SAVATER, Fernando, Ética para um jovem

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ÉTICA PARA UM JOVEM

FERNANDO SAVATER

I*

ÉTICA PARA UM JOVEM

Tradução de Miguel Serras Pereira

EDitORiAL FICHA

PRESENçA

TÉCNICA

Título original: Ética para Amador Autor: Fernando Savater (O by Femando Savater C by Editorial Ariel, S. A., Barcelona Edição publicado por acordo com Editorial Ariel, Espafia Tradução (D Editorial Presença, Lisboa, 1993 Tradução: Miguel Serras Pereira Capa: Fernando Felgueiras Fotocomposição: Multitipo - Artes Gráficas, Lda. Impressão e acabamento: Guide - Artes Gráficas, Lda. I.' edição, Lisboa, 1993 2.' edição, Lisboa, 1994 3 a edição, Lisboa, 1995 4.' edição, Lisboa, Fevereiro, 1997 Depósito legal n.' 107 190197 Reservados todos os direitos para a língua portuguesa à EDITORIAL PRESENÇA Rua Augusto Gil, 35-A 1000 LISBOA

ÍNDICE

Aviso antipedagógico 13 Prólogo 15 I.

De que trata a ética 19 II. Ordens, costumes e caprichos 31 III. Faz o que quiseres 41 IV Tem uma vida boa 51 V. Acorda, baby! 61 VI. O Grilo de Pinóquio entra em cena 71 VII. Põe-te no seu lugar 85 VIII. Gostar e gostar 99 IX. Eleições gerais 109 Epílogo. Terás de ser tu próprio a pensar 121


Para a Sara, pela sua impaciência amorosa para com o Amador e para comigo «Ouve, meu filho, disse o demónio pondo-me a mão na cabeça... » EDGAR ALLAN POE, «Silêncio»

AVISO ANTIPEDAGóGICO

Este livro não é um manual de ética para alunos do ensino médio/ /superior. Não contém infon-nação sobre os autores mais destacados e os movimentos mais importantes da teoria moral ao longo da história. O meu intuito aqui não foi pôr o imperativo categórico ao alcance de todos os públicos... Não se trata tão-pouco de um prontuário de respostas moralizantes para os problemas quotidianos com que podemos tropeçar no jornal ou na rua, do aborto à objecção de consciência, passando pelo preservativo. Não creio que a ética sirva para resolver seja que discussão for, ainda que a sua tarefa seja colaborar em abri-Ias a todas... Deverá falar-se de ética no ensino secundário? Parece-me à partida nefasto que exista uma disciplina assim designada apresentando-se como alternativa à hora de ensino da religião. A pobre ética não veio ao mundo para escorar ou substituir catecismos... pelo menos não o deveria fazer nestes dias do século xx. Mas não tenho de maneira nenhuma a certeza de que devam evitar-se algumas primeiras considerações gerais sobre o sentido da liberdade, nem que bastem, a tal respeito, umas quantas considerações deontológicas incrustadas em cada uma das restantes disciplinas. A reflexão moral não é apenas um tema especializado, sobretudo para aqueles que desejem frequentar cursos superiores de filosofia, mas parte essencial de qualquer educação digna desse nome. Este livro é só um livro, não mais do que isso. Pessoal e subjectivo, como a relação que liga um pai ao seu filho; mas precisamente por isso tão universal como a relação entre pai e filho, a mais comum entre todas. Foi pensado e escrito para que os adolescentes possam lê-lo:

I 13 provavelmente ensinará muito poucas coisas aos seus professores. O seu objectivo não é fabricar cidadãos bem pensantes (nem muito menos que não pensem), mas estimular o desenvolvimento de livres pensadores. PRÓLOGO

Às vezes, Amador, tenho vontade de dizer-te muitas coisas. Contenho-me, está descansado, porque já devo maçar-te bastante no cumprimento das minhas


funções de pai para te impor agora outros deveres suplementares disfarçado de filósofo. Compreendo que a paciência dos filhos também tem limites. Além disso, não quero que me aconteça o mesmo que a um meu amigo galego, que um dia tinha ido contemplar pacificamente o mar com o seu catraio de cinco anos. O miúdo disse-lhe em tom sonhador: «Paizinho, gostava que a mamã, tu e eu fôssemos dar um passeio de barco, pelo mar.» O meu sentimental amigo sentiu um nó na garganta, mesmo por cima do da gravata: «Claro, meu filho, vamos quando quiseres!» «E quando estivermos lá muito longe», continuou a fantasiar a meiga criaturinha, «atiro-vos aos dois à água, para vocês se afogarem.» Do coração quebrado do pai jorrou um grito de dor: «Mas, meu filho... !» «Claro, paizinho. Ou não sabes que os pais não param de nos estragar tudo?» Fim da primeira lição. Se até um rebento de cinco anos é capaz de dar por isso, imagino que um galfarro com mais de quinze como tu estará farto de o saber. De modo que não é minha intenção proporcionar-te mais motivos para o parricídio do que os já habituais nas familias como deve ser. Por outro lado, sempre me pareceram uns chatos esses pais empenhados em serem «os melhores amigos dos filhos». Vocês, gente nova, devem ter amigos da vossa idade: amigos e amigas, claro. Com os pais, os professores e outros adultos, no melhor dos casos será possível que se dêem razoavelmente bem, o que já é alguma coisa. Mas para um rapaz dar-se razoavelmente bem com um adulto inclui, às vezes, ter vontade de o afogar. De outro modo não presta. Se eu tivesse quinze anos,

I coisa que não é provável que volte a acontecer-me, desconfiaria de todos os mais velhos demasiado «simpáticos», de todos os que parecessem querer ser mais novos do que eu e por sistema me dessem razão. Estás a ver, os que estão sempre a dizer que «os jovens são porreiros», «sinto-me tão novo como vocês», e outras prendas do mesmo estilo? Olho neles! Com tanta graxa, alguma coisa devem ter na ideia. Um pai ou um professor como deve ser têm de pesar um bocado, ou então não servem para nada. Para novo, bastas tu. Assim, veio-me à ideia escrever-te algumas dessas coisas que de vez em quando quis dizer-te, mas não soube ou não me atrevi. Quando um pai começa a desfiar sentenças filosóficas tem de se olhar para ele, enquanto se põe uma cara minimamente interessada e se sonha com o momento libertador em que se voltará a poder olhar para a televisão. Mas um livro é uma coisa que podes ler quando quiseres, um bocado agora, outro depois, e sem que te seja exigida qualquer manifestação de respeito: enquanto passas as páginas podes bocejar ou rir como te apetecer, com toda a liberdade. Como a maior parte do que vou dizer-te tem precisamente muito a ver com a liberdade, presta-se mais a ser lido do que ouvido como sermão. Em contrapartida, terás de dar-me um pouco de atenção (aproximadamente metade da que dedicas a aprender um novo jogo de computador) e de ter alguma paciência - sobretudo durante os primeiros capítulos. Embora compreenda que isso torna as coisas bastante mais difíceis, não quis poupar-te o esforço de pensar passo a passo nem tratar-te como se fosses idiota. Sou da opinião, não sei se pensas o mesmo, de que quando se trata uma pessoa


como se fosse idiota é muito provável que, se ela não o for já, depressa acabe por sê-lo... De que me proponho falar-te? Da minha vida e da tua, nada mais ou nada menos. Ou se preferes: daquilo que eu faço e daquilo que tu estás a começar a fazer. Quanto ao primeiro ponto, aquilo que eu faço, gostava de responder-te finalmente a uma pergunta que me puseste de viva voz há muitos anos - e que na altura ficou sem resposta. Devias ter uns seis anos e estávamos a passar o Verão em Torrelodones. Nessa tarde, como nas outras, eu estava a bater sem entusiasmo as teclas da @a Olivetti portátil, fechado no meu quarto, diante da fotografia da cauda de uma grande baleia, levantada e a escorrer água por cima do mar azul. Ouvia-vos a brincar, a ti e aos teus primos, na piscina; via-vos a coiter no jardim. Perdoa-me a digressão confidencial: sentia-i-ne encharcado em suor e felicidade. De repente, chegaste ao pé da minha janela aberta e disseste: «Olá. O que é que estás a maquinar?» Respondi um disparate qualquer porque não ia pôr-me naquela altura a explicar-te que estava a tentar escrever um livro de ética. Nem te interessava a ti o que a ética pudesse ser, nem estavas disposto a prestar-me atenção durante muito mais do que três minutos. Talvez só quisesses que eu soubesse que ali estavas: como se alguma vez eu pudesse esquecê-lo, nesse tempo ou agora! Mas os outros chamavam-te e foste-te embora a correr. Eu continuei a maquinar e é agora, passados quase dez anos, que me decido finalmente a dar-te as minhas explicações sobre essa coisa esquisita, a ética, de que continuo a ocupar-me. Um par de anos mais tarde, e também no nosso miniparaíso de Torrelodones, contaste-me um sonho que tinhas tido. E de que também não te lembras? Estavas num campo muito escuro, como se fosse de noite, e soprava um vento terrível. A arravas-te às árvores, às pedras, g mas o vendaval arrastava-te sem remédio, como a menina de O Feiticeiro de Oz. Enquanto ias rodopiando no ar, a caminho do desconhecido, ouviste a minha voz («eu não te via, mas sabia que eras tu», explicaste) a dizer-te: «Confiança! Tem confiança!» Não sabes a prenda que me deste ao contar-me esse estranho pesadelo: nem em mil anos que vivesse poderia pagar-te o orgulho dessa tarde em que soube que a minha voz podia dar-te coragem. Pois bem, tudo o que vou dizer-te nas páginas seguintes são apenas repetições desse único conselho, uma e outra vez: tem confiança! Não em mim, claro, nem em nenhum sábio, mesmo dos que o são a sério, nem em regadores, padres ou polícias. Não em deuses nem em demónios, nem em máquinas, nem em bandeiras. Tem confiança em ti próprio. Na inteligência que te permitirá ser melhor do que já és e no instinto do teu amor, que te fará merecer boa companhia. Já estás a ver que isto não é um romance policial misterioso, desses que têm de se ler até à última página para se saber quem foi que cometeu o crime. Tanta pressa tenho que começo, no prólogo, por revelar-te já a última lição. Talvez desconfies de que estou a tentar comer-te a cabeça, e em certo sentido não te enganas. De facto, muitos povos antropófagos abrem - ou abriam o crânio dos seus inimigos para lhes comerem uma parte do cérebro, numa tentativa de se apoderarem assim da sabedoria, dos mitos e da coragem das vítimas. Neste livro estou a dar-te a comer uma parte do meu próprio cérebro


e aproveito para comer

@ 17 um bocado do teu. Não sei se extrairás grande alimento dos meus miolos: talvez só alguns pedaços da experiência de um herdeiro que não aprendeu nos livros tudo o que sabe. Pelo meu lado, quero apropriar-me às dentadas de uma boa porção do tesouro que te sobra: juventude intacta. Que nos aproveite aos dois. CAPÍTULO PRIMEIRO DE QUE TRATA A ÉTICA

Há ciências que se estudam pelo simples interesse de saber coisas novas; outras, para se adquirir uma capacidade que permita fazer ou utilizar alguma coisa; a maioria, para se conseguir um lugar de trabalho e com ele ganhar a vida. Se não sentirmos curiosidade nem necessidade de realizar esses estudos, poderemos prescindir deles tranquilamente. Abundam os conhecimentos interessantíssimos, mas sem os quais nos podemos perfeitamente arranjar para viver: eu, por exemplo, lamento não ter a menor ideia de astrofísica nem de marcenaria, coisas que a outros darão tanto prazer, ainda que essa ignorância não me tenha até à data impedido de me ir aguentando. E tu, se não me engano, conheces as regras do futebol mas estás bastante a leste do basebol. O que não tem importância de maior: divertes-te com os mundiais e deixas olimpicamente dc lado a liga americana, e pronto, assim é melhor para todos. O que quero dizer com isto é que há certas coisas que podemos, conforme nos dê jeito, aprender ou não. Como ninguém é capaz de saber tudo, não temos outro remédio senão escolher e aceitar com humildade o muito que ignoramos. Pode viver-se sem saber astrofísica, marcenaria, futebol e até mesmo sem saber ler nem escrever: vive-se pior, se quiseres, mas vive-se. Ora bem, há outras coisas que temos de saber, porque nelas, como costuma dizer-se, está em jogo a nossa vida. É preciso estarmos ao corrente de que, por exemplo, saltar da janela de um sexto andar não é coisa que faça bem à saúde; ou de que uma dieta de pregos (os faquires que me perdoem!) e ácido prússico não permite a ninguém chegar a velho. Igualmente não é aconselhável ignorar que, se de cada vez que nos cruzamos com o vizinho lhe damos uma pancada, as consequências, mais cedo ou máis tarde,

@i acabarão por ser extremamente desagradáveis. Estas ninharias têm a importância. Podemos viver de muitas maneiras, mas há maneiras que deixam viver. Numa palavra, entre todos os saberes possíveis existe pelo menos um é imprescindível: o de que certas coisas nos convêm e outras não. Não

sua não que nos


convêm certos alimentos nem nos convêm certos comportamentos - nem certas atitudes. Refiro-me, claro está, ao facto de não nos convirem se quisermos continuar a viver. Se alguém quiser acima de tudo acabar depressa, pode ser muito recomendável beber lixívia ou ainda procurar rodear-se do maior número de inimigos possível. Mas de momento vamos supor que é viver que preferimos: os respeitáveis gostos do suicida deixá-los-emos por agora de parte. Assim, há certas coisas que nos convêm, e ao que nos convém costumamos chamar «bom», porque nos cai bem; outras coisas, em contrapartida, caem-nos muito mal, e a tudo isso chamamos «mau». Sabermos o que nos convém, quer dizer, distinguir entre o bom e o mau, é um conhecimento que todos tentamos adquirir - todos sem excepção - pelos resultados que nos traz. Como já indiquei antes, há coisas boas e más para a saúde: é necessário saber o que devemos comer ou que o lume às vezes aquece e às vezes queima, bem como que a água, se pode matar a sede, também nos pode afogar. Em todo o caso, nem sempre as coisas são tão simples: certas drogas, por exemplo, aumentam a nossa coragem ou produzem sensações agradáveis, mas abusar delas continuadamente poderá ser prejudicial. Sob certos aspectos são boas, mas sob outros aspectos más: convêm-nos e, ao mesmo tempo, não nos convêm. No terreno das relações humanas, estas ambiguidades acontecem ainda com maior frequência. A mentira é geralmente uma coisa má, porque destrói a confiança na palavra - e todos necessitamos de falar para viver em sociedade - e deixa as pessoas de mal umas com as outras; mas às vezes dir-se-ia que pode ser útil ou benéfico mentir em vista de se conseguir certa vantagem. Ou até para se fazer um favor a alguém. Por exemplo: será melhor dizer ao doente que sofre de um cancro incurável, a verdade sobre o seu estado, ou deveremos enganá-lo, a fim de que ele passe sem angústia as suas últimas horas? A mentira não nos convém, é má, mas às vezes parece tomar-se boa. Brigar com os outros, já o dissemos, é normalmente inconveniente, mas deveremos por isso consentir que violem diante de nós uma rapariga sem intervirmos, só para não nos metermos em sarilhos? Por outro lado, aquele que diz sempre a verdade - aconteça o que acontecer costuma ter problemas com toda a gente; e quem intervém como o Indiana Jones para salvar a rapariga atacada é mais provável que fique com a cabeça partida do que se continuasse a assobiar no seu caminho para casa. O mau parece às vezes tornar-se mais ou menos bom e o bom tem em certas ocasiões a aparência de mau. Palmas! Saber viver não é lá muito fácil porque existem diversos critérios opostos em relação ao que devemos fazer. Em matemáticas ou geografia há sábios e ignorantes, mas os sábios estão quase sempre de acordo quanto ao fundamental. Quando se trata de viver, em contrapartida, as opiniões estão muito longe de serem unânimes. Se alguém quiser levar uma vida emocionante, poderá dedicar-se à Fórmula Um ou ao alpinismo; mas, se preferir uma vida segura, será melhor que procure as suas aventuras no clube de vídeo da esquina. Alguns afirmam que viver para os outros é o que há de mais nobre e outros dizem que o mais útil é fazer com que os outros vivam para nós. Segundo certas opiniões o que conta é ganhar dinheiro e nada mais, enquanto outros defendem que o dinheiro sem saúde, tempo livre, afecto sincero ou serenidade de espírito de nada vale. Há médicos respeitáveis que declaram que renunciar ao tabaco e ao álcool é um meio seguro de se viver mais, ao que bêbados e fumadores respondem que com tais privações a vida se tomaria para eles insuportável. Etc.


