AGRADECIMENTOS Agradecemos a todas as pessoas envolvidas no projeto “Cidade de Múltiplos Mapas”, desde sua criação ao final do processo de execução. À equipe Rumos Itaú Cultural, por acreditar e apoiar o trabalho, nas pessoas de Regina Medeiros e Natália Ferreira, que estiveram em contato nas orientações e diálogos com a equipe de produção do projeto. Aos moradores da Travessa Natanael Albuquerque, o “Beco do Mijo”, pelo acolhimento dos Grupos Aguadeiro e Beco na vizinhança. Agradecemos os encontros nos processos de “errâncias” na cidade, em que pessoas incríveis nos cederam um pouco de suas horas para que o grupo se aproximasse e conhecesse suas histórias: Dona Edite (Beco da Cigana), Rosa (catraieira), Afonso (catraieiro), Andrelino Caetano (músico), Elias Bega Tiburço (comerciante), Dona Lúcia (moradora do Bairro Aeroporto Velho), Dona Celeste (Beco do Mijo), Dona Celeste (Mercado do Quinze), Tião (Gameleira) e Cunha (Gameleira). Agradecemos às equipes do Lydia Hammes e do Mercado do XV pela acolhida e apoio logístico para as apresentações dos espetáculos nos locais. Agradecemos à Ormelia Cordeiro e a Nediomar Souza (camarim e material emprestado para a sede), à Normélia Pinho (lanches e material emprestado para a sede) e a todos os familiares da equipe “Cidade de Múltiplos Mapas”, que de forma direta ou indireta apoiaram o projeto. Agradecemos aos iluminadores Magrão e Rabicó pela oficina de iluminação, ao artista plástico Claudeney Alves pela oficina de Iluminação alternativa, ao Edevaldo Santos e Magrão pela iluminação do espetáculo “Beco do Mijo”. Ao Diego Batista pela oficina de performance “O Corpo e o Espaço”, ao Jhon Gomes pela oficina de dança, ao Nonato Tavares pela concepção de máscaras e painéis do espetáculo “Indocumentados”, e ao Thales Vasconcelos, que executou a pintura do cenário. Agradecemos à Bruna Amado pela contribuição na construção dos exercícios de derivas/errâncias, Mirrah Iañez Gonçalves da Silva e Mariana Isla pela captação de imagens (fotos e vídeos), à equipe da San Francisco Filmes pela gravação na íntegra das apresentações de ambos os espetáculos e a Thiago Lima por ter aceitado o desafio de realizar o trabalho de projeto gráfico e diagramação deste material em um prazo tão curto. Aos autores Gerson Albuquerque, João Veras, Jorge Carlos e Vanessa Nogueira por terem disponibilizado seus textos para compor este livreto. À Janice Dias, pela atenciosa revisão ortográfica. À Fundação Municipal de Cultura Garibaldi Brasil (apoio), à Fundação Estadual de Cultura e Comunicação Elias Mansour (apoio), ao campus Baixada do Sol do Instituto Federal do Acre (apoio) e ao público que prestigiou os espetáculos “Indocumentados” e “Beco do Mijo”. Deixamos aqui nossos sinceros agradecimentos!
APRESENTAÇÃO O projeto Cidade de Múltiplos Mapas uniu dois grupos de artistas independentes de Rio Branco/AC, o Aguadeiro e o Beco, em um processo de pesquisa e formação durante seis meses, que culminou em quatro apresentações de espetáculos, com apoio do Programa Rumos Itaú Cultural. Foi no decorrer dessa caminhada que nasceu a composição deste livreto, uma narrativa amparada em escritas, imagens e memórias, traduzindo os processos compartilhados com a intenção de semear a arte e dar continuidade, agora de outra forma, aos diálogos e trocas que nos movimentam. Nesse contexto, realizamos breves relatos desde a criação e trajetórias dos grupos Beco e Aguadeiro, para apresentar com que perspectiva o projeto Cidade de Múltiplos Mapas foi proposto, delinear as escolhas de abordagem durante a prática de pesquisa e formação e, por fim, apresentar os espetáculos Beco do Mijo e Indocumentados. O maior desafio desta iniciativa está na capacidade de transmitirmos como cada uma das ações do projeto foi dinamizada e interligada pela convivência que teve a prática artística como mediadora. Muitos dias foram dedicados a este trabalho e muitas mãos participaram dessa escrita, primeira sistematização da Cidade de Múltiplos Mapas que praticamos e que agora ganha mais uma versão. Escrever significa voltar ao exercício do movimento, mas agora em linhas sobre o papel. Inspirada em outras linhas, escritas pelo filósofo Michel de Certeau, essa escrita assume para si a natureza de uma narrativa ficcional, que não demonstra, nem relata, explica ou descreve o real dos acontecimentos. Mas capitaneia sentidos, construídos de forma coletiva, possíveis apenas pelas experiências vividas por cada um de nós e pelas trocas constantes. Tudo isso, na busca de tatear as tantas camadas de discurso que nos envolvem e dar corpo a outras cidades dentro dessa, por meio da arte. A memória é uma construção, como nós humanos somos, uma construção social como nos falam Bakhtin e Volochinov. A memória não pode ser domada, ela vem quando quer e funciona de uma forma muito peculiar, é alterada pelo tempo e pelas outras experiências. Assim é o texto que escrevemos: ao passo que envolve diferentes locais de fala, recria um estado de deriva, em que cada momento a escrita assume uma forma de diferente, para dar um corpo de texto ao processo autoral coletivo do Cidade de Múltiplos Mapas.
Sobre o Rumos Itaú Cultural O Itaú Cultural mantém o programa Rumos desde 1997. Este que é um dos primeiros editais públicos do Brasil para a produção e a difusão de trabalhos de artistas, produtores e pesquisadores brasileiros, já ultrapassou os 52 mil projetos inscritos vindos de todos os estados do país e do exterior. Destes, foram contempladas mais de 1,3 mil propostas nas cinco regiões brasileiras, que receberam o apoio do Instituto para o desenvolvimento dos projetos selecionados nas mais diversas áreas de expressão ou de pesquisa. Os trabalhos resultantes da seleção de todas as edições foram vistos por mais de 6 milhões de pessoas em todo o país. Além disso, mais de mil emissoras de rádio e televisão parceiras divulgaram os trabalhos selecionados. Na última edição (2015-2016), as propostas inscritas foram examinadas, em uma primeira fase seletiva, por uma comissão composta por 30 avaliadores contratados pelo Instituto entre as mais diversas áreas de atuação e regiões do país. Em seguida, passaram por um profundo processo de avaliação e análise de uma Comissão de Seleção multidisciplinar, formada por 22 profissionais que se inter-relacionam com a cultura brasileira, incluindo gestores da própria instituição. Como resultado deste processo o projeto de Múltiplos Mapas foi selecionado e nasceu nossa parceria.
Sumário 1. Sobre os grupos Beco e Aguadeiro
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Grupo Beco
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Grupo Aguadeiro
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2. Origem e percurso do projeto Cidade de Múltiplos Mapas
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Parte 1: Memórias sobre a(s) gênese(s)
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Parte 2: Memórias do processo
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3. Errâncias e derivas na cidade
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Narrativas e derivas individuais
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Errâncias coletivas
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4 – Laboratórios e oficinas
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Laboratório: A música e seus recursos dramatúrgicos
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Laboratório: Respiração e voz: percepção viva de si, do outro e do espaço
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Oficina de dança
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Oficina de iluminação e iluminação alternativa
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Oficina o corpo e o espaço
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5 – Mapeamento dos locais de apresentação
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Mercado XV
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Centro Cultural Lydia Hammes
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Beco do Mijo
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6 – Sobre os espetáculos
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Beco do Mijo
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Indocumentados
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7 – Textos sobre os espetáculos produzidos por espectadores
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Por Jorge Carlos, o Mané do Café – 2015
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Por Gerson Albuquerque – 2013
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Por João Veras – 2014
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Por João Veras – 2017
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Por Vanessa Nogueira – 2017
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8 – Ficha catalográfica
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Grupo Beco
Da criação da manifestação artística Beco do Mijo
surgiu o grupo Beco, ou seja, o processo de construção do espetáculo deu origem a um encontro de artistas que partilhavam de ideais semelhantes, com inquietações semelhantes e também diversas. Assim surgiu, há aproximadamente quatro anos, o Beco, um grupo de artistas que se dispõem a trilhar os caminhos de um grupo de pesquisa, fortemente influenciados pelos estudos culturais e pelos autores da teoria decolonial. A intenção é trazer à cena um passado profético, inspirado em Édouard Glissant, que revela a perspectiva de lançar um olhar sobre o que está além das narrativas oficiais. Atualizando e tecendo outras narrativas de espaços/tempos dramáticos, feitos de palavras, silêncios, sons, movimentos, luz e sombras, passamos a iluminadores do passado, entendido como construção narrativa. Buscando também abrir caminhos que desliguem a construção dos personagens e a estética do grupo com a construção do imaginário do ser na Amazônia, tão massificada e ratificada desde os primeiros relatos de viajantes europeus sobre este lugar.
Enquanto discurso, o grupo opta pelo caminho da
direção coletiva, e mesmo que existam durante os encontros vários integrantes que de alguma forma direcionem determinado processo, o consenso é sempre o norteador das decisões. Contamos com o direcionamento cênico do performer Diego Batista. Ele nos presenteou 8
com a possibilidade da arquitetura da rua como espaço
de cena, em diálogo com o autor Giulio Carlo Argan, que acredita na história da cidade como história da arte, ou seja, uma existe em relação direta com a outra, pensamento que ele denominou de artiscidade. A Manifestação Artística Beco do Mijo alimenta-se desse pensamento em suas adaptações: cada local a ser apresentado é estudado, escutado, sentido e assim o espetáculo sempre se renova e nunca é o mesmo, pois cada espaço produz sensações e dinâmicas diferentes que interferem diretamente na construção cênica. O espetáculo se alimenta da cidade e a cidade se alimenta dele, sempre nessa troca de energia que resulta em outras formas de absorção social e humana da arte.
A pesquisa inicial que resultou no espetáculo começou no curso de Licenciatura em Artes Cênicas:
Teatro, da Universidade Federal do Acre (UFAC). Dois dos integrantes cursavam a disciplina “Encenação”, que propunha desenvolver um projeto de maquete de algum local da cidade para estudo. Assim o conto de Florentina Esteves chega às nossas mãos e acontece a primeira adaptação do conto para dramaturgia, feita por Juliana Albuquerque e Quilrio Farias, em meados de 2013.
No final desse mesmo ano, recebemos um convite para apresentar uma performance no VII Simpó-
sio de Linguagens e Identidades da/na Amazônia Sul Ocidental, também na UFAC, quando foi realizada a primeira apresentação do “Beco do Mijo”. Em 2014, participamos da programação da Semana da Mulher, promovida pelo Serviço Social do Comercio Sesc/Acre, da Semana do Teatro, promovida pela Federação de Teatro do Acre – FETAC e da programação do “VIII Simpósio de Linguagens e Identidades da/na Amazônia Sul Ocidental” promovido pela UFAC. Em junho de 2015, aprovamos um projeto de pequenos apoios pela Fundação Elias Mansour para construção de figurinos próprios para o grupo e como contrapartida foram realizadas uma vivência aberta à comunidade e duas apresentações com entrada gratuita. Em outubro desse mesmo ano, o grupo realizou uma temporada de dois finais de semana, totalmente independente, contando somente com o apoio da Usina de Arte João Donato, que nos cedeu o espaço para ensaios e apresentação.
O espetáculo e o processo de pesquisa foram tema de dissertação no Programa de Mestrado em
Letras: Linguagem e Identidade, intitulada “Beco do Mijo’: drama em cena nas fronteiras amazônicas’’, a ser publicada ainda em 2017, além de artigos apresentados em congressos nacionais e simpósios temáticos.
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Grupo Aguadeiro
Tudo nasceu com baixo, batera, guitarra e voz,
arranjos de canções e um tema: a imigração. Um show temático, flertando com diversos estilos musicais e uma aparência estética que não remetesse a um tempo definido. Encantados pela sonoridade da palavra e pela história desse ofício, adotamos o nome ‘Aguadeiro’, símbolo do nosso desejo de pesquisar em diversas fontes, e oferecer a quem quisesse delas beber. Com um nome, ensaios marcados e uma relação cotidiana, surgiu um show, Imigrantes, emigrantes e viajantes, e um estilo musical, o Experimental Folclórico Puro Jazz. Isto foi em 2013, não sabemos em que data, mas escolhemos o dia Internacional dos Refugiados como marco de nosso nascimento. Definimos três temas para nossas montagens de repertório: as imigrações, a loucura e a morte. A pesquisa musical envolveu ritmos tradicionais brasileiros, peruanos e bolivianos, misturados com levadas pesadas, flertando com a harmonia e improvisação jazzística. Assim, tínhamos uma música forte, com muitos empréstimos modais e bem dançante.
