Boneco iluminarias

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ILUMINURAS Pequenos ensaios sobre cinema e audiovisual



Para Carla e Lorena.



Prefácio Este livro, é importante enfatizar, não trata cinema como objeto direto de discussão. O livro trata cinema como processo dimensionado entre a história e o pensamento sobre linguagem, abrindo janelas de reflexão. De forma brilhante Weschenfelder fornece ao leitor um ensaio de excertos que se assemelham a um bloco de anotações. Cada capítulo ou tema começa falando de um autor ou de uma técnica, se não sobre um estilo ou algum termo formulado por críticos. E inseridas nessa montagem, imagens interrogativas. Uma provocação é contínua na escolha dos temas e em sua não-linearidade cronológica, juntando peças de situações descritas – como a sessão em que Vinicius de Moraes montou para Orson Welles assistir Limite, de Mário Peixoto, em 1942 – com sua própria memória afetiva, junção ilustrada em sentenças curtas. Muitas camadas nessas frases curtas, que se filmadas seriam cortes secos, combinam uma potência de poesia e ironia, condensando metáforas em narrativa simples, acessível. A memória é o tema do ensaio, com doses generosas de informações para todos que quiserem saber um pouco mais sobre cinema na modernidade, cinema como arte e as implicações do audiovisual no contemporâneo. Um livro para ler e reler, deixando uma luz entrar pelas janelas. Pedro MC Ilha de Santa Catarina, outono 2017

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Nuvens Para Magda Ruschel

Os irmãos Lumière – inventores do cinematógrafo – foram, para Jacques Aumont (2011), os últimos pintores impressionistas. A paisagem esfumaçada e com ponto de vista móvel alcança tal imaterialidade e fluidez, que só o cinema, com seu movimento no espaço, poderia suceder. A imagem ganha a consistência de uma nuvem. Alguns cineastas pesam na imagem, carregam toneladas, como John Ford (o peso da terra a desbravar), Glauber Rocha (o peso da terra seca), Hithcock (o peso da altura, da vertigem) e Bergman (o peso do céu inquisidor). Outros, são leves, líquidos, como Truffaut, Won Kar-Wai e Murnau.

Na TV não existem nuvens. Só previsão do tempo. O que não deixa de ser intrigante é que, George Meliès, justamente o artista dos vaudevilles, do circo, enfim, da balbúrdia, viu, através da imagem, o mais improvável nos filmetes dos Lumière: o vento balançando as folhas das árvores. Aí nasceu a ficção. Pois nada mais transparente, matéria do imaginário, do que um facho de luz projetando céu na sala escura.

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Digital A imagem digital é numérica, gerada em banco de dados de informação. Os números se transformam, assim, em imagens. É uma imagem que se calcula. No fundo, toda imagem é calculada, seja na geometria da moldura, do enquadramento ou do escâner. Calcular, na etimologia da palavra, é contar pedras. Os antigos calculavam, na palma da mão, pedras, ou seja, imagens concretas, para alcançar números, abstrações. Hoje, o computador faz as contas e gera a imagem. Na visão de Flusser (2008), o computador “imagina” a imagem, o conceito da imagem. A imagem háptica, isto é, a imagem que, além da visão, proporciona o sentido tátil, do toque, parece ser a imagem do presente. Todo mundo seleciona, abre, arrasta e exclui as imagens com o dedo na tela do celular. E se estivermos somente empilhando e selecionando pedras acreditando que estamos “produzindo” imagens? A impressão digital, afinal, está na palma da mão. O pintor Pollock intuiu isso ao substituir o cálculo pela sensação exata da tela.

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Origens Por qual visão o cinema se tornou cultura? Nas paredes da caverna de Lascaux, nas lanternas mágicas, na interpretação dos sonhos em Freud ou nas pinturas de Manet?

Na constelação de todas, quem vai saber? Godard zombou do marco inaugural de 1895 com a primeira exibição dos irmãos Lumière no Grand Café de Paris. Para Godard, trata-se de um dado meramente comercial, histórico e ultrapassado. Velásquez pintou o quadro As Meninas em 1656. A imagem se faz cinema na medida da imaginação possível da técnica, antes mesmo do cinematógrafo. Por quanto tempo esse quadro, multiplicado, me olha enquanto meu olho age, em movimento, sobre ele? Para Foucault (1999), o quadro de Velásquez “olha a cena para qual ele é, por sua vez, uma cena”. De cena em cena, a imagem em movimento nasceu enquanto estávamos, distraídos, assistindo à passagem prosaica dos dias e das noites.

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Imagem e semelhança O rosto no cinema está entre a paisagem e a textualidade. O primeiro plano do ator instaura olhares, dentro e fora da imagem. Planos e planícies, visível e vidente. Imagem, ao mesmo tempo, do reconhecimento e do enigma. Quando não se vê o rosto, com que cara a imagem se mostra aos olhos dos outros? Em Camille Claudel 1915, de Bruno Dumont (2013), a protagonista começa o filme de costas, pelo avesso da figuração. Os rostos que rondam a sua vista são grotescos, gritantes, como nos quadros de Francis Bacon. Esses rostos, que olham e são olhados, se cristalizam em esculturas, que permanecem na imagem do pesadelo de Claudel.

Cegueira da Visão Toda imagem existe porque olhamos para ela. As imagens suplicam olhares. Existe, no entanto, uma imagem que não pode ser vista: o olhar da Medusa.

Sob pena de se tornar para sempre pedra.

