson Kon
Em 1998, Laura Vinci cria a cenografia para Cacilda!, junto ao Teatro Oficina. Esta é a primeira vez que a artista adentra mais fortemente nas discussões de espaço e texto. Ali, concebe uma cenografia atenta ao projeto do teatro, criando assim elementos cenográficos e arquitetônicos de suporte ao espetáculo. Cacilda!, segundo Laura Vinci, foi fundamental para cunhar sua maneira de pensar e trabalhar a cenografia. Foi lá que iniciou nessa área, e, sobretudo, vivenciou uma maneira de criar marcada pela troca e pelo fazer-junto. Apesar de ser uma figura central na concepção de seus espetáculos, o diretor Zé Celso possibilita o afloramento das capacidades criativas de cada equipe que com ele se encontra, sejam os atores, cenógrafos, iluminadores, etc. Possibilita que sejam agentes criativos do espetáculo. Não há, por parte da direção, questões de demanda para a cenografia, mas uma conversa e um trabalho conjunto de concepção do espaço cênico. Sobre a relação com Zé Celso e a concepção da cenografia, Laura explica: “(...) deu certo porque o Zé foi muito generoso, ele é uma pessoa que você trabalha muito junto. Não tem essa coisa de fazer uma cenografia para [ele], até porque o Teatro Oficina já é uma cenografia e é uma arquitetura. Você não tem muito o que pôr ali. Inclusive eu acho feio quando põe, acho que estraga. Não tem muito o que fazer ali, então, nesse sentido, foi um bom começo. Eu fiz coisas que até hoje estão lá: o palquinho onde tem o piano, onde fica a banda, foi em Cacilda!, porque era inclinado, então você não tinha um plano reto para pôr um piano, para pôr uma bateria, para fazer qualquer coisa. Nesse sentido, na verdade ali era o camarim de Cacilda! então a gente fez aquele plano que até hoje está lá. E a escada na beira do janelão está lá até hoje, acho que está lá. Acho que eles até duplicaram, fizeram uma em cima. Ficou, porque não era uma cenografia, eram estruturas arquitetônicas. Então, na verdade, eu aprendi a fazer teatro lá, foi uma grande escola, porque é um teatro que não é teatro de coxia, não
é teatro italiano, é uma passarela. Então a minha escola foi ali. Aprendi diretamente com ele [Zé Celso], porque ele trabalha muito na ação, trabalha ensaiando e fazendo, quer dizer, construindo a cena fazendo”. VINCI. Entrevista concedida em 02.09.2015. Cria o Anjo de Pedra, um paralelepípedo de mármore suspenso por cabos de aço. Aqui aparecem então os materiais já trabalhados por Laura Vinci: o mármore, o metal e a água. O bloco de mármore surge quase bruto, apenas recortado, o que traz para a peça uma beleza e uma simplicidade marcantes, por ser uma peça com um peso imenso suspensa no ar, o que acaba gerando um estranhamento – pretendido pela cenógrafa – para o espetáculo.
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Um segundo elemento fundamental à peça é a Grande Veia de Cacilda Becker, um elemento cenográfico criado no decorrer dos ensaios e que consiste em uma lona plástica por onde corre um veio de sangue. Originalmente, a cenógrafa queria sangue real, porém, optou-se pelo uso de anilina vermelha. Este é um elemento chave no espetáculo por se ligar à dramaturgia e aparece em cena precisamente após Cacilda sofrer um aneurisma e necessitar de uma operação. É um elemento que cruza toda a passarela do Teatro Oficina, desde o balcão da técnica, ao fundo, até a entrada do teatro. Ao lado e na próxima página Imagens 32 - 33 Cacilda! Fotos: Maurício Shirakawa
“Essa cena é linda. Porque a Cacilda teve um aneurisma em cena, então era hora da cirurgia, aquela urgência. Eles estavam no mezanino oposto à técnica e a gente montou uma maca ali, e tinha uma furadeira que fazia um barulhão e o Zé falou “precisa de sangue, precisa de sangue nessa cena” “pega aquela mangueira de água vermelha, vamos jogar aqui”, e eu disse “precisa de sangue, vamos pôr sangue”, e ele “vai sujar tudo, vai sujar o figurino” e a Elizeth, que era a diretora de palco, falou que tinha o plástico transparente, que depois a gente limpava. Então a primeira vez foi assim, jogou um balde de sangue de lá, para baixo. Daí que nasceu a veia. E isso a gente fez fazendo, todo mundo”. VINCI. Entrevista concedida em 02.09.2015.
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Só 2009 Texto Letizia Russo Direção Alvise Camozzi Colaborador Tatiana Tatit Iluminação Alessandra Domingues Local Sesc Paulista
Nas páginas anteriores Imagem 34 Só Fonte: acervo Laura Vinci Acima Imagem 35 Planta do cenário de Só Fonte: acervo Laura Vinci Ao lado Imagem 36 Detalhe do cenário de Só Fonte: acervo Laura Vinci
Em 2008, Laura Vinci cria a cenografia de Só, espetáculo de estreia da dramaturga italiana Letizia Russo. É uma cenografia limpa e clara, que, assim como em Cacilda!, não busca ocupar a visão do espectador para elementos de cenário mas, sim, remeter esse olhar para o ator e sua performance em cena. Abaixo Imagem 37 Só Fonte: acervo Laura Vinci
Para o espetáculo, Laura cria um grande piso retangular, modulado em placas quadradas de mármore branco. A única singularidade do piso é um rebaixo, no qual, em determinado momento da peça, aflora água, vagarosamente, de maneira quase imperceptível, causando um estranhamento na plateia. Em contraponto ao piso branco, Laura propõe um único objeto cênico, uma cadeira escura, que possibilita ao ator inúmeros usos cênicos.
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Acima Imagem 38 Só Fonte: acervo Laura Vinci
“A começar pela cenografia, que combina a densidade de um vasto chão de mármore branco e a singularidade de uma única cadeira. O espaço está vazio, mas preenchido em cada centímetro por significações relevantes. A claridade e lisura do extenso piso não escondem as áreas rebaixadas, em que a materialidade cênica comparecerá com seu quinhão na narrativa. Por exemplo, quando o personagem revela o momento crítico em que sua relação proibida é flagrada e se derrete com neve, o piso literalmente faz água e é sutilmente inundado diante do público”. RAMOS. Crítica publicada no jornal A Folha de São Paulo em 12.04.2009.
O piso de mármore detinha diversas aberturas para o afloramento de água, que era fornecida através de um encanamento vindo do banheiro, passava por uma válvula reguladora controlado por um temporizador até chegar ao palco, pela parte de baixo do piso. Ali, por pressão, aflorava através das uniões das placas de mármore. Nos locais onde a cenógrafa não gostaria que a água aflorasse, foi realizada impermeabilização com lonas plásticas. Se o piso de mármore possuía uma beleza e uma qualidade cênica inquestionáveis, ele se tornou um problema sério na hora de o espetáculo itinerar. A escala da montagem não comportava o árduo transporte das placas de mármore que constituíam o chão. Assim, a própria cenógrafa vê isso como um problema, o que a faz reutilizar esse piso posteriormente em uma instalação de artes visuais, área em que o transporte pesado é melhor aceito. “É engraçado, porque nas artes visuais carregar peso é uma coisa mais tranquila. É que teatro, além da cenografia, tem a música, tem a roupa, uma série de equipes trabalhando, então aumenta muito”. VINCI. Entrevista concedida em 02.09.2015. A reflexão de Laura Vinci sobre as nuances de se fazer cenografia e artes visuais mostra como a facilidade de montagem certas vezes pode se sobrepor em importância à questão da materialidade.
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O idiota - uma novela teatral 2010 Texto Fiódor Dostoiévski Concepção e montagem Mundana Companhia de Teatro Direção Cibele Forjaz Equipe Marília Teixeira Tatiana Tatit Julia Moraes (Itinerâncias) Iluminação Alessandra Domingues Figurino Joana Porto Locais Sesc Pompéia (2010) Teatro José de Alencar (2010) Sesc Santos (2010) Têàther Nacional Europália Bruxelas (2011)
O espetáculo O Idiota talvez seja aquele em que Laura Vinci ganhou maior notoriedade enquanto cenógrafa. Os trabalhos junto à Mundana Companhia de Teatro tiveram seu início em 2008, em parceria com seus fundadores, Aury Porto e Luah Guimarães, e a diretora Cibele Forjaz. Inicialmente, a peça seria montada a partir de uma adaptação escrita por Vadim Nikitin, porém, o processo se desenrolou de maneira completamente diferente, muito mais viva e orgânica. Conta a cenógrafa:
Nas páginas anteriores Imagem 39 O idiota - uma novela teatral Foto: Cacá Bernardes Na próxima página Imagem 40 O idiota - uma novela teatral Foto: Cacá Bernardes
“O Idiota teve um processo muito bonito, porque tinha a dramaturgia do texto, porque é um romance, então eles chamaram o Vadim Nikitin, que é um russo, para fazer essa dramaturgia. A gente ganhou fomento, então quando chegou a hora de fazer, tinha que fazer dez ensaios abertos e cadê a dramaturgia? Não tinha. Não estava pronta. Mas ele fez uma coisa genial, ele separou o livro em doze capítulos e extraiu do livro as situações mais importantes para depois virar uma dramaturgia. Então, na verdade, a gente fez uma dramaturgia em ação. Porque ele separou as ações em situações principais, que a gente chamava de envelopes, aí parte recebia esse envelope dois dias antes, então a gente sabia da situação [dramática], a gente [da cenografia] inventava uma situação física, os atores chegavam no dia onde estava essa situação física, liam o envelope na hora, tinham lá um certo comando e aí entravam em cena. Então era no improviso. (...) a forma de fazer, a prontidão que o ator tinha que estar frente à situação física. Não era aquilo de ensaiar, ensaiar, ensaiar, depois entrar no espaço físico, esse espaço está criado junto. E isso faz muita diferença, e acho que acabou ficando a minha característica também”. VINCI. Entrevista concedida em 02.09.2015.
Os processos de ensaio, que tiveram início no espaço da Companhia Livre, quando passaram a acontecer no espaço do Galpão do Sesc Pompeia, tornaram-se fundamentais para o amadurecimento do espetáculo. Foi ali que ficou evidente, para a Mundana Companhia de Teatro e para a cenógrafa, a encruzilhada como ponto focal do desenrolar da trama. Assim, esse elemento passou a existir como estruturador dos caminhos dos Umbrais, aparecendo por meio das passarelas de pallets, dos andaimes, e da mesa com toalha de pó.
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Aqui, assim como em muitos trabalhos de Laura, a transformação do espaço e da matéria está muito presente. O espetáculo foi concebido como um grande trajeto, no qual a plateia é convidada a se locomover pelos diversos espaços cênicos. Isso influencia não só a maneira com que o público presencia e participa do espetáculo, mas também o modo como os atores ocupam e utilizam esse lugar. É uma cenografia viva que depende da ação dos atores, e Laura Vinci tem como partido a escolha por elementos transitórios e passageiros, tais como:
Nesta página e na página seguinte Imagens 41 - 46 O idiota - uma novela teatral Foto: Cacá Bernardes
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O espelho d’água, que no primeiro Umbral estava coberto por pallets, formando, assim, duas passarelas em cruz, e no quinto é revelado, alterando completamente o diagrama das cenas;
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Os pallets que aparecem em cima do espelho d’água, elementos móveis de empilhamento de carga. Funcionam como ponte sobre a água e delimitam a encruzilhada, elemento central do espetáculo;
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A toalha de pó de mármore, montada para o segundo Umbral, se desfaz com a passagem dos atores no decorrer do espetáculo;
Nesta página e na página seguinte Imagens 47 - 52 O idiota - uma novela teatral Foto: Cacá Bernardes
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O carrinho que transporta atores pelo espaço no sexto Umbral;
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A estrutura de andaimes, que remete a uma construção em obras ou temporária;
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Os blocos cer창micos que fazem o piso dos camarins, ora funcionam como piso, ora como banqueta;
Nesta pรกgina e na pรกgina seguinte Imagens 53 - 58 O idiota - uma novela teatral Foto: Cacรก Bernardes
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O fogo;
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A รกgua;
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O vapor.
As escolhas cenográficas de Vinci são marcadas por sua maneira de fazer cenografia, levando materiais de seu ateliê para os ensaios. Logo, podemos enxergar diversas relações entre os elementos e materiais presentes no cenário de O Idiota e a produção artística da cenógrafa. O carrinho, por exemplo, que em O Idiota transporta pessoas pelo espaço, ou seja, transporta matéria, pode ser relido através da obra A Máquina do Mundo, onde uma esteira carrega pó de mármore, como uma leitura da passagem do tempo e da história da escultura; no espetáculo, o carrinho carrega a Besta do Apocalipse, remetendo então à história dos homens. A analogia é válida por ambos tratarem da transitoriedade da matéria. A transformação, que aparece constantemente nas obras 66
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de Laura, age como uma analogia ao nosso tempo e à nossa experiência humana, a partir do momento em que somos agentes transformadores do espaço e sofremos influência sobre ele. Outro ponto que aparece em O Idiota e também na produção artística de Vinci é o pó de mármore. No espetáculo há uma toalha de pó de mármore executada a partir de uma máscara de recorte, pó que é transformado pela ação dos atores em cena. O ato de alterar a matéria do pó faz com que o elemento cênico se modifique, a toalha deixa de ter essa função a partir do momento em que os atores cruzam o espaço em que ela se encontra: a matéria altera o elemento cênico. “É uma constante mesmo. Na peça tinha uma razão dramatúrgica interessante, no sentido de que era uma cena real, em que o personagem estava contando uma história fictícia. Ele estava num chá com uma madame, ele numa ponta e ela na outra, como se estivessem tomando um chá da tarde, e aí ele vai contar uma história pra ela. Então, o grupo de atores entra e atravessa a mesa, que era real, mas aí o fato de eles fazerem a ação dentro da mesa faz com que desmanchem ela. Então é um espaço fictício que se desmancha, ele é uma história que não existe. Então tinha essa coisa de que a história desmanchava a realidade. Ficou bonito ali, porque tinha essa delicadeza da ficção numa dupla realidade: que é a realidade da história, que não é real, e a nossa. Então aí tinha essa coisa de três tempos: nosso real assistindo aquilo, os atores fazendo, que era uma ficção, e o que de fato era a ficção. Tem bem essa ideia do tempo aí. Eu lembro que no Arte/Cidade III era uma obra sem título, hoje em dia minhas obras têm título, mas naquela época eu ainda não tinha repertório para dar título, e aí ela ficou com o apelido de Ampulheta, então claro que essa questão do tempo, do relógio de areia, está marcada”. VINCI. Entrevista concedida em 02.09.2015.
Os Umbrais se dividiam em três atos, nos quais a plateia se movimenta pelo espaço. No primeiro ato, em um primeiro momento, o espaço do Galpão do SESC-Pompeia estava ocupado pelo espelho d’água - parcialmente coberto pelos pallets, que formam a encruzilhada (1º Umbral: Um trem atravessa mundos); pelos andaimes; pela toalha de pó de mármore e pelas cadeiras da plateia, dispostas paralelas à toalha e perpendiculares ao espelho d’água (2º Umbral: Casa da Mãe). Num segundo momento do primeiro ato, após um ciclo no exterior do Galpão, os espectadores retornam ao espaço, que agora é caracterizado por um pequeno palco e uma plateia disforme (3º Umbral: Casa do Pai), onde antes se localizava a Casa da Mãe; e uma plateia circular ao redor do fogo de Nastássia (4º Umbral: Casa da Dama). O segundo ato é o momento em que o espelho d’água é praticamente todo revelado (5º Umbral: Casa do Irmão), onde a presença do dispositivo do carrinho acontece (6º Umbral: Besta do Apocalipse) e é também o local há uma espécie de piquenique com toalhas e a plateia é montada em uma semi-arena, ao redor das toalhas (7º Umbral: Casa do Cavaleiro Pobre). O terceiro e último ato é subdividido em cinco umbrais. O 8º Umbral é o Banco Verde; o 9º, Vaso Chinês; o 10º, O Quarteto; o 11º, A Casa da Morte; e o 12º, A Ressurreição. Para detalhes sobre todos os umbrais, consultar entrevista de Cibele Forjaz, localizada no final deste capítulo.
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Nesta pรกgina e na pรกgina seguinte Imagens 69 - 62 Plantas do cenรกrio de O idiota uma novela teatral Desenhos de Tatiana Tatit.
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Pais e filhos 2012 Texto adaptado Adolph Shapiro Direção Adolph Shapiro Colaboração Julia Moraes Iluminação Cibele Forjaz Wagner Antonio Figurino Marichilene Artiveskis Local Sesc Pompéia
Nas páginas anteriores Imagem 63 Pais e filhos Foto: Cacá Bernardes
Pais e Filhos, que estreou em 2012, foi um espetáculo marcante para a cenógrafa, no que diz respeito ao fazer do teatro, por ter evidenciado para ela as complicações criativas que um diretor de teatro centralizador pode trazer. “Eu tive uma situação bem traumática que foi Pais e Filhos, e eu jurei para mim mesma que eu nunca mais estaria numa situação dessas. O diretor vem com a peça que ele quer fazer, da cabeça dele, então ele não olha e não aproveita a capacidade do outro e às vezes, a originalidade de pensamento do outro, e isso pode acrescentar. Então foi um parto para fazer, era a Mundana e a gente tinha acabado de sair de O Idiota... E isso eu aprendi: essa coisa de com diretor não se pode falar. Como eu era a mais velha, eu virei uma espécie de comunicador entre as partes, uma situação ridícula que eram quinze pessoas e ninguém senta lá. A Cibele estava na luz, fez uma luz linda. Ele a fez desmanchar a luz inteira, cena por cena, para fazer a luz que ele queria. Burrice. Foi uma pena aquilo, uma experiência horrorosa. Uma pessoa pensando ou dez pessoas pensando, claro que o de dez fica melhor, são dez pontos de vista que estão se juntando para fazer uma coisa. Eu acho que o teatro é uma frente para mudar o mundo e aí tem um sistema que é completamente autoritário, não faz sentido”. VINCI. Entrevista concedida em 02.09.2015. O cenário de Pais e Filhos é um chão branco que ocupa o palco todo, sem elementos de cenografia construídos. É uma série de objetos de cena, como mesas, bancos, galhos secos de árvore, que compõe um dos cenários mais simples de Laura Vinci, talvez pelo processo de concepção ter sido como exposto. Nota-se que os diferentes processos de concepção e desenvolvimento criativo de um espetáculo acarretam em resultados diferentes. A predisposição da equipe de direção por uma concepção de cenário afastou Vinci do processo, o que fez com que as decisões finais não fossem tomadas por ela.
Ao lado Imagens 64 - 65 Pais e filhos Foto: Cacรก Bernardes
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O duelo 2013 Texto Anton Tchékov Direção Georgette Fadel Concepção e montagem Mundana Companhia de Teatro Iluminação Guilherme Bonfanti Figurino Diogo Costa Locais Teatro José de Alencar, Fortaleza (2013) Parque Nacional da Serra da Capivara (2013) Centro Cultural São Paulo (2012)
Nas páginas anteriores Imagem 66 O duelo Fonte: Acervo Laura Vinci.
