INQUIETAÇÕES URBANAS | AÇÕES PROJETUAIS EM JARDIM CAMBURI - CADERNO 1

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I N Q U I E TA Ç Õ E S

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ações projetuais em Jardim Camburi


I NQ UIE TA Ç Õ ES U RBA NAS PAULA DE MOREIRA GUIMARÃES Universidade Federal do Espírito Santo - UFES Centro de Artes - Departamento de Arquitetura e Urbanismo Trabalho de Conclusão de Curso apresentado como requisito para a obtenção do título de Arquiteta e Urbanista Orientador: Arquiteto e urbanista, professor Dr. Milton Esteves Júmior Coavaliadora: Arquiteta e Urbanista, professora Dra. Martha Machado Campos Convidada: Arquiteta e Urbanista, Maressa Corrêa Pereira Mendes


I N Q U I E TA Ç Õ E S

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FOLHA DE APROVAÇÃO

TRABALHO DE CONCLUSÃO DE CURSO APROVADO EM __/__/____. ATA DE AVALIAÇÃO DA BANCA: _______________________________________________________________________ _______________________________________________________________________ _______________________________________________________________________ _______________________________________________________________________ _______________________________________________________________________ _______________________________________________________________________ _______________________________________________________________________ _______________________________________________________________________

AVALIAÇÃO DA BANCA EXAMINADORA: ____________________________________________________________________ NOTA:

DATA:

DR. MILTON ESTEVES JUNIOR

____________________________________________________________________ NOTA:

DATA:

DRA. MARTHA MACHADO CAMPOS

____________________________________________________________________ NOTA:

DATA:

MARESSA CORRÊA PEREIRA MENDES

APROVADO COM NOTA FINAL:________



“Acho que o quintal onde a gente brincou é maior do que a cidade. A gente só descobre isso depois de grande. A gente descobre que o tamanho das coisas há que ser medido pela intimidade que temos com as coisas. Há de ser como acontece com o amor. Assim, as pedrinhas do nosso quintal são sempre maiores do que as outras pedras do mundo. Justo pelo motivo da intimidade.” (BARROS, 2008, p.67).


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À vida pelos esbarros, acasos e delicadezas. Ao Milton, pelas orientações e conversas preciosas sempre regadas a boa dose de humor. À Martha, pelo conhecimento compartilhado com entusiasmo contagiante. À Maressa por aceitar esse convite. Ao meu pai por compartilhar a sua sensibilidade de enxergar a vida de forma mais leve, sempre com brilho nos olhos. À minha mãe, pelo amor em forma de cuidado e preocupação, pela força que nunca falha. À Maria, pelos pitacos editoriais e pelo exemplo de profissional que se empenha em ser. Ao Tomás, por estar junto sempre, me fazendo mais humana e mais feliz. Às minhas famílias, pelo carinho e cuidado, principalmente àqueles que de perto ou longe se fizeram presentes nesse último ano, tentando preencher o vazio que ecoa em mim. À Marina, pela amizade desde sempre, pelos dias de sol e de mar. À Bel, Nina, Rê e Mari, amigas de todos os momentos, obrigada pelas risadas e apoio. À minha turma, 2009/01, pelos 6 anos de parceria. À Cíntia, pela participação ativa nesse trabalho, ajuda imprescindível para que chegasse ao fim. Ao Rafa, por dividir tantas inquietações e certezas que mudam constantemente. À Mari, anfitriã do bairro, companheira de caminhadas na reta final. À Thiara, por soprar bons ventos. À Tassia, Tamara e Pri que a todo tempo estiveram por perto. Tais, Gus, Xova, Virgínia, Laris, Bruno, Rayanne, Mayara, Bárbara, Amanda, Natan, Rodri, Iza, Gabriel, e tantos outros pelos momentos maravilhosos juntos ao longo desses anos. Ao Cemuni, por ser esse universo mágico de discussões e trocas. À cidade Vitória, por ser lar.


++sumรกrio


Inquietações Urbanas.....12 Percursos conceituais.....21 _Modernização das cidades 24 _Metápole 28 _Bairro 41 _Cotidiano 48 Experiências e impressões urbanas.....53 _Experiências urbanas 55 _A experiência propriamente dita 62 _O território 69 _O bairro 72 _Tão longe, tão perto 88 _Labirinto 94 _Bairro cambiante 98 _Evolução urbana 102 _Legislação e seus desdobramentos 106 _Estranhamento 110 _Habitar para além da moradia 112 Ações  projetuais.....124 Ensaios projetuais.....153 Conclusão | Convite.....194 Bibliografia.....198 Inquietações Urbanas | Ações projetuais em Jardim Camburi

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INQUIETAÇÕES Este trabalho surgiu com a pretensão de representar o fechamento de um ciclo intenso vivido nestes últimos anos dentro da universidade, sintetizando reflexões sobre minha própria identidade no que tange às minhas escolhas dentro desse universo imensurável de discussões possíveis em uma universidade na formação de um arquiteto-urbanista. Desde o início da construção deste projeto de graduação, havia uma única certeza quanto ao objeto de estudo: a cidade. Todavia, pensar no planejamento e desenho das cidades é uma tarefa que vai muito além do entendimento das condicionantes físicas do território, uma vez que depende da compreensão das práticas resultantes das relações sociais. Carlos (2001) afirma que “mais que uma forma material, uma morfologia, a problemática sobre a cidade se revela como problemática urbana, isto é, transcende a cidade para enfocar o homem e a sociedade urbana”. Diante da proposta de se repensar o espaço urbano enquanto suporte, (re)produtor e produto das relações sociais, as reflexões se voltam para o seguinte questionamento: de que forma pode-se reinventar um espaço público a fim de instigar e potencializar a prática das relações cotidianas que animam a cidade?


Dentro desse contexto, busca-se entender as relações sócioespaciais a partir do recorte espacial do bairro. Compreende-se que o bairro é a escala de maior intimidade do indivíduo com a cidade, pois é a esfera de ligação imediata entre o espaço doméstico e o espaço de convivência social, onde se estabelecem estreitas relações entre espaço público e privado. Além disso, o bairro é a base onde as relações de vizinhança se espacializam e tecem o cotidiano. É no bairro que se pode ler os itinerários a partir dos quais se localiza e se realiza a vida urbana. No bairro as relações se tecem, e a partir daí é possível pensar a metrópole como um todo em seu processo atual de reprodução espacial. (CARLOS, 2001, p. 206)

Tanto o bairro quanto seu sentido, bem como os espaços públicos nele contidos, são atingidos pelas constantes transformações que submetem as cidades inseridas no contexto da metrópole atual. Neste processo de produção da cidade, costuma-se privilegiar os espaços de passagem e de circulação de automóveis, submetendo-a à lógica de produção do valor de troca, tendência que a transforma em mercadoria e que limita seu uso às formas de apropriação privada (Carlos, 2007). Pontua-se, como consequência desse processo, a homogeneização dos espaços e o distanciamento da escala do humano, visto que as novas relações de velocidade impregnadas no território distanciam-se da escala do pedestre. Essas mudanças contribuem para a destruição dos referenciais

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que estão relacionados a um apelo histórico e identitário, devido à velocidade de transformação do tecido urbano, ao esvaziamento e perda do ânimo dos espaços públicos, bem como à fragmentação dos mesmos e a fragilização das relações sócio-espaciais. Se, como revela Certeau (1998, p. 202), “o espaço é um lugar praticado”, na medida em que o ambiente urbano se esvazia das práticas de uso e apropriação, devido à espetacularização das cidades, o espaço perde o sentido e significado, reduzindo-se a não-lugar, conforme afirma Augé. A atual configuração urbana e metropolitana vem se transformando no que Ascher (2001) define como metápole, ou seja, no fruto do processo de metapolarização dos tecidos urbanos. Tal processo atinge o bairro de forma significativa por meio de transformações morfológicas e posteriores alterações na função e no valor do solo, manipulados por interesses do setor imobiliário, promovendo o esvaziamento das ruas. Com isso, nota-se a perda das relações de vizinhança, a partir do sentimento de estranhamento por parte do indivíduo/habitante diante do outro (anônimo) e da cidade em constante transformação na qual perdem-se os referenciais. Nesse processo, o ato de habitar limita-se ao espaço privado, estabelecem-se novas articulações entre espaço público e privado, e o lazer mediado pelo consumo inscreve-se nos espaços semipúblicos e acondicionados. A política do medo cotidiano difundese, reforçando os sintomas desse processo de transformação da morfologia urbana e do citado esvaziamento das ruas. Neste 16

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contexto, o bairro perde o sentido de plano da prática das relações cotidianas e se reduz à divisão administrativa imposta pelo planejamento para fins de controle do território. Para Augé (1994), o não reconhecimento e a não identificação do espaço, se traduz no não-lugar. Nessa lógica, o estranhamento posto diante do bairro significa uma negação do sentido amplo de unidade de vivência. Frente a essa problemática, cogito “hipóteses” para desenvolver atuações nos cenários de intervenção, com os seguintes objetivos: 1. Potencializar espaços onde as relações de vizinhança ainda resistem; 2. Projetar no território espacialidades que sejam capazes de resgatar e criar novas relações de vizinhança; 3. Propor novas relações sócio-espaciais que, mesmo que não se caracterizem pela intimidade nas relações de vizinhança, ainda cumpram com a finalidade de conferir ânimo aos espaços públicos, entendendo-se que a cidade deve ser “um assentamento humano em que estranhos têm a chance de se encontrar” (SENNET apud BAUMAN, 2001, p. 100). A cidade e a vida cotidiana que nela acontece perfazem o tema principal deste trabalho, e o espaço público, que é o palco dessas relações urbanas, o fundamenta e lhe serve como o suporte. E a respeito do citado espaço público, é possível apontar duas vertentes

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de compreensão e análise. A primeira delas se refere à de sua análise enquanto espaço político, espaço do discurso, da ação e do exercício da democracia direta, tal como propõe Hannah Arendt (2001). O bairro é o recorte espacial de maior interesse de participação social, devido à intimidade que o morador tem com suas problemáticas, suas necessidades e suas potencialidades. A segunda vertente é a da esfera do espaço público como lugar da prática das relações sociais que compõem a sociabilidade local. Esta vertente é tão importante quanto indissociável da primeira, visto que também não foge do âmbito onde ocorrem os atos políticos porque a todo momento, nos espaços públicos, os indivíduos negociam seus interesses e suas práticas, podendo reafirmar ou mesmo subverter as regras impostas pelo planejamento. Este trabalho, portanto, se propõe a enfocar o espaço público entendido como recorte genérico e como produto referente tanto à morfologia do bairro quanto às relações sociais. Escolho Jardim Camburi, no município de Vitória, como espaço referencial para o presente estudo empírico, devido ao seu caráter residencial e, sobretudo, pelo processo de adensamento intensivo que o bairro vem sofrendo, conformando-o como o bairro mais populoso da capital capixaba. As dinâmicas urbanas decorrentes da sobreposição de camadas no tecido urbano, da verticalização, das alterações das unidades ambientais presentes na escala daquele bairro e, por fim, da imposição de novos ritmos e velocidades, são consequências diretas das políticas públicas neoliberais e do próprio mercado imobiliário. A velocidade com que esses avanços constantes se dão no território provoca o estranhamento entre os

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moradores tradicionais do bairro, bem como o enfraquecimento das relações cotidianas das unidades de vizinhança. Desse modo, o presente estudo se baseia em investigações teóricas voltadas à compressão de conceitos como “processos de metropolização e metapolização”, “bairro como unidade de vizinhança” e “vida cotidiana e cotidianidade”, relacionados ao contexto atual, da hipermodernidade1. Tais conceituações foram confirmadas no território devido à aproximação empírica que se deu paralelamente às leituras teóricas, como uma espécie de cura geográfica às generalizações conceituais. Exponho tais Percursos Teóricos em um primeiro bloco, ordenados em escala de abrangência decrescente (da metápole à vida cotidiana), enquanto que na parte prática essa escala será invertida porque busco entender o bairro e a metrópole a partir da observação e vivência do cotidiano. Dessa forma, o processo de percepção do espaço por si só é, também, um objetivo deste projeto de graduação. Para tanto, faz-se necessária a experimentação de meios alternativos que incentivem tal aproximação. Assim, proponho a imersão em Jardim Camburi, tomando como base a teoria da deriva e o andar pela cidade como forma de vivenciar, perceber e me inscrever no território. No capítulo “impressões”, traduzo essa aproximação na qual me coloco sensível às provocações que a cidade sugere a partir de gestos, relações urbanas diárias, situações, escala e ambiências, atravessando os conflitos e paradoxos que permeiam o bairro. E, por fim, busco levantar potencialidades, restrições e possibilidades presentes no próprio território como meio de (re)conhecer a cidade,

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o(s) outro(s) e, sobretudo a mim mesma enquanto cidadã e como profissional da arquitetura e do urbanismo. Em suma, o esforço deste trabalho volta-se para o entendimento das relações cotidianas e apropriações possíveis, que dotam o ambiente urbano de significado e significância. A principal finalidade é a de se pensar propostas que busquem a reinvenção do bairro a partir do redesenho urbano e da redefinição de espacialidades integradoras. Desse modo, busca-se subverter a lógica que costuma negar a escala humana presente na vida urbana, presente nas relações sócioespaciais; busca-se, portanto, dirimir a lógica da padronização dos espaços de convivência em prol da redescoberta do singular a partir da potencialização dos espaços coletivos para além do habitual.

