Livro brotas, o primeiro quilombo urbano do brasil

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Brotas, O Primeiro Quilombo Urbano do Brasil


Todos os direitos reservados e protegidos pela Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998 Textos: Paula Carolina Batista Entrevistas e Pesquisa: Paula Carolina Batista Fotografias: Paula Carolina Batista, Lilian Joaquim e Arquivo de família do quilombo Brotas. Projeto Gráfico e Editoração: Paula Carolina Batista Capa: criação - Carlos Henrique Batista, foto - cidade de Itatiba e foto lupa - casa do Quilombo Brotas Tratamento de imagens: Paula Carolina Batista Orientação de Pesquisa: Professora Ieda Cavalcante dos Santos Orientação da elaboração do produto jornalístico: Professora Audre Cristina Alberguini - BATISTA, Paula Carolina - Brotas, O Primeiro Quilombo Urbano do Brasil - Itatiba (SP), 2008 - 103 páginas - Orientadoras Audre C. Alberguini e Ieda Cavalcante dos Santos - Projeto Experimental em Jornalismo - Unip - Campinas


Sumário Dedicatória.....................................................................................01 Agradecimento...............................................................................02 Apresentação..................................................................................03 Introdução......................................................................................04 Capitulo I Quilombos.......................................................................................09 Capitulo II Um abrigo dos descendentes de vó Amélia..................................13 Capitulo III De sítio para Quilombo.................................................................25 Primeiros Passos..........................................................27 O Loteamento..............................................................31 A Associação Cultural Quilombo Brotas..................35 O Reconhecimento.......................................................37 O Trabalho do Itesp.....................................................41 Capitulo IV Um Quilombo no meio da cidade.................................................45 A Consciência quilombola..........................................50 Morando em um quilombo........................................57 Entre Família..............................................................62 A diretoria da Assoc. Cultural Quilombo Brotas....65 Geração de Renda......................................................69 O Preconceito e a Relação com o Exterior...............71 A Religião....................................................................79 Mantendo um Quilombo no meio da Cidade..........84 A Cultura Africana e Quilombola............................85 Capitulo V Perspectivas para o Futuro..........................................................89 Capitulo VI Considerações Finais...................................................................101 Referências Bibliográficas..........................................................103


Dedicatória Dedico esse livro-reportagem a algumas pessoas especiais que tornaram possível meu grande sonho de ser jornalista. À minha mãe que sempre foi um grande exemplo de mulher, cidadã e mãe, que me ensinou os caminhos corretos, sempre me incentivando e patrocinando a conquista dos meus objetivos e sonhos. Ela trabalhou muito para que eu conseguisse terminar meus estudos com dignidade, garantindo, com muito afinco, minha qualidade de vida e mesmo a minha sobrevivência. Eu devo a minha felicidade à minha mãe. Aos meus irmãos, Fernanda e Carlos, que foram grandes exemplos de filhos e profissionais, nos quais eu me espelho para ser uma pessoa de bem, que cultiva a paz e a união entre as pessoas. Eles deram grande apoio à realização deste trabalho e muitas vezes foram meus guias para a compreensão de questões do cotidiano e que muitas vezes envolvia a própria comunidade de Brotas. Dedico esse livro também ao meu pai que, mesmo distante, me apoiou como pôde na realização do curso. Ao meu mestre da vida Dr. Daisaku Ikeda também dedico este livro, por me incentivar a sempre buscar a vitória, sendo um exemplo de cidadão humanista, cujos passos eu quero seguir e realizar todos os seus sonhos. Como sua discípula, pretendo sempre corresponder a seus anseios, sendo uma jornalista que promova a paz, a cultura e a educação em meio à sociedade, levando, assim, por meio da palavra, a felicidade a todas as pessoas.

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Agradecimentos Para a realização deste trabalho tive o apoio de muitas pessoas queridas, pois não se lança na realização de um empreendimento como esse, de escrever um livro, sem alicerces fortes. Não estipulei nenhum grau de maior ou menor merecimento nos agradecimentos, pois todos cada qual em sua área foram de grande importância para este livro. Agradeço a professora Ieda dos Santos, por me orientar e me direcionar na realização do pré-projeto e do relatório, que foram a base para a realização deste livroreportagem. A professora Audre Alberguini que, com muita paciência, orientou cada passo dado na construção de técnicas para que nascesse uma estrutura, uma linguagem e muitas idéias. Sou grata também aos demais professores que contribuíram para a minha formação como jornalista, ao longo desses quatro anos. Agradeço a todos os moradores do Quilombo Brotas que permitiram a realização deste trabalho dentro da comunidade. Agradeço a todas as pessoas que me concederam entrevistas e foram solícitas em revelar fatos de suas vidas pessoais para uma pessoa estranha situação, algumas vezes, constrangedora. Sempre muito receptivos, os moradores do Quilombo Brotas me ajudaram a compreender a história daquele lugar e fizeram com que aumentasse o meu respeito pela comunidade. Agradeço a todos os meus tios, primos, sobrinhos, cunhados e minha avó Zulmira, que foram grandes entusiastas deste trabalho, fator que, muitas vezes, foi o impulso para que eu não desistisse e continuasse lutando para corresponder dignamente a todos os seus anseios. Aos meus grandes companheiros da BSGI (Brasil Soka Gakkai Internacional), que me deram total apoio e incentivo para que, mesmo com as adversidades encontradas no decorrer do caminho, eu continuasse lutando para conquistar a vitória no final. Agradeço por compreenderem minha ausência em alguns momentos e por tomarem as rédeas nos momentos em que eu estava impossibilitada de cumprir com a minha luta pela paz mundial. Sou muitíssimo grata pela paciência e compreensão que Daniel Paulino teve durante a realização do livro-reportagem. Superar a distância, a falta de tempo e de paciência fez com que nosso relacionamento se fortalecesse muito mais.

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Apresentação A relação entre jornalismo e história é antiga e complexa. Ambos produzem narrativas e saberes fundamentais que contribuem para desvendar a aventura humana. Ao jornalismo cabe focalizar os acontecimentos, cuja natureza pode transcender o cotidiano sobre o qual os jornalistas se debruçam, fornecendo, assim, matéria-prima essencial para a compreensão da história. De fato, todos os grandes estudos históricos contemporâneos são construídos com a contribuição do jornalismo. A riqueza dessa relação é tamanha, que ocorre do próprio jornalista aprofundar a investigação dos fatos, valendo-se da pesquisa documental. O livro-reportagem Brotas, o primeiro quilombo urbano do Brasil, fruto de um árduo trabalho jornalístico e de pesquisa documental, é um dos exemplos da relação frutífera entre jornalismo e história. Trata-se de uma obra que não apenas apresenta um relato sobre o processo de constituição do primeiro quilombo urbano reconhecido enquanto tal no país, mas também revela ao leitor o ponto de vista dos principais atores sociais envolvidos. O resultado do trabalho apresenta um universo multifacetado e complexo, capaz de derrubar mitos e fragilidades do senso comum. Essa abordagem, marcada pela apuração rigorosa e aprofundada, deveria ser característica de toda prática jornalista. É importante assinalar que esse tipo de produção jornalística está na contracorrente das práticas contemporâneas da grande imprensa, em cujo contexto a notícia rápida é valorizada e a atuação investigativa do profissional de imprensa depara-se com fortes barreiras. Esse quadro ameaça esvaziar a atividade profissional e empobrecer o papel histórico do jornalismo. Paula Carolina forma-se, assim, na boa tradição. Seu trabalho é rico e demonstra que o bom jornalismo continuará resistindo ao atrair o empenho e a seriedade de profissionais das novas gerações.

Ieda Cavalcante dos Santos

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Introdução A definição dos moradores da comunidade de Brotas, localizada na cidade de Itatiba, interior do estado de São Paulo, como quilombolas ocorreu em 23 de março de 2003, na inauguração da Associação Cultural Quilombo Brotas. Geração após geração aquela comunidade vive ali há mais de dois séculos. As pessoas do lugar têm uma relação de afeto com aquele espaço que, principalmente entre os mais velhos, as remete a lembranças da infância e de familiares que já faleceram. Desde a vinda da família Lima para aquelas terras até hoje, o sítio Brotas, assim chamado desde antes do reconhecimento como quilombo, passou por várias transformações geográficas, internas e externas. Era, antigamente, afastado da cidade. Hoje, está cercado por bairros que foram ocupando todo o espaço em volta do sítio. O crescimento desordenado da cidade de Itatiba derrubou diversas árvores ao redor do Quilombo, para que várias casas fossem construídas. Um morador da comunidade quilombola conta que ele ainda se lembra de quando, em volta do sítio, havia um eucaliptal, além de muitas outras árvores. Há alguns anos, com a especulação imobiliária, aquele espaço quase deixou de existir, pois, provavelmente, seria englobado por algum loteamento construído ao redor. O que ocorreu no interior do sítio Brotas não foi muito diferente do ambiente externo. Os filhos, netos e bisnetos dos genitores daquela família foram crescendo e muitos, sem condições de manter uma moradia na cidade, tiveram, por necessidade, que morar nas terras da família. Esse livro-reportagem construiu uma narrativa baseando-se em histórias orais dos moradores do Quilombo Brotas e valorizando-as para contar a trajetória histórica e territorial pela qual esse grupo passou durante mais de um século. Com isso foi possível privilegiar outro ponto de vista e dar espaço para vozes freqüentemente esquecidas pelos discursos oficiais. O modo como eles vivem hoje, seus conflitos, as preocupações e a relação familiar com o espaço e com a história do lugar, também são questões que fazem parte desta obra. A escolha por realizar o projeto experimental de conclusão de curso sobre o Quilombo Brotas surgiu da identificação com a comunidade. Por eu ser negra e não ter viva em minha família a memória de meus antepassados escravos, fui em busca de algo que me remetesse à minha ancestralidade escrava. No início, a idéia de escrever era para tentar me aproximar de uma história que também era minha, mas que a minha família não tinha para contar. Queria conhecer a história de um povo que viveu por muitos anos oprimido, sofrendo com a exploração, os castigos, e que via na fuga a única esperança de liberdade e de voltar à terra de origem. Mas não foi isso que encontrei no Quilombo Brotas. As histórias que ali percorrem não remetem ao tal passado que eu queria encontrar. Além disso, a trajetória histórica daquelas famílias fez com que as lembranças dos grilhões não fossem tão relevantes. A princípio, isso me frustrou, mas, com o desenrolar do trabalho, percebi que, 04


ao longo dos anos, todo o povo negro, morador de um quilombo ou não, vem construindo uma trajetória de resistência, inclusive eu. Passei a dar valor à história da minha própria família que veio resistindo e batalhando durante todos esses anos para que hoje eu pudesse me formar em um curso universitário. Depois, fiquei aliviada de não ter que colocar neste livro-reportagem lembranças tão tristes de todo o sofrimento que o povo negro sofreu no passado. Não porque não achei importante, mas porque acredito que hoje devemos prezar as histórias de superação e não mais de sofrimento. Os relatos encontrados neste livro-reportagem mostram como essa comunidade veio resistindo até hoje, seus conflitos, a relação com o exterior, com o passado e com o futuro. Por ter uma visão externa do quilombo Brotas, pois não pertenço à comunidade, meu objetivo não é de agradar ou desagradar as pessoas que lerem este livro, mas sim de cumprir meu papel como jornalista, que é mostrar a verdade.

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(...) “Por que no Brasil surgiu uma cultura popular tão autêntica e cheia de paixão? Ela é a flor e o fruto de sua turbulenta história de quinhentos anos. O anti-humanismo, o terror da opressão, a fibra de seu povo soube vencer.

Essa é sua origem. Nasceu do sofrimento e da perseverança que venceu a cobiça secular em busca do ouro. Por isso proclama orgulhoso: - Sou teu povo heróico e imbatível!

Por maior que seja o poder, por mais forte que seja a violência, nada poderá dominar a alma altiva do homem.

Um povo autêntico pode até ser humilhado, mas nunca destruído. Quanto mais escarnecido, 06


mais forte se levanta.

A história da humanidade aguarda perseverante, como aurora que se ergue, a vitória de um povo sobre seus opressores. Sua gente heróica move a história e é a força que abrirá o futuro.

Jorge Amado, o mestre da literatura brasileira, enaltece a convivência harmoniosa das raças como a dádiva mais rica dos brasileiros para a causa do humanismo.

Qual o bem fundamental que pode o homem deixar para o futuro da humanidade? Tão simplesmente o rumo, o claro e seguro rumo, para a conquista mais digna da condição humana: a convivência solidária das raças”. (...) Trecho do poema “Brasil Seja Monarca do Mundo”, de Daisak Ikeda. 07


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Quilombos

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A palavra quilombo origina-se da língua banto e tem o significado de habitação, acampamento, floresta e guerreiro. Já na região central da Bacia do Congo, significa “lugar para estar com Deus”. Segundo o livro “Quilombola Tradições e Culturas de Resistência” de Rafael Sanzio Araújo dos Anjos, no Brasil os negros reconstróem no quilombo um tipo de organização territorial de origem africana, e este lugar funcionava como uma verdadeira válvula de escape para diluir a violência da escravidão, durante os quase quatro séculos em que se mantiveram as tensões e confrontos de classes no sistema escravista. Os escravos buscavam nesse lugar por uma proteção e segurança, como também por igualdade de condições e liberdade de acesso à terra. A organização territorial dos antigos quilombos recebia as referências das comunidades existentes na África e as influências marcantes dos povos indígenas. Existiam tipologias variadas nas diferentes comunidades quilombolas, entretanto naquela época, algumas características geográficas eram comuns à sobrevivência de matrizes africanas e de povos indígenas. Havia uma estrutura política bem definida, cada família era gestora de uma parte da terra quinhão. Havia um conselho para deliberar e agir sobre os vários segmentos organizacionais do quilombo. Hoje algumas comunidades constituem quilombos contemporâneos, que não representam mais um espaço de fuga, estrategicamente isolado. Esses territórios foram construídos em fazendas falidas ou abandonadas, terras compradas por escravos alforriados, obtidas por doações, terrenos religiosos, adquiridas por prestação de serviços em guerras oficiais entre outros. “O conceito de comunidade quilombola, portanto tem origem no campesinato negro, povos de matriz africana que conseguiram ocupar uma terra e obter autonomia política e econômica. Ao quilombo contemporâneo está associada uma interpretação mais ampla, mas que perpetua a idéia de resistência do território étnico capaz de se organizar e reproduzir no espaço geográfico de condições adversas, ao longo do tempo, sua forma particular de viver”. (ANJOS, Rafael Sanzio Araújo. - Quilombola Tradições e Culturas de Resistência 2006:53). Esses territórios emergiram com as políticas públicas afirmativas e de reparação social em um contexto de luta política, sobretudo nas conquistas e reivindicações de movimentos negros e de uma rede de entidades negras organizadas e representativas, atuantes desde os anos 80 em todo o Brasil. O primeiro cadastro dos registros municipais dos territórios quilombolas do Brasil, realizado por diversos órgãos governamentais e estaduais, universidades e movimentos negros em 1999, mostrou 840 registros de comunidades quilombolas. Em abril de 2006, os dados do Projeto Geografia Afro-brasileira, realizado pelo Centro de Cartografia Aplicada e Informação Geográfica da Universidade de Brasília (CIGA), mostrou 2.842 registros distribuídos pelos estados brasileiros. De terra sagrada e comunitária, o território dos negros passou a ter outro significado: a luta para mantê-lo, exatamente como faziam os seus ancestrais. Para garantir o direito dos quilombolas às terras, consta na Constituição Federal de 1988 no seu Ato das Disposições Constitucionais Transitórias no Art. 68: 10


“Aos Remanescentes das Comunidades dos Quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado, emitir os respectivos títulos”. Além disso, em 2003 o Governo Federal deu ao Instituto Nacional de Reforma Agrária (INCRA) a condução oficial dos processos de demarcação e titulação dos territórios quilombolas.

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Ele sempre será aquilo que é: um abrigo dos descendentes de vó Amélia

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Quando a escravidão já perdia forças na cidade de Itatiba (SP), Isaac Modesto de Lima e Emília Gomes de Lima, casal de escravos, foram libertados depois do falecimento dos donos da fazenda. Havia na cidade um local destinado ao abrigo de negros fugidos. Com o fim da escravidão, o local não tinha mais serventia e os negros que lá habitavam foram um a um tomando outro rumo. O dono das terras, vendo que não havia mais necessidade de se manter um quilombo ativo, ofereceu as terras para o casal liberto. Como Isaac e Emília não tinham dinheiro e nem bens, conseguiram, por meio de um acordo com Francisco José Rodrigues, comprar as terras do Sítio Brotas, com árduo trabalho. “A minha avó Amélia nasceu de ventre livre, mas os pais dela, Isaac e Emília, eram escravos. Como ela vivia com eles, pois não tinha outra pessoa com quem ficar, então ela vivia como escrava também. Quando estava com 12 anos de idade os pais dela foram libertos”, conta Fábio Roberto Barbosa Borges, filho de Sebastiana e neto de Amélia. Não se sabe muito sobre quem era Francisco José Rodrigues. Patrícia Scalli, antropóloga do Instituto de Terras do Estado de São Paulo (Itesp), nos informou que ele era um proprietário de terras na cidade, casado com uma índia de nome Rita Rodrigues, que fazia parte de um grupo formado por quilombolas, índios e abolicionistas que costumavam ajudar os negros fugidos das fazendas de Itatiba. A pesquisadora afirma que o lugar onde hoje moram os descendentes de Amélia, era um refúgio de escravos e que as terras pertenciam ao marido de Rita Rodrigues. Provavelmente eles não queriam a terra, pois, na época, o lugar ficava afastado da cidade. Além disso, ninguém tinha interesse porque a idéia de quilombola, na época, era de bandido e ninguém queria construir uma casa em um lugar que fora refúgio de bandido. “Por não ter muito valor, ser de difícil comercialização e os antigos donos fazerem parte dessa rede de relações, devem ter facilitado o pagamento para o pessoal da família. Isso tudo são suposições, pois não achamos nada de concreto ou pessoas da família que contassem. Não há nenhum relato oral e escrito”, conta a antropóloga. Juntamente com o casal de ex-escravos, a menina Amélia de Lima, de 12 anos, que nasceu de ventre livre, também trabalhou muito para ajudar os pais na compra do sítio. Ela era a filha mais próxima dos pais e seus irmãos, cujo número até hoje não se sabe ao certo, não tinham um vínculo forte com Emília e Isaac. Segundo os netos de Amélia, mesmo ela sendo muito nova, trabalhou na lavoura para ajudar os pais até o dia em que as terras foram devidamente pagas. Os três continuaram morando no sítio que agora lhes pertencia. O local foi chamado então de Sítio Brotas, pois quando eles chegaram ao local, perceberam havia muitas nascentes ali. Amélia tinha o sonho de ser uma modista muito famosa, conhecida em todo o país, mas seu sonho foi interrompido devido à obrigação do casamento. Mesmo contra sua vontade, ela casou-se com Fabiano Barbosa e passou a se chamar Amélia de Lima Barbosa. O casal teve dez filhos, que deram origem à maioria dos moradores atuais do Quilombo Brotas. O sítio sempre foi mantido por Amélia. Seus pais diziam que essas terras eram destinadas a ela e aos seus descendentes. A personalidade forte de Amélia ficou registrada já nessa época. Mesmo com 14


o fim da escravidão, negros não podiam usar sapatos, mas Amélia teimou e conseguiu. Comprou um vestido e mandou fazer um sapato estilo “bota de cano”, cheio de botões e casou-se de sapatos. “O sapateiro nos contava que tinha um fazendeiro muito rico que morava por aqui, de sobrenome Pupo, que tinha uma filha que todos chamavam de inhá moça Pupo. As pessoas falavam para a minha avó: 'Você vai casar de sapatos? Você não é inhá moça Pupo'. E ela respondia teimosamente: 'Mas sou Amélia e vou casar de sapatos'”, relembra Ana Tereza Barbosa da Costa, filha de Claro e neta de Amélia. Essa sua ousadia ficou marcada na vida de suas filhas e netas. Mesmo não sabendo ler nem escrever, Amélia foi para São Paulo ser ama-de-leite. Sebastiana, a quinta filha do casal, ainda era de colo e acompanhou a mãe nesta nova empreitada. Ela não tinha documentos, apenas um salvo-conduto para poder viajar, mas, mesmo assim, enfrentou o percurso de trem sem temer o desconhecido. O casamento não durou muito tempo. Após o nascimento de seu último filho, Fabiano, o marido de Amélia faleceu, deixando-a com as crianças ainda pequenas e três delas ainda estavam se recuperando de uma doença grave. Amélia tinha na época muitas dívidas e tirava o sustento da família do que plantava no sítio. Percebendo que não conseguiria pagar todas as dívidas com o que plantava na terra, decidiu trabalhar fora para poder continuar criando seus filhos. Ela foi trabalhar em uma fazenda. Lá ela roçava, capinava e plantava. Conforme o tempo ia passando, ela ia pagando suas dívidas. A labuta no campo era pesada, ela começava muito cedo e, enquanto o sol não se recolhia, ela não parava de trabalhar. Depois de algum tempo, conseguiu quitar suas dívidas e voltou para o sítio com os filhos. O fazendeiro não queria que a mulher tão dedicada o deixasse, reconhecendo que ela rendia muito mais do que muitos homens, mas Amélia sabia que seu lugar era no Sítio Brotas. Três de suas crianças morreram de tuberculose; dos dez filhos, apenas sete sobreviveram à vida difícil que levavam: Lúcia, Bento, Claro, Clara, Sebastiana, Maria Tereza e Maria Emília. Fábio conta que os irmãos de Amélia moravam na cidade e não tinham muita ligação com o sítio. “O que a Amélia falava é que ela é que estava mais ligada aos pais, os outros dois irmãos não estavam. Eu não sei de que forma eles viveram, mas sei que eles compraram casas na cidade, eles tinham boa vida”, comenta. Quando tudo estava aparentemente tranqüilo, a prefeitura da cidade chamou Amélia para dar esclarecimentos a respeito da propriedade, a fim de legalizar as terras do sítio. Como ela era analfabeta, chamou seu irmão, Felipe, que morava na cidade, para acompanhá-la, no intuito de resolver a situação. Ao chegarem ao registro de imóveis da cidade, foram indagados sobre quem eram os donos do sítio. Felipe, como não conhecia muito bem a história, deu o nome de quase todos os filhos e netos de Amélia. Tudo finalizado, eles acreditaram que tudo estava resolvido e não se preocuparam mais com essa história. Passado algum tempo, Amélia recebeu uma intimação informando sobre o montante de impostos atrasados, que não haviam sido pagos até então. Ela ficou desesperada, pois não possuía o dinheiro. Procurou imediatamente seus irmãos para 15


solicitar ajuda no pagamento, mas a resposta foi negativa. Pedro e Felipe se recusaram a ajudar Amélia, alegando que os pais sempre disseram que o sítio era apenas dela, e era ela que, até então, vinha cuidando das terras. “Vovó procurou tio Pedro e tio Felipe para eles ajudarem a pagar os impostos atrasados, pois ela não tinha como fazer, mas eles falaram como o pai deles dizia sempre, o sítio era dela, como ela viveu nele todo aquele tempo cuidando do sítio, que ela se virasse para pagar, ela que desse um jeito de arrumar dinheiro de alguma forma, pois eles tinham a casa deles, tinham a vida deles e não dependiam do sítio. Então ela saiu procurando quem pudesse ajudar”, lembra Fábio sobre o que os tios disseram na época.

foto: Arquivo Quilombo Brotas

Os filhos, Claro, Sebastiana, Bento, Lula e Terezinha, junto com a mãe, Amélia, em uma casa no sítio Brotas

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Mais uma vez Amélia teve que se desdobrar para sair de uma situação difícil, mas contava com a ajuda de seus filhos que, na época, já eram crescidos. Eles foram amparados por um amigo da família que pagou a dívida. Em troca, Amélia, além de Bento e Claro, os filhos mais velhos, orientados por esse amigo, plantaram no sítio mudas de eucaliptos. Eles encheram o sítio da árvore. Enquanto isso, todos os filhos se reuniram durante um tempo para pagar os novos impostos que iam vencendo. Cada um dava um pouquinho com muito sacrifício. Quando chegou a época de corte do eucalipto eles puderam saldar a dívida e regularizaram a situação do sítio. Os filhos já crescidos eram aconselhados por Amélia a irem trabalhar fora do sítio. Ela desejava que eles conhecessem o mundo que ela não tivera a oportunidade de desbravar e que tivessem mais recursos e conforto. Principalmente as mulheres eram encorajadas a serem independentes e que não permitissem apanhar do marido. Caso o casamento desse errado, ela sugeria que as filhas ou as netas voltassem para o sítio. Ela dizia que, mesmo após sua morte, não queria que seus descendentes fossem humilhados no emprego ou por marido, temendo passar fome, pois o sítio sempre estaria à espera para acolher quem necessitasse, já que da terra eles podiam tirar o sustento. Ana Tereza relembra os conselhos da avó. “As mulheres da minha família sempre foram independentes, minha avó sempre dizia que mulher descendente dela nunca apanhou”. Amélia instruía as netas a fazer um cômodo para o momento que surgissem adversidades. “'Quando vocês estiverem casadas eu já morri, façam um cômodo de barrote, comprem mantimentos e guardem. Em volta da casa plantem mandioca e batata'. Isso ela passou para todas as netas”, recorda com carinho a filha de Claro. Nessa época, as mulheres não estudavam, então tinham que trabalhar de empregada doméstica. Temendo que as filhas e netas sofressem maus-tratos, ela persistia. “'Se vocês forem trabalhar, se a patroa não estiver contente com o serviço e ficar fazendo desaforo, vocês não precisam ficar agüentando, nesta época, eu já terei morrido, não estarei aqui para ampará-las e cuidar de vocês. Então vocês venham para o cômodo construído. Caso se casem e se o marido quiser bater, vocês têm o cômodo. Enquanto vocês não arrumarem serviço aqui tem mantimento e os alimentos que plantaram, pois a terra não fica com nada de ninguém'. Ela passava muitas instruções para nós”, diz Ana Tereza. Lúcia, a filha mais velha, foi, mas não voltou, faleceu em São Paulo e deixou três filhos, que foram acolhidos generosamente por “vó” Amélia, que depois de criar todos os filhos ainda teve forças para amparar os netos. “Tia Lúcia, a mais velha, faleceu depois de ir para São Paulo. Ela deixou três filhos que moravam aqui com a vovó. Minha avó que acabou de criá-los, ela ficou com o encargo de instruir os três filhos de Lúcia que ficou viúva também muito cedo e depois faleceu”, conta o neto de Amélia. Ela vivia uma vida difícil, tinha que tirar todo o sustento do que se plantava na terra do sítio e dos animais que criava. Devido ao clima, algumas épocas eram de fartura, outras de muita dificuldade. Sebastiana já morava em São Paulo. Por conselho de sua mãe, saiu do sítio muito nova para trabalhar em outra cidade. Passou por muitas dificuldades para criar seu único filho depois da separação. 17