O único ponto sobre o qual, à primeira vista, estamos todos de acordo é que nem todos estamos de acordo. Mas lembra-te de que as opiniões diferentes coincidem também num outro ponto: a saber, que aquilo que vai ser a nossa vida é, pelo menos em parte, resultado do que quiser cada um de nós. Se a nossa vida fosse algo completamente determinado e fatal, irremediável, todas estas questões careceriam do mínimo sentido. Ninguém discute para saber se as pedras caem para cima ou para baixo: caem para baixo, ponto final. Os castores fazem represas nos ribeiros e as abelhas favos com alvéolos hexagonais: não há castores que se sintam tentados a fazer alvéolos de favos, nem abelhas que se dediquem à engenharia hidráulica. No seu meio natural, cada animal parece saber perfeitamente o que é bom e o que é mau para ele, sem discussões nem dúvidas. Não há animais maus nem bons na Natureza, embora talvez a mosca considere nú a aranha que lhe lança a sua teia e a come. Mas a aranha não o pode evitar..

23 Vou contar-te um caso dramático. Já ouviste falar das térmitas, essas formigas-brancas que, em África, constroem formigueiros impressionantes, com vários metros de altura e duros como pedra. Uma vez que o corpo das térmitas é mole, por não ter a couraça de quitina que protege outros insectos, o formigueiro serve-lhes de carapaça colectiva contra certas formigas inimigas, mais bem armadas do que elas. Mas por vezes um dos formigueiros é derrubado, por causa de uma cheia ou de um elefante (os elefantes, que havemos nós de fazer, gostam de coçar os flancos nas termiteiras). A seguir, as ténnitas-operário começam a trabalhar para reconstruir a fortaleza afectada, e fazem-no com toda a pressa. Entretanto, já as grandes formigas inimigas se lançam ao assalto. As tén-nitas-soldado saem em defesa da sua tribo e tentam deter as inimigas. Como nem no tamanho nem no armamento podem competir com elas, penduram-se nas assaltantes tentando travar o mais possível o seu avanço, enquanto as ferozes mandíbulas invasoras as vão despedaçando. As operárias trabalham com toda a velocidade e esforçam-se por fechar de novo a termiteira derrubada... mas fecham-na deixando de fora as pobres e heróicas térmitas-soldado, que sacrificam as suas vidas pela segurança das restantes formigas. Não merecerão estas fon-nigas-soldado pelo menos uma medalha? Não será justo dizer que são valentes? Mudo agora de cenário, mas não de assunto. Na Ilíada, Homero conta a história de Heitor, o melhor guerreiro de Tróia, que espera a pé fin-ne fora das muralhas da sua cidade Aquiles, o enfurecido campeao dos Aqueus, embora sabendo que Aquiles é mais forte do que ele e que vai provavelmente matá-lo. Fá-lo para cumprir o seu dever, que consiste em defender a famflla e os concidadãos do terrível assaltante. Ninguém tem dúvidas: Heitor é um herói, um homem valente como deve ser. Mas será Heitor heróico e valente da mesma maneira que as térmitas-soldado, cuja gesta milhões de vezes repetida nenhum Homero se deu ao trabalho de contar? Não faz Heitor, afinal de contas, a mesma coisa que qualquer uma das térmitas anónimas? Porque nos parece o seu valor mais autêntico e mais difícil do que o dos insectos? Qual é a diferença entre um e outro caso? Muito simplesmente, a diferença assenta no facto de as térmitas-soldado


lutarem e morrerem porque têm de o fazer, sem que possam evitá-lo (como a aranha come a mosca). Heitor, pelo seu lado, sai para enfrentar Aquiles porque quer. As térmitas-soldado não podem deser-

I I 24 tar, nem revoltar-se, nem fazer cera para que outras vão em seu lugar: estão programadas necessariamente pela Natureza para cumprirem a sua heróica missão. O caso de Heitor é distinto. Poderia dizer que está doente ou que não tem vontade de se bater com alguém mais forte do que ele. Talvez os seus concidadãos lhe chamassem cobarde e o considerassem insensível ou talvez lhe perguntassem que outro plano via ele para deter Aquiles, mas é indubitável que Heitor tem a possibilidade de se recusar a ser herói. Por muita pressão que os restantes exercessem sobre ele, ele teria sempre maneira de escapar daquilo que se supõe que deve fazer: não está programado para ser herói, nem o está seja que homem for. Daí que o seu gesto tenha mérito e que Homero nos conte a sua história com uma emoção épica. Ao contrário das térmitas, dizemos que Heitor é livre e por isso admiramos a sua coragem. E chegamos assim à palavra fundamental de toda esta embrulhada: liberdade. Os animais (para já não falarmos nos minerais e nas plantas) não podem evitar ser como são e fazer aquilo que naturalmente estão programados para fazer. Não se lhes pode censurar que o façam nem aplaudi-los pelo que fazem, porque não sabem comportar-se de outro modo. As suas disposições obrigatórias poupam-lhes sem dúvida muitas dores de cabeça. Em certa medida, de início, nós, os homens, também estamos programados pela Natureza. Estamos feitos para beber água, e não lixívia, e tomemos as precauções que tomarmos, mais cedo ou mais tarde, morreremos. E de modo menos imperioso mas análogo, o nosso programa cultural é também determinante: o nosso pensamento é condicionado pela linguagem que lhe dá forma (uma linguagem que nos é imposta de fora e que não inventámos para nosso uso pessoal) e somos educados em certas tradições, hábitos, formas de comportamento, lendas ... ; numa palavra, são-nos inculcados desde o berço certas fidelidades e não outras. Tudo isto pesa muito e faz com que sejamos bastante previsíveis. Por exemplo, Heitor, de quem acabamos de falar. A sua programação natural fazia com que Heitor sentisse necessidade de protecção, tecto e colaboração, benefícios que melhor ou pior encontrava na sua cidade de Tróia. Também era muito natural que considerasse com afecto a sua mulher, Andrómaca que lhe proporcionava uma agradável companhia -, e o filhinho, perante o qual sentia os laços de um apego biológico. Culturalmente, sentia-se parte de Tróia e compartilhava com os Troianos a lingua, os costumes e as tradições. Além disso, fora educado desde pequeno para ser um

25 bom guerreiro ao serviço da sua cidade, tendo-lhe sido dito que a cobardia


era uma coisa odiosa, indigna de um homem. Se atraiçoasse os seus, Heitor sabia que seria desprezado e, de uma maneira ou de outra, punido. De modo que estava também bastante programado para actuar como actuou, não é verdade? E contudo... Contudo, Heitor teria podido dizer: que se lixe isso tudo! Poderia ter-se disfarçado de mulher para fugir de Tróia durante a noite, ou ter-se fingido doente ou louco para não combater, ou ter-se posto de joelhos diante de Aquiles oferecendo-lhe os seus serviços como guia para invadir Tróia pelo lado mais fraco; também poderia ter-se dedicado à bebida ou ter inventado uma nova religião que dissesse que não devemos lutar contra os nossos inimigos, mas oferecer a outra face quando nos esbofeteiam. Dir-me-ás de todos estes comportamentos teriam sido bastante estranhos, sendo Heitor quem era e tendo recebido a educação que recebera. Mas tens de reconhecer que não são hipóteses impossíveis, ao passo que um castor que fabrique favos ou uma térmita desertara não são só uma coisa estranha como também estritamente impossível. Com os homens nunca podemos ter bem a certeza, ao passo que com os animais, ou outros seres naturais, sim. Por grande que seja a nossa programação biológica ou cultural, nós, seres humanos, podemos acabar por optar por algo que não está no programa (pelo menos que lá não está totalmente). Podemos dizer «sim» ou «não», quero ou não quero. Por muito apertados que nos vejamos pelas circunstâncias, nunca temos um só caminho a seguir, mas sempre vários. Quando te falo de liberdade é a isto que me refiro. Ao que nos diferencia das térmitas e das marés, de tudo o que se move de modo necessário e irremediável. É verdade que não podemos fazer tudo o que quisermos, mas também é certo que não estamos obrigados a querer fazer uma coisa só. E aqui convém introduzir dois esclarecimentos a propósito da liberdade: Primeiro: não somos livres de escolher o que nos acontece (ter nascido certo dia, de certos pais, em tal país, sofrer de um cancro ou ser atropelados por um carro, ser bonitos ou feios, que os Aqueus queiram conquistar a nossa cidade, etc.), mas somos livres de responder desta maneira ou daquela ao que nos acontece (obedecer ou revoltar-nos, ser prudentes ou temerários, vingativos ou resignados, vestir-nos de acordo com a moda ou disfarçar-nos de urso das cavernas, defender Tróia ou fugir, etc.). g Segundo: sermos livres de tentar alguma coisa nada tem a ver com a sua obtenção indefectível. A liberdade (que consiste em escolher dentro do possível) não é a mesma coisa que a omnipotência (que seria alguém conseguir sempre aquilo que quer, ainda que tal pareça impossível). Por isso, quanto maior capacidade de acção tenhamos, melhores resultados poderemos obter da nossa liberdade. Sou livre de querer subir ao monte Evereste, mas, dado o meu lamentável estado físico e a minha preparação nula em alpinismo, é praticamente impossível que alcance o meu objectivo. Em contrapartida, sou livre de ler ou não ler, mas como aprendi a ler desde muito pequeno não se trata de coisa demasiado difícil para mim, caso decida fazê-la. Há coisas que dependem da minha vontade (e isso é ser livre), mas nem tudo depende da minha vontade (caso contrário, seria omnipotente), porque no mundo há muitas outras vontades e muitas outras necessidades que eu não controlo a meu talante. Se não me conhecer nem a mim próprio nem ao mundo


em que vivo, a minha liberdade esbarrará uma e outra vez na necessidade. Mas, aspecto importante, nem por isso deixarei de ser livre... ainda que caia. Na realidade existem muitas forças que limitam a nossa liberdade, dos terramotos ou doenças aos tiranos. Mas também a nossa liberdade é uma força no mundo, a nossa força. Contudo, se falares com as pessoas, verás que a maioria tem muito mais consciência daquilo que limita a sua liberdade do que da própria liberdade. Vão dizer-te: «Liberdade? Mas de que liberdade me estás a falar? Como seremos livres, se nos lavam o cérebro a começar pela televisão, se os governantes nos enganam e nos manipulam, se os terroristas nos ameaçam, se as drogas nos escravizam, e se além disso me falta dinheiro para comprar uma moto, que era o que eu queria?» Se reflectires um bocadinho, verás também que os que falam assim parecem queixar-se, mas na realidade estão muito satisfeitos por saberem que não são livres. No fundo, pensam: «Uf! Que belo peso tirámos de cima das costas! Como não somos livres, não podemos ter a culpa de nada do que nos aconteça ... » Mas eu tenho a certeza de que ninguém - ninguém - acredita deveras que não é livre, ninguém aceita sem mais que funciona como um mecanismo inexorável de relojoaria ou como uma térmita. Uma pessoa pode considerar que optar livremente por certas coisas em certas circunstâncias é muito diflcil (entrar numa casa em chamas para salvar uma criança, por exemplo, ou combater firmemente um tirano) e que é melhor dizer que não há liberdade para não se reconhecer que livremente se prefere o mais fácil, quer dizer, esperar pelos bombeiros ou lamber a bota que nos pisa a garganta. Mas nas tripas sentimos qualquer coisa que insiste em dizer-nos: «Se tivesses querido ... » Quando alguém se esforçar por te negar que nós, seres humanos, somos livres, aconselho-te a que lhe apliques a prova do filósofo romano. Na Antiguidade, um filósofo romano estava a discutir com um amigo que negava a liberdade humana e garantia que, para todos os homens, não há maneira de evitar fazer o que fazem. O filósofo pegou no seu bastão e começou a dar-lhe pauladas com toda a força que tinha. «Já chega, não batas mais!», dizia-lhe o outro. E o filósofo, sem deixar de surrá-lo, continuou a argumentar: «Não dizes que não sou livre e que quando faço uma coisa não posso evitar fazê-la? Pois então não gastes saliva a pedir-me que pare: sou automático.» Até que o amigo reconheceu que o filósofo podia livremente deixar de bater-lhe, e só então o filósofo deu descanso ao seu pau. A prova é boa, mas só deves admlnistrá-la em casos extremos e sempre com amigos que não saibam artes marciais... Em resumo: ao contrário de outros seres, vivos ou inanimados, nós, seres humanos, podemos inventar e escolher em parte a nossa forma de vida. Podemos optar pelo que nos parece bom, quer dizer, conveniente para nós, frente ao que nos parece mau e inconveniente. E, como podemos inventar e escolher, podemos enganar-nos, que é uma coisa que não costuma acontecer a castores, abelhas e térmitas. Assim, parece prudente estarmos bem atentos ao que fazemos e procurar adquirir um certo saber viver que nos permita acertar. Esse saber viver, ou arte de viver, se preferires, é aquilo a que se chama ética. Disso, se tiveres paciência, vamos continuar a falar nas restantes páginas deste livro.