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O cinema, arte de ver sem ser visto, tolera a cegueira da visão? Os cegos no cinema são videntes que olham através da imagem. João Batista de Andrade criou um contador de histórias em O cego que gritava luz quando os cineastas brasileiros estavam cegos e famintos por causa do governo Collor. A moça cega de A Vila precisa atravessar a floresta cheia de monstros em busca do remédio que salvará a vida do noivo. A cegueira é sua força. Ela não vê a farsa da sociedade e abre caminho para a lucidez. Selma, de Dançando no Escuro, vive na escuridão para que a próxima geração, o seu filho, enxergue. A tela Cabeça de Medusa, de Caravaggio, retrata a Medusa no último olhar antes do golpe fatal que lhe corta a cabeça. No mundo repleto de telas, os olhos estão hipertrofiados. Mas ainda fechamos nossos olhos diante dos sentimentos mais profundos: no beijo e no sonho.

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Geometria A perspectiva renascentista coloca o espectador como fonte do olhar. A tela seria uma janela que se abre à visão do mundo. Tudo nos leva, então, ao centro da imagem. Eisenstein foi o cineasta que desestabilizou essa noção clássica ao buscar, na pintura e na poesia japonesa, as linhas e formas sobrepostas e descontínuas. Em Eisenstein, não só a montagem entre as imagens é conflitante, como a montagem interna ao quadro subverte a lógica naturalista. A “geometria da forma”, proposta pelo cineasta, consiste em desarmonizar a composição dos objetos em volumes, escalas, tonalidades e luzes.

A geometria pelo avesso. A perspectiva é, de todo modo, um espelho, ou seja, uma tela que se reconhece no mundo tridimensional. O quadro audiovisual proposto por Eisenstein é, por outro lado, um espelho quebrado, estilhaçado. Quem criou o espelho infinito foi justamente um geometricista por excelência, o pintor Escher. Ele criou a aparição e o assombro de dois espelhos colocados frente a frente.

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Grotesco Para Lela Martorano

As imagens grotescas eram, na pré-história das visualidades, as formas que habitavam o fundo das grutas. Diante disso, o que podemos considerar, hoje, grotesco no mundo das imagens? Uma coisa é certa, de Goya a Cronenberg, não é mais preciso ir às profundezas das cavernas para alcançar a imagem grotesca. Basta habitar, da sala de estar, os telejornais diários. Talvez, Evgen Bavcar, o fotógrafo cego, seja o Platão contemporâneo que tateia nas sombras frestas de luz. As suas imagens são, no fundo, um clarão contra as imagens grotescas da mídia.

Anatomia do Movimento Para Suzana Kilpp

No Renascimento havia a preocupação em fazer a anatomia do corpo humano para a realização de esculturas e estudos pictóricos. Michelangelo é o grande exemplo desse método, ao dissecar os corpos de cadáveres para estudos científicos e artísticos.

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A arte e a ciência se unem nesse período. Já na Modernidade, a ciência ajudou na construção da percepção do movimento, o que pode ser chamada de uma ‘anatomia do movimento’, algo bem moderno no sentido do deslocamento de corpos e sensações no espaço e no tempo. No século XIX, cientistas como Marey e Muybridge, com seus estudos fotográficos sobre a ação do movimento, abriram caminho para a invenção do cinema. Nessas imagens existe a intuição do cinema: o escâner do movimento.

Holograma Para Charles Bicalho

A poesia concreta da década de 1950, de certa forma, se completou na década de 1980, com a vídeo-arte. O texto gráfico ganhou, assim, o movimento e a montagem das formas-palavras que sempre sonhou. Julio Plaza, artista espanhol radicado no Brasil, fez a ponte entre a poesia concreta e o vídeo. O seu “vídeotexto”, ferramenta de escrita e imagem, visto daqui, se parece com um tele-jogo (o precursor dos vídeos-games) conceitual e poético. Plaza subverteu o programa do jogo e criou o que ele chamava de “anti-ambiente” (1983), ou seja, um

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ambiente contra o sistema programado da máquina. Teoricamente, temos McLuhan e Flusser nessa jogada tecno-lúdica do Plaza. O videotexto podia ser manipulado dos dois lados, tanto pelo produtor como pelo receptor. Plaza, na cola dos concretistas, previou, ainda, o ambiente da internet.

Portais Como entramos e saímos das imagens? A imersão na imagem não é exclusividade das novas mídias e da simulação virtual. Quem nunca se perdeu nos labirintos bidimensionais do Escher ou nos panoramas interativos do século XIX? O modo como acessamos as imagens é cultural e técnico. Dar um passo, abrir a cortina, virar a página, apagar a luz e apertar o botão são formas de “entrar” no mundo da ficção. O menino assustado do quadro Escapando da Crítica (1874), de Pere Borrell del Caso, se refugia no mundo da ficção ou sai da moldura para se perder na realidade dos homens de carne e osso? O curioso, nesse quadro, é que quem tenta escapar da crítica não é o autor do quadro – o nome próprio susceptível à exterioridade – mas o personagem de dentro da pintura, que ultrapassa o portal simbólico

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que divide real e ficção. É por isso que as “esculturas vivas” de Ron Mueck nos assustam tanto: elas vivem entre nós, sem qualquer fronteira aparente entre a realidade e o imaginário. Saber abandonar essas imagens, tão semelhantes e que nos olham profundamente, é nos tornar mais humanos.