Sebastiana, mesmo com esses problemas, era uma filha muito dedicada à mãe, muito preocupada com a condição em que eles viviam no sítio. Ela enviava, periodicamente, mantimentos e dinheiro para que pudessem ajudar no sustento do sítio. Devido à precariedade dos meios de transporte e comunicação, tudo demorava para chegar ao destino, quando não era extraviado. Todos os trâmites de recebimento eram realizados por Pedro, irmão de Amélia, que morava na cidade e tinha acesso às mercadorias que chegavam à estação de trem. Sebastiana montava, durante um mês, uma cesta básica para enviar para a mãe. Já era combinado também que, no meio do saco de algum mantimento, vinha escondido dinheiro, pois, na época, não havia outra maneira de enviá-lo. Amélia buscava o pacote com mantimentos e dinheiro preparado pela filha e o trazia na cabeça. Sempre procurava empolgadamente pelos vinténs e era certeza que achava o envelopinho que vinha no meio do arroz ou do feijão. Com isso, Sebastiana se tornou a filha mais querida de Amélia, uma pessoa a quem ela podia confiar a vida e o futuro do sítio. Nessa época, a situação do sítio foi melhorando. Bento e Claro já tinham ido trabalhar fora de Itatiba e constituíram família onde estavam. Clara, depois de casada, foi morar em Suzano, no interior de São Paulo. Sebastiana, Maria Tereza e Lula continuaram em São Paulo. Todas elas sempre trabalharam em casa de família, pois era a única forma de trabalho que as mulheres negras e sem instrução tinham naquele tempo. Os três filhos de Lúcia cresceram e foram trabalhar em outras cidades. “Meu pai e tio Bento trabalharam na roça quando eram pequenos, mas depois de crescidos foram trabalhar fora de Itatiba. Tio Bento trabalhava lá em Jundiaí e meu pai cobria folgas em uma empresa em Campinas”, relembra Ana Tereza. Amélia era analfabeta, mas tinha uma visão incrível de vida. Os parentes e familiares que tinham algum problema sempre iam se aconselhar com ela, que tinha opinião e boas sugestões para todos. Claro e Bento sempre viveram pelas redondezas de Itatiba, eles moravam um tempo em Jundiaí e Campinas e depois voltavam para o sítio. Onde aparecesse serviço e moradia eles levavam a família, mas no fim terminaram a vida no sítio. Cada um tinha uma casinha de barrote no sítio e Amélia, sempre que se fazia necessário, recebia os filhos e os netos de braços abertos. “Meu pai trabalhava em Jundiaí quando a minha mãe morreu, vovó foi lá cuidar de mim, de Maria e do meu irmão. Depois meu pai casou novamente e ela voltou para o sítio. Minha madrasta morreu e ela foi novamente cuidar da gente outra vez. Se tia Sebastiana ou tia Lula precisassem, ela ia para São Paulo. Não sabia ler nem escrever, mas pegava o ônibus ou o trem e ia”, discorre a neta. Na maior parte do tempo, Amélia vivia sozinha no sítio, sempre esperando por uma visita, de amigos ou familiares. Ela constantemente pedia para os filhos e netos conservarem aquelas terras. Ela pensava muito nos descendentes que ainda estavam por vir, gostaria que o sítio fosse abrigo para eles no momento de necessidade. Ela construía, com as próprias mãos, casinhas de barro para ajudar um ou outro que viesse passar por dificuldades. Na época em que todos os netos foram embora, ela comentava que, no sítio, eram somente ela e Deus. Era católica. Freqüentava regularmente a igreja da cidade. Quando os netos 18


estavam no sítio, acompanhavam-na às missas. Muitas vezes aproveitavam esses passeios para visitar Pedro e Felipe que moravam na cidade. Quando retornavam para casa já era noite e, mesmo na escuridão, sem iluminação, eles achavam o caminho de volta. A estrada era ladeada de eucalipto e todos caminhavam juntos até adentrarem a porteira do sítio. “A gente a acompanha até a igreja. Nós, os netos, e principalmente, as moças, íamos passear e ficávamos dando voltas na praça central da cidade enquanto vovó ficava na igreja. Quando acabava a missa ela chamava todo mundo e descíamos para a casa do tio Pedro. Ela gostava muito desse irmão dela. Ficávamos lá um pouco, e depois nós íamos embora à noite, na escuridão. Era escuro mesmo, era um breu, não tinha iluminação nenhuma e nem perigo”, lembra Fábio. Ela sempre gostava de andar muito bem arrumada, dizia que o cabelo era a moldura do rosto e, já naquela época, aconselhava as netas que iam procurar emprego fora, para se arrumarem e causarem boa impressão desde o primeiro contato com a patroa. Também dizia que elas tinham que conservar uma boa roupa para quando houvesse casamentos, batizados e enterros. Mesmo sem sair muito do sítio, ela entendia muito de moda e comportamento. “Minha avó, sempre foi muito chique e ela dizia já naquele tempo, quando íamos procurar serviço, para não nos apresentarmos com roupa decotada ou com saia muito curta, ela já passava isso para a gente. Quando eu comecei a trabalhar eu comprei um pano e vim mostrar para ela, porque tudo nós mostrávamos para ela. Ela falou: 'Sabe Aninha, esse pano é muito bom, você mande em uma costureira muito boa ou em um alfaiate. Se o pano for ruim uma costureira boa valoriza, mas, se o pano é bom e você levar em alguém que não sabe fazer, daí estraga o pano'”, conta a neta. A passagem de ano era muito comemorada pela família Barbosa. O aniversário de Amélia era celebrado no dia dois de janeiro. Nesta data, todos os filhos e netos vinham para a festa, que sempre era grandiosa, devido à enorme quantidade de pessoas. Ela ficava muito feliz com toda a família reunida. “Uma época muito importante que não precisava nem marcar, pois vinham todos para o sítio, era o primeiro dia do ano. O aniversário dela era dia dois de janeiro e nós comemorávamos dia primeiro. Juntava um povão e fazia festa. Esta era a época em que todos vinham sem marcar, pois já sabiam que era o aniversário dela. Vovó ficava muito feliz com todo mundo reunido, ela até cantava”, conta Fábio, o filho de Sebastiana, que fazia questão de aparecer nessa época. Durante todo o ano, a vida no sítio era difícil. Com as dificuldades, Amélia aprendeu muito, ela plantava a maioria dos alimentos que consumia, criava animais, conhecia cada cabra de sua criação e as tratava por nome. A base de sua alimentação era leite de cabra, milho, que algumas vezes ela trocava por farinha ou fubá na cidade, inhame, feijão, arroz, mandioca, batata e diversas hortaliças. No sítio nunca faltava alimentação. Na memória de Amélia não havia nenhum resquício da cultura africana, tudo que sabia havia aprendido com os pais e com a vida. “Da cultura africana ela não guardou nada, ela cantava algumas canções em dia de festa, mas eu não lembro mais. Ela costurava, aprendeu por conta própria. Ela que fazia as roupas que usava. Ela andava sempre de saia comprida”, recorda o neto. 19


Foto: Paula Carolina Batista

Máquina de Costura de vó Amélia na casa de tia Lula

Aqueles que precisavam de um abrigo e procuravam o sítio também eram bem acolhidos por Amélia. “Vinham pessoas e chamavam-na de Nhá Amélia, eles pediam um cantinho para morar, e minha avó cedia as casas vagas dos filhos que saíam para trabalhar fora. Minha avó deixava morar, não cobrava aluguel, não cobrava nada. As pessoas quando juntavam dinheiro para alugar uma casa ou até comprar, iam embora, mas sempre nos consideravam como parentes”, a neta Ana Tereza recorda a generosidade da avó. Fabio relembra o que mais o marcou. “Minha avó tinha o costume de, toda 20


tarde, em um cômodo que nós chamávamos de varanda, uma ligação entre a sala e a cozinha, contar muitas histórias. O chão era todo de terra e no centro desse cômodo tinha tijolos que formavam um quadrado. Toda tarde quando ia escurecendo ela colocava lenha e fazia uma fogueira. Todos que estavam no sítio, os filhos e os netos sentavam no chão, como não havia televisão nem rádio, ali ficávamos conversando, contando histórias. Ela contava da família e muitas outras coisas. Esse fogo de chão era muito importante para reunir a família de noite”, rememora Fábio. E ele continua contando. “Vovó acendia um lampião de querosene, ele iluminava muito pouco, mas dava para vermos uns aos outros, pois o fogo clareava um pouco também. Ali ela fazia café, pipoca e batata doce. Às vezes não tinha nada para comer, em outras ocasiões havia. Quem dava muita vida nesse momento era tio Claro, ele era cheio de histórias, contava e fazia piadas, nós dávamos muita risada, ele era muito alegre”, narra o neto. Os netos lembram também que ao final de toda refeição, mesmo quando a comida era somente arroz, feijão e farinha, ela pedia a Deus que os filhos também pudessem ter uma alimentação. Amélia não se contentava com o seu conforto, queria que toda sua prole estivesse bem amparada. Sempre desejou que todos fossem conhecer o mundo, mas sempre esteve receptiva para os que desejassem voltar. “Não faltava alimento, pois ela plantava, era uma vida difícil, mas ela se satisfazia com essa vida. Quando ela acabava de comer falava: 'Será que meus filhos por aí se alimentaram?'. Ela se inquietava, comia feijão com farinha e não se contentava em estar de barriga cheia, preocupava-se com os filhos dela, imaginando se eles tinham se alimentado”, conta Fábio. Lula, a filha mais nova, voltou. Após se separar do marido, voltou a morar no sítio com a filha e um filho de criação. Depois do fim do casamento, ainda em São Paulo, Lula desenvolvera sua mediunidade. Ela tinha tendência para isso. No sítio, construiu um centro de Umbanda, que foi muito visitado durante o tempo em que lá viveu. Ela foi designada por Amélia para cuidar do sítio depois que ela morresse, e assim fez. Com o passar do tempo, a casa da matriarca da família ficou em ruínas, pois era de pau-a-pique. Mais uma vez, Sebastiana, preocupada com o bem-estar da mãe, construiu uma nova casa no mesmo lugar, mas, desta vez, de alvenaria, para que durasse até o final da vida de Amélia. Sebastiana também era quem sempre tomava as decisões e resolvia os problemas. Se precisassem chamar o médico, levar Amélia ao hospital ou comprar qualquer medicamento, ela era sempre consultada para chegar a uma solução. Mesmo se alguns de seus irmãos estivessem no sítio, sempre a chamavam para tomar algum partido. Amélia tinha um carinho muito grande pelo sítio, afinal era a herança que seus pais tinham deixado para ela e o que de mais precioso ela poderia deixar para seus descendentes. Costumava dizer que, quando morresse, gostaria de ser enterrada no sítio, pois sempre vivera ali. Segundo os netos, “ela se apagou como uma vela”, aos 95 anos, foi morrendo aos poucos sem manifestar nenhuma doença. Perto do dia de seu falecimento, ela acamou-se. Netos e filhos levaram-na correndo ao hospital. O médico examinou e disse que ela, na verdade, não estava doente e sim velha e que não havia nenhum 21


tratamento e nem mesmo remédio para salvá-la. O fim já estava próximo e ela terminaria seus dias serenamente, a seu tempo. Quando voltou para casa, ela solicitou que Sebastiana permanecesse do seu lado. Como era domingo, os filhos e netos voltaram para suas casas, para seus afazeres. Na segunda-feira, todos estavam de volta, Amélia havia falecido. Para filhos e netos, a grande lição que Amélia deixou foi uma vida baseada no trabalho, no respeito ao próximo e na honestidade. Ela sempre foi muito presente na vida de todos os filhos, sempre acolhia e dava conselhos. Estava pronta para cuidar das crianças que perdiam a mãe e de mulheres que perdiam o marido. Foi exemplo de força e luta, em uma época em que tudo era limitado ao extremo, como alimentação, acesso à escola e a moradias. “A grande lição que vó Amélia deixou para nós foi a importância do trabalho, ela valorizava muito. O espírito de luta que ela tinha e a honestidade, também ficou como ensinamento”, relata Fábio. Com sua garra, ela manteve o sítio desde o momento em que lá pisou, até sua morte. Todos a consideravam como fonte de sabedoria e sempre a consultavam quando alguma decisão na família precisasse ser tomada. Ela era um porto-seguro no momento de aflição, alguém com quem todos podiam contar. Seus conselhos eram sábios e sempre traziam uma grande lição de vida. Do casamento, nasceram dez filhos, dos quais descenderam 17 netos, 47 bisnetos e 61 tataranetos. Um total de 142 descendentes diretos de Amélia de Lima Barbosa. Árvore Genealógica da Família Lima e Barbosa

Paula Carolina Batista

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Lula foi quem continuou seu legado na terra. Mulher de fibra, passou a tomar as decisões no sítio e aconselhar os que vinham. Ela mesma não gostava da vida do sítio, só permaneceu ali devido ao pedido de sua mãe, que temia que um dia aquele lugar pudesse acabar e seus descendentes não teriam um abrigo para morar. “Se tia Lula não tivesse ficado aqui, isso tudo tinha acabado, se ela não persistisse em manter a terra, hoje todos estavam morando debaixo da ponte e eu tinha ido junto”, brinca a filha de Claro. Depois que Lula criou o primeiro terreiro de Umbanda lá, o sítio passou a ser mais conhecido, não apenas em Itatiba. Vinham pessoas de vários lugares e realizavam trabalhos com ela, que era mãe-de-santo. As matas e nascentes do local eram fundamentais para os rituais religiosos. Muitas pessoas na cidade até hoje conhecem o Sítio Brotas por Sítio da Lula. Ela sempre foi muito respeitada na cidade e principalmente pela família, nada se fazia sem seu consentimento. “Tia Lula encarava a Umbanda com muita responsabilidade. Apesar de ter feito vários filhos-de-santo, não encontrou ninguém com capacidade para substituí-la”, explica Rosemeire Barbosa, presidente da Associação Cultural de Moradores. Há mais de uma década, a cidade foi crescendo em volta do quilombo. Alguns bairros surgiram ao redor do sítio, bairros residenciais de alto padrão e até condomínios. “Há mais de dez anos que a cidade começou a engolir o sítio, minha avó nem chegou a ver esse episódio, ela nem chegou a conhecer essa vila em volta”, diz Fábio. Recentemente, a construção de um loteamento assoreou o córrego que corta o sítio, causando um impacto ambiental. “Como começou a fazer em volta o condomínio de alto padrão, o Instituto de Terras do Estado de São Paulo (Itesp) então resolveu reconhecer as terras como quilombo para não perdermos o título do sítio na justiça. Por isso que se tornou quilombo”, conta Ana. Assim como se fazia na época de Amélia, muitas pessoas que estavam passando por necessidade vieram até o sítio para pedir um abrigo. Muitos desses eram parentes de Amélia, netos e filhos de seus irmãos da cidade. Mesmo com toda a história do passado, Lula sempre abrigava quem precisasse de moradia, assim, um a um foram se instalando no sítio com o consentimento dela. “Depois que a minha avó morreu foram construídas outras casas aqui no sítio. Quando ela era viva tinham apenas as casas de Ana Maria lá em baixo, e a casa de tio Claro, a primeira perto da porteira. Depois as crianças começaram a crescer e construir as casas aqui”, relata o filho de Sebastiana. Em 2004, o Itesp reconheceu o Sítio Brotas como quilombo urbano, por se localizar em meio à cidade. Ele foi considerado o primeiro quilombo urbano do Brasil. A partir deste acontecimento, muitas pessoas procuraram o sítio para morar. Foi criada uma Associação Cultural de Moradores, atualmente presidida por Rosemeire Barbosa, bisneta de Amélia. “Depois que virou quilombo que muita gente ficou sabendo que aqui havia casas e um sítio grande”, conta Ana Tereza. Amélia sempre pediu para que os filhos e netos conservassem o sítio, para não vendê-lo. Ela pensava muito nos descendentes dela que passassem por problemas de moradia, que não tivessem onde morar. “É o que está acontecendo hoje. Ela não queria que seus descendentes fossem parar debaixo da ponte, preferia que eles viessem 23


para cá. Aqui há lugar para eles construírem casas”, conta Fábio. Hoje moram no sítio cerca de 32 famílias, mais de 120 pessoas. Alguns descendentes diretos de Amélia, como netos, bisnetos e até tataranetos, outros apenas parentes e ainda alguns poucos que não fazem parte da família. “Há muita gente aqui, tem até pessoas que não são da família. Na época de avó Amélia, ela fazia casinhas de barro, e dava para um e outro quebrar o galho no momento de dificuldade, mas não vinham muitas pessoas”, diz Fábio. Por falta de instrução, muitas pessoas construíram no sítio casas em terrenos irregulares e alguns ainda moram em casas sem acabamento. Após o reconhecimento, todos que moravam no sítio passaram a ter direito de permanecer nas terras, como legítimos proprietários. Antes era Lula quem aconselhava e tomava as decisões no sítio. Após sua morte, uma das netas de Amélia, Maria do Carmo, foi quem tomou as rédeas da situação. Os mais novos sempre vinham se aconselhar com ela para dar algum rumo ao sítio. Hoje, Ana Tereza, carinhosamente chamada de Tia Aninha, é quem conta as histórias de Amélia e dá conselhos sobre o futuro do sítio. Ela é atualmente a mais velha moradora do quilombo. Os mais velhos da família sempre foram considerados como poço de sabedoria. Rosemeire Barbosa diz que quando um ancião morre vai embora também uma biblioteca. “Na época da minha avó as pessoas mais novas consultavam-na para fazer as coisas. Antes todo mundo falava com a minha avó, depois ficou o meu pai, depois a tia Lula, e agora eu sou a mais velha daqui. Foi assim que nós conseguimos manter essas terras por mais de 100 anos. Os mais novos devem continuar com essa tradição”, afirma Ana Tereza. Para Fábio, o sítio tem muito valor. “Essa terra significa muito para mim, é bastante importante, eu valorizo demais. Considero aqui como uma riqueza. Eu quero esse sítio para o fim que a minha avó sempre desejou, que é ter os parentes amparados tendo pelo menos um teto, que já é uma grande coisa”, relata o neto de Amélia. Ana Tereza também preza muito as terras. “Essa terra, para mim, tem um grande significado, foi dos meus antepassados, tivemos muita luta para manter e todo mundo se ajudava”, admite.

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De sĂ­tio a Quilombo

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As ações externas podem ajudar ou prejudicar um povo que sempre esteve acostumado a se comportar de uma determinada maneira. Na comunidade Brotas, algumas ações foram muito positivas, pois garantiram a permanência daquela comunidade no local onde vivem, porém outras fizeram com que surgisse muita desunião entre a própria família. Muitas versões são dadas para justificar a intervenção do Fórum PróCidadania na comunidade, a criação da Associação Cultural Quilombo Brotas, as ações do loteamento e a titulação das terras. Todas elas são apresentadas neste capítulo para que cada um possa tirar as conclusões sobre o fato corrido. No passado a intervenção de outros povos na cultura dos africanos que aqui passaram a viver fez com que muito do que se cultivava acabasse se perdendo. Chegando ao Brasil os africanos aqui escravizados foram obrigados, na base da violência, a aprender uma nova língua e uma nova cultura impostas pelos seus senhores. Como consta na obra O Povo Brasileiro, de Darcy Ribeiro, com a apropriação de seres humanos por meio de violência e da repressão permanente se fundava a empresa escravista com punições bárbaras, ela atua como uma mó desumanizadora e desfaz a cultura com eficácia incomparável. Com isso acredita-se que qualquer povo acaba deixando de ser ele próprio, primeiro para ser ninguém com a subcondição de ser burro de carga, depois para ser outro, quando transfigurado etnicamente pela linha étnica imposta pelo senhor que é compatível apenas com seus interesses. Na época da escravidão a alternativa para escapar dessa imposição era a fuga, mas hoje as comunidades quilombolas escolhem a forma da resistência e da união para lutar contra essas interferências. Essa então deve ser a atitude da comunidade Brotas ao se sentir ameaçada pela cultura externa, que bate constantemente à porta do quilombo para incutir novos ações e pensamentos dentro da comunidade.

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Primeiros Passos Paulo Sergio Marciano sempre foi muito apegado às histórias do sítio Brotas e de seus antepassados. Um dos únicos bisnetos de Amélia a conviver bem próximo da bisavó, Paulo conta que ela contava muitas histórias sobre a época em que chegou ao sítio e até muito antes disso. Essas histórias foram passando de geração a geração e fez com que Paulo fosse mais a fundo para descobrir a origem dos seus antepassados. Ele percebeu que havia uma imensidão de histórias e que tudo se cruzava com a história da cidade de Itatiba. Foi então que ele resolveu procurar na cidade algum órgão que pudesse apóiá-lo para tornar o sítio um patrimônio histórico da cidade. Ele foi em busca de informações nos órgãos públicos de Itatiba, sobre a possibilidade de tombamento do local, mas ninguém se dispôs a ajudá-lo. Paulo já se identificava com o trabalho que o Fórum Pró-Cidadania (FPC) estava realizando na cidade e resolveu pedir ajuda para o grupo. Segundo Paulo, os membros do Fórum tinham as informações e contatos referentes às questões quilombola e indígena. “Eu tive que procurar uma ajuda. O grupo do FPC se ofereceu para dar um encaminhamento, pois eles tinham todos os contatos com questões quilombolas e reservas indígenas, eles iam me passar todos os caminhos, mas infelizmente a pessoa que estava na direção do FPC fez um direcionamento totalmente errado”, desabafa Paulo. Ele conta que já sabia que aquele local poderia ser reconhecido como um quilombo, pois conhecia a fundo a história. Ao contar os fatos do passado de sua família tudo se enquadrava nos requisitos de um quilombo. Paulo lembra que na mesma época o sítio estava sendo engolido pelo loteamento construído em volta. Os proprietários do loteamento, segundo ele, estavam pensando em desapropriar o terreno do sítio, e, com certeza, devido ao poder aquisitivo dos moradores, muitos iam acabar sem um local para residir. Outra preocupação de Paulo também era a possibilidade de o sítio se transformar numa grande favela com o passar do tempo, já que até hoje não há uma divisão de lotes e nem uma diretriz para se construir lá dentro. “Até hoje não há uma infra-estrutura, no meio da cidade o que poderia acontecer era englobarem o sítio, darem uma casinha popular para cada um e acabarem com a história de oito gerações. Todo mundo que mora aqui é dependente desse lugar. Como minha bisavó falava, este lugar era para a família, para nunca ficarmos a mercê de ninguém”, relata. Com tudo o que estava acontecendo, a preservação do patrimônio histórico 27


era a única saída do sítio na opinião de Paulo. E o Fórum foi o primeiro órgão a se preocupar com a causa. Em 2002 surgiu em Itatiba o Fórum Pró-Cidadania (FPC), grupo de pessoas que reivindicava questões referentes à preservação do meio ambiente, educação e impostos na cidade. Era uma organização da sociedade civil que questionava primeiramente a prefeitura sobre o reajuste abusivo do Imposto Predial, Territorial Urbano (IPTU). A partir daí, o Fórum se constituiu em uma Organização Não Governamental (ONG) com uma diretoria constituída. Esta evoluiu para uma Organização da Sociedade Civil de Interesse Público (Oscip) e começou a realizar convênios com outras entidades para beneficiar a população itatibense, como por exemplo, com o Educafro, cursinho pré-vestibular voltado para pessoas carentes e afrodescendentes. Outro convênio realizado foi com o Ministério do Meio Ambiente, com quem desenvolveram o projeto Selva Verde. Também implantaram na cidade um telecentro na Avenida 29 de abril. O grupo permaneceu ativo na cidade como uma Oscip até o ano de 2007. Hoje continua existindo, porém com sede em outra cidade. Muitos membros do Fórum Pró-Cidadania eram filiados ao Partido dos Trabalhadores (PT) e alguns já tinham sido candidatos nas eleições municipais no ano do reconhecimento do quilombo. Enquanto FPC, era apenas um grupo de pessoas civis comuns que se juntaram por causas que deveriam ser revistas na cidade. Devido às ações que promoviam na cidade, políticas ou não, os moradores do quilombo viram neles uma ajuda possível. Na campanha à presidência do Lula, o grupo tinha um comitê na Rua Campo Sales. Os moradores do sítio queriam falar com os membros do Fórum, porém tinham receio e o pessoal do FPC só falava com eles enquanto estavam pedindo votos. Quanto ao primeiro contato que o FPC teve com os moradores, Diva Maria Martins de Oliveira, que na época era secretária do Fórum Pró-Cidadania, conta uma outra versão. Segundo ela, os membros do sítio Brotas a procuraram após as eleições presidenciais querendo saber como poderiam solucionar o problema do córrego que passa nos fundos do sítio, que estava sendo assoreado devido à construção de um loteamento ao redor das terras do local. Além disso, toda a água fluvial do loteamento ia ser canalizada para dentro do córrego e isso o tornaria irrecuperável. O sítio Brotas está localizado em meio a uma área urbana valorizada na cidade. Ao seu redor há grandes loteamentos, tornando assim, o local muito frágil e vulnerável. Portanto, segundo ela, a ação que foi proposta era referente às questões de preservação do meio ambiente. O Fórum já vinha questionando problemas relacionados a esse assunto na cidade, e no sítio tudo estava muito visível, pois as obras estavam na fase de terraplanagem e de asfaltamento. Era nítido que toda a água que corresse do loteamento ia cair no sítio. Diva conta que eles não sabiam o que poderia acontecer, por isso solicitaram ajuda. Como o problema era grande, a primeira orientação do Fórum foi que eles ingressassem na associação para que então entrassem com uma ação, pois uma associação representava um conjunto de pessoas e daria mais força à causa. “Eu disse a eles que era um problema muito sério e que uma pessoa sozinha não teria força suficiente para resolver, mas todos juntos dentro de uma associação poderíamos ter 28