Para ires lendo... «E se agora, deixando no chão o escudo lavrado e o forte capacete e apoiando a lança contra o muro, saísse ao encontro do inexorável Aquiles, lhe dissesse que permitia aos Atridas que levassem Helena e as riquezas que Alexandre trouxe para ílion nos côncavos navios, pois foi isso que originou a guerra, e se oferecesse para repartir com os Aqueus metade do que a cidade contém e mais tarde fizesse os troianos jurarem que, sem nada ocultar, formariam dois lotes com quantos bens existem dentro desta formosa cidade?... Mas porque me faz o coração pensar em coisas tais?» (Homero, Ilíada). «A liberdade não é uma filosofia e nem sequer é uma ideia: é um movimento da consciência que nos leva, em certos momentos, a proferir dois monossílabos: Sim ou Não. Na sua brevidade instantânea, como a luz do relâmpago, desenha-se assim o sinal contraditório da natureza humana» (Octavio Paz, La otra voz). «A vida do homem não pode "ser vivida" repetindo os padrões da espécie; é ele próprio - cada um de nós - quem deve viver. O homem é o único animal que pode estar aborrecido, que pode estar enojado, que pode sentir-se expulso do paraíso» (Erich Fromm, Ética e Psicanálise).

29 CAPÍTULO SEGUNDO ORDENS, COSTUMES E CAPRICHOS

Vou recordar-te rapidamente onde estávamos. Ficou claro que há coisas que nos convêm para viver enquanto outras não, mas nem sempre é claro que coisas são as que nos convêm. Embora não possamos escolher o que nos acontece, podemos, em compensação, escolher o que fazer perante aquilo que nos acontece. Modéstia à parte, o nosso caso parece-se mais com o de Heitor do que com o das térnútas beneméritas... Quando decidimos fazer alguma coisa, fazemo-lo porque preferimos fazer isso a outra coisa, ou porque preferimos fazer isso a não o fazer. Conclui-se então que fazemos sempre o que queremos? Alto aí, não é bem assim. Às vezes as circunstâncias impõem-nos que escolhamos entre duas opções que não escolhemos: e há também ocasiões em que escolhemos embora preferíssemos não ter de escolher. Um dos primeiros filósofos que se ocupou destas questões, Aristóteles, imaginou o seguinte exemplo: um barco transporta uma carga importante de um porto para outro. A meio do trajecto, surpreende-o uma tempestade tremenda. Parece então que a única forma de salvar o barco e a tripulação é lançar borda fora a carga, que além de importante pesa muito. Ao capitão do navio coloca-se o seguinte problema: «Devo deitar fora a mercadoria ou arriscar-me a enfrentar o temporal conservando-a a bordo, esperando que o tempo melhore ou que a embarcação resista?» A partir daqui, se lançar a carga ao mar, fá-lo-á porque prefere fazer isso a desafiar o perigo, mas seria injusto dizermos sem mais que a quer lançar ao mar. O que ele deveras


quer é chegar ao seu destino, com o navio, a tripulação e a mercadoria; é isso o que mais lhe convém. Contudo, dadas as circunstâncias tormentosas, prefere salvar a sua vida e a da tripulação a salvar a carga, por mais

33 preciosa que seja. Oxalá não tivesse rebentado a maldita borrasca! Mas a borrasca é algo que ele não pôde escolher, é uma coisa que lhe foi imposta, uma coisa que lhe aconteceu, queira-o ele ou não; o que em contrapartida pode escolher é o comportamento a seguir no perigo que o ameaça. Se lançar a carga borda fora, fá-lo-á porque o quer... e ao mesmo tempo sem o querer. Quer viver, salvar-se e salvar os homens que dependem dele, salvar o seu barco; mas não quer ficar sem a carga nem o ganho que ela representa, pelo que só muito a contragosto se separará dela. Preferiria sem dúvida não se ver no passo de ter que escolher entre a perda dos seus bens e a perda da sua vida. Todavia, não pode evitá-lo e tem de decidir-se: escolherá o que quiser mais, o que julgar mais conveniente. Poderíamos dizer que é livre porque não pode evitar sê-lo, livre de escolher em circunstâncias que não escolheu sofrer. Quase sempre, quando reflectimos em situações difíceis ou importantes sobre o que devemos fazer, ficamos numa situação parecida com a deste capitão de navio de que falava Aristóteles. Mas, evidentemente, nem sempre as coisas se mostram tão feias. Às vezes as circunstâncias são menos tormentosas e, se eu insistir em só te apresentar exemplos com ciclone incorporado, tu podes revoltar-te contra eles, como certo aprendiz de aviador. O professor de voo perguntou-lhe: «Você está dentro de um avião a voar, vem uma tempestade e inutiliza-lhe o motor. Que há-de você fazer?» O aluno responde: «Continuo a voar com o outro motor.» «Bem», disse o professor, «mas vem outra tempestade e deixa-o ficar sem esse motor também. Como resolve você então as coisas?» «Continuando com outro motor.» «Mas mais uma tempestade vem e destrói-lho. E agora?» «Continuo com outro motor.» «Vamos lá», impacienta-se o professor, «pode saber-se onde vai você buscar tantos motores?» E o aluno imperturbável: «Ao mesmo sítio de onde o senhor tira tantas tempestades.» Não, deixemos de lado o tormento das tormentas, e vejamos o que acontece quando está bom tempo. Geralmente, não passamos a vida a dar voltas ao que nos convém ou não convém fazer. Por felicidade, não costumamos estar tão apertados pela vida como o capitão do malfadado barquinho de que falámos. Se quisermos ser sinceros, teremos de reconhecer que fazemos a maior parte dos nossos actos quase automaticamente, sem nos preocuparmos demasiado com o assunto. Queres fazer-me o favor de recordares comigo o que fizeste esta manhã? O despertador tocou indecentemente cedo, e tu, em vez de o atirares contra a parede do quarto como seria tua vontade, desligaste o alarme. Ficaste um bocadinho entre lençóis, tentando aproveitar os últimos e preciosos minutos de comodidade horizontal. Depois pensaste que se estava a fazer tarde e que o autocarro para o colégio não espera, de maneira que te levantaste com uma santa indignação. Bem sei que não gostas por aí além de lavar os dentes, mas, como eu insisto muito para que o faças, lá pegaste entre bocejos na pasta e na escova. Tomaste


um duche quase sem te dares conta do que estavas a fazer, porque o banho é uma coisa que já pertence à rotina de todas as manhãs. A seguir bebeste o teu café com leite e comeste a habitual torrada com manteiga. Depois, ala para a dureza da rua! Enquanto te encaminhavas para a paragem do autocarro revendo mentalmente os exercícios de matemática - não tinhas hoje teste? - foste dando uns piparotes distraídos numa lata de coca-cola vazia. Mais tarde, apareceu o autocarro, chegaste ao colégio, etc. Francamente, não julgo que tenhas realizado cada um destes actos entre meditações angustiadas: «Levanto-me ou não me levanto? Tomo duche ou não tomo duche? Tomar ou não tomar o pequeno-almoço, eis a questão!» A aflição do pobre capitão do navio prestes a naufragar, e tendo que decidir precipitadamente se lançará ou não a sua carga borda fora, pouca semelhança tem com as tuas sonolentas decisões desta manhã. Agiste de maneira quase instintiva, sem te colocares demasiados problemas. No fundo, acaba por ser mais cómodo e mais eficaz, não é verdade? Às vezes pensarmos de mais no que vamos fazer como que nos paralisa. É como quando começas a andar: se te puseres a olhar para os pés e a dizer «agora, o direito; a seguir, o esquerdo, etc.», o mais natural é que tropeces ou que acabes por parar. Mas eu gostava que agora, retrospectivamente, perguntasses a ti próprio o que não te perguntaste esta manhã. Quer dizer: porque fiz o que fiz? Porquê aquele gesto e não antes o contrário, ou talvez outro qualquer? Suponho que esta investigação te vai indignar um bocado. Ora essa! Porque tens de te levantar às sete e meia, de lavar os dentes e ir para o colégio? E sou eu que to pergunto? Pois se é justamente porque me empenho em que o faças e me sirvo de ameaças e promessas, para de mil e uma maneiras te obrigar a fazê-lo! Se ficasses na cama, o que não terias de ouvir! Claro que alguns dos gestos referidos, como tomares banho ou tomares o pequeno-almoço, são gestos que

35 realizas sem te lembrares de mim, porque são coisas que se fazem sempre que uma pessoa se levanta - não é verdade? -, coisas que toda a gente repete sempre. É como vestir umas calças em vez de sair de cuecas, por muito que o calor aperte... Quanto a apanhar o autocarro, bom, não tens outro remédio para chegares a horas, porque o colégio fica muito longe para ires a pé e a minha generosidade não chega ao ponto de te pagar o táxi de ida e volta todos os dias. E os piparotes na lata? Aí tens uma coisa que fazes porque sim, porque te apetece. Vamos então trocar por miúdos a série de diferentes motivos que tens para os teus comportamentos matutinos. Já sabes o que é um «motivo» no sentido que a palavra recebe neste contexto: é a razão que tens ou pelo menos julgas ter para fazer alguma coisa, a explicação mais aceitável do teu comportamento quando reflectes um pouco sobre ele. Numa palavra: a melhor resposta que te ocorre perante a pergunta: «Porque faço eu isto?» Pois bem, um dos tipos de motivação que reconheces é que eu te mando fazeres isto ou aquilo. A estes motivos chamaremos ordens. Noutras ocasiões, o motivo é que costumas fazer sempre esse mesmo gesto e já o repetes quase sem pensar, ou também veres que à tua volta toda a gente se comporta da mesma maneira, habitualmente: chamaremos costumes a este jogo de motivos. Noutros casos


- os pontapés na lata, por exemplo -, o motivo parece ser a ausência de motivo, o que mais te apetece, o puro impulso. Não achas que poderemos chamar caprichos ao porquê desses comportamentos? Deixo de lado os motivos mais directamente funcionais, quer dizer, os que te levam a fazer os gestos que fazes como instrumento puro e directo em vista de conseguires alguma coisa: descer as escadas para chegares à rua em vez de saltares pela janela, apanhares o autocarro para ires para o colégio, servires-te de uma chávena para beberes o teu café com leite. Vamos limitar-nos ao exame dos três primeiros tipos de motivos, ou seja, as ordens, os costumes e os caprichos. Cada um destes motivos inclina o teu comportamento numa direcção ou noutra, explica mais ou menos a tua preferência por fazeres o que fazes perante as muitas outras coisas que poderias fazer. A primeira pergunta que me ocorre pôr-te a este respeito é a seguinte: de que modo e com quanta força te obriga a actuar cada um destes motivos? Porque nem todo,,,, têm o mesmo peso em cada ocasião. Levantares-te para ires para o I colégio é mais obrigatório do que lavares os dentes ou tomares duche e, penso eu, muito mais ainda do que pontapear a lata de coca-cola; em contrapartida, vestires umas calças ou pelo menos umas cuecas por muito calor que faça é tão obrigatório como ir para o colégio - ou não será? O que quero dizer-te é que cada tipo de motivos tem o seu próprio peso e te condiciona a seu modo. As ordens, por exemplo, extraem a sua força, em parte, do medo que podes sentir das terríveis represálias que tomarei contra ti se não me obedeceres; mas também, suponho eu, do afecto e da confiança que tens em mim - o que te leva a pensar que aquilo que te mando fazer se destina a proteger-te e a tomar-te melhor ou, como se costuma dizer com uma expressão que te faz torcer o nariz, que é para teu bem. Igualmente entra aqui em jogo a esperança de algum tipo de recompensa se cumprires tudo como deve ser: mesada, prendas, etc. Os costumes, em compensação, resultam antes da comodidade de seguires a rotina em certas ocasiões e também do teu interesse em não contrariares os outros, ou seja, da pressão dos demais. Também nos costumes existe como que uma obediência a certos tipos de ordens: pensa, para pegarmos noutro exemplo, no caso da moda! A quantidade de blusões, sapatos, cabedais, etc., que tens de usar porque entre os teus amigos é costume usar essas coisas e tu não queres destoar! As ordens e os costumes têm uma coisa em comum: parece que vêm defora, que se te impõem sem pedir licença. Em contrapartida, os caprichos saem-te de dentro, jorram espontaneamente sem que ninguém tos ordene e sem que, em princípio, julgues estar a imitar alguém. E suponho que, se te perguntar se te sentes mais livre ao cumprir ordens, ao seguir o costume ou a realizar caprichos, me dirás que és mais livre quando realizas os teus caprichos, porque o capricho é uma coisa mais tua e não depende de mais ninguém, a não ser de ti. Claro que é preciso distinguir: muitas vezes também o chamado capricho te apetece porque estás a imitar alguém ou talvez resulte de uma ordem mas às avessas, por vontade de contrariar, uma vontade que não despertaria em ti só por ti, sem a ordem anterior a que desobedeces... Enfim, de momento ficaremos por aqui, que por hoje a confusão já é mais que muita.


Mas, antes de acabar, recordemos à despedida, outra vez, o navio grego durante a tempestade de que falava Aristóteles. Já que começámos entre vagas e trovões, bem podemos acabar da mesma maneira, I 37 fazendo deste capítulo uma espécie de capicua. O capitão do navio estava, quando o deixámos, prestes a lançar a carga borda fora para evitar o naufrágio. Na realidade, recebeu ordens para levar a mercadoria ao porto, o costume não é precisamente atirá-la ao mar e de pouco lhe serviria seguir os seus caprichos, dado o aperto em que se encontra. Cumprirá o capitão as ordens que traz, correndo o risco de perder a sua vida e a de toda a tripulação? Terá mais medo da cólera dos patrões do que do próprio mar enfurecido? Em circunstâncias normais pode ser suficiente fazer o que nos mandaram fazer, mas por vezes é mais prudente perguntarmo-nos até que ponto se toma aconselhável obedecer.. Afinal de contas, o capitão não é como as térmitas, que têm de sair em missão kamikaze, querendo ou sem querer, pois não têm outro remédio senão obedecer aos impulsos da sua natureza. Mas, se na situação dada as ordens não bastam, o costume ainda menos. O costume serve para o trivial, para a rotina de todos os dias. Francamente, uma tempestade no alto mar não é momento para nos pormos com rotinas! Tu próprio vestes religiosamente calças e cuecas todas as manhãs, mas, se em caso de incêndio não tivesses tempo para o fazer, não te sentirias demasiado culpado por isso. Durante o grande terramoto do México de há anos, um amigo meu viu cair diante dos seus olhos um edifício muito alto; correu a ajudar e tentou tirar dos escombros uma das vítimas, que resistia inexpllcavelmente a sair do meio do entulho - até que confessou: «É que não tenho nada vestido ...» Prémio especial do júri para esta defesa intempestiva da decência! Tanto conformismo perante o costume vigente torna-se algo doentio, não te parece? Podemos supor que o nosso capitão grego era um homem prático e que a rotina de conservar a carga não era suficiente para determinar o seu comportamento em caso de perigo. Nem também para a deitar fora, claro está, por muito que na maioria dos casos fosse habitual largá-la. Quando as coisas se põem sérias a valer, é preciso inventar, em vez de nos limitarmos simplesmente a seguir a moda ou o hábito... A altura também não parece prestar-se a que a pessoa se entregue aos seus caprichos. Se te dissessem que o capitão do navio atirou a carga ao mar não por considerar isso o mais prudente mas por capricho (ou que a conservou no porão pelo mesmo motivo), que pensarias tu? Respondo em teu lugar: pensarias que ele devia estar um tanto louco. Arriscar a fortuna ou a vida sem outro móbil além do capricho tem muito de maluqueira, e se a extravagância compromete a fortuna ou a vida do próximo merece ser qualificada com mais severidade ainda. Como pode chegar a comandar um navio um catavento tão irresponsável? Nos momentos de tempestade, a pessoa saudável põe de lado quase todos os seus caprichozinhos e fica apenas com o desejo intenso de acertar com a linha de conduta mais conveniente, ou seja: mais racional.


