Dia mundial da filosofia lyceu 2014

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Lyceu Passos Manuel

Dia Mundial da Filosofia 20 de novembro de 2014

No âmbito da comemoração do Dia Internacional da Filosofia, sob os auspícios da UNESCO, nesse sublinhar da “Filosofia enquanto disciplina que encoraja o pensamento crítico e independente visando uma melhor compreensão do mundo e a promoção da tolerância e da paz” e abraçando esse outro acontecimento sob a forma de aniversário da publicação da “Mensagem” de Fernando Pessoa, delineou-se no espírito promover um dia que, pautado pelo despertar de todas as humanas faculdades, seja uma pedra de toque para a consonância do ser pois, lembrando Pessoa: “É a Hora!” Nestes termos, apresenta-se o alinhamento:

Máximas e Reflexões (A Passos no Lyceu)

ϕ ilosofia: o espírito transforma a matéria (Auditório, 15h) 1.º

Metamorfoses Filosóficas a) Leituras da “Nota preliminar à Mensagem” de Fernando Pessoa b) os pensamentos da “outragem” na voz e coreografia dos alunos do 11.º e 12.º anos do curso de Representação e 12.º ano da disciplina de Português c) Declamação do poema “Portugal”

2.º

Filosofia na aurora: “Mens. ag. em.” António Carlos Carvalho

3.º

Filosofia no crepúsculo: Mensagens Carlos Paulo

2.º

Filosofia táctil: fado “Cansaço” Joana Penetra (aluna do 11º E)

1.º

Filosofia líquida: notas num além pauta Júlio Resende

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Metamorfoses Filosóficas: O entendimento dos símbolos e dos rituais (simbólicos) exige do intérprete que possua cinco qualidades ou condições, sem as quais os símbolos serão para ele mortos, e ele um morto para eles. A primeira é a simpatia; não direi a primeira em tempo, mas a primeira conforme vou citando, e cito por graus de simplicidade. Tem o intérprete que sentir simpatia pelo símbolo que se propõe interpretar.

Fernando Pessoa - Dragão Celeste, disse Wang Fô prosternado, sou velho, sou pobre, sou fraco. Tu és como o Verão; eu sou como o Inverno. Tu tens Dez Mil Vidas; eu tenho apenas uma e que vai acabar. Que mal é que eu te fiz? Ataram as minhas mãos que nunca te causaram nenhum dano. - Perguntas me o que é que me fizestes, velho Wang Fô? - disse o Imperador. [...] Vou dizer-to. O meu pai reuniu uma colecção de pinturas tuas no fundo do palácio e foi nessas salas que eu fui criado, velho Wang Fô, porque não me deixavam sair, com medo de que visse os infelizes e me afligisse o espírito ou agitasse o coração. (…) De noite, quando não conseguia dormir, ficava a olhar os teus quadros e, durante dez anos, não houve uma só noite em que eu os não tenha contemplado. De dia, sentado num tapete de que já sabia de cor todos os desenhos, descansando as mãos nos meus joelhos de seda amarela, eu imaginava o mundo - com o país de Han no meio - semelhante à planície côncava e monótona da mão profundamente atravessada pelos Cinco Rios. (…) Tudo isto eu imaginava com a ajuda dos teus quadros. Aos dezasseis anos reabriram se as portas que me separavam do mundo; subi ao terraço do palácio para ver as nuvens, mas elas não se comparavam com as dos teus crepúsculos. Mandei vir uma liteira; sacudido através de estradas atulhadas de lama e de pedras com que eu não contava, percorri as províncias do Império sem encontrar os teus jardins repletos de mulheres parecidas com flores e as tuas florestas cheias de antílopes e de pássaros. Os calhaus da beira-mar fizeram com que eu me enjoasse dos oceanos; a fealdade das aldeias impede me de ver a beleza dos arrozais e o riso áspero dos meus soldados dá me vómitos. Mentiste me, Wang Fô, velho aldrabão: o reino de Han não é o mais maravilhoso dos reinos e não sou eu o Imperador. O único império onde vale a pena reinar é aquele onde tu entras, velho Wang, pelo caminho das Mil Curvas e das Dez Mil Cores. Só tu reinas em paz sobre planícies onde a neve não derrete e sobre campos de flores que nunca morrerão. E é por isso, Wang Fô, que eu encontrei o suplício que te estava reservado, a ti cujas pinturas me fizeram detestar o que possuo e desejar o que jamais possuirei.

Margeritte Yourcenar

A segunda é a intuição. A simpatia pode auxiliá-la, se ela já existe, porém não criá-la. Por intuição se entende aquela espécie de entendimento com que se sente o que está além do símbolo, sem que se veja.

Fernando Pessoa A única forma de penetrar no mistério da natureza é através de uma intuição e de uma contemplação plenamente exercidas, livres de constrangimentos internos que o impeçam.