A estreia da banda foi no IV Festival Internacio-
nal Pachamama Cinema de Fronteira, seguida de uma série de eventos independentes a que denominamos de Poste Show: apresentações embaixo de postes espalhados pela cidade, usados para iluminação e como fonte de energia para os equipamentos. 13
Em 2014, a grande migração de haitianos, senegaleses e dominicanos que passaram pelo Acre ins-
tigou-nos a um mergulho mais profundo sobre o tema que inspirou o início de nossos trabalhos, através de estudos, pesquisas e vivências, que nos deslocaram para uma reflexão sobre as fronteiras. A fim de discutir o olhar xenófobo que pairava numa região que, ironicamente, fora formada a partir de movimentos migratórios, e no intuito de promover trocas que superassem essa barreira/fronteira, O Grupo Aguadeiro realizou o Poste Show Com Vida no abrigo que acolhia os imigrantes em Rio Branco. Cerca de 300 imigrantes e cinco grupos artísticos locais dançaram, recitaram poemas e cantaram juntos por algumas horas. Como fruto destas experiências, o show musical inicial ganhou performances, poesias e encenações, formando blocos que abordavam diversas situações de deslocamentos humanos. Nesta época, aprovamos projetos para a realização de apresentações, assistidas pelos imigrantes e também pela comunidade local, gerando trocas riquíssimas.
Em 2015, passamos a realizar ensaios abertos, verdadeiras performances nas praças, que iniciavam
com a chegada dos carros, descarregamento dos equipamentos, figurinos e maquiagem dos integrantes. Por vezes, dançamos cavalo-marinho à noite, em frente aos espelhos do prédio da Assembleia Legislativa. A mudança de integrantes do grupo foi transformando o show espetáculo a cada dia. Nas novas pesquisas, a situação de imigração passa a ser percebida como uma entre tantas formas de invisibilidade, ao descobrimos pessoas estrangeiras em seu próprio lugar de origem. Foi quando incorporamos o segundo tema do Aguadeiro, a loucura.
Surgia, assim, um novo espetáculo, cujo nome foi inspirado nas notícias sobre naufrágios na Grécia:
Indocumentados, termo utilizado nas matérias sobre os “imigrantes ilegais”, e que, para nós, representava situações migratórias e populações invisibilizadas de qualquer lugar. O Indocumentados foi apresentado no mercado Aziz Abucater, no centro para idosos Lar Vicentino, no Teatro Barracão e no IX Simpósio de Linguagens e Identidades da/na Amazônia Sul Ocidental, também na UFAC.
Ainda em 2015, o Grupo Aguadeiro montou o espetáculo de dança/teatro solo Sobre outras Janelas
e Portas, ideia original de Victor Onofre com o bailarino e coreógrafo Jhon Gomes, a partir da pesquisa inspirada no estágio realizado pela musicista e psicóloga Maiara Rio Branco no hospital psiquiátrico do Acre. O espetáculo já realizou inúmeras apresentações dentro e fora do Acre, por toda a Amazônia Legal. 14
Movidos pela premissa do grupo de pesquisar manifestações culturais tradicionais do Brasil, alguns membros adquiriram um ônibus, para morar e transitar pelo país. Juntamente com outros artistas, o Grupo Aguadeiro formou a Caravana Mundo Palco e fez um mergulho profundo em suas pesquisas. Foram 14 meses de viagem por 07 Estados. Concebido para ser um projeto independente, sem qualquer financiamento público ou privado, a Caravana fez das relações de troca sua estratégia de sobrevivência e, sobretudo, de aproximação, para o estabelecimento de uma interação horizontal e afetiva. Foram visitadas comunidades quilombolas, indígenas, caiçaras e periféricas das grandes cidades, coletivos e ocupações artísticas, sendo possível conhecer mais sobre diferentes culturas e perspectivas. No trajeto, realizamos inúmeras apresentações artísticas, nas comunidades, ruas, praças, postos de gasolina e feiras, onde eram arrecadados alimentos para o coletivo. Também recebemos apoios financeiros de pessoas que se identificaram com a proposta. O intercâmbio com estas diferentes realidades alimentou a pesquisa e a criação, fazendo surgir dois novos espetáculos que refletem a potência destes encontros.
O espetáculo Aguaceiro nasceu da vontade de abrir nossa bagagem das vivências através da arte
em Rio Branco e em caravana, na Tenda do Teatro Popular de Ilhéus/BA, convivendo com Radiola, o palhaço do circo, zelador e vigia do local. A percepção do ator baiano Takaro Vitor sobre o nosso fazer artístico, compartilhada conosco na época como Teatro Ritual, tem alimentado, ainda hoje, reflexões sobre o caráter de nossas criações. Já o espetáculo CaráMirim, um alegre despertar (subtítulo dado por Mané do Café) discute a relação humanidade e natureza. Após passar por comunidades indígenas, quilombolas, ribeirinhas e urbanas-suburbanas, sentimos a urgente necessidade de discutir consumo, lixo e poluição. Criado através de cinco personagens (quatro palhaços e uma passarinha), o espetáculo passou por uma remontagem e inúmeras apresentações em escolas, praças, comunidades e teatros.
Com o retorno para Rio Branco, o Indocumentados ganha nova formação e montagem. Hoje, no fin-
dar do projeto Cidade de Múltiplos Mapas, o elenco agenda ensaios, estudos e pesquisas. Novas perspectivas e vontades, novas técnicas de iluminação e relações com o corpo dos atores foram vividas. Indocumentados incorpora personagens que seguem uma linha dramatúrgica que tem muito por desvendar. Seguimos planejando e executando projetos (independentes ou não), também desejando novas montagens com novos temas. No ano de 2018, o Grupo fará cinco anos de (re)existência e pretendemos concluir a abordagem dos temas propostos em 2013 para tanto nos falta o tema da Morte. 15
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Em um de nossos encontros durante a execução do projeto, revisitamos
sua origem. Surgiram distintas formas e linguagens nas representações individuais desta gênese, e diferentes marcações de tempos. Para cada um de nós, o projeto nasceu num momento diferente. Para uns, ele estava presente há mais tempo, nas buscas e inquietações do grupo artístico de que fazem parte, para outros, nas discussões em torno da elaboração da proposta para o Rumos Itaú Cultural, enquanto que alguns remeteram-se aos primeiros encontros dentro do cronograma que passou a rodar com a chegada da primeira parcela de recursos.
As datas, ações e pessoas escolhidas para marcarem um momento his-
tórico da humanidade são sempre uma escolha dentro da perspectiva, do percurso e/ou do interesse de quem conta. E este documento escrito, como ocorre com todos os documentos históricos, não encerra em si a diversidade e a profundidade da pluralidade da experiência, porque é impossível captá-las. O que não quer dizer, no entanto, que não existam. Elas seguem registradas de outras formas dentro de cada um.
Nos encontros dos dois grupos, temos a lembrança da presença de um
enorme desejo. Desejo de fazer arte. De expressar, refletir, criar, de experimentar essa coisa do coletivo, do horizontal, ausente em outros campos de nossas vidas.
Que força nos mobilizaria para encontros de madrugada, após os traba-
lhos e estudos de cada um, durante a semana e também aos finais de semana? Que energia nos impulsionaria a nos encontrar voluntariamente, ou seja, por pura vontade, a discutir horas a fio uma única questão sem desistir da busca de um consenso? Passar e repassar a mesma cena? Construir e depois destruir tudo para construir novamente? Trabalhar meses, meses… meses! Sem ganhar um tostão, ou mal cobrir os gastos que tivemos para fazer o que fazíamos? Desejo, prazer, ou talvez necessidade. E, parecia haver uma ânsia, que aqueles encontros não eram suficientes para saciar. Em muitas conversas falávamos de 20
como seria bom termos tempo para nos aprofundar em algumas questões.
Neste tempo, o edital do Rumos estava aberto e sabíamos que nele teríamos a
possibilidade ousada de propor bolsas de estudos para todos nós. E, quem sabe assim, viabilizar uma dedicação muito maior para o desenvolvimento destes nossos trabalhos, onde nos permitiríamos realizar o que queríamos realmente. De fato, a maior parte de nós abriu mão de qualquer outro trabalho para mergulhar nesta caminhada.
E o que queríamos fazer? Passamos a nomear com mais clareza o que intuía-
mos haver de comum nas vontades e necessidades do Aguadeiro e do Beco. Conversamos com todo o grupo sobre nossas percepções e partimos para uma primeira chuva de ideias.
No momento da elaboração e inscrição do projeto, éramos cerca de seis pes-
soas, de um total de catorze. Destas, três viraram uma madrugada preenchendo os campos do formulário online. E o que propusemos, a partir das primeiras ideias, foi um processo de pesquisa e formação de 6 meses, incluindo-se 4 apresentações dos espetáculos de cada grupo ao final do período. As etapas do projeto eram: •
Leitura e debate de obras sobre temas como cultura, representação, política, cidade e pesquisa nos espaços da cidade;
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Formação em performance, com Diego Batista (Manaus/AM), com a Oficina o Corpo e o Espaço, com duas semanas para estudo e experimentações dos elementos abordados na oficina nos espaços pesquisados na etapa anterior;
•
Oficina de iluminação e experimentações nos espaços pesquisados;
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Processo de remontagem dos espetáculos Beco do Mijo e Indocumentados e apresentações em dois dos locais pesquisados, e possivelmente outras formas de intervenção.
•
Conclusão do registro escrito e audiovisual, construído ao longo de todo o processo, sintetizando as formas de intervenção artística nos espaços pesquisados.
Além de viabilizar um aprimoramento das técnicas utilizadas pelos atores e mú21
sicos dos grupos, pretendíamos ampliar o diálogo com múltiplas cidades de Rio Branco, aprofundando a pesquisa da diversidade de perspectivas e a quebra do discurso único.
A proposta de dialogar com os espaços urbanos, seus fluxos e contra fluxos, recriar a prática da ci-
dade como uma linguagem não verbal, como nos coloca André Carreira, era uma tentativa de experimentar outros discursos e também vivências que estão além do que nos é cotidianamente relatado através dos meios de comunicação habituais. Acreditamos e buscamos outras representações, expressões culturais que na maioria das vezes são ignoradas pelas opiniões de massa, que sentenciam juízos, conceitos e pré-conceitos, deixando de lado a diversidade e o hibridismo dos modos de viver.
A temática da cidade e sua “reorganização” nos parece que sempre estará em voga. Rio Branco
viveu, vive e viverá um intenso processo de mudança, pautado pela vontade de pertencer, de se igualar ao modelo de cidade estabelecido pelos preceitos da civilidade. Mas por serem resultado de uma leitura distinta de modo de vida e relação com o meio, essas transformações acabam por desarticular hábitos e saberes adquiridos durante anos de diálogo com um espaço de dinâmicas tão particulares como a região amazônica. É temerário que parte da população não faça uma reflexão acerca desses impactos, por estar inserida em outro contexto social, mas que invariavelmente será afetada por essas intervenções. Nossa vontade com o desenvolvimento do projeto era a de investigar a possibilidade de estabelecer um diálogo com quem de fato é atingido por esses processos, as pessoas que deixam a condição marginal imposta e passam a figurar o polo central da questão. Mas como contar a alguém a sua própria história?
Estes eram os elementos centrais do projeto elaborado por nós. Em suas linhas tudo parecia tão
claro e factível. Já na vivência cotidiana e coletiva, tudo estava por ser construído, dos acordos do uso e cuidado do espaço alugado para as atividades, à metodologia de trabalho. Fomos descobrindo os hibridismos não só da cidade, mas internos aos nossos grupos. Somos plurais. Fomos plurais. Tropeços, erros, dúvidas, questionamentos, desencontros, mudanças, alterações em planilhas, no cronograma, na forma de organização das decisões coletivas, pessoas que saem, pessoas que entram, negociações, trocas, o impensável, o não previsto. A errância presente também no próprio fazer coletivo projeto.
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Quando nos encontramos para o
início de nossos processos no contexto da realização do projeto, uma indagação inevitável nos veio: Por onde começamos?! O Grupo Beco estava há alguns meses inativo, e o Aguadeiro se reencontrava após mais de um ano dividido entre as atividades da Caravana Mundo Palco, do espetáculo Sobre Outras Janelas e Portas pela Amazônia e os estudos dos demais integrantes. Preservávamos a memória de nossas últimas atividades e da essência do que fazíamos desde 2013, porém, será que manteríamos os processos de construção ao qual éramos habituados? Éramos os mesmos artistas?
Dessa forma, resolvemos que o
nosso passo inicial seria esse reencontro com nossa arte, com esses trabalhos que eram ao mesmo tempo estranhos e velhos conhecidos nossos. Para que nos reconectássemos, decidimos realizar encontros onde seriam realizadas oficinas voluntárias, mediadas pelos integrantes do projeto, dentre os quais há cantores, músicos, escritores e atores. A contribuição de nós mesmos uns com os outros nessa fase inicial seria pautada por um repertório diverso de experiências e conexões. Experiências 24
com a poesia, com a investigação do corpo e construção dramatúrgica, referências do teatro, processos com a gênese de nossas personagens, que serviriam de inspiração para nosso trabalho em busca da reativação dos espetáculos que apresentaríamos. E assim nossos encontros tiveram início na Usina de Arte João Donato, três noites por semana.
Enquanto integrantes do mesmo elenco, também tínhamos a necessidade de reestabelecer
contato com nossa expressão corporal individual e coletiva, e assim, durante um mês, fomos colocando em prática essas experimentações, que serviram de pontapé inicial em nossos estímulos e em nosso processo criativo. Além das nossas oficinas voluntárias, iniciamos também um trabalho de conscientização corporal com o bailarino Jhon Gomes (Grupo Aguadeiro).