Tratar-se-á então de um simples problema funcional, apenas de descobrir o melhor meio de apontar são e salvo? Suponhamos que o capitão chega à conclusão de que para se salvar basta que lance ao mar certo peso, seja esse peso constituído por mercadorias ou por tripulantes. Poderia então tentar convencer os marinheiros a que lançassem borda fora os quatro ou cinco mais inúteis de entre eles, o que garantiria uma boa oportunidade de arrecadar os lucros do frete. De um ponto de vista funcional, tal seria a melhor solução, do ponto de vista do capitão, para salvar a pele e para ao mesmo tempo garantir os lucros... Contudo, há em semelhante decisão qualquer coisa que me repugna e suponho que te repugna a ti também. Será porque recebi uma ordem dizendo que coisas assim não devem fazer-se, ou porque não tenho o costume de as fazer, ou simplesmente porque não me apetece - tão caprichoso sou - comportar-me dessa maneira? Perdoa-me deixar-te num suspense digno de Hitchcock, mas não vou dizer-te para acabar o que foi que no fim decidiu o nosso esfalfado capitão. Oxalá acertasse e tivesse bons ventos para voltar para casa! A verdade é que quando penso nele me dou conta de que estamos todos no mesmo barco... De momento, vamos ficar com as perguntas que levantámos e esperemos que ventos favoráveis nos conduzam até ao próximo capítulo, onde voltaremos a encontrá-las e tentaremos começar a responder-lhes.

Para ires lendo... «Tanto a virtude como o vício estão em nosso poder. Com efeito, sempre que está em nosso poder fazer, está-o também não fazer, e sempre que está em nosso poder o não, está-o também o sim, de maneira que se está em nosso poder agir quando é belo fazê-lo, estará em nosso poder não agir quando é vergonhoso» (Aristóteles, Ética a Nicómaco). «Na arte de viver, o homem é ao mesmo tempo o artista e o objecto da sua arte, é o escultor e o mármore, o médico e o paciente» (Erich Fromm, Ética e Psicanálise).

«Dispomos apenas de quatro princípios de moral: 1) O filosófico: faz o bem pelo próprio bem, por respeito pela lei. 2) O religioso: fá-lo porque é a vontade de Deus, por amor de Deus. 3) O humano: fá-lo porque o exige o teu bem-estar, por amor próprio. 4) O político: fá-lo porque o exige a prosperidade da sociedade de que fazes parte, por amor à sociedade e por consideração por ti» (Lichtenberg, Aforismos). «Não devemos de nos preocupar com viver muitos anos, mas com vivê-los satisfatoriamente; porque viver muito tempo depende do destino, viver satisfatoriamente depende da tua alma. A vida é grande quando é cheia; e toma-se cheia quando a alma recuperou a posse do seu bem próprio e transferiu para si o domínio de si própria» (Séneca, Cartas a Lucílio).

CAPÍTULO TERCEIRO


FAZ O QUE QUISERES

Dizíamos antes que fazemos a maior parte das coisas porque assim nos é mandado fazer (os pais quando somos jovens, os superiores ou as leis quando somos adultos), porque é costume fazê-las dessa maneira (às vezes a rotina é-nos imposta pelos demais com o seu exemplo e através da sua pressão medo do ridículo, censura, o que os outros vão dizer, desejo de aceitação pelo grupo... - e outras vezes somos nós próprios a criá-la), porque são um meio de conseguir o que queremos (como apanhar o autocarro para se ir para o colégio) ou simplesmente porque nos dá a vineta ou o capricho de as fazer como fazemos, sem mais razões.

Mas sucede que, em ocasiões

importantes ou quando levamos verdadeiramente a sério o que temos a fazer, todas estas motivações correntes se revelam insatisfatórias: parece-nos que sabem a pouco, como costuma dizer-se. Quando temos de sair para arriscar a pele diante das muralhas de Tróia, desafiando a arremetida de Aquiles, como fez Heitor; ou quando temos de decidir entre lançar a carga ao mar para salvar a tripulação ou atirar borda fora uns poucos de tripulantes para salvar a mercadoria; ou... noutros casos semelhantes, ainda que menos dramáticos (um exemplo simples: devo votar no político que considero melhor para a maioria do país, ainda que ele, subindo os impostos, prejudique os meus interesses pessoais, ou apoiar o que me permitirá arranjar-me melhor e os mais que se danem?), nem ordens nem costumes bastam e a questão também se não resolve com caprichos.

O

comandante nazi do campo de concentração, que é acusado de uma matança de judeus, tenta desculpar-se dizendo que «cumpriu ordens», mas a mim, em todo o caso, essa justificação não me convence; em certos países é costume não arrendar um andar a negros


43 por causa da sua cor de pele ou a homossexuais por causa das suas preferências amorosas, mas por muito habitual que seja essa discriminação ela continua a nao me parecer aceitável; o capricho de passar uns dias na praia é extremamente compreensível, mas, se alguém tiver um bebé entregue aos seus cuidados e, devido a esse capricho, o deixar sem assistência durante um fim-de-semana, esse capricho deixa de parecer simpático, se é que não se torna criminoso. Não és da mesma opinião que eu sobre estes casos? Tudo isto tem a ver com a questão da liberdade, que é o assunto de que propriamente se ocupa a ética, segundo creio haver-te dito já. Liberdade é poder dizer «sim» ou «não»; faço-o ou não faço, digam o que disserem os meus chefes ou os demais; isto convém-me e eu quero-o, aquilo não me convém e, portanto, não o quero. Liberdade é decidir, mas também, não te esqueças, dares-te conta do que estás a dizer. Precisamente o contrário de te deixares levar, como poderás compreender. E para não te deixares levar não tens outro remédio senão tentar pensar pelo menos duas vezes no que te dispões a fazer; sim, duas vezes, sinto muito, mesmo que te doa a cabeça... Da primeira vez em que pensas no motivo da tua acção, a resposta à pergunta «porque faço isto?» é do tipo das que há pouco estudámos: faço-o porque mo mandam fazer, porque é costume fazê-lo, porque me apetece. Mas se pensares uma segunda vez, a coisa já muda de figura. Faço isto porque mo mandaram fazer, mas... porque obedeço eu ao que me mandam? Por medo do castigo? Por esperar uma recompensa? Não estarei então como que escravizado por quem manda em mim? Se obedeço porque aqueles que dão as ordens sabem mais do que eu, não será aconselhável que procure informar-me o suficiente para decidir por mim próprio? E se me mandarem fazer coisas que não me parecem convenientes, como quando ordenaram ao comandante nazi que eliminasse os judeus do campo de concentração? Não poderá uma coisa ser «má» - quer dizer, não me convir - por muito que ma mandem fazer, ou «boa» e conveniente mesmo que ninguém me mande que a faça? O mesmo se passa com os costumes. Se não pensar mais do que uma vez no que faço, talvez me chegue a resposta de que ajo assim «por ser costume». Mas porque diabo tenho de fazer sempre o que é costume fazer-se (o que eu costumo fazer)? Como se fosse escravo dos que me rodeiam, por muito meus amigos que sejam, ou daquilo que fiz ontem, ou anteontem, e é o meu passado! Se viver rodeado de gente que tem o costume de discriminar os negros e isso de maneira nenhuma me parecer bem, porque hei-de ter que imitar essa gente? Se contraí o costume de pedir dinheiro emprestado e de nunca o devolver, mas cada vez me dá mais vergonha fazê-lo, porque não poderei mudar de atitude e começar a partir de hoje mesmo a ser mais certo com as minhas contas? Não pode por acaso um costume ser-me pouco conveniente, por muito acostumado que eu lhe esteja? E quando me interrogo pela segunda vez sobre os meus caprichos, o resultado é


semelhante. Muitas vezes apetece-me coisas que a seguir se voltam contra mim, e de que logo me arrependo. Em assuntos sem importância, o capricho pode ser aceitável, mas, quando estão em jogo coisas sérias, deixar-me levar por ele, sem reflectir sobre se se trata de um capricho conveniente ou inconveniente, pode tomar-se muito pouco aconselhável, e até perigoso: o capricho de atravessar sempre a rua quando os semáforos estão no vermelho poderá uma ou duas vezes ser divertido, mas chegarei a velho se continuar a fazê-lo todos os dias? Em resumo: podem existir ordens, costumes e caprichos que são motivos adequados para agir, mas nem sempre é esse o caso. Seria um tanto idiota querer contrariar todas as ordens e todos os costumes, como igualmente todos os caprichos, porque às vezes se revelam convenientes ou agradáveis. Mas nunca uma acção é boa só por ser uma ordem, um costume ou um capricho. Para saber se alguma coisa é deveras conveniente ou não para mim, tenho de examinar mais a fundo o que faço, raciocinando pela minha própria cabeça. Ninguém pode ser livre em meu lugar, quer dizer: ninguém pode dispensar-me de escolher e procurar por mim próprio. Quando se é uma criança pequena, imatura, com pouco conhecimento da vida e da realidade, a obediência, a rotina ou o pequeno capricho são suficientes. Mas isso acontece porque a criança depende ainda de alguém, está nas mãos de uma outra pessoa que cuida dela. Depois, é preciso tomarmo-nos adultos, ou seja, tomarmo-nos capazes de inventar de certa maneira a própria vida em vez de simplesmente viver a que outros inventaram para nós. Naturalmente, não podemos inventar-nos por completo porque não vivemos sozinhos e muitas coisas se nos impõem, queiramo-lo ou não (lembra-te de que o pobre capitão não escolheu sofrer uma tormenta no alto mar nem Aquiles pediu licença a Heitor para atacar Tróia ... ). Mas entre as ordens que nos são dadas, entre os costumes que

45 nos rodeiam ou que nós criamos, entre os caprichos que nos assaltam, teremos de aprender a escolher por nós próprios. Não podemos evitar, para sermos homens e não carneiros (peço desculpa aos carneiros), pensar duas vezes no que fazemos. E se insistires comigo, até três ou quatro vezes em grandes ocasiões. A palavra «moral» tem que ver etimologicamente com os costumes, pois é precisamente «costumes» o que significa a palavra latina mores, e também com as ordens, pois a maior parte dos preceitos morais dizem qualquer coisa como «deves fazer isto» ou «não te lembres sequer de fazer aquilo». Todavia, há costumes e ordens como já vimos - que podem ser maus, ou seja, «imorais», por muito ordenados e costumeiros que se nos apresentem. Se quisennos aprofundar deveras a moral, se quisermos aprender a sério como empregar bem a liberdade que temos (e nessa aprendizagem consiste justamente a «moral» ou «ética» de que estamos aqui a falar), o melhor será deixarmo-nos de ordens, costumes e caprichos. O primeiro aspecto que devemos deixar claro é que a ética de um homem livre nada tem a ver com os castigos ou os prêmios distribuídos por qualquer autoridade que seja - autoridade humana ou divina, para o caso tanto faz. Aquele que se limita a fugir do castigo e a procurar a recompensa que outros dispensam, segundo normas por


eles estabelecidos, não goza de condição melhor do que a de um pobre escravo. Talvez a uma criança pequena bastem o pau e a cenoura como guias de conduta, mas para alguém já mais crescidote toma-se muito triste continuar com essa mentalidade. A pessoa deve orientar-se de modo diferente. Mas é aqui necessário um certo esclarecimento dos termos. Embora eu use as palavras «moral» e «ética» como equivalentes, de um ponto de vista técnico (e desculpa-me este tom mais doutoral do que o costume) elas não significam o mesmo. «Moral» é o conjunto de condutas e normas que tu, eu e alguns dos que nos rodeiam costumamos aceitar como válidas; «ética» é a reflexão sobre o porquê de as considerarmos válidas, bem como a sua comparação com as outras «morais», assumidas por pessoas diferentes. Mas, enfim, por agora continuarei a empregar uma ou outra palavra sem distinção, sempre como arte de viver. Do que peço desculpa às academias... Recordo-te que as palavras «bom» e «mau» não se aplicam só a comportamentos morais, e nem sequer a pessoas somente. Diz-se, por exemplo, que Maradona e Butraguefio são futebolistas muito bons, w só a por ns,

sem que este qualificativo tenha alguma coisa a ver com a sua tendência para ajudar o próximo fora do estádio ou a sua propensão no sentido de falarem sempre verdade. São bons enquanto futebolistas e como futebolistas, sem que tenhamos que entrar em averiguações a respeito da sua vida privada. Também pode dizer-se que uma moto é muito boa sem que isso implique que a consideremos a Santa Teresa das motos: referimo-nos ao seu excelente funcionamento e à sua exibição de todas as vantagens que podem pedir-se a uma moto. No caso dos futebolistas e das motos, o «bom» - quer dizer, o conveniente é algo bastante próximo da evidência. Sem dúvida que se eu to perguntasse tu me explicarias perfeitamente quais os requisitos necessários para que isto ou aquilo mereça um lugar de destaque no campo de futebol ou na estrada. E então eu pergunto: porque não tentamos definir do mesmo modo aquilo que é necessário para se ser um homem bom? Não nos resolveria isso todos os problemas que nos estamos a pôr desde há já tantas páginas? Não é lá muito fácil, em todo o caso. A respeito dos bons futebolistas, das boas motos, dos bons cavalos de corrida, etc., a maior parte das pessoas costuma estar de acordo, mas quando se trata de determinar se alguém é bom ou mau em geral, como ser humano, as opiniões variam muito. Vê, por exemplo, o caso da Purita: a mãe lá em casa consideram o supra-sumo da bondade, porque é obediente e educada, mas na escola toda a gente a detesta por ser lntrlguista e quezilenta. Por certo que para os seus superiores o oficial nazi que gaseava os judeus de Auschwitz era bom e «como deve ser», mas os judeus deviam ter sobre ele uma opinião algo diferente. Às vezes chamar «bom» a alguém não quer dizer nada de bom: a tal ponto que costuma dizer-se coisas como esta - «O Fulano, coitado, é muito bom». O poeta espanhol Antonio Machado estava consciente desta ambiguidade e na sua autobiografia


poética escreveu: «Sou bom no bom sentido da palavra ... » Sabia que, com frequência, o facto de se chamar a um indivíduo «bom» se refere apenas à sua docilidade, à sua tendência para não contrariar os outros e para não causar problemas, para ser ele sempre a virar os discos enquanto os outros dançam, e assim por diante. Para alguns ser bom significará ser resignado e paciente, mas outros chamarão boa à pessoa empreendedora, original, que não se encolhe quando chega a hora de dizer o que pensa ainda que isso possa ferir I