1.  A hipermodernidade é um conceito defendido pelo filósofo Gilles Lipovetsky que se contrapõe a ideia de fim da Modernidade, ou seja, como continuação da mesma, exacerbando-a. A utilização do prefixo hiper está relacionado aos excessos intrísecos à sociedade atual, que se caracteriza pelo hiperconsumo, hipermercado, hipercorpo, hipertexto.

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Figura 3:  Fotomontagem: mapa de potencial de construção e renovação dos lotes de Jardim Camburi estampado em muro alarma a possibilidade de adensamento. 61% dos lotes são potencialmente renováveis, já que lotes ocupados com edificações de até três pavimentos tendem a ser ocupados por outras mais verticalizadas.

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percursos conceituais

PARTE 1 | PERCURSOS CONCEITUAIS


As cidades seguem num constante estado de mutação. Expandemse e se adensam progressivamente. Multiplicam-se suas infraestruturas de transporte e de abastecimento, suas edificações e o número de seus habitantes. Por sua vez, o tecido urbano atual retalha-se numa sobreposição de camadas sobre o preexistente, com cortes e cicatrizes em razão da abertura de vias de circulação para automóveis. Em tempo real, toda essa infra-estrutura criada vai se esgotando. Contraditoriamente persistem os vazios urbanos, ora subutilizados, ora totalmente esvaziados da função social da propriedade. Esse processo de crescimento em ritmo acelerado é ditado pela exploração do território em benefício dos agentes econômicos que lançam mão da lógica do valor de troca, em detrimento do valor de uso, estratégia potencializada pela gestão neoliberal do espaço adotada pelo Estado. No tecido urbano essas transformações se refletem na fragmentação e dispersão do território, já que as vias de deslocamento abertas, ao mesmo tempo em que conectam localidades distantes, desconectam espacialidades, gerando espaços intersticiais não coesos e que abalam a estrutura dos espaços públicos dos bairros. No que se refere às relações sócio-espaciais, a alteração da tradicional relação espaço-tempo na metrópole modifica a forma com que o indivíduo se relaciona com o espaço e com outros indivíduos, atingindo tanto a escala metropolitana como a escala local, de bairro, foco deste estudo. Desse descompasso entre espaço-tempo decorrem os paradoxos dos quais este trabalho vai se ocupar, tais como: a perda de sociabilidade local; o não-reconhecimento do espaço e do outro,


que se traduz no não-pertencimento à localidade; o esvaziamento do espaço público; e a espetacularização dos espaços. O conjunto de transformações acima narradas é desdobramento das dinâmicas inerentes ao crescimento e modernização das cidades. Assim, pretende-se destrinchar esse processo, no que se refere à estruturação das cidades que desenhou a forma urbana em que vivemos hoje, ou seja, da metápole. Cabe ao estudo compreender os paradigmas atuais que permeiam o campo das relações sócioespaciais, sobretudo no que tange à escala local. Para tanto, nesta primeira etapa de compreensão do processo de modernização, o trabalho se baseia nas contribuições teóricas presentes no livro “Novos Princípios do Urbanismo”, de Ascher (2010).

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MODERNIZAÇÃO DAS CIDADES Para o sociólogo urbano François Ascher, o tecido urbano atual é fruto da modernização das cidades, a qual está estreitamente ligada às transformações da lógica de organização da sociedade. Essas mutações urbanas ocorrem em função das necessidades de modernização dos modos de produção e, consequentemente, de transporte e armazenamento de bens, pessoas e informações. Tal modernização iniciou-se desde a Idade Média e perdura até os tempos atuais, período subdividido em três fases, como sugere o autor: 1ª modernidade, 2ª modernidade e a 3ª modernidade ou hipermodernidade. Nessa periodização, o autor se contrapõe à idéia de estarmos vivendo um momento pós-moderno, pois o que ocorre é uma intensificação da modernização das cidades e da sociedade após o período moderno. A citada modernização é resultante da interação e intensificação de três dinâmicas sócio-antropológicas: individualização, racionalização e diferenciação social. A individualização significa a representação do mundo a partir do indivíduo e não mais do grupo, resultado da autonomia que o indivíduo adquire frente ao coletivo, em um primeiro momento devido à ruptura com o sistema feudal e, posteriormente, às inúmeras possibilidades de escolha que singulariza o individual, dificultando a definição de um grupo homogêneo. Já a racionalização está ligada ao processo de desenvolvimento das ciências e tecnologias que influencia diversos campos da sociedade. São as dinâmicas dessa racionalização que impulsionam a transformação do capitalismo industrial para o capitalismo cognitivo na hipermodernidade, onde a principal mercadoria de comercialização é o conhecimento. Na

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estruturação do tecido urbano na citada segunda modernidade, essa dinâmica caminha em direção ao planejamento urbano e ao urbanismo propriamente ditos. Por último, destaca-se a dinâmica da diferenciação social resultante da especialização da produção e da mão de obra, adotada sobretudo pelas indústrias durante a segunda modernidade e intensificada na hipermodernidade, gerando uma maior segmentação dos modos de produção, do mercado, dos grupos sociais e, consequentemente, da própria cidade. Dessa forma, diversificam-se as funções individuais e, também, o acesso aos meios de produção e, evidentemente, do poder de compra. A conformação da cidade e da sociedade hipermoderna está atrelada ao contexto econômico e político que a antecede e que impulsiona as mudanças. Ascher afirma que esse contexto está atrelado à crise econômica durante as décadas de 1960 e 1970, que resulta numa revisão da regulamentação de mercado pelo Estado, assumindo uma postura neoliberal, na qual se rompem as barreiras protecionistas e difundem-se as associações entre poder público e iniciativa privada. Essas medidas políticas atreladas à economia, somadas aos avanços nos meios de comunicação, sobretudo a invenção da internet, dão suporte à estrutura global de interdependência em rede que rege o mercado, a dita globalização, que traz consigo a segmentação do mercado na esfera global e a lógica da produção flexível. No que se refere ao tecido urbano, vimos que desde o início do processo de modernização as transformações se baseiam na abertura de vias de

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deslocamento para circulação de bens e pessoas. O primeiro momento caracterizou-se pela abertura de vias, avenidas, de praças e de jardins urbanos, pela separação entre o espaço público e o privado, pelo aumento dos espaços de deslocamento e hierarquização do espaço público, separando-o em dois níveis devido à implementação da calçada. O segundo momento intensifica esse processo, em razão do crescimento demográfico em ritmo acelerado que gerou o adensamento e a expansão territorial e, também, em razão do planejamento urbano baseado em ilhas monofuncionais, um modelo que impõe a necessidade do deslocamento e reforça a lógica de abertura de espaços e meios para a circulação. A resposta dos urbanistas à problemática dos fluxos baseiam-se na hierarquização das vias, privilegiando o deslocamento de automóveis particulares. Este segundo momento do processo de modernização é radical no que se refere às transformações, tendo em vista as propostas do urbanismo moderno. Tal processo sedimenta as camadas preexistentes do tecido urbano, dando a esse uma nova pele, cheia de cortes e cicatrizes que são as amplas vias de deslocamento implantadas. As transformações sofridas pelas cidades e pelas dinâmicas sócio-espaciais na hipermodernidade se desdobraram numa terceira revolução urbana, traduzida pelos termos “metápole” e “metapolização”. Essa morfologia urbana em processo de conformação e os processos de transformações sociais da hipermodernidade trazem consigo um outro modo de se habitar as cidades, impondo tensões à escala local. Isso nos leva a tentar compreender os efeitos do processo de metapolização na escala do bairro.

Figura 5:  Uma nova pele para a cidade

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El término metápolis traduciria esa nueva dimensión múltiple y multifacética de la ciudad contemporánea. Una realidad “más allá” de la metrópolis tradicional. La de un sistema vibrátil, similar - “genérico” o recurrente - a escala global y disverso - específico, singular - a escala local. (GAUSA, 2010, p. 193)

A METÁPOLE A metapolização é um processo que carrega um duplo sentido: o da forma tradicional de transformação da cidade em metrópole, ou simplesmente de metropolização, e o de uma nova morfologia urbana que transcende e inclui a polis. A transformação da cidade em metrópole se deu por meio do processo de concentração humana e de capital, e pela instauração de um mercado mais amplo e mais diverso capaz de aumentar a oferta de serviços especializados e de equipamentos públicos, de maneira a atrair tanto a mão de obra especializada quanto a grande massa de trabalhadores sem qualificação. Já a transformação da metrópole em metápole se apresenta na forma das aglomerações urbanas que passaram a se expandir e agrupar diversas aglomerações desconexas, processo permitido pelo desenvolvimento de novas relações de velocidades para os descolamentos e as comunicações. Segundo Ascher (2010), a passagem da forma urbana metropolitana à metapolitana se deu por meio de “grandes conurbações, extensas e descontínuas, heterogêneas e multipolarizadas”.

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Figura 6:  The carpet metropolis, 1995. Willlem Jan Neutelings apud GAUSA, 2012, p. 192. As camadas que compõem a cidade em constante transformação. Inquietações Urbanas | Ações projetuais em Jardim Camburi

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O processo de metapolização tem como desdobramento o adensamento e, simultaneamente, a expansão territorial, direcionados, sobretudo, pela forma de atuar dos agentes privados. Estes deslocam as centralidades e induzem a ocupação de novas áreas nas zonas periféricas das cidades, tornando obsoletas as porções abandonadas e dispersando os assentamentos urbanos. Com isso, faz-se necessária a criação de novas e cada vez mais extensas redes infraestruturais e de serviços, bem como de equipamentos e serviços públicos para abastecimento, transportes, saúde etc. É importante deixar claro que os empreendedores só conseguem condicionar o território a essas transformações com o aval do Estado, cada vez mais adaptado à prática da gestão neoliberal do espaço, homologando a exploração do território pela lógica do valor de troca, que o transforma em mercadoria em detrimento da lógica do valor de uso e da utilização dos assentamentos humanos em prol das necessidades dos habitantes. Esse modelo capitalista de produção do espaço mantém o crescimento a qualquer custo, o que provoca grandes vazios urbanos e infla a bolha imobiliária. E depois de expandir o território aleatoriamente, retoma as localidades abandonadas baseando-se no discurso da recuperação da memória, com altos custos financeiros que se convertem em benefícios daqueles que detêm a gestão econômica. Estes agentes – Estado e empreendedores – configuram a cidade atual por meio do componente tipicamente capitalista e marcado pela espetacularização, transformando-a em imagem 32

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publicitária a ser vendida e consumida. É a mercantilização do espaço que intensifica as mutações morfológicas que configuram as novas aglomerações conurbadas, fragmentadas, de espacialidades desconexas e com centralidades dispersas. Seguindo essa lógica, o planejamento estratégico do território tem a metápole como objeto e por objetivo, o que dispersa os assentamentos urbanos e, simultaneamente, vende a ilusão de dissolver as distâncias entre as aglomerações (principal justificativa da disseminação do transporte individual). Assim, as gestões atuais persistem em privilegiar os espaços de passagem baseados na velocidade e, principalmente, na circulação de automóveis particulares em detrimento da circulação de transportes coletivos, dos espaços de permanência, da compatibilidade com a escala/ velocidade humana. Esse processo é acentuado pela citada autonomia de gestão do tempo por parte dos indivíduos, que poderia ser otimizada por um transporte público que oferecesse diversidade de horários e itinerários de modo a diminuir o uso do veículo particular. Tendo em vista que o transporte público no Brasil, muitas vezes, não oferece essas facilidades, o uso do automóvel particular é cada vez mais recorrente, o que provoca a saturação das vias de trânsito. E a resposta imediata do planejamento estratégico está centrada na constante abertura de espaços de passagem, uma medida que, além de não solucionar a questão da mobilidade, contribui para

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a fragmentação do território na medida em que cria mais e mais retalhos no tecido urbano. Em outras palavras, o sistema viário que tinha como principal prerrogativa a conectividade entre as diversas espacialidades urbanas, está cada vez mais inserindo verdadeiras barreiras, impondo ao território uma falta de coesão espacial e gerando espaços intersticiais vazios de utilidade e de significação no tecido urbano. Essa questão reforça o atrito entre a escala metapolitana e a escala local, uma vez que a escala metapolitana, fundamentada nas infraestruturas de deslocamento, acaba por dividir os bairros, debilitando a acessibilidade interna a estes, desarticulando a escala local, além de isolar os espaços passíveis da realização das práticas cotidianas. Essa é apenas uma das tensões entre as escalas dicotômicas aqui citadas. Uma segunda tensão se dá no fato de que a escala da metápole está atrelada à ideia de velocidade e de fluxo, e a escala local às atividades de contato e ao ritmo que favorece aos encontros e atritos. Nesse contexto, o conceito atrito se opõe ao de velocidade, o que induz à frenagem e o encontro. Dessa forma, ao colocar o bairro em contato com infraestruturas metapolitanas de deslocamento, a velocidade invade o âmbito local, dissolvendo a possibilidade dos citados contatos e atritos. Tal velocidade, conquistada pelos avanços tecnológicos, também influencia o tempo das transformações morfológicas, ditando o ritmo acelerado do processo de alteração na paisagem e no tecido urbano, derrubando as camadas de acumulação dos tempos que compõem a cidade. 34

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Assim, a geógrafa Ana Fani Carlos expõe um terceiro choque entre as escalas local e metapolitana, que define como metropolitana, na contraposição entre tempo da forma, ditado pela metapolização, e tempo da vida, que permeia o cotidiano e a escala local. Para o cidadão metropolitano, as formas urbanas se transformam em um ritmo alucinante revelando um descompasso entre os tempos da forma urbana – impresso na morfologia - e o tempo da vida humana. A metrópole - em sua visão de grandiosidade aparece em formas exuberantes - é vista como o símbolo de um novo mundo, como idéia do moderno e do triunfo técnico. Tal fato se traduz, morfologicamente, pelas formas arquitetônicas grandiosas, pela construção de amplas avenidas congestionadas e ruidosas que se impõe como formas do progresso. Neste processo de mudanças rápidas, o espaço se torna instável, o profundo processo de mutação cria a destruição dos referenciais que sustentam a vida cotidiana, jogando o cidadão em meio à agitação da multidão cada vez mais densa e amorfa, confrontado com a perda de sua identidade (CARLOS, 2007, p. 45).