Reais Para Guilherme Muller

A realidade é uma abstração. E isto é verdade desde Platão, com o mito da caverna, em que o filósofo grego trata da falsificação da percepção sobre as imagens, na qual não se veem imagens puras, “reais”, mas sombras, duplicadas e tornadas imagens. Assim, não existe “uma” realidade. O que existem são múltiplas realidades ou formas diferentes de agir do real: surrealismo, neorrealismo, hiper-realismo, realidade expandida etc. O programa Big Brother é mais realista que o filme Dick Tracy?

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Uma forma de realismo está, por exemplo, na fotografia de Robert Capa (1936), em que um soldado de guerra cai morto no exato momento do disparo da câmera. Realidade ou encenação? A vida é muito mais intensa e imprecisa que qualquer imagem, sendo ela mesma a imagem mais aterrorizantemente real de todas.

Pausa A televisão está em todos os lugares. Apesar disso e, justamente, por isso, não existe mistério na TV, na percepção de Philippe Dubois (2004). O fluxo incontrolável da televisão é voltado sempre para dentro do aparelho. Personagens, apresentadores, notícias, produtos, tudo é familiar, descartável, negociado. A estratégia ideológica da televisão é manter o telespectador amarrado o maior tempo possível no mesmo lugar de sempre.

Existe algum lapso em que a televisão não fale de si mesma? O caso atual – e mais eloquente – é do programa Sangue Latino, do Canal Brasil, dirigido pelo escritor Eric Nepomuceno (a revolução vem de fora, como Orson Welles no cinema).

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Se o sentido primeiro da TV é o ouvir, Sangue Latino fala, tragicamente, do humano, do silêncio e da dúvida de seus seres miniaturizados em preto e branco.

Gafanhotos incandescentes Para Vilém Flusser (2007), vivemos num mundo codificado. A onipresença de imagens técnicas ao nosso redor cria uma verdadeira ecologia, uma natureza de signos. Nova Iorque talvez seja a cidade mais codificada, fotografada, filmada do mundo. Já vi(vi) essa cidade antes! Walter Benjamin viu uma nuvem de gafanhotos incandescentes na paisagem da cidade moderna. As luzes dos carros, das vitrines, dos neons produzem efeitos óticos, cinematográficos. No filme São Paulo: Sinfonia de uma Metrópole (1929), a cidade é representada como uma máquina futurista. Fora a ideologia ufanista do desenvolvimentismo, o filme é interessante por propor uma cidadeimagem. A natureza da cidade é ser a imagem que se faz dela. Quase setenta anos depois, Jean-Claude Bernardet faz o filme São Paulo, Sinfonia e Cacofonia (1995), reciclando imagens de vários filmes rodados na cidade. Eles não usam Black-Tie se mistura com O Bandido da Luz Vermelha, que desemboca em São Paulo S.A e se encontra na esquina com Filme Demência. O nosso acervo imaginário sobre a cidade de São Paulo é um filme-montagem. Lembro que Roland Barthes gostava de sair (mais do que entrar) de uma sala de cinema e ganhar o

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movimento das ruas. Tela e cidade, nessa experiência, não são somente uma o prolongamento da outra. São dois lados da mesma imagem.

Dziga Vertov e o inconsciente ótico Para Dennis Radünz

DzigaVertov, como legítimo artista moderno, reverenciou a técnica e escreveu manifestos. Para o camarada, a câmera cinematográfica revelava o que o olho não podia ver: o cine-olho. A câmera como extensão privilegiada do olho humano. Olhar sem corpo, diria Ismail Xavier (1988). Walter Benjamin, em sintonia com Vertov e Freud, escreveu sobre o inconsciente ótico. O mundo do filme, segundo Benjamin, é o avesso do mundo consciente, real. A possibilidade da câmera de cinema – diferentemente do teatro ou da pintura – em escrutinar os objetos, cortar durante o movimento, acelerar ou retardar a ação, revela segredos ocultos da realidade. Vertov, em seu clássico O Homem com uma câmera (1929), faz o inventário desse inconsciente ótico ao buscar, nos objetos cotidianos, diferentes formas e enquadramentos. O filme começa, justamente, com a cidade dormindo (e sonhando). Quando a cidade acorda, se desenrola uma sinfonia da vida dos objetos. E para ele, só a câmera poderia ver, com o olho refletido, o duplo do sonho.

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Florestas “Quando você gosta de um filme por vinte anos, ele é como uma árvore que cresce independente dentro de você”. Esta bela imagem de Kiarostami me fez pensar nos filmes que levamos com a gente, pela vida afora. Reencontrar o filme amado é encontrar a si mesmo, modificado. E o filme, na mesma dimensão, diferente. O filme que nos acompanha é mais invisível que visível. Não preciso revê-lo, pois suas imagens me assombram quando menos espero, como vento repentino que desperta as folhas das árvores. A criação é algo como encontrar essas imagens atemporais, que estavam escondidas, que crescem sem que se perceba para, aí sim, tocar a sua presença, diante dos olhos, como aura, no sentido benjaminiano. Nunca se esquece da sessão de cinema que marcou a nossa história. Do lugar, do cheiro, da textura, da companhia. Do filme, resta a memória, como árvore solitária na paisagem de Kiarostami.