O Duelo, realizado pela Mundana Companhia de Teatro em 2013, foi um espetáculo com uma itinerância grande. Ali aparece novamente um palco retangular limpo, no qual os atores são agentes de transformação do espaço. Laura criou, como raramente acontece, duas arquibancadas para o público, assim como um balcão com estrutura de andaimes. É, novamente, uma cenografia que depende da ação dos atores. O espetáculo foi concebido com um piso retangular com a plateia em duas ou três de suas quatro laterais (variando de acordo com a montagem). A aresta restante do palco foi ocupada por uma estrutura de andaimes que criou um mezanino, para o andar inferior, e uma passarela metálica, para o andar superior. Era um conjunto quatro peças de andaime sobre rodas, que funcionavam como carrinhos no decorrer do espetáculo. Além da cenografia construída, Vinci concebeu uma série de objetos de cena, entre eles há a presença do pó de mármore, de mesas, cadeiras e uma bolha plástica, na qual a atriz entra por um orifício em sua parte de baixo. Ao empurrar essa bolha para cima, ela se infla e plana como um balão, até atingir o chão do palco suavemente, o que possibilita diversas interações da atriz com o objeto. Há uma vela plástica que é utilizada pelos atores durante determinada cena em que acontece uma tempestade: “Em O Duelo, por exemplo, tem uma cena de tempestade, que é um exercício de workshop, eu fiz ali, pus os atores para mexerem a vela, então é uma cenografia ativa, porque o ator pega, está muito conectada à ação do ator”. VINCI. Entrevista concedida em 02.09.2015.
Em cada uma das itinerâncias a peça lidou com um tipo de espaço pré-existente. Em Fortaleza, a montagem ocorreu no Teatro José de Alencar, porém, foi construído um palco em cima da plateia central do teatro, em nível com o palco existente. O público passou a ocupar apenas os camarotes e frisas, deixando uma passarela central que partia do local onde estaria a plateia central, até o palco italiano. Nesta página Imagens 67 - 69 O duelo (Fortaleza) Fonte: Acervo Laura Vinci.
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Nesta página Imagens 70 - 73 O duelo (Serra da Capivara) Fonte: Acervo Laura Vinci.
Já na Serra da Capivara, o ambiente era mais neutro, a atmosfera era rica, por ser um parque nacional com formações geológicas impressionantes. O local escolhido para a montagem é ao pé de uma formação rochosa. Foi criado um palco retangular, em passarela, com a plateia em suas duas laterais maiores. A iluminação cênica acontecia a partir de postes posicionados no entorno desse palco.
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Na selva das cidades 2015 Texto Bertold Brecht Concepção e montagem Mundana Companhia de Teatro Direção Cibele Forjaz Colaboradores Marília Teixeira Flora Belotti Clarisse Delile Iluminação Alessandra Domingues Figurino Diogo Costa Joana Porto Locais São José do Rio Preto, Instituto Cultural Capobianco
Nas páginas anteriores Imagem 74 Na selva das cidades Fonte: Renato Mangolin
Resumo dos quadros retirado do programa do espetáculo, apresentado entre os dias 28.10.2015 e 01.11.2015, no Instituto Cultural Capobianco, em São Paulo. “QUADRO 01: Na manhã de 08 de agosto de 1912, o negociante de madeira malaio C. Shlink e seu bando invadem o sebo de livros e tentam comprar a opinião do funcionário George Garga. QUADRO 02: Fim de tarde, antes das 19hs, George Garga aceita a luta proposta por Shlink, que entrega ao adversário todo seu negócio de madeira. As primeiras ações de Garga são: parar a engrenagem do escritório de C. Shlink e vender duas vezes o mesmo carregamento de madeira. QUADRO 03: Depois das 19hs, George Garga visita a casa de sua família para anunciar que vai partir. Shlink se oferece para ocupar seu lugar e sustentar a família de Garga. QUADRO 04: Amanhecer. A irmã de George, Marie Garga – sozinha com Shlink em um quarto de hotel – declara seu amor pelo negociante malaio. QUADRO 05: Um mês depois, George Garga espera bêbado por Shlink, que passou a trabalhar carregando carvão para sustentar a família do adversário. QUADRO 06: Marie Garga e Shlink se embrenham na mata às margens do lago Michigan. QUADRO 07: Durante sua própria festa de casamento, George Garga recebe uma intimação judicial, trazida por Shlink, que o acusa de crime pela venda dupla da madeira no Quadro 2. Garga decide ir para a cadeia. QUADRO 08: À uma hora da tardem Shlink, que havia retomado seu negócio com a prisão de George Garga, recebe a informação de que seu adversário, prestes a ser solto, divulgou uma carta para a imprensa acusando-o de vários crimes sexuais.
QUADRO 09: Garga, ao sair da cadeia, reúne testemunhas para comprovarem a ruína de sua família, provocada por Shlink. QUADRO 10: Acampamento abandonado de operários da estrada de ferro, nas pedreiras junto ao lago Michigan. Em torno das 2h da madrugada. Após três semanas junto de George Garga, Shlink é encontrado e morto pelos linchadores. QUADRO 11: Oito dias depois, George Garga vende a madeira incendiada que pertenceu a Shlink e ruma para Nova York”. Projeto realizado durante nove meses do ano de 2015, Na Selva das Cidades parte do texto de Bertold Brecht para criar uma narrativa que intercala diversos tempos e espaços: Chicago, 1912; Berlim, 1927; São Paulo, 1969; e São Paulo atual. A Mundana Companhia reconhece esse momento de montagem apresentada em processo como “Em Obras”, ou seja, a cada espetáculo montado, o público verá um resultado. Uma apresentação que se entende como processo de pesquisa e ensaio para uma montagem final. É resultado de uma série de imersões pela cidade de São Paulo. A equipe criativa se dividiu em grupos, em um processo de criação, improviso e interpretação parecido com o desenvolvido em O Idiota. Inicialmente houve uma reunião entre Laura Vinci e as equipes de criação: direção, figurino, luz e dramaturgia, na qual a cenógrafa abriu um mapa da cidade de São Paulo e todos escolheram lugares de acordo com as relações que encontravam entre o espaço urbano e os quadros que constituíam a peça. A partir disso, uma série de ocupações foram pensadas nesses locais, privilegiando áreas de contraste econômico, social, urbano ou político. A diretora Cibele Forjaz explica:
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Abaixo Imagem 75 Na selva das cidades Foto: Renato Mangolin Ao lado Imagem 76 Na selva das cidades Foto: Yghor Boy
“Então a gente fez uma espécie de indicação de que áreas da cidade poderiam servir para cada quadro, mas depois cada grupo que ficou responsável por organizar e coordenar cada imersão, fez um estudo de campo naquele espaço indicado e escolheu primordialmente por relações humanas que estabeleceu ali no lugar, parceiros, associações, casas, lugares e pessoas que nos acolheram. Cada grupo fez um roteiro para cada uma das imersões, e naturalmente era um roteiro que tinha sempre o apoio da equipe de arte, que construía os diversos espaços, mas junto com a coordenação de cada imersão, ou seja, em colaboração” FORJAZ, Cibele. Entrevista concedida em 05.11.2015.
A montagem realizada no Instituto Cultural Capobianco, a qual tive a oportunidade de assistir, foi dividida em cinco partes. Nelas, a encenação aconteceu tanto no espaço interno do Instituto, quanto em seu entorno próximo: rua, vizinhos de frente e lado. A cenografia buscou não utilizar o palco do Instituto, assim, a ocupação
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parte do hall do edifício, onde a plateia é recebida pelos atores e conduzida até o porão do local. Ali uma série de praticáveis em diversas alturas dividem o espaço, funcionando como plateia para o público e assim constituindo dois núcleos principais de atuação.
Diversos são os usos que a Mundana Companhia de Teatro, em conjunto com a cenógrafa, atribuiu ao Instituto. O porão volta a ser utilizado na cena do duelo entre George Garga e C. Shlink, ali a cenografia se valeu novamente dos praticáveis, porém agora para formar um octógono, que delimita um ringue de batalha – assim
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Nesta página Imagens 78 -79 Na selva das cidades Fonte: Acervo Teatro Oficina
como acontecia na montagem de Na Selva das Cidades de 1969 pelo Teatro Oficina. Porém agora o ringue funciona como uma rinha de galo, os atores duelam em meio à palha, cercados pelos praticáveis, e a plateia os vê de cima, pois fica de pé.
Já o espaço ao lado do porão, que é a entrada de serviço do Instituto, abriga a casa de Garga após seu casamento, assim como antes de este vender todas suas posses e viajar a Nova Yorke no final do espetáculo. A rua, por sua vez, foi palco do casamento de George Garga e também como caminho para o bar à frente do Instituto, onde George retorna após ficar recluso em cárcere. O bar, sem dúvida é um quadro importante para a cenografia e para a montagem do espetáculo. É nele em que há uma mistura entre o plano real e o teatral, na medida em que atores se confundem com usuários do bar; o mesmo ocorre com a plateia, que se vê usando o bar durante o quadro. Portanto é uma ocupação que privilegia o ato de improviso por parte dos atores, que se utilizam das mesas, das cadeiras, da mesa de sinuca, dos banheiros, balcões, portas etc para a atuação. Sobre a importância de Laura Vinci para o espetáculo, Cibele Forjaz comenta:
“Então, o Na Selva das Cidades em Obras, leva ao paroxismo a ideia da ocupação espacial. Do fato de que é no confronto entre a obra que a gente faz e o espaço que vai ser ocupado, que se constitui esse novo espaço cênico, sempre sobre a direção da Laura. Acho que a direção das ocupações é com o olhar da Laura, o olhar e a escolha da Laura” FORJAZ, Cibele. Entrevista concedida em 05.11.2015. Neste espetáculo, talvez por ter sido visto no final da pesquisa e após conversa com Laura Vinci, certas influências da cenógrafa ficam em evidência. Pedaços de carne são pendurados e carregados pelos atores, referência ao trabalho de Kounelis, assim como a presença de diversos objetos pendurados em ganchos e mosquetões. Atualmente, o espetáculo está parado, a Mundana Companhia de Teatro havia conseguido fomento para realizar as ocupações, assim, como este processo se encerrou, agora estão buscando outros auxílios para montar sua versão final, ou mesmo remontar Em Obras.
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Entrevista: Laura Vinci
Fernando Passetti Seu primeiro cenário foi para Cacilda!, no Teatro Oficina. Você poderia contar como começou na cenografia? Laura Vinci O José Miguel [Wisnik], meu marido, trabalhou muito tempo com o Zé [Celso] no sentido de fazer músicas, nos anos 90, quando o Zé voltou, quando o Oficina ficou pronto. Minhas filhas, que eram menores de idade fizeram Bacantes, o Guilherme [Wisnik], que também é arquiteto, fez a cenografia. Na hora de Bacantes, o Zé Celso sempre queria que eu fosse e eu tinha uma certa resistência, e aí em Cacilda! ele me chamou para fazer e eu fui. Totalmente inexperiente, porque eu não sabia nada. Foi difícil, porque tinha Beth Coelho, fazia com a Daniela Thomaz e aqueles mega-cenários. Mas deu certo porque o Zé foi muito generoso, ele é uma pessoa que você trabalha muito junto. Não tem essa coisa de fazer uma cenografia para [ele], até porque o Teatro Oficina já é uma cenografia e é uma arquitetura. Você não tem muito o que pôr ali. Inclusive eu acho feio quando põe, acho que estraga. Não tem muito o que fazer ali, então nesse sentido foi um bom começo. Eu fiz coisas que até hoje estão lá: o palquinho onde tem o piano, onde fica a banda, foi em Cacilda!, porque era inclinado, então você não tinha um plano reto para pôr um piano, para pôr uma bateria, para fazer qualquer coisa. Nesse sentido, na verdade ali era o camarim de Cacilda! então a gente fez aquele plano que até hoje está lá. E a escada na beira do janelão está lá até hoje, acho que está lá. Acho que eles até duplicaram, fizeram uma em cima. Ficou, porque não era uma cenografia, eram estruturas arquitetônicas. Então, na verdade, eu aprendi a fazer teatro lá, foi uma grande escola, porque é um teatro que não é teatro de coxia, não 90
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é teatro italiano, é uma passarela. Então, a minha escola foi ali. Aprendi diretamente com ele [Zé Celso], porque ele trabalha muito na ação, trabalha ensaiando e fazendo, quer dizer, construindo a cena fazendo. Não é que faz em um lugar e depois transfere, ele tem um teatro, então já vai fazendo construindo, o espaço está ali. Então acho que essa influência ficou para mim. Jamais eu faço um cenário em que trabalho em casa e levo para algum lugar, não existe isso. Eu acompanho ensaio, eu fico junto, eu faço cena. Em O Duelo, por exemplo, tem uma cena de tempestade, que é um exercício de workshop, eu fiz ali, pus os atores para mexerem a vela, então é uma cenografia ativa, porque o ator pega, está muito conectada à ação do ator. FP E essa é uma constante na sua obra, não é? LV Sim. FP Em O Idiota, por exemplo, tem mudanças de cenário que interferem completamente no diagrama da peça. LV É, ali deu trabalho. No sentido da logística, mas funcionou muito bem. A mudança de lugares tinha um fluxo bonito, não era ruidoso, convidava. O Idiota teve um processo muito bonito, porque tinha a dramaturgia do texto, porque é um romance, então eles chamaram o Vadin Nikitin, que é um russo, para fazer essa dramaturgia. A gente ganhou fomento, então, quando chegou a hora de fazer, tinha que fazer dez ensaios abertos e cadê a dramaturgia? Não tinha. Não estava pronta. Mas ele fez uma coisa genial, ele separou o livro em doze capítulos e extraiu do livro as situações mais importantes para depois virar uma dramaturgia. Então, na verdade, a gente fez uma
dramaturgia em ação. Porque ele separou as ações em situações principais, que a gente chamava de envelopes, aí parte recebia esse envelope dois dias antes, então a gente sabia da situação [dramática], a gente inventava uma situação física, os atores chegavam no dia onde estava essa situação física, liam o envelope na hora, tinham lá um certo comando e aí entravam em cena. Então, era no improviso. O Vadin não conseguiu terminar a dramaturgia, então o Aury [Porto], a Cibele [Forjaz] e mais alguém é que a resolveram. Tinham elementos dessa experiência anterior, a forma acabou virando texto. E, na hora que a gente foi encenar, o que era forma não podia estar lá, porque estava no texto. Foi interessante. Tinha uma cena que eu pus passarinhos, porque o texto falava de crianças, ele [o personagem] contava histórias para crianças, e eu interpretei as crianças como passarinhos, então eu levei um monte de passarinhos que ficavam ali e na hora da dramaturgia, as crianças, como passarinhos, faziam a cena, então não fazia mais sentido colocar os passarinhos no espetáculo, porque ficava muito literal. Então foi um processo muito interessante como um dispositivo de fazer a peça toda, e isso foi fundamental lá no início. Esse start de como fazer foi o que deu, talvez, a qualidade dele [espetáculo]. Mesmo a forma de fazer, a prontidão que o ator tinha que ter frente à situação física. Não era aquilo de ensaiar, ensaiar, ensaiar, depois entrar no espaço físico, esse espaço está criado junto. E isso faz muita diferença, e acho que acabou ficando a minha característica também. Porque é uma cenografia que está dentro da cena, não está fora da cena. Por isso que ela é muito simples, não tem grandes coisas, são os elementos que são... Eu me lembro no Aniversário da Nastássia, n’O Idiota, tem pouquíssimos elementos, tem uma lareira e um livro e toda uma citação física que é ativa, que o público que faz. Tinha o mínimo possível, e isso é bom, para tudo é bom. Para os atores, porque não fica aquele monte de coisas. N’O Duelo também tem isso de poucos elementos.
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FP No Só você fez o chão de mármore, antes do chão que você fez na galeria em Boa Praça. Como foi essa transferência de um elemento da cenografia para as artes plásticas? LV É que aí você faz coisa errada. Por exemplo, eu sou muito inexperiente. Agora eu não sou mais inexperiente mas tem um outro procedimento ao pensar uma cenografia. Um chão de mármore para uma cenografia é uma burrice, porque para viajar é um problema, porque tem um peso grande, uma dificuldade, acho até que eu emperrei um pouco a vida da peça por causa desse cenário. Então você vai vendo que tem coisas que funcionam no teatro e coisas que não. Então ele virou uma instalação, mas que também é um problema, está no meu ateliê. Eu já montei três vezes, fiz na Bahia... É engraçado porque nas artes visuais carregar peso é uma coisa mais tranquila. É que teatro, além da cenografia, tem a música, tem a roupa, uma série de equipes trabalhando, então aumenta muito. Mas eu comecei a perceber isso, que tem situações que... Por exemplo, tem um trabalho que eu estou tentando fazer faz tempo, que é uma coisa dos papéis voando, que agora eu consegui realizar [nas artes visuais na Ocupação Matarazzo, realizada em São Paulo, em 2014.], mas eu realizei primeiro no teatro, que é essa cena da tempestade. Porque tem uma ação do ator que ele vai com o ventilador e fica assoprando os papeis, que voam. Que agora teve na Ocupação Matarazzo. Mas eu queria antes fazer um trabalho que o papel ficasse voando sozinho, mas é muito complexo. No teatro dá certo porque tem a ação do ator que ajuda, e dura pouco, e depois eu assumi o fiozinho [que segura os papeis] e pronto. Então você fica passeando de uma coisa para a outra. Um bebe do outro. E isso para mim é muito legal, porque, na verdade, se a gente pensar bem, meus
espaços são muito arquitetônicos, eles são situações espaciais e, se você for pensar, cenografia é isso também, você fica inventando espacialidades. Então tem muita relação, não são coisas opostas, o trabalho de cenografia e artes visuais. FP Sim, mas existem diferentes jeitos de se lidar com a coisa. Você, na maioria das vezes, trabalha a cenografia no plano do ator, no horizontal. LV No chão. É verdade, eu nunca fiz coisa aérea. Agora talvez tenha. Bom, primeiro que eu tenho um sistema que, eu brinco, são gambiarras, porque, primeiro, eu não conheço muita traquitana, depois, porque geralmente são teatros que não têm coxias, você não pode esconder nada, então todo o sistema tem que aparecer. Talvez nesse [Na Selva das Cidades] tenha essa coisa do sistema aparecer um pouco, talvez tenha muita coisa aérea, que vai descer e subir. No Cacilda! mesmo, aparecia tudo, ficava tudo penduradinho lá e descia. Eu acho que tem o plano do ator, porque é feito COM e PARA o ator, junto, então não precisa de um negócio não sei aonde, que não tem conexão. É uma cenografia mais simples, ela tem um sentido – tecnicamente falando - de uma singeleza. FP Tecnicamente falando, talvez, mas... LV Sim, tem uma poética, claro. Mas, por exemplo, falando do Serroni, é outro mundo. É outra concepção de teatro. Ele é um cara incrível, que tem uma técnica incrível, eu não sei fazer essas coisas, mas porque, justamente, tenho outra forma de pensar e fazer o teatro, de fazer a cenografia.