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Dia Mundial da Filosofia 20 de novembro de 2014

Joana G. Saraiva Era uma vez um pintor que tinha um aquário com um peixe vermelho. Vivia o peixe tranquilamente acompanhado pela sua cor vermelha até que principiou a tornar-se negro a partir de dentro, um nó preto atrás da cor encarnada. O nó desenvolvia-se alastrando e tomando conta de todo o peixe. (…) Ao meditar sobre as razões da mudança exactamente quando assentava na sua fidelidade, o pintor supôs que o peixe, efectuando um número de magia, mostrava que existia apenas uma lei abrangendo tanto o mundo das coisas como o da imaginação. Era a lei da metamorfose. Compreendida esta espécie de fidelidade, o artista pintou um peixe amarelo.

Herberto Helder

A natureza não esconde segredo que não possa ser exposto na sua nudez ao olhar atento do contemplador.

Maria Filomena Molder

A luz que o pintor procura pode ser entendida num duplo sentido. Por um lado temos a luz física, que as nuvens teimam em esconder e por outro temos a luz que daria a ver a essencialidade das folhas e dos frutos (...) Essa luz, a luz da metamorfose, não se deixa definir. É a luz que ilumina as coisas corruptíveis, que as converte em “metal e cinza”, ao mesmo tempo que as dá a ver. (…) A metamorfose destrói o saber, mas permite dar a ver a sucessão das formas e com isso produzir arte.

Joana G. Saraiva O sonho é ver as formas invisíveis Da distância imprecisa, e, com sensíveis Movimentos da esp’rança e da vontade, Buscar na linha fria do horizonte A árvore, a praia, a flor, a ave, a fonte — Os beijos merecidos da Verdade.

Fernando Pessoa Aquilo que Goethe classifica como raro, a capacidade de penetrar no interior das coisas, bem como da sua própria alma.

Joana G. Saraiva A terceira é a inteligência. A inteligência analisa, decompõe, reconstrói noutro nível o símbolo; tem, porém, que fazê-lo depois que, no fundo, é tudo o mesmo. Não direi erudição, como poderia no exame dos símbolos, é o de relacionar no alto o que está de acordo com a relação que está em baixo. Não poderá fazer isto se a simpatia não tiver lembrado essa relação, se a intuição a não tiver estabelecido. Então a inteligência, de discursiva que naturalmente é, se tornará analógica, e o símbolo poderá ser interpretado. 3


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Dia Mundial da Filosofia 20 de novembro de 2014

Fernando Pessoa As palavras são símbolos que postulam uma memória compartilhada.

Jorge Luís Borges Contudo, mesmo agora, sempre (muitas vezes) que me acontece não perceber alguma coisa, então instintivamente vem-me a esperança de que seja de novo a vez certa, e que eu torne a não perceber mais nada, a apoderar-me daquele saber diferente, achado e perdido no mesmo instante.

Italo Calvino Parece-me que sonho cada vez mais longe, que cada vez mais sonho o vago, o impreciso, o invisionável.

Fernando Pessoa O artista inventa a sua própria maneira e linguagem a fim de exprimir, a seu modo, o que a alma compreendeu.

Goethe A quarta é a compreensão, entendendo por esta palavra o conhecimento de outras matérias, que permitam que o símbolo seja iluminado por várias luzes, relacionado com vários outros símbolos, pois que, no fundo, é tudo o mesmo. Não direi erudição, como poderia ter dito, pois a erudição é uma soma; nem direi cultura, pois a cultura é uma síntese; e a compreensão é uma vida. Assim certos símbolos não podem ser bem entendidos se não houver antes, ou no mesmo tempo, o entendimento de símbolos diferentes.

Fernando Pessoa Por vezes, no extremo do vértice mais alto, apenas existe um homem. A sua contemplação é equivalente à sua infinita tristeza. E os que lhe estão próximos não o podem compreender.

Kandinsky Referi-me, como viu, ao Fernando Pessoa só. Não penso nada do Caeiro, do Ricardo Reis ou do Álvaro de Campos. (…) E contudo – penso-o com tristeza – pus no Caeiro todo o meu poder de despersonalização dramática, pus em Ricardo Reis toda a minha disciplina mental, vestida da música que lhe é própria, pus em Álvaro de Campos toda a emoção que não dou nem a mim nem à vida. Desde criança tive a tendência para criar em meu torno um mundo fictício, de me cercar de amigos e conhecidos que nunca existiram. (Não sei, bem entendido, se realmente não existiram, ou se sou eu que não existo. Nestas cousas, como em todas, não devemos ser dogmáticos.) Desde que me conheço como sendo aquilo a que chamo eu, me lembro de precisar mentalmente, em figura, movimentos, carácter e história, várias figuras irreais que eram para mim tão visíveis e minhas como as cousas daquilo a que chamamos, porventura abusivamente, a vida real. Esta tendência, que me vem desde

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Dia Mundial da Filosofia 20 de novembro de 2014 que me lembro de ser um eu, tem-me acompanhado sempre, mudando um pouco o tipo de música com que me encanta, mas não alterando nunca a sua maneira de encantar. Esta tendência para criar em torno de mim um outro mundo, igual a este mas com outra gente, nunca me saiu da imaginação.