Paralelamente ao combo de oficinas do qual participávamos, conversávamos intensamente
sobre como seria iniciada a nossa pesquisa nas comunidades, quais lugares seriam escolhidos por nós e quais critérios utilizaríamos para os contatos iniciais com os bairros e moradores. O foco da pesquisa era um mapeamento da cidade a partir de óticas muito individuais a respeito da relação humana/artística com o meio no qual estamos inseridos, com os lugares por onde passamos e pessoas que conhecemos. Para iluminar um pouco nossas ideias, tivemos a ajuda da atriz paulistana Bruna Amado, recém-chegada na cidade, e que já havia tido uma experiência com projetos. Através de material audiovisual, conversas e relatos, ela foi nos detalhando exercícios possíveis, formas de abordagem e de inserção nos bairros, debatendo aquilo que queríamos. Assim fomos lapidando nossa forma de contato com as comunidades.
Naquele momento, já estávamos instalados no espaço destinado aos encontros do grupo.
A sede do projeto Cidade de Múltiplos Mapas estava situada à beira do Rio Acre, no bairro Seis de Agosto, ponto histórico da cidade. No passado era conhecido por Seringal Empresa, lado boêmio, portuário e comercial do território do Acre, onde desembarcavam os viajantes de outros estados e países. O local nos trazia, além de muita inspiração, uma curiosidade a respeito da convivência no entorno.
Após muito estudo e debates, optamos por seguir um exercício intitulado de deriva, onde
sairíamos por caminhos não estabelecidos previamente, buscando o chamado “estado de rua”, que nos conectaria de formas distintas com os lugares por onde passaríamos e com as pessoas que encontraríamos. Uma busca por uma sensibilização pessoal dos outros mapas com os quais 25
teríamos contato. Realizamos derivas individuais e coletivas, sempre estabelecendo um determinado tempo para a execução dessa pesquisa e a condição de voltarmos para a sede ao final, com o propósito de debatermos nossas experiências nas ruas de forma livre, utilizando qualquer forma de expressão. Durante os encontros pós deriva, realizávamos exercícios musicais e cênicos, onde toda a nossa experiência se fundia em uma miscelânea artística, que também nos inspirava para além do objetivo da pesquisa.
Assim fomos percebendo o quanto nossas atividades estavam interligas e eram complemen-
tares umas às outras. Na prática, as propostas presentes nas diferentes etapas do projeto não se delimitaram ao seu momento previsto no cronograma, mas permearam todo o processo. Durante um exercício de performance, em que nos encontrávamos com nossos corpos de uma forma nova, a perspectiva única do processo civilizatório sobre a cidade de Rio Branco também estava sendo desconstruída. Quando caminhávamos por cantos ainda não visitados do bairro, a iluminação das ruas nos revelava uma dramaturgia. Nas oficinas de iluminação, memórias de pessoas e lugares da cidade também emergiram. Da mesma forma, a pesquisa permaneceu ativa das mais diversas formas, na execução de exercícios específicos, na convivência cotidiana em nosso espaço: A própria presença quase diária do grupo no bairro e nossa relação de vizinhança com os moradores e trabalhadores na área foi incorporada como laboratório de pesquisa sobre as ambiências da cidade”
Aos poucos, fomos amadurecendo também a ideia sobre o que estávamos realizando e, a
partir de referências de obras literárias ou outras fontes semelhantes, trazidas e compartilhadas por integrantes dos grupos, iniciamos a utilização da palavra “errância” para denominar nossos processos e seguirmos no propósito da busca e expressão do nosso estado de rua.
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A artista Bruna Amado, uma das colaboradoras no desenrolar do processo, apresentou ao grupo como a prática da errância havia sido incorporada por movimentos e grupos artísticos de diferentes lugares e momentos da história, assim como a forma com que essa concepção encharca a prática artística e política de diversos grupos no Brasil. Nos inspiramos, ainda, nas ideias e nos trabalhos de Fabiana Britto e Paola Jacques, na Plataforma Corpocidade, e nas narrativas cartográficas de Gabriel Schvarsberg, para o exercício da prática das errâncias como mais um dos jogos que compunham nossos laboratórios de pesquisa e formação.
Nosso ponto de partida para a prática era o Beco do Mijo, a sede dos grupos na Gameleira.
De lá, partimos sozinhos ou acompanhados uns dos outros, em uma trajetória livre de intenção, era apenas caminhar pela cidade, errar. Estar atento a texturas, palhetas de cores, paisagens sonoras, fluxos, linhas de arquitetura, fluxos. Discutimos propostas e conceitos para que, na rua, fossem flexibilizados, substituídos ou explodidos. O que era o exercício, ganhou outra interpretação aos olhos de cada integrante. Nessas andanças percorremos os bairros Seis de Agosto, Cidade Nova e Bairro do Quinze e, nas margens do rio, cartografamos um novo território, unindo cada uma das trajetórias dos integrantes do grupo, delineando um território por meio do fluxo e de um olhar rente ao chão.
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Narrativas de derivas Individuais
“(...) Havia uma multiplicidade de concepções sobre o que era a deriva, construída a partir das expe-
rimentações de cada um, dentro de uma proposta inicialmente única do coletivo. Derivou-se muito sobre a deriva. Que bom!(...) Noutro dia, a poucas quadras dali, estava eu resolvendo alguma outra pendenga dessas que vem no pacote da vida em cidade, alguma coisa com papéis, documentos, sei lá, passei perto da praça da revolução e... outros ipês no caminho. Mas estes estavam floridos, ofertando buquês de uma cor lilás suave e viva, para quem quer que passasse por ali. Fui novamente atravessada, uma deriva se criando no meu trajeto que eu julgava tão conhecido. Parei. Admirei simplesmente, tanta beleza gratuita. Olhando, ouvi um silêncio no veloz turbilhão do centro. Quantos tempos acontecem aqui? Quantos trajetos se fazem, caminhos se cruzam? O que oferecem neste encontro? O som de uma vassoura se aproxima. Vejo uma mulher, suando, usando o uniforme vermelho da prefeitura, no difícil ofício de limpar a praça. Junta guardanapos manchados de maionese ou de tucupi, embalagens de chiclete, bitucas de cigarro, folhas, e as sementes de ipê ,meio transparentes e brilhantes, com olho de gato e peso pena de passarinho. Empurra para dentro da pá, que vira num baldão com tampa e saco de lixo preto. Entre o chão e o balde, no percurso do descarte, um vento passa e rouba da pá algumas sementes, dando-lhes carona em seu percurso livre, desconhecedor de semáforo, faixa de pedestre, muros, fronteiras.”
“Pela manhã, no sol de verão amazônico no mês de maio descubro em conversa o trabalho do dia,
as Derivas ou Errâncias, como apelidamos. Esse experimento, o exercício de seguir um ou vários caminhos, observando possíveis relações da cidade e suas nuances através de arquiteturas, pessoas, animais, vegetais, tudo que fosse possível, porém sem estipular uma rota prévia, sem projetar esse caminho, deixar-se levar. Embaraçado com a semelhança do exercício com o desejo que me levou a fazer coisa parecida ao sair de casa, e então continuo... Foi aí que o caminho percorrido por mim durante o exercício, fez a chuva (molha besta - chuva fina na região) seguir o caminho de casa. Porém, ao voltar pelo beco, lembro-me da época de criança, em que eu e meu pai fazíamos uma caminhada por outros becos ao lado de uma das escolas que estudei, a das freiras, o Imaculada Conceição lá do bairro 15. Indo por lá aproximávamos bem mais rápido de casa. Segui então direto ao antigo beco da cigana para ver essa passagem, a existência de moradores, 30
minhas lembranças. Por lá revisitei na memória as trajetórias antigas, perdidas por mim, silenciadas e ocultas até os dias atuais do oficial nessa nossa cidade, desfocados ao fluxo dessa cidade que cresce todos os dias.
A caminhada com chuva me fez entrar numa bodega, um barzinho entre esse beco da cigana e a rua
que não existia em minhas lembranças, mas então a dona dali foi logo na porta me perguntar: você é daqui moço bonito? Ao sorrir respondi que sim e fui logo pedindo uma cerveja! Conversa vai e vem nesse encontro, eu me lembro que tenho de terminar minha caminhada, encontrar todos do grupo e falar da experiência de sair sem rumo. Mas antes de ir, vi um colega seguindo pelo beco da cigana meio perdido. Ele nem me viu, nem viu o bar. Ver ele de longe de onde estava, meio perdido e encantado com a paisagem de casas em madeira nas beiras do igarapé que virou esgoto, me fez perguntar à Sra. dona do bar o nome dela e se ela sabia histórias daquele lugar. Também rindo, ela respondeu: “Meu nome é Edite, às vezes me chamam de cigana, do beco da cigana. Só que aí eu respondo que a cigana mesmo morreu de baladeira”. Rimos juntos e eu paguei a cerveja de R$2,50.”
“Percebi com espanto que o senhor que acabara de me cumprimentar retira uma baladeira (estilin-
gue) do bolso e sem demora tenta alvejar os pássaros que estão a banhar-se na água da chuva. Fiz torcida para que o tiro não atingisse nenhum deles. Observei ainda pescadores que se encontravam na beira do rio na tentativa de garantir alimento. Fato impactante nessa observação, o local em que a pesca estava sendo realizada, na “boca” de um dos esgotos que são despejados sem tratamento diretamente no rio, os dejetos acabam atraindo peixes, como o Piranambu, conhecido como urubu d’agua. Esta prática é observada diariamente as margens do rio.”
“A arquitetura da cidade é uma visitação cheia de lembranças. As memórias da infância direcionam
os pensamentos para a observação da velocidade das mudanças que ocorrem em tão curto período de tempo. Tanta coisa mudou nos últimos 24 anos. E nos últimos 70? E nos últimos 150? Foram nossos bisavôs 31
que viveram essa época e presenciaram parte dessa mudança.
Vendo um ônibus sanfona atravessar a ponte metálica, foi quando me dei conta, a moderni-
dade aqui fincou o seu lugar. A primeira ponte de Rio Branco, que não tem 100 anos e que corta o principal rio da capital acreana.
Um dia de calor de repente se transforma com a chuva que chega molhando todo o chão. As
pessoas se protegem da água que cai do céu dentro das lojas e paradas de ônibus, me junto a um grupo de pessoas na entrada de uma loja. É impossível não notar quantos traços indígenas parte da população da cidade possui, me faz lembrar mais uma vez o pouco tempo de existência desse estado que carrega o nome do rio que hoje é o local onde tantos esgotos e lixos são lançados. É o que se consegue observar ao andar e perceber o caminho que os bueiros fazem em direção ao rio Acre, a fonte de abastecimento da cidade.”
“Em certo ponto, nos separamos e segui sozinha pelas ruas do segundo distrito. Num cami-
nhar diferenciado, onde o tempo era o tempo das coisas, e não das pessoas. E observar quem eu era naquele tempo também passava pela minha cabeça. Fui seguindo, passando por pontos históricos da cidade onde nasci... Cine Teatro Recreio, Tentamen em ruínas, e a deriva me levam para um centro comercial muito movimentado, carros trafegando intensamente, pessoas e lojas, uniformes e inquietude. Era fim de tarde e o expediente já se cumpria, mesmo assim, a pressa estava lá, e eu caminhando em meio a isso, observava que ao contrário de todos que passavam por mim, eu não compartilhava de objetivos naquele momento, caminhava, a esmo, sem necessidade de destino algum, em busca de sei lá o quê. Aos poucos foram caindo os pingos e no decorrer dessa trilha, eu já andava na chuva, e então a pressa ao meu redor, pessoas buscavam abrigo em lojas, passavam correndo por mim, e meus passos permaneceram, em um ritmo avesso, até eu perceber que na Avenida Chico Mendes não era somente o pulsar que me diferenciava: não havia mulheres naquele momento, nem na rua, nem em lojas, a avenida era masculina, tanto no que se refere ao trabalho no comércio, quanto aos poucos serem humanos que encaravam a chuva. As poucas representantes do meu gênero estavam em seus uniformes, buscando abrigos, ou na entrada de lojas, em recepção aos clientes.” 32
“De longe avisto uma mata que me chama
atenção, porque era uma área verde muito grande por de trás do bairro, resolvi seguir. As casas começam a ficar mais altas devido às enchentes, em sua maioria casas de madeira, ando, ando, já não vejo mais muita gente, até que chego ao final dessa rua que dá na beira do rio, o cheiro forte da madeira molhada me traz uma memória (quando criança, uma senhora chamada Francisca que cuidava de mim, me levava às quartas-feiras na casa de sua irmã, que ficava por de trás do bairro onde eu morava – Manoel Julião – Esse, chamado de bairro da paz, naquela época a maioria das casas eram de madeira, então quando chovia ficava aquele cheiro que só a madeira molhada tem). Segui e o asfalto já não existia mais ali, palafitas fazem o caminho onde percorro até que saio em uma rua que dá o meu retorno à praça da juventude.”