Nessa lógica, verifica-se a queda dos referenciais urbanos e a negação da identidade construída, por eliminação das marcas do passado na paisagem. Assim, esse processo se desdobra na falta de reconhecimento do tecido urbano do bairro pelo seu próprio morador. A cidade “se reproduz numa relação de exterioridade em relação ao cidadão, revelando a alienação percebida na qualidade de estranhamento” (Carlos, 2007, p. 63). A autora ressalta a

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contraposição entre o tempo da vida humana e o tempo da vida urbana, impressos na morfologia desta. O segundo tempo está relacionado ao ritmo acelerado em que as formas urbanas mudam, de modo que são cada vez menos apreendidos pelos usuários da cidade. Nesse sentido, destróem-se os referenciais urbanos que sintetizam as marcas da vida cotidiana relacionadas aos usos do espaço. Por sua vez, os habitantes são condicionados a transformar tal uso para, constantemente, adequarem-se a novas formas. É desse descompasso entres os tempos e as espacialidades urbanas que surge a sensação de estranhamento por parte do habitante em relação ao lugar, configurando uma nova forma de identidade frágil e abstrata, atrelada à falta do sentimento de pertença ao lugar. Esse processo se agrava na medida em que, no contexto local, as relações de familiaridade inerentes às unidades de vizinhança se dissipam pela constante alteração dos personagens que frequentam a urbe, em ritmos e com intenções cada vez mais diversificados, a partir do processo de adensamento induzido pela dinâmica da metapolização. O residente antigo, que costumava vigiar o bairro, não consegue mais diferenciar o morador do transeunte. Desse modo, o morador tende a não assimilar nem o espaço do bairro, nem se próprio vizinho, enfraquecendo os laços da sociabilidade local. A inserção de novos personagens na escala local também está relacionada à introdução de atores econômicos globais que

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contracenam e conflitam com os locais. Para Ascher, esses novos agentes econômicos - shoppings centers, supermercados etc. induzem a metápole à homogeneização e, paradoxalmente, à diferenciação do território, baseada na contraposição entre o global e o local. Homogeneíza porque são os mesmos atores econômicos em todos os bairros e aglomerações. E diferencia porque a escala metapolitana oferece maior possibilidade de escolhas e contrapõe as esferas do local e do global, criando, assim, maior diversidade. Esta faz com que as pessoas se desloquem no território em ambiências cada vez mais distantes, e por outro lado, vivam menos a esfera do bairro. Além de reforçar o distanciamento entre habitante e seu bairro, produz uma mudança na própria “cadência” do cotidiano local (CARLOS, 2007), pois o ritmo frenético induzido pelo comércio metapolitano, impossibilita um atendimento personalizado e a efetivação dos encontros. Outros processos que atravessam a metápole tendem a reforçar o enfraquecimento da escala local, tendo em vista que o cidadão metapolitano vive ambas escalas simultaneamente. Em primeiro lugar, devido ao aumento dos deslocamentos diários que cobrem um extenso território, e, também, porque as pessoas expandem a distância entre as áreas que frequentam diariamente e, diga-se de passagem, isso se dá para além dos movimentos pendulares casatrabalho. Assim, o indivíduo pode morar num bairro e ter pontos de interesses em outros distintos, e desse modo a escala local deixa

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de ser plano exclusivo das atividades cotidianas, ou numa visão pessimista, a escala local se reduz ao espaço doméstico. Se o bairro perde relevância no cotidiano, evidentemente esse processo tende a enfraquecer a sociabilidade local. Para Ascher (2010), isso não significa que, no geral, as relações são substituídas por relações virtuais. O autor acredita que, pelo contrário, a banalização das telecomunicações faz com que se valorize o contato direto, o cara a cara, mas em escala metapolitana. Na verdade, busca-se eventos imediatos para se obter sensações mais reais. Por outro lado, Carlos (2007) revela a constituição de uma “nova urbanidade” permeada pelo individualismo e pelo consumo, que produz relações sociais superficiais, visto que essa urbanidade denota maior importância ao objeto do que ao sujeito. Assim, o uso dos espaços e a prática das relações sociais são mediadas pelo consumo. O mundo da mercadoria, por sua vez, estipula padrões de comportamento, implodindo o cotidiano por meio da organização da vida. Nessa tendência, o lazer resta inscrito em espaços semi-públicos de shopping centers, que negam a cidade porque interiorizam atividades comerciais e nela inscreverem-se por meio de longas fachadas cegas. Esses se fundamentam como agentes de dissolução das relações sócio-espaciais, porque promovem o esvaziamento do espaço público, mas não oferecem condições de sociabilidade semelhantes. Como afirma Bauman (2001, p.114), “esses lugares

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encorajam a ação e não a interação”, e dessa forma “por mais cheios que possam estar, os lugares de consumo não têm nada de “coletivo”. São espaços normatizados e vigiados, que promovem a exclusão e produzem uma atmosfera compatível à sociabilidade fria e distante. Em suma, são espaços vazios de experiências socializantes e de interações entre atividades urbanas e urbe. O enfraquecimento do espaço público atinge o bairro, tendo em vista que ele é o palco das relações de vizinhança. É nele que se fortalecem os laços entre vizinhos e onde acontecem os encontros fortuitos. Desse modo, a multiplicação dos espaços de novas categorias de sociabilidade, tais como os chamados semi-públicos ou semi-privados, tende a reforçar a segregação espacial da cidade e, socialmente, implicar no empobrecimento do cotidiano local.

Figura 7:  Fachada Lateral do Centro Comercial Shopping Outdoor

Figura 8:  Fachada do Shopping Norte Sul Inquietações Urbanas | Ações projetuais em Jardim Camburi

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Os espaços públicos esvaziados da prática espacial perdem significado, visto que é o uso que produz o espaço socialmente, e é através dele que se realiza a relação entre habitante e cidade. Em termos gerais, essa relação se altera na metápole em decorrência da constuição de uma nova articulação entre espaço-tempo. Essa alteração, segundo Carlos (2007), define o “tempo efêmero”, relacionado à aceleração do tempo de (re)produção espacial, que “torna a cidade obsoleta sem que esta sequer tenha envelhecido, o que é a expressão de um processo autofágico”, e, em contrapartida, produz um “espaço amnésico”, vazio de referências construídas pelo cidadão como já citado anteriormente. A noção de velocidade que atravessa o contexto da hipermodernidade significa, também, a efemeridade do tempo na vida cotidiana. O território disperso da metápole impõe ao cidadão um modo de vida atomizado, prolonga o tempo empregado nos deslocamentos, reduzindo, assim, o tempo livre para as atividades cotidianas não relacionadas ao trabalho. A escassez do tempo tem como consequência o aumento dos sentimentos de angústia e solidão. Apesar de viver em uma aglomeração urbana e em meio a verdadeiras multidões, o cidadão metapolitano sente-se sozinho. Esse paradoxo foi bem contextualizado por meio do filme “Medianeras: Buenos Aires na Era do Amor Virtual”, onde os personagens, habitantes da cidade Buenos Aires na Argentina, sentem-se perdidos no meio da multidão. As relações sócio-espacais na metápole refletem a ausência de interação proporcionada pelo adensamento que visa, 40

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sobretudo, atender às necessidades mercadológicas. Nesse filme, essas construções são representadas por edifícios verticalizados de largas empenas cegas (ou medianeras), sem janelas, que dão o nome ao filme. Considero que ao trasmutar o desenho, a forma e a organização da cidade, o processo de metapolização abala as relações de vizinhança e modifica os modos de sua utilização, transmutando também o sentido de bairro e a significação de espaço público.

Figura 10:  Cena do Filme Medianeras: Mariana identifica-se com o personagem Wally do livro de ilustrações “Onde está Wally?”, no qual o desafio estabelecido é encontrar o personagem em meio à multidão.

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O BAIRRO Ao longo dos capítulos anteriores, é possível ter um entendimento do sentido de “bairro” antes mesmo de haver sido explicitada uma definição. Isso se justifica pela intimidade que todos os indivíduos urbanos temos com a escala dessa unidade de vizinhança. É essa intimidade entre o morador e o bairro que articula os espaços domésticos e de convivência coletiva, os quais conferem significado e significância a tal unidade. O bairro pode ser definido previamente como plano de contato imediato entre cidade e cidadão, cabendo-lhe também mediar o contato com outras escalas urbanas, pois é a partir dele que os habitantes se relacionam com a metápole. Para Carlos (2001), o bairro se revela como lugar do habitar. O conjunto de atividades cotidianas está para o bairro, assim como o uso está para o espaço público, conferindo a este significados e revelando a sua dimensão poética e vivencial. Ambos os atos (habitar e usar) estão intrinsecamente ligados à prática espacial, de apropriação e de subjetivação do espaço. Nos termos de uma famosa afirmação de Walter Benjamin, “Habitar é deixar rastros”, e nesse contexto os rastros deixados pelo habitar estão relacionados tanto aos vestígios deixados na forma, como aos gestos revelados pelo corpo, que se materializam na memória e configuram a identidade individual e coletiva. Na medida em que o indivíduo se apropria do bairro, realiza o espaço socialmente, a rua e o bairro ganham corpo e simultaneamente, os incorpora. Assim, o espaço habitado é tomado pelo valor sentimental. Cada canto e cada

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esquina estão permeados de afetos e lembranças. Por isso, no caso de uma mudança de endereço, significa que uma pessoa deixa parte de si para trás. Do mesmo modo que o indivíduo deixa rastros no bairro ao se apropriar dele, o bairro também atravessa o indivíduo e interfere muito na vida pessoal do sujeito. O ato de habitar traduz-se nas atividades cotidianas que transcendem o espaço doméstico, “envolvendo vários níveis e planos espaciais de apropriação. A partir da sua casa e para manutenção de sua vida, o cidadão usa outros lugares que a complementam, como a rua, os parques, as praças, os lugares de trabalho, os lugares de lazer” (CARLOS, 2007, p. 87). Assim, a casa é o marco de onde se desdobram os caminhos que nos conectam com o bairro, a cidade. a metápole e o coletivo. A partir da casa construímos trajetos, referências e laços de afetividade com o espaço e com os vizinhos. E essa relação reforça o apelo identitário da escala do bairro e o articula nos planos da casa e da rua, configurando as tramas espaciais entre esses domínios. Por meio dessa relação íntima entre morador e bairro, a qual se efetiva pela prática cotidiana do ambiente urbano, estabelecese uma “privatização progressiva do espaço público” (MAYOL in CERTEAU; GIARD; MAYOL, 2013, p. 42). É evidente que o autor se refere ao sentido de pertencimento e não de privatização no que tange os indivíduos que indevidamente tomam posse dos espaços coletivos. Refere-se, também, às práticas cotidianas do bairro quando este permite que o praticante reconheça (e se aproprie de)

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trajetos, lugares e figuras políticas, os quais estabelecem as citadas relações de vizinhança. Desse modo, o bairro se afirma como lugar de reconhecimento do sujeito no espaço urbano, que se desdobra no sentimento de pertença e de identificação. Assim, o espaço privado ultrapassa o limite do muro, estabelecendo uma relação de continuidade entre a casa e a rua, dissolvendo os limites entre público e privado. [...] o limite público/privado, que parece ser a estrutura fundadora do bairro para a prática de um usuário, não é apenas uma separação que une. O público e o privado não são remetidos um de costas para o outro, como dois elementos exógenos, embora coexistentes; são muito mais, são sempre interdependentes um do outro, porque, no bairro, um não tem nenhuma significação sem o outro. [...] Nem íntimo, nem anônimo: vizinho: (MAYOL, op cit, p. 43).