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Ontologia do filme ruim A classificação, sempre subjetiva, que aparta o filme bom do ruim, só faz sentido em antologias, enciclopédias e reuniões solenes de câmara. Numa cultura dominante, pautada por listas de mais vendidos e mais populares, o filme ruim passa, curiosamente, a ser cultuado. Alguns “bons” cineastas se valem desse culto, como Tarantino e Sganzerla, para realizarem filmes “cult”. O último refúgio do filme infame é o “trash-movie”, que esgarça, conscientemente, o limiar entre o bom e o ruim. O filme ruim nos livra, socialmente, da seriedade do cotidiano, assume o pastiche da nossa existência e, acima de tudo, nos mostra como somos imperfeitos. Corajoso seria o crítico que põe a linguagem em crise, que funda a ontologia do filme ruidoso. O cineasta Leos Carax provocou o filme ruim ao extremo com Holy Motors (2012), ao misturar o “nonsense” com a duvidosa representação nossa de cada dia. O seu personagem possui a heróica missão diária de avacalhar o próprio filme e, por extensão, a vida dos cultuadores de cinema.

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Fusão da Memória O “sfumato” é um efeito criado por Leonardo da Vinci no século XV para realçar a presença do personagem e esfumaçar o fundo da cena. Na Mona Lisa isso fica bem claro: a personagem salta da tela e o fundo se desfoca levemente. Há um descolamento da figura e do fundo, do tempo presente e do passado. Imagens esfumaçadas e borradas remetem à memória, à busca de precisão do olhar no real da ação. Nos três O Poderoso Chefão, Coppola utiliza longas fusões entre as imagens, misturando, assim, os tempos dos personagens e a narrativa dos filmes. A saga da família Corleone se sucede por sobreposições e permanências entre imagens passadas e presentes.

Pregnância O “instante pregnante” é um termo criado pelo crítico de arte Lessing, em 1766, para designar a pintura “encenada”, artificial na ação da cena representada. Esse instante ou momento é a essência do acontecimento ficcional, o clímax da cena. É a pintura teatral, como nos quadros mais dramáticos de Goya ou Caravaggio.

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O fotógrafo Cartier Bresson, apesar de tratar a sua inseparável Leica como uma câmera de cinema portátil, pois não tirava o olho do visor, perseguia o instante decisivo, mágico, na composição do enquadramento. A fotografia do homem parado no ar, pulando a poça de água, revela a pregnância dos quadros de Bresson. Existe uma linha do documentário que busca a precisão nos enquadramentos, que deixa de lado a fluidez e a improvisação inerentes à realidade. O cineasta monta, assim, a encenação junto com os personagens, de modo bem próximo da linguagem ficcional. No documentário Girimunho (2011), de Helvécio Marins e Clarissa Campolina, os enquadramentos são milimetricamente decupados. A câmera busca a pregnância da ação, entre a pintura e a realidade.

Fotogenia Os artistas das vanguardas do início do século XX viram no cinema uma original ferramenta de criação e expressão. O cinema de vanguarda, em linhas gerais, manifesta a preocupação com a construção da imagem, com a poesia e com a recusa à narração, vista como uma coisa do capitalismo do cinema clássico. O cineasta e teórico Jean Epstein percebeu o poder da imagem em movimento no que ela pode revelar de mais abstrato e invisível.

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Não é que o cinema crie simplesmente uma outra realidade, mas ele desvela o que o olho não consegue captar, como os procedimentos de close-up e câmera lenta. Epstein chamou essa visão muito própria do cinema de “fotogenia”. No filme A Queda da Casa Usher, de 1928, vemos os personagens e objetos desfigurados, na aparição do ritmo interno do cinema.

Pureza O cinema de vanguarda se opõe ao cinema do teatro e da literatura. É um retorno ao primeiro cinema: visual e mudo. Os vanguardistas o chamavam de “cinema puro”. Na década de 1920, a “purificação do olhar” era uma ideia sobre a saturação da modernidade, vista como muito racional e mecânica. O dadaísmo propõe o olhar infantil sobre a matéria, o surrealismo se desvincula do superego adulto, Oswald de Andrade quer brincar de ser tupi na floresta, e daí por diante. Eisenstein escreveu um manifesto (protocolo típico das vanguardas) sobre a ameaça do “cinema falado” para a montagem cinematográfica, que não deveria se render, de jeito nenhum, à encenação dramática e ao texto

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literário. Defendia um cinema “polifônico”, conceitual, sem sincronização entre imagem e som. Mas como nada é puro e nem deve ser, o “cinema puro” tinha muito de artes plásticas, arte gráfica, poesia, design, arquitetura etc.

Selfie Os autorretratos de artistas surgem na pintura do século XV, no Renascimento. O artista, ao se auto representar, reinvindica a sua autonomia criativa. Ele deixa de ser um mero instrumento de Deus, como era até a Idade Média, e passa a se colocar como artista humano e racional. As assinaturas das obras de arte também surgem nesse momento. No cinema, onde podemos encontrar o autorretrato do artista? Numa arte coletiva, com pretensões industriais e “impessoal” como o cinema, fica mais difícil achar o rosto do cineasta na imagem. Se bem que a metalinguagem e o cinema auto reflexivo da década de 1960 procuraram provocar a estética a olhar para si mesma. No entanto, o cineasta ainda permanece oculto, camuflado na linguagem. Um dos mais belos autorretratos do cinema está em As praias de Agnes (2008). A cineasta Agnes Varda, com 80 anos, nos diz: “se você abrir uma pessoa, irá encontrar paisagens. Se me abrir, vai achar uma praia”.

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E praias não têm idade. São a mais remota imagem do tempo em movimento.