“Em uma dessas derivas estive na companhia
de minha parceira de grupo, e seguindo o exercício da deriva caminhamos pelo que seria chamado de Bairro do 15, parte do que se costuma chamar de 2º distrito da cidade de Rio Branco, do outro lado do rio que corta a cidade. Pelas calçadas estreitas logo percebemos que víamos cidades diferentes, ela e eu. A cidade dela tinha muitas plantas, devidamente
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identificadas, por todo o caminho ela dizia, aquilo é um pé de tal coisa. Na minha cidade tinha muitos desenhos nas fachadas, sinuosidade e o formato das casas era parte de um todo que eu percebi de forma diferenciada de minha colega de exercício e somente com a guia das palavras dela pude ver a cidade que ela via e assim fizemos essa troca da minha cidade com a dela.
“No meu trajeto fui observando, sem pressa, o trânsito, pessoas e etc... Fui andando até a Passa-
rela. Nesse trajeto observei um casal de namorados, cuja conversa em questão era sobre o homem que estava na beira do rio a pescar. O casal desejava entender como o homem conseguia pegar peixe com a linha. (Fato curioso foi o urubu com as asas abertas, próximo ao pescador). Logo após continuei minha caminhada até um ponto de ônibus. Ali comecei a conversar com uma senhora que estava aguardando a neta sair da escola. Conversamos um pouco, em seguida segui meu caminho de volta a sede.”
“Iniciei minha deriva sem saber o que fazer, nem para onde ir. Tinha me interessado na história
sobre o Beco da Cigana e o bar da Dona Edite, resolvi segui-lo. Andei então pelo Beco do Mijo até lá o finalzinho que dá na rua, que passa bastante carro e é difícil de atravessar e você tem que se jogar.
Passado esse obstáculo, demos de cara logo com uma casa de produtos agropecuários, que tinha
no meio do salão um tronco de árvore com algumas motosserras cravadas nela, como um troféu. Cena bem marcante para os dias de hoje.”
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“Seis de Agosto revisitada o rio sai da curva um projétil direto Pah levo-o comigo até a memória largada da Tentamen as avenidas me chamam atendo carros avançam passo pelas gentes esperando tediosamente um ônibus serenando um pouco um esgoto solta um mau cheiro perto bem próximo mas todos ficam lá acostumar é o jeito (...)”
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“Estava agora em frente à Escola Imaculada Conceição, e mais à esquerda havia um caminho de tijolos, que eu já havia reparado antes, mas que nunca havia entrado. Entrei. O caminho, incialmente estreito, foi se alargando para mostrar amplos terrenos dos dois lados, onde haviam casas, duas ou às vezes três, no mesmo terreno. As pessoas que andavam por ali dividiam espaço com as motos, que também faziam daquele local sua passagem. Por ali, ouvi crianças brincando, músicas sertanejas, o som da novela vindo das televisões e louvores evangélicos entoados a plenos pulmões na porta de entrada. Vi também uma plantação de macaxeira e uma árvore que havia entrado em acordo com um poste de luz e que agora ocupavam o mesmo espaço. A sensação de andar sozinho por aquele beco desconhecido, acompanhado do estigma de lugar perigoso que aquela região possui, aos poucos foi me dando medo. Vez ou outra eu olhava para trás, pensando se não era melhor voltar por onde tinha vindo já que, afinal de contas, não sabia a extensão desse caminho e nem aonde ele iria dar. Nesse momento me senti verdadeiramente em deriva.
Chegou um momento em que o estreito caminho de tijolos deu em uma rua de asfalto, larga o sufi-
ciente para a passagem de carros e caminhões pesados. Pareceu ser uma área de depósitos. Mas ainda assim desconhecida para mim. Andando mais um pouco, avistei a placa de um supermercado, uma filial dentre as várias que existem na cidade. Foi curioso notar que mesmo aquele símbolo sendo carregado de significados negativos para mim, naquele momento significou conforto, segurança e identificação, pois afinal, ao avistá-lo, eu sabia onde estava.” “Era a água que dava o contorno dos nossos caminhos todo o tempo Desaguamos em um novo ponto de vista Era a água me separava das rotas já tão decoradas pelo corpo A cidade em movimento é infinita Quantas e quantas pessoas nos esperam na varanda de casa todos os dias Com histórias, sorrisos, costuras e hora para fechar o portão Quantos e quantos muros de Berlim estão erguidos entre essas esquinas Em cada instante efêmero um encontro e uma despedida A memória tem texturas clandestinas”
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Errâncias Coletivas
Como adentrar nos bairros de maneira sutil, a fim de absorver e poder
gerar uma troca significativa para nós e as pessoas com as quais dialogamos?
As errâncias, trajetórias e trocas em olhares e conversas pela cidade,
são recursos práticos encontrados para a criação de narrativas e olhares sobre a cidade, experimentados no contexto teatral/performático. Essas várias e variadas experiências, com elementos que são “novos” para muitos dos participantes do projeto, trouxeram à tona discussões sobre a multipli(cidade) e o entendimento de um discurso único, generalizante, que é instalado de diversas formas, inclusive em nossas próprias formas de praticar a cidade.
A ideia de ir do micro para o macro permeou o pensamento do gru-
po, tanto nos espetáculos quanto no alinhavar dessa metodologia que estava sendo costurada por todos nós agentes criadores, comunidade, arquitetura, atmosfera. Portanto, a partir dos estudos teóricos e de experimentações individuais e em grupo, escolhemos trajetórias para cartografar nossa inserção na cidade, primeiro individualmente e a seguir de forma coletiva, interligando as trajetórias percorridas por cada um de nós.
Na primeira errância coletiva saímos em direção ao Bar da Dona Edith
(localizado no final do Beco da Cigana, parte do Bairro Quinze), figura muito importante nesses processos de derivas, que há 30 anos mora naquele lugar, com ela fortalecemos laços. O grupo teve uma comunicação muito receptiva e sensível, sempre recebido com sorrisos e muitas histórias. Saindo de lá passamos pelo Beco da Cigana, estreito, com muitas casas e nada de saneamento básico. Das maravilhas dessas derivas tivemos importantes encontros, como quando paramos em frente a uma casa onde encontramos indígenas (Nação Huni Kuin – Aldeia do Caucho, Município de Tarauacá) fazendo artesanatos, trocamos... Saímos do Beco, seguimos até o Mercado do Quinze. Atraves37
samos a rua para descer até a Catraia, lá encontramos dona Rosa, que trabalha todos os dias fazendo a travessia entre a comunidade do segundo distrito e a comunidade do bairro Sobral (primeiro distrito). Observamos aquele remar de todos os dias, passam crianças, adultos, idosos, bicicletas e assim dona Rosa rema, rema de um lado ao outro. A curiosidade é que nas sextas-feiras acontece o forró no Mercado do Quinze, onde encontram-se pessoas do primeiro e do segundo distrito, e lá está dona Rosa, pronta para estas travessias que serão bailadas pelo forró.
A segunda deriva/trajetória cole-
tiva foi experimentada pelo grupo em silêncio. Os integrantes não poderiam comunica-se entre si, mas caso houvesse a necessidade e a vontade de interagir com as pessoas que encontrassem, assim o poderiam fazer. Segundo a proposta, deveríamos andar juntos, afinal, a deriva era coletiva, e, aos poucos, ir sentindo conforme fôssemos andando qual integrante iria guiar aquele momento. Assim fomos alternando os guias através dos corpos que indicavam a direção sem apontar, e isso teria que acontecer dentro de uma hora. Seguimos, no calçadão da gameleira, es38
trangeiros às pessoas daquela Cidade, um grupo completamente heterogêneo, na sua maioria nascidos aqui (Rio Branco – Acre), passávamos aos olhos curiosos de quem nos olhava. Perguntas como “vocês são daqui?” corriqueiramente eram ouvidas, mais um ponto de reflexão para o grupo. Um dos guias entrou num parque de diversões e seguimos, andamos, observando tudo que passasse ou chamasse atenção, interagimos com as estruturas arquitetônicas do parque. Sob muitos olhares curiosos saímos de lá e seguimos. Em certo momento desta deriva, houve dispersão, observa-se que o grupo perdeu a conexão em certos momentos, ou pela pressa, ou pela preocupação com a hora. Mais à frente, já na Igreja Nossa Senhora da Conceição, percebemos que o grupo se dividiu em dois, fomos tentando nos comunicar sem verbalizar e alguns foram atrás dos integrantes que se apartaram do grupo maior, voltamos para o ponto de saída que era a sede.
Cada deriva nos demonstrou as múltiplas cidades que existem na cidade e em cada participante
do grupo. A deriva que fizemos em silêncio total foi interessante para perceber os ritmos internos variados de cada integrante e o quanto nos guiamos pela linguagem corporal do outro, um fato peculiar que aconteceu, quando o grupo se subdividiu em dois, sem que esse comando tivesse sido imposto, simplesmente no decorrer da deriva aconteceu. O primeiro grupo permaneceu próximo ao local de encontro, nossa sede, enquanto o outro se afastou e adentrou as ruas do bairro. O primeiro grupo voltou no horário combinado e o outro demorou mais de quarenta minutos para regressar. A questão aqui não é se um foi certo e outro errado, mas justamente compreender esses múltiplos mapas, ritmos, caminhos, tempos que é impossível alcançar todos em um único formato.”
Outra deriva coletiva iniciou sua trajetória pela calçada da sede até chegar na Rua da Sociedade
Recreativa Tentamen, criada em 1924, local histórico onde aconteciam várias festividades da alta sociedade Acreana, hoje tombado pelo patrimônio histórico e pertencente ao Estado. Observa-se que o local está sucateado devido às ultimas enchentes e o descaso de quem o administra. Seguimos, mais a frente avista-se de um lado a outro da rua muitos pontos comerciais de lojas agropecuárias e ferramentas, onde é concentrada a maior parte destes tipos de lojas. Seguimos, entre grafites e pichações, carros passam de um lado a outro, chegamos à esquina de cruzamento da Seis de Agosto, o grupo para numa banca de bombons e há sangue no chão, o senhor da banquinha conta que houve trocas de tiros e um rapaz morreu em uma tentativa de assalto. Entramos na rua que dá acesso à beira do rio, local bem arborizado, finalizando ali está deriva.
Andar pelas ruas, caminhar lento, pé sob pé, olhos atentos ao que é olhado e não visto, detalhes 39
das construções, desenhos nas calçadas, nome das plantas, cores das flores, olhos, pessoas, movimento, desconhecido. O trajeto a ser explicado pelas sensações e não por nomes de rua, mapas e documentos oficiais que determinam onde inicia um bairro e termina outro. É um exercício de desconstrução de um doutrinamento de mentes que inicia desde a primeira infância quando ingressamos no sistema de ensino. Essa desconstrução do pensamento objetivo e racional, esse estado de deriva, “flanar” pela cidade e suas fronteiras inventadas e invisíveis e suas correlações com as pessoas, o cotidiano, a memória afetiva com os lugares foi o start para a pesquisa de fato do projeto Cidade de Múltiplos Mapas.
Vivenciamos diversas vezes a cidade por outras perspectivas, foram adotadas algumas formas de
comando para estes momentos como divisões de grupos, duplas, individualmente, em pequenos nichos, em silêncio total, em diferentes horários, e diferentes rotas, sempre tentando perceber cheiros, texturas, olhares, sons, cores, detalhes outros que os habituais fluxos que automaticamente ficam fixados sobre a cidade.
Foram muitas as percepções que essas andanças trouxeram. O estado invocado para colocá-la em
prática levou a observações que talvez não pudessem ter sido feitas em um caminhar cotidiano: a análise das pessoas que circulam, a cidade sob a ótica das plantas que abriga, da arquitetura situada em tempos diferentes e a opressão que recai sobre a natureza por conta da cidade urbanizada que se expande.
Visitamos essa parte da cidade com o objetivo de conhecê-la, reconhecê-la. Obviamente nossos ex-
perimentos não foram o suficiente para isso. Pois, os lugares que vimos e pessoas que conhecemos já não permanecem mais da forma como conhecemos na ocasião. Mudaram. Mudou, portanto, a cidade.
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O cotidiano de encontros diários entre os artistas participantes do projeto envolveu o intercâmbio das
referências e pesquisas de cada integrante, aliado a um processo compartilhado de vivências coletivas com diferentes focos de criação estética. A horizontalidade na dinâmica de proposição dos temas e das formas de estudo nos laboratórios foi certamente a chave para a construção de um processo criativo mais livre, tão marcante para todas as pessoas que o vivenciaram. É interessante citar os laboratórios de estudo como momentos de afinação do grupo, em um exercício de comunicação por meio da arte, capaz de sintonizar os corpos em um estado performático já não individual, apenas.
É importante salientar que os laboratórios de formação eram articulados aos debates em torno de
pesquisas acadêmicas, produções audiovisuais, à interlocução com outros grupos atuantes, à pesquisa na cidade e aos ensaios propriamente ditos, apontando que esta complementaridade entre as diferentes faces na formação do ator compõe de fato a coluna vertebral do projeto Cidade de Múltiplos Mapas, pois a partir desse pulsar diário que foram criadas as obras, os movimentos, ações de pesquisa e experimentação e demais intervenções na cidade.
Diversos temas foram foco dos laboratórios, como a sensibilização do corpo a partir da música, da
escuta criativa e das paisagens sonoras, laboratórios de dança, pesquisa, leitura e composição literária, com foco na poesia, entre outros.