47 alguém. Em países como a África do Sul, por exemplo, alguns considerarão bom o negro que não causa problemas e se conforma com o apartheid, ao passo que outros só chamarão bons aos apaniguados de Nelson Mandela. E sabes porque é que não é simples dizer quando é que um ser humano é «bom» e quando é que não o é? Porque não sabemos para que servem os seres humanos. Um futebolista serve para jogar futebol de uma maneira que ajude a sua equipa a ganhar e meta golos ao adversário; uma moto serve para nos deslocarmos com velocidade, estabilidade, resistência... Sabemos quando é que um especialista nalguma coisa ou um instrumento funcionam como deve ser porque temos uma ideia do serviço que eles devem prestar, uma ideia do que se espera deles. Mas, se considerartnos o ser humano em geral, a coisa complica-se: dos seres humanos exige-se umas vezes resignação e outras vezes rebeldia, umas vezes iniciativa e outras vezes obediência, umas vezes generosidade e outras vezes previsão do futuro, etc. Não é fácil determinar sequer uma qualquer virtude: o facto de um futebolista meter um golo na baliza contrária sem cometer falta é sempre uma coisa boa, mas dizer a verdade poderá não o ser. Chamarias «bom» ao que por crueldade diz ao moribundo que vai morrer ou ao que denuncia ao assassino o lugar onde se esconde a vítima que ele pretende matar? As profissões e os instrumentos correspondem a certas non-nas de utilidade bastante claras, estabelecidos de fora: se forem cumpridas, está bem; se não o forem, mal - e é tudo. Não se lhes pede mais. Ninguém exige a um futebolista - para ser bom futebolista, não para ser um bom ser humano - que seja caridoso ou verdadeiro; ninguém pede a uma moto que, para ser boa moto, sirva para martelar pregos. Mas, quando consideramos os seres humanos em termos gerais, as coisas deixam de ser tão claras, porque não há nenhum regulamento que fixe o que é um bom ser humano, nem o homem é instrumento para se conseguir seja o que for. Pode ser-se bom (e boa, claro) de muitas maneiras, e as opiniões que julgam os comportamentos costumam variar segundo as circunstâncias. Por isso dizemos às vezes que Fulano ou Beltrana são bons «à sua maneira». Admitimos assim que há muitos modos de o ser e que a questão depende do âmbito em que se mova cada um de nós. Portanto, estás já a ver que de,fora não é fácil determinar quem é bom e quem é mau, quem faz o conveniente e quem não faz. Seria preciso estudar não só todas as circunstâncias de cada caso mas também as intenções que movem cada pessoa. Porque@poderia acontecer que alguém tivesse


pretendido fazer alguma coisa má e o resultado, por ricochete, tivesse acabado por sair aparentemente bom. E não vamos chamar «bom» a quem faz o que é bom só por sorte, pois não? O contrário também é possível: com a maior boa vontade deste mundo uma pessoa poderia provocar um desastre e ser considerada um monstro, embora sem ter sombra de culpa. Lamento, mas parece-me que por este caminho pouco mais que se veja conseguiremos. Mas, se já dissemos que nem ordens, nem costumes, nem caprichos bastam para nos guiar no caso da ética e agora concluímos que não existe um regulamento claro que ensine o homem a ser bom e a funcionar sempre como tal, como nos vamos arranjar? Vou responder-te de uma maneira que certamente te surpreenderá e talvez até te escandalize. Um divertidíssimo escritor francês do século xvl, François Rabelais, contou num dos primeiros romances europeus as aventuras do gigante Gargântua e do seu filho Pantagruel. Poderia dizer-te muitas coisas a propósito desse livro, mas prefiro que mais cedo ou mais tarde te decidas a lê-lo por tua conta. Dir-te-ei apenas que em certa ocasião Gargântua decide fundar uma ordem mais ou menos religiosa e instalá-la numa abadia, a abadia de Thélème, por cima de cuja entrada se encontra escrito este único preceito: «Faz o que quiseres.» E todos os habitantes da santa casa não fazem justamente mais do que isso, apenas o que querem. Que te parecerá agora se eu te disser que à porta da ética, entendida como deve ser, está gravada apenas essa mesma instrução: faz o que quiseres? No melhor dos casos, ficarás indignado comigo: ora, é muito moral a linda conclusão a que chegámos! Que não seria se toda a gente fizesse nem mais nem menos só o que quisesse? Foi para isso que perdemos tanto tempo e esprememos tanto os miolos? Espera, espera, não te zangues. Dá-me uma nova oportunidade: faz-me o favor de passares ao capftulo seguinte...

Para ires lendo... «Os congregados de Thélème empregavam a sua vida não a ater-se a leis, regras ou estatutos, mas a cumprir a sua vontade e livre arbítrio. Levantavam-se da cama quando bem lhes parecia, e bebiam, comiam, trabalhavam e dormiam quando sentiam desejo de o fazer. Ninguém os despertava ou os forçava nem a beber, nem a comer, nem a nada.

49 Assim o dispusera Gargântua.

A única regra da ordem era esta:

Faz o que quiseres E era assisada, porque as pessoas livres, bem-nascidas e bem-educadas, quando tratam com gente honrada, sentem por natureza o instinto e o impulso de fugirem do vício e de se aterem à virtude. E é a isso que chamam honra. Mas quando as mesmas pessoas se vêem refreados e coagidas, tendem a revoltar-se e a quebrar o jugo que as esmaga. Pois todos tendemos sempre a buscar o proibido e a cobiçar o que nos foi negado» (François Rabelais, Gargântua e Pantagruel).


«A ética humanista, em contraste com a ética autoritária, distingue-se por um critério formal e outro material. ForTnalmente, baseia-se no princípio segundo o qual só o homem por si próprio pode determinar o critério relativo à virtude e ao pecado, e não qualquer autoridade que o transcenda. Materialmente, baseia-se no princípio segundo o qual o "bem" é aquilo que é bom para o homem e o "mal" aquilo que lhe é nocivo, sendo o bem-estar do homem o único critério de valor ético» (Erich Fromm, Ética e Psicanálise). «Mas, embora a razão baste, quando está plenamente desenvolvida e aperfeiçoada, para nos instruir sobre as tendências nocivas ou úteis das qualidades e das acções, não basta, por si própria, para produzir a censura ou a aprovação moral. A utilidade não é mais do que uma tendência orientada para um certo fim; se o fim nos fosse totalmente indiferente, sentiríamos a mesma indiferença pelos meios. Um sentimento deve necessariamente manifestar-se aqui, para nos fazer preferir as tendências úteis às tendências que trazem dano. Esse sentimento não pode ser senão uma simpatia pela felicidade dos homens ou um eco da sua desgraça, pois que tais são os diferentes fins que a virtude e o vício tendem a promover. Assim, pois, a razão nos aclara acerca das diversas tendências das acções e a humanidade faz uma distinção em favor das tendências úteis e benéficas» (David Hume, Investigação sobre os Prí'nci'pi'os da Moral). as, so a . S,

CAPÍTULO QUARTO TEM UMA VIDA BOA

r io vo alo

Que quero eu dizer-te ao por um «faz o que quiseres» como lema fundamental desta ética em direcção à qual vamos tentando avançar? Pois bem, simplesmente (embora em breve venhamos a descobrir, receio-o bem, que as coisas não são assim tão simples) que tens de pôr de lado ordens e costumes, prêmios e castigos, numa palavra, tudo o que visa dirigir-te de fora, e que deves levantar todas estas questões a partir de ti próprio, do Foro interior da tua vontade. Não perguntes a ninguém aquilo que deves fazer com a tua vida: pergunta-to a ti próprio. Se desejas saber em que podes


empregar pelo melhor a tua liberdade, não a percas pondo-te logo desde o início ao serviço de outro ou de outros, por bons, sábios e respeitáveis que eles sejam: interroga sobre o uso da tua liberdade... a própria liberdade. É claro, como és um rapaz esperto, pode ser que te estejas já a dar conta de que há aqui uma certa contradição. Quando te digo «faz o que quiseres» parece que de qualquer maneira te estou a dar uma ordem «faz isso e não outra coisa» -, ainda que se trate de uma ordem que te manda agir livremente. Que ordem mais complicada, quando a examinamos de perto! Se a cumpres, desobedeces-lhe (porque não fazes o que queres, mas o que eu quero e te mando fazer); se lhe desobedeces, estás a cumpri-Ia (porque fazes o que tu queres em vez daquilo que te mando fazer... mas é isso mesmo afinal que eu te estou a dizer que faças!). Podes crer-me, não tenciono impor-te um quebra-cabeças como esses que vêm na rubrica de passatempos dos jomais. E embora tente dizer-te tudo isto sorrindo, para que não nos aborreçamos mais do que a conta, o assunto é sério: não se trata de passar o tempo, mas de o viver bem. A aparente contradição que encerra o «faz o que quiseres» não é mais do que um reflexo do problemá essencial da w 53 própria liberdade: a saber, que nao somos livres de não ser livres, que não temos outro remédio senão sê-lo. E se me disseres que está bem, que estás farto e que não queres continuar a ser livre? E se decidires entregar-te como um escravo ao melhor licitador ou jurares obedecer em tudo e para sempre a este ou àquele tirano? Pois bem, fá-lo-ás porque queres, no uso da tua liberdade e embora obedeças a outro ou te deixes levar pela massa continuarás a agir como preferes: não renunciarás a escolher, mas terás escolhido não escolher por ti próprio. Por isso um filósofo francês do nosso século, Jean-Paul Sartre, disse que «estamos condenados à liberdade». Perante esta condenação, não há indulto que nos valha... De maneira que o meu «faz o que quiseres» não é senão uma forma de te dizer que leves a sério o problema da tua liberdade, pois que ninguém te pode dispensar da responsabilidade criadora de escolheres o teu próprio caminho. Não te perguntes com excessiva aflição se «vale a pena» toda esta agitação da liberdade, porque quer queiras quer não és livre, quer queiras quer não tens de querer. Mesmo que digas que não queres saber para nada de assuntos tão maçadores e que eu te deixe em paz, também estarás a querer... a querer não saber disto para nada, a querer que te deixem em paz ainda que à custa de te iludires um pouco ou mesmo completamente. São as coisas do querer, meu amigo, como diz a cantiga! Mas não confundamos este «faz o que quiseres» com os caprichos de que antes falámos. Uma coisa é fazeres «o que quiseres» e outra muito diferente fazeres «a primeira coisa que te apeteça». Não digo que em certas ocasiões não possa ser suficiente dar-nos pura e simplesmente na gana fazer alguma coisa: quando escolhes um prato no restaurante, por exemplo. Já que felizmente tens bom estômago e não te preocupa engordares, pois bem, pede o que bem te apetecer.. Mas cuidado, que às vezes com tais «apetites» não se ganha - perde-se. O exemplo segue dentro de momentos.


Não sei se tens lido muito a Bíblia. Está cheia de coisas interessantes e não é preciso ser-se muito religioso - bem sabes que o sou muito pouco - para as apreciar. No primeiro dos livros da Bíblia, o Génesis, conta-se a história de Esaú e Jacob, filhos de lsaac. Eram irmãos gêmeos, mas Esaú fora o primeiro a sair do ventre da mãe, o que lhe concedia o direito de primogenitura: ser primogénito naqueles tempos não era coisa de somenos importância, porque significava a sorte de se herdarem todas as posses e privilégios do pai. Esaú gostava de ir à caça e de andar em busca de aventuras, enquanto Jacob preferia ficar em casa, confeccionando de quando em vez algumas delícias culinárias. Um dia, Esaú voltou do campo cansado e faminto. Jacob preparara um suculento guisado de lentilhas, e o irmão, só de sentir o aroma do cozinhado, ficou cheio de água na boca. Apeteceu-lhe intensamente comer aquele prato e pediu a Jacob que o convidasse. O irmão cozinheiro disse-lhe que o faria com muito gosto, mas não grátis, mas, antes, em troca do direito de primogenitura. Esaú pensou: «Agora o que me apetece são as lentilhas. A herança do meu pai é para daqui a muito tempo. Quem sabe? Talvez eu morra até antes dele!» E acedeu a trocar os seus futuros direitos de primogénito pelas saborosas lentilhas do presente. Deviam ter um cheiro esplêndido aquelas lentilhas! Não é preciso dizer-te que mais tarde, com a pança já cheia, Esaú se arrependeu do mau negócio que tinha feito, o que provocou bastantes problemas entre os dois irmãos (deixa-me confessar-te com o devido respeito que sempre tive a impressão de que Jacob era um pássaro de alto lá com ele). Mas se queres saber como acaba a história, podes ler o Génesis. Para o que aqui nos interessa exemplificar, basta o que te contei. Como te vejo um tanto revoltado, não me admirava que tentasses virar esta história contra o que te tenho vindo a dizer: «Não me estavas a recomendar esse "faz o que quiseres" tão bonito? Pois aí tens: Esaú queria as lentilhas, esforçou-se por consegui-Ias e no fim ficou sem a herança. Belo resultado!» Sim, claro, mas... seriam as lentilhas o que Esaú queria deveras, ou não passavam do que lhe apetecia naquele momento? Afinal de contas, ser o primogénito era então uma coisa muito vantajosa, enquanto as lentilhas, bem vês: se quiseres comes, se quiseres deixas de parte... E lógico pensar que aquilo que Esaú, no fundo, queria era a primogenitura, um direito que prometia tornar-lhe a vida muito melhor dentro de um prazo mais ou menos curto. Evidentemente, também lhe apetecia comer o guisado, mas, se se tivesse dado ao trabalho de pensar um bocadinho, ter-se-la dado conta de que esse segundo desejo poderia esperar um pouco, sem que ele tivesse de comprometer as suas possibilidades de conseguir o fundamental. Nós, seres humanos, queremos às vezes coisas contraditórias, que entram em conflito umas com as outras. É importante sermos capazes de estabelecer prioridades e de impor uma certa hierarquia entre