bons resultados. Inclusive fomos conversar com eles, no dia estavam o Paulo, a Rose e a Ana Maria. Eles concordaram também em formar uma associação entre eles, ato que também solicitamos a eles”. Sobre o local vir a ser um quilombo reconhecido, Diva conta que foram os membros do Fórum que tiveram a idéia de que aquele lugar pudesse vir a ser um quilombo reconhecido e depois o Instituto de Terras do Estado de São Paulo (Itesp) concluiu que realmente é. “A noção que eles tinham de quilombo era a mesma que qualquer pessoa comum tem, de que quilombo é só lá em Alagoas, ou em comunidades distantes. Nós que falamos que aquilo poderia ser um quilombo, e daí então o Itesp concluiu de acordo com o que se acredita ser um quilombo hoje”, diz Diva. Patrícia também conta a mesma história que Diva, ou seja, que a idéia de quilombo partiu do Fórum Pró-Cidadania. “Essa idéia de quilombos e de direitos, a comunidade não conhecia. Quem começou mesmo com essa idéia foi a Elaine do FPC, todos os quilombos a maioria começam assim. Paulo os procurou, porque queriam resolver a questão da titulação das terras, e do córrego”. Já Manoel Roberto Barbosa, morador do sítio, bisneto de Amélia e que foi o primeiro presidente da associação de moradores, tem uma terceira versão sob a interferência do Fórum Pró-Cidadania na comunidade. Segundo ele, a comunidade sempre montava a associações dentro do sítio, mas nunca vingava, pois eles não tinham conhecimento sobre como era elaborado um estatuto para aquele tipo de comunidade. Por intermédio de Paulo, os moradores do sítio tiveram uma primeira conversa com o pessoal do FPC a fim de elaborar regras e normas para a montagem da associação, já que o grupo do Fórum tinha conhecimento desse assunto. Conta Manoel que, nessa conversa, foram sugeridas, para os moradores, duas propostas: uma para montar uma associação de bairro e outra para montar uma associação que resgatasse a cultura e a história do sítio. Os moradores optaram por resgatar a história e, então, foi constituída a Associação Cultural Quilombo Brotas. Sobre aquele local vir a ser classificado como quilombo, Manoel conta que os moradores do sítio já tinham essa noção. “Como aqui já era um quilombo antes de minha família chegar aqui, nós só tivemos a idéia de resgatar a cultura e a história por meio de uma associação e, então, depois, veio o Itesp comprovar isso por meio de um relatório”. A fala de Manoel fica um pouco equivocada já que na realidade, como esclarecido pelo Itesp, não necessariamente precisaria ter existido um quilombo, como abrigo de escravos fugidos no passado, ali naquele lugar para que eles recebessem o título de quilombo reconhecido, mas sim que eles tenham o desejo de viver naquela terra da forma como sempre viveram e assumam uma identidade quilombola, baseado no modo de vida que eles sempre cultivaram. O fato de aquele lugar ter sido um quilombo antes dessa família ocupar o espaço, hoje só serve para que se tenha mais uma história a ser contada. O que se percebe é que os próprios moradores não sabem exatamente o motivo pelo qual eles receberam título de quilombola, o que causa muita confusão no discurso dos próprios moradores. Patrícia Scalli contou que foram os membros do Fórum Pró-Cidadania que os procurou para analisar as condições da comunidade. Ela diz que os problemas do sítio 29


começaram por causa do loteamento e por eles terem apenas um formal de partilha (documento realizado pela família que divide o terreno entre os herdeiros) para legitimar que as terras, são deles e que ainda assim o documento estava errado, pois as terras foram divididas de forma incorreta. “Eles vieram atrás de nós porque o loteamento assoreou o córrego. Havia essa questão ambiental”. A primeira visita que a antropóloga fez ao sítio foi em novembro de 2003. A associação já estava constituída e no dia da inauguração eles convidaram Carlos Henrique, o assessor de quilombos do Itesp. Ela conta que o FPC os ajudou muito nesse início. Quando questionado sobre as ações do Fórum para conter os males que o loteamento estava causando no sítio, Manoel diz que tudo aconteceu depois que os membros do Fórum Pró-Cidadania já estavam inseridos lá dentro e interagindo com a comunidade para montar o estatuto da associação. Os membros do FPC então também resolveram verificar os problemas causados pelo loteamento, porque tinham um envolvimento com a questão de meio ambiente na cidade há algum tempo. “Como o pessoal do Fórum já estava aqui, como eles já tratavam da questão do meio ambiente na cidade e já estavam trabalhando a questão de montar o estatuto e fazer a documentação, na mesma época teve início a construção do loteamento e os danos ambientais começaram a aparecer, então o pessoal do Fórum entrou com uma ação contra o loteamento. Mas não foi por esse motivo que nós os procuramos, foi referente constituição da associação corretamente”, relembra. A especulação imobiliária foi um obstáculo que acabou pressionando a comunidade a procurar seus direitos, pois talvez se isso demorasse a acontecer e se a cidade não tivesse chegado tão próxima, eles não teriam procurado o reconhecimento como quilombo, acredita Patrícia Scalli, antropóloga que já tem experiência neste tipo de caso. “Normalmente todos os quilombos vêm procurar o Itesp quando estão ameaçados. Geralmente quando há especulação imobiliária, isso acelera o processo, pois a comunidade fica com medo de perder as terras e vão atrás de um reconhecimento formal”. Paulo diz ser grato pela ajuda que o Fórum deu, mas lamenta o caminho que tudo teve. “Sem dúvida nenhuma eu tenho que agradecer o apoio deles, até certo ponto, foi muito importante, mas não foi direcionada realmente ao que tinha e precisava ser direcionado. Hoje nós temos uma Associação de afrodescedentes e pessoas do povo que poderiam realizar algo de bom e não estarmos esquecido e meio abafados. Aqui, não tem chance nenhuma de uma ascensão e precisam ser realizadas ações boas, mas sem política. Infelizmente, na época, o grupo se voltou com questões políticas. Dentro do quilombo o pessoal do FPC trouxe o maior problema, que foi a mentira e a desunião”, lamenta. Mas Patrícia conta que quando ela chegou ao quilombo já havia vários conflitos, inclusive gerados por Paulo, e com o passar do tempo os conflitos se acirraram com a comunidade. “É muito complicada a relação dele com o Quilombo e com a comunidade. Ele foi cooptado pela política local, e tinha objetivos diferentes. Como ele não conhecia muito bem o título de quilombo, achava que o Itesp iria dar o título e o sítio poderia ser vendido, e não pode, o título de quilombo não vende e quando ele se deu conta disso começou a querer voltar atrás”. 30


O Loteamento No dia 20 de julho de 2003, foi publicada no jornal Folha de S. Paulo, no caderno Folha Campinas, uma matéria sobre o sítio com o título “Quilombo disputa espaço com loteamento”. Nessa matéria, de página inteira, os moradores contam um pouco sobre os problemas causados pelas ações irresponsáveis do loteamento ao redor do sítio. Eles já tinham a associação formada e o local já era conhecido como Quilombo Brotas O jornal conta que os moradores do sítio vinham sofrendo há oito meses com a construção do loteamento de alto padrão e que o empreendimento imobiliário estava invadindo as terras que pertenciam ao quilombo. Em entrevista para o jornal, os proprietários do empreendimento disseram que o loteamento existia desde 1976 e que desconheciam a possibilidade de invasão da área. Já a prefeitura da cidade respondeu ao jornal que existia um projeto aprovado para a construção do loteamento e desconhecia se havia invasão, mas garantiram fiscalizar. A matéria fala também do assoreamento do córrego do Quilombo. Devido às terras que estavam vindo do loteamento, por meio da tubulação construída, o córrego estava praticamente seco. No passado este mesmo córrego foi a única fonte de abastecimento de água do sítio. Em entrevista para o jornal, Manoel presidente na época da Associação Cultural quilombo Brotas esclarecia que os membros do sítio haviam autorizado os empreendedores do loteamento construírem a tubulação de águas pluviais em uma parte da área do sítio, sem atingir o principal manancial, porém o córrego, que antigamente tinha aproximadamente dois metros de largura, no momento estava só com um fio de água. Maria do Carmo Barbosa, bisneta de Amélia e ex-moradora do sítio, conta na matéria sobre o assoreamento de um dos córregos. Com um subtítulo “A terra secou a água”, ela relatava a existência de uma antiga cachoeira pequena, na qual dava até para se banhar, mas que desaparecera pelo assoreamento. Em contrapartida às ações do loteamento construído ao redor do sítio, os membros do Fórum e os moradores do sítio solicitaram uma intervenção do Ministério Público. Diva conta que, a princípio, eles se posicionaram desfavoravelmente, informando que não havia nenhuma intervenção a ser realizada. A Associação pediu que a questão fosse revista pelo Ministério Público Federal e só aí foi solicitado que a promotora analisasse novamente o que ela tinha dito anteriormente a comunidade. 31


Foto: Paula Carolina Batista

Encanamento que assoreou o córrego Brotas

Encanamento que assoreou o córrego Brotas No relatório elaborado por Patrícia Scalli, do Itesp, consta que onde está localizado o sítio é um local rico em recursos hídricos e que dentro do território do quilombo existem vários afloramentos de água, os quais são de grande importância para os moradores, já que eles utilizam água do poço nas casas. No relatório consta também que, em 2001, quando teve início a construção do loteamento Nova Itatiba II, que é vizinho do quilombo, a comunidade passou a sofrer as conseqüências das obras para o escoamento das águas da chuva e esgoto do loteamento. Um dos problemas gerados pela construção do novo loteamento foi o assoreamento de um córrego, segundo o relatório, que é formado por várias nascentes, sendo que a principal nasce dentro do território quilombola, provocando o desaparecimento de peixes e crustáceos. No relatório ainda consta que quando as obras do loteamento começaram os moradores não sabiam o que poderia acontecer com suas nascentes e com o córrego, por esse motivo autorizaram que as obras passassem por dentro do sítio. Quando perceberam a gravidade da situação, a primeira atitude deles foi de dialogar com os donos do loteamento. Paulo Marciano e Marcos Antonio se dispuseram a conversar com os responsáveis pelas obras, mas não foram bem sucedidos nas tentativas. Devido 32


a isso, a Associação do Quilombo Brotas, segundo o relatório, buscou ajuda de uma ONG, no caso o Fórum Pró-Cidadania que então denunciou o caso para o Ministério Público Estadual, e posteriormente para o Ministério Público Federal e, somente em 18 de março de 2004 eles conseguiram com que o Procurador do Ministério Público Federal, José Ricardo Meirelles visitasse o Quilombo Brotas. Logo depois, no início de abril do mesmo ano, os funcionários do loteamento retomaram as obras de um encanamento que ia despejar as águas em uma área alagadiça onde existe um pequeno reservatório de peixes e uma horta. Não contente com a situação, Manoel Roberto Barbosa, que na época já era presidente da Associação do Quilombo Brotas, questionou os funcionários do loteamento a respeito de quem havia autorizado a continuidade da obra, e os funcionário afirmaram que o Departamento de Proteção aos Recursos Naturais (DPRN) havia autorizado que as obras continuassem e essa autorização posteriormente foi comprovada que não era verdadeira. Patrícia relata também que esse córrego teve um forte impacto nas práticas religiosas da Tenda de Umbanda, onde os trabalhos realizados por Tia Lula eram feitos, inclusive, há na margem do córrego um altar para as divindades. Foi solicitado então, pelo Itesp, que um membro do Grupo de Gestão Ambiental da própria Fundação Itesp visitasse o Quilombo e produzisse um Relatório Técnico de Apoio ao Relatório Técnico-Científico elaborado por Patrícia, para ajudar nos argumentos para o reconhecimento daquelas terras. Segundo a avaliação que Patrícia fez sobre o relatório, é de vital importância para a sobrevivência física e cultural do quilombo a preservação das nascentes. Ela comenta também que, para os membros do quilombo não perderem esse patrimônio, eles reivindicaram uma área que faz parte do Quilombo antigo, que existia naquelas terras, mas que não foi comprada por Isaac e Emília. Essa solicitação foi feita devido a uma das nascentes que alimenta o córrego das Brotas aflorar em um terreno vizinho, o qual, segundo ela, será provavelmente transformado em loteamento, gerando impacto sobre este córrego. Nesta mesma parte do relatório, Patrícia também revela que o grupo estava sofrendo constantes ameaças de destruição de seu patrimônio cultural e ambiental, como o assoreamento do córrego Brotas, alteração de casas antigas, peças e fotos antigas foram perdidas ou simplesmente queimadas. Tudo isso, segundo ela, sem o consentimento dos moradores da Associação do Quilombo Brotas, e na tentativa de “apagar” a história desse grupo, mas Patrícia não revela além do loteamento, quem são os malfeitores da destruição da história. Ela contou em entrevista que o meio ambiente em que eles vivem é muito significativo para a comunidade, pois há uma relação afetiva muito grande com a natureza daquele lugar, já que os trabalhos religiosos eram realizados na mata e havia demarcações dos locais específicos para oferendas aos caboclos, e aos seres das águas, o que tornava o sítio um grande terreiro. A antropóloga revela que os proprietários do loteamento foram solicitar a autorização dos moradores para construir o encanamento, mas que por ingenuidade eles aceitaram, já que não sabiam o que ia acontecer. “Parece que autorizaram. Eles acharam que seria feito o encanamento por baixo, preservando o 33


córrego, mas na verdade não havia como fazer isso, até porque sai muito caro e ficaria inviável. Então era muito mais fácil para eles jogar todo o esgoto no córrego e depois continuar o encanamento canalizando até ao Rio Jacaré que fica mais a frente”. Uma obra mais trabalhosa que preservasse o córrego e toda a natureza que cerca o Quilombo Brotas, na realidade não seria inviável e sim mais onerosa, por isso a opção de despejar o esgoto dentro da comunidade era a alternativa viável para os donos do loteamento. Mas se eles pensassem nas pessoas que moram naquela comunidade e na natureza que existia ali, o projeto de se construir um loteamento naquela área, aí sim seria inviável. Patrícia ainda afirma, no relatório, que uma solução possível para essa situação poderia ser o futuro tombamento do Quilombo Brotas. Manoel conta que a questão do loteamento hoje está na justiça. “Está no Ministério Público, eu não acompanhei mais o caso, mas as obras estão paradas, o loteamento está parado. A água pluvial que vem de lá eles ainda continuam jogando aqui no sítio, porque há uma lei afirmando que a parte mais alta deve jogar a água na parte mais baixa do terreno. O esgoto não está sendo jogado. Ele nem chegou a ser jogado aqui, porque não há casas construídas. Se continuassem com as obras, o cano de esgoto passaria aqui por dentro”, conta o presidente da Associação.

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A Associação Cultural Quilombo Brotas Os moradores decidiram então montar a Associação Cultural Quilombo Brotas para manter vivas as lembranças deixadas por Vó Amélia e protegerem, por meio do conhecimento das histórias, as terras do sítio e fortalecer a comunidade. Segundo Diva, ex-secretária do Fórum Pró-Cidadania, como a comunidade Brotas não tinha nenhuma noção do que seria um estatuto e uma associação constituída, eles deram todas as informações para montar a agregação, e assim o FPC foi a primeira entidade na cidade que realizou uma ação em favor dos moradores do sítio.

Foto: Arquivo Quilombo Brotas

Comemoração da Fundação da Associação Cultural Quilombo Brotas, na ocasião estavam presentes o prefeito da cidade além de alguns vereadores e membros do Fórum Pró-Cidadania.

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No dia 23 de março de 2003 foi fundada, em Itatiba, a Associação Cultural Quilombo Brotas. Nessa data, houve uma grande comemoração nas terras do Quilombo e estiveram presentes na cerimônia de inauguração o prefeito da cidade, o secretário da saúde e alguns vereadores, além de moradores da cidade e os membros do FPC. Na comemoração foi apresentada a Presidência da Associação. Manoel Roberto Barbosa era o presidente, tendo como vice José Davi dos Santos e Paulo Sergio Marciano como diretor social e de comunicações. Foi assinado o estatuto e, então, estava constituída a associação que os moradores tanto desejavam. Diva conta que após esse dia, nunca mais o poder público se interessou por aquela comunidade, passando a tratá-la com total descaso. “Hoje todos o descrevem como primeiro quilombo urbano do país, o poder público não pode mais contestar sua existência, mas, a princípio, não o aceitaram”, relembra.

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O Reconhecimento O Decreto nº 4.887, de 20 de novembro de 2003, que regulamenta o procedimento para identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos de que trata o art. 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, garante o seguinte: Art. 1o Os procedimentos administrativos para a identificação, o reconhecimento, a delimitação, a demarcação e a titulação da propriedade definitiva das terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos, de que trata o art. 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, serão procedidos de acordo com o estabelecido neste Decreto. Art. 2o Consideram-se remanescentes das comunidades dos quilombos, para os fins deste Decreto, os grupos étnico-raciais, segundo critérios de auto-atribuição, com trajetória histórica própria, dotados de relações territoriais específicas, com presunção de ancestralidade negra relacionada com a resistência à opressão histórica sofrida. § 1o Para os fins deste Decreto, a caracterização dos remanescentes das comunidades dos quilombos será atestada mediante autodefinição da própria comunidade. § 2o São terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos as utilizadas para a garantia de sua reprodução física, social, econômica e cultural. § 3o Para a medição e demarcação das terras, serão levados em consideração critérios de territorialidade indicados pelos remanescentes das comunidades dos quilombos, sendo facultado à comunidade interessada apresentar as peças técnicas para a instrução procedimental. Apesar disso, Patrícia afirma que para titular uma comunidade eles se baseiam na Convenção no 169 da Organização Internacional do Trabalho - OIT sobre Povos Indígenas e Tribais, adotada em Genebra, em 27 de junho de 1989. Essa convenção nº169 reconhece as aspirações desses povos a assumir o controle de suas próprias instituições e formas de vida e seu desenvolvimento econômico, e manter e fortalecer suas identidades, línguas e religiões, dentro do âmbito dos Estados onde moram. E 37


também garante que a consciência de sua identidade indígena ou tribal deverá ser considerada como critério fundamental para determinar os grupos aos que se aplicam as disposições da tal Convenção.

Foto: Lilian Joaquim

Entrada do quilombo Brotas ainda com a placa identificando-o como sítio

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A antropóloga conta que a lei fala sobre a auto-identificação, ou seja, a comunidade deve se identificar como quilombola, e o relatório realizado pelo Itesp serve como estudo que vai subsidiar o processo de intitulação daquelas terras, para justificar o porquê daquele espaço. “A identidade é deles, e a minha função é discutir qual é o território, quantas pessoas estão ocupando, de que forma, homogenia ou todo o espaço. Há locais, como no Brotas, que mesmo sendo pequeno tem a questão da nascente, que é um espaço que simbolicamente é muito importante para eles, para manifestações religiosas, devido a todo respeito que eles têm com essa tradição”. Ela afirma também que por esse motivo as terras pertencentes ao quilombo foram ampliadas, demarcando toda a área da nascente, ou seja, 150 metros a partir da nascente o que estendeu a área do quilombo. “O Relatório Técnico-Científico vai justificar o porquê disso, porque esta terra e não outra. Mas a denominação de quilombolas é feita pela população do lugar. Com a convenção 169 que o Brasil assinou, a autodeterminação dos povos tem de ser respeitada”. Como ela afirma são os povos que devem se auto-identificar como indígenas ou como quilombolas. “Eu não posso imputar uma identidade, nem uma religião. Se um grupo se reconhece como quilombola não cabe a nenhum governo dizer se é ou não. É feito o estudo no sentido de instruir o processo, o objetivo do relatório é de discutir o território, culturalmente e territorialmente, esse é a idéia do Relatório Técnico-Científico”. Ela conclui que o grupo tem que estar organizado, saber o que quer, e haver um mínimo de consciência entre eles para se realizar o trabalho. A antropóloga do Itesp afirma que o fator definitivo também para a elaboração do relatório depende mais da comunidade e do interesse deles. “Para que seja feito um relatório todo mundo da comunidade deve concordar e participar, não dá para fazer quando estão divididos. É claro que sempre há discordância pela minoria, mas é necessário ter um consenso”. Ela diz que após a conclusão do relatório há documentos que toda a comunidade deve assinar e quanto mais pressionada ela for por grupos que queiram ver o fim do local, mais rápido a comunidade se une para regularizar o território, pois essa pressão externa acaba gerando um grau de consciência. “A especulação imobiliária acabou fazendo com que eles se unissem e se organizassem, pela pressão, pois tinham um inimigo em comum”. Então na verdade não deve haver necessariamente um histórico de resistência ancestral, explica Patrícia. “A única exigência da Fundação Palmares e do Governo Federal hoje é que a comunidade tenha uma organização, uma associação já constituída e estruturada. Já para Governo do Estado é preciso que eles conheçam um mínimo de sua história, e que esteja registrada a luta pela terra, pelo lugar. Isso para o poder público Estadual é o auto-reconhecimento. Quando eles dizem que são quilombolas e apontam o território a que pertencem, a partir disso dá início ao processo”. Após terem um contato maior com a comunidade do Quilombo Brotas e conhecendo mais a fundo a história daquelas pessoas, os membros do FPC acreditaram que aquele lugar deveria ser preservado e protegido, eles então entraram em contato com o Itesp (Instituto de Terras do Estado de São Paulo), pois Diva alega que foram eles, do Fórum, que tiveram a idéia de que aquele lugar pudesse ser um quilombo e o autoreconhecimento da comunidade como quilombolas veio depois. “Como eles eram 39


um conjunto de pessoas da mesma família que vivem no mesmo lugar, foi pensado em um quilombo. Claro que eles não tinham os mesmos traços daquilo que esperamos de um quilombo, daquilo que achamos que é um quilombo, pelo menos o que vemos em filmes. A visão que temos é do pessoal que trabalha lá dentro e que eles mesmos se mantêm. No Quilombo Brotas não é assim, mas é uma comunidade urbana que sempre viveu encravada e é um sítio. Eles não tinham luz própria, eles não têm água encanada. Reconhecemos que aquelas famílias são todas descendentes da mesma linha, vendo isso nós achamos que era interessante chamar uma instituição de São Paulo para avaliar”, conta Diva.

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O trabalho do Itesp A partir da solicitação dos membros do Fórum, vieram para Itatiba a Antropóloga Patrícia Scalli e a Geógrafa Rose Leine Bertaco Giacomini, para realizar os levantamentos históricos e técnicos e construir o Relatório Técnico-Científico para a identificação étnica e territorial dos Remanescentes da Comunidade do Quilombo Brotas. A antropóloga lembra que quando chegou à comunidade havia um conflito entre os moradores por terem diferentes interesses na terra. Ela diz que eles estavam muito preocupados com a questão do loteamento e principalmente tia Lula que queria o córrego recuperado, inclusive Patrícia disse que a própria Lula pediu para que os trabalhos do Itesp terminassem antes de sua morte, acreditando que as intrigas entre a família poderiam se intensificar. “Quando eu cheguei lá para mostrar o meu trabalho, eles estavam em um clima de guerra. Eu lembro que tia Lula me falou que ia morrer logo e precisava que eu terminasse logo os meus trabalhos, pois após seu falecimento eu não conseguiria. Isso me marcou muito porque nós terminamos o trabalho em novembro e em janeiro ela morreu, foi então que intensificou a guerra lá dentro”. Tia Lula funcionava como uma mediadora nos conflitos. Era ela que sempre dava a última palavra e tinha muito amor pelo lugar, devido o seu terreiro funcionar ali dentro. Ela sentia uma tristeza muito grande pelo fato da família ter se recusado a dar continuidade à tenda de Umbanda, diz Patrícia “Quando eu cheguei ainda tinha essa mão forte da tia Lula, apesar dela estar doente. Tinha também a questão deles quererem recuperar a nascente e os conflitos por terem de interesses diversos, foi isso que nós percebemos”. Depois do impacto sofrido ao chegar à comunidade Patrícia ainda teve que enfrentar problemas ainda maiores. No mesmo período o quilombo estava para ser desapropriado pelo poder público. Uma vez que eles não tinham registro das terras em cartório, pois o sítio fora comprado em uma época em que não existia um cartório. Anos depois quando foram regularizar as terras, eles fizeram um formal de partilha, mas como as terras foram divididas erradas o documento ficou sem validade. O comprovante de compra e venda do sítio se perdeu. Claro, como filho mais velho de Amélia, não quis fazer o inventário das terras, para que seus parentes não pudessem vender o terreno. Por esse motivo eles estavam sem um registro válido das terras. Além disso, a prefeitura da cidade estava com um projeto de construir um anel 41


viário que iria passar por dentro do local, o plano de desapropriação das terras do quilombo já estava em votação na câmara dos vereadores. “A prefeitura estava vendo o quilombo como um obstáculo, tanto que foi colocado para votação na câmara dos vereadores um plano diretor, e o quilombo era para ser desapropriado como disfunção social, foi então que os membros do FPC conseguiram convencer os vereadores a retirar o projeto de votação, mesmo porque estávamos já no processo de reconhecimento e não haveria cabimento desapropriarem aquela área, iria ser um escândalo”, conta Patrícia. Após esses problemas o Itesp solicitou reforços para conseguir finalizar o trabalho e reconhecer a comunidade. Patrícia disse que foi então que o Ministério Público Federal entrou no processo com o intuito de defender o interesse da minoria. “O Ministério Público Federal entrou e começou a acompanhar o caso. O apoio deles foi muito importante, pois nós conseguimos então deslanchar, porque a prefeitura fazia muita pressão aqui no Instituto de Terras. Com o apoio do ministério público a prefeitura deu um tempo e então nós conseguimos terminar o trabalho”. A antropóloga lembra que todos esses acontecimentos fizeram com que a comunidade tomasse maior consciência política. Devido a todos esses acontecimentos eles começaram a perceber que quando precisavam do poder público, nem sempre podiam contar com ele. Este foi o terceiro Relatório Técnico-Científico que a antropóloga realizou em seus quatro anos de trabalho no Instituto de Terras do Estado de São Paulo. “Foi um trabalho muito difícil de executar, enfrentamos muitas barreiras políticas. Um grande parceiro foi o Ministério Público. Nós tivemos momentos em que achamos que não íamos ser reconhecidos, por conta disso, nós intensificamos a história do primeiro quilombo urbano até para ter um respaldo maior do próprio Estado. Foi por isso que nós conseguimos acelerar o processo, e aí saiu o reconhecimento como o primeiro quilombo urbano reconhecido oficialmente por um governo do Estado no Brasil”, admite Patrícia. Após muito trabalho, buscando analisar dados obtidos tanto na pesquisa direta com o grupo como em fontes secundárias levantadas por pesquisa documental e iconográfica (um acervo de fotos antigas) de propriedade dos moradores do Quilombo Brotas, Patrícia com esses dados, reconstruiu a história da comunidade e o resgate de sua origem étnica e de sua identidade grupal. Com todos os estudos realizados Patrícia concluiu em seu relatório que a Comunidade Brotas é realmente constituída por descendentes de escravos, que compraram um sítio há aproximadamente 120 anos e onde seus descendentes constituíram um território quilombola. Com base no estudo étnico-científico desse grupo, ela considera que seus trabalhos antropológicos não deixam dúvidas sobre a origem quilombola da família. “Para realizar o reconhecimento nós cruzamos os relatos orais, porque eles vão dar às indicações, com a documentação, para confirmar se o que a pessoa está falando realmente procede. O simbólico também é muito importante, o córrego lá é importante porque tem uma questão de relação afetiva deles com aquele espaço. Os registros fotográficos que eles têm foram muito importantes também”, conta a 42


Antropóloga Portanto, em 18 de novembro de 2004, foi publicado no Diário Oficial do Estado de São Paulo o despacho do Diretor-Executivo do Itesp, Jonas Villas Boas, aprovando o relatório. A partir disso, aquela comunidade passou a ser legalmente reconhecida como comunidade de Remanescentes do Quilombo Brotas. Patrícia define quilombo em duas palavras: criatividade e resistência, pois ela observa que em muitas comunidades quilombolas, nas quais ela atuara em processos de organização para conseguir o título da terra, percebe-se que das formas mais criativas eles elaboram estratégias para resistir naqueles lugares. “Das formas mais criativas que você possa imaginar eles permaneceram. Muita gente fala que eles são preguiçosos ou acomodados, mas estudando a história deles, enxergamos que tudo faz parte de um processo que eles foram construindo ao longo do tempo para resistir naquele lugar”. Ela conta também que provavelmente a comunidade de Brotas iria desaparecer se as terras fossem vendidas e as pessoas fossem embora. Patrícia se lembra de uma história que os moradores do quilombo Brotas contaram para ela sobre uma estratégia criativa de permanência. Claro, o filho mais velho de Amélia, dizia que poderia até fazer o inventário do sítio e dividir as terras, mas ele não ia fazer isso porque sabia que os homens dali eram muito fracos para a bebida e que se ele dividisse as terras eles iriam vender suas partes e usar o dinheiro para beber. Com isso as mulheres e as crianças iam ficar na rua. “Na verdade ele criou uma estratégia de resistência porque se ele tivesse feito o inventário, iam dividir as terras do sítio, cada família ia ficar com a sua parte, muitos já moravam em São Paulo então iriam vender. A maioria das comunidades que perderam seu território foi desse jeito”. Após o reconhecimento do Itesp, foi enviada toda a documentação para o Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária), que também reconheceu aquelas famílias como proprietárias da área. Sobre o local hoje, Diva afirma que aquela é uma área de quilombo urbano, que sofreu todas as ações da cidade naquele pedaço. Ela diz que aquela comunidade vem fazendo um esforço muito grande para recuperar sua própria história como família, comunidade e espaço. “O sítio Brotas é um espaço que sofreu as intervenções que toda a família produz em um local. Lá você tem muita gente com objetivos e pensamentos muito diferentes”. A ex-secretária do Fórum Pró-Cidadania acha que o fato deles terem virado quilombo protegeu a comunidade, devido à quantidade de loteamentos que há ao redor do quilombo. Ela acredita que os empreendimentos imobiliários circunvizinhos poderiam comprar aquela área e hoje estariam recortados em lotes e os moradores teriam ido morar em outro lugar, na periferia, ou em casas populares, por exemplo. Mas agora, com o reconhecimento do Itesp e do Incra, tudo lá dentro está preservado e ninguém poderá destruir. “Os loteamentos não iam respeitar a natureza que tem lá, o objetivo deles era de desapropriar ou comprar, e os moradores que fossem se virar onde quisessem, e isso com eles não aconteceu, o que é muito bom”, exalta Diva. Com o reconhecimento das terras este poderia ter sido o final da história, mas não acaba por aí, muitos conflitos internos fazem parte do cotidiano da comunidade Brotas, a aproximação da cidade, o esquecimento da história da própria família, a falta de espaço para se construir mais casas, a convivência hostil entre herdeiros e não 43


herdeiros das terras, a falta do saneamento båsico e de iluminação nas ruelas, o preconceito com que a cidade os trata, e a dificuldade em se assumir uma identidade quilombola, são alguns dos problemas enfrentados por essa comunidade.