Com que olhos? A câmera subjetiva, ou seja, o olhar através do olho de um personagem, é um olhar mais íntimo e carnal entre espectador e personagem. Desde Griffith, com a alternância de olhares no cinema, o espectador se desloca por diferentes olhos, entre estar presente e ausente da cena. No olhar subjetivo, o olho da câmera – extensão do olho do cineasta – se ausenta para dar lugar aos olhos do espectador. O espectador, por conta disso, não olha mais impunemente, ele vê a partir de uma janela indiscreta, como queria Hitchcock. Michael Haneke, no filme Cachê (2005), coloca outra questão: ainda podemos distinguir entre objetividade e subjetividade no olhar da câmera? As câmeras de vigilância e as câmeras subjetivas de personagens no filme, que invadem a privacidade alheia, cada uma a sua maneira, possuem o mesmo nível estético e ético, de olhar o outro, a sociedade.

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Livros intermináveis Para Antônio Celso dos Santos

Os livros sobre cinema do filósofo Deleuze (Imagem-Movimento e Imagem-Tempo) são livros intermináveis. Todo livro deve não ter fim. Deve anunciar, na palavra final, a travessia, como em Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa. A cada nova investida, o leitor tem a sensação de descoberta. As formulações de Deleuze parece que se movimentam, têm vida própria na página. É o devir do entendimento, da imagem, da vida, que em algum momento fará sentido. Quando a crítica rasteira e deslumbrada com a eletrônica anunciava o fim do cinema, na década de 1980, Deleuze se permitiu entrar na própria consciência do cinema e analisar, sobretudo, como os personagens percebem o mundo. O nosso e o deles. Tudo isso, atualizando outro filósofo, Bergson, contemporâneo da ideia de cinema. Fico imaginando o filósofo datilografando essas centenas de páginas na máquina de escrever e vendo filmes no movimento dos conceitos, enquanto tento decifrar meu livro comprado no sebo.

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Cidades invisíveis Para Pedro de Souza

O cinema cria uma arquitetura paralela. Michelangelo Antonioni talvez tenha sido o cineasta que melhor entendeu isso. Seus planos, mais do que geométricos e precisos, são marcados pela força das paredes do quadro audiovisual. Deleuze (2005) lembrou bem ao falar de Antonioni: os corpos sofrem a ação do ambiente. Todo o cansaço do mundo sobre os personagens. É por isso, que os personagens em Antonioni se posicionam de costas para a parede da câmera ou caem pelas tabelas do cenário. O quadro esvaziado e o corpo diluído. Filmar é desenhar uma cidade no pensamento. Em Antonioni a arquitetura é reta, minimalista, branca e arejada: arquitetura do tempo. O filme exemplar dessa arquitetura do vazio é O Eclipse (1962). Antonioni realiza um eclipse na narrativa e retira todos os personagens do filme. Sobram as ruas vazias, os tijolos da construção, a mancha de tinta, a água correndo e as quinas dos prédios. São rastros do que foi um filme.

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Melancolia da imagem aprisionada no presente Para Cristiano Moreira

As imagens dos cinemagraphs são muito mais perturbadoras do que as fotografias tradicionais em seu tempo petrificado e habitadas por seres embalsamados (Bazin). A esse tipo de imagem é imposto um aprisionamento perverso no qual o tempo é perpétuo. É assustador saber que a figura que olho não foi (Barthes), não participa de outro tempo remoto, mas está, melancolicamente, aprisionada no tempo presente. A fotografia está associada ao passado, o seu ofício é congelar o tempo que passou. O cinema, fundado tecnicamente na sucessão de fotogramas, cria a ilusão de movimento para frente, pressupõe a mudança de imagem, a passagem do tempo. Mas o cinemagraphs é, ao mesmo tempo, uma fotografia que possui movimento e um cinema estático. Não é nem passado nem passagem. A imagem vive no agora.

Miragem entre pausa e movimento. Entre o instantâneo (fotografia) e o instante qualquer (cinema), essas imagens duram mais, devem esperar (Brissac Peixoto). A questão é saber se somos capazes de olhá-las por muito tempo e qual a natureza da espera a que estão condicionadas, se olham para o passado ou para a passagem.

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Oestes Para Felipe Zylbersztajn

Os filmes de faroeste sempre afirmaram o discurso bélico norte-americano, do povo que resolve na bala seus problemas políticos, seja no nazismo ou na Guerra Fria. O gênero atravessou o século XX se reinventando. Sergio Leone fez um faroeste maneirista. Scorsese se interessou pelo bang-bang urbano, niilista e perturbado em Taxi Driver. George Lucas jogou o western para dentro do videogame em Guerra nas Estrelas, e Tarantino reviu o faroeste em chave pop, debochada. No entanto, o cineasta que melhor carrega, hoje, a mitologia do faroeste é Clint Eastwood. Ele faz a ponte ancestral entre John Wayne e a América multicultural. Faroeste sem cavalo nem índio. O herói cansado de guerra, perdido em um país de imigrantes, mais preocupado em lustrar o seu antigo carro obsoleto e beber Budweiser na varanda. Em Grand Torino (2008), o personagem de Eastwood faz justiça com as próprias mãos para defender, ora veja, a indefesa família chinesa. Nessa narrativa da nação americana, os outros, no final das contas, são eles mesmos.