@ 55 o que me apetece no imediato e aquilo que, no fundo, a longo prazo, quero. Quem o não perceber à primeira, pode perguntar a Esaú... Nesta história da Bíblia há um pormenor importante. O que determina Esaú a escolher o guisado presente e a renunciar à herança futura é a sombra


da morte ou, se preferes, o desânimo produzido pela brevidade da vida. «Como sei que vou morrer seja como for e talvez antes do meu pai... para que me incomodarei a dar voltas e mais voltas para descobrir o que me convém? Agora quero as lentilhas e amanhã estarei morto, de modo que venham as lentilhas e acabou-se!» É como se a certeza da morte levasse Esaú a pensar que a vida já não vale a pena, que tudo vem a dar no mesmo. Mas o que faz com que tudo venha a dar no mesmo não é a vida, mas a morte. Repara: por medo da morte, Esaú decide viver como se já estivesse morto e tudo fosse a mesma coisa. A vida é feita de tempo, o nosso presente está cheio de recordações e esperanças, mas Esaú vive como se para ele já não houvesse outra realidade a não ser o aroma das lentilhas que lhe chega agora mesmo ao nariz, sem ontem nem amanhã. Mais ainda: a nossa vida é feita de relações com os outros - somos pais, filhos, irmãos, amigos ou inimigos, herdeiros ou herdados, etc. -, mas Esaú decide que as lentilhas (que são uma coisa, não uma pessoa) contam mais para ele do que esses vínculos com os outros que o fazem ser quem é. E então surge uma pergunta: realiza Esaú realmente o que quer ou será a morte que o tem como que hipnotizado, paralisado, mutilando o seu querer? Deixemos Esaú com os seus caprichos culinários e as suas embrulhadas familiares. Voltemos ao teu caso, que é o que aqui nos interessa. Se te dizem que faças o que quiseres, a primeira coisa que parece aconselhável é que penses com tempo e a fundo o que é aquilo que queres. Apetecem-te com certeza muitas coisas, amiúde contraditórias, como acontece com toda a gente: queres ter uma moto mas não queres partir a cabeça no asfalto, queres ter amigos mas sem perderes a tua independência, queres ter dinheiro mas não queres sujeitar-te ao próximo para o conseguires, queres saber coisas, e por isso compreendes que é preciso estudar, mas também queres divertir-te, queres que eu não te chateie e te deixe viver à tua maneira, mas também que esteja presente para te ajudar quando necessitas disso, etc. Numa palavra, se tivesses que resumir tudo isto e pôr sinceramente em palavras o teu desejo global e mais profundo, dir-me-las: «Olha, pai, o que eu quero é ter uma vida boa.» Bravo! O prêmio para este senhor! Era isso O, mesmo o meu conselho: quando te disse «faz o que quiseres», o que,

I... no fundo, pretendia recomendar-te é que tivesses o atrevimento de rteres uma vida boa. E não ligues aos tristes nem aos beatos, com

licença e perdão deles: a ética é apenas o propósito racional de averiguar como viveremos melhor. Se nos vale a pena interessanno-nos pela ética, é porque nos agrada uma vida boa. Só quem nasceu para escravo ou quem tem tanto medo da morte que acha tudo a mesma coisa se entrega às lentilhas e vive de qualquer maneira... Queres ter uma vida boa: magnífico. Mas também queres que essa vida boa não seja a vida boa de uma couve-flor ou de um escaravelho, com todo o respeito que tenho por ambas as espécies, mas uma vida humana boa. É o que te interessa, creio eu. E tenho a certeza de que não renunciarias a isso por nada deste mundo. Ser-se humano, já o vimos antes, consiste


principalmente em ter relações com outros seres humanos. Se pudesses ter muito, muito dinheiro, uma casa mais sumptuosa do que um palácio das mil e uma noites, as melhores roupas, os alimentos mais requintados (montes e montes de lentilhas!), as aparelhagens mais perfeitas, etc., mas tudo isso à custa de não voltares a ver nem a ser visto - nunca - por um outro ser humano, ficarias satisfeito? Quanto tempo poderias viver assim sem te tomares louco? Não será a maior das loucuras querennos as coisas à custa da relação com as pessoas? Mas se justamente a graça de todas as coisas de que falámos assenta no facto de te permitirem - ou parecerem permitir relacionares-te mais favoravelmente com os outros! Por meio do dinheiro, esperamos poder deslumbrar ou comprar os outros; as roupas são para lhes agradar ou para que eles nos invejem; e o mesmo se passa com a bela casa, os melhores vinhos, etc. Para já não falarmos nas aparelhagens: o vídeo e a televisão servem para os vermos melhor, O «compacto» para os ouvirmos melhor, e assim sucessivamente. Muito poucas coisas conservam a sua graça na solidão; e se a solidão for completa e definitiva, todas as coisas se volvem irremediavelmente amargas. A vida humana boa é vida boa entre seres humanos ou, caso contrário, pode ser que seja ainda vida, mas não será nem boa nem humana. Começas a ver onde quero chegar? As coisas podem ser bonitas e úteis, os animais (pelo menos alguns) parecem simpáticos, mas os homens o que querem - o que queremos - é ser humanos, não instrumentos nem bichos. E queremos também ser tratados como seres humanos, porque a humanidade

57 é algo que depende em boa medida do que fazemos uns com os outros. Explico-me melhor: o pêssego nasce pêssego, o leopardo chega ao mundo já como leopardo, mas o homem de maneira nenhuma nasce já homem e nunca chegará a sê-lo se os outros nisso o não ajudarem. Porquê? Porque o homem não é somente uma realidade biológica, natural (como os pêssegos ou os leopardos), mas também uma realidade cultural. Não há humanidade sem aprendizagem cultural e, para começar, sem aquilo que é a base de toda a cultura (e fundamento, por conseguinte, da nossa humanidade): a linguagem. O mundo em que vivemos, seres humanos que somos, é um mundo linguística, uma realidade de símbolos e leis sem a qual não só seríamos incapazes de comunicar entre nós mas também de aprender a significação do que nos rodeia. Mas ninguém pode aprender a falar sozinho (como se poderia aprender a comer sozinho ou a mijar - com tua licença sozinho?), porque a linguagem não é uma função natural e biológica do homem (embora tenha a sua base na nossa condição biológica, claro) mas uma criação cultural que herdamos e aprendemos de outros homens. Por isso falar com alguém, escutar alguém, é tratar esse alguém como uma pessoa, ou pelo menos começar a dar-lhe um tratamento humano. Trata-se somente de um primeiro passo, sem dúvida, uma vez que a cultura no interior da qual nos humanizamos uns aos outros parte da linguagem, mas não é simplesmente linguagem. Há outras formas de demonstrar que nos reconhecemos como seres humanos, ou seja, estilos de respeito e gestos de circunspecção humanizadores que temos uns para com os outros. Todos queremos ser assim tratados e, caso contrário, protestamos. Por isso as raparigas se queixam de ser tratadas como mulheres «objecto», quer dizer,


como simples enfeites ou instrumentos; e por isso, quando insultamos outra pessoa, chamamos-lhe «animal!», como se a preveníssemos de que ela está a quebrar o modo de tratar que deve existir entre seres humanos, pelo que se insistir lhe poderemos pagar na mesma moeda. O mais importante em tudo isto parece-me ser o seguinte: a humanização (ou seja, o que nos converte em seres humanos, naquilo que queremos ser) é um processo recíproco (como a própria linguagem, já reparaste?). Para que os demais possam fazer-me humano, tenho de os fazer humanos a eles; se para mim todos os outros forem como coisas ou como animais, também eu não serei melhor do que uma coisa ou um animal. Por isso torn@irI mos a vida boa para nós não pode, afinal de contas, diferir muito de tornarmos boa a vida. Pensa nisto um bocadinho, se não te importas. Adiante voltaremos a este problema. Agora, para concluir o capítulo de uma maneira mais descontraída, proponho-te uma ida ao cinema. Se quiseres, vamos ver um belíssimo filme realizado e interpretado por Orson Welles: O Mundo a Seus Pés (Citizen Kane). Resumo-te a história: Kane é um multimilionário que, com muito poucos escrúpulos, reuniu no seu palácio de Xanadu uma enorine colecção de todas as coisas belas e caras do mundo. Tem tudo, sem sombra de dúvida, e utiliza todos os que o rodeiam para obter os seus fins, como se os outros fossem simples instrumentos da sua ambição. No fim da vida, passeia sozinho pelos salões da sua mansão, cheia de espelhos que lhe devolvem mil vezes a sua própria imagem de solitário: só essa sua imagem lhe faz companhia. Acaba por morrer, murmurando uma palavra: «Rosebud!» Há um jornalista que tenta adivinhar o significado deste último gemido, mas sem o conseguir. Na realidade, «Rosebud» era o nome escrito num trenó com que Kane brincava em menino, num tempo em que ainda vivia rodeado de afecto e devolvendo afecto àqueles que o rodeavam. Todas as suas riquezas e todo o poder acumulado sobre os outros não haviam podido valer-lhe nada que fosse melhor do que essa recordação de infância. O trenó, símbolo das relações humanas cheias de doçura de outrora, era na verdade o que Kane queria, a vida boa que sacrificara para conseguir milhões de coisas, que na realidade não lhe serviam para nada. E, contudo, a maioria invejava-o... Anda, vamos ao cinema: amanhã continuamos.

Para ires lendo... «E cozinhou Jacob um guisado; e voltando Esaú do campo, cansado, disse a Jacob: Peço-te que me dês de comer desse guisado, pois venho muito cansado. E Jacob respondeu: Vende-me hoje a tua primogenitura. Então disse Esaú: Aqui estou, eu que vou morrer; de que me servirá, pois, a primogenitura? E disse Jacob: Jura-mo hoje mesmo. E ele jurou, e vendeu a Jacob a sua primogenitura. Então Jacob deu a Esaú pão e guisado de lentilhas; e ele comeu e bebeu, levantou-se e foi-se. Assim desprezou Esaú a sua primogenitura» (Génesis, XXV, 27 a 34).


@ 59 «Talvez o homem seja mau porque, durante toda a vida, está à espera de morrer: e assim morre mil vezes na morte dos outros e das coisas. Pois todo o animal consciente de estar em perigo de morte enlouquece. Louco aterrorizado, louco astucioso, louco eelerado, louco em fuga, louco servil, louco furioso, louco de ódio, louco de confusão, louco assassino» (Tony Duvert, Dicionário Malévolo).

,<Um homem livre em nada pensa menos que na morte, e a sua sabedoria não é uma meditação da morte, mas da vida» (Espinosa, Ética).

«Homem livre é aquele que quer sem a arrogância da arbitrariedade. Crê na realidade, quer dizer, no elo real que une a dualidade real do Eu e do Tu. Crê no Destino e crê que o Destino precisa dele... Porque aquilo que deve acontecer não acontecerá se ele não estiver decidido a querer o que é capaz de querer» (Martin Buber, Eu e Tu). «Sermos capazes de prestar atenção a nós próprios é uma exigência prévia da capacidade de prestarmos atenção aos restantes; sentirmo-nos à vontade connosco próprios é condição necessária para nos relacionarmos com os outros» (Erich Fromm, Ética e Psicanálise).

CAPÍTULO QUINTO ACORDA, BABY!

Breve resumo dos episódios anteriores. O caçador Esaú, na convicção de que para os dois dias que cada um de nós tem para viver tudo vem a dar no mesmo, segue o conselho da barriga e renuncia ao direito de primogenitura por um bom prato de lentilhas (Jacob pelo menos nisso foi generoso, e deixou-o repetir duas vezes). O cidadão Kane, pelo seu lado, dedicou-se durante muitos anos a vender todas as pessoas para poder comprar todas as coisas; no fim da vida reconhece que, se lhe fosse possível, trocaria o seu armazém cheio de coisas caríssimas por uma única coisa humilde - um velho trenó - mas que lhe lembrava certa pessoa: ele próprio, antes de se dedicar aos negócios de compra e venda, quando preferia amar e ser amado a possuir ou dominar. Tanto Esaú como Kane estavam convencidos de que faziam o que queriam, mas nenhum deles parece ter conseguido obter para si próprio uma vida boa. E, todavia, se se lhes tivesse perguntado o que era que deveras desejavam, teriam respondido o mesmo que tu (ou que eu, claro está): «Quero ter uma vida boa.» Conclusão: toma-se bastante evidente aquilo que queremos (ter uma vida boa), mas não é já tão óbvio em que consiste isso da «vida boa». Porque querermos uma vida boa não é um querer qualquer, como quando alguém quer lentilhas, quadros, electrodomésticos ou dinheiro. Todos esses quereres são por assim dizer simples, atendem apenas a um aspecto da realidade: não têm uma perspectiva de conjunto. Não há nada de mal em


querermos lentilhas quando temos fome, com certeza: mas no mundo há outras coisas, outras relações, fidelidades devidas ao passado e esperanças suscitadas pelo porvir, não sei, muito mais ainda, tudo aquilo de que te queiras lembrar. Numa palavra, nem só de lentilhas vive o homem.

63 Para conseguir as suas lentilhas, Esaú sacrificou demasiados aspectos importantes da sua vida, simplificou-a mais do que o devido. Agiu, como já te disse, sob o peso da in-iinência da morte. A morte é uma grande simplificadora: quando estás prestes a esticar o pernil muito poucas coisas importam (o remédio que pode salvar-te, o ar que ainda consente em encher-te os pulmões uma vez mais ... ). A vida, em compensação, é sempre complexidade e quase sempre complicações. Se recusares todas as complicações e procurares a grande simplicidade (venham as lentilhas!), não julgues que queres viver mais e melhor, mas antes morrer de vez. E já dissemos que aquilo que realmente desejamos é a vida boa, não a morte rápida. De modo que Esaú não nos poderá servir de mestre. Também Kane simplificava à sua maneira a questão. Ao contrário de Esaú, não era perdulário, mas entesourador e ambicioso. O que queria era poder manejar os homens e dinheiro para comprar coisas, muitas coisas bonitas e, com certeza, úteis. Nada tenho, vê bem, contra que se tente arranjar dinheiro nem contra o apego a coisas belas ou úteis. Não me fio nas pessoas que dizem que não se interessam pelo dinheiro e que garantem não precisar de coisa nenhuma. Talvez o barro de que sou feito tenha sido muito mal cozido, mas não acho a mínima graça a estar sem cheta e se amanhã os ladrões me roubassem a casa e levassem os meus livros (julgo que pouco mais poderiam levar) para mim seria como apanhar um tiro. Contudo, o desejo de ter mais e mais (dinheiro, coisas ... ) também não me parece inteiramente saudável. A verdade é que as coisas que temos nos têm, também elas, a nós, pelo seu lado: o que possuímos - possui-nos. Eu explico. Um dia, um sábio budista dizia ao seu discípulo isto mesmo que eu te estou a dizer e o discípulo olhava para ele com uma expressão estranha na cara («este velho está chalado»), como aquela que talvez ponhas ao ler esta página. Então, o sábio perguntou ao discípulo: «O que é que te agrada mais nestes aposentos?» O aluno atrevido apontou para uma esplêndida taça de ouro e marfim que devia valer uma pipa de massa. «Bem, toma-a», disse o sábio, e o rapaz, sem esperar que lho dissessem duas vezes, agarrou firmemente a jóia com a mão direita. «Não te dê para largá-la, hein?», observou o mestre com certa ironia; e depois acrescentou: «E não há nenhuma outra coisa que te agrade também'?» O discípulo reconheceu que a bolsa cheia de moedas que estava em cima da mesa também não lhe repugnava. «Pois então, anda, fica aspectos o. Agiu, e é uma I muito e ainda em comções. Se licidade melhor, almente saú não

contrário O que coisas, m, contra belas ou sam pelo z o barro a mínima a casa e var) para s e mais saudável. nós, pelo dia, um u a dizer na cara


ler esta te agrada esplêndia. «Bem, sem duas dê para is acresambém?» stava em da, fica

com ela!», incitou o outro. E o rapaz agarrou fervorosamente a bolsa com a mão esquerda. «E agora, que mais?», perguntou o discípulo ao mestre com certo nervosismo. O sábio retorquiu: «Agora, coça-te!» Não havia maneira, claro está. E olha que uma pessoa pode precisar a valer de coçar-se quando lhe arde alguma parte do corpo... ou da alma! Com as mãos ocupadas, não podemos coçar-nos à vontade, nem fazer muitos outros gestos. Aquilo a que estamos muito agarrados agarra-nos também, a seu modo... ou seja, mais vale termos cuidado e não nos deixarmos apanhar. De certa maneira, deixar-se apanhar foi o que aconteceu a Kane: tinha as mãos e a alma tão ocupadas com as suas posses que começou a sentir uma estranha comichão e não soube com que poderia coçar-se. A vida é mais complicada do que Kane supunha, porque as mãos não servem apenas para agarrar, mas também para coçar ou para acariciar. Mas o equívoco fundamental da personagem, se é Kane que se engana e não eu, foi outro. Obcecado por obter coisas e dinheiro, Kane tratou as pessoas como se também elas fossem coisas. Considerava que era nisso que consistia ter poder sobre os outros. Grave simplificação: a maior complexidade da vida é precisamente essa: as pessoas não são coisas. De começo, ao nosso herói não se lhe depararam dificuldades: as coisas compram-se e vendem-se, e Kane comprou e vendeu também pessoas. De momento, a diferença entre umas e outras não se lhe afigurava lá muito grande. As coisas usam-se enquanto servem e a seguir deitam-se fora: Kane fez o mesmo com os que o rodeavam e dir-se-ia que tudo lhe ia correndo bem. Tal como possuía as coisas, Kane propôs-se possuir pessoas, dominá-las, manejá-las a seu gosto. Portou-se desse modo com as suas amantes, com os seus amigos, com os seus empregados, com os seus rivais políticos, com todos os seres vivos. Com isso lesou profundamente os demais, mas o pior do seu ponto de vista (o ponto de vista de alguém que supomos que quisesse conseguir uma «vida boa», como sabes) é que desagradou seriamente a si próprio. Trata-se de um aspecto que tentarei tornar-te claro, pois me parece da maior importância. Não te iludas: de uma coisa - ainda que seja a melhor coisa do mundo só podem tirar-se... coisas. Ninguém é capaz de dar o que não tem, não é assim?, e nada, por maioria de razão, pode dar mais do que é. As lentilhas são úteis para matar a fome mas não ajudam a