O bairro, em sua essência, é o espaço de convivência com o outro, com quem nos relacionamos. Essas relações de vizinhança são regidas por códigos de conduta subjetivos em prol da boa convivência, a partir dos quais busca-se preservar a privacidade sem, contudo, provocar um distanciamento total. Os códigos de convivência estipulam comportamentos e valores que variam de um bairro para o outro. Esses códigos, na maioria das vezes, não são escritos, baseiam-se na conveniência.

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As transformações relacionadas ao processo de metapolização orientam a aceleração das velocidades e das cadências da vida dos bairros. A tendência é que as brincadeiras de rua percam espaço para os carros, que as crianças não voltem mais da escola a pé conversando, que a mercearia seja aos poucos substituída pelo supermercado das grandes redes internacionais, que o comércio de bairro seja trocado pelos shopping centers, que as conversas nas portas das casas desapareçam devido às relações virtualizadas (ou não presenciais) e que a prática do espaço se oriente cada vez mais pela necessidade e não pela casualidade. Nesse sentido, a vida atomizada imposta pela metápole sugere que cada vez menos se viva a escala do bairro em prol da interiorização das atividades cotidianas nos espaços domésticos ou nos espaços impessoais (e não mais públicos). O limite entre público e privado cada vez mais tende a se enrijecer, desarticulando a relação casa / rua / bairro e enfraquecendo as relações de vizinhança. Esse processo é retratado com acidez pela tirinha, que retrata a tendência de isolamento da casa em relação à rua [ Figura 12]. O “humor” dessa situação reside no paradoxo estabelecido: ao criar barreiras de proteção para a casa, a tendência de enclausuramento da residência traz maior insegurança à rua, e vice versa. Nessa mesma tendência de distanciamento entre a casa e a rua, surgem os edifícios com grandes embasamentos não residenciais e vedados, bem como os grandes condomínios cercados por muros contínuos e cegos, que impõem ao indivíduo do lado de fora uma condição de maior insegurança.

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Figura 12:  Enclausuramento da casa e da rua. Fonte: Quadrinhos Ácidos

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Ao invadir a escada do bairro, o fluxo exógeno a este e a velocidade cada vez maior dos veículos particulares, que estão meramente de passagem, subtraem o uso das relações humanas dos espaços públicos, invadindo-os pelo universo do consumo, como já citado anteriormente. Cada vez mais normatizados, estes espaços públicos repelem qualquer prática de apropriação, de pertencimento e de significação pela usança. Assim, cada vez mais os espaços públicos se convertem em não-lugares. Nessa mesma lógica, o habitar como prática de subjetivação inerente ao bairro e à essência da cidade é substituído pelo mero ato de morar, que se restringe ao interior do espaço doméstico e às atividades individuais. Por sua vez, a casa perde o valor sentimental e de uso, próprios dos laços de afetividade com o espaço e com os vizinhos, e fica mais suscetível às mudanças impostas pela metápole, na medida em que esta resume a casa à condição de mercadoria, ao valor de troca e ao refúgio do individualismo. Nesta dinâmica, o bairro tende a se esvaziar das apropriações e das relações de vizinhança que lhe conferem significado, reduzindo-o a uma unidade de controle administrativo. O bairro, assim, perde seu sentido mais amplo de palco de realização da vida cotidiana, para a sociabilidade dos seus moradores. Contudo, há de se relativizar essas questões, uma vez que há bairros ou partes deles que, de uma forma ou de outra, resistem a essa problemática, e podemos intuir que isso se deve a alguns fatores como: falta de intervenção dos agentes do mercado imobiliário e urbanístico formal; controle social por parte dos moradores com interesse de preservar a escala de bairro e de minimizar parâmetros


urbanísticos segregadores. Essas particularidades que se formam em razão de dissonâncias com os ritmos ditados pela metrópole que permeiam o bairro, o retalha em unidades ambientais diferentes, que nos permite experimentar inúmeras sensações dentro de um mesmo bairro, o que me leva a afirmar que o bairro assim como a cidade não é um território homogêneo. Os bairros são uma combinação de retalhos de diversas ambiências, como um patchwork. É essa multiplicidade que conduz à apreensão do objeto empírico, a fim de reconhecer as possibilidades que o bairro oferece quanto às apropriações do espaço público e à criação de vínculos afetivos. Figura 13:  O Supermercado Chiabai é a mercearia mais tradicional do bairro Jardim Camburi, mantendo os clientes fidelizados por meio da permanência do uso da tradicional caderneta para anotação de débitos dos clientes antigos.

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COTIDIANO O cotidiano é aquilo que nos é dado cada dia (ou que nos cabe em partilha), nos pressiona dia após dia, nos oprime, pois existe uma opressão do presente. Todo dia, pela manhã, aquilo que assumimos, ao despertar, é o peso da vida, a dificuldade de viver, ou de viver nesta ou noutra condição, com esta fadiga, com este desejo. O cotidiano é aquilo que nos prende intimamente, a partir do interior. É uma história a meio-caminho de nós mesmos, quase em retirada, às vezes velada. [...] é um mundo que amamos profundamente, memória olfativa, memória dos lugares da infância, memória do corpo, dos gestos da infância, dos prazeres. [...] O que interessa ao historiador do cotidiano é o invisível... (CERTEAU, 2013, p.31).

O cotidiano é uma trama composta por ações e práticas como morar, caminhar, trabalhar, comer, deslocar-se. Ações estas que se concretizam por meio do contexto espaço-tempo. E, assim, devido ao fato desse contexto ser variável, o cotidiano está repleto de casualidades e imprevistos, de modo a fazer com que nenhum dia seja como o outro, mesmo que as ações que se repitam. Na atualidade, os longos deslocamentos impostos pelo território metapolitano e, também, a cooptação desse tempo pelos meios de comunicação tornam cada vez mais rara a categoria do tempo livre. Nessa pressa, o cotidiano é atropelado, se perde nas repetições e torna-se algo banal. Tão banal e tão imperceptível que foi a escala mais difícil de ser conceituada.

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Nesse corre-corre, as surpresas e as delicadezas que nos ligam ao território passam despercebidas. Extinguem-se as oportunidades para o contato e as casualidades. Na contramão dessa “tendência”, os espaços ocupados por idosos e crianças costumam estar impregnados por um ritmo mais lento e, assim, imprimem práticas espaciais mais diversas e mais lúdicas. Ações como os jogos de xadrez, as pausas para uma conversa com o vizinho e as brincadeiras de rua, além de ocuparem e tornarem o ambiente urbano mais atraente e seguro, reforçam a alma do lugar. Onde o ritmo é mais lento, o tempo acha brechas para os encontros e para o desvendar das frestas e dos cantos. É a partir das práticas sociais que o espaço assume diferentes significados, pois a vida cotidiana se remonta em memórias, consolida laços de afetividade com o espaço e, ainda, revela os desejos do praticante em relação à cidade. Por isso, o cotidiano transforma os habitantes em agentes sociais na conformação do ambiente construído das cidades por meio das suas interações nesse processo junto a agentes políticos e econômicos. Os agentes sociais produzem a cidade a partir da vivência cotidiana, na qual o habitante se converte em cidadão, já que este em suas ações reafirma ou subverte as imposições da dominação do Estado. As práticas cotidianas podem contribuir para criar um ambiente urbano acolhedor, mas também pode destruir a essência do urbano. Da mesma forma, o ambiente construído pode restringir

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ou incentivar tais práticas geradoras de urbanidade. As práticas cotidianas, apesar de pontuais, se reproduzem e são multiplicadoras de outras ações, realimentando o ciclo de articulação entre os ditados agentes (econômicos, políticos e sociais) produtores do espaço urbano. Na repetição presente do cotidiano, esses atos ganham força. [A] urbanidade também precisa dessas contribuições infinitamente modestas e pontuais para se perpetuar, contribuições de modos ou estilos de vida que utilizam ou dependem do espaço urbano, legitimamente público, para se reproduzir. Precisa de pessoas caminhando nas calçadas, fazendo compras nos centros tradicionais e de um transporte público de qualidade. Ao morar num apartamento, dirigir um automóvel para o trabalho e fazer compras num shopping center, eu não só estou deixando de reproduzir modos de vida legitimamente urbanos, como estou contribuindo ativamente, mesmo que modestamente, para destruí-los. (FIGUEIREDO, 2012, p.231)

De acordo com Certeau (1998), em resumo, o cotidiano é uma trama de práticas de enunciação do espaço. É, sobretudo, um ato político. Lançar o olhar sobre essa microescala tem como objetivo capturar o extraordinário e que escapa à repetição, ou ainda revelar a essência do lugar e os desejos dos habitantes.

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1,

Figura 14:  Crianças brincando de “piqueesconde” na praça

2, 3... LÁ VOU EU!



experiĂŞncias e impressĂľes urbanas


Figura 15:  Arte Urbana do Coletivo Teatro Dodecafônico que faz uso do exercício da Deriva, São Paulo, 2014.


EXPERIÊNCIAS URBANAS Eu confronto a cidade com meu corpo; minhas pernas medem o comprimento da arcada e a largura da praça; meu olhar, inconscientemente projeta meu corpo contra a fachada da catedral, onde ele passeia sobre as molduras e contornos, percebendo as dimensões das reentrâncias e das saliências; o peso do meu corpo encontra a massa da porta da catedral, e minha mão agarra o puxador à medida em que penetro no escuro vazio que segue. Eu me experimento na cidade, e a cidade existe através da minha experiência corporificada. A cidade e meu corpo se complementam e definem mutuamente. Eu moro na cidade e a cidade mora em mim. (PALLASMAA, 2011, p.38)

No trecho acima, Pallasmaa traduz a experiência urbana como meio de revelar a cidade e a impressão da cidade no corpo de quem dela se apropria. Esse é o caminho que pretendo percorrer neste estudo. O que busco com a adoção da experiência urbana como metodologia é a aproximação e leitura mais subjetiva do urbano que tal experimentação produz, ou seja, investigar o espaço numa escala humana (e na primeira pessoa do singular). Dessa maneira, a percepção do ambiente urbano se dá por meio da vivência da cidade, que se faz a partir do contato sensorial utilizando-se do corpo como dispositivo, o qual na medida em que se movimenta Inquietações Urbanas | Ações projetuais em Jardim Camburi

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na caminhada sem rumo, à deriva, entrega-se às solicitações do terreno e das pessoas que nele venha a encontrar, negando o modo anestesiado habitual de se percorrer o território. Assim, permite-se a experiência por meio da sinestesia, entrelaçando os dois corpos: o corpo do cidadão e o corpo da cidade, assim como sugere Pallasmaa. O praticante experimenta a cidade, percorrendo-a enquanto o corpo físico é contaminado (no sentido positivo) pelo território, inscrevendo-se no mesmo a partir do percurso, dando corpo à cidade e, simultaneamente, incorporando-a. Jacques (2008) em Corpografias Urbanas, revela que “no momento em que a cidade – o corpo urbano – é experimentada, esta também se inscreve como ação perceptiva e, dessa forma, sobrevive e resiste no corpo de quem a pratica.” A autora sugere a experiência urbana como meio de aproximação entre o cidadão e a cidade a fim de combater a espetacularização desta e combater, também, seus espaços desencarnados, tal como se apresentam os espaços contemporâneos esvaziados da prática coletiva. É através da experiência que podemos explorar a condição humana e o potencial poético do espaço urbano e da vida que nele ocorre. É através da experiência que podemos corporificar o espaços, fazendo com que a cidade deixe de ser meramente cenário, para se tornar palco das relações sócio-espaciais, o espaço vivido dos processos de subjetivação. Nessa lógica, Certeau (1998) faz uma analogia do ato de caminhar com o ato de falar, em que o falar é a realização sonora da língua e o caminhar é a realização espacial do lugar. Em outras palavras, 58

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o espaço é resultado das práticas cotidianas no lugar e aquelas (práticas) são textos inscritos neste (espaço). A aproximação com o território por meio da experimentação é uma prática comum aos errantes urbanos, que realizam rígidas críticas ao urbanismo moderno, principalmente no que se refere à priorização de suas preocupações formais e funcionais, provocando um distanciamento da escala humana e da poética espacial. Em contrapartida, a errância urbana é um exercício de subjetivação do espaço e de seu praticante – neste caso, o errante. O errante é então aquele que busca o estado de espírito (ou melhor, de corpo) errante, que experimenta a cidade através das errâncias, que se preocupa mais com as práticas, ações e percursos, do que com as representações, planificações ou projeções. O errante não vê a cidade somente de cima, em uma representação do tipo mapa, mas a experimenta de dentro, sem necessariamente produzir uma representação qualquer desta experiência além, é claro, das suas corpografias que já estão incorporadas, inscritas em seu próprio corpo. (JACQUES, 2008)

No trecho acima, a autora explicita a diferença entre o voyeur e o errante. O primeiro se propõe a ver a cidade de cima, como exemplifica Certeau (1998) em Invenção do Cotidiano, no qual o observador posiciona-se ao alto do 110º andar do World Trade Center, numa situação em que a cidade se reduz a uma mera imagem. Já o errante de fato se aproxima do território, se inscreve

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nele. Nos termos do autor, o errante é o praticante ordinário da cidade, enquanto o voyeur é extraordinário. Na análise espacial do voyeur, o tempo, o acaso e a escala humana não têm significância, menosprezando, assim, a dimensão poética da cidade. Estas percepções (do tempo, do acaso e da escala humana) só se tornam possíveis de serem absorvidas no ato da citada experiência sinestésica, na qual o tempo e o imprevisto atuam de modo a direcionar a percepção e o percurso, como também, enriquecer as situações cotidianas. Para Jacques (2008), a errância urbana está relacionada a três propriedades: a de se perder; a da lentidão; e a da corporeidade. A primeira delas está ligada ao estado de desorientação, quando o praticante se desprende do domínio do território, admitindo que o próprio espaço o domine. A segunda, a da lentidão, é uma negação da velocidade intrínseca ao meio urbano atual, velocidade essa que colabora para a citada anestesia cotidiana. E por fim, a corporeidade, que se explica pela relação de complementação e contaminação entre corpo físico e corpo cidade. A errância urbana, praticada voluntariamente, tem como desdobramento a deriva urbana, na qual o vivenciador propõe-se a entender o território enquanto labirinto, na busca por decifrálo. Em outras palavras, perder-se é um dos pressupostos inerente à deriva.