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Um quilombo no meio da cidade

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Após um longo percurso pela extensa Rua Filomena Zupardo eu me deparo com uma grande porteira. De longe já se percebe que aquele lugar não é comum, devido a sua grande porteira azul com um enorme rosto de mulher negra estampado. Acredito que quem passe por lá nem imagina o que possa haver ali. Talvez desperte curiosidade em alguns e cause estranheza em outros. Com certeza poucos imaginam que aquele é um sítio de negros, onde a família vive há mais de um século. Quem adentra a porteira azul com um pensamento urbano pode até questionar o porquê das ruas não serem asfaltadas. O porquê daquela parte da cidade não ter acompanhado o progresso, a modernidade. Quem for mais a fundo, vai conhecer o lado perverso do preconceito racial que maltrata uns e privilegia outros. Pode ser até que as ruas de terra dentro desse sítio possam ser uma questão de opção daquelas pessoas que vivem ali. Mas a falta de saneamento básico, de água tratada, iluminação nas ruelas, necessidades básicas para a sobrevivência humana, coisas que seus vizinhos brancos têm sem precisar implorar ao poder público, com certeza não faz jus ao conceito de igualdade racial. Ao entrarmos pela grande porteira azul com a figura da mulher negra, imediatamente tiramos o pé do asfalto e pisamos em uma ruela de terra. Ali já se vêem muitas casas, a maioria mal-construída ou, melhor dizendo, construída da forma que fora possível na época. Quem precisa de um teto para se abrigar não fica pensando no luxo ou no que é esteticamente correto para quem vai olhar de fora. Por todos os cantos se vê muitos cachorros e muitas crianças também. Algumas vezes, os latidos se misturam aos gritos, choros e risos de crianças e isso tudo se transforma em uma melodia atrapalhada, misturada ao som de um rádio, que sempre está em um volume bem alto. São tantos os sons que, muitas vezes, não se consegue distinguir de onde vêm. Foto: Paula Carolina Batista

Árvore antiga na entrada do quilombo

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Algumas casas na parte de cima possuem cercados imponentes causando receio em quem se atrever a atravessar. Há também outra sala de aula que pertence às famílias evangélicas que moram no quilombo, onde as crianças são ensinadas pelos membros da igreja. Ao lado fica o salão da igreja onde ocorrem cultos todos os domingos. Voltando à rua principal, da entrada do quilombo avistamos alguns bancos, uma espécie de praça, onde muitas vezes avistei tia Aninha neta de Amélia, a moradora mais velha do quilombo, contando histórias para a criançada que fica ao seu redor. Ao lado dessa pracinha é a casa dessa senhora, que eu aprendi a chamar carinhosamente de tia. A casa fica escondida no meio de muitas árvores, matos e galhos que se elevam até o teto do casebre. De frente, há um córrego onde muitas famílias despejam o esgoto não tratado. Isso faz exalar um cheiro muito forte em alguns momentos do dia. Em outra ruela à direita encontram-se outras casinhas modestas, de construção antiga. Há também uma outra pracinha onde é comum avistarmos sagüis e micuins passeando com toda a família. Novamente seguindo a rua principal, tomamos um caminho estreitado por grandes árvores, com ladrilhos no chão que são um convite a escorregar. O percurso é escuro, pois as grandes árvores escondem o sol. Logo ao final desse caminho encontrase a casa da vó Amélia. Ela está bem diferente do que era quando a grande matriarca da família morava no sítio, pois foi reformada por um de seus netos, que não mora no sítio e passa apenas alguns finais de semana nessa grande casa. Foto: Paula Carolina Batista

Casa reformada de vó Amélia

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As portas das casas sempre estão abertas, não há muita cerimônia, mesmo porque o vizinho de frente é um primo, o de trás é um cunhado ou um tio. Não há porque esconder o seu modo de vida. Sempre se vê uma mulher lavando a roupa ou um grupo de pessoas sentadas, conversando. Na entrada há uma árvore muito grande, provavelmente deve estar lá há muito tempo. Suas raízes, extensas e grossas, servem de banco e apoio e sua copa de proteção contra o sol. À direita se vê uma casinha com uma placa bem grande onde está escrito: “Associação Cultural Quilombo Brotas”. Ali é a sede da associação, que nem sempre está aberta. Lá dentro há uma sala de aula com algumas cadeiras onde, à noite, por meio de um convenio firmado com o Senac Rural, são dadas as aulas para aqueles que ainda não terminaram o ensino fundamental. Há também o telecentro, com computadores e acesso à Internet. Para organizar as ações de todos os membros da comunidade Brotas, a associação criou um estatuto de regimento interno para o bom convívio dos moradores, com ordens para manter a grama sempre aparada e o quintal limpo, o que não estão sendo muito respeitadas, pois percebe-se que o mato há muito tempo não é cortado. Há também certa sujeira pelos caminhos. Seguindo a rua de terra há uma bifurcação e se for o caso de seguir à direita na bifurcação há uma subida muito íngreme que, em dias de sol forte, fica difícil de encarar, mas que todos sobem e descem destemidamente. Ao subir, encontramos outras casinhas modestas, ainda faltando reboque, com alguns entulhos no quintal, mesmo com as regras do estatuto que diz: todos os moradores do quilombo têm como meta a ecologia e o meio ambiente; são proibidos lixos recicláveis em más condições de armazenamento; todos deverão manter seus quintais limpos para eliminar o perigo de cobras e outros animais nocivos às pessoas, além de outras regras. Fotos: Lilia Joaquim e Paula Carolina Batista

Algumas casas dentro do Quilombo Brotas

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À esquerda há a Tenda de Umbanda de tia Lula. Ela já faleceu, mas os moradores do quilombo mantêm tudo intacto. Percebe-se, pelo mau estado de conservação, que nunca mais ninguém entrou lá, mas as imagens de santo e objetos pessoais dela continuam no mesmo lugar. Na casa há ainda, pendurada na parede, a grande coleção de xícaras, algumas comuns, outras muito raras. Ao lado da tenda está sendo construída uma réplica da primeira casa de vó Amélia, uma casa de taipa feita com bambus e barro. Quem está reconstruindo a casa é Fábio, neto de Amélia, e alguns poucos moradores do sítio. O objetivo é que aquele lugar venha a ser um museu no futuro. Mais acima há outras casas de outras famílias do quilombo. Próxima a essas casas, há uma trilha no meio da mata e ao final dessa trilha se chega ao Córrego Brotas. Através da água cristalina que corre pelo riacho podemos ver pequenos peixes. Andando mais um pouco pode-se avistar o início do córrego e, dentro dele, a boca da tubulação que assoreou o córrego e que joga ali a água pluvial, vinda do loteamento acima. É quase impossível caminhar à noite pelas ruas do quilombo, pela falta de iluminação nas ruazinhas. Quem sai para trabalhar na escuridão da madrugada reclama que é impossível andar por ali e tudo piora quando chove, pois o córrego transborda e uma parte do caminho vira um lamaçal. Percebe-se que a convivência entre os moradores é comum, como em qualquer vizinhança. Uma relação mais afetiva, mais familiar não pode ser percebida ao caminharmos pelas ruelas. É como ironizou um morador dizendo que lá “é cada um no seu quadrado”. Dentro da comunidade apenas duas casas são de pessoas que não têm nenhuma ligação familiar com os moradores. Essas duas famílias já moram lá há mais de dez anos e quando o sítio passou a ser quilombo eles não perderam o direito da moradia. Foram inseridos no documento de reconhecimento como agregados. Até hoje a associação do quilombo não possui nenhum plano de infraestrutura para construções e disposições das casas. Algumas das normas foram criadas justamente para que houvesse igualdade entre todos os moradores referente à permanência e construção de novas casas, como por exemplo: ü Todas as pessoas que quiserem construir casas terão que pedir aval da diretoria; ü É proibido alugar casas; ü No quilombo Brotas todas as casas deverão ser térreas, mantendo assim as características do Quilombo. ü Todas as pessoas que construírem casas no quilombo deverão morar nela ou perderá o direito a moradia; ü Os filhos deverão construir suas casas no próprio quintal dos pais; As casas construídas no quilombo não poderão ser vendidas. A partir do momento que sair da casa a mesma passa a ser patrimônio do quilombo.

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A consciência quilombola Patrícia Scalli,antropóloga do Itesp, que realizou o Relatório TécnicoCientífico do Quilombo afirma que, para definir uma comunidade como quilombola, o instituto baseia-se na autodefinição da comunidade. Outro fator importante que ela ressalta é a relação dos quilombolas com a terra, pois nela há todo um significado religioso, cultural e histórico do que seja um território quilombola. “Os quilombolas, nas formas mais criativas possíveis, criaram estratégias para poder resistir naquele lugar. Não é qualquer lugar, ele é cheio de significados e de simbolismos para essa população, não é qualquer terra. Não é à toa que essas pessoas estão resistindo nesse lugar, é muito mais do que terra, é a fusão da identidade com aquele lugar. É um lugar que tem todo um investimento afetivo, tem toda uma identificação do grupo com o lugar”. Na mesma época em que ocorria o processo de reconhecimento do Quilombo Brotas, outro quilombo, que fica no Rio Grande do Sul e está no meio da cidade, também tentava o reconhecimento. No início, não havia uma competição, mas, depois que os dois casos foram para a mídia, a disputa ficou acirrada, já que apenas um iria receber o título de primeiro quilombo urbano do Brasil. Patrícia conta que o nome “quilombo urbano” foi um estratégia de marketing utilizado pelo Itesp para que houvesse um interesse maior do governo do Estado em regularizar e reconhecer aquelas terras. “Por conta da quantidade de obstáculos encontrados para a realização do reconhecimento em Brotas, nós intensificamos essa história do primeiro quilombo urbano até para ter um respaldo maior do próprio Estado. Nós já reconhecemos muitos quilombos, mas um quilombo urbano era a primeira vez. Tinha um outro Estado, que é o Rio Grande do Sul, onde também estava sendo reconhecido um quilombo urbano. Então, na verdade, foi uma jogada de marketing, para apimentar a coisa e conseguir com que o próprio governo se sentisse estimulado a promover e reconhecer o de Brotas antes do Rio Grande do Sul. Por isso nós intensificamos a idéia de primeiro quilombo urbano”, conta. Ao perguntar aos moderadores o que aquele espaço, como quilombo, significa para eles e qual é a relação que possuem com o lugar, nem todos conseguiram definir. Além disso, muitas pessoas de fora têm uma visão totalmente distorcida do que possa ser um quilombo e isso acaba por confundir os próprios quilombolas sobre o 50


significado daquele lugar para eles. Antônia Donizete de Araújo, de 32 anos, disse que mora no sítio já faz muito tempo. Primeiro ela morou junto com a mãe, que possuía uma casa alugada no local, na época em que não havia um estatuto proibindo casas de aluguel do local, e depois voltou a morar lá, pois se casou com um dos descendentes da família. Ela tem cinco filhos e diz não pretender sair do quilombo. O significado do quilombo para ela é de um lugar para morar. “O quilombo significa uma moradia para a gente”. Ela conta que é diferente morar em um quilombo, pois as pessoas reagem com estranheza quando ela diz morar ali. “Eu não sei o que é ser quilombola, só sei que quando tem alguma coisa aqui no quilombo eu participo”, afirma Antônia, que diz se sentir uma quilombola. “Eu me sinto como uma quilombola, porque faz muito tempo que eu moro aqui, tudo que tem sobre quilombo eu participo”. Apesar disso, ela diz que só em algumas ocasiões se sente fazendo parte dessa comunidade. “Às vezes, a comunidade parece que se desfaz. Eles falam que é uma comunidade, mas se precisamos de alguma ajuda financeira e a comunidade nunca pode colaborar”, desabafa. Sobre o termo “quilombo urbano”, Antônia não tem nenhuma idéia do que isso seja. “Eu não sei o que é um quilombo urbano”, diz ela. Ana Maria Marcelino de Lima, de 53 anos, que é a primeira bisneta de Amélia, conta que mora a 30 anos no quilombo. Ela é filha de Claro, terceiro filho de Amélia. Para ela o quilombo antigamente não era uma palavra muito significativa, mas hoje tem um significado importante em sua vida. “Hoje, o quilombo representa liberdade. As portas se abriram para nós, somos mais respeitados. Há muitos anos não significava nada, era apenas um quilombo, era um refúgio de negros”. Ana Maria se sente uma legítima quilombola e agradece a Deus por ser uma descendente afro. “Em primeiro lugar a gente tem que agradecer a Deus, porque todo mundo é filho de um Deus, não importa que cor, não importa que religião siga e agradeço a meu tataravô de ter comprado isso daqui para nós”. Acredita ela, que, assim como Antônia, não se sente parte de uma comunidade. “Eu gostaria de me sentir fazendo parte dessa comunidade, mas fica difícil porque há uma barreira feita pelos próprios moradores. Seria bom se todos tivessem a mesma atitude de trabalharem juntos”. Ela conta que fica difícil a convivência, pois sempre há pessoas que não querem participar e o ideal, para ela, era que todos participassem expondo as idéias. “Claro, há discórdia entre nós, pois cada um tem seu modo de pensar, mas, nas festas e para carpir, todos deveriam ser unidos. Infelizmente são sempre os mesmos que colaboram”. Ana Maria acha um privilégio morar em um quilombo urbano. Ela já conheceu alguns quilombos em outros municípios que são bem afastados da cidade e conta que, diferentemente disso, ela poder ir a pé de casa até o centro da cidade em pouquíssimo tempo. “Nós somos privilegiados porque moramos na cidade, nós podemos ir ao centro da cidade a pé sem nenhum problema. O povo acha meio estranho porque é um quilombo no centro da cidade, mas nós fomos privilegiados por Deus”. E também descreve o que, para ela, é ser quilombola. “Ser quilombola é um valor grande, porque me valorizou muito”. 51


Apesar de dizer que sabe o que é quilombola, 'que é um valor muito grande', na verdade percebesse que a moradora não tem incorporado o real significado histórico e cultural da palavra. As respostas muitas vezes ficam vagas demonstrando claramente que a importância deles permanecerem por tanto tempo naquele mesmo lugar não é algo importante valorizado por eles. Ela acredita que as terras do sítio devem ser compartilhadas com todos. Como ela tem um quintal grande, diz não se importar se alguém, que tenha necessidade, construir em seu terreno. “Eu não vou levar essa terra, ela não é minha. Deus dá o direito de você ser dono da terra, mas não que você tenha que brigar por isso. Minha bisavó, que lutou por isso daqui, desmatou, fez casa e plantou, não levou nada daqui, então nós, que chegamos depois, também não vamos levar nada”. A adolescente Maria Caroline Barbosa, de 14 anos, nasceu no sítio. A garota não sabe dizer de qual dos filhos de Amélia ela é bisneta, mas estava com o nome da tataravó na ponta da língua. A árvore genealógica montada pelo Itesp mostra que ela é bisneta de Claro. Sobre o significado de quilombo em sua vida, ela disse não saber explicar, talvez por não achar nada de diferente morar em um quilombo. “O quilombo significa alguma coisa, só que eu não consigo explicar. Eu me sinto normal morando aqui”. Caroline tem uma visão bem simplista do termo “quilombo urbano”. “Um quilombo urbano fica perto da cidade, tem a cidade próxima”. A tímida Maria Caroline, no desenrolar da conversa, conseguiu expressar melhor suas idéias e explicou o que, para ela, é ser uma quilombola. “Ser quilombola é preservar o lugar em que vive como quilombo, mostrando para as pessoas que não conhecem o que é um quilombo”. Mas ela diz que o nome Quilombo Brotas ainda não é conhecido por todos na cidade e acha importante que as pessoas saibam o que é aquele lugar. “Eu me sinto como uma quilombola, quando as pessoas me perguntam onde eu moro, eu sempre falo, Quilombo Brotas. Eles nunca sabem onde é, mas se falo que é o sítio da Lula todos se recordam. Eu acho que as pessoas tinham que conhecer aqui. Nós deveríamos fazer com que eles nos conhecessem, fazendo festas e convidando as pessoas para participarem”, sugere. Marcos Antônio Gomes tem 47 anos e mora desde os oito meses no sítio. Ele é filho de Inês que é filha de Amélia, mas foi criado desde pequeno por Lula. Ele conta que sua verdadeira mãe não tinha condições de criá-lo, por isso, ela o trouxe para morar no sítio. “Quem me criou quando eu era pequeno foi minha avó, a Amélia Barbosa, porque minha mãe trabalhava, mas depois fui morar com minha mãe de criação, a Lula”. “Esse quilombo aqui ainda não é nada, porque eu sei o que é um quilombo”, afirma Marcos, que acha que as pessoas de fora não sabem o que aquele lugar significa. “Quem vem de fora acha que aqui é como uma tribo de índios e não é isso. Aqui só tem um significado: minhas origens. Se não fossem meus avós não existiria isso e não se sabe onde estaríamos. Foram eles quem lutaram por esse lugar e deles ninguém fala nada. Nós pegamos o bonde andando. Aqui virou quilombo por uma questão política, para regularizar as terras”, diz ele, apontando os outros moradores de não saberem da história. “Todos os que vieram para cá foi porque precisavam, não foi porque queriam morar em um sítio”. 52


Marcos conta que as pessoas ficam curiosas para saber como são os quilombolas. “Somos iguais às outras pessoas, eu como o que eles comem, me visto igual a eles, porém muitas coisas que eu sei eles não sabem”. Para ele, ser quilombola é ser sobrevivente. “Em 1987 era raro negro ter acesso à escola, médicos e remédios. Eu sou uma resistência”, conta Marcos com orgulho. Ele diz que o pessoal de hoje não sabe que ali, no passado, a luz era de querosene e não havia televisão. “Às sete horas eu ia dormir, porque já estava tudo escuro. Eu não sabia o que eram dias da semana, só sabia que era domingo quando minha avó fazia frango e as pessoas vinham comer aqui”. Ele conta que foi a primeira vez ao centro da cidade com 15 anos. Para ele, tudo que viveu significa ser quilombola. “Eu sou um quilombola, os outros pegaram carona, pois meus descendentes eram escravos, minha mãe era neta de escravo, os outros moradores daqui foram naturalizados. Ninguém falava sobre quilombo antes, foi só agora, mas eu já era um quilombola antes do reconhecimento”. Apesar disso, Marcos diz ser excluído, por isso não se sente parte de uma comunidade quilombola. Ele acha que o quilombo só é uma comunidade para os evangélicos. “Para eles, aqui é uma comunidade, mas para mim não”. O nome quilombo urbano indica para Marcos que eles estão no meio da cidade. “Estamos no meio de outros bairros urbanos de Itatiba. Daqui até o centro da cidade são sete quilômetros, temos todos os recursos a dez minutos daqui, mas, antigamente, não era assim, era tudo afastado”. A jovem Priscila Nunes, de 22 anos, mora no sítio há aproximadamente oito anos. Ela não soube precisar muito bem que grau de parentesco tem com Amélia. Ela também não sabia dizer o nome de seu avô ou de seus parentes mais distantes, pois conta que seu pai não tinha muito contato com essa parte da família. Consultando novamente a árvore genealógica, observei que ela é tataraneta de Pedro de Lima, irmão de Amélia. Em seu ponto de vista, Priscila diz que o quilombo está servindo como uma grande oportunidade para muitos moradores. “O quilombo é uma oportunidade que as pessoas daqui têm para levar a cultura do negro adiante. O quilombo, para mim, é um patrimônio histórico e cultural muito grande dentro desta cidade e dentro do Estado, um patrimônio muito forte, muito importante”. Priscila, que já fez parte da diretoria da associação, diz que agora, fora dela, não se sente mais tão envolvida com a comunidade quilombola do sítio. “Quando eu fazia parte da diretoria eu me sentia mais pertencente a uma comunidade, pois eu lutava pela causa. Hoje, eu não faço mais parte da diretoria, então, não estou mais por dentro do que está acontecendo; me informo quando eu corro atrás, procuro na internet ver o que está acontecendo”. Ela procura se informar sobre o que acontece no quilombo conversando com as pessoas de fora, pois muitos membros da diretoria não sabem informar sobre os planos, projetos e convênios do quilombo. “Eu vou atrás das pessoas que trazem os projetos aqui para dentro, pois saber das informações pela associação fica muito difícil. Eles não passam as informações para que nos sintamos parte da comunidade”, conta. “A falta de comunicação é o que mais atrapalha. “A Rose era uma pessoa muito empenhada, ela corria muito atrás dos interesses da comunidade. É muito difícil de encontrar o Manoel o atual presidente da associação. Não há pessoas que possam representá-lo quando ele não está aqui”. Agora que está desempregada, 53


Priscila diz que está mais disposta a se preocupar com os interesses do quilombo. Com mais complexidade, Priscila explica que a posição onde o quilombo se encontra é o fator determinante para que ele se torne urbano. “É um quilombo por causa das origens, da história, da área verde, mas urbano porque a cidade foi chegando tão próxima que ficamos a quinze minutos do centro da cidade. Agora ele foi cercado por um condomínio e fica bem no meio de bairros. Todas as pessoas aqui dentro do quilombo têm, em casa, televisão, microondas, computador e telefone, tudo que uma pessoa na cidade tem”. A idéia de comunidade, para Priscila, é o que define ser quilombola. “O quilombo é uma associação que leva adiante uma cultura, que dá continuidade à cultura. O quilombola é a pessoa que faz parte disso, que faz parte dessa comunidade. Eu me sinto uma quilombola, é uma conseqüência”. Fredney Dionísio Gonçalves tem 33 anos e mora no Quilombo Brotas há 16 anos. Ele não faz parte da família do quilombo, mas após o reconhecimento, sua família ganhou o direito de permanecer na terra como agregada. Para ele, o quilombo significa uma esperança de vida e um novo meio de cultura. Ele diz que é até mais tranqüilo morar em um quilombo. “Nós estamos dentro da cidade e, ao mesmo tempo, um pouco afastados, isso torna esse lugar mais tranqüilo”. Ser quilombola, para ele, vai desde resgatar a história até o modo como a comunidade vem progredindo, mas, por não pertencer à família do quilombo, ele se sente só em parte quilombola. “Sinto-me quilombola por morar aqui há muito tempo, por fazer parte de muitas ações e criar aqui dentro desenvolvimentos. Mas, por outro lado, tem aquele sentimento de não pertencer à família”. Ele diz também se sentir, em parte, pertencente a uma comunidade, pois, mesmo morando no quilombo há muito tempo, ele não pertence à família e isso o deixa, algumas vezes, constrangido. Sobre o termo quilombo urbano, Fredney tem a seguinte opinião: “No passado, meus avós e pais diziam que quilombo era um lugar onde se refugiavam os escravos, mas urbano mesmo é o primeiro que nós ouvimos falar, pois quando falamos em quilombo, pensamos em algo afastado da cidade, então urbano é o primeiro mesmo”. Paulo Sérgio Marciano, de 42 anos, mora no sítio há oito anos. Ele é neto de Bento, segundo filho de Amélia. Ele disse que aquele lugar tem um significado familiar muito grande e é sinônimo de raiz. “O quilombo significa tudo para mim, é a base da minha vida, é a base da minha família. É a base para mim como para muitos que estão aqui dentro, tem uma cultura dos descendentes de quilombo, tem uma raiz”. Paulo conta que se sente como um quilombola e tem orgulho disso. Para ele, ser quilombola tem a ver com sua história e com seus antepassados. “Ser quilombola é trazer o princípio, nossos ancestrais”. Ele afirma que toda a luta, a garra e o sofrimento dos negros no passado devem inspirar os negros de hoje a lutarem e não serem mais oprimidos e humilhados, pois, para ele, essa é uma história muito linda e maravilhosa e reconhece a falta de conhecimento da história por muitos de seus parentes. “Muitos dos moradores do quilombo não conhecem a história dos meus antepassados, de antes da minha bisavó”. Ele se sente parte da comunidade Brotas, mas não participa das atividades que a 54


diretoria promove. “Eu não sou ativo, não quero ser, mas me sinto parte daquela comunidade, porque nós moramos aqui, as nossas raízes são aqui. Temos que ser ativos, não na diretoria, mas atrás dela. Meus tios vêm trocar idéias, meus primos vêm mostrar o que estão fazendo, então acabo sendo ativo. Em reuniões eu não vou, tenho meus motivos”. A referência que os moradores têm da própria história é uma questão curiosa. Quando perguntamos sobre qual história de quilombolas eles conhecem, alguns não souberam responder ou citaram histórias comuns, como de Zumbi. Antônia contou um pouco sobre o que ela sabe das histórias do sítio. “Eu não conheço nenhuma história de quilombolas, só o que a tia Aninha conta às vezes, de quando era a época da avó dela, que havia plantação de eucalipto, quando moravam aqui e não tinha luz”. Já Maria Caroline cita quilombos de outras regiões como referência de histórias quilombolas. “Conheço de Palmares e conheço os outros quilombos também, como o do Cafundó, o Jaó e o do Vale do Ribeira. Daqui eu sei histórias de antigamente que contam que acendiam uma fogueira para contar histórias e se sentavam juntos, os mais novos e os mais velhos”. A garota também afirma que seus ancestrais foram quilombolas e foram morar no sítio, mas não eram escravos fugidos. “Meus antepassados eram quilombolas, eles não moravam aqui, eles vieram para cá. Falaram que antes vinham escravos se esconderem aqui dentro quando fugiam, mas a minha família não”. Mesmo não pertencendo à família, e sem pensar muito, Fredney conta a história dos membros de sua comunidade como história de quilombolas que ele conhece. “Conheço a história da avó Amélia, de quando ela colocava as crianças em volta da fogueira e ali ela contava as histórias para eles. Era quase todos os dias que tinha aquela roda e eles gostavam e estavam habituados”. Ana Maria acredita que os episódios que viveu em sua infância são histórias de quilombolas. “Histórias de quilombola que eu conheço são as de criança que eu vivi aqui. A história do sítio mesmo, o que era o que a minha bisavó tinha de tradições, o que ela mantinha e que nós mantivemos, como tomar benção”. A história de Simão, o negro fujão, é relatada com orgulho por Marcos como história de quilombola que ele conhece. “Conheço a história do quilombola Simão, que ninguém conta. Ele tinha visão e não estudo. Quando as coisas apertavam ele fugia, por isso, ficou conhecido como negro fujão”. Priscila contou outras histórias. “Eu não conheço muitas histórias de quilombolas. Conheço de Dandara, que foi uma guerreira dos escravos, do Zumbi dos Palmares; são essas histórias que eu aprendi”. Ela revela que a vida de seus ancestrais não é muito discutida dentro de sua casa, mas acredita que isso ocorre devido à falta de tempo de se reunir com a família. “Histórias de quilombolas da família não sei, eu nem converso em casa sobre isso. É difícil, precisaria resgatar dentro da própria família. Tem uma semana que eu não vejo meu pai e meu irmão. Eles moram na mesma casa, mas os horários não batem. A rotina do quilombo agora é diferente. Os outros quilombos são um pouco mais unidos nesse sentido, pois ficam distantes das cidades e as pessoas trabalham ali dentro mesmo”, diz ela, fazendo uma comparação com quilombos não urbanos. 55


Paulo diz ser um estudioso da história de sua família. Ele contou algumas histórias sobre seus ancestrais, porém nada baseado em dados concretos que se possa comprovar. “A história é muito longa, eu teria que contar desde o começo”.