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Laboratório: A música e seus recursos dramatúrgicos, com Maiara Rio Branco
O laboratório foi separado em dois dias. No primeiro as-
sistimos a alguns vídeos de espetáculos de teatro que tinham o recurso musical como peça fundamental para a dramaturgia. A cada vídeo eram levantadas algumas questões/reflexões:
sin-
cronismo diferencial que a música precisa para que seja transmitido o que se deseja; compreensão rítmica e suas dinâmicas; a relação com a plateia quando utilizado o recurso musical; recitação poética como intenção a partir da tensão musical; partituras construídas com o público; a música dos objetos, andares, olhares e textos; o ritmo das cenas; o uso do recurso de música mecânica; a música como prólogo de um espetáculo e a relação com a plateia a partir daí; a música e o transe.
As reflexões reverberaram sobre o nosso fazer teatral, na
utilização da música em nossos espetáculos e assim pudemos compreender como cada participante percebia este recurso e os desejos desta utilização na cena teatral.
No segundo dia fizemos alguns exercícios corporais que
focavam na concentração e criação de partituras corporais. Após elaboradas algumas sequências, incluímos a música a fim de perceber como o ator se relaciona com a mesma partitura (individual e coletiva) após e durante o estímulo musical. Não negar a música, não se acostumar – no sentido de mera reprodução – com o texto musical, renovar-se neste discurso e administrar este recurso em cena, fortalecendo-o e sendo fortalecido por ele, foram os aspectos trabalhados e sentidos nos jogos do laboratório. 43
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Laboratório: Respiração e voz: percepção viva de si, do outro e do espaço, com Amanda Schoenmaker1
Com a proposta de buscar ressignificações da cidade, parecia-nos importante alimentar uma dispo-
sição interna para este olhar que se propõe livre de preconcepções. Assim nasceram as vivências buscando a ressignificação de si e da relação com o mundo, através da respiração e da voz, elementos aparentemente conhecidos. Falar em ressignificação de si é referir-se à percepção de nós mesmos como seres pulsantes, que vivem (e não re-vivem) a cada instante. Como olhar para o entorno, como senti-lo e não apenas ressenti-lo, encontrar com o outro, e não reencontrar com o que já pensamos sobre ele, sem nos perceber sempre diferentes, sem nos relacionar também conosco desta forma? Como nos fazer presentes no espaço, sem aguçar a percepção de como nos inserimos nele, das trocas estabelecidas a todo momento? Os exercícios iniciaram com uma sequência de respirações, para ampliar a consciência sobre o próprio corpo e conectar-se de forma presente a este movimento involuntário, que é uma troca de si com o mundo, num dar e receber infinito. Em seguida, uma investigação dos órgãos em cada região do corpo, seu peso, forma, densidade, textura, movimentos e sons. Aos poucos, então, sem desligar-se desta percepção, permitir-se a emissão de sons vocálicos, se e quando eles surgissem, ampliando infinitamente os ouvidos para o espaço, para o infinito, escutando os sons inaudíveis que nos perpassam, ressoando nos corpos, percebendo que tudo é som, tudo ressoa. Sentir todo o corpo vibrar. Sentir na pele a reverberação do espaço. Perceber o som, o canto, como um movimento. Sentir, não ressentir. Agir, não reagir. Sempre novo, sempre de outro lugar. Chegamos a entoar juntos alguma canção conhecida, mas agora experienciada de forma nova, “fresca”, e percebendo a troca energética entre nós e com o espaço. Conversando sobre as percepções após os exercícios, percebemos neste trabalho potencial para contribuir no processo do coletivo (“pela audição, até essa nossa conversa se afinou”). E também para o preparo de ator, aguçando sua escuta, sua presença em relação aos colegas, ao espaço e ao público, bem como na execução sonora (musical, textual, gestual) dos espetáculos, com mais consciência da própria voz, de si, em relação aos outros.
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O trabalho teve por base estudos e experiências a partir do livro A Escola do Desvendar da voz, da sueca Valborg Werbeck Svärdström, (poucas) aulas com Madalena Bernardes, encontros do Caminho do Canto, de Andrea Drigo, e o livro A força curativa da respiração, de Marietta Till.
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Oficina de dança, com John Gomes
Por dois meses seguidos, uma vez por semana, Jhon Gomes trabalhou conosco diversas formas de
expressão, pautadas pela dança contemporânea, com séries de exercícios de alongamento e fortalecimento muscular oriundos do balé clássico.
Um dos processos importantes construídos na oficina foi a dinâmica na qual instruções como pulo,
salto, grito, frase, letra, rolamento e partes do corpo eram escolhidas pelos participantes, formando uma sequência corporal que deveria ser repetida e memorizada. Com o repertório construído o grupo passou a experimentação para a rua em diferentes locais.
Em uma oficina de dança com Jhon Gomes combinamos de ir para o outro lado da ponte, fazer lá,
no meio, na rua, onde tudo acontece. Na Avenida Getúlio Vargas com a rua Epaminondas Jácome. Não se entendia nada, umas pessoas passavam, outras observavam do outro lado da rua, uns riam, trocavam olhares, deviam se perguntar: que esses maninhos tão fazendo? E nós lá entregues à troca, ao estranhamento, cada um no seu momento, no seu movimento, formando sua dança e juntos outra dança, naquele espaço, naquele lugar?
Outra dinâmica que marcou a trajetória do projeto foi inspirada no contato improvisação, e consistia
em guiar o movimento de outro corpo a partir da conexão das mãos com um ponto específico, em duplas, trios ou em grupo. O jogo exercitado na oficina foi incorporado nos processos de improvisação e dialogou com a dramaturgia dos espetáculos.
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Oficina de Iluminação e Iluminação alternativa, com Magrão, Rabicó e Claudeney Alves
Na proposta do projeto nas oficinas de iluminação seriam abordadas questões técnicas da iluminação
de espetáculos, termos, equipamentos, efeitos, etc., além de formas alternativas de iluminação, com equipamentos não convencionais. As duas últimas semanas seriam dedicadas a estudo e criação dos grupos, a partir dos conteúdos abordados. Considerando que a iluminação é elemento que compõe a construção da dramaturgia, esta oficina foi pensada de forma a facilitar o diálogo com os técnicos na construção da concepção da luz dos espetáculos. E então, partir para experimentações nos espaços pesquisados, tínhamos como guias as perguntas: como dialogar com a dramaturgia dos espaços a partir da luz? O que iluminar? Como iluminar?
Na prática, as oficinas instigavam o grupo a aprender a manusear, reconhecer e praticar o trabalho de luz. O
processo resultou em uma aproximação entre os grupos e os iluminadores Magrão e Rabicó, que ministraram a oficina, não só em relação a termos técnicos e condições de trabalho, mas também em relação à criação estética da luz na cena. Esses profissionais envolveram-se na criação da iluminação desde a primeira montagem do espetáculo Beco do Mijo e a afinação deste diálogo foi vista como imprescindível para o trabalho nos espetáculos.
Diferentes locais foram utilizados para as atividades das oficinas, como o espaço sede da execução do
projeto e outros espaços teatrais da cidade, constando: Cine Teatro Recreio, Teatro de Arena do Sesc e Usina de Arte. Esses deslocamentos trouxeram, além do exercício nos diferentes equipamentos e recursos disponíveis nesses ambientes, também percepções sobre a história cultural e artística registrada em cada um desses espaços, em suas diferenças, e a memória das pessoas que viveram essa realidade na cidade por décadas.
Portanto, foram vividas experiências na concepção de luz, escolha e adaptação de equi-
pamentos,
como
técnicos
na
construção
de
ligações
e
montagem,
na
gravação
de
dife-
rentes modelos de mesas de luz em uso na cidade e na direção de iluminação nas cenas.
Vale ressaltar que a oficina de iluminação alternativa desenvolvida pelo artista plástico Clau-
deney Alves deu lugar ao trabalho de criação de iluminação cênica artesanal, demonstrando variadas experimentações no ambiente interno e externo da sede aonde o processo da obra coletiva vinha sendo realizado. Trabalhando com latas, papéis, celulares, cálices, velas, espelhos, stencils, sombra, projetores, pratos, e materiais coletados em diferentes contextos da cidade, os grupos vivenciaram diversas possibilidades de olhares estéticos somados àqueles em construção nos seus espetáculos. 49
Ao final da maioria dos encontros de ambas as oficinas, também foram desenvolvidas experimen-
tações envolvendo a prática musical, composições espontâneas, com a utilização de objetos e equipamentos variados na produção de luz e também de sombras, performances decorrentes, todos componentes de fundamental importância para ambos os grupos, enriquecidos mediante o estudo da iluminação.
Um dos pontos chave do processo de remontagem do espetáculo Indocumentados foi a concepção
da iluminação como elemento de criação de sua dramaturgia. A partir das vivências das oficinas de iluminação e iluminação alternativa desenvolvidas no projeto, o grupo dedicou-se a conceber e manipular a luz, na criação de imagens e na produção de diferentes sensibilidades estéticas nos momentos de cada cena. O desafio da manipulação dos diferentes materiais e aparelhos pelos próprios atores em cena e a própria produção desses materiais foram incorporadas pelo grupo ao mesmo tempo que a dramaturgia era construída. As parcerias com os artistas citados, assim como os demais colaboradores do projeto, criaram todo um campo novo de experimentação e este processo apontou um grande potencial para diversas formas de ampliação do próprio espetáculo e de outras intervenções artísticas que podem ser criadas pelo grupo.
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Oficina O Corpo e o Espaço, com Diego Batista
A oficina “O Corpo e o Espaço a Cidade” foi desenvolvida a partir do conceito de inteligência sinesté-
sica, que consiste na junção de uma série de atos físicos que levam o corpo a desenvolver imagens e ações físicas a partir de impulsos gerados pelo próprio corpo.
O formato de oficina, inicialmente proposto, desdobrou-se em encontros de aprofundamento do es-
tudo sobre a performance, mapeamento dos espaços de apresentação, investigações sobre os corpos e corporeidades, interação com pessoas e intervenções artísticas na cidade, especialmente nas ruas, becos, bares e nas margens do rio. Os exercícios de coordenação motora, equilíbrio, resistência física, olhares, entre outros, foram praticados para a preparação do corpo do ator para um estado performático, construindo um repertório corporal em busca de uma fisicalidade que gere imagens e narrativas para a encenação. Nesse sentido, o estudo do corpo no espaço das apresentações incorporou para além dos estudos das cenas em diálogo com a vida presente em cada lugar, os fluxos de espaços e tempos que dão forma à cidade.
As formas e a própria organização do tempo do trabalho coletivo foram construídas com base no
diálogo e no fortalecimento do grupo, na sua diversidade de práticas, culturas e crenças. Esses exercícios envolveram a produção gráfica de cartazes, mapas e objetos de cena que foram incorporados no processo de pesquisa dos espaços da cidade proposto pelo projeto.
Vale ressaltar como um dos aspectos mais importantes da oficina foi a reflexão sobre a criação esté-
tica do grupo em seus espetáculos e no olhar sobre a cidade em relação aos valores que permeiam os diferentes discursos sobre a Amazônia acreana, ao provocar questionamentos sobre o quanto as intenções de fato estavam refletidas nas cenas e quais eram os caminhos de explorar diferentes diálogos com o público.
Uma vez que os espetáculos trilharam em suas montagens o caminho do teatro performático, os en-
contros e exercícios foram voltados também para ampliar e sofisticar o conceito do ato performático dentro da encenação, mesclando a oficina aos ensaios do espetáculo “Beco do Mijo” e aos encontros de remontagem do espetáculo “Indocumentados”. A oficina representou, portanto, a busca de uma retroalimentação da prática e a criação de uma sinergia nas atividades do grupo.
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Os processos de ensaio e remontagem dos espetáculos nutriram-se das experiências do projeto de diferentes formas, incorporando as práticas na cidade como exercícios criativos e também na forma de construção coletiva da dramaturgia dos espetáculos. No “Indocumentados”, o diretor cênico Diego Batista conduziu os estudos de cena ao mesmo tempo em que o texto ia ganhando forma, também com a participação do ator, diretor, cenógrafo e figurinista Nonato Tavares, que também teve forte contribuição no processo de remontagem do espetáculo, influenciando o uso de novas máscaras e de painéis na cenografia (estes últimos pintados por Thales Vasconcelos) e assim configurando uma verdadeira aventura a descoberta de possíveis corporificação de seus significados.
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No projeto Cidade de Múltiplos Mapas, os grupos Aguadeiro e Beco propuseram esquivar-se das
rotas do centro, suas instituições e público cativo e mergulhar no encontro com novas localidades, suas memórias, fluxos e contra fluxos, e seus discursos na ordem política da cidade. E não apenas criar uma relação com a geografia do lugar, como também estabelecer um diálogo com as pessoas que vivem ou utilizam estes espaços, de forma a ampliar a compreensão sobre as relações e significações diversas contidas neles, e desenvolver um método horizontal e objetivo de intervenção em espaços não convencionais. A pesquisa, de acordo com o projeto proposto, consistiria no mapeamento de locais que fossem, na vida, palco e símbolo de questões abordadas nos espetáculos, na atualidade ou historicamente.
Em outras palavras, aprofundar o exercício de sair dos muros que, se por um lado sinalizam o inves-
timento público na arte, com estrutura e profissionais que facilitam sua realização, por outro lado a aprisionam, definindo em que locais da cidade ela deve acontecer. Limitam, também, a aproximação com públicos que não compartilham dos canais de divulgação e nem dos meios para acessar esta arte. Para quebrar esta lógica, sempre priorizamos a rua e outros prédios para nossas apresentações, compreendo que, neste processo, devemos estar dispostos a um diálogo com a arquitetura, a geografia, o uso e os acasos presentes nestes espaços, e o inerente impacto que tudo isso gera sobre o espetáculo. Através do projeto, desejamos implicar ainda mais o nosso fazer artístico no cotidiano da cidade.