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Naufrágio Para Iur Gomez

Ler o roteiro de Limite (1931), de Mário Peixoto, é ver um filme impossível. Estruturado em “shots”, tem frases como “o pianista senta e arruma as músicas”, “sobre o tempo que mudou qualquer coisa” ou “o mar sobre o último ritmo que se fotografa”. É uma obra partida. Único e mítico filme de um cineasta com muitos roteiros na cabeça. O grande legado de Peixoto talvez tenha sido o de produzir imagens imaginadas, invisíveis. Imagens de exílio criativo. Orson Wells assistiu a uma sessão do filme Limite em 1942, arranjada por Vinicius de Moraes. Wells, o cineasta prodígio, que sacudiu a indústria de Hollywood, estava filmando no Brasil o seu projeto nunca terminado. Por sinal, o projeto natimorto de Wells no país serviu de metáfora da impossibilidade de se fazer cinema no Brasil na imaginação de Rogério Sganzerla. Walter Salles, que tratou de naufrágios em terras estrangeiras, visitou Mario Peixoto no fim da vida. Mario Peixoto perguntou ao jovem cineasta o que ele via no relógio pregado na parede. Salles, ingênuo, falou: “são quatro e quinze da tarde”. Peixoto o corrigiu, quando o ponteiro se movimenta nos diz:

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“um a menos, um a menos”. Naquele exato segundo o mar se encontrou com a terra.

Cachoeira e bolha de sabão Para Marco Martins

“Empurro minha filha de dois anos no carrinho de bebê: isto é cinema. Minha filha empurra o carrinho vazio: isto é vídeo”. A formulação de Jean-Paul Fargier (1996), apesar de soar ultrapassada, pois o contato entre cinema e vídeo está altamente consolidado, é interessante pela imagem que suscita. Lembrei, a partir dessa proposição de dois artistas, um, próprio ao cinema, e outro, ao vídeo: Humberto Mauro e Cao Guimarães. Para Humberto Mauro, cinema é cachoeira e para Cao Guimarães, vídeo é bolha de sabão. Cachoeira no sentido da torrente grandiosa de acontecimentos, dos corpos que ultrapassam o fluxo da tela, da refração da luz conforme o ângulo em que se observa a imagem. Bolha de sabão como imagem portátil, incerta, que vaga e se mimetiza no ambiente em que circula. Seguindo essa ideia, o espectador de cinema é conduzido e o de vídeo conduz, age sobre as imagens. No

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caso do vídeo, o espectador pode manipular, trocar de canal e compartilhar as imagens.Carrinho de bebê, cachoeira e bolha de sabão são, nessa história, dispositivos que ativam subjetividades. A bolha de sabão dentro da cachoeira se dissolve fácil, se multiplica e se transforma em outra coisa. Talvez, essa seja a imagem-síntese da internet.

Voos Encurtar as distâncias parece ser a vocação da modernidade, tanto na tecnologia como na arte. Viajar de avião, por exemplo, nessa cápsula hermética do tempo é, supostamente, apagar o território. Não é o tempo que ficou menor. É que cada vez mais espaço e mais imagens passam entre o mesmo tempo. O cinema, máquina de fazer distâncias, promove a gagueira dos planos aéreos, até o limite do clichê. O cineasta pode brincar de aviador, Deus ou alpinista. As lentes da National Geographic observam a fauna em teleobjetiva para não serem engolidas pelas feras. Olhar de longe é a interação das pinturas de Seurat. As telas vistas de perto são reduzidas a pontos desconexos e tateantes. Algumas obras de Vik Muniz só fazem sentido vistas do alto, como no desenho do trator no campo de terra ou na nuvem rabiscada pelo avião no céu, que alternam a noção entre latitude e longitude. O artista Cassio Vasconcellos atingiu o formalismo aéreo em série de fotografias que revelam um mundo de

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brinquedo, com peças mal encaixadas, numa espécie de dadaísmo no olhar de gigante.

Alfabeto Para Kulechov, o precursor da montagem no cinema, o plano é letra, signo na frase da imagem em movimento.

Literatura da imagem. No cinema primitivo, um “comentador” era responsável por explicar à plateia, fascinada e analfabeta, o que acontecia na sala de cinema. Nos primórdios do cinema, Meliès conduzia a ação, didaticamente, olhando para o espectador, para que não restasse dúvida sobre a mágica do espetáculo. Afinal de contas, os truques devem mostrar e esconder. O primeiro cinema se pautou sobre essa ideia: surpreender e, ao mesmo tempo, explicar seus procedimentos, às suas trapaças. Anos mais tarde, ainda no cinema mudo, as legendas cumprem a função de intervir na imagem. Chaplin coexiste com a onomatopeia do seu gesto. Quando o cinema se reinventa, na segunda metade do século XX, as letras retornam como tipos móveis. Godard, Bresson, Antonioni e Kurosawa escrevem junto com a imagem em movimento.

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Hoje, a videoarte é mais texto que imagem, também, e por causa de Peter Greenaway, que escreveu no corpo da imagem e na pele da palavra. Kulechov, via twitter, escreve: que fim levou a imagem?