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Perder-se significa que entre nós e o espaço não existe somente uma relação de domínio, de controle por parte do sujeito, mas também a possibilidade de o espaço nos dominar. São momentos da vida em que aprendemos a aprender do espaço que nos circunda [...] já não somos capazes de atribuir um valor, um significado à possibilidade de perder-nos. Modificar lugares, confrontar-se com mundos diversos, ser forçados a recriar continuamente os pontos de referência é regenerante em nível psíquico, mas hoje ninguém aconselha uma tal experiência. Nas culturas primitivas, pelo contrário, se alguém não se perdia, não se tornava grande. E esse percurso era brandido no deserto, na floresta; os lugares eram uma espécie de máquina através da qual se adquiriam outros estados de consciência (LA CECLA, 1988 apud CARERI, 2013, p.48).


Perder-se é o contraponto à obsessão pela orientação constante e induzida pelas novas tecnologias que possibilitam a localização via satélite, onde as referências já estão postas. Desorientar-se ou desnortear-se significa abrir mão do norte e dos elementos físicos de localização para possibilitar uma nova leitura e recriar o urbano a partir de referências subjetivas absorvidas ao longo da experiência urbana. Perder-se é como colocar uma lupa no que se torna invisível pela anestesia da rotina. Assim, a deriva urbana convoca o vivenciador a rever ou revisitar o território, de modo menos corriqueiro e sob um ângulo poético. Isso afirma o ato de desorientar-se como enriquecedor aos que se propõem a compreender o espaço urbano, já que nos faz reconhecer outras condicionantes do território além das geográficas. Sendo as relações urbanas o foco deste estudo, proponho experimentar a deriva no processo de aproximação com o objeto empírico escolhido para este trabalho, o bairro Jardim Camburi. Aproprio-me dessa aproximação como meio de entregar-me às solicitações do território, de destrinchar as questões que o permeiam. Enfim, incorporo a cidade na intenção de extrair insumos para a posterior proposta de intervenção, mas, sobretudo, como modo de exaltar a própria experiência urbana.

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[16 ]  - Vendedor ambulante de sacolas e espanadores que circula na feira de quinta pela manhã, na praça Miguel Arcanjo Fraga, conhecida pelos mordores como “praça da bocha”.

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_A EXPERIÊNCIA PROPRIAMENTE DITA O (re)conhecimento do bairro foi um processo de exploração de um território desconhecido, que anteriormente era vivenciado apenas de modo superficial, a modo de visita à casa de conhecidos ou para utilização de algum bar ou restaurante. Dessas rápidas visitas que antecederam este estudo ficou a impressão de um bairro árido para a caminhada e a permanência nos espaços públicos, onde predominam muros, tapumes, muitos carros e pouca vida pública. Ao mesmo tempo, percebi a característica mutante do bairro, ao me surpreender frequentemente com estabelecimentos novos que se instalam no bairro. Embora essa característica seja inerente à espacialidade urbana, nesse bairro ela é acentuada tendo em vista o crescimento intenso e a numerosidade de lotes desocupados ou de edifícios em construção. Essa capacidade de transformação sinaliza a possibilidade de reinvenção de um bairro, de propor um novo paradigma de crescimento, instigante para a determinação de Jardim Camburi como espaço suporte para desenvolvimento deste trabalho. Me propus a vivenciar o bairro caminhando a pé sozinha, desvencilhando-me das noções pré-concebidas e encarando a potencialidade dessa vivência como estratégia prévia para entendimento do espírito do lugar e como instrumento para as atividades propositivas que pretendo desdobrar para o bairro. Neste processo de imersão, experimento a fotografia como forma de registro, lançando mão da câmera fotográfica na intenção de explorar cantos e singularidades existentes no bairro durante 64

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o percurso. É importante deixar claro que a utilização da câmera requer sensibilidade para compreender quando seu uso poderia somar ao relato ilustrando-o, e quando provocaria o desconforto nos usuários, inibindo a prática do espaço de forma espontânea. Em algumas situações, posicionar-me com a câmera em mãos poderia impor uma espécie de barreira entre minha pessoa – vivenciadora da experiência - e as possibilidades de vivência com o outro. Senti que poderia deixar de permear como um indivíduo qualquer e passar a ser identificada como estrangeira ao lugar, o que gera repulsões e não é positivo para a experiência. Em outras situações senti que o uso da câmera era um artifício de aproximação, por levantar a curiosidade do outro quanto ao objeto fotografado e essa aceitação - não repulsa – se justifica pela fragilidade que enxergam num indivíduo feminino como eu e não em grupo, que desarma o receio e a repulsão do ser e objeto intrusos, eu e a câmera. Diante desses possíveis reflexos contraditórios do uso do recurso, os registros foram bem restritos. Assim, utilizo-me da fotografia como mais um artifício de relato das narrativas produzidas na deriva. Mas, é evidente que por mais sensível à luz que seja a câmera, as lentes não traduzem a percepção do corpo, ou seja, não representa a totalidade da experiência perceptiva (uma vez que prioriza à percepção visual). Nesse processo de cognição do bairro por meio da deriva, isento da pretensão de representar o bairro em sua totalidade, o que se mostra eficiente é

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a leitura e vivência pessoal do bairro, considerando-se, sobretudo, a prática espacial coletiva como objeto de observação prioritário. O fato de haver praticado esta experiência sem estar em grupo também possibilitou que me inserisse no território sem ser vista em boa parte do bairro como estrangeira. Digo boa parte porque, onde no bairro não há reconhecimento do outro no espaço, o vizinho, me coloco como mais um dos indivíduos anônimos presentes nos cenários urbanos daquela unidade ambiental. Por outro lado, em certas localidades do bairro em que há esse reconhecimento entre vizinhos habituais, os próprios moradores vigiam e controlam a rua, proporcionando a sensação de intrusão a qualquer um que, como eu, não pertence à localidade. Esse é um dos fator que diferencia a ambiência das diversas unidades ambientais presentes no bairro. Neste caso me refiro a ambiente em seu sentido mais amplo, não apenas restrito aos aspectos físicos. Nas primeiras aproximações por meio da deriva, o próprio bairro se encarregou de deixar-me perdida, sem referenciais, devido ao seu traçado confuso e repetitivo que, de certo modo, se torna ilegível como um labirinto. Isso se confirmou posteriormente às derivas, quando algumas visitas com objetivos diretos também acabaram tornando-se derivas, incrementando a análise com novas experiências que revelaram como é fácil perder-se em Jardim Camburi.

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Na tentativa de decifrar o espaço, busquei identificar as bordas – tais como a praia, a Av. Norte e Sul, a Encosta da Vale – e pontos de convergência que pudessem criar e recriar os meus pontos de referência, que ao longo das derivas se somaram a outros fatores de reconhecimento para enriquecer a análise tais como: ritmos e velocidades praticadas no território; a potencialidade de interação entre espaços públicos e privados; a presença de sombras por meio de arborização, mobiliário urbano e elementos arquitetônicos; modos de apropriação e de usos dos espaços públicos etc. Tais características dão pistas para o entendimento das inúmeras unidades ambientais que compõem o bairro, as quais denomino “arquétipos urbanos”. A identificação desses arquétipos tem por finalidade desembaralhar a leitura do bairro, que é composto por uma multiplicidade de ambiências que presumem muitas sensações. Essa diversidade permitiu a surpresa positiva no processo de aproximação e avaliação do objeto empírico, que me levaram a me deparar com situações que negaram aspectos negativos pré-concebidos anteriormente à vivência, tais como a identificação de espaços públicos animados pela convivência social, e a característica de determinadas tipologias arquitetônicas e velocidades praticadas numa escala muito adequada à do humano. Essas unidades são como ilhas de preservação da escala, que conformam uma ambiência e proporcionam a sensação de estar num bairro distinto, marcado pelo ritmo mais lento, por sombras sempre bem vindas nos percursos diários e pela interação entre a

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casa e a rua. Na contramão dessas ambiências estão as unidades em que a inserção de novas tipologias arquitetônicas com limites mais rígidos com a rua, os grandes muros, que nos repelem e nos fazem percorrer o bairro de forma mais ágil. Soma-se aos muros, os estacionamentos que reforçam a sensação de enclausuramento no espaço público, que deveria ser o espaço aberto – de possibilidades e de permeabilidade, e que dão ênfase à presença dos veículos. De modo geral, coube à prática da deriva o reconhecimento das contradições, dissensos, potencialidades e impedimentos, em diversas escalas, que permeiam o bairro e nos fazem encarar seu caráter heterogêneo. Assim, vale ressaltar que não caberá aos objetivos do projeto utilizar esse caráter para desfazer as citadas contradições e dissensos, para não tornar o território homogêneo mas, sim, produzir espacialidades que possibilitem interlocuções entre seus diversos moradores e visitantes. A seguir dando continuidade a esta sessão “Experiência e Impressões Urbanas”, serão expostas questões levantadas pelo objeto empírico durante o processo de experimentação urbana, deriva e visitas direcionadas.

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Figura 17:  Apreensões urbanas, colagem de situações.

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o territ贸rio


SERRA

VITÓRIA

CARIACICA

Vitória-ES Avenida Norte e Sul

VILA VELHA


localização JARDIM CAMBURI ARCELOR MITTAL INDÚSTRIA SIDERÚRGICA

ORLA DE CAMBURI

AEROPORTO

BAIRRO DE FÁTIMA

VALE INDÚSTRIA SIDERÚRGICA PORTO DE TUBARÃO

0

0,5

1

2

3 km


O BAIRRO Jardim Camburi localiza-se na porção continental da cidade de Vitória, Espírito Santo. Conforma junto com o Parque Industrial (indústrias siderúrgicas Vale e ArcelorMittal) a zona administrativa 8. De acordo com o censo IBGE (2010), o bairro possui 39.157 habitantes e uma extensão territórial de aproximadamente 20.000 km2. . Jardim Camburi está margeado por instalações logísticas globais, que fazem fronteira, a oste, com o aeroporto Eurico de Aguiar Sales e a Avenida Gelú Vervloet dos Santos (conhecida como Avenida Norte-Sul) que faz a ligação intermunicipal entre Vitória e Serra; a leste, com a Indústria Siderúrgica Vale; ao sul, com a orla da Praia de Camburi (Avenida Dante Micheline) que abrange o Porto de Tubarão; e por fim, a nordeste com o Bairro de Fátima, no município da Serra. Os principais acessos ao bairro, localizados na orla de Camburi, encontram-se a partir das ruas Carlos Martins, Fortunato Abreu Gagno, ruas José Celso Claúdio e da Avenida Munir Hilal. Os acessos mais utilizados na avenida Norte-Sul se dão através das ruas Carlos Gomes Lucas, Vitorino Cardoso e da Avenida Engenheiro Charles Bittan. A partir do Bairro de Fátima, os acessos principais se fazem pela Avenida Augusto Estelita Lins e pela Rua José Celso Cláudio.