Como guia desta pesquisa, sugerimos a busca de locais que fossem “na vida, palco e símbolo de
questões abordadas nos espetáculos, na atualidade ou historicamente”. Assim, todos os locais de realização dos espetáculos foram primeiramente experienciados através das derivas e errâncias, cujas pesquisas e relações criadas possibilitaram a escolha e mapeamento dos espaços para as apresentações, a partir destes diálogos. Este é o caso sobretudo do Mercado do XV (onde o Grupo Aguadeiro apresentou o Indocumentados) e do Centro Cultural Lydia Hammes (onde o Grupo Beco apresentou o Beco do Mijo). Já o espaço do Beco do Mijo, onde realizamos apresentações de ambos os espetáculos, abrigava, também, a sede do projeto, trazendo outras qualidades para a relação dos grupos com ele.
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Mercado do XV
O atual Mercado do XV é citado no conto Beco do Mijo, de Florentina Esteves, referenciado como a
fábrica de castanha do XV, então utilizada como estalagem para os imigrantes recém-chegados do Nordeste para o trabalho de produção de borracha. Era lá um dos lugares onde ficavam amontoados, aguardando os batelões que os levariam para os seringais. Por conta desta referência histórica e literária, além de estar nas proximidades do espaço alugado por nós, foi um dos lugares escolhidos para uma experimentação do espaço público e, a partir disto, mostrou-se interessante para a apresentação do Indocumentados.
Quando chegamos ao Mercado, encontramos um prédio de esquina, na beira do Rio Acre. A relação
com o rio está separada por uma rua e bloqueada por blocos de concreto pintados com faixas amarelas e pretas. Ele foi recentemente reformado pela prefeitura e abriga pequenos comércios, lojas de materiais para construção, farmácia, cabeleireiros, barbearias, lanches, pensões. Alguns deles tem suas portas voltadas para a rua e outros, dentro do espaço. Em seu interior, possui pequenos corredores que dão acesso ao vão central, onde se espalham mesas e cadeiras para as refeições. Nos corredores estão expostos quadros com fotos legendadas e textos que relatam a história do lugar.
O mercado é mais movimentado de segunda a sábado, até cerca de 15hs. Depois disso, apenas
poucos comércios permanecem abertos, e são procurados mais por moradores do entorno, em busca de um suco, refrigerante e salgado, um corte de cabelo, remédios, algum utensílio de necessidade. Durante a noite é fechado e cuidado por um vigia que permanece na parte interna do prédio.
A exceção é a sexta-feira, quando acontece um forró ao vivo, das 17 às 20hs. Ele é financiado pela
prefeitura, no pagamento dos músicos, e está sendo realizado lá temporariamente há alguns meses, enquanto o Centro Cultural Neném Sombra não é reformado. O público do forró é de adultos e idosos, nem todos moradores do lugar. Em uma errância na catraia do XV, que liga este bairro ao Aeroporto Velho, pudemos ver algumas mulheres e homens atravessando o rio arrumados e perfumados, para ir dançar no vão central do mercado, cujas mesas e cadeiras dão lugar ao baile. A atmosfera do lugar se transforma bastante durante o forró, quando deixa de ser o mercado onde se passa para comprar algo ou comer alguma coisa, e passa a ser um salão de encontros, em que os corpos dialogam bem próximos, cada par desenvolvendo uma linguagem única, e revelada a todos nos rodopios pelo salão. São diferentes elegâncias e gracejos, e as histórias cotidianas ganham o palco, fatos desimportantes para os livros oficiais, mas que constroem os 57
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fios da meada de uma história viva, vivida, reproduzida e reinventada no pequeno, não elucubrada do alto de um mapa da cidade.
Em parte, por ser considerado um local histórico da cidade, o Mercado do XV é alvo de um discurso
oficial normatizante, que sobre ele constrói uma história única, dentro de um processo naturalizado de modernização, atenuando, se não apagando inteiramente, os diversos conflitos inerentes a ele. Isto é bastante perceptível nas fotografias expostas nas paredes, organizadas pelo poder público, que não trazem à tona as condições precárias e desumanas impostas às pessoas que ali chegaram à procura de trabalho, muitas delas famintas e doentes da longa viagem e da realidade que enfrentavam antes e depois dela.
As fotos e a estrutura física atual do lugar inspiram uma sensação de ordem e linearidade. A história
parece um rio que corre manso, numa sequência lógica de acontecimentos bem controlados e conduzidos, que culminaram naquele espaço limpo e arrumadinho entregue à população de Rio Branco. Nem só das fotos elimina-se uma visão não desejada sobre o lugar, pois que mais de uma vez pudemos ver uma mulher em situação de rua sendo convidada a se retirar. Um espaço público que não é para todos. A este esforço oficial tipo tapume escapa, no entanto, a percepção que muitos moradores do centro guardam do local, considerado perigoso por quem não se arrisca a visitá-lo depois do entardecer. Em parte, essa percepção parece estar ligada à memória que se tem do lugar, depósito de “gente sem perspectiva”, que passaram a representar, no senso comum, uma ameaça à ordem pública. “Investiu-se na estrutura, mas não nas pessoas”, disse alguém.
Os membros do elenco do espetáculo Indocumentados propuseram ao grupo do Cidade de Múltiplos
Mapas experimentar este espaço, compor nele outras narrativas. Mais que apresentar o processo de construção de um espetáculo, queríamos trocar, participar por alguns dias de fragmentos do cotidiano e contribuir com a possibilidade de outros discursos e usos do lugar. Neste sentido, compreendíamos que a existência de um cenário no Indocumentados, a princípio uma barreira ao diálogo com a estrutura física do local da apresentação, trazia em si a possibilidade de desnaturalizar o cenário do próprio espaço que o abrigou, forjado pelos discursos oficiais que o definem.
Dizer que o diálogo com o espaço e suas narrativas foi experimentado apenas de uma maneira
errática, através do estranhamento, parece-nos impossível, diante das relações burocráticas impostas à realização do espetáculo. No entanto, através da lembrança que tivemos de nossa experiência em passar 59
pelo local para errar, simplesmente, estabelecemos relações menos institucionais e mais humanas, dentro do critério: estamos aqui há alguns dias e já terá um teatro. Foi graças aos vínculos estabelecidos com alguns moradores e sua divulgação boca-a-boca, que tivemos a presença de pessoas do entorno nas apresentações. E, através da divulgação nas redes sociais, também atraímos pessoas de outras regiões da cidade, convidando-as a se aproximar, junto conosco, daquele bairro.
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Centro Cultural Lydia Hammes
Um prédio de arquitetura requintada construído na década de 40, às margens do Rio Acre, capaz
de revelar contrastes sociais e econômicos em seu entorno, que ao longo dos anos foi transformando-se e consolidando-se como um dos maiores bairros da periferia de Rio Branco.
O acesso ao local pode ser realizado de duas maneiras, por terra ou através da catraia, meio de
transporte amplamente utilizado pelos moradores da comunidade e que consiste em uma pequena embarcação movida a remo, que funciona diariamente fazendo a travessia dos moradores de um lado a outro do rio.
Atualmente, transformado em um centro cultural, o espaço é bem frequentado e abriga diversas ati-
vidades, desde aulas de ginástica, dança para grupos da terceira idade, treinamento do grupo de bombeiros mirins, entre outros. A escolha deste local levou em consideração alguns fatores tais como a localização, o público alvo, a arquitetura do espaço e o diálogo estabelecido com os fatos históricos relacionados ao prédio, que outrora foi um aeroporto.
O espaço interno do prédio hoje é dedicado a homenagear Lydia Hammes, esposa de José Guio-
mard dos Santos, militar e político com atuação no Acre por mais de trinta anos. As fotos e reportagens de jornal da época ampliadas nas paredes são narrativas do discurso oficial sobre a cidade, cuja objetividade aparece naturalizada. A apresentação das cenas do espetáculo neste espaço criou novas leituras possíveis, ampliando as vozes do discurso sobre a história da cidade.
O trabalho de adaptação das cenas no espaço foi intenso e dificultoso, uma vez que encontramos
muitos obstáculos que à primeira vista não haviam se revelado. Sendo o Beco do Mijo um espetáculo itinerante, o qual convida o público a fazer parte, a necessidade de se pensar a melhor forma de realizar os deslocamentos que ocorrem durante a apresentação demandou uma séria análise que resultou em muita discussão entre o grupo. Questões como a segurança dos atores, localização das cenas, segurança do público, mobilidade, acessibilidade, foram discutidas até encontrar-se uma solução que respondesse às questões levantadas.
Ao lado do espaço encontra-se o beco da catraia, local de acesso e passagem dos moradores que
utilizam esse transporte diariamente. Através do beco é possível observar as atividades que ocorrem no centro cultural Lydia Hammes, uma vez que este é cercado apenas por uma tela. Este fato tornou a nossa 61
presença visível a toda comunidade que por ali transitava, despertando olhares de curiosidade, e por este meio, tivemos a presença marcante de diversos moradores, muitos dos quais nunca haviam assistido um espetáculo teatral.
No entorno é possível ainda encontrar vários bares que funcionam à noite com suas vitrolas mo-
dernas ecoando músicas populares em alto volume, de onde também é possível observar o que ocorre no espaço do centro cultural.
Do processo de adaptação do espetáculo também faz parte a construção de um contato com mo-
radores e estabelecimentos do entorno. Nessa ocasião fizemos amizade com o dono de um dos bares, Raimundo. Criada a relação, pudemos contar com sua colaboração para diminuir o volume do som no horário da apresentação. O que resultou no bom andamento das duas manifestações, sem prejuízo de uma ou outra, mas permitindo a mútua interferência, que é um dos aspectos mais ricos e desafiadores de nossa proposta.
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Beco do Mijo
A sede dos grupos durante o projeto era situada no Beco, portanto os encontros diários foram realiza-
dos lá, em um convívio contínuo. Assim, o Beco como lugar praticado ultrapassou a visitação, o mapeamento do espaço para apresentação, pois nos unimos aos moradores, comerciantes, frequentadores em geral, justamente na prática do vizinhar. Foi assim que conhecemos os limites de nossa aproximação e criamos desvios possíveis. Encontramos a nós mesmos e uns aos outros nessa caminhada. Localizado na atual Gameleira, O Beco do Mijo é narrado como um local de cortiços onde mulheres eram taxadas de prostitutas e estavam sendo obrigadas a desapropriar essa localidade para planos de construção das estalagens de abrigo aos Soldados da Borracha (arigós) que chegavam em centenas do Ceará, em plena década de 1940, evento que ficou conhecido como Segundo Surto da Borracha.
O Beco do Mijo de Florentina faz parte do imaginário local, que permeia histórias e relatos ao longo
do tempo. Esse Beco instalado em nossas cabeças é um espaço físico vivenciado pela população até hoje, não mais um lugar de cortiços, bebedeiras e onde a sífilis assombra, mas um lugar onde se rende uma rica memória de criar mapas do ontem para investigar o hoje, o beco onde passamos carregando em nossos corpos a vivência desse entre lugar, do que foi e do que tentamos fazer, crer e ser.
A escolha dos locais das cenas dos espetáculos foi realizada junto com o diretor cênico dos espetá-
culos nos ensaios e nos encontros da oficina O corpo e o espaço, mas tinha como base a vivência do grupo nos meses anteriores. A arquitetura do local foi também uma grande inspiração para o trabalho.
Estar no beco era uma forma de construir e desconstruir nossas noções sobre o espaço, a história, a
memória e a linguagem. Havia o Beco do Mijo do conto de Florentina, que poderia ser muitos becos. Havia o Beco do Mijo como era conhecido há décadas, cujas histórias eram carregadas nas memórias de muitas pessoas, então também eram muitos os becos das memórias. Havia o beco de asfalto, céu, arquitetura, pessoas passando diante dos nossos olhos, então também eram muitos os becos dos nossos diferentes olhares.
Até mais do que observar, éramos observados. Aos poucos notamos como éramos notados. A pró-
pria presença repercutia, de forma recíproca: era o início do encontro com as pessoas que frequentam um território fora dos mapas. As fronteiras entre nós e as pessoas era permeável, estabelecemos laços muitas vezes por meio da arte – em improvisações, performances, ensaios e reuniões com a participação de pes64
soas que poderia chamar de artistas do cotidiano.
O espaço sede das atividades dos grupos teve diferentes funções e formas de funcionamento, pois
além de um espaço de estudo e laboratório, concretizou-se como ponto de encontro entre artistas e destes com a vizinhança ao redor, como espaço de criação, montagem e ensaios e principalmente como casa de espetáculos, recebendo um público estimado em 250 pessoas em quatro noites.
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A importância de realização do projeto vinha da convergência de desejos e necessidades dos grupos
e seus espetáculos: Beco do Mijo e Indocumentados. Embora totalmente distintos, ambos possuem elementos comuns: o diálogo com problemáticas como o preconceito e a discriminação, a busca pela diversidade de perspectivas e desconstrução de discursos únicos sobre os fatos, as pessoas, as cidades e as Amazônias, e a tentativa de universalizar questões locais, aproximando-as do espectador. Os espetáculos também têm apresentado desafios no amadurecimento de seus processos, alguns dos quais vivenciamos através do projeto.