Memória O documentarista Eduardo Coutinho não estava preocupado, de forma nenhuma, com o fato, com a data do acontecimento, com o tempo histórico. O seu tempo é a invenção do presente e a transformação do passado. A memória era a sua matéria de investigação. Em Santo Forte (1999), a fé é a presença vaga, imprecisa, na qual, mais do que tentamos nomear, não se consegue alcançar. O morro esperando o ano-novo, a possibilidade infinita em Babilônia 2000 (2001) e Edifício Master (2002) não é só um lugar concreto, mas um espaço em que coexistem os tempos pessoais e subjetivos. Em As Canções (2011), toca-se a memória afetiva via imagens mentais da música popular brasileira. No clássico Cabra Marcado para Morrer (1984), a ditadura militar deixa de ser um índice histórico para durar na memória dos personagens, até ultrapassar a própria realização física do filme. Em O fio da Memória (1991), filme chave do cineasta, a escravidão está na memória da pele dos negros, até hoje.

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Eduardo Coutinho foi, na invisibilidade de autor, o cineasta brasileiro que melhor tratou da ficção da memória quando todos acreditavam que ele falava a verdade.

Não sei pra onde estou indo, mas é longe Os personagens de Karim Aïnouz estão sempre em trânsito. Seria melhor pensar que estão sempre partindo, mas não se sabe bem pra onde. Hermila (O Céu de Sueli, 2006) mal retornou ao Nordeste e já planeja ir embora. José Renato (Viajo porque preciso, volto porque te amo, 2009) está em deslocamento e talvez volte pra casa. Violeta (O Abismo Prateado, 2011) é abandonada pelo marido e parte numa busca incompleta dentro da própria cidade, o Rio de Janeiro. Os lugares nos quais buscam os personagens de Aïnouz são utópicos como “Porto Alegre” e “Jardim Belo”. Lugares, linguisticamente, inalcançáveis. A cidade de Violeta (que acabou de se mudar) é barulhenta, quase claustrofóbica. O horizonte do mar, da bossa, é outro, desfocado e impreciso. Tudo se passa ao seu redor sem que se possa alcançar o mais próximo: “marido é parente?”, pergunta ela a certo momento. O aeroporto está vazio, nada parte dali. Se a estrada representa o desvio, o fora da ordem no cinema hollywoodiano, aqui resta a emergência do

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agora, do quase, do mínimo. O fio da estrada de quem atravessa a rua. De bicicleta.

Lanterninha O ambiente em que eram exibidos os primeiros filmes, no final do século XIX, era pecaminoso e selvagem. Não havia, ainda, as salas de cinema como as conhecemos hoje: assépticas, aveludadas, cheirando à pipoca e refrigerante e bem organizadas. Os filmes, exibidos aos pedaços e aleatoriamente, passavam em cabarés, circos e feiras. Era um ritual legítimo das massas. As salas de cinema e a cobrança de ingresso só surgiram no fim da década de 1910, com a profissionalização do meio, com a produção dos primeiros longas-metragens e com o interesse da burguesia por essas exibições. O nome pomposo de “sétima arte” vem desse mesmo contexto. A figura folclórica do lanterninha nas salas de cinema é sintomática desse período de higienização das exibições de cinema. No escurinho do cinema, o lanterninha fiscalizava, ainda que de forma lúdica, se o público estava se comportando “civilizadamente”. Em Cinema Paradiso (1988) de Giuseppe Tornatore, a

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figura do lanterninha, já extinta, aparece muito bem. O poeta Carlos Drummond de Andrade (1928), escreveu sobre o fim das coisas do cinema: “a espera na sala de espera, a divina orquestra, mesmo não divina, as impossíveis sonhadas bolinações, sublime agora que para sempre submerge em funeral de sombras”.

Chuvisco na Tela O escritor Italo Calvino (1990) diz que a ficção é o lugar onde “chove dentro”, ou seja, enquanto que na realidade faz sol, no mundo imaginário, dentro do filme, se faz chuva. A chuva no cinema é um artifício dramático. Quando algo vai mal, chove. A chuva também representa o rito de passagem, de mudança dentro dos personagens ou de transição do tempo. Lembro da chuva insistente e dark em Blade Runner (1982), da chuva de sapos em Magnólia e da chuva ácida e corrosiva nos filmes de ficção científica nas madrugadas da TV. O que chama atenção, hoje, em Cantando na Chuva (1952), é a artificialidade de toda situação: chove muito, dentro do estúdio, e ainda se canta e dança. Na passagem do cinema clássico para o moderno, Hollywood precisava sapatear nas poças d’água, sorrindo. O cinema, no último suspiro circense, faz seu malabarismo constrangido antes do surgimento

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dos cinemas novos. Não é à toa que o enredo de Cantando na Chuva seja sobre outro rito de passagem: o cinema mudo para o falado. Fellini, o palhaço moderno, tratou de cinema e chuva de forma bela em A Entrevista (1987). No fundo, o filme trata da passagem cultural do cinema para a televisão como meio de massa. Em A Entrevista, não existe filme dentro do filme por causa da chuva. Mas a chuva produz, afinal, outro filme, ainda mais forte.

Microondas Atualmente são muitos os programas de culinária na TV. E, justamente, quando as casas e as famílias ficam cada vez menores e funcionais, com pouco tempo para refeições longas e compartilhadas. Por isso, o domingo, dia de almoço em família, é sagrado para a audiência. É o playground festivo dos programas de auditório. Além do mais, praticamos o hábito de comer na frente da TV, em comunhão com outras telas, como o computador e o celular. Parece que a vida doméstica, ambiente dos eletrodomésticos, se volta para dentro da TV: “casa dos artistas”, “casa do BBB”, “cinema em casa”, “casa brasileira”, “tempero de família”, “vida em família” etc.