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FP Uma coisa que me chamou muito a atenção, que aparece em cena e em suas obras nas artes plásticas, são as transformações que acontecem, seja do espaço, como em O Idiota, em que você tinha os pallets, que saem e aparece a água, ou o carrinho que vem carregando as pessoas, e isso se reflete em A Máquina do Mundo, que tem a máquina que traz a areia. É uma coisa que está muito presente na sua obra a questão da transformação da matéria e do espaço. LV É, acho que isso é um desejo de fazer uma analogia com a gente, com a nossa experiência humana, quer dizer, nós somos seres transitórios, estamos em constante transformação. É muito um desejo de aproximar a uma experiência humana, no sentido que somos transformados e transformamos, estamos sempre neste processo. A Máquina do Mundo, por exemplo, é um comentário da própria história da escultura, e isso tem a ver com a gente também, no sentido de que ela está ali passando aquele grãozinho de pó de mármore, como se todas as esculturas do mundo estivessem ali, quer dizer, em algum momento serão, ou virarão escultura. Se a gente pensar que o mármore é um material da permanência, pelo menos era na escultura clássica... Engraçado, eu nunca tinha feito essa relação do carrinho do Idiota, com a Máquina do Mundo, é muito bom. FP É que... LV Eu entendi. Essa transição, de transformação. E aí o teatro tem essa coisa que ele é vivo, ele é presencial. Eu tenho pensado que acho que vai aparecer um homem nas minhas instalações, vai aparecer uma ação humana ali. Alguém vai entrar ali. Eu tenho até uma coisa já pensada mas é difícil, porque tem que ver bem como entra.
FP Mas uma coisa premeditada ou que dê abertura para isso? LV Sim, premeditada. Para fazer esse cruzamento, não só do ponto de vista do espaço, mas do ponto de vista do humano. Mas, na verdade, acho que as instalações nos colocam, nós somos os agentes delas, os atores delas. FP Sim, elas existem enquanto você está lá. LV É, exatamente, quando você experimenta ela. Se você não está, ela não existe. FP Ela está num livro. LV É, nós somos os agentes. Mas eu estou querendo pensar. Estou pensando nessa coisa de ter um agente mais estranho ali. Vamos ver. No Só, por exemplo, tinha a água, sabe. Era bonito isso, porque dava um susto. Você estava vendo e de repente tinha uma água que enchia um tanto do buraco, que sobrepunha um acontecimento fora da narrativa, tem um acontecimento estranho ali. A peça não tinha nada a ver com água, mas... FP Mas a presença dela ali muda tudo. LV É. De ter um fator outro, o vento, a água. De ter um fator que é natural, que é da natureza, que entra como que uma latência estranha. Também para lembrar a gente que a gente é parte disso.
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FP No sentido da união de sua obra artística com a parte cenográfica, uma coisa que eu estava pensando é a questão da areia, que você usa em O Idiota como aquela toalha de pó e que os atores, em cima daquilo e no decorrer da peça, os atores transformam aquele espaço. E há essa relação de transformação através da areia que você usa, seja, por exemplo, na ampulheta. Não sei muito o que você queria direito com aquela cena, mas tem muito essa questão da transformação, seja pelo ato do ator, ou pela gravidade. LV É uma constante mesmo. Na peça tinha uma razão dramatúrgica interessante, no sentido de que era uma cena real, em que o personagem estava contando uma história fictícia. Ele estava num chá com uma madame, ele numa ponta e ela na outra, como se estivessem tomando um chá da tarde, e aí ele vai contar uma história pra ela. Então, o grupo de atores entra e atravessa a mesa, que era real, mas aí o fato de eles fazerem a ação dentro da mesa faz com que a desmanchem. Então é um espaço fictício que se desmancha, ele é uma história que não existe. Então ali tinha essa coisa de que a história desmanchava a realidade. Ficou bonito ali, porque tinha essa delicadeza da ficção numa dupla realidade: que é a realidade da história, que não é real, e a nossa. Então tinha essa coisa de três tempos: nosso real assistindo aquilo, os atores fazendo, que era uma ficção, e o que de fato era a ficção. Tem bem essa ideia do tempo aí. Eu lembro que no Arte/Cidade III era uma obra sem título, hoje em dia minhas obras têm título, mas naquela época eu ainda não tinha repertório para dar título, e aí ela ficou com o apelido de Ampulheta, então claro que essa questão do tempo, do relógio de areia, está marcada. Só que isso foi se transformando, a maneira que eu fui usando essa ideia da transformação foi pra vários lugares.
Desdobrou em muita coisa depois desse trabalho. Desde o vapor, ao gelo, o pó, a maçã. Tudo isso tem relação com essa ideia da transformação, e está ligado à ideia do tempo no sentido de que nós somos transitórios também, para refletir a permanência e a não-permanência. FP Você falou que seu trabalho na cenografia é muito o fazer junto com todo mundo. Então, pensando assim, você não tem um trabalho de prancheta. De desenhar. LV Não. FP É muito na hora que acontece. LV É, na hora. FP Mas você leva elementos? Vai com o carro cheio de coisas para o ensaio? LV É, bem isso. Metade do meu ateliê está lá na Companhia Livre. E vai fazendo isso. FP “Ah, e se a gente fizesse isso?”, e aí propõe? LV É, bem isso. E eu estou ficando boa. Outro dia a gente fez uma cena que... Uau! Então monta na hora, pendura na hora, eu gosto disso, porque é fácil desmontar e tirar, é leve. Tem uma agilidade que eu gosto. Quando é estrutura - no Duelo tinha estrutura -, aí sim, aí tem planta, aí tem projeto, aí tem que ver engenheiro, peso...
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As arquibancadas a gente fez, fez um teatrinho que viajou pelo Brasil. Então a prancheta é aí, mas eu desenho muito pouco. Para as minhas coisas eu desenho muito pouco. Eu desenho numa cadernetinha pequenininha. Eu projeto muito pouco, nem desenho bem. É meio tosco. Mas computador hoje ajuda muito para construção espacial. Para objeto não faz sentido. FP Bom, até pelo que você faz normalmente. LV Tem muita coisa, no livro até tem, mas é a estrutura, é o processo, a montagem. FP Mas tem aquele trabalho no Centro Cultural Banco do Brasil, dos tubinhos de cobre. É impossível desenhar aquilo, é muito do fazer na hora, não é? LV É, aquilo é muito do fazer na hora. Mas agora eu tenho um rapaz chamado Danilo [Zamboni], da FAU. Ele desenha bem. Tem uma sensibilidade que você fala e ele consegue fazer direitinho, eu faço feio e ele faz bonito. Tem sido boa essa parceria, porque os projetos ficam lindos. Ele tem uma sensibilidade de captar o que você tá falando. É muito legal. FP Como você vê o processo de criação de cenário, a relação com direção e as demandas que o texto propõe? LV Eu estou muito em crise com essa estrutura do diretor que é o concebedor, que é o cara que manda e você é um mero empregado. Pelo amor de deus... é horrível essa situação, eu acho uma estrutura completamente ultrapassada. Como você trata os atores e toda a equipe como um simples... não tem uma troca criativa.
FP O engraçado é que é quase um retrocesso. Existiam muitos grupos de teatro que eram praticamente horizontais. Não faz sentido voltar nessa coisa do “mestre” diretor. LV Eu acho um negócio que me dá ganas. Eu tenho vontade de matar o diretor. Mas sabe, o Zé Celso é um homem que é diferente, que tem muita personalidade, quer dizer, é um homem de uma extrema inteligência. Ele provoca você a ser um agente criativo dentro daquela estrutura. Ele não é um cara que o que ele faz, todo mundo faz junto. É a maneira dele trabalhar. Então isso faz dele um cara que é uma cabeça que pensa, mas que divide com todos as ações e potências criativas. Todo mundo é dono daquilo, é um agente criativo. Esse negócio de suprir demanda é um sofrimento, você fala “eu não quero fazer isso, eu não concordo” e tem que fazer. Eu tive uma coisa com o Teatro da Vertigem, que eles me chamaram pra fazer só a direção de arte das duas últimas remontagens da “Passagem” [espetáculo A Última Palavra é a Penúltima 2.0]. Eles me chamaram e era uma direção de arte, a cenografia já estava definida, era arrumar o que tinha. Eu mantive o que era, a concepção da peça já estava dada. Uma coisa que eu gosto muito de fazer é extrair do ator... por exemplo, eles trabalham também com sistema de workshop. Vai lá, o ator faz, improvisa uma coisa, inventa uma ação, se apropria de um objeto... então o que eu faço é olhar aquilo e daquilo eu vou lá e arrumo. Então o Roberto [Audio, ator do Teatro da Vertigem] fez uma coisa maravilhosa. Ele pegou umas lâmpadas de neon da rua e entrou como umas espadas de samurai, e é lindo. Aí eu e arrumei. Eu e a Marilia [Teixeira] compramos as lâmpadas – e parece um trabalho de luz, mas ele que propôs. E a gente viabilizou para ele fazer, ficou lindo. Nesse sentido que eu trabalho, eu levei areia, pó de mármore, e um dos atores pegou um balde e jogou pó de mármore na pista toda, depois pegou um cone de rua e fez como um cheirador, e cheirou, e uma atriz vinha varrendo. Foi linda a cena. Depois de uma linda que o 100
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2 Antonio Araújo, diretor do Teatro da Vertigem, de São Paulo
Beto joga o pó na cabeça. Você vê que tem uma potência muito grande ali, é um teatro potente. Mas chega uma altura que o Tó2 queria porque queria uns manequins, porque tinha uma ação que as atrizes estavam dentro de um saco de lixo, mas, por uma questão de ir e vir, de não poder estar na cena porque estava em outra, tinha os manequins dentro do saco. Ele me pediu para ele fingir que era gente. E eu não consigo fazer isso: ou é manequim dentro do saco ou é gente dentro do saco. Eu não consegui fazer. Eu não sei fazer isso. FP Com o Zé Celso você fez algumas coisas para Os Sertões também, não? LV Sim, isso recentemente eu recuperei. Consegui digitalizar os vídeos. O que eu fiz com o Zé foi a preparação de Os Sertões. A gente ficou dois anos. A gente leu o livro inteiro juntos, foi lindo. Eu levantei só A Terra. A gente fez um espetáculo para o Zé de aniversário, só o imagético da Terra. Foi bonito. Tinham umas nuvens, tinha uma coisa que uns homens seguravam uns tubos furadinhos cheios de areia, e passavam a pista inteira chovendo essa areia. FP Já no Cacilda!, tem um plástico que cruza de fora-afora o espaço do Oficina, com sangue. LV Essa cena é linda. Porque a Cacilda teve um aneurisma em cena, então era hora da cirurgia, aquela urgência. Eles estavam no mezanino oposto à técnica e a gente montou uma maca ali, e tinha uma furadeira que fazia um barulhão e o Zé falou “precisa de sangue, precisa de sangue nessa cena” “pega aquela mangueira de água vermelha, vamos jogar aqui”, e eu disse “precisa de sangue, vamos pôr sangue”, e ele “vai sujar tudo, vai sujar o figurino” e a Elisete [Jeremias], que era a diretora de palco, falou que tinha o plástico transparente, que depois a gente limpava.
Então a primeira vez foi assim, jogou um balde de sangue de lá, para baixo. Daí que nasceu a veia. E isso a gente fez fazendo, todo mundo. A autoria é complexa, porque nesse negócio de trabalho coletivo, você tem que ter desprendimento. Você não pode dizer que o trabalho é seu, tem que aceitar que o outro diga que é dele também. Agora, eu e a Joana [Porto], que fez o figurino de O Idiota, que é uma pessoa extraordinária, ela e o Diogo [Costa], que fez o figurino de O Duelo, são duas pessoas com quem eu tenho uma... eu e a Marilia, que é minha assistente, a gente tem uma... a gente trabalha bem criativamente, a gente se antena. Você joga a bola e já vem duas, é lindo. Para o Na Selva das Cidades, a gente fez uma coisa que é muito bonita que é um terno cheio de areia, ainda estamos testando, não está pronto. Vai dizer que é da Jo? É da Jo porque é terno, é roupa, mas tem a minha areia ali. Se ela quiser usar como dela ela pode, e eu também. Nunca conversei isso com ela, mas é nosso. FP É que é um tipo de trabalho que é ligado a um tipo de teatro, de ser essa mistura das equipes. LV É verdade, isso produz outras coisas. E isso é uma coisa ruim do diretor centralizador, porque ele separa as equipes. FP Completamente, e acaba separando o espetáculo, ficam frentes criativas que não se conversam. LV Exatamente isso, porque se você não tem essa conexão, eu acho que na criação isso já aparece, é óbvio que lá no resultado ele vai aparecer separado. Eu vi uma coisa bonita da Amora Mautner, que é de televisão, e ela tem essa coisa de fazer todo mundo junto. Vale a pena ver ela falando, é bonito, porque ela está falando da televisão, que é um mundo completamente outro. Me identifiquei com ela. 102
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FP Você está em crise com esse sistema então? LV Eu tive uma situação bem traumática que foi Pais e Filhos, e eu jurei para mim mesma que eu nunca mais estaria numa situação dessas. O diretor vem com a peça que ele quer fazer, da cabeça dele, então ele não olha e não aproveita a capacidade do outro e, às vezes, a originalidade de pensamento do outro, e isso pode acrescentar. Então foi um parto para fazer, era a Mundana e a gente tinha acabado de sair de O Idiota... E isso eu aprendi: essa coisa de com diretor não se pode falar. Como eu era a mais velha, eu virei uma espécie de comunicador entre as partes, uma situação ridícula que eram quinze pessoas e ninguém senta lá. A Cibele estava na luz, fez uma luz linda. Ele fez ela desmanchar a luz inteira, cena por cena, para fazer a luz que ele queria. Burrice. Foi uma pena aquilo, uma experiência horrorosa. Uma pessoa pensando ou dez pessoas pensando, claro que o de dez fica melhor, são dez pontos de vista que estão se juntando para fazer uma coisa. Eu acho que o teatro é uma frente para mudar o mundo e aí tem um sistema que é completamente autoritário, não faz sentido. No Na Selva das Cidades a gente está conversando muito isso, porque a Cibele acabou ficando uma pessoa mais centralizadora, e a gente está sofrendo porque quer que ela olhe à volta dela, que olhe todo mundo. Se você não olha, você perde uma oportunidade que é única. E a gente estava pensando que o diretor, que é uma figura do século XX, do teatro moderno, agora ele deixou de fazer sentido. Antes tinha a figura do ensaiador e era tudo mais coletivo, não era ele que criava ou concebia o espetáculo, era mais coletivo. Depois que veio esse teatro mais autoral. Então estamos pensando como seria esse diretor, precisa ter um. É ele que olha, ele que faz com que o ator venha no lugar que ele quer, mas ele não precisa ser esse centralizador, a concepção pode ser coletiva e a coordenação, do diretor. Você não tira a figura, alivia para ele. Eu sou do trabalho horizontal.
FP Outra coisa que eu gostaria de perguntar para você é sobre suas referências. Quem são as pessoas que você usa de referência para suas cenografias? LV Para mim, minha referência para a vida, a maior artista do século XX é a Pina Bausch. O cenógrafo dela é magnífico, os dois têm essa coisa de fazer junto. É tudo muito bonito. Como estou virando uma pessoa mais fortemente de teatro, eu preciso ainda aprender muito, eu não tenho repertório, não conheço cenógrafos. FP Não necessariamente quem são os cenógrafos da sua vida, pergunto mais o que você traz para suas cenografias. A Pina tem tudo a ver com o que faz. LV A Pina é uma coisa que sempre que eu vejo, falo “que coisa incrível”. Tem uma coisa de afinidade mesmo, profunda. Ela é uma super artista. Quem eu acho muito bom é aquele rapaz chinês que fez o filme As Aventuras de Pi. Eu vi um espetáculo dele aqui de dança que tinha um cenário muito bonito, um cenário de papel, lindo. Esse é um cara que eu preciso olhar mais. Depois eu tenho visto muito os artistas que fazem cenografia, como o [Anselm] Kiefer, que tem feito óperas, o Anish Kapoor, o Kounellis. Tenho paixão por ele, porque ele é um cara muito radical. Ele foi o primeiro cara que fez uma estrebaria em uma galeria, encheu de cavalos. Depois, ele tem uma coisa de pendurar carne, é um cara muito interessante. Eu vi que ele tem uma série de cenografias. Tenho visto mais esse tipo de artista que faz cenografia. Mas a Pina, quando tem uma coisa que eu preciso fazer, que bate aquele desespero, que precisa resolver e você não sabe como, você consulta ela e pronto. É incrível. Neste processo de
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agora [do Na Selva das Cidades] também tinha um pouco desse dispositivo de O Idiota, que a gente se dividiu em doze grupos e cada grupo organizava a imersão, toda a parte prática, de produção e conceitual. Resolvia tudo, o que fazer no espaço, etc. E o figurino e a arte estavam em todos os grupos, então a gente tinha que resolver soluções. Então tinha uma festa de casamento num salão de festas lá no CDHU, tudo de porcelanato branco, um lugar que você pensa “o que eu faço aqui?”, e aí veio a Pina e a gente fez uma coisa linda. A festa de casamento tinha uma relação com texto que fala de ser uma festa meio velório, uma das personagens está desaparecida e se prostituiu, tem uma carga pesada. E a gente fez uma coisa bonita de pendurar flores secas, porque casamento tem essa coisa de ter flor, então ficou um clima bem fechado, flores secas e escuras. Eu vi a Pina e mandei para o Diogo e isso ajudou a gente a solucionar. Ela é uma inspiração mesmo. FP Sim, e é sempre tudo muito limpo para ela. As coisas são o que são. A terra, a água. LV Sim, sempre tem conexão com a ação, não tem um negócio lá parado. Se tem uma porta é porque alguém vai entrar, algo acontecerá ali. Está sempre ligado à ação da dança. Do Anish Kapoor eu vi uma ópera que tinha aquelas estruturas de lona vinílica, como ele fez na TATE. Era isso na boca do palco. Ele está pondo o trabalho dele como uma instalação, aí o contexto é outro, se é uma ópera ou não está ligado ao que vai ser feito lá, a partir do trabalho dele, é diferente de mim. Já o Kiefer eu achei muito bonito, eram dois andares e tinha umas pedras, era muito bom. Tem arquitetos bons também, era um arquiteto que fez uma ópera em que tinha uma laje demolida, era espetacular, uma demolição e os atores naquilo, era bonito.
FP É engraçado, porque, tirando a Pina, todos os que você comentou são cenários construídos e os seus não. LV Mas não são construções cenográficas, são estruturas estranhas. Uma é uma arquitetura num teatro, uma demolição. Traz um significado diferente, não está querendo montar aquele mundo, traz uma coisa que está fora daquele mundo. O Anish Kapoor é isso, ele está fora do contexto ali. Uma demolição também. Uma coisa de contraste que trazia estranhamento. O Kounellis também, ele faz umas coisas estranhas. O Kiefer também era ruína. FP É uma coisa de a cenografia instigar o observador. Quem está vendo está fazendo. LV Sim, isso é o principal, porque, pra quem está fazendo, ter essa provocação da cenografia é bom. Ela vira um dispositivo para ativar a ação do ator, isso é legal.