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0

250m

500

1.000

. AV EU G C ACHÊ OP ÊNI

PRINCIPAIS ACESSOS ACESSOS BLOQUEADOS

E OD S IRÓ QUE

LES

BITTAN

E

AV. AUGUSTO LIMA ESTELIT A LINS

R. VITORINO CARDOSO

R. CARLOS GOMES LUCAS AN

R. FILOGÔNIO MOTA UL

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A

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LIN

RB

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R. CARLOS MARTINS

IDA AVEN Figura 19:  Mapa: principais ruas, avenidas e acessos do bairro Jardim Camburi

R. FILOGÔNIO MOTA

OS

R. JOSÉ CÉLSO CLÁUDIO

.R

NO R. FORTUNATO ABREU GAG

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AV. MUNIR HILAL

AV.

R CHA NG.


[20 ]  Mapa de Espaços Privados

[21 ]  Mapa de Espaços Públicos

ESPAÇOS

ESPAÇOS

PRIVADOS

PÚBLICOS

[22 ]  Mapa de Malha Viária

[23 ]  Mapa de Espaços Construídos

ESPAÇOS

MALHA VIÁRIA

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CONSTRUÍDOS

0

250

500

1.000 m


MAPAS Figura Fundo

SOBREPOSIÇÃO DE LAYERS

[24 ]  Mapa resultante da fusão de camadas

0

250

500

1.000 m

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VAZIO ÁREA LIVRE EM CONSTRUÇÃO

SUBTÍTULO

MISTO NÃO RESIDENCIAL RESIDENCIAL MULTIFAMILIAR RESIDENCIAL UNIFAMILIAR

[25 ]  Mapa de Usos do Solo

USO DO SOLO 78

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0

250

500

1.000 m


O traçado urbano de Jardim Camburi é composto por uma malha viária ortogonal, seccionada por alguns eixos diagonais. As quadras possuem dimensões variadas e mantêm o caráter ortogonal, excetuando-se o conjunto habitacional Atlântica Ville (na ponta leste) que foi implantado sobre a encosta, seus edifícios se alinham à topografia e ao longo de um sitema viário que segue uma lógica própria e indiferente ao desenho urbano do entorno. A comparação entre os espaços públicos e privados do bairro Jardim Camburi revela uma grande desproporção, tendo em vista que são escassos os espaços livres de praças e parques (conforme figuras 20 e 21). Muitas praças têm forma de triângulo e derivam de “sobras” da malha urbana que, ao contrapor diagonais à malha ortogonal, retalhou as pontas de quadras. Os espaços destinados ao uso público de maior destaque são o Parque Fazendinha, na região Norte do bairro, e o Parque Botânico da Vale (de propriedade da empresa Vale e aberto ao público). O parque edificado apresenta uma grande variedade de formas e de densidades, tendo em vista a diversidade das tipologias arquitetônicas presentes na localidade. Essas tipologias, por vezes, são determinantes das ambiências, que serão analisadas adiante. A porção mais ao norte do bairro - a partir da rua Vitorino Cardoso -, região conhecida como “Santa Terezinha”, concentra a maior parte dos lotes vagos, configurando uma ocupação mais rarefeita.

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ENCOSTA DO BAIRRO DE FÁTIMA

PARQUE URBANO FAZENDINHA

MUROS DO TERRENO DA INDÚSTRIA SIDERÚRGICA VALE

10

9 GRADE DE DEMARCAÇÃO DO TERRENO DO AEROPORTO 8

7

4 2 1 3 AVENIDA DE FLUXO INTENSO METROPOLITANO

5 6

Figura 26:  O bairro como um patchwork composto da soma dos retalhos de ambiências 80

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Este mapa sintetiza a apreensão e a percepção do território. O patchwork de Ambiências tem como objetivo remontar os retalhos que compõem o bairro, revelando os fatores determinantes de cada uma dessas ambiências e propiciando a leitura geral do bairro. Acompanha essa aproximação o conjunto palavras-chaves que remetem a cada um desses retalhos e suas correspondestes ambiências, uma sequência de imagens e colagens que tenta traduzir as sensações percebidas na aproximação com o bairro em estudo, Jardim Camburi (ES).

PARQUE BOTÂNICO VALE COSTÃO DA VALE 2

4

AMBIÊNCIA 2_ MIOLO EXPANDIDO edifícios com embasamento de garagem, carros estacionados, obras, casas entre edifícios, calçadas estreitas, praças, pessoas, comércios variados, chorinho, supermercados, vendedores ambulantes AMBIÊNCIA 4_ AV; NORTE-SUL aridez, torres altas, fluxo intenso de veículos, ruas bloqueadas, ruído dos carros, vazios, muros, insegurança, calor

1

AMBIÊNCIA 1_ MIOLO DO BAIRRO casas abertas para a rua, carros estacionados, paralelepípedo, calçada estreita, fluxo de carros, árvores, comércio local, respiro

3

AMBIÊNCIA 3_ TRANSIÇÃO NORTE-SUL edifícios, casas, paralelepípedo, quebramolas, carros estacionados, calçadas pequenas

5 AMBIÊNCIA 5_ condomínios, grades, muros, encosta do parque, tédio, insegurança, automóveis estacionados, comércios de bairro

6 AMBIÊNCIA 6_ RES. ATLANTICA VILLE 7 AMBIÊNCIA 7_ becos, encontros, apartamentos condomínios, muros prolongados, grades, térreos, muro da vale, skate, encosta, convergência de comércios e serviços, vento, labirinto, muros encosta da Vale, rua de lazer noturno 8 AMBIÊNCIA 8_ proximidade com a Avenida Norte e Sul, casas muradas, calçadas estreitas, zona 30, enclausuramento, monótono

9

AMBIÊNCIA 9_ casas, zona 30, unidade de vizinhança, comércio local, edificios de baixa densidade, pausa

10 AMBIÊNCIA 10_ SANTA TEREZINHA aridez, construções, muros, vazios, edifícios murados, encosta de Bairro de Fátima, automóveis estacionados, parque, estacionamento, feira orgânica, caminhões Inquietações Urbanas | Ações projetuais em Jardim Camburi

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tipologias arquitetônicas sobre os contornos dos espaços privados Os muros, os pilotis, os portões de vidro, as varandas, o embasamento, as varandas no pavimento térreo e as mesas nessas varandas, os jardins frontais, os gradis, as vitrines, os bares junto às casas, as guaritas com seus porteiros, os vazios e tantas outras formas arquitetônicas circunscrevem a esfera privada e, por outro lado, e a isolam da esfera pública, demarcando no ambiente urbano áreas acessíveis (a um público selecionado) ou impermeáveis (aos demais). Desse modo, a arquitetura interfere na qualidade do espaço público. Devemos considerar a qualidade dos espaços das ruas e dos edifícios relacionando-os uns aos outros. Um mosaico de inter-relações – como imaginamos que a vida urbana seja – requer uma organização espacial na qual a forma construída e o espaço exterior (que chamamos rua) não apenas sejam complementares no sentido espacial e, portanto, guardem uma relação de reciprocidades, mas ainda, e de modo especial – pois é com isto que estamos preocupados – na qual a forma construída e o espaço exterior ofereçam o máximo de acesso para que um possa penetrar no outro de tal modo que não só as fronteiras entre o exterior e o interior se tornem menos explícita, como também atenue a rígida divisão entre o domínio privado e o público. (HERTZBERGER, 1999, p.79)

Assim, para que o espaço público seja dotado de urbanidade é necessária uma dependência dessa relação entre casa e rua, e, quanto mais fluída essa relação, melhor será a urbanidade. Isso deve ocorrer em dois âmbitos: no âmbito formal, de modo a garantir a permeabilidade, seja visual ou física; e no âmbito da vivência

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ur-ba-ni-da-de (latim urbanitas, -atis) cotidiana, relacionado às atividades domésticas que ultrapassam os limites da casa e que a interligam à rua a partir do sentimento de pertença que se desenvolve no habitante ao se apropriar do espaço público. Em outras palavras, a urbanidade depende tanto de fachadas ativas como do ato de habitar que transcende a moradia. No processo de aproximação com o território focado neste trabalho, caminho na tentativa de apreender os reflexos do corpo em resposta a cada tipologia arquitetônica que presencio, atento aos cheios, aos vazios, às formas de utilização de cada tipologia e às possibilidades de comunicação entre o dentro e o fora.

1. Qualidade do que é urbano. ≠ RURALIDADE 2. Vida de cidade. 3. [Figurado] Cumprimento das regras de boa educação e de respeito no relacionamento entre cidadãos. = AFABILIDADE, CIVILIDADE, CORTESIA ≠ DESCORTESIA, INDELICADEZA “Urbanidade”, in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2013, http://www. priberam.pt/DLPO/Urbanidade [consultado em 23-03-2015]. ______________ “Qualidade que de alguma maneira poderia ter equivalentes na arquitetura e no desenho urbano das cidades, ampliando a capacidade destas em promover ou facilitar o encontro e a co-presença de pessoas das mais variadas origens, em espaços legitimamente públicos” (HOLANDA, 2002, p. 126).

[27 ]

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[28 ]

O contato mais imediato entre a rua e as tipologias residenciais presentes em Jardim Camburi acontece, sobretudo, nas CASAS COM GRADIS OU FECHAMENTOS DE VIDRO. Os gradis ou o vidro permitem a comunicação visual entre dentro e fora. A imediatez dessa interação e a curta distância permitem enxergar até mesmo as feições de quem está do outro lado. Essa tipologia sempre traz consigo uma mesa, um banco, uma rede ou uma janela na frente da casa. Assim, sinto que existe a possibilidade de ser vista, o que transmite uma sensação de segurança, do mesmo modo como posso visualizar os moradores e perceber suas práticas cotidianas nos seus espaços privados.

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[29 ]

Na CASA MURADA, a conexão casa-rua se restringe às aberturas de passagem de pedestres e veículos, em sua maior parte com dimensões mínimas. A maior concentração de casas desse tipo está relacionada à proximidade com as avenidas de fluxo intenso, onde o muro fundamenta o isolamento da insegurança representada pela avenida. Para quem está do lado de fora, a sensação é de insegurança e tédio, não há nada a ser explorado. O passo acelera.


[30 ]

Os edifícios residenciais de baixa densidade possuem, em média, 5 pavimentos e pilotis. Os CONDOMÍNIOS GRADEADOS carregam essa possibilidade de interação horizontal entre dentro e fora, mas a sensação de conforto ao estar do lado de fora é reduzida pelo fato do térreo ser ocupado por estacionamentos, normalmente isento da permanência de pessoas. Esses edifícios normalmente possuem afastamentos mínimos o que significa um contato mais direto com a rua a partir das janelas.

[31 ]

Os CONDOMÍNIOS MURADOS geram a mesma sensação da casa murada, o contato direto é com o muro e este é prolongado nesses edifícios, proporcionando maior sensação de insegurança e monotonia. Quem está na calçada entre o muro e os carros mal consegue visualizar quem passa do outro lado da via, é como se estivesse enclausurado.

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[32 ]

A TORRE RESIDENCIAL COM EMBASAMENTO PARA ESTACIONAMENTO E LAZER é a tipologia mais implementada no bairro Jardim Camburi. Os edifícios novos, em sua maioria, assumem essa forma, com dois ou três pavimentos destinados a garagens servindo de embasamento para as torres residenciais. Possuem fechamentos cegos prolongados e altos, térreo sem permeabilidade e sem contato moradores e transeuntes. Esses fatores provocam desconforto para quem está do lado de fora, visto que estabelecem bloqueios na cidade, impedindo a relação entre a escala do edifício e a escala humana.

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[33 ]

Uma variação da tipologia citada anteriormente é a da TORRE RESIDENCIAL OU COMERCIAL, COM EMBASAMENTO DE ESTACIONAMENTO E FRENTE COMERCIAL. As vitrines minimizam o impacto do embasamento e tornam essa fachada permeável visualmente, porém não há possibilidade de circulação, como no caso de galerias térreas. Fora dos horários comerciais, quando as vitrines se apagam, o desconforto se descortina e prevalece o distanciamento entre privado e público. As formas arquitetônicas com embasamento de garagens e alta densidade, além de imporem impedimentos de acesso ao espaço público, destoam das tipologias pré-existentes no bairro de casas e condomínios de baixa densidade.

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As tipologias comerciais, quando associadas a usos divergentes e atuando em horários diferentes, proporcionam maior sensação de segurança durante todo o dia.

[34 ]

TIPOLOGIA MISTA COMÉRCIO E SERVIÇOS

[35 ]

TIPOLOGIA MISTA USO RESIDENCIAL E COMÉRCIO

[36 ]

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ESTACIONAMENTO ESPAÇO SUB-UTILIZADO


De uma forma geral, os muros, sejam em casas, edifícios, lotes vagos ou indústrias, são formas de bloqueio rígido entre o limite público e o privado, que permitem uma falsa sensação de segurança, segregando as pessoas e os espaços. A consequência disso é um espaço público árido e cada vez mais desocupado, desencadeando uma maior insegurança. A disseminação dessa tendência que segrega a esfera pública da privada compõe um conjunto de estratégias denominada desurbanismo. O resultado é a desurbanidade, que [...] [...] numa definição mais ampla, acontece quando o ambiente construído e suas estruturas auxiliares, isto é, sistemas de transporte entre outros, impedem ou pelo menos restringem encontros e a co-presença entre pessoas de classes ou estilos de vida distintos, separandoas em espaços privados ou semipúblicos segregados, dentro de um sistema probabilístico no qual essas pessoas, em suas rotinas, tendem a não usar ou passar pelos mesmos lugares (FIGUEIREDO, 2012, p. 217)

Essas práticas, bem como as tipologias ditas desurbanas, se ploriferam na cidade pela difusão do discurso do medo do crime, somado às possibilidades em aberto na legislação em vigor. Indiferentemente a isso, o Plano Diretor Urbano de Vitória, no que se refere ao bairro Jardim Camburi, não estipula limite de altura em algumas áreas e, além disso, incentiva a implementação de estacionamentos nos pavimentos inferiores, conforme veremos adiante nas considerações sobre a legislação.