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O cenário da cozinha de casa é reproduzido no estúdio. O cozinheiro é, também, o apresentador. O apresentador faz, assim, a mágica de transformar os ingredientes em pratos hiper-reais, que são editados para serem, acima de tudo, exibidos. Não raro, há um convidado no programa que deve desempenhar o seu papel “família”, gente como a gente. O culto midiático dedicado ao chefe de cozinha é curioso nos dias de hoje, e bem próximo do DJ ou do design de computadores: profissões individualizadas, altamente técnicas e que geram produtos simbólicos, imateriais. É o campo da indústria criativa. Pois tente degustar as ondas do tubo catódico.

Interiores Ozu é o cineasta dos interiores. Da multiplicação dos interiores. Nas casas japonesas, as sombras, vindas de fora, projetam novas formas, outros eclipses de tempo no ambiente de dentro. São várias camadas e painéis que se abrem, uns sobre os outros. Como um origami de papel com diferentes faces e paisagens. A casa ocidental e capitalista tem o sentido de propriedade, de fechamento. As paredes servem para separar, distinguir pessoas e funções sociais.

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Por que será que o cinema de ação americano tem obsessão por devastar tantas edificações? Em Era uma vez em Tóquio (1963), Ozu, com extrema delicadeza, nos mostra como o quadro no cinema deve se abrir à transcendência da janela e de seu interior.

Persistência na retina O dèjá vu é uma sensação do passado no presente. Passado que talvez não tenha sido. Talvez foi. Em algum lugar da memória. O cinema possui o fluxo intermitente entre imagens. Nosso olho fixa a imagem passada enquanto a seguinte já passou. A retina busca as imagens na duração, no movimento. O cineasta do tempo, afinal, é Alain Resnais. O tempo em Resnais não é o cronológico, o tempo medido. É, por outro lado, o passado estendendo seu fio impreciso, imaginado, até o presente. Ninguém filmou esculturas como ele. Em Hiroshima - lugar devastado - eclode uma paixão que não se sabe se ocorreu de fato (Hiroshima, meu Amor – 1959). Os girassóis de Van Gogh em preto e branco nunca existiram (Van Gogh – 1947). Neva em plena sala (Medos Privados em Lugares Públicos – 2006).

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Se Griffith versou sobre o “enquanto isto”, Resnais ousou sonhar: “dentro disto”. Um travelling em Resnais é toda imagem que age, que transmuta o passado, que desdobra o presente. A obra-prima Ano Passado em Marienbad (1961) é cheia de simultaneidades do tempo. Resnais manipula o tempo dentro dele mesmo. Tocamos a memória do tempo, da consciência.

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ÍNDICE REMISSIVO (para remontar cineastas, artistas, autores, filmes, livros e conceitos)

Anatomia do Movimento: 16 André Bazin: 33 Agnes Varda: 28 A Vila: 13, Direção de M. Night Shyamalan (2004) Bruno Dumont: 12 Camille Claudel: 12 Caravaggio: 25 Cao Guimarães: 36 Cassio Vasconcellos: 37 Claude Manet: 11 Clint Eastwood: 34 Dançando no Escuro: 13, Direção de Lars Von Trier (2000) David Cronenberg: 15 Dziga Vertov: 22 D. W. Griffith: 30 - 47 Eduardo Coutinho: 41 Escher: 14 - 17 Federico Fellini: 44 Francis Ford Coppola: 25 Francis Bacon: 12 Francisco Goya:15 - 25 François Truffaut: 9 Fotogenia: 27

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Geometria pelo Avesso: 14 George Meliès: 9 - 40 Georges Seurat: 37 Gilles Deleuze: 31 - 32 Glauber Rocha: 9 Hitchcock: 30 Humberto Mauro: 36 Ingmar Bergman: 9 Inconsciente ótico: 22 Instante pregnante: 25 Irmãos Lumière: 9 - 11 Ismail Xavier: 22, “O Olhar”, Adauto Novaes (org.), 1988. Jacques Aumont. 9, “O olhar interminável – Cinema e Pintura”, 2009: Jean-Luc Godard: 11 - 40 Jean Epstein: 26 João Batista de Andrade: 13 John Ford: 9 Julio Plaza: 16 Karim Aïnouz: 42 Kulechov: 40 Leonardo Da Vinci: 25 Martin Scorsese: 34 Medusa: 12 Michel Foucaut: 11 Michael Haneke: 30 Michelangelo Antonioni: 32 - 40 Nelson Brissac Peixoto: 33 Orson Welles: 20 - 35

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Peter Greenaway: 40 Pollock: 10 Quentin Tarantino: 24 - 34 Rogério Sganzerla: 24 - 35 Sergei Eisenstein: 14 - 27 Sigmund Freud: 22 Velázquez: 11 Vilém Flusser. 10 – 17 - 21, “O Universo das Imagens Técnicas – Elogio da Superficialidade” (2012); “O Mundo Codificado” (2013); “Filosofia da Caixa Preta” (2011). Vik Muniz: 37 Walter Benjamin: 22 Walter Salles: 35 Yasujiro Ozu: 46

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Textos e Revisão: Ricardo Weschenfelder Diagramação: Pedro MC Arte e Ilustrações: Pati Peccin Encadernação e Costura: Aleph Ozuas

Outono de 2017 Ilha de Santa Catarina, Brasil

Tiragem 100 exemplares

(impresso número _ _ _ ) Este livro foi composto em papel pólen 90 g/m² com fonte Minion Pro e encadernado artesanalmente na oficina Corrupiola Experiências Manuais


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