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Entrevista: Cibele Forjaz
Fernando Passetti Eu queria que você falasse um pouco como é o processo de criação de cenografia junto com a Laura Vinci. De quando vocês começaram, depois em O Idiota, e agora no Na Selva das Cidades. Cibele Forjaz Eu conheci a Laura, pela primeira vez, em Cacilda!, que a gente fez no Oficina. Eu trabalhei no Oficina por dez anos e a Laura foi fazer Cacilda!, e depois na pesquisa de Os Sertões ela fez A Terra. Eu acho que de Cacilda!, que faz bastante tempo, eu lembro primeiro que o Oficina sempre teve muita informação, e à luz, cabia separar os planos, e tentar organizar os vários planos de leitura e a Laura chegou com um trabalho muito diferente e eu lembro que eram poucos elementos fundamentais, então isso foi surpreendente, ela fez uma espécie de limpeza no excesso do Oficina, trabalhando com alguns elementos fundamentais. Tinha uma questão do palco italiano, que ela construiu um palco quadrado, muito parecido com as coisas da Lina, com rodas. Tinha um palco onde era o camarim, e um palco com rodas quadrado, que não tinha nada, que ficava numa posição pouco utilizada, porque inclusive tem questões de visibilidade ali. E ela construiu ali aquelas duas plataformas de madeira, em degrau, resolvendo a questão do terreno que era um declive bem acentuado e colocou ali o camarim da Cacilda. E o palco, que era um palco móvel, também de madeira naval, grossa, e também próximo da pista, que era de madeira naval na época, e o quadrado do palco ficava encravado dentro desse palco estrutural. Era muito simples, mas ele era elevado e encaixava. Então isso dava uma limpeza, um relevo e um foco para o pequeno palco e o camarim como coisas complementares, que estavam um encaixado no outro, ou seja, tanto a vida de cena, quanto a vida da 108
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Cacilda do camarim eram interligadas. Então isso era muito sintético e, ao mesmo tempo, baseado nessas formas fundamentais. Ela também pendurou uma pedra... FP Sim, o Anjo de Pedra. CF Sim, muito pesada, que ao mesmo tempo parecia extremamente leve, então tinha esse contraste entre o peso da pedra pendurada que parecia extremamente leve e isso estava num lugar extremamente simbólico que é o Anjo de Pedra, que é a estátua central da peça do Tenesse [Willians]. E também [a Laura Vinci] gravou “Heternidade” na fonte, o que está lá até hoje, eternidade com “H”. FP Você iluminou o Cacilda!? CF Sim, Cacilda! eu iluminei. Pra mim foi incrível, porque tinha uma coisa da música do José Miguel [Wisnik], de um templo de Apolo erguido a Dionísio e eu sempre acho fundamental no Oficina essa organização dos significados, que são muitos e, se todos se embaralham, tudo fica um pouco sem forma e sem significado, apesar de ter muito significado. Então a Laura organizou a visualidade. FP Então ela fez mais do que uma cenografia ali, fez uma direção de arte? CF É, uma direção de arte que parece que ela chega como quem não quer nada e transforma todo o espaço a partir da simplicidade, e não do excesso de informação. Precisa, fundamental. Só o que é sintético. E é exatamente o oposto do que vinha acontecendo com as cenografias, porque o Zé [Celso] é muito barroco, ele vai pedindo
muitas coisas, então, se as pessoas se assustam e ficam querendo só responder ao Zé e não realmente contracenar com o Zé, com as suas características, elas acabam também cedendo a um excesso. Como meu trabalho era muito de organizar... A luz articula tempo e espaço. Então, a luz tinha um papel de articular os múltiplos espaços do teatro e os múltiplos planos de significação do texto. Principalmente no caso de Cacilda!, você tem muitos planos históricos, inclusive. A biografia de Cacilda, as peças que Cacilda fez, a luz de cada peça... O Zé vai destrinchando as personagens que são ao mesmo tempo as personagens das peças e da vida da Cacilda, então tudo ganha a cada pedaço de Cacilda, uma estética ligada ao que ela está fazendo. Isso, por sua vez, contrasta com uma história, com uma visão do Zé do teatro nacional e também com uma contraposição importante entre o que era o T.B.C. e o Oficina e também uma relação muito contraditória de admiração e combate com o próprio T.B.C. que ela representa. Então, o tempo todo você vê em cena a história da Cacilda justaposta à história da vida do Zé, e as peças que a Cacilda fez justapostas às peças que o Oficina fez, então o que está ali posto é o Zé falando dele através da Cacilda, o que é muita informação. Então, à luz cabia exatamente separar o que era principal, o que era comentário, o que era outro tempo justaposto... então trabalhar com a Laura foi incrível, porque ela deixava em toda a parte visual-material – uma direção de arte mesmo -, tudo muito fundamental, ela tirou o excesso, uma quantidade imensa de coisas, então tinha, por exemplo, onde vinha o sangue... Ela sempre trabalhava com a matéria original, às vezes orgânica, às vezes industrial, transformada em outra coisa, mas com poucos elementos fundamentais e precisos. Isso, junto com uma luz que também tentava organizar, deu à peça uma comunicação mais imediata e contundente. Naquele momento eu fui assistente de direção do Zé, e também iluminadora. Na Terra, tanto eu, quanto ela, foi um momento de muita pesquisa, mas eu só fiz a Terra e acho que ela também. Então eu acho que tinha uma
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pesquisa... que a gente fez a partir de oficinas, e a gente tinha equipes de criação e dirigia essas equipes, então não era eu sozinha ou ela sozinha. A gente começou a dar um curso, e esse curso foi gerando uma equipe de criação, e eu lembro da precisão da equipe dela: uma cena que eles vinham com metal quente e faziam, ao vivo, uma forma, tinha uma fôrma e esse metal moldava em cena, tinha uma busca também das matérias primordiais que poderiam ser enformadas. Depois, quando eu fui ler sobre a Bauhaus, principalmente sobre o conceito de Gestalten, e estruturação, ou enformar, ficou muito clara a relação disso com o trabalho que eu já tinha visto da Laura, essa estruturação da realidade. Fica o que é estrutural. Gestalten: dar forma, ou Gestaltun: estruturar. Então eu sempre achei, olhando para o trabalho dela no Oficina, que ela - por trabalhar com elementos fundamentais, com uma simplicidade incrível, mas uma simplicidade complexa - dava um sentido de fundamentação a toda a visualidade e que essa limpeza estruturava a peça. Criava uma estrutura sobre a qual o texto podia se comunicar de uma forma muito mais precisa do que no meio de um excesso de elementos muitas vezes literais que o Zé vai pedindo. Às vezes fica um excesso de informação que diz a mesma coisa, que diminui a potencialidade do texto. FP Isso é uma coisa que aparece muito na obra da Laura Vinci, tanto na cenografia quanto nas artes visuais, de trazer a matéria como o elemento primordial para o espaço, gerando um novo espaço. CF Sim, em O Idiota, que foi um trabalho de muito tempo, em que grande parte de nossa energia foi voltada para a adaptação do texto... Porque é um romance de 740 ou 640 páginas, não me lembro mais, então o processo de adaptação não foi simples, ele demorou muito. Mas a gente partiu de um trabalho que, acho, depois virou estrutural para os processos de criação, virou uma metodologia mesmo para os processos de criação da
Mundana [Companhia de Teatro]. É que, primeiro, a gente não tinha os atores, mas já tinha a equipe de criação inteira: a Alessandra Domingues na luz; a Joana Porto no figurino e a Laura na cenografia. Nossos primeiros improvisos sobre o roteiro a gente fez em dez dias na Casa Livre. O Vadim, que era o dramaturgo, mandava muitas indicações, mas ele mandava essas indicações primeiro para a equipe de criação e os atores, e quando eles chegavam no espaço, já tinha uma ocupação cenográfica, que já era uma síntese realizada de uma forma muito rápida pela Laura, Alessandra e a Joana, também o Otávio na música. A gente recebia um envelope, o envelope chegava às quatro da tarde, a gente abria esse envelope, lia, fazia um roteiro e improvisava nesse espaço, sobre o roteiro. E isso também foi estrutural para o trabalho de adaptação do texto. Ao contrário de um trabalho em que parece que tanto o texto quanto o trabalho dos autores geram a visualidade, tudo foi ao contrário. Partia de uma visualidade que, por sua vez, já tentava apreender um ponto fundamental daquele capítulo, que naquela época a gente chamava de umbral, ou os lugares, os lócus. Tanto que as adaptações, os capítulos, foram feitos muito a partir do espaço onde as cenas aconteciam, e isso estruturou um trabalho de adaptação do texto e o trabalho de atuação. E muito do que se fez depois já estava ali em potência. Algumas coisas até bem próximas do que foram, outras não. Então o uso do pó de mármore que deu a mesa-toalha no chão já estava ali; também tem uma cena das toalhas, a cena 07, que tinha muitas toalhas bordadas com a renda permitindo que se visse através; a casa do pai, que era a casa do general, a gente fez num quartinho muito pequeno porque era um espaço muito pequeno, com muita informação, e ela fez uma espécie de labirinto de caixas de papelão que davam para um espaço muito pequenininho e a plateia via também pelos buracos nas fendas dessas caixas, então o tempo todo tinha um jogo de criar planos de visualidade diversos que serviam tanto para uma mediação entre o olho da plateia e a cena, vista através da renda, através dos buracos, e também convidavam uma participação muito concreta
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da plateia e com um ponto de vista muito determinado, que se desenvolveu no trem, que era uma encruzilhada. E essa encruzilhada era a encruzilhada onde acontecia a peça e ao mesmo tempo era o trem, a partir dos movimentos dos atores, o trem onde tem o encontro das personagens principais. Dali a gente ia para a cena 02, que era a casa da mãe, a casa da “generala”, que tinha a toalha, com algumas frestas - a gente começou a chamar de fendas ou frestas, mudanças muito grandes de linguagem. Então quando você partia de alguma coisa que estava acontecendo para as visões subjetivas do autor - as histórias que eram contadas, os ataques do príncipe Michkin, tudo aquilo que no texto era a voz do autor -, a gente criava fendas no dramático, para contar a partir do lírico ou do épico, e isso era feito bastante, tanto com uma outra ocupação espacial, como pela luz. Porque a luz era quase sempre mais real, branca, e nas fendas a luz ficava muito colorida e a ocupação espacial ficava outra. Então, Michkin e Ragojan se encontravam no trem e aí a plateia toda dava uma volta imensa no Galpão [do SESC-Pompeia] e entrava pelo outro lado, pelo portão, para chegar à casa da mãe. O espaço já estava, a plateia entrava por trás porque, na casa da mãe, demora para o Michkin chegar na sala de jantar, então ele é recebido por um mordomo numa espécie de antessala, e ele entra numa outra salinha, antes de chegar, de fato, na mesa do café da manhã. Então nisso a plateia estava toda junta. Essa era uma ideia comum nossa, de todos, tanto dos adaptadores, porque a gente que adaptou o texto, no fim, eu, Luá, Aury, e Vadim. Vadim fez o trabalho de dramaturgia até a cena 04 e depois, Aury, eu e Luá continuamos. Então, essa ideia da plateia dentro das cenas. Também porque cada capítulo tinha uma linguagem bem diversa de atuação, de encenação e de construção do espaço.
A cena 03 era a casa do general, que primeiro foi um andaime. Isso mudou um pouco, dependendo do tipo de ocupação que a gente fazia do espaço, mas era uma cena de palco italiano. Tinha como referência o Teatro Jardim Moscou, e tinha uma cena mais realista, daí isso de ser um pequeno palco italiano, e de ser um espaço pequeno, com alguns elementos fundamentais, como uma pequena mesa, a cadeira do capitão, e um banquinho, e a falta de espaço, que era fundamental para este lugar. Depois, a cena 04 é o aniversário da Nastássia, e era uma coisa incrível, porque você tinha a fogueira, aonde a Nastássia iria jogar o fogo, então era pura potência e totalmente estrutural, porque era construída com tijolos e o fogo era muito simples. A casinha que a Nastássia queimava no meio da peça, quando ela conta a história da relação dela com o padrasto e amante. Ela conta o incêndio da casa da infância e como ela foi cuidada, ainda criança, por esse personagem, daí ela queima o dinheiro. Essa cena era uma grande roda, então era uma forma geométrica constituída pelo próprio público, com o fogo no centro. De uma simplicidade fundamental incrível, daí essa cena não era marcada, ela tinha como se fossem planetas girando em torno do Sol, mas cada planeta tinha um movimento diferente, então cada personagem tinha uma espécie de lógica, tudo girava entorno da Nastássia e a Nastássia girava em torno do fogo. O Michkin gira em torno dele mesmo, o Gânia gira num círculo muito grande em torno da Nastássia, o Ragojan, quando entra, gira enlouquecidamente, como uma espécie de satélite em torno da Nastássia. Então o movimento fundamental é da Nastássia e todo mundo se movimenta de acordo com o movimento dela, e isso tem a ver com o fato de que a gente constituiu o trabalho depois, fazendo viagens para o interior. A gente foi para Campinas e lá tinha um teatro de arena, um anfiteatro, e lá a gente fez pela primeira vez, então isso deu esse jogo circular e concêntrico. Porque tem o fogo, Nastássia gira em torno do fogo, todo mundo gira em torno dela e isso também lembrava um pouco um astrolábio.
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A cena 05, que é a casa do Ragojan, é a cena que tem os andaimes, também estão na 12. A casa do Ragojan era uma espécie de fortaleza fechada e ela [Laura Vinci] chega a uma estrutura industrial muito simples, pronta, e que, ao mesmo tempo, permitia a justaposição de vários andares, o jogo com a própria arquitetura do Galpão do [SESC] Pompeia, onde a gente estreou. E aquela diagonal do espaço que era a piscina. A piscina ela fez pela primeira vez em outra cena, acho que na morte da Nastássia. Não, na verdade a gente usou duas vezes a piscina, lá na Casa Livre. A gente usou a piscina na festa de aniversário, e a gente chegou à conclusão de que não era nessa cena, justamente porque o elemento dessa cena era o fogo e não a água, e depois na morte, quando Ragojan mata Nastássia. Daí que isso ficou incorporado bastante à própria casa do Ragojan. A cena 06 era o delírio do Liebedjev, que era uma cena quase toda imaginária, porque é um delírio que o próprio Michkin tem, logo depois que ele tem o primeiro ataque. Ele tem um delírio e mistura o Liebedjev com a figura de um grande diabo, então era uma cena inteira de delírio, e, quando ele acorda, o Liebedjev está cuidando dele. A cena 07, que é a casa de campo, era uma cena bem tchekoviana, e que é uma espécie de grande piquenique no campo, tanto é que é uma cena toda feita com toalhas no chão, toalhas penduradas, onde se usou a ideia da transparência, do através, os personagens todos estavam vestidos de roupa de baixo, de pijama, trazendo travesseiros, então tinha uma ideia de piquenique no campo, uma cena de sonho. A inspiração era bem tchekoviana mesmo, como uma peça do Tchékov. Tinha uma subjetividade forte, mas ligeira, enfim. A cena 08 é o pedido de casamento e a festa, que era a lona. Era uma lona no chão, com espelhos atrás. Os espelhos só existiam acho que no SESC. Aqueles espelhos não eram nossos, então era uma ocupação sempre muito... Antes disso tem o encontro da Glaia e do Michkin, no final da cena 07 ela marca o encontro
com ele e era a cena do banco, que era o pequeno banco verde, era um banquinho muito pequeno, mudando a escala das coisas. É nessa cena que tem o pó de mármore caindo, uma pequena árvore e o pequeno banco, em cima de um espaço mais alto. O espaço era o banco verde no meio de um parque, é uma cena que tem a ver com o tempo, daí essa quase ampulheta, que é o pó de mármore caindo e fazendo uma espécie de montanha de pó de mármore. Essa cena é uma cena das mulheres, porque ele se encontra com a Glaia, depois ele fala da Nastássia, e depois tem o encontro dele com a Nastássia. Então tudo acontece naquele pequeno banco no parque. A gente juntou muitas cenas do parque, que acontecem em momentos diferentes, e o parque era representado por uma árvore. Engraçado, agora falando me lembra muito o Appia, quando ele fala da floresta, que ele fala de Ziegfried na floresta e ele diz que o que importa não é a floresta, mas a atmosfera de Ziegfried dentro da floresta, e que, portanto, ao fazer uma floresta, ao invés de você construir uma série de árvores falsas de papel crepom, ou de o que quer que seja, basta a sombra de uma árvore para representar toda uma floresta, e nesse caso era uma pequena planta, e um pequeno banco representando todo um parque, e a ampulheta, ou aquela pequena montanha de pó de mármore caindo representando o tempo. É tudo absolutamente fundamental. A outra é que era a festa de casamento, que era uma lona de caminhão grande no chão, e também com a participação da plateia, e aí a plateia ficava tanto em almofada quanto em cadeiras, e nessas cadeiras tinha flores representando a parte de fora da casa que era o jardim. Algumas flores nas cadeiras. Em muitos outros lugares a gente fez essa cena fora, então, quando a gente foi para o Ceará, era uma cena feita no jardim. E a casa, só a lona. No primeiro lugar que a gente fez tinha esses espelhos no fundo, que acho que eram espelhos do próprio SESC, uns espelhos muito grandes que ficavam lá atrás.
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Depois vinha a cena 10, que é a morte. A gente pulava uma parte, e é a cena em que Ragojan e Muchkin se encontram de volta na casa do Ragojan, mas aí já se encontram quase que na própria cama onde Nastássia está morta. E essa cena era praticamente uma cena numa cama, e essa cama era um carrinho com rodas, então era sempre tudo fundamental. O que constituía os espaços era muito a relação que a plateia tinha com o espaço. Ah! Não, a cena 10 era antes o hotel, o trepa-trepa, e a cena 11 é ela morta. O trepa-trepa era o Hotel Ismailovski, aonde o quarteto se encontra, e era um neon escrito Ismailovski, o próprio trepa-trepa, e a movimentação dos atores nesse espaço. Ou seja, tudo absolutamente sintético, fundamental, limpo e significativo. Com uma significação muito concreta, dada pela materialidade daquilo que constitui o cenário e pela relação espacial entre a plateia, os atores e a cena. Daí o fato de que cada lugar que a gente foi, a gente precisou mudar o espaço e reinventar o espaço a partir dessa ocupação. FP E como era a relação de tempo para isso, quanto tempo vocês tinham para adaptar o espetáculo a um novo espaço? CF Sempre tinha que ter um tempo para isso, para a gente chegar e montar. De preferência a gente tentava ter pelo menos uma semana de ocupação espacial. FP E vocês então recriavam o espetáculo a cada montagem? CF É. O que também tá na base do trabalho do Na Selva das Cidades. A ideia de ocupação
FP E você acha que, com o passar das montagens, o espetáculo foi se modificando? Como foi essa mudança de fato? CF É, eu acho que essa base de arquitetura que tem no pensamento da cenografia, que está tanto na fronteira da arquitetura, quanto das artes plásticas, era a base da ocupação espacial. Então a gente sempre chegou num lugar, viu o que o lugar nos apresentava e tentou rever os espaços dos capítulos da peça a partir do que o espaço nos dava. Nesse sentido, acho que a sensibilidade da Laura de se abrir para a diferença dos espaços sempre foi fundamental. Para essa reconfiguração da peça de acordo com o lugar onde a gente estava. Tem uma flexibilidade muito baseada na escuta e na visão. Em se abrir para o espaço. FP E aí está um pouco a maneira de vocês trabalharem na Mundana também, uma coisa bebendo da outra, não? CF É, acho que sim. A equipe de arte, os objetos, a luz, o figurino... não vem depois, mas vem antes, ou seja, são estruturais. Então é o contrário da decoração. Ela não vem para decorar o espaço, mas é o que esteia o projeto como um todo, é o que estrutura a própria adaptação dramatúrgica. FP Vira o arcabouço para tudo acontecer. CF Exatamente. Vira o continente para o trabalho dos atores, como para a própria adaptação dramatúrgica.