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Morando em um Quilombo Rosemeire Barbosa, a ex-presidente da associação do Quilombo Brotas, que faleceu durante a realização desse livro-reportagem, contou em entrevista realizada anteriormente, que quando o sítio não era reconhecido, ele era conhecido na cidade como sítio da Lula, pois sua tia, a Lula, benzia e fazia trabalhos de Umbanda no sítio. Ela contou também que, antigamente, moravam no sítio apenas os parentes que tinham direito, que eram os herdeiros e que o lugar não era muito procurado. “Foi depois do reconhecimento que o pessoal começou a migrar para cá. Antes, quando era apenas sítio, não havia parentes querendo vir morar aqui”. Hoje, moram no quilombo 32 famílias. Rosemeire disse que, antigamente, eram 29 e que hoje o sítio acabou ficando pequeno, não comportando mais pessoas, e nem mesmo os parentes. “O quilombo se tornou muito pequeno, pois tem muitas pessoas morando aqui dentro espalhado. A terra é pequena e tem lugares que não se pode construir. Se nós formos colocar pessoas aqui em terreno irregular, quando vier o pessoal do meio ambiente e ver que construíram em área de proteção ambiental, teremos que tirar as casas e derrubar”, afirmou Rosemeire justificando sua rigidez, em não aceitar a vinda de mais parentes para morar no quilombo. A vida e o cotidiano dos moradores não mudou muita coisa depois que o sítio foi reconhecido como Quilombo Brotas. Eles continuam trabalhando na cidade, a maioria das mulheres como empregada doméstica e os homens como pedreiros ou na produção das fábricas de Itatiba. Depois que o sítio virou quilombo, Manoel, o primeiro presidente da associação dos moradores, com o falecimento de Rosemeire, voltou a sê-lo, diz que ser um quilombo reconhecido só os motivou mais. “Depois que virou quilombo nós tivemos mais vontade de mudar, de conquistar os nossos objetivos. Têm alguns objetivos que nós ainda sonhamos, como ter um galpão na parte de cima do quilombo para fazer um centro cultural, entre outros”, conta. Tia Aninha conta que, quando era apenas sítio, não havia muitas das coisas que eles têm hoje. “Antes, quando não era quilombo, o Papai Noel, em Natal, passava só lá na rua. Agora que virou quilombo vêm cinco ou seis Papais Noéis aqui na época de Natal e trazem brinquedos. Muitos estão esquecendo que tem essas coisas agora 57


porque é quilombo. Se fosse outro lugar, não teria isso”. Foto: Lilian Joaquim

Pracinha localizada ao lado da casa de tia Aninha

Alguns moradores dizem que depois da transição não houve mudanças, enquanto outros relatam que a mudança trouxe a desunião entre os moradores. Alguns alegam ser a ganância o motivo de tantos conflitos, outros justificam ser a religião, mas, de fato, percebe-se que a relação familiar não agrada a todos. Patrícia acredita que, depois do reconhecimento do Itesp, a comunidade mudou sua organização comunitária. Os moradores, segundo ela, passaram a ter um pouco mais de consciência dos seus direitos e a brigar mais para serem respeitados, embora nem todos. “Rose mesmo dizia que, antes do reconhecimento, ela andava de cabeça baixa e, agora, anda de cabeça erguida na cidade; isso é valorizar sua própria história”. Antônia acredita que a mudança não foi em tudo positiva. “Antes de ser quilombo era mais gostoso, porque não havia tantas brigas e intrigas. Depois que virou quilombo, começaram a aparecer herdeiros de todos os lados. Eles chegam e já querem mandar e construir, mas nunca passaram por nenhuma dificuldade”, desabafa ela, que reconhece que também chegou ao sítio quando tudo já estava mais fácil. “Eu também, quando cheguei aqui, já tinha luz, água de poço. Quem morou aqui bem antes de mim, como tia Aninha passou por muitas dificuldades, porque não tinha luz, ônibus e casas perto; era tudo mato e ninguém queria morar aqui. Depois que virou quilombo e a cidade ficou perto, começaram vir muita pessoas”. Para Ana Maria, depois do reconhecimento, eles viraram estrelas. Ela conta que muitos voltaram a estudar para poderem entender o que estava acontecendo, 58


colheram mais informações sobre as leis, pois, sem conhecimento eles tinham de baixar a cabeça para muitos. “As pessoas falavam e nós tínhamos que ficar quietos porque não entendíamos e, se falássemos uma coisa errada, colocávamos tudo a perder. Hoje podemos debater”. Alguns moradores participaram do Senac Rural e tiveram aulas ali mesmo dentro do quilombo, na sala de aula da associação dos moradores. A primeira bisneta de Amélia diz que participou das aulas. “Eu fiz no ano passado, para relembrar um pouco, porque o estudo de lá para cá mudou muito, mas a gente pôde aprender e tirar dúvidas. Como quilombo, ele abriu as portas para as faculdades, para o negro saber se respeitar e saber o lugar dele”. Para Caroline, seu relacionamento com as pessoas da cidade ficou complicado, pois muitos não compreendiam o que o termo quilombo significa. “Depois que o sítio virou quilombo vieram alguns preconceitos, mais do que já se tinha”, conta a adolescente. Priscila sente quase o mesmo que Caroline. “O impacto que a palavra quilombo causa nas pessoas faz transparecer reações diversas”, afirma a jovem que percebe o preconceito estampado no rosto de algumas pessoas. Marcos diz que, depois que o sítio virou quilombo, houve mais desunião entre os moradores, principalmente depois que muitos mudaram de religião. “Houve uma mudança entre os parentes, não existe mais a união que havia. Os benefícios que o quilombo recebe ninguém sabe para quem vai ou com quem está”. Ele alega que a falta de transparência da diretoria faz complicar as coisas. Já Fredney acredita que muita coisa mudou para melhor. “Depois do reconhecimento, as pessoas de fora e de outras cidades passaram a dar uma importância maior a essa comunidade”. Poder contar a história de sua família foi a melhor coisa que aconteceu para Paulo depois que o sítio virou quilombo. “Nós conseguimos mudar uma visão, pois, até então, achavam que negros não tinham família e eram bichos e coisas. Não é bem assim, o povo afrodescendente tem família. Temos raízes, as hierarquias e os princípios são muito antigos. Nós fomos escravizados e obrigados a deixar muita coisa de lado, mas o principal nós não deixamos, o sincretismo religioso e as nossas raízes, isso vai perdurar por milhares de anos ainda”, acredita Paulo. Alguns moram no quilombo por opção, mas muitos vieram pela falta de condições financeiras para viver na cidade. Como disse Rosemeire, o espaço está ficando pequeno e há uma preocupação grande com o futuro das diversas crianças e adolescentes que moram lá e pretendem permanecer naquele mesmo local. Antigamente, Amélia aconselhava filhos e netos a procurarem um futuro longe do sítio, para não passarem por dificuldades e terem uma vida mais confortável, mas deixava bem claro que as portas do sítio estavam sempre abertas para receber qualquer um que quisesse voltar. Rosemeire temia pelo fim trágico que o sítio pudesse ter. “Aqui é pequenininho, já tem casas muito próximas uma das outras, se todo mundo resolver construir casas, daqui a pouco não vai ser mais um quilombo, vai virar um bairro e talvez vire até uma favela. Temos que tomar muito cuidado com isso”, disse. Ela afirmava que quem tem prioridade nas terras são os moradores do quilombo e deixava claro que, se derem oportunidades para quem está fora, acabariam desmerecendo quem já mora lá há muito tempo. Tudo isso causa muita discussão, 59


principalmente com os mais velhos, que dizem que só os herdeiros diretos de Amélia Barbosa possuem direitos nas terras. “Se abrir para os herdeiros vai ter que abrir para os filhos deles também. Eles falam que os herdeiros são só os Barbosa, mas tem os Lima que um dia vão querer migrar para cá e vai sair uma grande discussão e brigas. Muitos dizem que a parte Lima da família, no passado, abriu mão das terras, mas não foi colocado nada em papel”, acreditava Rosemeire, que temia o pior. “Eu moro aqui pela necessidade. Muitos anos antes de se tornar quilombo, minha situação era difícil. Eu casei e estava na cidade, de repente deu aquela virada na vida, eu não podia mais pagar aluguel e vim construir aqui. Falei como meu avô Claro e ele aprovou. Construí e estou até hoje”, conta Ana Maria, que mora no sítio há 30 anos. Ela ainda diz gostar muito da natureza e da paz do lugar. Paulo diz ter outro motivo para morar no quilombo. “Eu moro no quilombo porque eu faço parte disso, eu não nasci aqui dentro, mas minha participação é ativa. Eu fui o único bisneto que teve contato direto com a minha bisavó”. Ele conta que é defensor absoluto da natureza e fica, muitas vezes, indignado quando alguma árvore é cortada dentro do quilombo. Ele lembra de um eucalipto seco de onde todos os dias de manhã escutava o pica-pau bicando a madeira. “Foram fazer uma festa e cortaram a árvore. Quando caiu, quebrou um monte de árvores em volta, além de tirar a casinha do pica-pau”. A situação da família de Priscila é muito parecida com a história de Ana Maria. “Nós pagávamos aluguel no centro da cidade, chegamos a passar necessidade realmente, de não ter o que colocar dentro de casa. Foi quando meu pai conversou com a tia Lula, que permitiu que construíssemos aqui. Foi tudo com muito sacrifício, tanto é que já estamos aqui faz uns oito anos e a casa ainda não está acabada. Fomos erguendo devagar e ainda não está terminada. Estamos morando aqui, realmente, porque nunca tivemos oportunidade de ter uma moradia lá fora”, conta a jovem que pretende, em breve, se casar e construir uma casa ali no quilombo para ela e o futuro marido. Para seguir o que manda o estatuto, ela teria que construir no terreno que pertence a seu pai, onde se localizam algumas nascentes, ou seja, um lugar impróprio para construção. Ela compartilhou comigo uma grande preocupação da moradora mais velha do quilombo e que também era uma grande preocupação de Rosemeire. “Uma aflição muito grande de tia Aninha é com a quantidade de crianças que no futuro construam suas moradias e aqui fique tomado de casas e talvez os herdeiros não tenham um lugar para construir, podendo virar uma grande favela”. Priscila acha que algumas normas do estatuto do quilombo devem ser revistas. “Hoje tem muitas crianças aqui e, se for levar ao pé da letra o estatuto, seria complicado. Têm casas aí com quatro crianças. Eu nem imagino quatro casas no fundo dessa casa, é absurdo. Há coisas que precisam ser revistas”. Priscila aprecia muito a natureza do quilombo. No fundo da casa dela há uma nascente e, na frente há um banco construído por seu pai onde ela diz relaxar debaixo das árvores. “Todo mundo que vem aqui fica encantado porque é muito gostoso, é como se fosse mesmo um sítio no meio da cidade”. Fredney conta que foi para o quilombo quando namorava sua atual esposa. Sua sogra morava de aluguel na casa e eles, depois de casados, passaram a morar neste mesmo lugar. Depois do reconhecimento do quilombo, sua situação foi regularizada 60


no sítio como agregado. Ele diz não pensar em sair de lá, mesmo porque gosta muito da natureza que o cerca. “Eu não moraria fora do quilombo. Hoje em dia eu não me vejo mais fora daqui, não tenho o desejo de sair do quilombo”. Antônia diz que veio morar no quilombo por um acaso e foi ficando. Ela tem um apartamento próprio em outro bairro da cidade, mas pretende continuar morando no quilombo. “Meus filhos nasceram aqui, meu marido não quer mudar daqui, eu já quis mudar para o meu apartamento, só que ele não quer ir e disse que daqui não sai. Se eu quiser morar lá no prédio eu vou, só que os meus filhos também não querem, mas eu gosto de morar aqui”, conclui Antônia. “Eu estou aqui porque aqui é meu lugar, só sairia daqui se fosse morto”, afirma Marcos, que conhece cada cantinho do quilombo. “Eu conheço toda a mudança geográfica que teve aqui, pois estou aqui desde quando nasci”. Caroline não sabe por que mora no quilombo, mas gosta de morar lá. “Eu não gostaria de morar em outro lugar, gosto de ficar aqui”, revela. Patrícia Scalli diz ser muito importante essa relação que os moradores têm com a natureza, com o meio ambiente em que vivem, o respeito com a mata. Ela também se preocupa com as pessoas que querem morar no quilombo e, muitas vezes, não possuem uma preocupação com o lugar, com a natureza e com a própria história. “Há famílias que querem morar no quilombo e muitas vezes não precisam. A grande questão é onde construir mais casas, pois há uma área de nascente que não dá para construir e precisa ser conservada. Essas pessoas que vêm de fora, não têm o respeito que os moradores possuem e a preocupação que eles têm com a mata, com as nascentes e com a história. Muitas vezes vão para o quilombo pensando somente no terreno que vão ganhar, em não pagar mais IPTU ou aluguel. As pessoas de fora já têm um pensamento mais capitalista, têm uma visão de consumo, de propriedade. As pessoas que estão lá possuem uma visão mais afetiva”. Patrícia comenta que eles também querem recuperar a área de nascente e reflorestar, para deixar o ambiente o mais natural possível. Ela percebeu que as pessoas que vêm de fora têm, como primeira ação, assim que constroem as casas, cercá-las. Para ela, isso é uma grande ofensa aos moradores vizinhos que, na verdade, são parentes. “Para essas pessoas lá não é um território, constroem uma enorme casa, por isso, a primeira coisa que fazem é por cerca”.

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Entre Família A relação entre os quilombolas está um pouco conturbada. Muitos moradores reclamam que há uma divisão entre eles. Alguns não concordam com as ações da diretoria, outros reclamam da falta de participação da comunidade e até a diferença de religião acabou os afastando um pouco. São opiniões diferentes e pensamentos diversos. O bom dia é dado, muitas vezes, apenas por respeito. De fato só na doença ou no falecimento de alguém da família que eles acabam se unindo. Patrícia conta que, após o reconhecimento das terras e da morte de Lula, muitas brigas aconteceram no quilombo, principalmente por questões de terra. “Estourou uma guerra lá dentro, às vezes, a Rose me ligava e, por telefone, me contava tudo o que estava acontecendo. Havia pessoas que tinham casa de aluguel e não moravam lá. Depois do reconhecimento não podia existir mais isso. A diretoria brigou e batalhou para tirar aquelas pessoas de lá. Elas não aceitavam e chamavam a polícia, queriam ir lá desmanchar a casinha. Um dia, ela me ligou, dizendo que havia uma pessoa lá com o trator querendo entrar para desmanchar a casa”, relembra Patrícia, que teve de mandar o relatório técnico-científico do quilombo, elaborado por ela, para a Polícia Militar, para não surgirem confusões de maiores proporções. “Eu fui conversar no batalhão, explicar o que é quilombo e o que estava acontecendo. Foi um grande processo de conflitos”. Hoje, as coisas estão aparentemente mais tranqüilas, não há tantos conflitos visíveis, mas nem todos vivem em harmonia. Rosemeire conta que por serem parentes e morarem tão próximos hoje já não há tantas brigas. “Eu meu dou bem com todos. Cada um vive a sua vida e cuida do seu pedaço; para mim não tem briga. Problemas, toda família têm, mas ninguém fica sem se olhar, sem se ajudar”. Paulo teve algumas desavenças com o pessoal da associação. Sua casa fica na parte de cima do quilombo e ele conta que, dificilmente, percorre as ruas da parte de baixo do quilombo, evitando intrigas, mas, mesmo assim, diz viver bem com todos. “Uma parte vive bem, sim, e uma parte não. Em todos os lugares há os prós e os contra, isso é normal em toda a família, mas eu creio que se for para o bem de todos, nós nos daremos bem”. Para Priscila, a relação é complicada. Ela alega que cada um tem a sua família e que, por mais que sejam parentes, cada um tem um jeito de ser. “Quando todos se reúnem com suas diferentes opiniões, geralmente temos atritos. Há pessoas que sabem lidar com isso e outras não”. Ela conta que não há muita união. “Cumprimentamos-nos por questão de educação, mas isso não é viver harmonicamente, aquele sentimento 62


familiar realmente não existe. Acho que falta muito disso”. Priscila diz que sua relação com os moradores é boa. Ela se dá muito bem com as crianças da comunidade, conversa com todos os moradores e assume que há pessoas com as quais ela tem mais afinidade que outras. Ana Maria diz que eles procuram se entender. Ela conta que há maridos machistas e como muitas mulheres lá dentro são mais irreverentes, causam alguns conflitos entre eles, mas, fora isso, ela afirma que eles estão sempre juntos em aniversários e festas da comunidade. “Quando está todo mundo junto, nos divertimos uns com os outros. Quando todo mundo se reúne é só alegria, nos distraímos e esquecemos dos problemas”. Ela procura sempre ter uma palavra de conforto para alguém que esteja passando por dificuldades, mas também gosta de ser franca com os parentes. “Todos me respeitam, se eu tiver de falar alguma coisa eu vou falar, doa a quem doer. Eu tenho um carinho especial por todos. Se a pessoa tiver um problema e quiser conversar comigo, eu vou ouvir. Às vezes, alguém está precisando de um abraço, de um aperto de mão, de um carinho e eu procuro dar isso para os meus parentes”. Ela conta que sempre que há alguém doente no sítio todos se mobilizam e se unem. Nos momentos de dificuldade, todos se ajudam, cada um da maneira que pode. Mas ela afirma que nem todos são maravilhosos. “Nem todos vivem em harmonia, mas eu vivo. Eu converso com todo mundo. há brigas, mas depois, todos voltam a ter amizade de novo. A relação que eu tenho com o pessoal aqui do sítio é de família”, conta Maria Caroline Barbosa. Antônia vive muito bem com os moradores mais antigos do sítio. Ela diz que não há muitas brigas e que ela auxilia sempre no que precisam. Antônia costuma cuidar dos mais velhos e de quem adoece e fazer companhia nos hospitais para os enfermos do sítio. “Os moradores só se relacionam bem quando estão no bar”, conta Marcos, que já brigou com vários moradores do quilombo, quando muitos não saldavam a dívida que tinham em seu estabelecimento comercial, que ficava dentro do sítio. “Eu tinha um bar aqui, mas ninguém pagava, aí eu desisti”. Ele diz que hoje se dá bem com todos os moradores e que as brigas fazem parte do passado. Fredney Dionísio é branco e descendente de italiano, ele diz que toda família tem desavenças e pontos de vista diferentes. Se a família do quilombo tem conflitos pelo fato de ele morar no ali sem ser um herdeiro das terras ele diz não saber, mas que tem uma relação amigável com todos. Ele afirma que a própria Lula autorizou que ele morasse lá dentro. Ana Maria aceita muito bem os não parentes morando nas terras, segundo ela, essas pessoas sempre estão participando junto com a comunidade. Após consulta, os moradores preferiram permitir que aquelas pessoas continuassem morando no sítio a colocá-los na rua. “Eles estão aqui há muitos anos e nós optamos por não colocá-los na rua. Do mesmo jeito que outras pessoas não têm condições de pagar um aluguel, eles também não têm”, defende ela. Por não pertencer diretamente à família, Antônia diz que acha normal as pessoas que não são parentes morarem no quilombo. Ela já ouviu uma pessoa dizer que os não parentes deveriam ir embora, mas ela afirma não se importar com essas 63


implicâncias, pois tem sua consciência tranqüila, já que sempre morou lá com o consentimento de Lula. Caroline concorda com Antônia. “Eu acho normal as pessoas que não são parentes viverem aqui no quilombo, eu não ligo. Têm alguns que convivem bem, mas há outros que não aceitam. Por mim, tanto faz eles aceitarem ou não”, diz a adolescente. Marcos também não se importa. O importante para ele é permanecer ali dentro. Priscila acredita que o convívio com os não parentes é antigo. Por isso, ela os considera como integrantes da família. “As pessoas que não pertencem, de fato, à família e que moram aqui no quilombo já estão aqui há muito tempo, desde que tia Lula era viva. Acho que nós os adotamos”. Paulo acredita que a prioridade daquelas terras deveria ser para a família. “Eu acho que a prioridade é da família; o sítio é das famílias Lima e Barbosa. As pessoas que vêm de fora não sabem da cultura, não sabem das raízes, não sabem de nada, vivem aqui como intrusos simplesmente. Eles não conheceram meus antepassados”, expõe Paulo, dizendo que é uma questão que deve ser revistas. Em sua opinião, deve ficar no sítio quem realmente necessita. “É um dos grandes problemas que eu encontro aqui dentro”.