Beco do Mijo
Beco do Mijo é uma livre adaptação do conto homônimo da autora acreana Florentina Esteves, que
narra, através do olhar feminino da personagem principal, a história do Beco do Mijo. Local de cortiços que estava sendo desapropriado para planos de construção das estalagens de abrigo aos Soldados da Borracha (arigós), que chegavam em centenas do Ceará, em plena década de 40, evento que ficou conhecido como Segundo Surto da Borracha, desencadeado pela Segunda Guerra Mundial. O enredo fala de um beco, o cotidiano de seus moradores e o conflito que se estabelece a partir da situação de desapropriação pelas autoridades. No processo de adaptação do conto para o drama em cena, a construção dos personagens e seus enredos foram direcionados na intenção de trazer à cena um passado profético que, inspirado em Édouard Glisant, revela a perspectiva de lançar um olhar para o que está além das narrativas oficiais, buscando caminhos que se desliguem do cristalizado imaginário do ser na Amazônia. Na interpretação do grupo sobre o conto, nem todos os personagens fazem parte do conto original e não segue fielmente os fatos históricos. Retratam de forma universal acontecimentos que até hoje estão em evidência em nossa sociedade, como a higienização das cidades e o preconceito.
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FICHA TÉCNICA Elenco: Amanda Schoenmaker Anderson Poblen Geovane Roger João Alab João Araújo Joana Dias Juliana Jaya Lua Azevedo Maiara Rio Branco Mel Dantas Quilrio Farias Lanny Souza Sacha Alencar Participação de Diego Batista nos espetáculos apresentados no Beco do Mijo. Trilha sonora: João Araújo, Denilson Carneiro e Maiara Rio Branco. Música Senhor Cidadão: Criação Coletiva. Direção Musical: João Araújo Músicos: Amanda Schoenmaker Geovane Roger João Araújo Maiara Rio Branco Lua Azevedo Direção e pesquisa: Grupo Beco Concepção e pesquisa original: Juliana Jaya e Quilrio Farias Direção cênica: Diego Batista Criação de luz e técnica: Magrão e Luiz Rabicó Montagem de luz: Magrão, Luiz Rabicó, Geovane Roger e Quilrio Farias Figurino: Juliana Jaya Cenário: Criação coletiva Cenotécnico: Geovane Roger Criador de arte gráfica: Filipe Almeida
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Indocumentados
O espetáculo Indocumentados é um processo de criação do Grupo Aguadei-
ro, que envolve os discursos sobre migração, deslocamentos, loucura e cultura em seus ordenamentos e também seus desvios. Estas temáticas, tão caras às coletividades no mundo inteiro, nos remetem a identidades em constante transformação, imersas em conjunturas e relações de poder que podem mudar em um instante. A dramaturgia mescla as linguagens do teatro, da música, performance, dança e artes visuais. Durante o processo de pesquisa do projeto Cidade de Múltiplos Mapas, o espetáculo ganhou diálogos, iluminação criada e manipulada pelos atores em cena e personagens que vivenciam o drama de uma travessia em passos rente ao chão.
FICHA TÉCNICA Elenco: Amanda Schoenmaker Joana Dias João Alab Maiara Rio Branco Quilrio Farias Roteiro: Amanda Schoenmaker, Quilrio Farias, Joana Dias e João Alab Criação e concepção: Elenco Direção: Elenco Trilha Sonora: Elenco Direção Musical: Maiara Rio Branco Design de aparência: Juliana Jaya e elenco Cenografia: Nonato Tavares e Elenco Painel: Thales Vasconcelos, Nonato Tavares e Elenco Iluminação: Elenco
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Por Jorge Carlos, o Mané do Café – 2015. “O homem enquanto barro era tudo igual. Os acidentes aconteciam no percurso para a água, a procriação e a barriga cheia. Mas, uma vez adornados com as vestes, que, a princípio, eram apenas proteção, o homem se distingue e vive as personagens sociais que uma pena, uma tiara, uma estrela ou um sapato de boa qualidade é o que basta para destaque. Os acidentes sociais são muitos mais. E assim, vive o homem até voltar ao barro e ficar tudo igual novamente.” Por Gerson Albuquerque – 2013. A terra, o beco e a nudez: leitura da leitura da leitura... Para Juliana Albuquerque Porque vive a poesia da vida e tem a eterna alegria da coragem em seus olhos e nas “outras frases” de seu corpo.
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A “Performance teatral: ‘Beco do Mijo’”, encenação do texto homônimo da escritora acreana Flo-
rentina Esteves, recentemente apresentada nos corredores do campus da Universidade Federal do Acre (UFAC), entre os blocos de salas dos cursos de história, economia, letras e artes cênicas, impactou pela forma um tanto “subversiva” com que os jovens atores e músicos colocaram em cena suas diferentes percepções da inquietante imaginação escrita da autora. A terra, a água e a lama entraram em cena, sob o filtro da iluminação do mestre Rabicó, tecendo reaproveitados figurinos em corpos seminus a esgueirar-se por entre espremidos espectadores, num balé que ondulava feito os banzeiros do rio Acre, nas beiras de barrancos da Rua da Frente, em Empresa, refletindo com suas cores e sombras nossas lembranças da Volta Seca, Preventório, Quinze, Seis de Agosto, Base, Papôco e Cidade Nova, em uma imaginária cartografia social de uma cidade, desde sempre, idealizada por decretos e intervenções alienígenas.
Em cena, a nudez parcial das atrizes e atores arrostava o vazio de muitas práticas acadêmicas e a
síndrome de limpeza de tudo o que contraste com a hipocrisia de plantão, cerceadora do pensamento crítico e da liberdade de expressão numa instituição que, por entre as brumas e desditas da última década, vem sendo aquilatada como “nova” a cada gestão.
O “Beco-do-Mijo”, generosamente cedido por Florentina Esteves, transformou-se de “verbo cego” em
corpos generosamente doados em plenos corredores de uma UFAC erguida sob a impiedosa expropriação de trabalhadores rurais que nada tinham, a não ser o lugar que habitavam e teciam com suas mãos, em formas de pélas, galinhas, porcos, laranjeiras, limoeiros, mamoeiros, bananeiras e paus d’arcos de múltiplas cores. Cores que as famílias dos expropriados não apreendiam como estética acadêmica, mas como ética da vida, porque inscritas na terra com seus tons, sons, encantos.
Quem foi ao campus universitário, na noite da última quinta-feira, sete de novembro, e parou para ver
o “beco do mijo” teve a possibilidade de acompanhar a imaginação da imaginação dos gemidos de putas, estivadores, ébrios funcionários públicos, seringueiros e mães de filhos carentes de carnes, verduras e afetos, mas prenhes de vermes e sofreguidão. Possibilidade de ouvir seus gemidos e flutuar nos banzeiros do rio em meio à forte sintonia dos movimentos dos corpos dos ama-dores em cena, com seus instintos fraturados pelos sons do atabaque, agogô e saxofone fundindo a lama dos barrancos escorregadios, o perfurante das canaranas e as amareladas e ácidas águas de um rio Acre imaginário – espécie de denúncia frente à sua morte lenta – aos improvisos e movimentos ensaiados nas sobras de noites em um teatro no e para o 73
espaço público, experimento livre, rasgando as entranhas dessas terras de colônia com palavras e atos que o mercado não pode corromper, posto que nunca estarão à venda.
Na captura do não dito daquele tenro espetáculo movimenta-
vam-se as personagens do Beco-do-mijo, correndo das margens para os barrancos ou das casas nas beiras de barrancos às margens; movimentavam-se os músicos, movimentavam-se os espectadores ávidos pela seminudez dos corpos e, ao mesmo tempo, céticos, com seus vazios a dissimular valores anedóticos, ansiosos pelo desfecho de tudo aquilo que estranhavam, num cenário de tênues fronteiras a empalar o que se vê e o que é visto. Representação especular, fatigando a visão pelo sinuoso ocultar/revelar da luz como forma redentora da sombra, da penumbra, da ilusão entre o olhar e a cor barrenta da água – afogando as palavras – e da lama – afagando braços, faces, troncos e seios – num arkhé de beira de rio, naturalizando a fragilidade daqueles corpos envoltos em tensas regras sociais.
Nenhuma puta da cidade de Rio Branco, em qualquer tempo,
tirou a roupa em praça pública, salões de dança ou botecos. As putas de Florentina nunca se despem. Morrem de vergonha do próprio corpo. Não se depilam, não são “limpas”. Seus corpos são discursos que carregam as chagas da cidade, a sífilis, a gonorreia, a expropriação sem medida, mas também desejam casas e maridos, desejam filhos e pagam promessas e sonham viagens e se vergam nas margens plácidas dos igarapés a lhes espelhar os olhos. Por isso são fiéis, dedicadas, sonhadoras.
As putas encenadas nos corredores do campus se despem não
para representar as putas de Florentina, mas como pretexto para enfrentar as pudicas de plantão, as retóricas conservadoras do “já fiz isso”, o encarceramento, a cápsula da sala escura como condição sine qua 74
nom para a prática do teatro no Acre, o insípido e a frigidez dos que não sabem amar, as teses dos que somente falam da vida por intermédio de gráficos, percentagens, mensurações e índices a atestar “progressos científicos”, sem se dar conta – por opção, covardia ou conveniência – de que a arte é maior que tudo isso e que “quanto mais a ciência avança, mais tropeçamos nos objetivos que põem em causa opções morais, éticas e políticas”, como nos ensina a universalidade de Joseph Ki-Zerbo.
A seminudez das atrizes/atores em cena, contracenando com
a água barrenta e a terra molhada a enlamear seus corpos e a conjugar verbos, outros verbos e produzir frases, “outras frases”, no belo dizer da coreógrafa angolana Ana Clara Marques Guerra, nada tinha ou tem a ver com as putas do Beco-do-mijo, mas com a devastação de suas – nossas – humanidades pelo essencialismo do discurso técnico e, fundamentalmente, com a devastação do rio, da cidade, da floresta e dos seus seres, no passado e no presente. Por fim, tem a ver com a interdição e a devastação do próprio campus universitário, a “casa de um saber superior”, esse monumento à barbárie, oculto sob a aura de uma rígida e hierarquizada “civilização das letras”, na qual as línguas indígenas, as tradições orais, a poesia, as culturas e as ciências das gentes amazônicas são simplesmente ignoradas ou tratadas como matéria prima para pesquisas com compromissos duvidosos.
Os jovens e “limpos” corpos dos atores/atrizes em cena pouco
ou nada sabem das violências das flores “carbonizadas de remédios, tapas, pontapés”, mas gritam contra uma universalidade que lhes aliena o próprio corpo em nome de disciplinas cerceadoras do ócio e do direito a se refazer no inexato ponto em que o cio da água se encontra 75
com o cio da terra. As criaturas dramáticas criadas pela imaginação dos produtores da “Performance teatral Beco do Mijo” se despem como representação fantasmagórica de personagens sensualizadas pela tabatinga que nos atola a todos, na segura e cômoda distância de mulheres, homens e crianças que “lutam contra o silêncio e o apagamento”, como disse Édouard Glissant, porque diariamente “eliminados pela miséria bruta, pela violência, pelas fomes, pelos massacres”.
O “Beco do Mijo”, por algumas horas, nos fez mergulhar nos ambientes e na verve criativa daqueles
que, desde os fins da década de 70, produziram uma cultura artística que tinha o sabor acre de uma estética indócil e arredia à indiferença: A Grilagem do cabeça, Baixa da égua, Meritíssimo senhor juiz, senhores jurados e/ou Vila Beira do Barranco, A bomba, O canto do Galo, Figuras de papel, Histórias de Quirá, entre outras; os festivais de música, as exposições de artes plásticas. Tudo o que era possível e impossível, numa cidade que, apesar da ditadura, não conhecia o “toque de recolher” em nome de uma hipócrita “segurança pública” e da imaculada imagem do “melhor lugar para se viver”, essa mega mentira criada pela propaganda oficial.
Na performance do “beco” a pesquisa, o esforço em romper com os estereótipos tão em voga, a
gana de ruptura com os falsos moralismos, a cumplicidade dos atores, atrizes e músicos em cena, a busca por uma estética própria, a deliberada ruptura com tradicionais formas de direção e a capacidade de articulação e diálogo da linguagem cênica com outras linguagens e formas de apreensão e compreensão da vida humana se constituem como um significativo campo de possibilidades no fazer teatral em uma universidade que – também – instituiu o “toque de recolher” em nome da segurança e que se utiliza de mil artifícios para interditar o desenvolvimento da capacidade crítica de seus estudantes.