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FP E a escolha desses lugares, como acontecia? Porque é uma pesquisa de locação extensa. CF É, é um trabalho de locação. A gente sempre foi escolher antes, normalmente Laura, Aury e eu íamos fazer visitas técnicas. Por indicação de alguém. Ou, no caso de Fortaleza, que a gente sabia que iria fazer no teatro, a gente foi antes para conhecer o teatro e a Laura inventa coisas às vezes que ninguém imagina que a diretoria do lugar vá aceitar, como por exemplo mudar a direção das cadeiras da plateia do Teatro José de Alencar. A gente fez no Teatro José de Alencar, um teatro completamente tombado, com vitrais incríveis, um teatro do início do século XIX. E ela consegue convencer, e pelo cuidado com que ela mexe no espaço, porque ela é tão cuidadosa que todos confiam nela, e ela inverteu as cadeiras e conseguiu fazer o eixo da encruzilhada do trem no meio da plateia, invertendo duas fileiras da plateia original. É uma coisa impensável de se fazer, e ela fez. Assim como a ocupação do porão para a cena final, a ocupação dos jardins para a cena do casamento. Então, a cada espaço tem essa ideia de ocupar mesmo. O que agora é uma ideia fundamental e estrutural para o projeto do Na Selva das Cidades. FP Sim, era isso que eu iria te perguntar agora. Como essas vivências que vocês tiveram em diversos lugares da cidade entraram no espetáculo? CF Então, essas imersões foram muito fortes porque foram vivências e experiências nossas com a cidade, que multiplicavam a peça. Quando a gente foi para a sala de ensaio parecia que nada conjuminava mais, porque a cidade tinha ficado longe. Daí a gente chega à conclusão de que a gente precisava retomar a relação fundamental com a cidade e ocupar espaços, ao mesmo tempo criando
o conceito do Na Selva das Cidades em Obras. Ou seja, um espetáculo que nunca está pronto, ele está sempre em obras, incompleto e se relacionando com cada espaço onde ele é contado naquele momento. FP E vocês irão remontá-lo? CF Ah sim, estamos em pleno processo. FP E onde será? CF Ainda não sabemos, depende das condições de infraestrutura também e econômicas. Porque a gente teve um fomento para a pesquisa, principalmente para fazer as imersões, e agora a gente não tem. A gente não ganhou o próximo fomento, não ganhou PROAC, então estamos por conta própria com uma equipe de trinta pessoas. Então a gente está à espera de um lugar que nos estruture. FP Mas é um absurdo ter todo esse trabalho montado e parar... CF É, agora o Aury está fazendo editais para ver se a gente consegue alguma condição de continuidade. FP No Na Selva das Cidades, como foi a questão da criação do espaço, em relação a O Idiota? CF A gente constituiu equipes, e cada equipe era responsável por... Tudo começou com uma ideia da Laura, do Aury e minha, de reler Na Selva das Cidades a partir de tempos e espaços, que seria o estudo dos vários espaços simbólicos justapostos à ideia dessa Chicago da ficção, 120
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Chicago em 1912; Berlim, 1927, que é quando a peça foi escrita e estreou pela primeira vez; [Teatro] Oficina, 1969, que foi o estudo da montagem do Oficina; e São Paulo, 2015. A partir dessa primeira ideia a gente abriu... A Laura trouxe um grande mapa da cidade de São Paulo e a gente fez um brainstorm de que espaços da cidade de São Paulo se relacionavam com cada um dos quadros da peça, e aí a gente chegou a uma espécie de estrutura e isso fez com que a gente escrevesse o projeto do fomento já prevendo ocupações na cidade inteira, baseada bastante nos grandes contrastes da cidade: os altos e baixos, centro e periferia, mais rico ou pobre, baseado sempre em que a gente tem uma cidade de grandes contrastes, uma grande diferença econômica, social e política. Então a gente fez uma espécie de indicação de que áreas da cidade poderiam servir para cada quadro, mas depois, cada grupo que ficou responsável por organizar e coordenar cada imersão, fez um estudo de campo naquele espaço indicado e escolheu, primordialmente, por relações humanas que estabeleceu ali no lugar, parceiros, associações, casas, lugares e pessoas que nos acolheram. Cada grupo fez um roteiro para cada uma das imersões e, naturalmente, era um roteiro que tinha sempre o apoio da equipe de arte, que construía os diversos espaços, mas junto com a coordenação de cada imersão, ou seja, em colaboração. FP E a releitura do Oficina, como foi? Para a cena do duelo, ela seria na rua, mas por causa da chuva fizeram dentro do espaço do Centro Cultural Capobianco. E criaram, de certa maneira, um ringue. CF Na verdade isso vem de uma leitura no SESC-Ipiranga, onde a plateia via de cima, mais como uma rinha de galos do que um ringue. A ideia não era bem retomar o ringue da Lina, e sim, um espaço onde a plateia vê de cima e onde os lutadores estão dentro, quase como num ninho ou mesmo uma rinha de galos. Então é mais uma rinha de galos do que um ringue de boxe.
FP E por que montar no Capobianco? CF Bom, primeiro porque o Capobianco nos chamou. Até porque, nesse momento, muito da questão dos espaços ocupados tem a ver com onde a gente consegue alguma estrutura para trabalhar, inclusive de verba, porque é uma equipe de trinta pessoas trabalhando em condições econômicas muito desfavoráveis. FP Agora é torcer para haver mais montagens... E vocês montaram em Rio Preto também, certo? Onde foi lá? CF Então, em Rio Preto a gente tinha escolhido um silo de grão, que na última hora a gente não pôde fazer porque os bombeiros não permitiram. E aí a gente acabou fazendo no palco do SESC, e a gente teve uma grande crise, porque a gente faz todo um trabalho de ocupação... e o que a gente vai fazer num palco? E a gente releu o palco através da relação especular entre ficção e realidade, a partir do vídeo, então tinha estúdio de vídeo e cenas em que a gente multiplicava os espaços a partir do vídeo. FP Então o vídeo era mais presente nessa montagem de Rio Preto do que nessa de agora, no Capobianco? CF Do que todas que a gente já fez, porque justamente o jogo era criar uma espécie de labirinto entre ficção e realidade a partir da ideia da câmera.
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FP E a plateia ficava aonde? CF A plateia estava na plateia junto com os atores e a gente tinha quatro espaços basicamente: a plateia, onde também tinha cena; o palco; a tela de projeção; e o estúdio de TV. Então tinha o jogo de entrar e sair desses vários planos. Acho que a gente reconfigurou a ideia do palco italiano, a gente conseguiu reler o espaço. Então, o Na Selva das Cidades em Obras leva ao paroxismo a ideia da ocupação espacial. É no confronto entre a obra que a gente faz e o espaço que vai ser ocupado que se constitui esse novo espaço cênico, sempre sob a direção da Laura. Acho que a direção das ocupações é com o olhar da Laura, o olhar e a escolha da Laura. FP Vocês devem ter muitas reuniões de grupo, mas há uma certa parte constituída por um núcleo menor: você, Laura, Aury etc.? CF Talvez mais na origem começamos mais eu, Laura, Aury, Marília, Otavio, Alessandra, e aí as pessoas foram chegado. Em O Idiota eram grupos menores, a gente discutia com Alê, Laura, Aury, eu e Luá. Eu acho que no Na Selva a gente tem trabalhado mais com todo mundo, o que dá muito mais trabalho, mas é muito rico. Mas a gente acaba tendo que se alimentar dos possíveis conflitos que sempre existem e achar, a partir disso, um lugar em comum.
FP E qual o seu papel no meio disso tudo? CF Eu estou descobrindo. Acho que é menos de diretora de teatro e mais de diplomata. Diplomata das muitas ideias, tentando mais articular as discussões estéticas e teóricas para a gente chegar num roteiro comum. Então nesse caso um diretor é menos a pessoa que resolve as formas do espetáculo e muito mais um articulador da criação em conjunto.
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Paulo Mendes da Rocha arquiteto - cenógrafo O arquiteto Paulo Mendes da Rocha possui uma obra bastante reconhecida no campo da arquitetura, entretanto, há uma produção significativa em outras leituras de espaço, seja mobiliário, expografia ou cenografia. Busco analisar a produção e o processo de criação de cenografia do arquiteto Paulo Mendes da Rocha, que possui uma produção durante quase uma década nessa área, com obras que vão de desfiles de moda a espetáculos de teatro e ópera, além de exposições. Nessa pesquisa atento principalmente aos cenários de teatro e ópera. Ao confrontar os processos de criação de escritórios de arquitetura com os de cenografia, fica clara a participação e influência das diferentes equipes criativas no processo de criação e desenvolvimento de projetos cenográficos. Isso se deve em grande medida à maneira pela qual o teatro e a ópera estão organizados, o que difere muito da lógica da arquitetura de edificações e de escritórios de renome, como o de Paulo Mendes. No teatro e na ópera, o desenvolvimento e a concepção de um projeto estão intrinsecamente ligados às relações que se estabelecem entre as diferentes equipes criativas. Um espetáculo cênico não pode depender apenas da cenografia, ou da arquitetura cênica; esta é suporte e arcabouço para outros elementos, como a luz e o figurino, deles depende e a eles se liga. Porém, a essência de uma peça está na interpretação dos atores, sem eles nada acontece e o espectador veria apenas uma instalação. Portanto, torna-se necessário pensar a maneira com que Paulo Mendes lidou com as equipes com que trabalhou ao produzir cenografia para espetáculos de teatro e ópera. Ao 128
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fazer arquitetura, a relação de criação de Paulo Mendes é com o cliente de seu projeto, sendo sua a palavra final sobre a concepção; ao fazer cenografia, o processo de criação acontece em conjunto com a direção, portanto, é uma relação de cumplicidade criativa e o espetáculo é resultado do trabalho do cenógrafo com o diretor e todas as outras equipes de criação. 3 Paulo Mendes da Rocha também realizou o projeto para as exposições Bienal Fotojornalismo Brasileiro 1990-1995 (1995), História de ver: Olivero Toscani (1995), projeto arquitetônico para a XXIII Bienal de São Paulo (1996), projeto arquitetônico para a Mostra do Redescobrrimento (2000) desfile para a marca de roupas M. Officer (1999).
A produção de cenografia de Paulo Mendes da Rocha se inicia em 1990, com o projeto para a ópera Suor Angélica, de Giacomo Puccini, dirigida por Bia Lessa. A parceria entre a diretora carioca e o arquiteto capixaba seria duradoura e fundamental para a entrada de Paulo Mendes no campo da cenografia. Foram parceiros em três espetáculos: Suor Angélica (1990 e 1992), Futebol (1994), O Homem Sem Qualidades (1994). Além do trabalho com Bia Lessa, o arquiteto assinou cenários dirigidos por Naum Alves de Souza (Ópera dos 500 anos, de 1994), Gabriel Villela (Gianni Schacchi, de 1992) e Jorge Takla (Il Tabajo, de 1992)3.
Cenografias
Quando Paulo Mendes da Rocha atua no campo da cenografia, seus trabalhos não fogem das discussões e conceituações que acontecem em suas arquiteturas. O trabalho com o espaço construído e a maneira de lidar com as necessidades de um programa, seja ele de arquitetura ou cenografia, são marcantes. O recorte dessa pesquisa se dá na parceria entre o arquiteto paulista e a diretora carioca Bia Lessa. A parceria entre Paulo e Bia teve seu início em 1990, com a ópera Suor Angélica, de Giacomo Puccini, e segue até os dias de hoje, mesmo que ambos não assinem um projeto juntos desde 1997. O contato que ali teve seu início se mantém atualmente, com visitas, ligações, conversas e projetos futuros. “Para um arquiteto fica mais fácil, ou então, mais rico, o sucesso fica mais previsível, do que um específico e sistemático cenógrafo. Dá a impressão, não é? Não se trata de um improviso, como virtude, mas se trata da aplicação de uma dimensão arquitetônica àquilo que toda obra de palco, de fato, é. Não só em relação às coisas materiais, que é a primeira ideia de um cenário, mas também de toda a cenografia em si, de toda a movimentação das pessoas etc. . (...)Portanto o poder mágico do teatro é o que está em jogo. O sucesso depende de você entender bem hoje como se faria aquele discurso. Essa questão também é muito interessante se considerar na montagem de um espetáculo, que existe como obra configurada no tempo. Seja ópera, seja teatro de revista”. ROCHA. Entrevista concedida em 06.11.2015. São projetos de desenho enxuto, de um trabalho que resultou em pouco material nos arquivos do arquiteto e dos diretores com que trabalhou. Talvez isso seja 130
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reflexo da maneira rápida com que Paulo executou suas cenografias. Sua primeira, Suor Angélica, foi concebida e executada em menos de um mês, o que é um tempo muito curto para uma produção deste tipo. Apesar de toda a cenografia de teatro e ópera de Paulo Mendes da Rocha ser ligada à caixa cênica e ao palco italiano, sua abordagem desses espaços foge do tradicional. Bia Lessa explica o início da parceria: “Eu cheguei nele porque eu, de fato, sou uma pessoa que eu não gosto de cenografia. Eu gosto de geografia e eu acho que o Paulo é um cara da geografia. Então, uma coisa que me incomodava demais era o excesso de decoração que existia nos cenários, e eu sempre gostei de trabalhar com espaço. Daí eu fui chamada para fazer essa ópera no Municipal, o Suor Angélica. Eu lembro que faltava vinte e nove dias para a estreia, e era para eu fazer com um cenário que já existia, de uma outra montagem. Daí eu estava com um amigo, o Toni Vanzolini, e o Toni me lembrou do Paulo (...) e daí teve esse telefonema bizarro que ele falou ‘você deve estar querendo falar com meu filho’. E foi engraçado, porque acho que dali a gente travou uma cumplicidade e uma amizade que foi ao longo da vida. Sei lá, no meu primeiro encontro o Paulo já me interessou imensamente, (...) eu lembro que todos os projetos ele fazia muito imediatamente. Não tinha muito processo, é uma conversa, e o que eu acho legal é que o trabalho tem sempre uma relação muito profunda com o conteúdo, quer dizer, ele não trabalha a partir de um traço, de uma beleza... (...) É sempre a partir de um conteúdo. E isso nele eu acho absolutamente extraordinário”. LESSA. Entrevista concedida em 19.09.2015. A precisão de projeto descrita por Bia Lessa remete muito à maneira de pensar arquitetura de Paulo Mendes, porém, em cenografia, é uma criação compartilhada com a diretora, num ato de sentar e discutir as necessidades de uma cenografia através dos pontos de inflexão do espetáculo. O conteúdo é o que dá a linha de raciocínio
para Paulo Mendes da Rocha; assim, vemos cenografias amparadas pela dramaturgia, que se apoiam e servem de alicerce para o desenrolar do espetáculo por parte da direção cênica e dos atores. Lessa comenta: “Então as coisas eram muito... como vou dizer... era quase que o cenário que tinha que ter. Era o espaço que tinha que ser. Não teria como ser um outro. Por isso que é bom de trabalhar com o Paulo, ele é um cara que faz a única coisa que deveria ser feita. Então é curioso porque ele faz surgir algo que você fala ‘só podia ser isso’ ”. LESSA. Entrevista concedida em 19.09.2015. Outro ponto importante de análise na obra de Paulo Mendes é a maneira com que ele lida com a plateia e as impressões que o público tem sobre o espetáculo. Em O Homem Sem Qualidades insere parte da plateia dentro da cenografia; em Suor Angélica faz os atores e cantores entrarem pelo subsolo do palco, ou por portinholas; em Futebol altera o plano horizontal de atuação e o transforma em uma rampa, estranha à plateia. Os cenários de Paulo Mendes são arquiteturas vividas pelos atores, lugares que existem a partir da ação do ator e são pensados para este. Não se vê em sua cenografia, assim como é característico de sua concepção arquitetônica, formalismos ou redundâncias projetuais. Portanto, os elementos cênicos criados têm uma razão de ser que foge do que seria uma cenografia decorativa ou contemplativa. Paulo Mendes da Rocha é um arquiteto que em certa medida segue o que diversos de seus colegas de profissão realizaram: inserir a discussão da arquitetura no campo da cenografia. Dentre eles, as referências mais diretas são Flávio Império, Luiz Carlos Ripper e Lina Bo Bardi, três arquitetos que extrapolaram o campo da arquitetura, chegando ao teatro e à cenografia.
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Suor Angélica 1990 e 1992 Libreto Giaoachinno Forzano Música Giacomo Puccini Direção Bia Lessa Equipe Katia Pestada Claudio Diaféria Iluminação Paulo Pederneiras Figurino Conrado Segreto Adereços de cena Fernando Zarif Local Teatro Municipal-SP
Nas páginas anteriores Imagem 80 croqui Suor Angélica Fonte: Acervo Paulo Mendes da Rocha Na página seguinte Imagem 81 croqui Suor Angélica Fonte: Acervo Paulo Mendes da Rocha
“No claustro de um convento, no século XVIII. Nascida em família da nobreza fiorentina, irmã angélica entrou para o convento para espiar o escândalo que provocou ao dar à luz, solteira, uma criança. Há sete anos ela está recolhida à paz e ao silêncio do claustro, oscilando entre o arrependimento e o desejo de rever o filho que lhe foi tomado. Vem a abadessa comunicar-lhe que sua tia, a princesa, chegou para visita-la, e que deve mostrar-se humilde e conformada. A primeira veio ao encontro de Angélica para obter-lhe a assinatura num documento relacionado ao casamento de sua irmã, e insiste em que o resto de sua vida deve ser dedicado inteiramente à expiação de seu pecado. Quando Angélica pergunta pelo filho, a princesa responde friamente que ele morreu há dois anos. Desesperada, Angélica decide suicidar-se. Colhendo ervas e flores, prepara uma bebida venenosa e a ingere. Suplica então à virgem que não a deixe morrer em pecado mortal, e tem uma visão de Nossa Senhora, que se aproxima trazendo pela mão uma criança. Um coro invisível entoa um hino de salvação e ela morre”. KOBBÉ, 1994, p. 658. Esse espetáculo é parte de um programa que envolve outras duas montagens de ópera. Giacomo Puccini, seu compositor, dividiu Il Trittico nas composições: Il Tabarro, Suor Angélica, e Gianni Schicchi. A ópera aqui estudada é encenada em um convento, concebido por Paulo Mendes da Rocha e Bia Lessa como: “(...) um espaço claustrofóbico e opressivo. A concepção do cenário (...) abordou a questão inicialmente pelo lado da técnica. A construtora Método, que estava reformando o Teatro Municipal de São Paulo, construiu, com estrutura metálica, uma imensa caixa: um calabouço de onde os eventos surgiam”. WISNIK, Guilherme. 2006: p. 98.
A construtora projetou junto à equipe de arquitetura uma estrutura de andaimes em ferradura, que funcionou como acesso aos níveis superiores do cenário, para travamento das placas metálicas que compuseram o fechamento da caixa cênica, e também como estrutura para travamento das escadas de ferro.