Fernando Pessoa Os visionários, aqueles que têm necessidade de luz, às vezes são afastados. Nesta cidade vivem também os homens que uma outra verdade tornou surdos. Eles não escutam o desmoronamento; não veem porque esta verdade os tornou cegos. (…) Um dia chegará em que também eles terão ouvidos para ouvir e olhos para ver. Apesar de toda a cegueira, do caos, e desta perseguição desenfreada, o triângulo espiritual continua na realidade a avançar.

Kandinsky A quinta é a menos definível. Direi talvez, falando a uns, que é a graça, falando a outros, que é a mão do Superior Incógnito, falando a terceiros, que é o Conhecimento e a Conversação do Santo Anjo da Guarda, entendendo cada uma destas coisas, que são a mesma da maneira como as entendem aqueles que delas usam, falando ou escrevendo.

Fernando Pessoa A palavra é um som interior. (…) A árvore da pradaria, verde, amarela ou vermelha, é um “caso” material, uma forma fortuita, materializada, da árvore que nós sentimos por dentro, logo que ouvimos pronunciar a palavra árvore. O emprego hábil de uma palavra (segundo a intuição poética), a repetição interiormente necessária desta palavra, duas, três ou mais vezes, podem não só amplificar a sua ressonância interior, como também fazer-lhe nascer poderes desconhecidos. Todo aquele que mergulhar nas profundezas da sua arte, à procura de tesouros invisíveis, trabalha para elevar esta pirâmide espiritual que alcançará o céu.

Kandinsky Portugal Eu tenho vinte e dois anos e tu às vezes fazes-me sentir como se tivesse oitocentos Que culpa tive eu que D. Sebastião fosse combater os infiéis ao norte de África só porque não podia combater a doença que lhe atacava os órgãos genitais e nunca mais voltasse Quase chego a pensar que é tudo mentira que o Infante D. Henrique foi uma invenção do Walt Disney e o Nuno Álvares Pereira uma reles imitação do Príncipe Valente 5


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Dia Mundial da Filosofia 20 de novembro de 2014 Portugal Não imaginas o tesão que sinto quando ouço o hino nacional (que os meus egrégios avós me perdoem) Ontem estive a jogar póker com o velho do Restelo Anda na consulta externa do Júlio de Matos Deram-lhe uns eletrochoques e está a recuperar aparte o facto de agora me tentar convencer que nos espera um futuro de rosas Portugal Um dia fechei-me no Mosteiro dos Jerónimos a ver se contraía a febre do Império mas a única coisa que consegui apanhar foi um resfriado Virei a Torre do Tombo do avesso sem lograr encontrar uma pétala que fosse das rosas que Gil Eanes trouxe do Bojador Portugal Se tivesse dinheiro comprava um Império e dava-to Juro que era capaz de fazer isso só para te ver sorrir Portugal Vou contar-te uma coisa que nunca contei a ninguém Sabes Estou loucamente apaixonado por ti Pergunto a mim mesmo Como me pude apaixonar por um velho decrépito e idiota como tu mas que tem o coração doce ainda mais doce que os pastéis de Tentúgal e o corpo cheio de pontos negros para poder espremer à minha vontade Portugal estás a ouvir-me? Eu nasci em mil novecentos e cinquenta e sete Salazar estava no poder nada de ressentimentos o meu irmão esteve na guerra tenho amigos que emigraram nada de ressentimentos um dia bebi vinagre nada de ressentimentos Portugal depois de ter salvo inúmeras vezes os Lusíadas a nado na piscina municipal de Braga ia agora propôr-te um projecto eminentemente nacional Que fôssemos todos a Ceuta à procura do olho que Camões lá deixou Portugal Sabes de que cor são os meus olhos? São castanhos como os da minha mãe Portugal gostava de te beijar muito apaixonadamente na boca.

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Jorge de Sousa Braga É A HORA!

Fernando Pessoa

Excertos / Textos GUIÃO Fernando Pessoa, Nota preliminar Margeritte Yourcenar, A Fuga de Wang Fô Fernando Pessoa, Nota preliminar Joana G. Saraiva, A Luz da Metamorfose Herberto Helder, Os Passos em Volta Maria Filomena Molder, Projeto Morfológico Joana G. Saraiva, A Luz da Metamorfose Fernado Pessoa, Mensagem Joana G. Saraiva, A Luz da Metamorfose Fernando Pessoa, Nota preliminar Jorge Luís Borges, O Livro de Areia Italo Calvino, A Memória do Mundo Fernando Pessoa, Livro do Desassossego Goethe, Máximas e Reflexões Fernando Pessoa, Nota preliminar Kandinsky, Do Espiritual na Arte Fernando Pessoa, Carta a Adolfo Casais Monteiro Kandinsky, Do Espiritual na Arte Fernando Pessoa, Nota preliminar Kandinsky, Do Espiritual na Arte Jorge de Sousa Braga, Portugal Fernando Pessoa, Mensagem

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