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A diretoria da Associação Cultural Quilombo Brotas e os quilombolas Rosemeire Barbosa era a presidente da Associação Cultural Quilombo Brotas. Devido a uma doença, ela veio a falecer. Dentro do quilombo, ela era uma representação muito forte, pois queria que as coisas mudassem e progredissem. Muitos não gostavam da forma com que ela conduzia a associação. Uns alegavam pulso fraco para tomar decisões, outros que era muito rígida em alguns aspectos. De qualquer forma, foi por meio de sua influência que o quilombo conseguiu algumas melhorias. Antes de seu falecimento foi possível realizar uma entrevista com ela sobre o convívio entre os moradores do quilombo. Dentro da comunidade apenas algumas pessoas têm cargos dentro da Associação Cultural Quilombo Brotas. Muitos não colaboram e ainda criticam, contou Rosemeire. Foi estipulada pela associação uma colaboração mensal, por família, no valor de R$15,00 para a manutenção dos espaços comuns dentro do quilombo, mas muitos não pagam. “A mensalidade hoje é R$15. Mas muitos não pagam. Esse é mais um problema que enfrentamos aqui”, informou Rosemeire. “Antigamente, os moradores do quilombo se reuniam para carpir os caminhos e manter o quilombo em ordem. Hoje se percebe que não há mais esse companheirismo e o mato está crescendo, apenas alguns limpam o próprio quintal. Há muita sujeira e muito mato em todos os lugares”. Em qualquer sociedade, quem não cumpre com seus deveres é punido. No quilombo Brotas deveria ser assim, aliás, é isso que prega o estatuto. No item 22 consta: Caso não pagar a mensalidade e não trabalhar no Quilombo serão entregues três advertências e depois disso será excluído do quilombo. E no 23 diz: No último sábado de cada mês serão convocados todos os moradores para trabalhar no Quilombo, caso contrário, se não comparecer ou não apresentar nenhuma justificativa pagará o dia. Rosemeire contou que eles até tinham vontade de punir aqueles que não colaboravam, mas achava que essa atitude seria complicada. “É complicado fazer punições para quem não paga a mensalidade, vontade nós temos, há pessoas que sabemos que têm condições de pagar. Se fossem morar na cidade e pagar aluguel, nunca pagariam R$15. além disso as benfeitorias que recebemos nós distribuímos para todos, não só para os que pagam”. Benefícios como 'luz para todos', antena de Internet para os computadores, biblioteca e o salão de festas são aproveitados por todos os 65


moradores”, conta Rosemeire. A relação dentro do quilombo deveria ser de uma grande comunidade, mas nem sempre é assim que as coisas acontecem. “Têm alguns que não se envolvem em nada; quando há algo para se realizar não querem participar. Eu acho que comunidade tem que trabalhar em conjunto. Todos devem se ajudar porque é para um bem-comum. Moramos em um lugar que é da família. Uma pessoa no passado lutou para que isso existisse hoje então todos devem desfrutar de tudo em conjunto”, opina Rosemeire. Foto: Lilian Joaquim

Sede da associação na entrada do quilombo

Priscila não faz mais parte da associação. Anteriormente, ela possuía o cargo de secretária, mas devido à falta de tempo para se dedicar à função, precisou se afastar, dando assim, segundo ela, oportunidade para outras pessoas com maior disponibilidade para assumir a função. “A pessoa que faz parte da diretoria tem que estar disposta a lutar pela causa, assumir as responsabilidades. Eu não tinha disponibilidade de horário, havia reuniões e eu, como secretária, tinha que participar e não conseguia. Por isso, eu achei melhor me desvincular e dar espaço para que outra pessoa, com tempo e disponibilidade faça um trabalho bem-feito”. Priscila diz que, mesmo não fazendo parte da diretoria, procura sempre participar das atividades promovidas pelo quilombo. Para se informar, ela prefere perguntar para outras pessoas de fora o que está acontecendo dentro da própria comunidade, alegando que há uma grande falha de comunicação entre a associação e os moradores. "Sobre o que ocorre no quilombo eu procuro me informar do meu jeito, eu não pergunto aqui dentro, pois, por falha na comunicação nem todos sabem tudo o que está acontecendo. Sobre o convênio firmado com a Universidade São Francisco, eu fiquei sabendo do que se tratava porque fui conversar com os coordenadores do projeto lá na universidade. Eu sou muito 66


curiosa e cobro. Pergunto fora porque, às vezes, aqui eu não tenho o retorno que quero. Eu acesso sempre o Portal Afro ou o Quilombo Social, que sempre mostram novidades e as leis”, conta Priscila, que passou a se interessar mais por seus direitos como cidadã depois que o sítio virou quilombo. “Eu não faço parte da diretoria, mas tenho participação nas atividades que eles promovem. Quando tem festas, nós ajudamos a arrumar o local e a estender as barracas”, diz Antônia, que já desanimou com tantas promessas não cumpridas. Ela conta que foram pessoas prometeram realizar com os moradores um supletivo do ensino médio, mas as aulas nunca começaram e havia mais de dez moradores que queriam voltar a estudar. Ela ainda lembra de uma outra pessoa que tinha o projeto de construir uma estufa dentro do quilombo. “Ele veio aqui outro dia e falou que tínhamos de fazer um empréstimo de R$10 mil no banco do Brasil para começar a estufa e que era o governo quem ia emprestar esse dinheiro e nós pagaríamos com a venda dos produtos, mas ficou só nisso. E assim vamos desanimando, pois eles vêm aqui somente com promessas”, conta Antônia, que gostaria de participar mais, se houvesse comprometimento das pessoas de fora. Marcos não faz parte da diretoria do quilombo e diz também que não gostaria de pertencer. “Não há nenhuma melhoria aqui no quilombo, por isso, não faço parte dessa diretoria, antes não era assim e as coisas eram mais certas, mais transparentes”, ele conta que é chamado para as reuniões, mas não participa. Ana Maria é a tesoureira da associação, mas afirma que todos lá são uma espécie de quebra-galho. “Não fazemos só o nosso papel e sim nos encaixamos em todos, porque todos precisam de ajuda. Quando um não está o outro cobre”, conta ela, que também trabalha dentro da associação como diretora de eventos. Nas ações que a associação promove para a melhoria do quilombo. Ela diz participar com o que sabe. “Eu sirvo mais para contar a história e receber as pessoas. Não sei muito sobre as leis, pois não é a minha área, só sei o que me passam”. Por terem opiniões contrárias, Paulo disse que acabou se afastando da diretoria do quilombo para não criar mais conflitos. Ele tinha o cargo de diretor social e de comunicações. “Não tenho nenhuma participação nas ações que a associação do quilombo promove. Eu me afastei e, com essa atitude, deixei tudo nas mãos deles. Acho que ainda não é o momento de voltar e ter algum posto”. Ele conta que se afastar da diretoria o magoou muito, já que ele se sente como um dos responsáveis pelas grandes transformações do sítio. A mãe de Maria Caroline faz parte da diretoria. Ela mesma não tem nenhuma responsabilidade dentro da associação, mas tem grande participação nos projetos que envolvem os adolescentes do quilombo. “A diretoria sempre me chama para participar dos projetos. No momento, estamos com um plano de montar uma rádio comunitária aqui dentro do sítio, isso vai acontecer com a parceria de uma entidade da cidade de Jarinú, interior do Estado de São Paulo. Tem outras meninas que vão participar do projeto, que montará a biblioteca aqui no quilombo”. A garota conta que também participou de outros empreendimentos dentro do quilombo, como a realização de um curso que os ensinou a produzir filmes e desenhos animados. “Eu acho legal participar, é uma responsabilidade a mais, porque, quando assumimos uma tarefa, temos que 67


realizar. Nem todos participam, é sempre a minoria, somente umas dez pessoas. Normalmente, só a minha turma que se envolve. Eu acharia legal se todos participassem”. Fredney faz parte da diretoria como segundo secretário, mas diz participar das ações de melhoria do quilombo em partes, pois tem também suas obrigações fora. “Eu participo bastante nas reuniões para discutirmos vários projetos e dou muitas opiniões, porque, além de trabalharmos fora, temos certa preocupação aqui dentro”, conta ele, que é impressor de serigrafia na cidade. Manoel atual presidente da associação diz que eles deixam de receber benefícios do governo por não terem pessoas dentro da comunidade que busquem se informar sobre essas benfeitorias. O Governo Federal disponibiliza programas para que a comunidade quilombola se desenvolva, mas para que possam receber os benefícios eles precisam ler editais, se inscreverem informando dados sobre a comunidade e cumprirem prazos. Devido ao fato de o quilombo estar dentro da cidade, muitas pessoas deixam a diretoria para se ocuparem com suas obrigações particulares diárias e isso faz com que a associação se enfraqueça. A falta de interesse dos membros da comunidade também faz com que muitos desanimem, já que no momento do trabalho alguns não colaboram, mas na hora de aproveitar todos são beneficiados igualmente.

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Geração de renda Quando a Associação Cultural Quilombo Brotas nasceu, os moradores tinham muitos objetivos para geração de renda. No dia da inauguração da associação, em entrevista para o “Nosso Jornal”, jornal da cidade de Itatiba, Rosângela Piovesan, esposa de Paulo Marciano e secretária da associação na época, contou que estava em andamento o projeto de construir um restaurante afro e um museu da cultura negra dentro do quilombo. No jornal consta que eles pretendiam transformar o quilombo em um local de lazer para Itatiba e região para dividir com a população toda a riqueza cultural existente no local. “Faz quatro anos que o Quilombo Brotas foi reconhecido e o que eles devem ter como meta agora é a geração de renda para as famílias que vivem ali”, diz Patrícia Scalli. “Ainda serão feitas algumas iniciativas para gerar renda, não está como eles gostariam, mas estão caminhando em passos largos para conseguir”. Na opinião de Patrícia, se a comunidade continuar progredindo como está, em breve, eles conseguirão tirar o sustento do próprio quilombo. “Eles têm todas as condições para isso e estão muito perto de conseguir. Muitas famílias vão, no futuro, tirar a renda dali. As mulheres não vão mais precisar trabalhar como empregada doméstica na cidade, poderão trabalhar ali dentro e ficar mais próximas de seus filhos”. Há vários projetos que visam a geração de renda dentro do quilombo. Um deles é a agricultura, pois há mão-de-obra e terra suficiente. Alguns concordam com essa iniciativa, outros acreditam que é melhor nem investir nessa idéia. Sobre gerar renda no quilombo por meio do plantio, Fredney conta que eles já tentaram realizar uma horta comunitária, mas que não foram instruídos corretamente para desenvolver o projeto, por isso terminou, mas acredita que isso seria uma alternativa viável até para ele. “Seria muito importante se eu gerasse renda aqui dentro e não precisasse mais trabalhar lá fora”. “Através do plantio não daria para gerar renda aqui no quilombo, a não ser que seja uma coisa muito comercializada. Aqui no quilombo o que temos são bananas, manga, cana, que dá até para fazer garapa, o que, para consumirmos está bom. Para vender é muito difícil, porque temos baratear os produtos para conseguirmos concorrer com os outros lugares e, muitas vezes, o produto amadurece sem vender e acaba se perdendo”, diz Ana Maria que é a favor de cada família ter uma horta dentro do quintal 69


para o próprio consumo. “Daria certo se fosse uma plantação que gerasse muita renda e que todos fossem viver disso”. Priscila acredita que daria perfeitamente para gerar renda dentro do quilombo por meio do plantio, mas como uma fonte extra, pois todos têm uma ocupação fora e não podem se dedicar inteiramente à plantação. “Falta tempo e união também das pessoas, nem nas reuniões da associação elas participam. Mas acredito que daria certo”. Ela acha que seria mais fácil gerar renda por meio de alguma atividade que cada um pudesse realizar dentro de sua própria casa. “Artesanato seria uma boa opção, pois cada um pode fazê-lo em suas horas vagas, em casa. Havendo um curso de artesanato, cada um faz no tempo que tem livre”. No passado, quando havia a horta, ela disse que eram as 32 famílias para cuidar do mesmo lugar, então acabou não dando muito certo, pois ficou desorganizado. “Antes tinha uma horta aqui e eles vendiam os produtos. Com o tempo, ninguém mais teve vontade e acabou”, lembra Maria Caroline, contando que a horta ficava na parte de cima do quilombo e que eram as mulheres que mais tomavam conta, principalmente as mais velhas. “Eles mexiam na horta de sábado e domingo, plantavam verduras no tempo livre”. Antônia conta a mesma história de Caroline. “Eles já fizeram uma horta e vendiam verduras, mas, depois, pararam de vender e a horta terminou”, diz ela que confia na horta como uma boa opção para a geração de renda no quilombo. Tudo ali dentro pode gerar renda, acredita Paulo, mas, segundo ele, deve ser com muita ordem. “Desde que seja tudo bem-feito, uma coisa modesta, mas bem-feita, planejada e arrumada, poderíamos gerar renda e, principalmente, mostrar uma coisa bonita. Com o que tem lá, hoje, não dá, precisaria melhorar”. Quando ainda fazia parte da associação, Paulo tinha muitas idéias para se gerar renda no quilombo. “A idéia era aproveitar toda a vegetação, plantar banana em volta das casas, termos vaca de leite, goiabeiras, café, um pouco de tudo e, por meio disso, gerar renda com a produção de doces caseiros em fogão de lenha, logicamente com acompanhamento”. Marcos, que trabalha na cidade como pintor, acha que seria muito bom se ele pudesse ter uma renda trabalhando dentro do quilombo. “Seria bom fazer alguma atividade para ganhar dinheiro dentro da comunidade”. Ele conta que o governo deu todos os instrumentos para eles confeccionarem a horta comunitária, mas que pelo fato de as pessoas não serem unidas, não conseguiram dar continuidade.

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O preconceito e a relação com o exterior Darcy Ribeiro em seu livro O povo Brasileiro diz que qualquer povo que passe por condições de exploração e violência como sua rotina diária através de séculos sairá dela com marcas duráveis. Todos os brasileiros de hoje provêm daqueles negros e índio que foram torturados. A doçura e a crueldade aqui se uniram para fazer do povo brasileiro uma sociedade de pessoas sofridas e brutais que são. “A mais terrível de nossas heranças é esta de levar sempre conosco a cicatriz de torturador impressa na alma e pronta a explodir na brutalidade racista e classista. Ela é que incandesce, ainda hoje em tanta autoridade brasileira predisposta a torturar seviciar e machucar os pobres que lhes caem às mãos. Ela, porém provocando crescente indignação nos dará forças, amanhã para conter os processos e criar aqui uma sociedade solidária” (1995:120). Com o fim do projeto de construção do anel viário que iria passar por dentro do sítio Brotas, Patrícia acredita que muitas pessoas na cidade vêem o quilombo como um obstáculo para o desenvolvimento do município. Ela diz ter presenciado muitos atos preconceituosos contra os moradores do quilombo. “Os vizinhos jogavam lixo dentro do quilombo. Aquelas casas bonitas que se vê ali em volta, de muros altos, jogavam caixas de alimentos na mata”. Ela disse que há uma falta de consciência, pois os moradores também colocavam madeirinhas com banana para o sagüi, mas não percebiam que jogando lixo ali o animal também poderia comer e adoecer. “Os vizinhos do quilombo não conseguiam ver aquele lugar como um espaço onde havia pessoas morando com uma forma de viver diferente da deles. Eles não encaravam o quilombo como um sítio, mas sim como um terreno baldio, algo que, com o tempo, vai ser eliminado”, revela. Alessandra Alvarez é vizinha do Quilombo Brotas há cinco anos. Ela conta que não conhece muito bem os moradores da comunidade e que tem mais contato com as crianças, mas sabe que eles têm alguns problemas relacionados à infra-estrutura do local. “Eu acho que, pela ênfase que se dá, por ser um quilombo, o respaldo da prefeitura é muito pouco. Não há saneamento básico e calçamento lá dentro. Acho que dão mais importância para o quilombo fora do município do que aqui”, conta 71


Alessandra, que vê ações assistencialistas em favor do quilombo somente nos finais de ano. A vizinha acha que nem os próprios moradores têm noção da importância ou do significado deste quilombo. “A importância do quilombo é mais para os outros do que para eles. Eles não enxergam o lugar com um caráter histórico e cultural. Eu vejo que a grande maioria não tem essa noção”. Ela observou isso quando teve uma moradora do quilombo trabalhando em sua casa. “Ela trabalhou durante um mês na minha casa e contava algumas coisas que dava a impressão de não haver uma consciência sobre o espaço, ou seja, muitos vêem somente como um lugar que eles têm para morar e não pagar aluguel”. Alessandra não participa das festas que o quilombo realiza, pois acha a comunidade um pouco fechada. “Quando há algum tipo de comemoração é mais entre eles e não há um envolvimento da vizinhança. Nos cinco anos em que estou aqui, nunca ouvi falar de nenhum problema com a vizinhança e nem interação”. Ela percebe que as mulheres são mais ativas dentro da comunidade. “O que chama a atenção é que alguns moradores são ociosos, e a maioria destes são homens. Vejo que as mulheres saem cedo para trabalhar, vão levar os filhos na escola, voltam no final da tarde. Mas, entre os que não produzem nada, a grande maioria são homens”, conta. O fato ser vizinha de um quilombo não muda em nada seu modo de viver. “Os problemas são os mesmos enfrentados em qualquer lugar, não é pelo fato de ser o quilombo”. Ana Maria Ricci mora próxima ao quilombo há seis anos e não vê nenhuma diferença em morar ali. Sua relação com os moradores é pouca, pois ela não fica muito tempo em casa. “Tem uma vizinha que tem uma relação maior com eles, às vezes chega a ir até lá dentro. Como sou mais reservada, somente cumprimento. Mas nunca tive nenhum problema com moradores do quilombo, inclusive três pessoas que moram no quilombo já fizeram limpeza na minha casa”. O fato de várias pessoas morarem no mesmo lugar não incomoda a vizinha. “Eu me sinto segura por morar ao lado do quilombo, pois eles estão sempre aqui. Como eu viajo muito para São Paulo várias vezes deixo a casa vazia e quando retorno eles me avisam se passou alguém por aqui”. Ela percebe que o poder público ajuda um pouco. “Às vezes, vejo o ônibus levando as crianças ao teatro. Sei que eles têm necessidades e a maioria fica sem trabalhar”. Alessandra Piacenzo de Freitas Felipe não vive mais ao lado do quilombo, mas morou até 2006 nos arredores da comunidade. Ela tinha uma relação bem próxima com alguns moradores do quilombo, mas lembra que na vizinhança, havia pessoas que não gostavam de morar próximo de uma comunidade tão grande onde vive uma grande quantidade de pessoas. “Na vizinhança, havia moradores que não gostavam deles morarem lá dentro e não queriam conversar ou não queriam amizade, tinham preconceito. Criaram certa barreira por serem negros e também pelo fato de várias pessoas morarem lá dentro, pois lá não moram só negros”. Ela se interessava pelo que acontecia lá dentro, mas, muitas vezes, percebia 72


que eles não gostavam de se abrir. “Era difícil de saber o que acontecia realmente lá dentro. Eu acho que eles são meio fechados e que isso dificulta a relação deles com a sociedade”. “Eles não deixam o poder público realizar ações ali dentro, eles têm medo de que invadam o espaço deles”. Ela acha que deveria haver mais ações do poder público lá dentro, como a construção de uma escola e ainda de médicos até o local. “Poderiam ser atendidos lá dentro, deveriam fazer ações lá, pois tem se feito muito pouco. Acho também que eles não colaboram muito, às vezes, querem que caia tudo do céu e, quando as coisas vêm muito fácil, eles desconfiam”, conta ela, que participava presenteando as crianças em épocas como Páscoa e Natal. Alessandra percebia também que eles não gostam muito de divulgar a própria cultura. Ela acredita que eles tinham vergonha, pois só ficou sabendo que o lugar era um quilombo depois que saiu na mídia. “Eu sei que tem muita coisa bonita e boa lá dentro para ser mostrada como a casa da Lula e a tenda de Umbanda, mas tem gente que não deixa, não são todos. Eu sei que tem algumas pessoas lá que não deixam isso ser divulgado, ser mostrado. Acho bonito, faz parte da nossa cultura, não é só dos negros ou do quilombo, faz parte da cultura de Itatiba e do Brasil, até da minha cultura”. Ela lembra que alguns amigos gostariam de conhecer a comunidade, mas tinham receio, pois eles não se abrem para todos, diz. Ela conta que servia muitas vezes de intermediária de pessoas que queriam realizar benfeitorias dentro do quilombo. Ali deveria ter uma secretaria ou alguém que recepcionasse quem chega ao portão. “Isso facilitaria bastante o contato com eles”. Por ainda ter um contato bem próximo com alguns moradores, ela sente que eles, muitas vezes, não querem progredir ou querem que as coisas caiam do céu. “Eu sei que eles têm muitas oportunidades que não são utilizadas”. Na sociedade em que o negro vive, é considerado culpado de sua desgraça. Nessas circunstâncias, seu sofrimento não desperta nenhuma solidariedade e muito menos indignação. Com isso prevalece em todo o Brasil, uma expectativa que leva os brasileiros a supor que os negros desapareçam pela branquização progressiva, afirma Darcy Ribeiro no livro. Falar para as pessoas que se mora em um quilombo pode constrangedor para quem precisa ser aceito pela sociedade. A falta de conhecimento sobre o que essa palavra hoje realmente significa faz com que, muitas vezes, as reações não sejam as melhores. Antônia diz que não sofre nenhum tipo de preconceito por morar em um quilombo. As reações das pessoas, quando ela diz morar na comunidade de Brotas, são diversas. “Quando eu falo que moro em um quilombo as pessoas imaginam que eu moro em uma casa de barro, que meu quintal é de barro, que eu tenho fogão de lenha”. Ela revela que sente um ar de preconceito quando as pessoas reagem assim. “Há pessoas que, por pensar assim, mostram preconceito. Há pessoas que têm preconceito contra negros, mas há outras que gostam e que querem vir para conhecer a comunidade, acham que tem senzala e o poste de prender os negros”. A imaginação equivocada das pessoas, ou seja, o senso comum mostra que muitas pessoas não fazem a mínima 73


idéia do que a palavra quilombo significa hoje, e o que era no passado. Os objetos citados acima são justamente os quais jamais poderiam existir dentro de um quilombo, local construído historicamente para servir à liberdade. Isso mostra como as pessoas, de uma maneira geral, entendem pouco da sua própria história. Foto: Paula Carolina Batista

Saída na parte superior do quilombo

Ela ainda conta que há muitas pessoas em Itatiba que não conhecem o quilombo. “Acho que eles têm medo de conhecer, acham que não podem entrar, que terão de pagar pedágio, que serão mal-tratados ou imaginam que só podem entrar parentes ou negros”. As filhas de Ana Maria sofreram muitos preconceitos na escola; eram motivo de gozação pelos colegas por serem negras. Ela conta que foi diversas vezes na escola brigar para que as respeitassem. “Os meninos falavam que minha filha era pano de velório ou semente de bucha. Elas chegavam reclamando em casa e eu ia à escola e brigava muito”. Depois que Ana Maria disse à direção da escola que iria comunicar à diretoria de ensino do município sobre o que estava se passando ali, os problemas terminaram. “Cheguei e falei que eles deveriam tomar uma atitude, senão eu iria mandar uma carta para a diretoria de ensino do município, pois eles estavam ensinando o preconceito para as crianças”, ela ainda conta que todos ficaram assustados com sua reação. “Todo mundo ficou com os olhos arregalados. Eu disse também que ela tinha espelho em casa para saber que é negra e o reflexo do pai e da família toda, por isso, eles não precisam ficar lembrando que a cor da pele dela é escura. Completei dizendo que o nome dela não é negra e sim Patrícia. Passou um tempo e a escola melhorou”. Depois de ter passado por essa situação, Ana Maria é otimista em dizer que hoje, mesmo enfrentando os preconceitos, eles têm liberdade. “Somos bem recebidos, não somos maltratados. Ainda enfrentamos vários problemas. Hoje em dia, o mundo inteiro enfrenta vários tipos de preconceitos, não somos só nós, os negros”. Ana Maria conta que no início foi complicado para os jovens aceitarem a palavra quilombo. “No começo do quilombo foi difícil, principalmente para os jovens, 74


eles mesmos colocaram o apelido daqui de QB (Quilombo Brotas) e falavam 'eu moro no QB', pois quilombo era uma palavra muito pesada para eles”, revela ela, que, com o tempo, foi conscientizando os jovens sobre o significado do lugar. Seria de fundamental importância que a diretoria, esclarecesse para a comunidade de Brotas e posteriormente discutir isso fora da comunidade - a importância de um quilombo na história do Brasil, todo o processo de luta pela liberdade. Principalmente para as crianças, que então cresceriam com uma idéia completamente diferente do que significa um quilombo e a parti de então, elas poderão sentir orgulho de morar em um espaço que sempre esteve cercado pela aura de luta pela liberdade e jamais sentiriam vergonha. Ela teve algumas experiências boas por ter como residência o quilombo. Primeiro no tratamento de sua filha que sofria de Lúpus Reumatóide e por morar no quilombo, conseguiu que fosse atendida pelo Hospital da Unicamp. Em outro momento, foi atendida com mais atenção em uma agência bancária de Itatiba, por dizer que residia no Quilombo Brotas. “Se tem alguém aqui que não usa o nome do quilombo é porque é burro. O quilombo tem uma força muito especial e abre portas”. Ainda há preconceitos, afirma Fredney. “Mesmo estando fechado aqui, o pessoal ainda olha com muito preconceito. Quando falo que moro em um quilombo, eles entendem com respeito e, ao mesmo tempo, com um pouco de preconceito. Isso é falta de conhecimento das pessoas e falta de virem conhecer o quilombo”, acredita ele, que diz trabalhar para serem mais conhecidos na cidade, por meio da divulgação das festas que promovem. Depois que o sítio virou quilombo, Priscila acredita que as pessoas passaram a reconhecer bem mais a comunidade, mas também sente algo no ar quando fala do quilombo. “Agora as pessoas têm um pouco mais de cisma. Quando nós dizíamos que morávamos no sítio, era normal, agora, quando falo que moro no Quilombo Brotas, causa um impacto nas pessoas, elas passam a me enxergar de uma outra forma. Dependendo da pessoa, a reação pode ser boa ou ruim. Quando é boa, é com mais respeito e quando é ruim, com espanto”. Ela acha que, muitas vezes, os moradores do quilombo sofrem preconceitos pela falta de informação das pessoas. “As pessoas perguntam se nós moramos ainda em senzalas, se as casas são de terra. Por falta de informação, acabam discriminando, fazem caras e nós percebemos pela expressão do rosto. Em Itatiba, o preconceito é muito camuflado, eles não falam que não gostam de negros, mas mostram em pequenas formas. Às vezes, é um gesto ou até uma vaga que te negam”, desabafa Priscila, que acredita ter perdido vagas de emprego por ser negra e morar no quilombo. “Eu sempre coloco em meus currículos que moro no Quilombo Brotas e acho que perdi o emprego na semana passada porque eu disse que moro aqui”. Ela contou que participou recentemente de uma entrevista de emprego e o entrevistador não conhecia o quilombo. “Na sala de entrevista ele falou que não sabia da existência de um quilombo em Itatiba e, ainda cismado, perguntou 'ainda existe isso?'”, conta Priscila, indignada, pois não foi contratada para trabalhar na imobiliária. Caroline revelou que não sofre preconceitos por morar em um quilombo, mas que algumas de suas amigas são satirizadas. “Quando aqui passou a ser chamado de 75


quilombo, foi motivo de zombaria entre os colegas. O pessoal zoava porque não conhecia, era preconceito. Eu gostaria de mostrar que era diferente do que eles estavam falando. Eu nunca tomei nenhuma atitude, mas comigo ninguém nunca falou nada”. Ela conta que não esconde de ninguém que mora em uma comunidade quilombola, pois tem uma relação boa com o lugar. “Eu acho que qualquer um poderia morar aqui, é um lugar como qualquer outro”. Marcos, por ser filho de Lula, é muito conhecido na cidade e, por esse motivo, acredita que não sofre preconceito, já que as pessoas ainda o associam com o sítio da Lula e não com o quilombo. “Todos têm referência como Marquinho da Lula, o pessoal conhece mais aqui por sítio da Lula”. Paulo sempre fala, com muito orgulho, que mora em um quilombo para as pessoas e diz que o preconceito da sociedade é oculto. “Hoje, o preconceito é um dos piores, é o preconceito camuflado. Por sermos afrodescendentes, ou mestiços, acham que temos de trabalhar o dobro para ter um pouquinho de valorização. As pessoas têm um preconceito muito grande, principalmente quando há diferenças econômicas. A nossa raça sofre, é uma coisa normal”, se conforma Paulo, mas diz que, por morar no quilombo, não sofre preconceitos. O sábio Darcy Ribeiro afirma que a característica distintiva do racismo brasileiro é que ele não incide sobre a origem racial das pessoas, mas sobre a cor de sua pele. Mesmo porque, corretamente, não existe raça negra, raça branca, raça amarela ou raça vermelha. Existe a raça humana, e dentro dela, inúmeras diferentes etnias. Usa-se a palavra raça de forma equivocada. E nessa escala, negro é negro, o mulato já é pardo e como tal meio branco, e se a pele é um pouco mais clara, já passa a incorporar a comunidade branca. Acresce que aqui registra, também, uma branquização puramente social ou cultural. É o caso dos negros que, elevando-se socialmente, com êxito reconhecido, passam a integrar grupos de convivência dos brancos, a casar-se entre eles e, afinal, a serem tidos como brancos. Com isso, mais do que preconceito de raça ou de cor, têm os brasileiros arraigado o preconceito de classe. As enormes distâncias sociais que medeiam entre pobres e remediados, não apenas em função de suas posses, mas também pelo seu grau de integração no estilo de vida de grupos privilegiados. Como por exemplo, analfabetos e letrados, como detentores de um saber vulgar transmitido oralmente ou de um saber moderno, como herdeiros da tradição folclórica ou do patrimônio cultural erudito, como descendente de famílias bem situadas ou de origem humilde. Isso opõem pobres e ricos muito mais do que negros e brancos. Apesar de sofrerem preconceitos pelas pessoas brancas da cidade, os moradores do quilombo tratam as pessoas brancas que moram lá dentro da comunidade com total igualdade. A mãe de Priscila é branca e ela acha normal terem pessoas brancas morando no quilombo. “Eu não tenho nenhum tipo de preconceito, nem contra branco ou contra negro. Meu pai é negro e minha mãe é branca, e eu saí mulata e estou noiva de um rapaz branco. Meus filhos podem ser brancos ou mulatos, não sei. Eu acho que hoje em dia é tudo uma miscigenação, não existe negro puro. Eu acho que não tem diferença, eu vejo uma pessoa branca aqui dentro do quilombo como se fosse uma pessoa negra”. Ana Maria diz que as pessoas brancas que moram no quilombo são todas 76