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Nesta página e na próxima página Imagens 82 - 83 Suor Angélica Fotos: Gal Oppido
Suor Angélica foi a primeira experiência cenográfica relatada de Paulo Mendes da Rocha e foi, também, a estreia de Bia Lessa como diretora de ópera. O cenário, enquanto concepção de espaço, não foge do que normalmente se vê em óperas: palco italiano e fechamento da caixa cênica em suas três paredes – duas laterais e fundo. Porém, os usos que essa cenografia proporciona são seu diferencial.
É um cenário marcado pela verticalidade. Em suas três grandes paredes, Paulo propôs escadas, aberturas e portinholas pelas quais freiras alpinistas subiam, desciam, apareciam e sumiam perante o público. O chão do palco era formado por uma série de escadarias, que se valiam dos elevadores do teatro, para subir um desnível que saía de cerca de -2.50m no fundo do cenário, até 0m no proscênio do Teatro. Ou seja, a entrada de atores e cantores era feita de uma maneira tal que a impressão que a plateia tinha era de que surgiam do subsolo das catacumbas do convento. Com isso, o espaço de encenação no qual os solistas cantavam era uma faixa de 2m entre o cenário e a boca de cena do Teatro Municipal.
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Abaixo Imagem 84 Suor Angélica Foto: Gal Oppido Na página seguinte Imagem 85 Croqui Suor Angélica Fonte: Acervo Paulo Mendes da Rocha
“O que ele fez no Angélica que eu achava sensacional. Porque a coisa da ópera é as pessoas cantarem na frente do maestro, então ele deixou dois metros aqui. A cena toda se desenvolvia aqui e as freirinhas vinham lá de baixo, e elas iam surgindo. E a gente fez essa parede gigante com essas escadas e as freirinhas que subiam pelas paredes, que era o que a gente morria de rir. Tinha essa portinha que elas eram obrigadas a abaixar para entrar e sair do lugar, e essas gavetas, que elas abriam e caiam folhas e flores, que eram as ervas que apareciam na ópera”. LESSA. Entrevista concedida em 19.09.2015.
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Nesta página e na página seguinte Imagens 86 - 87 Suor Angélica Fotos: Gal Oppido
“Mas tem outro momento em que o coro aparece, e que a Bia inventou uma coisa maravilhosa, para convocar essa ideia da espacialidade do convento. Ela dividiu os trinta e cinco personagens do coro, de acordo, inclusive, com as vozes, em grupos de oito ou dez, no camarote, lá atrás, escondido. Mais cinco ou seis na torrinha sei lá aonde, aí quando eles tiveram que cantar, muito bem ensaiados, cantaram dentro do teatro inteiro. Ou seja, a plateia se viu dentro do convento” ROCHA. Entrevista concedida em 06.11.2015.
O cenário é marcado pela modulação das placas de ferro que constituem as paredes num grid de proporção 2x1; em certos momentos essas chapas são intercaladas por módulos de tecido, para que os cantores do coro pudessem cantar por detrás do cenário sem terem suas vozes abafadas. Nas paredes há uma série de tubos cilíndricos de ferro que se projetam para fora delas. A iluminação do espetáculo privilegiava o desenho das escadas proposto por Paulo, fazendo um jogo de luz e sombras.
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O Homem sem qualidades
Texto Robert Musil Direção Bia Lessa Equipe Jean Louis Le Blanc Iluminação Guilherme Bonfanti Figurino Taísa Borges Local Teatro 1 do Centro Cultural Banco do Brasil-RJ
Nas páginas anteriores Imagem 88 Croqui O homem sem qualidades Fonte: acervo Paulo Mendes da Rocha Abaixo e na próxima página Imagens 89 - 91 O homem sem qualidades Fonte: acervo Bia Lessa
O cenário de O Homem Sem Qualidades parte de uma leitura de texto realizada por Paulo Mendes da Rocha e Bia Lessa. Em discussão, os dois chegaram à ideia de que o ponto central da peça era o controle ao qual o homem contemporâneo está submetido. Assim, Paulo propôs uma arquibancada na qual os espectadores encontram-se praticamente dentro da cena. No decorrer do espetáculo, o palco se abre e os atores ganham espaço de cena. Na arquibancada de plateia, câmeras fotográficas e binóculos foram distribuídos, assim, além da presença física do espectador sobre o ator, este ainda era vigiado por inúmeras lentes. É evidente que, no decorrer das apresentações, o ato de fotografar e vigiar pela plateia passou a ser uma grande brincadeira.
No rodapé da arquibancada construída, o arquiteto propôs uma série de gavetas, de onde os atores. Esse é o espetáculo em que o cenógrafo propôs mais objetos de cena. Há um cavalo, um avião, estandartes, carrinhos, caixotes, espelhos, ou seja, uma série de dispositivos de cena que trabalham junto do ator como uma cenografia ativa. Não há, nas cenografias de Paulo Mendes, qualquer elemento decorativo; o que está em palco sempre tem uma razão de ser, o que nos remete muito à sua maneira de pensar arquitetura.
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Acima Imagem 92 Croqui O homem sem qualidades Fonte: acervo Paulo Mendes da Rocha Na pr贸xima p谩gina Imagens 93 O homem sem qualidades Fonte: acervo Bia Lessa
Esses dispositivos de cena são resultado de um interesse da diretora em tratar sobre o que é móvel e não estático nesse espetáculo. Bia diz que este espetáculo não constitui uma cenografia, mas uma geografia, elemento para ela fundamental na obra de Paulo Mendes da Rocha. “E o que me interessava era o que mais tinha me encantado em Musil, que é o problema de pensar o movimento, das coisas que não são estáticas, da ausência de ideologias rígidas”. LESSA. Entrevista a Marco Chiaretti, publicada no jornal A Folha de São Paulo em 01.06.1994.
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Futebol 1994 Texto Alberto Renault Direção Bia Lessa Equipe Martin Corullon Iluminação Guilherme Bonfanti Figurino Marjorie Gueller Objetos de cena Guto Lacaz Local Teatro 1 do Centro Cultural Banco do Brasil-RJ
Nas páginas anteriores Imagem 94 Croqui Futebol Fonte: acervo Fernando Passetti Abaixo e na página seguinte Imagens 95 - 96 Pranchas Futebol Fonte: acervo Paulo Mendes da Rocha
Futebol foi o primeiro espetáculo em que a cenografia de Paulo Mendes da Rocha entrou em contato com sua arquitetura de edificações. Montado no edifício da FIESP, na Avenida Paulista, o espetáculo criava um espaço móvel, talvez aquele com uma cenografia mais presente entre os projetos estudados.
“O Futebol é fantástico, a ideia é maravilhosa: do lugar onde não havia terreno horizontal. Era um lugar à beiramar onde passava um inglês à bordo de um navio e ele deu uma bola de presente para o pessoal usar e mais ou menos explicou como se jogava futebol. E eles passaram a jogar futebol num terreno escabroso. A história é essa, até que um dia – e é muito bonito porque é uma espécie de parábola sobre o êxito da técnica-, essa esfera, que só toca no chão num ponto, um balão inflável. Ela encontra um terreno horizontal e aquilo é um grande sucesso. Há uma imagem nessa montagem, que estava no escrito,
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Acima Imagem 97 Prancha Futebol Fonte: acervo Paulo Mendes da Rocha Na página seguinte Imagem 98 Croqui Futebol Fonte: acervo Paulo Mendes da Rocha
que era a realização, a apoteose final, quando o futebol se torna possível por um terreno finalmente horizontal, feita com a música. Porque é de uma gravação editada de um momento extraordinário, que é uma manifestação culminante, real, de um Fla x Flu, no Maracanã. Então apoteótico com valor de música, com valor sinfônico, porque não há nada mais complexo quanto a composição de timbres e sons de uma orquestra sinfônica. Porque são cento e setenta mil espectadores gritando”. ROCHA. Entrevista concedida em 06.11.2015. Era uma grande plataforma que funcionava como uma gangorra na qual, durante grande parte do espetáculo, os atores se equilibravam num plano inclinado que permanecia assim até que o ato de se jogar futebol acontecesse. Nesse preciso momento, o grande plano inclinado virava o retângulo horizontal que é um campo de futebol.
“(...) quando a gente fez o Futebol, que eu lembro que, nas primeiras conversas... porque tem aquele estádio dele que é deslumbrante, e ele ficou me explicando que o bom, que o difícil do estádio é o campo reto. A drenagem que tem que ter. Que o resto é pura papagaiada, mas que o bonito é a linha horizontal. E eu falei ‘o bonito é isso’, e a gente
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Nesta página e na página seguinte Imagens 99 - 100 Croquis Futebol Fonte: acervo Paulo Mendes da Rocha
fez. O espetáculo era uma rampa e o espetáculo acontecia todo nessa rampa e no final do espetáculo, quando surgia o futebol, essa rampa ficava absolutamente reta e nascia o futebol”. LESSA. Entrevista concedida em 19.09.2015. A grande rampa descrita por Bia era o único cenário da peça com registro de projeto. Havia também uma grande vela de barco composta por candelabros, porém, este elemento só apareceu em descrições realizadas pela diretora e pelo cenógrafo. A rampa é o único
elemento de cenário capaz de ser analisado, composta por uma estrutura de grandes proporções, com uma forte articulação central, um pivô capaz de realizar o giro necessário para o movimento de gangorra. O eixo era auxiliado por um pistão hidráulico e um sistema de rodízios: quando o pistão abaixa, o pivô gira e o rodízio sobe, assim produzindo o efeito de gangorra e possibilitando o nivelamento da plataforma.
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Entrevista: Paulo Mendes da Rocha
FP Paulo, gostaria que você comentasse como foi fazer uma cenografia para o espaço do Teatro Municipal de São Paulo. PMR Como o Teatro [Municipal de São Paulo] possui elevadores, que se sabe que é assim, e você pode pôr no seu trabalho, uma planta técnica do Teatro, para ver o que são os elevadores. Daí, se eu abaixo sucessivamente esses elevadores, eu crio, da plateia, vários planos para as figuras aparecerem num espaço confinado. Inclusive, a imagem que é erótica, de “subindo pelas paredes”, materialmente é realizada pelo confinamento de paredes que ali feito. E com os pregos na parede que, fantasiadas com as mesmas indumentárias de freiras, grupos de circo, contratados, subiam. (...) Quem faz o cenário é o texto. FP Mas isso depende muito da maneira com que se aborda o texto, pelo menos para você e Bia Lessa. PMR Claro, aí é que entra cada um. Uma sinfonia são sete notas musicais e se tem duzentas milhões de sinfonias. FP E como foi o seu contato com a Bia Lessa, como começaram a fazer cenografia? PMR A Bia dedicou-se a isso, nessa ocasião. Não foi a primeira vez que fez isso. E eu já era um arquiteto conhecido, não era?
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FP Mas você já havia feito outros trabalhos? PMR Deixa eu ver por outro lado. Por que a Bia Lessa estava fazendo este trabalho? Convidada pelo diretor do Teatro Municipal, o ilustre Emilio Kalil. Ele chamou a Bia Lessa. O Teatro Municipal estava em reforma e havia uma empresa de engenharia montada lá, fazendo a reforma. A empresa que estava fazendo a reforma do Teatro tinha construído, ou estava construindo e estava indo com muito sucesso, a Loja Forma, uma obra projetada por mim e dados os problemas que apareceram com as primeiras ideias da Bia pensou-se em chamar um arquiteto. FP Vou colocar uma outra pergunta então. Em seus projetos, você pensa a plateia de uma maneira bem própria: a relação entre o cantor ou ator, com a plateia... PMR Eu não. Todos pensam assim. A Bia Lessa, o papel dela é fazer isso. Não foi um outro que fez o figurino, ela que disse que queria roupas assim, etc. mais ou menos com uma certa monocromia e, com a mesma roupa, porém, um pouco mais fluida, para subir nas paredes... havia, com certeza, para que se acentuasse aquelas imagens, que essas freiras tivessem as mesmas roupas. Não se pode descrever isso. O figurino, por exemplo, ela tem que fazer tudo. Porque se chamam um figurinista, que, de fato, chamaram, porque há uma especialidade para costurar quatrocentos vestidos... mas não foi ele que inventou, porque se ele inventasse um chapéu duro e engomado – que tem freira que usa -, não dá para subir na parede.
FP Então aí está a relação que vocês construíram enquanto uma equipe criativa. A Bia tinha as equipes dela e levantou essa equipe toda que você fazia parte. PMR Sim, mas a equipe não é um aglomerado de pessoas. Trabalham todas em torno de uma cabeça. FP Isso não seria diferente do trabalho de um arquiteto fazendo um edifício, por exemplo? PMR Claro que não. Você faz o edifício inteiro. FP Enquanto concepção. PMR É sua. FP Mas você acha que a abordagem para um projeto de arquitetura e de cenografia é a mesma? PMR Bom, aí você já está me entrevistando mesmo. Eu acho que o trabalho exige uma grande equipe, porém, centrada numa ideia fundamental, que é o autor do projeto. Se não, degenera. Quanto mais complexo o problema, e nada mais complexo que um grande edifício, se você entregar a especialidade das partes para juntar depois, cai o prédio.
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FP Isso sim, enquanto trabalho de várias equipes, mas enquanto à concepção do que você propõe enquanto partido de um edifício, ou partido da cenografia. Na cenografia você está trabalhando junto com a Bia. PMR No caso de Suor Angélica, e diversas peças que fizemos juntos. FP Você, ao meu ver, não tem uma relação que é muito mais próxima de, talvez cumplicidade na criação entre você e a direção, do que talvez possa ter em uma relação com cliente de arquitetura. PMR Concepção de montagem de um espetáculo, previamente já engendrada por quem... seja Brecht, seja Puccini, no caso da ópera, seja o espetáculo que for, no caso que estamos falando: teatral. Existe uma figura que edita aquela obra pré-existente. Você leva ao palco obras que tem, às vezes, mais de cem anos. Às vezes, mais do que isso, às vezes gregos, etc., não é? Portanto, a grande questão para você tornar atraente atualmente o mesmo discurso, o eterno andamento da história, aquilo que o outro chama “a memória”, a “descontinuidade histórica”. Você vê espetáculos ligados ao imaginário da Guerra de Tróia, ou depois da Grande Guerra. É diferente de ter feito isso em mil e oitocentos.
FP Isso no que diz respeito à montagem em si. Que está acontecendo em um tempo e um espaço específico. PMR A tudo, à totalidade. (...) São pretextos, os clientes. Você não constrói nada para esse cliente, ou aquele cliente. A demanda é a necessidade do homem de habitar o planeta, torna-lo habitável, e a forma é a cidade, talvez a única que conhecemos. Você não mora em algum lugar que não seja uma cidade, hoje. FP Mas e quando isso chega para o espaço do palco? Em que você está criando para um outro tipo de uso. PMR É. Uma representação simplesmente que quer dizer tudo o que se quer dizer como obra de arte, como dança. Reflexões sobre a condição humana. É isso que é o teatro. Portanto é uma edição de um pensamento extremamente complexo, porque tem um autor, tem uma execução. Você veja uma ópera mesmo. É impossível ela ser mal cantada, mas é possível ela ser mais brilhante ou menos brilhante. Portanto o sucesso de tudo o que fazemos, como essa nossa entrevista, depende de momento, de capacidade da pessoa de dizer isso ou aquilo. Mesmo o que estou tentando te dizer, talvez eu seja muito pouco capaz. Poderia te dizer com mais clareza. Eu queria te dizer que a complexidade da questão é tão fundamental como realização final, do espetáculo, breve, que é impossível descrevê-lo parte por parte. Do ponto de vista da especulação humana, só interessa na totalidade, senão, não faria o espetáculo. Agora, você treinar, ensinar um cenógrafo, só fazendo ele trabalhar em um teatro durante quatro, cinco anos. É impossível descrever.
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É como você querer ensinar carpintaria falando em teoria como se martela. A instrumentalização do trabalho é sempre indescritível. É como perguntar para um arquiteto: quando você imagina um projeto, como você escolhe a escultura. A escultura é escolhida antes. A forma já se engendra a partir de uma certa estrutura, não é depois que você decide se é metálica, de concreto. FP Sim, entendo. O que eu gostaria de saber de você é como foi fazer um projeto com outro olhar. Um olhar talvez mais rápido, no qual o processo entre projeto, construção e estreia do espetáculo dura um mês, dois ou três e tudo já acaba. PMR Bem, você poderia dizer por outro lado, diante dessa pergunta sua, muito oportuna: sendo arquiteto, e qualquer cenário, seja ele qual for, numa certa medida, por mais singelo que seja, envolve uma certa construção: cabides, paredes, anteparos, disposição de utensílios de cena, mesas, cadeiras, coisas do tipo, associados à ideia de figurino, vestiário, os personagens, o texto. Para um arquiteto fica mais fácil, ou então, mais rico, o sucesso fica mais previsível, do que um específico e sistemático cenógrafo. Dá a impressão, não é? Não se trata de um improviso, como virtude, mas se trata da aplicação de uma dimensão arquitetônica àquilo que toda obra de palco, de fato, é. Não só em relação às coisas materiais, que é a primeira ideia de um cenário, mas também de toda a cenografia em si, de toda a movimentação das pessoas etc. . Porque uma coisa, por exemplo, é um simples tapume no fundo, com duas pessoas na frente, ou uma só, ou doze, ou nenhuma, ou se nesse tapume e no piso do palco, vai ter duas pessoas e no tapume há simulada uma janela que simboliza o segundo andar e com uma escadinha, por trás, alguém trepou e apareceu na janela, e tudo aquilo se transforma numa vila etc.