65 aprender francês, por exemplo; o dinheiro, por seu turno, serve par quase tudo e no entanto não pode comprar uma verdadeira amizade (à força de massa conseguem-se o servilismo, a companhia de parasitas ou o sexo mercenário, mas nada mais). Bem vês, um vídeo pode emprestar a outro vídeo uma peça, mas não pode dar-lhe um beijo... Se nós, seres humanos, fôssemos simples coisas, bastar-nos-ia aquilo que as coisas nos podem dar. Mas aí está a


tal complicação de que eu te falava: como não somos puras coisas, temos necessidade de «coisas» que as coisas não têm. Quando tratamos os outros como coisas, como fazia Kane, o que deles recebemos são também coisas: se os explorarmos largam dinheiro, servem-nos (como se fossem instrumentos mecânicos), saem, entram, esfregam-se contra nós ou sorriem quando apertamos o devido botão... Mas nunca nos darão, assim, esses dons mais subtis que só as pessoas podem dar. Não conseguiremos nem amizade, nem respeito, nem, muito menos, amor. Coisa nenhuma (e nenhum animal sequer, porque a diferença entre a sua condição e a nossa é demasiado grande) pode oferecer-nos essa amizade, respeito, amor... em resumo, essa cumplicidade fundamental que só se dá entre iguais, e que a ti ou a mim ou a Kane, que somos pessoas, só outras pessoas, que tratemos como tais, nos podem proporcionar. Este modo de tratar é um aspecto importante, porque, como já vimos, nós, seres humanos, humanizamo-nos uns aos outros. Ao tratar as pessoas como pessoas e não como coisas (quer dizer, ao levar em conta aquilo que querem ou de que têm necessidade e não só o que eu posso tirar delas) estou a tornar possível que me devolvam o que só uma pessoa pode dar a outra. Kane esqueceu-se deste aspecto e, depois (mas era já muito tarde), deu-se conta de que tinha tudo excepto o que nada a não ser outra pessoa pode oferecer: afecto sincero ou ternura espontânea ou simples companhia inteligente. Como a Kane nunca houve nada que parecesse importante excepto o dinheiro, nada de Kane, excepto o seu dinheiro, interessava fosse a quem fosse. E o grande homem sabia, além disso, que a culpa fora sua. Às vezes podemos tratar os restantes como pessoas e só receber em troca coices, traições ou abusos. Sem dúvida. Mas, nesse caso, continuamos pelo menos a contar com o respeito de uma pessoa, mesmo que seja só uma: nós próprios. Não convertendo os outros em coisas, defendemos pelo menos o nosso direito a não sermos coisas para os outros. Visamos

66 que o mundo das pessoas - esse mundo em que as pessoas tratam as outras como pessoas e que é o único onde de facto se pode viver bem - seja possível. Suponho que o desespero de Kane no fim da vida não resultava simplesmente de ter perdido o suave conjunto de relações humanas que tivera na infância, mas de se ter empenhado em perdê-las e de ter consagrado toda a sua vida a estropiá-las. Não era

só já não ter o que desejava, era também que nem sequer o merecia... Mas, poderás tu dizer-me, com certeza que havia muitíssima gente a invejar o multimilionário Kane. Claro, muitos pensavam: «Ele sim, sabe viver!» Bom, e então? Acorda de vez, criatura! Os outros, de fora, podem invejar uma pessoa e não saber que nesse mesmo momento ela

está a morrer de cancro.

Preferirás a inveja dos outros


à tua própria satisfação? Kane conseguiu tudo o que tinha ouvido dizer que faz uma pessoa feliz: dinheiro, poder, influência, servos... E descobriu por fim que a ele, dissessem o que dissessem, lhe faltava o fundamental:

9

o afecto autêntico, o respeito autêntico e ainda o amor autêntico de I pessoas livres, de pessoas que ele tratasse como pessoas e não como

coisas. Dirás talvez que esse Kane era um tanto estranho, como costumam ser os protagonistas dos filmes. Muita gente se teria sentido satisfeita vivendo em semelhante palácio e com tamanhos luxos: a maioria, afirmar-me-ás em tom cínico, nunca se lembraria do trenó «Rosebud» nem dele quereria saber para nada. Talvez Kane estivesse um bocado apanhado... Vejam bem, sentir-se desgraçado com tantas coisas que tinha! E eu respondo-te que deixes as outras pessoas

s s em paz

e penses apenas em ti próprio. A vida boa, tal como tu a queres, é r é

parecida com a de Kane? Contentas-te com o prato de lentilhas de Esaú? Não respondas depressa de mais. Precisamente a ética o que visa averiguar em que consiste nofundo, para lá do que nos dizem ou do

que vemos nos anúncios da TV, essa feliz vida boa que gostaríamos de alcançar. Neste momento já sabemos que nenhuma vida boa pode prescindir das coisas (fazem-nos falta as lentilhas, e têm muito ferro, ainda por cima), mas menos ainda pode dispensar as pessoas. Devemos manejar as coisas como coisas e tratar as pessoas como pessoas:

a

desse modo as coisas ajudar-nos-ão em muitos aspectos e as pes-

s

soas num aspecto fundamental, que coisa alguma pode suprir, o de

o

sermos humanos. Trata-se de engano meu ou do cidadão Kane? Talvez

s o

sermos humanos não seja importante, pois. queiramo-lo ou não, já I


67 somos sem remédio... Mas podemos ser humanos-coisas ou humanos-humanos, humanos simplesmente preocupados em obter as coisas desta vida - todas as coisas, quanto mais coisas melhor - ou humanos dedicados a desfrutar a humanidade vivida entre pessoas! Por favor, não te saldes; deixa os saldos para os grandes armazéns, que é esse o seu negócio. Concordo que muita gente, à primeira vista, não concederá excessiva importância ao que eu estou a dizer. Mas os que assim procederem são de confiança? Serão os mais espertos ou simplesmente os que prestam menos atenção ao mais importante de todos os assuntos, a sua própria vida? Pode ser-se esperto para os negócios ou para a política e um solene asno para as coisas mais sérias, como é este problema de viver bem ou não viver bem. Kane era espertíssimo no que se referia a dinheiro e manipulação de pessoas, mas acabou por se dar conta de que estava enganado no fundamental. Errou quando mais lhe convinha acertar. Vou repetir-te uma palavra que me parece decisiva neste assunto: atenção. Não me refiro à atenção do sorumbático que, como o mocho, não fala mas observa muito (segundo o velho dito, não te lembras?), mas à disposição para reflectir sobre aquilo que se faz e tentar precisar o melhor possível o sentido dessa «vida boa» que queremos viver. Sem simplificações cómodas mas perigosas, procurando compreender toda a complexidade do problema de como viver (e já sabes que é a viver humanamente que me refiro). Creio que a primeira e indispensável condição ética é a de estarmos decididos a não viver de qualquer maneira: estamos convencidos de que nem tudo vem a dar no mesmo, embora, mais tarde ou mais cedo, tenhamos que morrer. Quando se fala de «moral» pensa-se habitualmente nas ordens e costumes que é hábito respeitar, pelo menos na aparência e muitas vezes sem que se saiba bem porquê. Mas talvez o busflis da questão não esteja em submetermo-nos a um código ou em contrariar o estabelecido (o que é também submetermo-nos a um código, só que às avessas) mas em tentar compreender. Compreender porque é que certos comportamentos nos convêm e outros não, compreender o que é a vida e o que é que pode fazê-la «boa» para nós, seres humanos. Antes do mais, trata-se de não nos contentarmos com ser tidos por bons, com ficar bem frente aos demais, com que nos aprovem... Portanto, será necessário não nos limitarmos a observar à I Sas aor e é es~ eos os, a ste no ndo ce Mo o obre ssa mas bleme

s s de edo, alna z o em ódider omós,

om nos à


maneira do mocho ou com uma amedrontada obediência de autómatos, mas teremos de falar com os outros, apresentar certas razões e ouvir outras. O esforça de tomar a decisão terá de de nós, solitariamente: ninguém pode ser livre por ti. De momento, deixo-te duas questões que ruminarás à vontade. A primeira é esta: porque está nzal o que está mal? E a segunda é ainda melhor: em que consiste tratar as pessoas como pessoas? Se continuares a ter paciência para me ouvir, tentaremos começar a responder a estas perguntas nos dois próximos capítulos.

Para ires lendo... comuns que inclinam os nossos corações à humanidade; se não fôssemos homens, nada deveríamos. O apego é sempre sinal de insuficiência: se cada um de nós não tivesse necessidade alguma dos restantes, nem sequer pensaria em unir-se com eles. Assim é da nossa própria carência que nasce a nossa frágil ventura. Um ser verdadeiramente feliz é um ser solitário: só Deus goza de uma felicidade absoluta; mas quem de entre nós tem ideia do que seja semelhante coisa? Se alguém, sendo um ser imperfeito, pudesse bastar-se a si próprio, de que gozaria, segundo o que nos parece? Estaria só, seria infeliz. Não concebo que quem não tem necessidade de nada possa amar alguma coisa: e não concebo que quem nada ame possa ser feliz» (Jean-Jacques Rousseau, Emílio). «Com efeito, no que respeita àqueles cuja açodada pobreza usurpou o nome de riqueza, têm a sua riqueza como nós dizemos que temos febre, sendo assim que é ela quem nos agarra» (Séneca, Cartas a Lucílio). «Como a razão nada exige que seja contrário à natureza, exige, por conseguinte, que cada qual se ame a si mesmo, busque a sua própria utilidade - o que realmente lhe seja útil -, apeteça tudo aquilo que conduz realmente o homem a uma perfeição maior e, em termos absolutos, que cada qual se esforce quanto estiver na sua mao por conservar o seu ser. E assim, nada mais do que o homem é útil ao homem; quero dizer que nada podem os homens desejar que seja melhor para a conservação do seu ser do que concordarem todos em todas as coisas, de maneira a que as almas de todos fon-nem como que uma só alma, e os seus corpos como que um só corpo, esforçando-se todos à uma, tanto quanto possam, por conservar oseu ser, e buscando

69 todos ao mesmo tempo a utilidade comum, daqui se seguindo que os homens que se guiam pela razão, quer dizer, os homens que buscam a sua utilidade sob a condução da razão, não apetecem para si nada que não desejem para os demais homens, e, por isso, são justos, dignos de confiança e honestos» (Espinosa, Ética).

CAPÍTULO SEXTO


O GRILO DE PINóQUIO ENTRA EM CENA

Sabes qual é a única obrigação que temos nesta vida? Pois é a de não sermos imbecis. A palavra «imbecil» é mais densa do que parece, não duvides. Vem do latim baculus, que significa «bastão»: o imbecil é o que precisa de um bastão ou bengala para andar. Que não se zanguem connosco os coxos nem os velhos, porque a bengala a que nos referimos não é a que muito legitimamente se usa para ajudar a sustentar-se e a andar um corpo enfraquecido por algum acidente ou pela idade. O imbecil pode ser tão ágil quanto se queira e dar saltos como uma gazela olímpica, não é disso que se trata. Se o imbecil coxeia não é dos pés, mas do espírito: é o seu espírito que é enfermiço e manco, embora o seu corpo possa dar cambalhotas de primeira. Há imbecis de diversos modelos, à escolha: a) O que acredita que não quer nada, o que diz que para ele é tudo igual, o que vive num perpétuo bocejo ou numa sesta permanente, mesmo que tenha os olhos abertos e não ressone. b) O que acredita que quer tudo, a primeira coisa que lhe aparece e o contrário do que lhe aparece: ir-se embora e ficar, dançar e estar sentado, mascar dentes de alho e dar beijos sublimes, tudo ao mesmo tempo. c) O que não sabe o que quer nem se dá ao trabalho de o averiguar. Imita os quereres dos seus vizinhos ou contraria-os porque sim, tudo o que faz lhe é ditado pela opinião majoritária daqueles que o rodeiam: é conformista sem reflexão ou revoltado sem causa. d) O que sabe que quer e sabe o que quer e, mais ou menos, sabe porque é que o quer, mas quer pouco, com medo ou sem força. Acaba