O “Beco do Mijo”, encenado por um verdejante grupo de pesquisadores e aprendizes: Juliana Albu-
querque, Kilrio Farias, Amanda Gracielle, Diego Batista, Maria Tainã, Sacha Alencar, Geovane Roger, Lane Souza e João Alab, acompanhados pelos músicos Denilson Carneiro e João Araújo, em completo “governo de si”, reinventa o manifesto do final da década de 70, a Via Látex, o chamado do velho mestre Matias e seus “bichos invadindo a cidade”, as impressionantes incursões do “gênio indomável” de Beto Rocha e o encontro das muitas artes com a política, aqui pensada na expressão arendtiana como “aquilo que trata da convivência entre os diferentes”. Reinvenção em oposição às obscuridades líquidas de nossa atualidade. Reinvenção como antídoto ao simulacro e à mesmice dos Molière, Shakespeare, Strindberb ou Leroux encenados e cantados como sedativo ao mundo “Cult” dos “fazedores de cultura” no centro de Rio Branco, enquanto 76
os mercadores da natureza transportam “nossa qualidade de vida” em modernas carretas e caminhões de madeira para o alhures do além mar. E nós ficamos com a fumaça.
(Gerson R. Albuquerque, Professor Associado, Centro de Educação, Letras e Artes/ UFAC. Novembro de 2013) “Flores Horizontais”, música de José Miguel Wisnik, elaborada em releitura do poema “Oração do Mangue”, de Oswald de Andrade. Ana Clara Guerra Marques, Outras Frases, filme/documentário de José Antonio, Angola/Portugal, 2003, 54 minutos. ARENDT, H. O que é política? Tradução de Reinaldo Guarany. 6ª edição, Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2006, p. 21. BENJAMIN, W. Magia e Técnica, Arte e Política: Ensaios Sobre Literatura e História da Cultura. 7ª ed., São Paulo: Obras Escolhidas, vol. I, Brasiliense, 1994. Esteves, F. Enredos da memória, 1990, p. 22-25. Expressões formuladas sob inspiração da Conferência “Por uma história acre: saberes e sabores na configuração da escrita historiográfica”, proferida por de Durval Muniz Albuquerque Júnior (UFRN), no encerramento do VII Simpósio Linguagens e Identidades da/na Amazônia Sul-Ocidental e VI Colóquio Internacional as Amazônias, as Áfricas e as Áfricas na Pan-Amazônia, realizado no campus da UFAC, em Rio Branco, no período de 4 a 8 de novembro de 2013. GLISSANT, E. Poética da relação. Tradução de Manuela Mendonça. Lisboa: Câmara Municipal/Porto Editora, 2011, p. 119. KI-ZERBO, J. Para quando a África? (Entrevista com René Holenstein). Tradução de Carlos Aboim de Brito. Rio de Janeiro: Pallas, 2006, p. 96.
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Por João Veras – 2014. A LUZ NO FIM DO BECO
Assisti, ontem (14/03), no Sesc-Centro, ao espetáculo de teatro O Beco do Mijo. Trata-se de uma
interpretação teatral livre do conto, de mesmo nome, da escritora acreana Florestina Esteves, A criação e a direção são coletivas de um grupo de amigos estudantes e não estudantes de teatro. O grupo não tem nome. É uma segunda apresentação. A primeira ocorreu dentro do campus da UFAC.
A peça não foi encenada no interior do teatro de arena. Toda a ação se deu a céu aberto. Era noite
de luz natural com refletores coloridos e velas. Ela começa na entrada do prédio do Sesc e se desenrola dali, pelo corredor, até a frente do teatro. A música, bem arranjada e executada, é ao vivo. Há canto, violão, flauta, sax e instrumentos percussivos. O elenco cumpre o seu papel com qualidade. O figurino bem apropriado, inclusive quando ausente. O público acompanha como pode e também se integra em alguns momentos ao espaço cênico, ora como expectador, ora como parte do elenco ao entrar na roda da dança e quando se tornar uma grande procissão.
Gostei de estar ali. Me comoveu artisticamente inclusive. Aqui o meu brevíssimo registro de expec-
tador se prestará basicamente a tratar de dois aspectos os quais me chamaram mais atenção naquele instante. O primeiro diz respeito à dramaturgia e o segundo à criação cênica. Ambos carregam em seu bojo a busca da resposta sobre a utilidade da arte teatral numa cidade.
Tenho reclamado a ausência de uma dramaturgia de autoria local no nosso teatro. Não uma dra-
maturgia local qualquer. Estou farto dessa acreanidade industrializada para consumo irrefletido. O texto da peça é incrivelmente atual. Com ele, avistamos/vivemos um passado no plano social que parece nunca ter fim. A desgraça dos sempre/mesmos desgraçados. Os nordestinos do ciclo da borracha de ontem não seriam os haitianos de hoje à espera da vez para irem ao barracão? A escolha do grupo pelo conto de Florentina é determinante no sentido de fazer resultar, ao final, uma obra que possibilite pensar e dialogar o/com o lugar - seja o tempo histórico que for – que fale, distantes das oficialidades, a sua linguagem. Uma criação que re-produza o incômodo social em que vivemos no cotidiano e proponha, nesse sentido, o exercício da crítica tirando das catacumbas dos infernos e céus da vida a necessária liberdade da criação artística tão
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fundamental para as outras liberdades em tempos, como os que estamos a viver, de indignas censuras (quase e nunca) sutis.
A opção pela encenação itinerante consegue nos deixar incomodados e, com isso expertos, alertas
e igualmente móveis a per-seguir – ou até negar-se a isso - a procissão cênica de um espaço para outro. Tal movimento nos tira da posição cômoda e segura do assento do espaço teatral – com a visão privilegiada de quem tudo vê - e nos faz andar literalmente atrás do entendimento artístico.
O que vi foi a expressão de uma dramaturgia teatral que incomodada incomoda o expectador. O que
resulta desse movimento-conflito é tudo menos o esquecimento da nossa condição de ser histórico e cultural territorialmente determinado naquele instante e para além dele. E, assim, o dispositivo da memória dispara para pontuar que somos parte de um certo lugar, no caso, de um certo Acre.
Acho que isto nos indica um rumo interessante pelo qual o teatro acreano possa continuar trafegando
em busca de seu sentido estético e politico – seu envolvimento no espaço/tempo da vida das pessoas - para além de um mundo que não é nosso e do passivo mero entretenimento. (João Veras, Março de 2014).
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Por João Veras – 2017. INDOCUMENTADOS - A CIDADE DE MIL MAPAS E UM SÓ TRISTE DESTINO
I - O espetáculo Indocumentados, do grupo acreano de teatro e música Aguadeiro, que estreou
ontem em Rio Branco, apresenta ao expectador uma série de peças – e não apenas uma – para que quebremos a cabeça montando o mapa de nossa própria compreensão do que é encenado/proposto. Ali nada é dado, embora repleto de dados. Coisa do que é arte. Na primeira montagem que acabo de fazer saiu esta pequeníssima planta baixa que a seguir documento por entre as minhas pequeninas mil memórias.
II - A cidade se diverte. Este era o nome da coluna assinada no jornal O Rio Branco por aquele que
ficou conhecido senão como o único jornalista cultural que o Acre já teve, Chico Pop. Chico registrava a vida cultural desta cidade especialmente nas décadas de 70 e 80 do século passado. Tempos em que a cidade se divertia consigo mesma, o que quero dizer, com as manifestações artísticas que, em regra, ela mesma inventava.
Chico testemunhava uma Rio Branco em seu movimento fincado na social impaciência política e
também estética movidas pelo sonho/luta para um mundo sempre melhor. Hoje, nem política, senão politicalha que domina e explora ainda mais o inerte poder popular; nem estética, senão diversão por diversão que se ressaca nas dívidas todas do dia seguinte; nem sonho senão esse vazio de sentido coletivo antes tão a favor do digno e do belo. Não sem motivo, esse motivo atual do que haveria para registrar, o jornalismo cultural no Acre morreu com Chico Pop.
É hoje, esta cidade de tantos mapas tão viciada neste triste destino de coisas inventadas que nos
são alheias e que nos torna reféns do entretenimento fora de espaço/tempo/sentido em que vivemos, este fora que nos anestesia com doses de esperança acrítica toda apostada na fé de uma interpretação pastoral prenhe de poder evangélico-político-financeiro voltado para ovelhas em desespero por prosperidade/propriedade terrena e celestial. Fosse um estado de desassossego, mas não é. Fosse um império da poesia, mas não é. É uma negociação cega que se resta num rogar solitário para a salvação de não se sabe de quê apartada e exclusiva. Os outros que leiloem também suas vidas maníacas, por que e pra quê mesmo? 80
Tudo nesta cidade de agora passou a ser uma questão de fé e de empreendedorismo. Nela não mais
se diverte. Ora e negocia. Da comida expressa a fé via delivery; da aplicação de distração intravenosa a poupar lucidez para obter dividendos insanos; da desumanização do humano por leves prestações de cabeças cortadas à arte compromissada com o poder inimigo da arte; da consciência sustentada por um punhado de notas frias da folha pública de pagamento - um mundo de apostas num carteado retórico via wireless neste supermercado social do nada com seus carrinhos abarrotados de mortes do pensamento, do sonho e da arte. Indocumentados me refez matéria de memórias e de presente.
III - E para não dizer que não falei da cartografia estética da obra, esta é operada por uma dramatur-
gia de tensão e surpresas fundadas numa linguagem metafórica, por isto de intenso apelo poético-performático. A sua compreensão – a ser extraída durante o processo de liquidificação de suas referências todas de âmbito local – é para o expectador um desafio comunicativo, certamente de difícil acesso aqueles não iniciados nos mapas dos núcleos de poder da cidade. O que não importa. O que não se pode avistar pela substancia se sente na forma. E a experiência estética é garantida por qualquer opção. Seus atores (dois rapazes e três moças) que interpretam personagens sem nome – com seus corpos e vozes em tensão quase permanente – se acomodam e dialogam no aparente incômodo provocado pela diversidade de utensílios/ atributos cênicos como águas-holofotes, espelhos-máscaras e luzes movediças apertados naquele quase largo corredor não usual para corpos desacostumados aos ajustes espaciais da linguagem cênica desterritorializada. As acomodações para o público possibilitam a sua integração como partícipes do discurso dramatúrgico. Não existe cidade sem gente. O único dissenso percebido ali na tensão do aparente caos cênico se deve à trilha sonora produzida ao vivo que, coitada e linda, fica o tempo todo tentando puxar a narrativa para o campo lírico, enquanto todo o resto insiste em evitar a distensão. Quando um não quer dois não brigam, diz o dito popular. Guitarra distorcida, irmã dali, onde estais que não respondes? (João Veras, 2017).
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Por Vanessa Nogueira – 2017.
Minha primeira experiência com o “beco” ocorreu no ano de 2013. Em 2017 tive novamente a oportu-
nidade de apreciar o espetáculo por ocasião do projeto “Cidade de Múltiplos Mapas” financiado pelo Itaú cultural. É válido frisar que embora se trate do mesmo espetáculo, o que vi foram duas apresentações distintas, em locais distintos, e com corpos totalmente diferentes. Isso acontece graças a capacidade do homem de se transformar constantemente, afinal não somos seres imutáveis. O percurso do espetáculo estava previamente demarcado pelos objetos cênicos, pelos músicos e a iluminação que conduzia os corpos dos atores e por consequência dos espectadores. Corpos dançantes bailando a um som instrumental. Já na primeira cena fui levada a observar e me inquietar com os corpos ali tão leves, tão visíveis, tão questionáveis.
Na ocasião da primeira apresentação eu era estudante do curso de mestrado e me vi deslumbrada
diante de um espetáculo que rompia com todas as produções já realizadas na universidade. (…) As criações cênicas teatrais apresentadas durante esse período, com exceção do “Beco do Mijo”, foram coordenadas por professores, eram em sua essência espetáculos textocêntricos (Roubine, 1998), reforçavam os modelos etnocêntricos europeus para produção teatral (Bião, 2009), e ratificavam desse modo o lugar passivo do espectador. Mas, no “Beco do Mijo” atores e espectadores se transformam durante o percurso performático da cena. O espectador, aquele que vê, e se vê por meio da cena, ao se colocar diante de um espetáculo, ainda que em silêncio, dialoga com suas experiências, pois “ele observa, ele seleciona, ele compara, ele interpreta. Ele conecta o que ele o observa com muitas outras coisas que ele observou em outros palcos, em outros tipos de espaços” (Rancière, 2012, p.17), ao analisar o espetáculo teatral, concluímos que a adaptação artística performática dos estudantes “Beco do Mijo” traz uma narrativa física, o corpo em movimento é o elemento central do espetáculo. Movimento dos atores e dos espectadores que percorrem o “beco” recriado pelos corpos no espaço provisório da cena. BIÃO, A.J.C. Um trajeto: muitos projetos. Em: Etnocenologia e a cena baiana: textos reunidos. Salvador: P&A Gráfica e Editora, 2009. RANCIÈRE, J. O espectador emancipado. São Paulo: WMF, Martins Fontes, 2012. ROUBINE, J.J. A Linguagem da Encenação Teatral 1880-1980. – 2ª ed. – Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.
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FICHA CATALOGRÁFICA Elaboração
Revisão Final
Amanda Schoenmaker
Janice Dias
Anderson Poblen Geovane Roger
Fotos
João Alab
Alex Kblo
João Araújo
Mirrah Iañez
Joana Dias
Mariana Isla
Juliana Jaya
Nonato Tavares
Lua Azevedo
Ramon Aquim
Maiara Rio Branco
Victor Onofre
Mel Dantas
Acervo dos grupos
Quilrio Farias Lanny Souza Sacha Alencar Projeto Gráfico e Diagramação Thiago Lima Revisão Amanda Schoenmaker João Alab Joana Dias Maiara Rio Branco Mel Dantas Sacha Alencar
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