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TÃO LONGE, TÃO PERTO sobre bordas e limites Penso que esta temática tenha vindo à mente de imediato, logo nos primeiros passos durante a deriva, e rodeou o exercício em Jardim Camburi a todo tempo. As bordas são os primeiros referenciais que saltam aos olhos e guiam a imersão no território, produzindo sensações ambíguas, por ora enclausura o bairro aproximando vizinhos, e ora cria fragmentos no interior do bairro distanciando os mesmos. Os limites externos são bem marcados e por vezes impermeáveis, não há como não perceber que estamos saindo do bairro, seja pela abertura promovida pela orla de Camburi para o oceano, seja pelo caos e aridez da Avenida Norte-Sul, somados ao vazio do aeroporto que a margeia, seja pelas encostas que dão acesso ao bairro de Fátima ou delimitam a área industrial. Existem, também, outras bordas internas ao bairro, pouco mais frágeis ou menos perceptíveis, mas que delimitam as unidades ambientais fragmentando-as bem como ao bairro. Essas bordas, são avenidas de fluxo intenso de automóveis, inclusive de ônibus intermunicipais, como a Avenida

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Carlos Martins, a Avenida Armando Duarte Rabello e a Rua José Celso Cláudio. As bordas das unidades ambientais são elementares na conformação das ambiências, pois as mesmas suturam o bairro, delimitam ilhas ambientais e distanciam essas unidades umas das outras. É como se existissem bairros dentro do próprio bairro, fragmentados por avenidas que nas suas imediações irradiam aridez e hostilidade contra a permanência, propagando o movimento que as regem. As bordas que equivalem às extremidades do bairro são muito rígidas e criam um distanciamento do bairro em relação à cidade, Vitória. Esse distanciamento está mais vinculado ao imaginário do que aos quesitos físicos propriamente ditos. O aeroporto desconecta o Jardim Camburi do de seu entorno em cerca 1,5 quilômetro, o que equivalente à frente do terreno do aeroporto voltado para a orla de Camburi. Essa é uma das duas possibilidades de conexão do bairro com a capital, a segunda se faz pela BR 101 e é ainda mais

Figura 37:  Vista panorâmica da encosta que divide bairro de Fátima e Jardim Camburi

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longa e, por ser uma rodovia, é mais inóspita ao pedestre. Entendo que o vazio representado pelo terreno aeroportuário cria uma interrupção na cidade, gerando uma sensação de isolamento, o qual é ainda maior no imaginário. Isso se deve ao fato de que Jardim Camburi é um bairro com predominância de uso residencial, e a maior parte dos comércios e serviços foram surgindo aos poucos para atender às demandas dos moradores locais. Assim, o bairro tem poucas ligações diretas com moradores de outras localidades, o que acentua essa noção de afastamento e desconhecimento. De fato, as conexões são recentes, tal qual a ocupação do bairro. Segundo Mendonça (2010) foi na década de 1970 que se abriu o acesso ao bairro pela orla. Para quem reside em Jardim Camburi, essa distância é superada diariamente e pouco perceptível. Entendo que o limite imaginário é mais consistente do que o real, assim como no filme “Tão longe, tão perto” de Wim Wenders, cujo cenário é a Berlim já reunificada, mas que ainda persiste dividida no imaginário dos habitantes, já que os moradores de Berlim oriental mantinham resistência em circular na porção ocidental, e vice-versa. A moradora do bairro e ex-líder comunitária Célia Monteiro narrou que, quando se mudou para o bairro na década de 1970, seus filhos perguntavam: “mamãe, o que a gente veio fazer nesse buraco?”. Tempos atrás, ao cogitar sair do bairro, seus filhos já não apoiaram a ideia, “eles cresceram aqui e agora aqui tem tudo”. Com o crescimento do bairro, as conexões foram melhorando, o leque dos

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serviços prestados aumentando e esse distanciamento diminuindo para quem vivencia a localidade. A tendência no processo vigente de crescimento do bairro é que se criem mais empreendimentos com escala divergente da escala local, tanto em relação ao adensamento pela verticalização, como em relação à abrangência de usuários dos comércios e serviços lá encontrados cada vez em maior número. Essa transformação traz novas pessoas circulando no interior do bairro, mais moradores e visitantes, pois atrai comércios que se sobrepõem aos comércios de bairro. E assim, as relações de bairro que dependiam da rede de sociabilidade promovida pela unidade de vizinhança tendem a se dissolver. A sensação de isolamento do bairro em relação à cidade potencializa o reconhecimento entre vizinhos, visto que maior parte das pessoas que circulam no seu interior tem uma relação cotidiana com o local. E esse reconhecimento é imprescindível para a manutenção das relações de sociabilidade. Ao mencionar a violência urbana que chegou atrelada às facilidades de conexão e a cidade, a citada moradora Célia Monteiro afirma: “nós pagamos um preço muito caro pelo desenvolvimento”. Em tempos de queda das barreiras espaciais devido ao desenvolvimento das tecnologias de transporte e comunicação, a clareza dos limites do bairro implica no maior reconhecimento do morador como alguém pertencente à localidade. Por outro lado, é evidente que os moradores de Jardim Camburi não se restringem ao mesmo, uma vez que habitam (e se utilizam de) outros pontos da metápole por diversos motivos, o que reforça a necessidade que Inquietações Urbanas | Ações projetuais em Jardim Camburi

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esses e todos os habitantes urbanos contemporâneas têm de boas conexões entre bairros. E quando essas conexões são ineficazes, presumem um maior tempo gasto em deslocamentos e significam menor tempo livre para o ócio ou para a vivência no espaço público. Desse modo, se faz necessário um plano de mobilidade eficiente, fundamentado em um transporte público de qualidade, visando atenuar o uso dos veículos particulares e minimizar os tempos de deslocamento. Isso pressupõe também a diminuição de barreiras e bordas tanto internas quanto externas ao bairro.

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Figura 38:  Avenida Norte-Sul

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LABIRINTO Sobre cegueira e desorientação Após cada visita, tento organizar na mente tudo o que presenciei de modo a dar sentido ao que vi, sem menosprezar nem banalizar o que quer que seja. Nessa associação de pensamentos, e ainda sentindo-me perdida após algumas derivas, tudo o que me ocorre na mente é que o bairro e partes dele assemelham-se a um labirinto, por fatores diferentes que remetem a duas sensações divergentes. A primeira dessas sensações é a de enclausuramento, provocada pela repetição e da monotonia diante de tantos muros prolongados, da falta de transparência e de permeabilidade, devido à impossibilidade de adotar rotas alternativas, e à rigidez dos limites impostos pelos espaços privados. Via-de-regra, estes se configuram em lotes sem recuos, sem surpresas, seguindo uma linearidade e uma regularidade entediantes. Os muros nos colocam na condição da cegueira, a qual não nos deixa ver a cidade para além dos limites dos domínios privados. Essa ideia nos remete ao clássico labirinto da mitologia, onde Dédalo constrói caminhos idênticos e simétricos, sem deixar pistas para o reconhecimento do caminho de saída. Nesse conceito de labirinto, denota-se maior importância à saída, ao fato de se sair da clausura, muito mais do que ao percurso propriamente dito. A segunda sensação está ligada à desorientação, a qual me acompanha nas caminhadas do bairro mesmo quando não estou praticando o exercício da deriva. Essa ideia remete ao labirinto irregular e dinâmico, permeado de detalhes. Em Jardim Camburi, reconheço que essa sensação não se deve ao traçado, que é ortogonal, mas à falta de eixos de convergência bem marcados,

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resultantes da confluência de localidades, atividades e pessoas que se tornam referência de localização. As atividades estão espalhadas pelo bairro, e seu próprio desenho urbano dificulta a orientação, não atraindo comércios de grande porte para o seu interior. Esse fato remete ao conceito de labirinto unitário que, segundo Lopes (2010), aproxima-se da imagem dos protótipos urbanos de Hélio Oiticia e de Constant Nieuwenhuys. Em suas obras, respectivamente denominadas Penetráveis e New Babilon, ambos fazem uma crítica ao urbanismo planificado, sobretudo quando homogeneizador do espaço, e propõem o labirinto orgânico, dinâmico e irregular, com a pretensão de despertar um novo comportamento entre indivíduos e espaço, ou ainda de caracterizar a vivência e a experimentação por meio da movimentação no espaço. Desse modo, propõe que o labirinto seja um espaço a ser explorado e não percorrido em busca da saída, como sugere a conceituação clássica de labirinto. Os labirintos de Constant e de Oiticica têm como referências as ocupações de caráter espontâneo, os acampamentos de ciganos, bem como as favelas. Este labirinto dinâmico, ao colocar o indivíduo diante da sensação de desorientação, propicia uma nova maneira de se percorrer o território, de se desvendar cantos, surpresas e singularidades do lugar. “Por que foi que cegamos, Não sei, talvez um dia se chegue a conhecer a razão, Queres que te diga o que penso, Diz, Penso que não cegamos, penso que estamos cegos, Cegos que veem, Cegos que, vendo, não veem” (SARAMAGO, 1995) 97


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Inquietações Urbanas | Ações projetuais em Jardim Camburi Figura 39:  Condomínio Village Camburi

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BAIRRO CAMBIANTE sobre transformações e estranhamento Tapumes, caçambas, anúncios imobiliários, caminhões de frete, surpresas de se deparar com algo ainda não visto, sejam as novas torres de edifícios, lojas ou restaurantes recém inaugurados são presenças constantes no cenário do bairro. Essa percepção evidencia que Jardim Camburi sofre processos subsequentes de transformação da paisagem urbana e de adensamento populacional intenso. As mudanças estão impregnadas no território. Os novos empreendimentos pulverizados pelo bairro contracenam com as residências que já estavam ali estabelecidas anteriormente.

As

edificações

recentes

ocupam

praticamente a totalidade dos seus lotes, incluindo o embasamento para usos e atividades não residenciais - garagens, áreas de lazer, intalações comerciais etc.-, preenchendo a cidade com diversas barreiras. Nos retalhos do bairro onde o ritmo ainda é de pausa, me deparei com um ou outro comércio que assinala mudanças referentes à modificação do uso da edificação, antes residência, agora comércio ou ponto de prestação de serviços de pequeno porte. Esta mudança quando pontual, acredito que seja positiva por diversificar o uso e trazer à região o movimento de pessoas em diversas horas do dia. Infelizmente, são poucas as unidades ambientais caracterizadas por ritmos suaves, prevalecendo na memória as ambiências repulsoras. A impressão é que a verticalidade e a obstrução engolem o urbano.

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Figura 40:  Caminhão de frete


Em paralelo, observo os anúncios alarmantes publicados em jornais impressos no ano de 2014, os quais destacam o crescimento do bairro com a expectativa de implantação de 1.6662 novos no bairro para os três anos conseguintes, seguido das mudanças no trânsito que visam minimizar os problemas de congestionamento de automóveis. É notório que Jardim Camburi é alvo da exploração massiva dos agentes econômicos, sobretudo porque ainda é passível de novos empreendimentos da voraz exploração imobiliária. Diante do inchaço populacional que ocorre no bairro, a gestão municipal propõe apenas medidas paliativas, como a implantação do sentindo binário nas vias. De fato, este projeto apenas abriu a possibilidade de mais vagas para estacionamento de automóveis nas ruas. Vale salientar que não cabe neste estudo uma repulsa a todo custo ao adensamento populacional, até porque muitos pensadores urbanos acreditam no adensamento inteligente como solução sustentável para o crescimento das cidades, de modo a respeitar aspectos ambientais, sociais e de logística urbana. Na contramão da ocupação intensiva, a ocupação extensiva do território transcende áreas destinadas à preservação ambiental e paisagística, além de requerer infraestruturas e aumentar as distâncias a serem percorridas. O que pontuo como aspecto negativo do modo de ocupação intensiva se refere à falta de planejamento atrelado à implantação de transporte público de qualidade, o que impulsiona a inserção de mais automóveis particulares na cidade. Um outro ponto e não menos importante, é questionar o modelo desse crescimento em termos das ambiências arquitetônicas e urbanas produzidas.