Portanto o poder mágico do teatro é o que está em jogo. O sucesso depende de você entender bem hoje como se faria aquele discurso. Essa questão também é muito interessante se considerar na montagem de um espetáculo, que existe como obra configurada no tempo. Seja ópera, seja teatro de revista. Não esqueça que há muitos musicais que são vivíssimos, e no caso é interessante distinguir dos famosos casos históricos de teatro e ópera e tudo isso, distinguir enquanto coisa que foi já desenhada para hoje mesmo. Então é muito interessante porque você pode ir além, para o futuro. Você faz o mesmo discurso com uma reflexão acentuada sobre o que ele contém de intrigante como coisa ainda não feita. Como será. Como o desajuste de uma juventude. Isso quer dizer não que ela está definitivamente desajustada, ela está andando para a frente de um modo muito solicitante, enérgico. Como as grandes transformações dos anos sessenta: as figuras de transgressão. Os jovens se fantasiando com fardões da guerra, escarnecendo da guerra. Toda essa interpretação é de uma complexidade, de uma riqueza, que é muito difícil de descrevê-la. Por isso que a melhor forma é, de novo, faze-la. É muito difícil você falar sobre como se faz um espetáculo. FP Não tem forma. Nem fórmula, pelo contrário. Não é isso que estou buscando. PMR É, justamente, não tem fórmula. É que o brilho das coisas que a Bia fez é muito surpreendente. Na minha opinião são muito brilhantes, mas é consequência dela. Autoria específica dela em relação a uma indagação presente no texto. A uma pré-existente proposição. É isso que é uma Suor Angélica. Ela fez, o que é muito intrigante você imaginar, e também me convidou para fazer o cenário, e aí já éramos conhecidos de outros episódios, a coisa já era mais um telefonema de amigo, uma consulta, esse tipo
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de coisa da vida cotidiana, que todos nós conhecemos. Um espetáculo chamado O Futebol: a Bia montou e dirigiu a encenação desse espetáculo de modo inaugural. Foi a primeira vez que ele surgiu. Foram duas coisas que eu vi assim feitas pela Bia Lessa, que a outra foi O Homem sem Qualidades, texto do Musil, que, tenho a impressão, nunca se levou ao teatro. E o Albert Renault fez inclusive o Futebol e esse. São dois espetáculos, digamos, inéditos. Tem um valor muito interessante, o fato de ser inédito. O Futebol é fantástico, a ideia é maravilhosa: do lugar onde não havia terreno horizontal. Era um lugar à beiramar onde passava um inglês à bordo de um navio e ele deu uma bola de presente para o pessoal usar e mais ou menos explicou como se jogava futebol. E eles passaram a jogar futebol num terreno escabroso. A história é essa, até que um dia – e é muito bonito porque é uma espécie de parábola sobre o êxito da técnica-, essa esfera, que só toca no chão num ponto, um balão inflável. Ela encontra um terreno horizontal e aquilo é um grande sucesso. Há uma imagem nessa montagem, que estava no escrito, que era a realização, a apoteose final, quando o futebol se torna possível por um terreno finalmente horizontal, feita com a música. Porque é de uma gravação editada de um momento extraordinário, que é uma manifestação culminante, real, de um Fla x Flu, no Maracanã. Então apoteótico com valor de música, com valor sinfônico, porque não há nada mais complexo quanto a composição de timbres e sons de uma orquestra sinfônica. Porque são cento e setenta mil espectadores gritando. Isso tudo porque é a capacidade humana de enfrentar a grande dificuldade de dizer o que quer dizer, ou seja, inventar linguagens, é isso que se chama obra de arte. O fundamental num curso de arquitetura, sobre essa questão, me parece, é dizer, que a obra de arquitetura, as construções, são obras de caráter espetacular, no sentido de descrição da imagem que temos de nós mesmos, não é nada definitivo. É para amparar a imprevisibilidade da vida que você constrói um prédio de apartamentos, um edifício de escritório, etc.
Exibir o êxito da técnica e amparar a imprevisibilidade da vida são os dois paradigmas de qualquer espetáculo, considerando que a vida cotidiana numa cidade é, para nós, antes de mais nada, um espetáculo. FP Nesse sentido, você acha que quando se projeta cenografia há mais liberdade de criação? PMR Você tem total liberdade, você pode dizer que a vida de uma cidade é uma cenografia. Cada um se veste porque quer sair na rua. Se veste, quero dizer, escolhe a roupa. Cada um se veste de acordo com o que acha que deve fazer. Nós vivemos num teatro, por isso que existe o teatro. Ele é uma concentração para nos fazer ver intensamente aquilo que vivemos no dia-a-dia. Incluindo as coisas não visíveis, aparentemente: angústia, ciúmes, ódio, aflição, ternura, fome. FP Mas a cenografia pode te permitir entrar em detalhes que são diferentes? De como, por exemplo, um ator vai interferir naquele espaço, que seria diferente da maneira que uma pessoa interferiria numa arquitetura. A vivência é outra. PMR É uma combinação. É um pacto de que vamos representar o que é o dia-a-dia de todos nós, de uma maneira aguda, para se ver isso ou aquilo. A acentuação de situações, que é o teatro. Nós comentamos de que o Puccini fez [a ópera Suor Angélica] para a irmã dele não entrar naquela porcaria que é o convento.
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FP O teatro tem outra questão no que se refere à visualidade. PMR É tudo acentuado. Tanto que se usa a expressão “atitude teatral”. É uma acentuação daquilo que você quer destacar. Daquilo que e cotidiano. Você lembra, por exemplo, de Otello, que tem um trecho final, em que ele vai matá-la [matar Desdêmona], que já está deitado sobre ela para estrangulá-la, e aí que está. Eu iria dizer “ela diz”, mas é o Shakespeare que diz como se ela tivesse dizendo para você ver. Isso que é teatro. Ela diz “let me live tonight”, e você pode ficar pensando dez minutos sobre isso, “que tal, me deixe viver?”, “why don’t you kill me tomorrow?”. Olha que genialidade do Shakespeare, uma mulher sabendo que vai ser matada diz assim, “já que você tem uma grande atração por mim, me deixe viver”. Não é uma maravilha total? Como se pode dizer como se faz isso? Temos que considerar a condição humana, não são figuras completamente privilegiadas, mas que se tornaram extraordinárias porque passaram a vida criados naquilo, isso ninguém explica. FP É igual à questão da vivência, que você disse antes. De o quanto a pessoa está imersa em algo. PMR Sim, exatamente. Como um cientista: você não consegue, distraído, descobrir coisa nenhuma. Tem que se dedicar, falar com os outros, e andar, milímetro a milímetro, em direção a um desejo ainda não realizado, configurado. Que é uma ideia de clareza da configuração, discutível. Porque, se você persegue um desejo, é evidente que ele tem que ser claro, se não, você abandona por outro.
Portanto ele não está claramente configurado, mas pode estar estupendemente desejado. É interessante essa ideia onde a coisa ainda não existe. O teatro é uma invenção nossa, e se é uma invenção, você tem toda a liberdade. Você tem toda a liberdade, já foi dito, e parece sempre agradável quando se fala de criatividade, obra de arte: a liberdade. Mas, ao mesmo, tempo, quem já experimentou ou tenta, você tem toda a liberdade e nenhuma, ao mesmo tempo, justamente por que quer dizer aquilo. E é nessa contradição aguda, que surge o previsível como altamente sedutor: Demoiseles d’Avignon, por exemplo. Por que fazer aquela mesma prostituta, que era a coisa mais banal na vida parisiense, com máscara africana, de mulheres mágicas. É uma chamada de atenção: olha a presunção do seu saber, há um outro saber que não se põe sobre os outros. Essa força é tão real, que a coisa fica. Quantos pintores não tentaram copiar simplesmente pela visão formal da coisa? Não sabemos, e aquele está lá. É uma das condições humanas, o reconhecimento por nós mesmos da supremacia de um discurso bem posto, dada a dificuldade de se dizer o que se quer dizer. FP E no que tange o espaço vazio, porque o teatro é um lugar existente... PMR Na Bia Lessa, uma das supremas maravilhas da montagem dela, particularmente no Suor Angélica, se dá, e veja bem que expressão eu vou usar, no uso do coro. O coro entra na ópera na concepção do Puccini, e muito bem engendrado, nota musical por nota musical, no momento certo, não é permanente o coro, mas é o coro que canta dentro daquele convento. Aonde? No coro da capela. Onde que ensaia? O que se pode imaginar a partir daí? Olha que genialidade, e imagino que isso é inédito. Puccini deveria adorar isso. O que a Bia Lessa fez? Primeiro, foi uma luta, inclusive, com o pessoal de teatro, que eles não queriam, mas ela escondeu o coro. Mas como não fica bem cantar atrás da parede, o coro ficava atrás de uma parte da parede, mas que simulava 168
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uma parede, porque era uma tela, para tornar o som mais perto daquilo que se pretende, não abafar o som. Mas tem outro momento em que o coro aparece, e que a Bia inventou uma coisa maravilhosa, para convocar essa ideia da espacialidade do convento. Ela dividiu os trinta e cinco personagens do coro, de acordo, inclusive, com as vozes, em grupos de oito ou dez, no camarote, lá atrás, escondido. Mais cinco ou seis na torrinha sei lá aonde, aí quando eles tiveram que cantar, muito bem ensaiados, cantaram dentro do teatro inteiro. Ou seja, a plateia se viu dentro do convento. Porque, se nós dissermos aqui mais uma vez, a infame palavra, na minha opinião, de que temos a liberdade para fazermos o que quisermos, eu quero dizer, justamente não, porque foi o Puccini que nos disse como cantava, configurava, no sentido de ver com os ouvidos. Como diz o Padre Vieira, a dimensão fechada do convento. Foi a obrigação de se lidar com isso que levou a fazer o que foi feito. Uma maravilha. E esse poder de encantamento, que se fala com uma visão formalista, mecanicista, comercial, de espectadores e atores. Os músicos da orquestra, assim que isso foi proposto, a primeira vez que se ensaiou, o maestro e a orquestra toda estavam muito comovidos, pelo êxito da técnica. Portanto nós somos isso. Nós mencionamos e lembramos outras montagens da Bia. O Homem sem Qualidades, por exemplo, é interessante considerar, se você vai comentar a presença da Bia Lessa em Puccini, essas duas outras que foram inventadas, que ela fez pela primeira vez, ninguém fez antes. Como vamos fazer isso? É muito agradável imaginar a edição pela primeira vez. Mais uma vez, no caso do Futebol, porque a Bia me chamou, porque ela precisava de um arquiteto, porque você transformar um palco inclinado, num palco horizontal, é uma engenhoca que, ela mesmo não sabia como fazer, nem eu, nem o pessoal do palco sabia. Começamos a inventar qualquer coisa, digamos, plausível, tão executável de se executar, quanto a beleza do espetáculo. Era um palco singelo,
da sede da FIESP, então, que mecanismo, para não ficar grotesco, para mexer esse palco inclinado, esse território impróprio, não horizontal? Não foi feito, como muitas vezes se faz no teatro, de uma cena para a outra, nos intervalos. Foi feito em cena aberta, foi se transformando, uma beleza. Outra questão interessante, que lembrei de comentar agora pensado nisso, é que em Suor Angélica não há transformação do cenário, é sempre o mesmo cenário, com essas transformações dadas pela música, no caso particular, da posição espacial do coro, uma vez que a orquestra não deve se mover. O resto é invenção, imaginação. Há um cavalo em O Homem sem Qualidades, que nós fizemos ele fazer coco em cena, e o coco do cavalo era repolhinho de Bruxelas. Sim, tinha que ser limpinho, para o teatro. Muitas vezes o humor não entra para fazer rir, entra para fazer chorar. Às vezes, você diz com mais força, quando escarnece a coisa. FP Essa plataforma que vocês fizeram no Futebol. O sistema, pelo que é possível ver em desenho, é bastante complexo. PMR Deixa eu te explicar, vou fazer um croqui aqui, aí você já leva. Porque se você vai fazer com um macaco hidráulico, rodízios ou não, depende do tamanho do palco. Às vezes é melhor um macaco, mas não é necessário. À rigor é assim: bom, aquele palco, por felicidade, tem fosso. Não fosso com elevador, mas fosso, então se pode entrar lá embaixo. O engenho é muito simples [começa a desenhar]. A cena começa aqui e isso é o campo de futebol inclinado, que você faz isso com uma treliça metálica. Não era nada muito grande, uma tesoura muito simples, com um estrado aqui, e tecido pendurado, para esconder do público até aqui. E a treliça vem aqui, apoiada no chão, simplesmente, e aqui tem uma dobradiça, de forma que se você puxa aqui, ele fica na horizontal. E agora o futebol se joga aqui. Eu falei do subsolo porque a gente se utilizou dele para fazer funcionar. Arranjou-se um pequeno furo e puxava 170
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lá, soltava uma trava aqui, e nesse momento não tinha ninguém em cima [do palco], mas acho que como a Bia gosta de exagerar, nesse ponto que é morto [na linha do eixo de rotação do palco inclinado], acho que tinha alguém que ficava ali. FP É um uso bonito do cenário este de colocar alguém no eixo de rotação. PMR É o trabalho dela. Agora eu estou lembrando. O pessoal vai andando e isso aqui vai descendo, como uma gangorra. Controla aqui para não cair... com corda. Surge a horizontal e o futebol se desenvolve. Edita-se aquele som ensurdecedor, de um Fla x Flu, na hora de um gol no Maracanã. Ela tinha feito isso com o coro [em Suor Angélica] e ela fez agora num auditório de cento e cinquenta lugares, uma dimensão de cento e cinquenta mil. A Bia faz o que, parece, deveria fazer, não é? Porque inventar essa peça aqui, no Brasil, o país do futebol... aí entra, antes da Bia, eu acho o Albert Renault um gênio. Por imaginar tudo isso. Ele não imaginou como faz, mas imaginou que não conseguia jogar direito o futebol, porque não havia o lugar, e de repente eles fizeram, o inglês ensinou... enfim. Conseguiram o espaço. É um exercício de mecânica, o que o futebol é, e ninguém percebe. Nós estamos em plena degenerescência. Não existe, na superfície do planeta, nenhum espaço naturalmente de 150x90m horizontal perfeito, tem que construir. Não é que você inventa porque tem uma inspiração, você pensa na coisa. Outra questão: a esfera, em tese, é tão intrigante, porque, em relação ao plano horizontal perfeito, só há um ponto de contato. Então, seja tão pesada quanto for essa esfera e tão monumental quanto seja esse plano horizontal: granito de 1x1km,
qualquer criança, com o dedo, rola a esfera. Essa condição mecânica. Agora, se você consegue, com uma esfera de tecido, com ar comprimido, leve, um campo perfeito, gramado... é um espetáculo de mecânica, rolar aquela bola. E ninguém dá bola, ninguém percebe isso, só fica gritando e esperneando, e se batendo. Enquanto, a rigor, deveria se aplaudir o time inimigo, se está jogando bem. É como no teatro. Ou seja, o futebol é popular, mas não precisava ser tão reducionista na questão sobre a reflexão de tudo isso. Não custava se comentar sobre essas coisas. E pensar que esses chamados grandes jogadores começam a raciocinar sobre isso, a capacidade de efeito na bola, vento. Fazem a bola fazer curva. Hoje em dia já se fala que a bola atingiu 150km/h em determinado chute, mas devia se fazer mais comentários sobre a exibição da física. Inclusive a excelência do teatro que é cada campo desses, que a luz caminha em linha reta, e qualquer lugar que você senta é perfeito. Mas as coisas podem se degenerar, como o teatro pode se degenerar. Já se viu que isso pode acontecer. Quanto ao tema, que foi muito bem levantado por você e é muito intrigante. Do que faz parte do raciocínio corriqueiro, da ideia de liberdade. Esse contraponto de que liberdade, na peça, na obra, no espetáculo que já existe, você tem liberdade e nenhuma ao mesmo tempo. Então, Esperando Godot, você pode fazer de inúmeros modos, desde que diga aquilo. Isso é interessante de se considerar. A condição humana em relação a esse panegírico constante da chamada entidade liberdade. Estamos condenados a viver nesse pedaço de pedra desamparado no universo, submetido às leis da mecânica celeste. Você larga, a coisa cai, a princípio. Portanto, dentro desse mistério todo, por que você está tão intrigado pelo brilho dessas coisas todas? Seja a música e o script, no caso de um Puccini, ou o que a Bia Lessa fez, ou mesmo o Emilio Kalil, que diz “ah! Eu vou fazer, vou chamar a Bia Lessa”. Porque associação de ideias, inclusive ideias que não estão visíveis, surge
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em convocação do que possa ocorrer, do que chama em seu íntimo, em seu inconsciente, porém, guardado para aparecer no momento da urgência, é o brilho do inconsciente de cada um, conforme o que você contou, que faz com que se torne oportuno o discurso diante dessa ideia de urgência: “eu tenho que dizer isso”. Então, a ideia de liberdade ou nenhuma liberdade, constrição, angústia, “eu tenho que dizer aquilo”, que faz a invenção da linguagem. Você inventa, como forma de dizer, aparentemente, o indizível. É isso que se chama obra de arte. Um modo novo de tentar dizer o indizível. Mas tentar dizer por alguém que viu que é necessário dizer. Essa é a questão. FP No sentido de o que você carrega e traz para a obra. O quanto as coisas que você está tratando naquele momento da sua vida te influenciam para fazer uma obra específica. Para fazer o seu trabalho. PMR Nunca é o seu trabalho, é o trabalho dos outros. Você nunca consegue ser o seu sozinho. FP Justamente. É aí que está o que estou tentando tratar, de como um influencia o outro. PMR Você pode ser incomodado pelas coisas externas ou até, lá pelas tantas, elas te abrem uma luz. Isso é totalmente imprevisível, você pode estar lendo um livro que não tem nada a ver com aquilo e você vai lendo e descobre que não tem nada a ver com aquilo, porque você lê para se distrair um pouco e dormir. Ou, ser surpreendido por esse mesmo livro, que te diz qualquer coisa que você vê que pode levar para o seu trabalho, mas que não era nem o que você estava pensando.
FP Hoje em dia, o que você vê de cenografia, de espetáculo, que te interessam? PMR Nós vivemos sobrecarregados pelo excesso de espetáculos. FP Porque você parou de fazer cenografia? PMR Ninguém para nem começa. FP Você faria novamente? PMR Com a Bia Lessa faria. Com ‘não sei quem’, talvez não. Depende do teatro, depende do momento, da situação. Pode ser por comodidade, egoísmo, presunção. Presunção no sentido de que pode estar enganado, você justamente desprezou, ou não aproveitou um outro momento que poderia ser brilhante. Enfim, você não sabe, você escolhe. No fundo, o que eu quero dizer é que não se aceita todo e qualquer convite. Você é muito mais convidado do que dançarino. FP É, essa é uma coisa que eu fiquei pensando, se haveria um interesse intelectual em fazer cenografia para você, hoje em dia. PMR Não. Para meu horizonte, não. Pelo que me fascinou, pelo que sou viciado, por assim dizer, já estou seduzido. É um horizonte que o teatro significa – a não ser que você saiba que é um breve momento, e aí fica extraordinário e ponto – um momento de afastamento e volta. Porque o teatro,
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de um modo geral, contém um certo confinamento. O ator mesmo é uma figura intrigante demais. Como ele pode, toda noite, representar e depois viver a vida dele. É uma figura muito castigada pelas nossas exigências, é muito maligno. E você se dá o direito de aplaudir ou vaiar. FP E há o fato de que o ator pode ter que conviver com um personagem perverso. PMR Sim, e há uma tendência. Já se viu isso repetidas vezes, do ator se vingar, obrigando a plateia a agir também. Chama interagir, ele está se vingando da canalha. FP E você tem outras coisas, que não são em parceria com a Bia Lessa, como a Ópera dos 500 Anos. PMR Sim, fiz a Ópera dos 500 Anos. Já tinha esquecido. Foi uma montagem que não se repete, uma comemoração dos quinhentos anos da descoberta da América. Acho que foi ainda com o Emilio Kalil ali. E foi um ano ou dois depois [de Suor Angélica] e ele se lembrou de mim, porque eis um cenário complicado, de unir século XX e século XV, navegação de caravelas, índios, etc. Usou-se muita luz, efeitos de luz fazem com que algumas peças de madeira engenhosamente dispostas. Apoiadas no chão e penduradas lá em cima com cabos invisíveis se transformem em caravelas, ou andaimes de obra, etc.