descendentes de negros também, então, não há motivo para ter preconceitos. Paulo acredita que, historicamente, não existem negros nem brancos no Brasil e sim uma grande mistura. “Por causa da própria miscigenação, na verdade, não existe negro no país. Quando vinham nos navios negreiros, as mulheres já chegavam aqui todas grávidas. Não existe negro puro no Brasil, somos como todos, não temos uma linhagem”. A forma peculiar do racismo brasileiro decorre de uma situação em que a mestiçagem não é punida, mas louvada. Já que aqui as uniões inter-raciais nunca foram tidas como crime nem pecado. O surgimento do povo brasileiro deu-se por meio do cruzamento de uns poucos brancos com multidões de mulheres índias e negras. Mas com isso não chegamos a ser uma democracia racial, pois tamanha é a carga de preconceito, opressão e discriminação antinegro que ela marca. Já que a expectativa que o negro desapareça com a mestiçagem é uma outra forma de racismo. “Existe uma população negra muito grande em Itatiba e que a história desse povo não é contada, se jogou para debaixo do tapete e isso é preconceito, é discriminação. Itatiba tem uma dificuldade muito grande de lidar com o diferente, uma intolerância muito grande, que eles precisam aprender a lidar”, opina Patrícia. O quilombo tem uma importância para a cidade de Itatiba, ressalta a antropóloga do Itesp. As pessoas precisam repensar sua história, o papel do negro no município e como vive essa população hoje. Ela diz que precisa ser revista a relação da cidade com a população negra. “É um momento de passar a limpo essa história e dar o papel de protagonista a quem merece, não como um gueto e sim como uma população que respeita a comunidade. Mas, infelizmente, são vistos como uma pedra no sapato, um incômodo”, desabafa. “A relação do quilombo com o poder público e também com a cidade de Itatiba sempre foi muito complicada. Eu acho que a cidade precisa urgentemente repensar a sua relação com os negros, porque Itatiba foi a segunda cidade em número de negros escravos do Estado de São Paulo durante o período do café e tem toda uma história de ser a primeira cidade a ter libertado os seus escravos, mas nunca houve uma discussão sobre essas questões, então, se passa um trator em uma história que é muito bonita, que é dos negros, da luta e da resistência”, diz Patrícia. Ela ainda acrescenta que o preconceito na cidade é disfarçado. “Em Itatiba, as pessoas não falam, mas olham de um jeito diferente, ficam medindo e é de propósito, eu senti isso. A cidade tem que fazer uma reflexão e assumir porque, se não aceitar que tem preconceito e ficar jogando para debaixo do tapete, esse problema nunca será ultrapassado. O processo de superação é você saber que existe preconceito e discriminação, mas não quer ser assim e trabalhar para ser diferente. Eu acho que Itatiba tem muito que aprender”. Segundo Darcy Ribeiro, diferentes de outros países, no Brasil há um racismo assimilacionista, o qual não afasta o alterno e nem o põe à distância maior possível, para admitir que ele conserve, mesmo que longe, sua identidade para continuar ele mesmo Esse tipo de racismo passa uma imagem de maior sociabilidade, quando, de fato desarma o negro para lutar contra a pobreza que lhe é imposta, e dissimula as 77


condições de terrível violência a que é submetido. Isso faz com que o próprio negro se submeta a uma condição de melhoramento para que cada vez mais se pareça com a sociedade que impõe sua cultura e modo de viver. Com isso acabam abandonado suas próprias origens para se misturar ao que natural do outro, sem saber que sua própria vitória só é alcançável pela revolução social. O vigor da ideologia assimilacionista assentada na cultura e das atitudes que começam a generalizar-se entre todos os brasileiros de orgulho por sua origem multirracial, e dos negros por sua própria ancestralidade, permitirão, provavelmente, enfrentar com êxito as tensões sociais decorrentes de uma promoção do negro, que lhe preveja uma participação igualitária na sociedade nacional. É preciso que assim seja, porque somente assim se há de superar um dos conflitos mais dramáticos que desgarra a solidariedade entre brasileiros.

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A religião Rafael Sanzio Araújo dos Anjos conta no livro Quilombos Tradições e Cultura de Resistência que entender a religiosidade de origem africana continua sendo uma das grandes possibilidades de entendimento das regiões de origem dos descendentes. Nos antigos quilombos, como nas comunidades formadas por povos de origem bantu, a reza tem uma força particular. Em quase todas as famílias existe um membro que detém essa sabedoria espiritual. Patrícia Scalli apresenta em seu relatório a teoria de que as religiões afro brasileiras, até os anos 30 poderiam ser incluídas na categoria de religiões étnicas ou de preservação de um patrimônio cultural dos antigos escravos e seus descendentes, pois mantinham vivas as tradições de origem africana. Com o passar do tempo tornaram-se bastante diversificadas propiciando o desenvolvimento de novas religiões como é o caso da Umbanda que teve sua formação no Brasil originando-se do encontro de tradições africanas, espíritas e católicas. Originou-se do Candomblé de Angola e o de Caboclo. No Candomblé de Angola tem fundamental importância o culto dos caboclos. Ela cita Reginaldo Pradi, autor de As Religiões Negras no Brasil como fonte de sua pesquisa. O primeiro terreiro de Umbanda no Brasil surgiu no Rio de Janeiro por volta de 1920. “Os rituais de Umbanda são muito próximos do candomblé dos ritos de Angola e Caboclo. Seu panteão tem à frente orixás-santos dos candomblés e xangôs de destaque que está ocupada por entidades desencarnadas semi-eveméricas ou encantadas de origem desconhecida. A Umbanda é a religião dos caboclos, baiadeiros, pretos velhos, ciganas, exus, pombagiras, marinheiros e crianças” (Pradi, 1996:70). As terras do Quilombo Brotas são marcadas pela religião que os moradores da comunidade praticavam. No meio da mata, há os lugares destinados para as oferendas típicas da Umbanda. Tia Lula era uma mãe-de-santo muito conhecida na cidade e, há alguns anos, muitos de seus sobrinhos e moradores do sítio participavam dos rituais religiosos que ela realizava. Vários moradores do quilombo seguem hoje a religião evangélica e mantêm a tenda de Umbanda desativada. Realizam o culto dentro de um salão construído junto à casa de uma das moradoras do quilombo. Ana Maria explicou que mudou de religião quando sua filha, Andréia, e seu marido estavam passando por sérios problemas de saúde. “Ninguém encontrava a cura da doença de minha filha, eu estava em uma situação muito ruim, no fundo do poço. Meu marido estava cego e Deus entrou na minha vida em uma época de muita dor, mas 79


graças a Deus eu vi a recompensa”. Andréia veio a falecer algum tempo depois e seu marido também. “Não importa que Andréia tenha morrido, nós não viemos à terra para ficar. Meu marido também morreu, mas não morreu de cegueira. Eu recebi ajuda da igreja, em dinheiro, em uma época em que os meus filhos não tinham condições de me ajudar e o pessoal do sítio estava em uma situação ruim”. Foto: Lilian Joaquim

Altar da tenda de Umbanda

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Junto com Ana Maria, outros moradores do quilombo se tornaram evangélicos, talvez em solidariedade às pessoas que estavam doentes, ou por opção. Ana Maria, que era espírita e depois passou a seguir a religião de tia Lula por algum tempo, contou também que antes dela outros moradores do sítio também já tinham mudado de religião. Ela diz que a igreja está dentro do sítio mais por causa das crianças cujos pais não freqüentam nenhuma religião. “É um meio de mantermos as crianças aqui dentro. Nós procuramos abrir os olhos deles para as drogas para que assim vejam que o mundo lá fora não tem nada a oferecer e que existe um caminho diferente”, diz Ana Maria Marcelino de Lima. Segundo ela, a igreja existe lá antes do sítio virar quilombo e que as crianças passaram a ter algo voltado para elas por meio da igreja. “Nós temos parentes que têm condições, mas eles nunca chegaram a ajudar as crianças daqui, nunca chegaram a fazer uma benfeitoria para essas crianças, fomos só nós mesmos”. Fredney agora é evangélico, mas diz nunca ter feito parte da tenda de Umbanda do quilombo. Ele conta que era católico e mudou de crença, pois queria ter alguma religião para seguir. Paulo diz que todos os moradores do sítio praticavam a Umbanda quando tia Lula era viva, mas devido a interferências externas, de outras culturas, essa tradição religiosa foi perdida. “Andaram até quebrando algumas estátuas, eu acho que cada um tem sua opinião. Se querem mudar a religiosidade não tem problema, mas aquilo é um patrimônio dos nossos ancestrais, precisamos deixar lá”. Ele acredita que a tenda de Umbanda e a casa de tia Lula, se conservadas, podem também ser uma fonte de renda no futuro. “É uma história, tem estátuas lá de mais de 100 anos que estão se desmanchando”, conta Paulo, que também deixou de seguir a Umbanda como religião. “Hoje eu tenho uma crença, acredito em um criador, não tenho uma religião, mas todos que estão lá dentro do quilombo praticavam a Umbanda quando a tia Lula era viva, todos tinham o 'seu pezinho na cozinha', como se costuma dizer”. Ele afirma que todos iam lá e participavam dos benzimentos e das rezas, “Era dor de garganta, namorados e namoradas, enfim, tudo era resolvido ali”. Marcos conta que sua mãe, a Lula, era sincera e boa e ajudava muita gente. Da tenda de Umbanda ele conta que não sabe de muita coisa, pois não freqüentava assiduamente a religião, já que era muito pequeno. Ele diz que muitas pessoas de São Paulo freqüentavam a tenda, que era muito respeitada. “Ela sempre ajudou o pessoal do sítio, antes de virar quilombo, ela fazia muitas doações”. Lula nunca chamou nenhum parente para pertencer à religião, conta Marcos. “Ela falava para eles irem se quisessem”. Marcos diz ainda ser Ogã (pessoa que toca o atabaque e sabe os pontos das oferendas), mas não freqüenta. “Eu sou ateu e nunca levei a religião a sério”. O filho de Lula acredita que o desemprego foi um dos fatores que fizeram com que os moradores do sítio mudassem de religião. “Às vezes, quando se está desempregado, procura-se uma religião para melhorar a situação. Acho que isso influenciou as pessoas a mudarem de religião aqui no quilombo e cada um ficou em um caminho”. Marcos conta que, na época, alguém de uma igreja evangélica arranjou emprego para as pessoas do quilombo. “Eles conseguiram um emprego e isso influiu bastante, mas no sangue deles ainda tem um pouco da Umbanda, pois a mãe de muitos que hoje são evangélicos, eram umbandista”. 81


e do significado dessas terras a maioria sabe, alguns acham que a lei são eles que fazem e não querem saber da história. Outros acham que, depois que virou quilombo, não ficou bom. Isso tudo porque essas pessoas não participam da comunidade”. Hoje, com a internet, Fredney acredita que se torna difícil as pessoas lerem um livro ou cultivarem uma história. “Eles vão buscar todo o conhecimento na Internet, então, se torna um pouco difícil”. A antropóloga do Itesp acredita que o maior risco já foi superado, o de o sítio ser desapropriado. Agora os problemas que eles enfrentam são os mesmo que perturbam qualquer comunidade urbana, como violência, drogas e, por estarem perto da cidade, a degradação do meio ambiente no entorno. Com isso, os animais vão todos para aquela área e eles vão ter de lidar com isso. “O ideal seria que uma ONG que tivesse o trabalho de ideologia e meio ambiente os apoiasse, pois eles vão precisar desse tipo de ajuda, já que os animais tendem a se refugiar lá, porque não tem mais mata ao redor”, prevê. Patrícia acredita que outra ameaça que eles correm é a de retrocederem e não avançarem. “Determinadas lideranças tendem a atrasar as coisas, agindo de má-fé, aí as organizações se afastam e todos acabam sendo prejudicados por essa liderança”. O falecimento de Rosemeire, ex-presidente da associação, também é um fator preocupante, diz Patrícia, pois eles têm alguns problemas com drogas. “As mulheres bateram de frente e deram uma amenizada nesse problema, mas agora vai ficar mais complicado. Eu espero que tenha algum jovem que continue o trabalho que ela desenvolvia, senão vai ser muito difícil; eu me preocupo com isso”, lamenta Patrícia, esperando que a juventude participe mais, pois a situação pode estagnar ou até retroceder e, assim, as pessoas de lá podem perder o que conquistaram por não se organizarem.

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Foto: Lilian Joaquim

Córrego onde eram feitas as oferendas da Umbanda para os seres da água

O livro Quilombos tradições e culturas de resistência conta que na religião está a maior dificuldade na afirmação cultural dos afrodescendentes, já que os cultos e as manifestações estão se encolhendo intimidados pelo movimento neopentecostais. “se nos primeiros tempos a rejeição da religião era absoluta, essa atitude tendia a uma separação de mundos que permitia as práticas originárias do velho continente, embora isoladas ou mesmo escondidas. O movimento de atração dos negros à Igreja com argumentos do sincretismo favorecia o disfarce. A aceitação, com ressalvas e branqueamentos, para facilitar a digestão cristã fez que boa parte da liberdade de cultos se acentuasse. Mas o movimento atual visa à extinção de qualquer marca original, o esquecimento total de onde se veio” (Anjos, 2006:89).

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Mantendo um Quilombo no meio da cidade Com a cidade tão próxima, os jovens se interessam mais pelo que há lá fora e não dão valor para sua própria história de dentro do quilombo. Com isso, a memória vai se perdendo e o sentido de tudo aquilo existir pode acabar. Mas, por outro lado, a comunidade de Brotas não sofre com o êxodo rural, que costuma acontecer nas comunidades mais afastadas, em que os jovens vão procurar melhores condições de vida na cidade. “No quilombo urbano todos trabalham em empregos informais, alguns são aposentados. Como não plantam, vivem na informalidade e agora estão tentando mudar isso com a fabricação de artesanato. É uma vida muito dura, pois se perdeu a relação com a agricultura e como se trata de um gueto, não há escolarização, mão-deobra qualificada e acabam pegando os piores trabalhos”, diz a antropóloga do Itesp. Antônia Donizete de Araújo acredita que um quilombo no meio da cidade sobreviva normalmente, com todos trabalhando tendo sua própria renda. “Não precisamos ficar plantando, então, cada um tem que procurar o seu sustento”. Marcos também compartilha do mesmo pensamento. “Nos sobrevivemos do nosso trabalho, nos virando como podemos”. Ele também acha que a história vai se perder, pois não sente que os jovens se interessam por ela. “Eles só querem contar vantagem, para eles, o quilombo não é motivo de orgulho. Deveria haver uma pessoa que passasse a história do quilombo para frente”. Antônia acredita que é difícil manter a história no quilombo como antigamente já que antes não existiam tantas atrações fora do sítio. “Por estar perto da cidade, pode ser que a história vá se perdendo. Agora as crianças querem só saber de lan house, vídeo game e jogar bola”. Se houvesse um museu dentro do quilombo, Paulo acredita que eles conseguiriam despertar mais a curiosidade dos jovens para a história da família. “Poderia reunir material da família e fazer com que o pessoal mais novo contasse a própria história. Isso seria um jeito de manter vivo o que tanto minha bisavó e os antigos preservaram, que é a família”. Ana Maria já tem outra visão, talvez por pertencer à diretoria da associação e estar envolvida com as ações empreendidas pelo quilombo. “A consciência da história 84


A cultura africana e quilombola Não existe algo que defina o que pode ser chamado ou não de cultura quilombola. Muitas das tradições que vivemos e das tecnologias que sempre utilizamos em casa e no campo são de origem africana e foram adaptadas no Brasil para a sobrevivência da comunidade negra. Segundo o livro Quilombolas, tradições e culturas de resistência, o arado, utilizado para remover a terra de forma adequada, e a semeadora, que cava o buraco e enterra a semente no solo, são instrumentos importantes para o sucesso da plantação e sempre foram utilizadas nos reinos africanos. Há resquícios da cultura africana no cotidiano de todos os brasileiros, na medicina, religião, mineração, arquitetura e construção, artesanato, culinária, relação com a terra, fabricação de utensílios de cerâmica e palha e, inclusive, na língua. Com isso, podemos concluir que, mesmo que os moradores do Quilombo Brotas não quisessem manter nenhuma característica da cultura quilombola, seria impossível, pois a cultura africana é intrínseca ao modo de vida de qualquer brasileiro. O mito que se cria em torno da palavra quilombo faz com que muitas pessoas criem expectativas erradas e acabem se frustrando quando conhecem o Quilombo Brotas. Por estarem na cidade, a preocupação de querer mostrar para o mundo exterior algo da cultura africana, que nem mesmo têm, faz com que, muitas vezes, eles se sintam menos quilombolas do que outras comunidades que trabalham em conjunto ou que possuem grupos de danças com ritmos de origem africana. A imprensa da região os procura, normalmente em datas comemorativas, como 13 de maio e 20 de novembro, para cumprirem uma pauta. Muitas vezes, o espaço de uma página de jornal ou de alguns minutos em uma reportagem não consegue mostrar o que é o Quilombo Brotas. Em outros casos, o que os jornalistas esperam encontrar no quilombo não é exatamente o que a comunidade tem para expor e a história acaba sendo deturpada por influência do sensacionalismo, de querer mostrar algo que eles não são, que não se vê ali. Os moradores contaram que um jornal da região os procurou para fazer uma matéria. Os mais velhos deram entrevistas, os membros da associação falaram sobre os projetos, mas o repórter só publicou o que uma garota de 10 anos falou. Ao lerem o jornal, viram que a história estava totalmente deturpada. Os mais velhos da comunidade criaram uma resistência e têm receio de dar novas entrevistas. Desde o reconhecimento do quilombo, a imprensa tem procurado o local 85


constantemente, mas, na maioria das vezes, em datas específicas, conta Diva. “Vai muita gente lá. Já foi a TV Cultura, a TV Tem (afiliada da Rede Globo), entre outras, mas sempre nas datas típicas. Eles vão porque precisam de uma matéria sobre o dia 13 de maio ou sobre o dia 20 de novembro. As pessoas vão lá sem saber da história e querem interferir sem saber do que eles são capazes. Tudo que aconteceu lá dentro do quilombo não foi nada por interferência deles e sim por atitude de outras pessoas. As pessoas vêm em determinada data e não sabem como foi o processo de reconhecimento dali. Cada vez que tem um 20 de novembro ou um 13 de maio chamam o quilombo e fazem apenas uma matéria e acabou, isso mata a história. Enquanto a comunidade não tomar algumas atitudes, a história também vai se perdendo”, acredita Diva. Fábio, que é um dos mais velhos da família Barbosa, conta sobre sua decepção com a imprensa. “Existem mais de 200 itens na Internet falando do quilombo e de tia Lula. Nós achamos que isso tudo nos explora e não traz nada de volta. Eles abusam muito da tia Aninha, que é a mais velha moradora. Outro dia ela saiu em um jornal contando as histórias daqui. Na mesma página saiu outra matéria falando qualquer coisa que não tinha nada a ver com ela, mas colocaram a foto dela em toda a página. Não tiveram nem a capacidade de trazer um exemplar para ela, mostrando o depoimento que ela deu. Eles nos usam para vender jornal”, desabafa. Não se sabe exatamente o que é a cultura tradicional quilombola, por isso, há uma expectativa em querer encontrar outras línguas, roupas exóticas nas comunidades quilombolas, principalmente em Brotas que é de fácil acesso, mas não há nada disso lá. Ana Maria diz que sua bisavó não deixou nada em especial da cultura quilombola, mas que eles, tradicionalmente, realizam a festa junina e convidam alguns grupos de dança para se apresentarem no quilombo e só não realizam mais coisas devido à religião. “Não temos nada da cultura quilombola, porque uma parte é evangélica, o resto não vai à religião nenhuma, não freqüenta nada”. Antônia também acha que não há cultura quilombola lá dentro do sítio. “Acho que nós não mantemos nenhuma cultura quilombola. Quando tem visita, eles fazem comida típica, mas só quando vêm pessoas de fora, o resto do ano não”. A adolescente Caroline compartilha da mesma opinião de Antônia. “De cultura africana que nós mantemos são mais as histórias da família. Eu acho que seria só isso, porque nós não temos uma dança típica, uma música para cantar, um coral”, conta Priscila, lembrando que, antigamente, da cultura quilombola, eles fabricavam peças de artesanato. “Teve um quilombo que veio nos visitar, eles apresentaram o Jongo, uma dança linda. Eu não sabia, mas há vários tipos de dança. Aqui não tem, e falta isso. Podíamos juntar os adolescentes, os jovens e até os adultos mesmo para aprender essa dança”, conta animadamente Priscila, que sabe de mais de 15 jovens do quilombo que também topariam aprender a dança. “Até os meninos também se juntariam para dançar, mas acho que falta um direcionamento”. “Aqui tinha capoeira, mas não tem mais e não há outras culturas que eu saiba”, diz Marcos. Fredney acredita que as histórias da família são a cultura quilombola do lugar e o que eles precisam é resgatar a cultura negra. Até Paulo conta que eles não possuem nenhuma cultura quilombola, já que a tenda de Umbanda foi desativada depois da morte de tia Lula. “O que deveria ser 86


preservado da cultura quilombola era a tenda de Umbanda”. Ele acha que devido à interferência do que é externo, o que tinha de cultura quilombola lá se perdeu. “Outro aspecto da cultura africana que se mantinha ali e que não tem mais era o fogo de chão. Era o momento em que se reuniam os membros da família sentados e contavam-se as histórias dos mais velhos para os mais novos”. Muitas vezes o que eles querem são histórias pitorescas para contar e não preservam a história de sua família e raízes. História que foi narrada pelos descendentes mais próximos de Amélia no início deste livro. Foto: Lilian Joaquim

Panela de ferro e geladeira antiga na casa de tia Lula

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Diva, a ex-secretária do Fórum Pró-Cidadania, acredita que a diretoria do quilombo está se esforçando para resgatar a cultura africana. Sobre os resquícios da religião africana, Diva comenta que a tenda de Umbanda que ficou, por décadas, funcionando e era muito conhecido na cidade, hoje está parado, mas está preservado. “Eles têm feito muitas festas lá, chamaram o pessoal para fazer apresentação de maracatu e samba de roda, mas é um povo que se perdeu, pois o sistema lá vem de fora para dentro. Se eles tinham um terreiro de Umbanda e praticavam a religião afro, deveriam manter isso. Agora, a maioria é evangélico ou católico, porque é o que vem de fora. A maior crítica que tia Lula fazia era sobre isso, ela falou, 'olha aqui não tem mais o terreiro, porque todo mundo virou evangélico, eu não sou evangélica, mas a maioria das pessoas que poderiam me suceder no terreiro ou na minha crença, eu não tenho mais, não conseguiu segurar isso'. O que aconteceu com eles é o que aconteceu com a maioria dos negros, as raízes vão se perdendo ao longo do tempo por influências externas”. Patrícia diz que eles têm a tenda de Umbanda como uma cultura para se orgulharem. “Ela está desativada, mas eles poderiam ter derrubado a tenda, jogado fora as imagens, derrubar toda a mata e colocar gente para morar, depois que tia Lula morreu, mas não fizeram isso”. Ela conta que é muito complicado dizer o que é, de fato, uma cultura quilombola e que, por isso, os moradores do Quilombo Brotas dizem não possuir nenhuma cultura quilombola. “Eles falam que não tem cultura viva porque não dançam o Jongo e não têm uma festa típica, mas nem sempre isso é ser quilombola”. Na verdade, a expectativa é criada de fora para dentro, conta a antropóloga do Itesp. “As pessoas que não conhecem a comunidade quilombola querem chegar lá e ver uma África no Brasil. Eu acho que não é bem por aí. Devem ser vistas as tradições, o que costumavam fazer ali e se faz sentido continuar fazendo. A questão quilombola não está em fazer rituais como a dança e sim em como a comunidade se vê no determinado espaço, como eles se vêem no grupo, sua história”, explica Patrícia, que sente uma cobrança muito grande em relação à cultura por parte das pessoas que vão lá. A orientação é que eles sejam como sempre foram. O que acontece, muitas vezes, é que algumas tradições permanecem e outras vão desaparecendo com o tempo, mas nem por isso eles deixam de ser quilombolas, afirma ela. “Eles procuraram o Itesp, pois queriam viver dentro daquele lugar do mesmo jeito que viviam seus avós e bisavós, isso é manter a cultura quilombola. Nosso trabalho é respeitar e regulamentar o jeito que eles querem viver no lugar que eles querem viver, não importa se, para os outros, eles pareçam aculturados”.