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O crescimento do bairro em estudo tem como modelo a máxima exploração do terreno permitida pela legislação urbana. Desse modo, aumentam-se os bloqueios das ruas e diminue-se a interação entre espaços públicos e privados, deteriorando-se o ambiente urbano. No mais, as mudanças, sobretudo as que correspondem à verticalização, se sobrepõem ao tecido existente e impõem à localidade uma nova cadência no bairro, que provoca o estranhamento discutido anteriormente. Se os agentes privados se valem da máxima exploração permitida pela legislação, isto atribui a responsabilidade ao Plano Diretor Urbano de ser mais restritivo e mais preocupado com a qualidade ambiental urbana. 2.  PEDROZA, D.; DIAS, P., Bairro vai ter mais 1666 imóveis. Tribuna, Vitória, 25 nov. 2014. Economia, p. 27

[41 ]  O Residencial Jardins inaugurou neste ano em Jardim Camburi 393 novas unidades habitacionais. Além dos apartamentos, o empreendimento oferece aos moradores mais de 40 opções de lazer no interior e aos usuários das ruas no entorno um muro prolongado. Essa edificação representa o modelo vigente de adensamento do bairro.

103


EVOLUÇÃO URBANA sobre expansão e adensamento

[42 ]

FINAL DA DÉCADA 1960 DÉCADA DE 1970

[43 ]

DÉCADA DE 1990

MEADOS DE 2000

Expansão da área ocupada,

Primeiros loteamentos

Inicia-se a ocupação da

ocupa-se desta vez utilizando

realizados destinanaram-

região “Santa Terezinha”,

as tipologias de conjuntos

se a construção de

com a implementação

habitacionais de até 5

aproximadamente 200 casas

de edificios de até 10

pavimentos

pavimentos

em duas estapas

104

[44 ]

Inquietações Urbanas | Ações projetuais em Jardim Camburi


[45 ]

[46 ]

> DENSIDADE

ATUALMENTE

PREVISÃO

Em processo de verticalização

Adensamento intenso da av.

na primeira área ocupada do

Norte e Sul e na região Santa

bairro, mais intensamente na

Terezinha.

região Santa Terezinha e na Imediação da av. Norte e Sul.

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Jardim Camburi inicia a sua ocupação logo após a estruturação da Compania Siderúrgica Vale do Rio Doce e do Porto de Tubarão, na orla de Camburi, em fins da década de 1960. O loteamento inicial deu origem a aproximadamente duzentas residências unifaliares sem infraestrutura, de média e baixa renda. Na década de 1970, inaugura-se o acesso pela orla de Camburi, até então restrito pela BR 101, expande-se a ocupação, lançando mão da tipologia habitacional de edifícios residenciais multifamiliares, com até 4 pavimentos. Na década seguinte, surge no bairro edificações de uso residencial multifamiliar com tipologia com pilotis e 3 pavimentos tipo, algumas dessas edificações dispõem de garagem e elevador. No início da década de 1990 começaram as obras de infraestrutura viária de ligação da avenida da orla com a avenida Norte Sul, bem como obras de infraestrutura de drenagem e pavimentação do bairro. Em 1994 entra em vigor nova legislação urbana que permite a construção de edificações com gabarito de até 10 pavimentos no bairro. Tais transformações na década de 1990 intensificou o adensamento em todo o bairro e estimulou a expansão a Norte. Em meados de 2000, inicia-se a ocupação da região Santa Terezinha que implementa edificações de até 10 pavimentos na região, em paralelo, novas edificações verticalizadas surgem em todo o bairro, substituindo edificações de até 3 pavimentos. Mais recentemente, a avenida Norte-Sul inaugara edificações com mais de 20 pavimentos. A previsão que é que seguindo a legislação urbanística atual (ver adiante informações sobre o Plano Diretor Urbano de Vitória) é a intensificação do adensamento, sobretudo na região de Santa Terezinha, nas imediações da avenida Norte e Sul e da orla de Camburi, em que os parâmetros urbanísticos são menos restritivos quanto a verticalização. Dados: Mendonça (2005) 106

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1970

1978

1998

2012

Figura 47:  Evolução urbana a partir de fotos aéreas. Fonte: http://veracidade.com.br acessado em 29/03/2015 Inquietações Urbanas | Ações projetuais em Jardim Camburi

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LEGISLAÇÃO E SEUS DESDOBRAMENTOS Proponho uma reflexão sobre parâmetros urbanísticos instituidos pelo Plano Diretor Urbano (PDU) atual de Vitória, sobretudo no que se refere ao incentivo à verticalização e à ocupação de espaços privados, que resultam em tipologias arquitetônicas impermeáveis e definidoras de limites rígidos entre os domínios público e privado. - A verticalização na área de ocupação incial, que é definida como ZOC 01/04 tem origem no Plano Diretor Urbano de 1994, legislação anterior à vigente, em que se permitia a construção de edifícios de até 10 pavimentos. O PDU atual institui maior restrição à verticalização nessa zona, no entanto muitos projetos foram aprovados anteriormente a mudança da legislação. Assim, ainda hoje, continuam-se erguendo edifícios de até 10 pavimentos em toda a área. - A permissão de verticalização sem limites nas imediações da avenida Norte-Sul e da orla de Camburi, formando grandes paredões de bloqueio de ventilação para o interior do bairro. - A indução da verticalização de forma geral, sobretudo na área denominada Santa Terezinha ZOC 02/05. Jardun Camburi tem a infraestrutura e equipamentos públicos para receber esse adensamento populacional?

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Zona de Ocupação Controlada (01/04) 13 a 15m = 4 a 6 pavimentos Zona de Ocupação Controlada (ZOC 02/05) 30m = 10 pavimentos

ZPA 02

Zona de Proteção Ambiental (ZAP 02) Via Arterial (ZAR 02) Sem limitação de altura Via Arterial (ZAR 04) Sem limitação de altura

ZOC 02/05

ZAR 04

ZOC 01/04

Figura 48:  Mapa de Zoneamento Urbano, baseado no Plano Diretor Urbano de Vitória de 2006.

ZAR 02

0

250

500

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1.000 m

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- Conforme o PDU : “O primeiro e segundo pavimentos não em subsolo, quando destinados ao uso comum em condomínios residenciais multifamiliares, aos usos não-residenciais em edificações com uso misto e em hotéis e apart-hotéis, poderão ocupar toda a área remanescente do terreno, após a aplicação do afastamento frontal, da taxa de permeabilidade e das normas de iluminação e ventilação dos compartimentos.” A legislação, dessa forma, induz a implementação de estacionamentos nos primeiros pavimentos e a ocupação de quase a totalidade do terreno para essa finalidade. As exigência de vagas destinadas às garagens, sobretudo de forma progressiva em função da área do imóvel, funciona como um incentivo ao uso do automóvel particular. Em paralelo, os engafarramentos no interior do bairro evidenciam que a infraestrutura viária está esgotada, o que tende a se agravar, pois o bairro segue num ritmo de crescimento populacional de 8% ao ano (cálculo baseado nos últimos censos do IBGE).

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ESTRANHAMENTO Conheci Seu Sebastião na porta do vizinho conversando, enquanto do outro lado da rua, a sua casa encontrava-se de portão aberto. Me aproximei tirando fotos que imprimissem o contraste visual entre o edifício verticalizado e as casas da região, localizados nas imediações da Avenida Norte-Sul. Num instante ele percebeu minha presença e veio conferir o que eu estava fazendo, como quem tem interesse por tudo que se passa na localidade. Logo que me identifiquei como estudante do curso arquitetura e urbanismo, ele ironicamente perguntou “Está achando bonito esses prédios?”. Desconversei e aproveitei a brecha para ter um relato de quem vivencia a situação. Seu Sebastião mostrou um descontentamento com a inserção dos novos edifícios ao lado de sua casa, pois a enclausuram bem como as demais, isentando-as da ventilação existente anteriormente. Mas o que o deixa desconsolado mesmo é o anonimato dos moradores que ocupam aproximadamente 180 apartamentos do condomínio novo ao lado. “Um ou outro eu conheço de bom dia só. A maioria nem isso, aqui é só para [o morador novo] dormir e sair de carro mesmo”. Com a inserção desses moradores fica difícil reconhecer quem reside na localidade ou está só de passagem. Vigiar e sentir-se protegido para Sr. Sebastião demanda novas estratégias. Na contramão desse estranhamento, ele aponta para as casas ao lado mostrando conhecer cada família, ressaltando os laços de afetividade com quem compartilha a vivência do bairro por muitos anos. É como se a área fosse um dos redutos no bairro onde as relações de vizinhança ainda resistem por esforço ou hábito de moradores como Seu Sebastião.

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Dessa conversa levei a certeza de que a diferença não se resume às questões alcançadas por imagem urbana, pois abrange diversas instâncias da vida cotidiana dos cidadãos. Deixei nesse encontro o compromisso de uma visita de retorno, porque Seu Sebastião gosta mesmo é de uma conversa na porta de casa.

Figura 50:  Contraste: uma das duas torres do condomínio e Seu Sebastião sentado em sua varanda observando o movimento da rua

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Figura 51:  O bar do Gaspar fica entre um reduto de casas e edifícios de baixa densidade na ambiência 9. É ponto de encontro de moradores locais e estende-se à rua a partir do mobiliário do bar e da ornamentação para a copa do mundo de futebol. Junho/2014.

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habitar para além da moradia

Habitar tem significado aproximado ao de construir, o que quer dizer que ao contruírmos a partir de escolhas sobre o rearranjo desse espaço, estamos habitando-o. O habitar está atrelado ao sentimento de pertença e de intimidade. Quando a sensação de estar em casa transcende o espaço doméstico ocorre o que chamo de habitar para além da moradia. Em deriva, observo que entre as brechas do crescimento massivo resiste a trama do habitar. Me surpreendo com as apropriações do espaço e com os encontros casuais - na rua no bar, na mercearia ou na porta de casa - e percebo a relação de intimidade entre os habitantes e o espaço público. Sigo em busca dos rastros.

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Figura 52:  Vasos de plantas diversificados cultivados por moradores na Alameda do condomínio residencial Atlântica Ville.

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Figura 53:  Grafite realizado pelo artista urbano morador do bairro, Breno Ficore, no condomínio residencial Village Camburi. A pintura do muro contou com ajuda e apoio dos mordores.

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HABITAR PARA ALÉM DA MORADIA sobre espaço público e intimidade O projeto Choromingo acontece aos domingos pela manhã na Praça Engenheiro Renato Loyola, a qual denomino “Chinatown”, referenciando ironicamente a região urbana de Nova York, EUA, onde concentram-se restaurantes orientais,. O grupo organizador da ocupação rearranja a praça, com cobertura, mesas e banquetas móveis e, se encarrega da limpeza no final do choro. Os participantes levam cadeiras de praia, o comerciante do bar ao lado vende a cerveja e em troca disponibiliza o banheiro do estabelecimento. Daí surgem outras formas de apropriação, como o pula-pula e os vendedores ambulantes. O uso em questão resignifica o espaço público. A praça enquanto lugar produzido pelo planejamento urbano oferece poucas possibilidades, traduzidas pelo mobiliário fixo padrão de mesas de xadrez, pela cobertura restrita a esse mobiliário e pela ausência de instalações sanitárias e elétricas. Mas a apropriação aqui denotada do espaço subverte essas barreiras, adequando o lugar e imprimindo no espaço as relações sociais e o sentimento nítido de pertença, ao ver o cuidado dos participantes com o local.

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IMPRESSÕES

Figura 55:  Encosta do Parque Botânico da Vale - Rua Dep. Otaviano Rodrigues de Carvalho Figura 56:  Outro ângulo da encosta do Parque Botânico da Vale 120

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Figura 57:  A encosta do parque vista do interior do bairro. Figura 58:  A encosta do parque vista do interior do bairro. Figura 59:  Aproximação de uma das primeiras casas do bairro Inquietações Urbanas | Ações projetuais em Jardim Camburi

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Figura 60:  Rua Orlando Caliman no núcleo fundacional Figura 61:  Relação casa-rua no recorte de ambiência composto pelo núcleo fundacional 122

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Figura 62:  Enclausuramento. Beco do condomínio Village Camburi Figura 63:  Labirinto . Interior do condomínio Atlântica Ville Inquietações Urbanas | Ações projetuais em Jardim Camburi

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Figura 64:  Acúmulo de lixo impedindo a circulação de pedestres. Rua Wellington de Freitas Figura 65:  Manequim exposto do lado de fora da loja. Rua Wellington de Freitas 124

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Figura 66:  Vazio, terreno sub-utilizado, estacionamento. “Santa Terezinha” Figura 67:  Aridez e calor. Escada de conexão entre Jardim Camburi e Bairro de Fátima Inquietações Urbanas | Ações projetuais em Jardim Camburi

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vou dar uma volta em Jardim Camburi sair por aí só volto amanhã vou dar uma volta em jardim camburi andar por aí perdido aqui subir e descer rua a tarde inteira admirando as construções que me fazem surdo ficar olhando os aviões só passando só pousando só planando



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