Ou coisas de índios, tábuas... A cidade contemporânea apareceu muito fortemente. Tiramos tudo o que tinha de fundo e aparece a parede lá do fundo do teatro mesmo. Só que ela estava organizada por uma grelha quase invisível de barras de aço esbeltas, capazes de suportar três fileiras sobrepostas de televisores ligados em canais diferentes, do tamanho da boca de cena do teatro. Televisões sem som, ou com um som que se tornava um ruído, que não chegava a incomodar, mas visível. Com muita gente passando de um lado para o outro. Você tem que saber o que não quer fazer, para não emporcalhar tudo. Ao lado Imagem 101 Croqui Ópera dos 500 anos Fonte: acervo Paulo Mendes da Rocha
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Entrevista: Bia Lessa
Fernando Passetti Você poderia comentar um pouco sobre os trabalhos que realizaram juntos? Em Um Homem Sem Qualidades, por exemplo, como aconteceu? Bia Lessa Abria a cortina e tinha uma arquibancada de plateia no palco, então não tinha palco, e aos poucos o palco ia sendo empurrado e a gente tinha plateia dos dois lados, e a plateia que era essa que o Paulo fez, que ficava no palco. A gente dava umas câmeras fotográficas para que ficasse evidente a presença. Tinha um cavalo que era das coisas mais extraordinárias que o Paulo já fez, que era deslumbrante. O cavalo ele fez um retângulo com uma roda escondida e uma roda quadrada, então ele trotava. Aquilo era um deslumbramento. O que ele fez no Angélica que eu achava sensacional. Porque a coisa da ópera é as pessoas cantarem na frente do maestro, então ele deixou dois metros aqui. A cena toda se desenvolvia aqui e as freirinhas vinham lá de baixo, e elas iam surgindo. E a gente fez essa parede gigante com essas escadas e as freirinhas que subiam pelas paredes, que era o que a gente morria de rir. Tinha essa portinha que elas eram obrigadas a abaixar para entrar e sair do lugar, e essas gavetas, que elas abriam e caiam folhas e flores, que eram as ervas que apareciam na ópera4. 4 Neste momento houve uma interrupção na entrevista.
Eu liguei para ele e foi excelente, porque eu não conhecia ele e ele falou “não, acho que você está querendo falar com meu filho”, e eu falei “não, é tu mesmo”. E daí, nesse trabalho da Angélica não tinha escada possível depois que
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3 Bia Lessa pegou uma cópia da crítica de Luis Antônio Giron, em que o crítico insinua que a diretora carioca havia copiado o cenário de The Forest, de Robert Wilson.
aquela escada foi feita, para afinar os refletores. Daí foi um caos. Daí o Paulo falava “mas não tem problema: a gente desce os refletores, calcula aonde a gente quer que fique a luz e pronto” e a gente falou “mas não dá! A gente tem que ver” e daí foi a primeira briga feia que a gente teve, que ele falava “mas você não acredita na matemática!?” e a gente falava “não, Paulo, tem que ver, tem que enxergar!”. É bonito isso. FP E teatro tem muito disso, até você se familiarizar com o ballet todo, demora. BL Total. E ele é um gênio. O Paulo é um gênio. É um cara... nem sei... é um cara que eu não faço nada na vida sem falar com ele, porque tudo ele tem uma visão própria, única. Fora que é a melhor pessoa do mundo, né? De amigo. É a melhor pessoa do mundo, o melhor amigo do mundo3. Eu lembro quando saiu essa crítica. Eu fiquei doente, eu era muito menina. E essa história foi doida, porque foi o Gerald [Thomas] que viu a ópera, que falou para o [Luis Antônio] Giron, quando saiu eu fiquei louca. O Giron nunca tinha visto uma peça do Bob Wilson na vida. Imagina, montamos a Ópera cinco vezes depois disso. FP É, ele fez uma crítica bem forte. BL É, foi foda. Foi barra pesada, eu lembro que eu senti muito. Eu ainda achava que isso tinha importância naquela época.
FP Eu queria que você contasse um pouco como foi trabalhar com Paulo Mendes da Rocha, como foram os processos e como você chegou no arquiteto, como ele reagiu? BL É, foi isso. Eu cheguei nele porque eu, de fato, sou uma pessoa que eu não gosto de cenografia. Eu gosto de geografia e eu acho que o Paulo é um cara da geografia. Então, uma coisa que me incomodava demais era o excesso de decoração que existia nos cenários, e eu sempre gostei de trabalhar com espaço. Daí eu fui chamada para fazer essa ópera no Municipal, o Suor Angélica. Eu lembro que faltava vinte e nove dias para a estreia, e era para eu fazer com um cenário que já existia, de uma outra montagem. Daí eu estava com um amigo, o Toni Vanzolini, e o Toni me lembrou do Paulo. E daí eu lembro que eu convenci o Kalil, o Emilio Kalil, que era diretor do Municipal, para chamar o Paulo e daí teve esse telefonema bizarro que falou “você deve estar querendo falar com meu filho”. E foi engraçado, porque acho que dali a gente travou uma cumplicidade e uma amizade que foi ao longo da vida. Sei lá, no meu primeiro encontro o Paulo já me interessou imensamente, quer dizer, estar com o Paulo é encontrar algo que você realmente... você aprende tomando café, você aprende andando na rua. Você repara que está na frente de uma pessoa extraordinária. O Paulo é uma pessoa extraordinária. E eu lembro que todos os projetos ele fazia muito imediatamente. Não tinha muito processo, é uma conversa, e o que eu acho legal é que o trabalho tem sempre uma relação muito profunda com o conteúdo, quer dizer, ele não trabalha a partir de um traço, de uma beleza... Não. É sempre a partir de um conteúdo. E isso nele eu acho absolutamente extraordinário. Então essa coisa da Angélica, por exemplo, era lindo. A gente está pensando que os cantores ficam na frente, então a gente criou esse espaço que eram dois metros, exatamente no proscênio, onde tudo acontecia ali.
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FP Sempre vocês trabalhando juntos? BL Sim, a gente sempre trabalhou junto. Eu acho que meu papel era dizer “isso, Paulo!” “Isso! É isso que eu quero!” Eu lembro que na Angélica a gente fez esse primeiro esboço e ele falava “não, mas será que...” e eu falava “não, Paulo. Nada é melhor do que isso”; “mas será que essa escadaria vindo não vai ficar demais?”; “não Paulo!” e assim ia. Então era um desejo que ele tinha. E era lindo, porque além do desenho, sempre tinha uma coisa que era uma forma de construção muito fácil, muito simples. Quer dizer, além dessa característica dos cantores na frente, essas freiras que subiam dessa clausura, o espaço era uma clausura. Quer dizer, ele usou todos os elevadores do palco do Municipal. Quer dizer, ele trabalha com o que tem. Isso que eu quero dizer. Ele utiliza do que tem. Até outro dia, conversando com ele, ele falou que ele não aguentava mais fazer projetos, que o negócio dele era fazer reformas. Ele fala “tudo já está”. Ele falou brincando, acho. Ele falou que até quando tem um novo projeto ele fala “eu mando os meninos fazerem que eu chego e mudo”. Essa coisa de lidar com o que há. Como ele lida com o terreno, como ele lida com o conteúdo, como ele lida com a própria caixa cênica. Daí, quando a gente fez o Futebol, eu lembro que, nas primeiras conversas... porque tem aquele estádio dele que é deslumbrante, e ele ficou me explicando que o bom, que o difícil do estádio é o campo reto. A drenagem que tem que ter. Que o resto é pura papagaiada, mas que o bonito é a linha horizontal. E eu falei “o bonito é isso”, e a gente fez. O espetáculo era uma rampa e o espetáculo acontecia todo nessa rampa e no final do espetáculo, quando surgia o futebol, essa rampa ficava absolutamente reta e nascia o futebol. Então as coisas eram muito... como vou dizer... era quase que o cenário que tinha que ter. Era o espaço que tinha que ser. Não teria como ser um outro. Por isso que é bom de trabalhar com o Paulo, ele é um cara que faz a única coisa que deveria ser feita. Então é curioso porque ele faz surgir algo que você fala “só podia ser isso”.
FP Super preciso. BL Preciso. Preciso e criativo num grau que sei lá. No O Homem Sem Qualidades, nesse romance do [Robert] Musil, o que era mais interessante era essa questão da observação do homem contemporâneo, da observação do outro. Sobre ele, e ele sobre todas as coisas, então esse espetáculo era sobre observação. Então no palco vai o que? Vai quem olha. Então está o que? Está a plateia. Poderia ser outra coisa? Não. Daí era bonito, porque ficava a plateia e a gente tinha uma estrutura de escola de samba. Os atores e as coisas entravam de um lado e saiam do outro, como uma passarela. Então a gente trabalhou o espetáculo inteiro nesse sentido. Era uma grande escola de samba que passava ali, pela frente dos espectadores. Então ele é muito preciso, ele teve também um dia, que a gente foi chamado mas acabou não fazendo, que era o Pavilhão do Brasil em Xangai, na época da Expo de Xangai. E eu lembro que eu fiquei louca, porque eles me chamaram e eu falei que eu queria fazer com o Paulo, daí fui pra São Paulo e o Paulo teve uma ideia que era estupenda, mas depois eles tentaram que eu fizesse com outro arquiteto e daí já não interessava mais. Era um terreno de 60x50m e era uma coisa que teria que ser transportável. Daí ele fez um cubão de 50x50m e isso era daquela estrutura Mills, essa básica de construção. E em cima tinha lona, ele era coberto por uma lona, e essa lona tinha um buraco no centro, e caia num grande lago. Então ele botou um tubo, em que essa água ficava represada, ou ficava caindo um pouquinho, ou caía mesmo. E era tão bonitinho, ele fava “e as pessoas estariam ali dentro dizendo ‘chove lá fora’. E aqui tinha uma piscina, um espaço para essa água ficar quando caísse, e daí era reaproveitada para os banheiros e tudo. E precisava de um teatro, e ele fez uma coisa que eu achei tão foda. Ele fez uma coisa que era uma arquibancada dentro [da piscina], aí quando esvaziava você tinha essa arquibancada. E daí o palco virava a estrutura inteira [do 182
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pavilhão]. As pessoas ficavam numa altura que o palco era todo o espaço. Eu lembro que eu fiquei... Isso é uma coisa que eu ainda falo “Paulo, vamos fazer isso aqui!”, porque era lindo. E daí tivemos uma ideia que do lado de fora, como a parede era vazada, a gente poderia fazer... a gente fecharia ela, e abriria, e fecharia, então seria um edifício que você veria as pessoas circulando por ele o tempo inteiro, seria um edifício de gente, e daí tudo que tivesse que ser exposto seria exposto pendurado, não teria nada nas paredes e eu achei extraordinário, e isso aqui [a cobertura] seria translúcido, e a água que caía, e esse palco... eu fiquei louca. Então ele tem essa coisa que ele lida com o real, com o que é, não tem firula, não tem nada além do que precisa. Aí tem coisas que eu acho bonitinho. Que quando ele mudou da casa do Butantã e foi morar no apartamento eu falei “puxa Paulo, vai sair daquela casa para morar num apartamento?” ele falou “Bia, é um apartamento, uma cama, um lugar pra fazer xixi e cocô, mais nada”. E ele é isso. Se entrar no escritório dele, tem o que precisa. Até ontem não tinha nem água, porque para tomar água a gente tinha que ir no botequim pra ir lá conviver com a cidade, “onde tem água é lá, não tem que ficar aqui dentro”. Agora não, agora já tem uma secretária, água, um banheiro um pouco arrumado, coisa que até ontem... um banheiro misturado com a dispensa, e tudo deslumbrante como ele é. FP Vocês fizeram diversos projetos durante uma década, nos anos 1990 foi tudo. Foi uma parceria muito forte. BL Ainda é muito parceria porque, mesmo que ele não faça agora atualmente os cenários, tudo que eu faço eu converso com ele.
FP Tem a mão dele lá atrás. BL Sim, eu gosto de sentar com o Paulo e conversar. Tanto que eu tenho essas fitas, que sei lá. Tem umas quinze fitas de gravação dele falando sobre as coisas mais variadas. FP É incrível ver ele falar. BL É deslumbrante. A favela, por exemplo. Quando eu ia fazer o projeto do carnaval da favela, ele me ajudou muitíssimo. Ver ele falando da favela foi o que me deu todo o escopo, a intenção, a importância. Agora esse negócio que eu fui fazer na ONU, também. Que era um projeto de um filme sobre guerra e paz, foi incrível ter conversado com ele. E eu amei, porque tinha uma hora da projeção que vinham os sabidos e não sabidos no mundo, e daí quando chegou a contemporaneidade eu coloquei: Eduardo Viveiros de Castro, Paulo Mendes da Rocha e Almodóvar. E ficavam os três gigantes e eu falava “tá aqui”. Nosso fofo, nosso sábio. Eu acho ele muito extraordinário. Então é isso, mudou um pouco a parceria, mas continua boa. FP Continua presente. BL É, sempre. Eu fiz uma maluquice que foi: sobrou um dinheirinho e eu tenho pânico de aposentadoria, e morro de medo de ficar doente. Aí tinha sobrado um dinheiro e eu tentei comprar um micro apartamento e não consegui, aí uma amiga minha falou “compra em Berlin” e eu entrei na internet e comprei uma porra de um apartamento desse tamanhinho em Berlin. E daí foi bonitinho, porque daí eu falei com o Paulo e o Paulo ficou louco “não é possível! Comprado pela internet! Helene!” e chamou
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Helene: “olha isso aqui”. E daí eu fui no apartamento e falei “Paulo, me ajuda aqui”. E ele fez um projeto pro apartamento que é sensacional. Mas o bonito é o jeito que ele faz, porque ele muda o vaso [sanitário] e muda o apartamento inteiro. E daí ele falava assim: “olha como seu apartamento é gigante, olha que sala! Olha, sua cozinha tem 4m de bancada, não pode ter banheiro melhor que esse” e era bonito porque o apartamento não era nada. Uma cozinha, um banheiro e aqui entrava. E ele botou uma porta de correr, mudou o vaso e criou uma bancada, botou uma estante, abriu as portas... não é nada, mas você olha e você fala “caralho! Mudou tudo”, é deslumbrante, e ele faz em dez minutos, e ele para e fala, e liga, e fala “eu pensei numa coisa”. Daí foi lindo, porque eu falei “é pequenininho e eu sou turma, gosto de andar com gente, pra mim quatro não é nada”, daí eu falei “quero um lugar onde possa dormir pelo menos quatro”, daí ele olhava e disse “aqui dorme dezesseis” e ele desenhou todos os móveis. Então ele é desses, ele é cuidadoso e... como que eu falo? Do que ele gosta, ele gosta. FP E você vai a São Paulo encontrá-lo? Você encontra com ele? BL Encontro, não muito. Pelo menos de três em três meses. A última vez que eu fui foi ótima, eu passei o dia inteiro com ele no escritório, e no escritório dele as pessoas entram, conversam. Daí eu lembro que chegou um cara que era um engenheiro, que é o calculista do Museu dos Coches, lá em Portugal, depois chegou um arquiteto uruguaio que mexe com umas coisas de tijolos, que é ótimo. E ficou horas lá conversando com o Paulo, daí chegou um maluco da FAU, um aluno que ele tem há trinta anos, que vai lá e mostra os projetos, daí ele olha, tem atenção, mas é louco mesmo, maluco.
FP Eu fiquei aqui pensando de como começava a coisa. Como começava o projeto de vocês? Você já tinha uma primeira ideia? BL Não necessariamente. A gente começa falando do conteúdo, do que é a ópera, por exemplo. Acontece assim, então uma coisa leva à outra. É muito em cima do essencial da história, do conteúdo. Porque eu acho que o conteúdo pra ele é como se fosse o terreno, e o programa são as necessidades básicas da cena. Então, por exemplo, no Angélica tinha uma coisa que eu adorava, ópera é muito bonito, porque as pessoas que assistem ópera conhecem ópera profundamente e tem sinais: o momento que a pessoa levanta na luz e que tira o punhal, por exemplo. Então tem esses momentos. E na Angélica tem esses momentos: o momento que ela vai na fonte. Então onde está a fonte? E era lindo, porque a fonte da Angélica era uma torneira do lado, que abria e caia um fiapo de água. E isso que eu acho legal no Paulo, porque tem lá a fonte, mas nossa fonte é uma torneira, não é uma fonte realista, é uma torneirinha que ela usa para lavar o pé, que usa para regar as plantas. Por isso que eu falo que é em cima do conteúdo, não tem ideia. É como se não existisse ideia. Existe resultado de um raciocínio, que pode gerar uma ideia, mas não tem uma lâmpada, a coisa legal... nunca vi o Paulo trabalhar assim. Ele vai em cima do que tem que ser feito.
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FP Deve ser um processo de trabalho ótimo. BL Eu acho incrível. E é rodeado de literaturas, de poesias, de quem ele está junto. Ele vai e pega um livro, e mostra. Tem um devaneio, só que é um devaneio absolutamente prático. Ele é um cara que... é um devaneio objetivo, não é um devaneio que não leva a lugar nenhum. Eu lembro que teve uma vez que eu fui lá, porque tinham me chamado pra fazer o Museu do Homem Brasileiro, daí eu fui lá falar com ele sobre o Museu do Homem Brasileiro e ele falou “Bia, Museu do Homem Brasileiro... isso é uma imbecilidade. Homem é homem. Japonês, alemão” e ele foi, foi, foi... e eu pensei “pode ser uma boa ideia esse Museu do Homem Brasileiro”. Mas é lindo, porque ele vai e desconstrói, desconstrói, desconstrói. Daí ele arruma um caminho e o caminho era lindo. Era bonito, porque ele falava que o Museu do Homem talvez devesse ser uma praça onde devessem ter todas as informações de tudo que está acontecendo no mundo, então por acaso estava no Brasil, naquele lugar, mas tinha que ser um lugar de difusão de tudo que está acontecendo. Então você ter televisões do mundo inteiro conectadas naquele assunto. Então ele é um cara incrível. A gente fez o projeto, mas acabou não acontecendo, por enquanto. Então eu acho que ele é um cara do concreto, e sempre rápido.
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Considerações finais
A cenografia enquanto área do conhecimento pode abarcar, como visto anteriormente, profissionais de diversas áreas. Diferentes conhecimentos e visões sobre o espaço geram cenografias com caráteres distintos, o que fica visível ao analisarmos as obras de Laura Vinci e Paulo Mendes da Rocha. Ambos privilegiam uma cenografia sem ornamentos, não realista. Porém, o que se vê em Laura Vinci, não é encontrado em Paulo Mendes da Rocha, e vice-versa. Vinci trabalha o espaço cênico a partir da matéria, do tangível ao ator, pensando nele e em suas ações sobre a cenografia. É uma maneira de pensar as diferentes possibilidades de palco através dos usos e ocupações daqueles que vivenciarão aquele espaço. A própria forma de criação dos espetáculos da Mundana Companhia de Teatro privilegia a cenografia de Vinci: os exercícios cênicos são criados a partir dos espaços propostos pela equipe de cenografia, assim, desde seu início, a atuação está atrelada ao cenário. Já Paulo Mendes da Rocha possui uma visão sobre a cenografia que está extremamente ligada à sua maneira de pensar a arquitetura. O processo de criação, um conjunto com a diretora Bia Lessa, resulta em um cenário preciso às necessidades do texto, assim como suas arquiteturas são ao programa. Finalizar este trabalho é, portanto, compreender, em grande medida, maneiras de se pensar e de se fazer cenografia. É, também, o prazer de ter conhecido e imergido nas obras de Laura Vinci e Paulo Mendes da Rocha e, sobretudo, conseguir reunir suas produções, discutindo-as.
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