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Perspectivas para o futuro

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muito dando capacitação para eles. “Acredito que, por meio de cursos, nós possamos ter melhorias e encaminhar os adolescentes”. Mas sem que o próprio pessoal do quilombo se mobilize, não há muito que fazer. Para Ana Maria pode melhorar em tudo, mas as principais melhorias seriam na união, compreensão e entendimento entre eles, que ela diz faltar muito lá. “Em primeiro lugar muito amor, porque através do amor você tem todas essas outras coisas acrescentadas”, acredita Ana, que se preocupa com as crianças, que são o futuro do quilombo “Com as mães trabalhando é difícil para eles, pois precisam se defender e aprender se virar a sozinhos”. Ana Maria conta que para receberem alguma verba do governo, ela tem que passar pela prefeitura e que esse dinheiro às vezes não chega até eles. “Muitas vezes chega verba para o quilombo e a prefeitura acha que nós não temos o direito de receber, pois há outras prioridades na cidade”, denuncia ela, dizendo que o quilombo recebeu uma verba para que fosse realizado o saneamento básico do local, mas a prefeitura não repassou a verba para a comunidade. Caroline diz que os moradores deveriam participar mais da vida no quilombo. “Acho que pode melhorar também na limpeza, pois tem pessoas que comem coisas e jogam a sujeira no chão, mas deveriam preservar”. Ela gostaria também que o governo enviasse verbas para que eles pudessem conhecer outros quilombos. Paulo acredita que o quilombo, com certeza, vai melhorar. “Vai melhorar em tudo, na unificação e no trabalho em conjunto. Eu acredito muito no quilombo, por mais que eu brigue”. Ele sabe que o caminho mais prudente é a união entre eles. “O caminho mais correto seria a unificação, a união e o diálogo, esquecer de grupos que não tem nada a ver com a gente. Somos uma família bem abundante e, nós unidos, representamos voto”. Confiando sempre na capacidade que o quilombo tem de se desenvolver sozinho, Paulo não espera nada de governo nenhum. “Está mais do que na hora de nos organizarmos e mostrar o que podemos fazer, porque hoje nesse país até esterco ensacado se consegue vender e ainda dá para ganhar dinheiro. Acho que é um pouco de comodismo”. O quilombo é muito procurado por escolas e universidades que querem realizar visitas na comunidade. Rose dizia que eles ainda não possuem infra-estrutura para receber uma grande quantidade de pessoas, mas que o objetivo para o futuro é a construção de um galpão, para recepcionar as pessoas, e do museu, para que haja visitações. Se continuar no ritmo que está, Paulo diz que o quilombo nunca será um ponto turístico ou terá um museu. Ele afirma que muitos objetos que poderiam compor o museu, desapareceram. “Na casa da minha tia Lula tinha um acervo muito grande, Nhá Amélia tinha muito mais coisas. Eles não têm uma idéia de valores, acham que as peças lá não têm valor nenhum. Andaram perdendo, deram, até minha mãe dizia que não ia guardar um monte de coisas velhas. Não é bem assim que tem de se pensar, isso que é importante, tudo aquilo lá tinha uma história, são peças únicas”, conta. Marcos estava fazendo um museu no bar que tinha lá. “Era uma réplica da casa de barro, mas as outras pessoas querem fazer visando dinheiro dos outros, então, 90


Por meio de parcerias, projetos e convênios, o quilombo tem procurado um caminho para continuar prosperando, mas ainda há o que melhorar, acreditam os moradores. Ao questionar os moradores da comunidade Brotas o que poderia melhorar dentro do quilombo, poucos deles citaram a infra-estrutura, a falta de saneamento básico e a iluminação nas ruelas como fator importante de mudança. A maioria acredita que a união entre os moradores é uma das coisas que poderia ser melhorada. “Eu acredito que o quilombo pode melhorar na questão da cultura mesmo, pois para que nós possamos elevar o nome do quilombo adiante precisaria de mais cultura, dança, música, aprender a fazer um artesanato, coisas desse tipo mesmo”, acredita Priscila. Para ela, a questão do saneamento básico, a rede de esgoto e a iluminação nas ruelas também são aspectos que deveriam ser melhorados, além da preservação do meio ambiente “Tem muito que reconstruir, do que se perdeu por causa do loteamento aqui em cima, tem muita área verde desmatada. Acredito que deveria haver um trabalho de reconstrução da história, dividir a comunidade em serviços, cada um ficaria incumbido de uma parte. Sei que tem pessoas que não iam colaborar, pois não levam o quilombo a sério, para esses, aqui continua sendo um sítio ainda”. Priscila não espera que a melhoria venha do governo. “Já faz um tempo que o quilombo foi reconhecido e, até agora, a única coisa do governo que veio aqui para dentro foi a biblioteca, que vieram os livros e não veio a capacitação para se montar uma biblioteca”. Por eles não terem organizado os livros em prateleiras eles se estão empilhados sem uma organização e não podem ser utilizados pela comunidade. Muitos estão com as páginas grudadas e embolorando. “Veio também um forno industrial para que houvesse uma fonte de renda dentro da comunidade, e que também está lá sem uso. Tem muitas coisas que não serviram muito. O programa 'luz para todos' ajudou em partes, de noite ainda temos que andar pelas ruas completamente escuras aqui dentro”. O filho de Lula acredita que o quilombo pode melhorar com a união, transparência entre as pessoas e sem ganância. “Antes as pessoas se ajudavam para cuidar do sítio. Como o pessoal se dividiu, não há mais essa colaboração. Hoje, cada um fica com no seu espaço, mas as áreas são grandes e diferentes uma das outras no tamanho, o que dificulta a limpeza”. Ele diz não esperar ajuda de pessoas externas e sim uma mudança na diretoria. Já Antônia acredita que cada um melhora como pode, pois ela acha que está tudo bom, apesar de também desejar que o visual do quilombo fique melhor com a reforma das casas. “As pessoas antes se juntavam, carpiam, roçavam e deixavam o sítio bonito, mas quando acontecia isso eram mais as mulheres que realizavam, é difícil os homens participarem”. Ela gostaria que o governo enviasse ajuda para a reforma das casas, para fazer o museu. Fredney pensa que o futuro das crianças poderia ser melhor. “As crianças são uma de nossas preocupações. Queremos dar um conforto maior a elas; trabalhar a infância é nosso objetivo. Aqui quase não há quem conte as histórias do passado, por isso, as crianças se interessam mais pelos assuntos da cidade. Eu gostaria que tivesse mais participação das crianças nessa história”. Ele acredita que o governo pode ajudar 91


não dá certo”. Ele acha que o quilombo só vai virar um ponto turístico quando as pessoas tiverem outros pensamentos. Priscila acha que, sem um incentivo governamental, não será possível tornar o sonho do museu e do ponto turístico realidade. “Se houver um incentivo do governo e de pessoas que estejam empenhadas em ajudar sim, porque aqui, por si só, não teria como, enquanto for só a comunidade querendo fazer, não dá. Querer não é fazer. Não adianta você querer muita uma coisa se não tiver condições para realizar”. Foto: Paula Carolina Batista

Réplica da casa de Avó Amélia que está sendo construída no Quilombo Brotas, como forma de se preservar a memória

Sobre os objetivos do quilombo, Fredney torce para que todos sejam realizados. “Eu batalho por isso também. Aqui tem a tenda de Umbanda e a casa que era da Tia Lula, que nós cuidamos, às vezes, para que vire um museu histórico aqui do quilombo”. Caroline também sabe que nada vai acontecer se não houver colaboração de todos. “Eu acho que no futuro vai haver um museu e aqui será um ponto turístico, mas vai acontecer se o povo do quilombo tiver iniciativa e vontade, o que algumas pessoas não têm. Eu não acho certo as pessoas que não lutam pelo quilombo continuarem morando aqui, não acho que deveriam ir embora, gostaria que passassem a ajudar e tomar iniciativa”. Ana Maria deixa para os jovens a tarefa de tornar realidade os objetivos da associação. “Eu espero que os jovens busquem por esses objetivos, nós estamos 92


lutando, cabe a eles fazerem a parte deles também, porque o momento em que nós fecharmos os olhos os direitos vão ser deles. Espero que eles continuem mantendo. Se nós conseguirmos segurar e fazer com que eles participem, eu creio que eles vão dar continuidade sim”. Antônia acredita na força de vontade dos quilombolas. “Eu acredito que um dia o quilombo vai ter um museu e ser um ponto turístico aqui na cidade, porque força de vontade todo mundo tem, vontade de ajudar todo mundo tem. Eu acho que se realmente as ajudas que o povo promete chegassem, esses objetivos aconteceriam”, acredita ela, dizendo lutar para que as coisas aconteçam lá dentro. Manoel afirma que o quilombo vive de projetos para que sejam feitas melhorias. Recentemente foi firmado um convênio com a Universidade São Francisco, que tem um campus na cidade de Itatiba. Informou a Universidade São Francisco que o objetivo deste convênio é a realização do Plano Diretor Participativo para os moradores, visando o desenvolvimento local sustentável, por meio da participação da comunidade e resgate da cidadania. Já foram realizadas reuniões com a comunidade para a definição do plano diretor, organização de oficinas e a capacitação dos moradores para a gestão do quilombo. Participa desse projeto o curso de Arquitetura e Urbanismo que fez um levantamento das moradias existentes no quilombo e trabalha para a realização do plano diretor. “O principal objetivo do nosso convênio com o quilombo Brotas é a colaboração técnica. Nós pretendemos estar à disposição do quilombo na parte mais técnica, por exemplo, resolvendo uma das coisas que eles pedem muito para nós que é o plano diretor participativo”, informou a doutora Glacir Teresinha Fricke, coordenadora do Centro de Estudos Urbanos da Universidade São Francisco. Ela também informou que estão sendo realizados estudos para a melhoria das casas. “Fizemos o levantamento de cada uma das moradias para poder ter, inicialmente, um status do que podemos financiar. Verificamos também quais são os moradores que têm interesse em melhorar a moradia e quais possuem recursos para isso. Há uma linha de financiamento diretamente para quilombos no Ministério das Cidades que também poderá ser verificado”. No momento, Glacir disse que está desenvolvendo um projeto para a construção de uma cozinha comunitária. “Essa é a última coisa que nós estamos fazendo”. Já o curso de Engenharia de Computação visa a capacitação dos quilombolas para a utilização da informática como ferramenta útil para as suas atividades e também para auxiliá-los no tratamento das informações coletadas para o projeto. “A primeira atividade realizada junto com a comunidade foi a inclusão digital. Nós os ensinamos a manipular as ferramentas básicas de editoração de textos, planilhas, navegação e criação de e-mail. Também foi demonstrado para eles como utilizar serviços disponíveis na Internet, que é um projeto bem interessante chamado “teia da cidadania” que tenta mapear esses serviços disponíveis na Internet, relacionados à cidadania”, conta o professor do curso de Engenharia de Computação, Alencar de Melo Júnior, que também faz parte, como pesquisador, do Centro de Estudos Urbanos (CEUr) da 93


Universidade São Francisco. Em uma segunda etapa, o professor planeja construir um site para o quilombo. A participação dos moradores neste projeto foi muito boa, conta Alencar. “As aulas foram realizadas no ambiente da universidade aos sábados sob minha supervisão e ministradas por alunos dos cursos de Engenharia de Computação e Ciência da Computação, com o apoio dos técnicos e instrutores dos cursos de Engenharia de Computação”. Os moradores do quilombo já estão utilizando o que aprenderam no curso dentro do telecentro do Quilombo Brotas. Com essa capacitação inicial, o professor disse que despertou neles o desejo de continuarem se desenvolvendo. Ele ainda acredita que o curso foi importante, porque além do conhecimento, que é bom e útil para qualquer pessoa, independente de qual comunidade ela pertence, houve também um processo de valorização. “Eles estão vendo a sociedade, e a universidade, que é reconhecida como um centro do saber, se aproximando, debatendo e discutindo questões do cotidiano deles, e auxiliando na resolução das mesmas, sem impor nada. Foi bastante proveitoso para que eles possam atingir os objetivos”. O curso de Pedagogia tinha como objetivo formar o educador para promover o diálogo entre conhecimentos, valores e orientações de diferentes culturas e incentivar a preservação da tradição afrodescendente por meio de expressões artísticoculturais. Dentro da comunidade, professores e alunos do curso elaboraram projetos educativos que atendessem aos interesses da comunidade. Realizaram um levantamento de estudos e práticas educativas realizadas sobre a temática de relações interculturais, interétnicas e valores. Estudaram projetos realizados em quilombos brasileiros, diagnosticaram as condições atuais da comunidade, incentivaram a preservação da tradição oral e colheram e registraram as tradições culturais que contribuem tanto para a preservação, como para a valorização e fortalecimento da identidade do grupo. O trabalho do curso foi voltado às crianças do quilombo, que foram até a universidade conhecer o campus e participar das atividades preparadas para o desenvolvimento do projeto. “No início, foi notada certa vergonha por eles morarem lá. Depois, com os trabalhos desenvolvidos, houve uma maior valorização da cultura e da história. No final daquele ano, eles já estavam com a auto-estima mais elevada, com o sentimento de pertencimento a uma comunidade que deve ser valorizada pelo que é e não pelo que os outros acham que é”, lembra a professora Maria de Fátima Polesi Lukjanenko, que é coordenadora do curso de Pedagogia da Universidade São Francisco, e realizou as atividades do projeto em 2007. A professora conta que uma de suas alunas, a Laureane, que realizou o Trabalho de Conclusão de Curso dentro da comunidade quilombola disse que, ao término das atividades, as crianças apresentaram o trabalho na escola. Os professores e colegas de sala gostaram do que viram e passaram a respeitar mais as crianças que moram no quilombo. As ações foram realizadas ao longo de um ano, mas não com muita freqüência, lembra Fátima. Só de ouvi-los, registrar as histórias e resgatar as brincadeiras, já foi muito importante. 94


As mães do quilombo se queixavam de que as crianças estavam sem paciência para resolver os conflitos do cotidiano e, muitas vezes, queriam solucionar tudo com agressões verbais e físicas. “A opção pelo tipo de atividade realizada com as crianças foi uma tentativa de trabalhar um pouco as questões de regras sociais, por meio de brincadeiras e da valorização daquele espaço. Só o fato de mostrar que elas são alguém, que têm uma identidade, que são respeitadas e devem se fazer respeitadas eles se viram como pessoas e crianças que são importantes e que ocupam um lugar que deve ser valorizado na sociedade, independente de condições sócio-econômicas, sociais, culturais e religiosas”, conta Fátima sobre o trabalho realizado. A prefeitura da cidade de Itatiba também está fazendo parte desse convênio e uma de suas competências é disponibilizar recursos materiais e humanos com conhecimento específico na área de abrangência do Acordo de Cooperação Técnica. “A prefeitura entra apenas com o fornecimento das bolsistas que são pagas pela prefeitura. Há duas alunas que trabalham aqui. A prefeitura também vai nos fornecer material de que nós necessitamos”, informou Glacir Os convênios têm o prazo de dois anos e podem ser renovados por mais dois anos e assim por diante até a conclusão dos projetos. “Não existe um prazo, eu vou fazendo o que precisa, não tem uma pauta definida, rigorosa, até porque muitas coisas que a gente vai fazer lá precisa de dados da prefeitura, de bolsistas da prefeitura”, diz Glacir. Ela também comenta que muitas vezes é difícil concluir um projeto por falta de verbas. Os recursos financeiros para realizar projetos devem ser procurados em projetos que já são direcionados para comunidades quilombolas, não na prefeitura. Há alguns órgãos financiadores específicos. O Ministério das Cidades tem uma linha de financiamento para isso, mas depende de serem feitos projetos e deles ajudarem, informou a coordenadora do CEUr. “Para conseguir esses recursos, nós teríamos que ter uma equipe batalhadora lá dentro para ir atrás desses projetos. Eu acho que depende também de uma vontade política maior. Da universidade já está sendo dado todo o apoio, isso é uma coisa boa”, revela Glacir Teresinha. “O próximo passo é encaminhar projetos para o Ministério das Cidades para fazer a reforma das moradias. Acho que temos que trabalhar para isso”. Os moradores do quilombo estão esperançosos com a intervenção da Universidade na comunidade, principalmente os membros da diretoria da associação que acompanham tudo mais de perto. “O convênio com a associação foi bom. Foi bem proveitoso o que eles já fizeram, como o curso de informática. Estamos pensando em fazer um plano diretor do quilombo e isso é bem importante”. Caroline diz que surgiram algumas vagas para fazer computação na faculdade, aos sábados, durante seis meses. Mesmo já conhecendo computação, ela participou e aprendeu ainda mais coisas. “A intervenção da universidade hoje está sendo muito bem orientada. Eu acredito na Universidade, porque eles estão muito bem assessorados e direcionados. Temos que ser muito bem instruídos, para que não haja mais interferência e não acabe com as pequenas coisas”, comenta Paulo sobre o convênio entre a universidade e o Quilombo Brotas. 95


Já Ana Maria acha que o projeto está progredindo muito vagarosamente. “O convênio com a universidade está caminhando devagar, muito lentamente, mas está caminhando. Vamos ver nos próximos anos com a mudança de prefeito”. Fredney espera que o convênio com a Universidade São Francisco os beneficie. “Um dos benefícios seria criar novas parcerias lá fora. Por meio da universidade, que tem respeito, conseguiremos melhorias”. Priscila acredita que o convênio já deu certo e vai prosperar. Ela diz ver o interesse do pessoal da universidade. “Essa parceria entre o quilombo e a universidade já faz um tempo que foi firmada e estamos vendo resultados. Vemos que eles estão vindo, estão estudando, ainda não começaram as obras, mas, antes de qualquer coisa, precisa-se conhecer bem as casas, a comunidade, o terreno, conhecer tudo antes de vir com os projetos”, comenta Priscila, com grande expectativa de que as casas sejam reformadas. A preocupação com o futuro do quilombo é grande e um dos caminhos para se garantir a solidificação da comunidade é por meio da formação educacional e intelectual dos jovens que estão lá. A conscientização do que o lugar significa e de sua importância pode fazer toda a diferença futuramente. O presidente da associação espera um futuro bom para o quilombo, que as pessoas se conscientizem mais sobre a importância do lugar. Ele conta que participa da associação para garantir a permanência do lugar para as crianças que vivem lá. “A idéia minha é fazer e deixar o melhor para nossos filhos. Desejo que eles tenham mais estruturas, para não crescerem como nós crescemos, tendo que ir trabalhar logo cedo e, muitas vezes, deixando os estudos de lado”, conta Manoel. Para garantir o futuro do quilombo, Manoel acredita que eles devam começar a incentivar as crianças a estudarem. “Temos que incentivar a criançada que vem vindo a correr atrás dos objetivos próprios, como ter a intenção de fazer uma faculdade, de ter uma boa profissão, pois os negros têm que ser inteligentes e se impor. Os mais novos devem se espelhar nos mais velhos que são destaque”, acredita. Antônia tem cinco filhos e espera que todos eles cresçam sem se desviarem do caminho correto. “Eu espero que eles cresçam e que não se percam por aí, que não se misturem com pessoas erradas, que estudem bastante e que sejam alguém”. Já Fredney espera que todos continuem com o trabalho de resgate da história. “Nós trabalhamos para que as crianças continuem passando de geração a geração a história e dêem seqüência no que nós estamos fazendo”. Maria Caroline, que é uma das esperanças do quilombo, tem grandes objetivos. “Para o meu futuro, eu pretendo continuar estudando, quero fazer uma faculdade, eu estou em dúvida entre Veterinária e Medicina”, objetiva. Ela contou também que ganhou uma ficha de inscrição para realizar uma prova para pleitear uma bolsa de estudo em um dos colégios particulares da cidade, mas decidiu por não prestar a prova. “Eu estou na oitava série, o ano que vem eu vou para o colegial. Ainda não sei onde eu vou estudar. Ganhei um papel para fazer uma prova no Colégio Bom Jesus, se eu passar em primeiro lugar, ganho 100% de bolsa, mas eu não vou fazer a prova. Eu até gostaria de estudar lá, mas não vou fazer”. Caroline pretende sempre continuar morando no quilombo. “Para o futuro do 96


quilombo eu espero que o pessoal preserve a história para contar para quem vier. Eu acho que nós, jovens, vamos conseguir manter o quilombo, se depender de mim, sim”. O fato de algumas pessoas terem abandonado a Umbanda, para Marcos, é como se estivessem se esquecendo dos próprios pais e, com isso, o futuro do quilombo está condenado. “Espero um desastre para o futuro do quilombo. Enquanto as crianças estão pequenas, tudo bem, mas depois que eu e a tia Aninha morrermos, aqui vai virar uma guerra. Eles estão esquecendo tudo, até da mãe deles”. Paulo conta que quando estava para ser montada a associação, muitos jovens do quilombo tiravam sarro dele pelo termo quilombo. “Eles diziam, rindo, 'nós vamos ser quilombinhos', e hoje eu vejo que quando aparece alguma coisa sobre quilombo, eles são os primeiros a representarem a comunidade. Eles já estão sentindo, querendo ou não, eles estão se sentindo importantes. No começo era gozação, mas agora é orgulho”, diz Paulo, que confia o futuro do quilombo aos jovens. Se houver união, isso aqui prosperará, diz Ana Maria. “Acho que só a união que é muito importante, o amor. Nós estamos todos juntos, compartilhando do mesmo lugar, porque somos uma família”, afirma uma das várias bisnetas de Amélia, que deseja ver a família toda unida. Já Priscila acredita que, futuramente, são as crianças que vão levar o quilombo adiante. “Eu, que converso com eles, sei que eles têm uma visão muito boa disso tudo aqui. Nas mãos deles o futuro do quilombo tem tudo para dar certo”. Ela também deseja que a comunidade, no futuro, seja um pouco mais unida, para que eles tenham força. “Eu acredito que a união faz a força, isso que falta aqui, e para tudo dar certo, falta também muito incentivo e qualificação para que as pessoas dêem continuidade nisso”. Já a moradora mais velha do quilombo não espera muito dos jovens do quilombo. “Nós sabemos da história desde criança. Eles não sabem nada, nós passamos por dificuldades e damos valor. A vida está mais fácil para a juventude agora”. Outros projetos também têm envolvido a comunidade para a garantia de um futuro melhor. Caroline está participando de um projeto que pretende instalar uma estação de rádio dentro do quilombo. Ela contou que eles estão desenvolvendo a programação para a rádio e, se o projeto for aprovado, eles receberão uma verba de no máximo, mil e quinhentos reais para a compra de equipamentos para montar a rádio. “A idéia é passar informações sobre o próprio quilombo, pois algumas vezes tem festas aqui e quase ninguém fica sabendo, porque tem uma pessoa só para passar a informação para todos”, conta, animada, Caroline. Outro projeto que está sendo desenvolvido pelos jovens é a ativação da biblioteca dentro do quilombo. Eles já possuem um acervo de mais de 400 livros, mas nunca foram capacitados para ordenar os livros e realizar um banco de cadastros para o empréstimo dos mesmos. Com capacitação, eles poderão ter acesso aos exemplares que estão mal armazenados no quilombo. A antropóloga do Itesp acredita que, com o quilombo, a cidade pode enriquecer o seu turismo, realizando roteiros diversificados. Ela conta que muitas cidades querem investir no turismo, mas não tem uma riqueza cultural como o quilombo. A Fundação Itesp está com um projeto de desenvolvimento do quilombo. 97


Patrícia informou que o escritório que atua em Itatiba é localizado em Araras e que há uma técnica implantando o projeto de Biojóias. “Nós fizemos um levantamento das sementes que têm no sítio. Eles tiveram aulas para aprenderem a confeccionar as jóias e também farão o curso de Propaganda para saber como vender e divulga-las. A Fundação realizará uma feira e a idéia é que eles levem essas peças para serem vendidas lá”. Patrícia explica que o Itesp realiza esse trabalho com as comunidades para que elas possam gerar renda para o próprio local. Para a continuidade do trabalho, a antropóloga explica que será preciso fazer o reflorestamento de outros seguimentos variados de árvores para terem mais diversidade de sementes para a confecção das jóias. “Eles estão bem interessados” A maioria das mulheres são empregadas domésticas, um emprego instável, e essa é uma oportunidade para contribuir com o orçamento da casa e até na melhor criação dos filhos. É uma opção interessante de poder estar em casa, acompanhando as crianças e tendo uma renda. Diva, a ex-secretária do Fórum Pró-Cidadania, acredita que eles têm agora o trabalho de elevar a auto-estima, de reconhecer e resgatar a história. “Precisam preservar a história daquelas mais velhinhas. Para nós, esse trabalho do quilombo foi o mais importante, aqui dentro da cidade. Foi uma alegria o dia em que nós vimos que ia dar certo. Nós acabamos saindo do quilombo, mas queremos que dê tudo muito certo e que eles consigam caminhar pelas próprias pernas. É como diz a música, 'a gente já deu régua e compasso', agora é com eles. São eles que têm de ir mais a fundo e fazer a cidade enxergá-los, e nós vamos estar por perto para ajudar sempre que precisarem”, aponta Diva um dos caminhos para o futuro do quilombo. Os moradores do quilombo também têm aguardado todos esses anos pela titulação e definitiva regularização das terras acontecimento que pode fazer surgir muito mais atritos dentro da comunidade. Patrícia explicou que, como eles não possuem documento das terras, o Incra passará o título das terras em nome da associação do quilombo. Para isso, terá que desapropriar as casas das pessoas que não querem morar no quilombo e que não fazem parte da comunidade. Será paga uma indenização para essas pessoas e elas não poderão mais viver dentro do quilombo Brotas, pois eles passarão a ter um título coletivo. “No momento em que for desapropriar e dar o título das terras para a associação será necessário um responsável para apontar as pessoas que realmente são da comunidade. As que não são o Incra avaliará a casa e indenizará essa família e ela sai do quilombo, pois não faz sentido as pessoas que não se identificam com o local ficarem lá. Os imóveis vazios serão usados pela comunidade”, esclarece a antropóloga. Patrícia disse que esse reconhecimento está para sair e o próximo passo será a desapropriação.

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Foto: Lilian Joaquim

No futuro serão as crianças que levarão o nome do quilombo à frente

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Considerações Finais

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O Quilombo Brotas ainda tem muito que caminhar. Mas tudo vai depender do futuro que eles mesmos querem para a comunidade. A cobrança da sociedade é maciça e o respaldo que eles precisam ter, muitas vezes, não é tão significativo. Se, por falta de cultura ou de uma ancestralidade com trajetória histórica própria, dotados de relações territoriais específicas, com presunção de ancestralidade negra relacionada com a resistência à opressão histórica sofrida, como consta na lei, eles são, de fato, quilombolas, ou não, são eles mesmos quem vão determinar. O que cabe a nós, como sociedade, é respeitar a forma de vida que eles escolheram. Um relatório científico pode não fazer uma comunidade se tornar quilombola, mas cria para ela muitas responsabilidades que nem todos estão dispostos a assumir. O reconhecimento e importância do espaço comum é algo que tem que ser muito trabalhado, e ainda assim muito difícil de ser conseguido. Talvez a partir das principais orientações a escola no quilombo, a biblioteca que são espaços que propiciam o resgate histórico e a conscientização desse espaço comum e diferenciado, faça com que as próximas gerações dêem andamento aos projetos. A história que se espera da comunidade Brotas faz parte de um consenso que nós, de fora, criamos e que para eles não faz nenhum sentido. No entanto, foi garantida àquela comunidade a segurança, por lei, de que não perderá seu território e de que seus descendentes poderão morar lá por mais 120 anos, se quiserem, é claro. Se eles criarão condições para isso, ninguém pode confirmar, mas o que se percebe é que eles vivem um momento de cada vez. Não seria, então, este o momento de se repensar que atitudes concretas eles tomarão para o futuro? A fronteira entre quilombolas e não quilombolas é tão limitada quanto a porteira que separa o asfalto da cidade do chão de terra do quilombo. Mas nenhuma contradição entre relatórios, decretos e versões da história tira deles o título de cidadãos, com direitos, principalmente o direito de serem diferentes, de terem uma trajetória histórica contrária do que se espera como povo quilombola e o direito de permanecerem como são, sem intromissões.

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Referências Bibliográficas - ANJOS, Rafael Sanzio Araújo. Quilombolas Tradições e Cultura da Resistência. São Paulo: AORI Comunicação, 2006. - PRADI, Reginaldo. As Religiões negras no Brasil. In Revista USP. nº 28. São Paulo: EDUSP, 1996. - RIBEIRO, Darcy. O povo brasileiro, a formação e o sentido do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. - SCALLI, Patrícia dos Santos, Relatório Técnico Científico, Quilombo dos Brotas. Itesp - Fundação Instituto de Terras do Estado de São Paulo, 2007.

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