73 sempre por fazer, bem vistas as coisas, o que não quer, deixando o que quer para amanhã, pois talvez amanhã esteja mais bem-disposto. e) O que quer com força e ferocidade, em estilo bárbaro, mas se enganou a si próprio acerca do que é a realidade; despista-se em grande e acaba por confundir a vida boa com aquilo que o há-de tornar pó. Todos estes tipos de imbecilidade precisam de bengala, ou seja, precisam de se apoiar em coisas de fora, alheias, que nada têm que ver com a liberdade e a reflexão pessoais. Lamento dizer-te que os imbecis costumam acabar bastante mal, pense o vulgo o que pensar. Quando digo que «acabam mal» não me refiro ao facto de acabarem na prisão ou Culminados por um raio (isso só nos filmes costuma acontecer); limito-me a indicar-te que costumam fartar-se de si próprios e nunca conseguem viver uma vida boa, como essa que nos agrada tanto, a ti e a mim. E ainda lamento mais informar-te de que sintomas de imbecilidade quase todos os temos; bom, eu pelo menos descubro-os na minha pessoa dia sim, dia sim; oxalá que tu consigas melhor do que eu... Conclusão: Alerta! Em guarda! A imbecilidade ronda e não perdoa! Por favor, não confundas a imbecilidade de que te estou a falar com aquilo que amiúde se chama ser «imbecil», quer dizer, ser tonto, saber poucas coisas, não perceber nada de trigonometria ou ser incapaz de aprender o conjuntivo do verbo francês aimer. Uma pessoa pode ser imbecil para as matemáticas (mea


culpa!) e não o ser para a moral, quer dizer, quando se trata da vida boa. E o contrário igualmente: há tipos espertíssimos nos negócios mas que são perfeitos cretinos em questões de ética. O mundo está cheio sem dúvida de prêmios Nobel, entendidíssimos na sua matéria, mas que andam aos tropeções e se agarram à bengala quanto ao problema que aqui nos preocupa. Antes do mais, para se evitar a imbecilidade seja em que campo for é preciso prestar atenção, conforme dissemos no capítulo anterior, e esforçarmo-nos ao máximo por aprender. São requisitos em que a física ou a arqueologia e a ética coincidem. Mas a questão de viver bem não é a mesma que a de saber quantos são dois e dois. Saber quantos são dois e dois é algo precioso, com certeza, mas não é esse saber que poderá livrar o imbecil moral de se espetar a valer. E já agora, que penso nisso... quantos são dois e dois? O contrário de se ser moralmente imbecil é ter-se consciência. Mas a consciência não é uma coisa que nos sala num sorteio ou nos caia do céu. Certamente devemos reconhecer que algumas pessoas têm desde pequenas melhor «ouvido» ético do que outras e um «bom gosto» moral espontâneo, mas este «ouvido» e este «bom gosto» podem afirmar-se e desenvolver-se com a prática (do mesmo modo que o ouvido musical e o bom gosto estético). E se alguém carecer absolutamente de semelhante «ouvido» ou «bom gosto» em questões de bem viver? Pois, meu rapaz, vejo o caso malparado. Podemos apresentar muitas razões estéticas, baseadas na história, na harmonia de formas e cores, no que quiseres, para justificar que um quadro de Velázquez tem maior mérito artístico do que um cromo das tartarugas Ninja. Mas, se, depois de muita conversa, alguém disser que continua a preferir o cromo a s Meninas, não sei como nos arranjaremos para evitar esse erro. Do mesmo modo, se uma pessoa não vê mal nenhum em matar à pancada uma criança para lhe roubar a chupeta, receio que fiquemos roucos antes de conseguir fazê-la mudar de opinião... Bom, admito que para se conseguir ter consciência são necessárias certas qualidades inatas, como para apreciar a música ou saborear a arte. E suponho que também serão favoráveis alguns requisitos sociais e económicas, pois quem tenha sido privado desde o berço daquilo que é humanamente mais necessário dificilmente poderá compreender o que está em jogo na questão da vida boa com a facilidade com que o compreenderão outros com mais sorte. Se ninguém te tratar como ser humano, não é de admirar que te transformes num animal... Mas uma vez concedido este mínimo, creio que o resto depende da atenção e do esforço de cada um de nós. Em que consiste essa consciência, que nos curará da imbecilidade moral? Fundamentalmente nos traços seguintes:

a) Saber que nem tudo vem a dar no mesmo porque queremos realmente viver e, além disso, viver bem, humanamente bem. b) Estarmos dispostos a prestar atenção para vermos se aquilo que fazemos corresponde ou não ao que deveras queremos. c) À base de prática, in-nos desenvolvendo o bom gosto moral, de tal modo que haja certas coisas que nos repugne espontaneamente fazer (por exemplo, termos «nojo» de mentir como temos em geral nojo de mijar na terrina da sopa que vamos comer a seguir .. ).

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d) Renunciarmos a procurar argumentos que dissimulem o facto de sermos livres e portanto razoavelmente responsáveis pelas consequências dos nossos actos. Como verás, não invoco nestes traços distintivos motivo diferente do teu próprio proveito para preferires isto àquilo, a consciência à imbecilidade. Porque é que é mal aquilo a que chamamos «mau»? Porque não nos deixa vivermos a vida boa que queremos viver. Concluir-se-á então que devemos evitar o mal por uma espécie de egoísmo? Nem mais nem menos. De um modo geral, a palavra «egoísmo» tem má fama: chama-se «egoísta» a quem só pensa em si próprio e não se preocupa com os outros, a ponto de os prejudicar tranquilamente se com isso tiver em vista algum benefício. Neste sentido, diríamos que Kane era um «egoísta» ou que o era Calígula, esse imperador romano capaz de cometer qualquer crime para satisfazer o mais simples dos seus caprichos. Estas personagens e outras parecidas costumam ser consideradas egoístas (ou até monstruosamente egoístas) e, de facto, não se distinguem pelo requinte da consciência ética nem pelo empenhamento com que evitam o mal... De acordo, mas serão tão egoístas como pode parecer esses a que chamamos habitualmente egoístas? Quem é o verdadeiro egoísta? Quer dizer: quem pode ser egoísta sem ser imbecil? A resposta parece-me óbvia: aquele que quer a melhor parte para si. E o que é a melhor parte? Claro que é isso a que chamamos a «vida boa». Kane conseguiu uma vida boa? Se dermos crédito a Orson Welles, parece que não. Dedicou-se a tratar as pessoas como se fossem coisas e assim ficou sem os dons humanamente mais apetecíveis da vida, como o afecto sincero dos outros, a sua amizade sem cálculo. E Calígula, nem vale a pena falar dele. Que vida não se infligiu o pobre jovem! Os únicos sentimentos sinceros que conseguiu despertar no seu próximo foram o terror e o ódio. Tem de se ser imbecil, moralmente imbecil, para se supor que mais vale viver rodeado de pânico e de crueldade do que de amor e gratidão! Para concluir, Calígula, o louco, foi morto pelos seus próprios guardas, claro: teria de ser fraco desde a raiz o egoísmo que o levava a querer conseguir uma vida boa à força de patifarias! Se tivesse pensado a sério em si próprio (quer dizer, se tivesse tido consciência) ter-se-ia dado conta de que nós, seres humanos, precisamos para viver bem de qualquer coisa que só os outros seres humanos podem dar-nos se os soubermos conquistar, mas que não lhes podemos roubar pela força ou por meio de ardis. Quando é roubado, essa qualquer coisa (respeito, amizade, amor) perde todo o sabor e a prazo converte-se em veneno. Os «egoístas» do tipo de Kane ou Calígula fazem pensar concorrentes do Um, Dois, Três ou de O Preço Certo, que querem conseguir o prêmio máximo, mas se enganam e pedem uma chave que não vale nada ...

Só deveríamos chamar egoísta consequente àquele que deveras sabe o que lhe convém para bem viver, e se esforça por consegui-lo. O que se entrega a tudo o que lhe causa mal (ódio, caprichos criminosos, lentilhas compradas a preço de lágrimas, etc.) gostaria, no fundo, de ser egoísta, mas não sabe. Pertence à ordem dos imbecis e deveríamos receitar-lhe um pouco de consciência para o levarmos a amar-se melhor a si mesmo. Porque o pobre (ainda que se trate de um pobre milionário ou de um pobre imperador) julga que se ama a si próprio,


mas presta tão pouca atenção ao que de facto lhe convém que acaba por se comportar como se fosse o seu pior inimigo. Reconhece-o um célebre celerado da literatura universal, o Ricardo Ill de Shakespeare, na tragédia que tem o seu nome. Para chegar a ser rei, o conde de Gloucester (que acabará por ser coroado como Ricardo lll) elimina todos os parentes varões que se interpõem entre a sua pessoa e o trono, incluindo algumas crianças. Gloucester nasceu muito perspicaz, mas aleijado, o que foi um sofrimento constante para o seu amor próprio; crê que o poder real compensará de algum modo a sua corcunda e a sua perna coxa, conseguindo assim inspirar o respeito que não consegue afirmar através da sua aparência física. No fundo, Gloucester quer ser amado, sente-se isolado pela sua deformidade e julga que o afecto poderá ser imposto aos demais... pela força, por meio do poder! Fracassa, claro está: consegue o trono, mas não inspira a ninguém carinho, apenas horror e, mais tarde, ódio. E o pior de tudo é que ele próprio, que cometera todos os seus crimes por um desesperado amor próprio, sente agora horror por si mesmo: nao so não ganhou nenhum novo amigo como perdeu o único amor que julgava seguro! É então que profere o diagnóstico assombroso e profético do seu próprio caso clínico: «Lançar-me-ei com negro desespero contra a minha alma e acabarei convertido em inimigo de mim mesmo.»

77 Porque acaba Gloucester transformado em «inimigo de si mesmo»? Acaso não terá obtido o que queria, o trono real? Sim, mas pelo preço de mutilar toda a verdadeira possibilidade de ser amado e respeitado pelos seus companheiros de humanidade. Um trono não concede automaticamente nem amor nem respeito verdadeiros: garante apenas adulação, medo e servilismo. Sobretudo quando é conseguido por meio de patifarias, como no caso de Ricardo 111. Em vez de compensar de algum modo a sua deficiência física, Gloucester deforma-se também por dentro. Não tinha culpa de ser corcunda e coxo, pelo que não havia razão para se envergonhar dessas infelizes qualidades: deveriam ter-se envergonhado, sim, os que se riram dele ou o desprezaram por causa disso. De fora, os outros viam-no disforme, mas por dentro ele poderia ter-se sabido inteligente, generoso e digno de afecto; se se tivesse deveras amado a si próprio, deveria ter tentado exteriorizar no seu comportamento esse interior limpo e recto, o seu eu verdadeiro. Pelo contrário, os crimes convertem-no a seus próprios olhos (quando se olha a si próprio por dentro, tendo-se só a si por única testemunha) num monstro mais repugnante do que qualquer aleijão físico. Porquê? Porque da sua corcunda e do seu coxear morais é ele responsável, ao contrário do que se passava com os aleijões exteriores, azares da Natureza. A coroa manchada de traição e de sangue não o toma mais amável, mas menos: ele sabe-se agora menos digno de um amor que nem ele próprio já se quer dar. Chamaremos «egoísta» a alguém que a si mesmo causa tanto mal? No parágrafo anterior utilizei algumas palavras severas que talvez te não tenham escapado (se te escaparam, foi pena): palavras como «culpa» ou «responsável». Soam a qualquer coisa que habitualmente relacionamos com a consciência, não é verdade? Com o Grilo de Pinóquio e assim por diante. Só me faltou mencionar o mais feio desses nomes: remorso. Sem dúvida, aquilo que amarga a existência a Gloucester e que o não deixa gozar o seu trono nem o seu poder são antes do mais os remorsos da sua consciência. E agora


pergunto-te eu: sabes de onde vêm os remorsos? Nalguns casos, dir-me-ás tu, são reflexos íntimos do medo que sentimos ante o castigo que pode merecer neste mundo ou no outro depois da morte, se é que esse mundo existe - o nosso mau comportamento. Mas suponhamos que Gloucester não tem medo da vingança justiceira dos homens nem acredita que exista um Deus disposto a condená-lo ao fogo eterno pelas suas patifaI rias. E, no entanto, ei-lo que continua a sofrer os seus remorsos... Repara: podemos lamentar ter agido mal embora estejamos razoavelmente certos de que nada nem ninguém exercerá represálias contra nós. É que, agindo mal e dando-nos conta disso, compreendemos que estamos já a ser castigados, que nos mutilámos a nós próprios pouco ou muito - voluntariamente. Não há pior castigo do que darmo-nos conta de estarmos a sabotar com os nossos próprios actos aquilo que na realidade queremos ser... Porque - de onde vêm os remorsos? Para mim é claríssimo: da nossa liberdade. Se não fôssemos livres, não poderíamos sentir-nos culpados (nem orgulhosos, evidentemente) de nada e evitaríamos os remorsos. Por isso, quando sabemos que fizemos algo vergonhoso, procuramos afirmar que não tivemos outro remédio senao agir assim, que não pudemos escolher: «eu cumpri ordens dos meus superiores», «vi que toda a gente fazia o mesmo», «perdi a cabeça», «foi mais forte do que eu», «não me dei conta do que estava a fazer», etc. Do mesmo modo, a criança pequena, quando cai ao chão e parte o frasco de marmelada que estava a tentar apanhar de cima da prateleira, grita lavada em lágrimas: «Não fui eu!» Grita-o precisamente porque sabe quefoi ela; caso contrário, não se daria ao trabalho de dizer nada e talvez até se risse com o acontecido. Em contrapartida, se tiver desenhado uma coisa que acha muito bonita, a criança gritará: «Fui eu que fiz isto sozinho, ninguém me ajudou!» E também do mesmo modo, já mais velhos, queremos sempre ser livres para nos atribuirmos o mérito do que conseguimos, mas preferimos confessar-nos «escravos das circunstâncias» quando os nossos actos não são propriamente gloriosos. Vamos deixar para trás e depressa o maçador do Grilo de Pinóquio: a verdade é que me pareceu sempre tão pouco simpático como esse outro detestável insecto, a formiga da fábula que deixa a tonta da cigarra sem comida nem tecto no Inverno, só para lhe dar uma lição, grosseira ainda por cima. Do que se trata é de levarmos a sério a liberdade, ou seja, de sermos responsáveis. O que há de sério na liberdade é que ela tem efeitos indubitáveis, que não se podem apagar quando isso nos convém, uma vez que tenham sido produzidos. Sou livre de comer ou não comer o pastel que tenho à minha frente; mas, depois de o ter comido, já não sou livre de o ter à minha frente ou não. Dou-te outro exemplo, desta vez de Aristóteles (já sabes, esse velho grego que falava do barco e da tempestade): se tiver uma

79 pedra na mão, sou livre de ficar com ela ou de a deitar fora, mas se a atirar para longe já não poderei ordenar-lhe que volte para que eu continue com ela na mão. E se com a pedra partir a cabeça de alguém... estás a ver, não estás? O que há de sério na liberdade é que cada acto livre que faço limita as minhas


possibilidades quando escolho realizar uma delas. E não vale fazer batota e esperar para ver se o resultado é bom ou mau, antes de assumir se sou ou não responsável por ele. Desse modo, talvez seja possível enganar um observador exterior, como pretende a criança que diz «não fui eu!», mas a nós próprios nunca nos podemos enganar por completo. Pergunta a Gloucester... ou ao Pinóquio! De maneira que aquilo a que chamamos «remorso» não é mais do que o descontentamento que sentimos connosco quando empregámos mal a nossa liberdade, quer dizer, quando a utilizámos em contradição com o que deveras queremos como seres humanos. E sermos responsáveis é sabermo-nos autenticamente livres, para o bem e para o mal: assumirmos as consequências do que fizemos, emendar o mal que possamos emendar e aproveitarmos o bem ao máximo. Ao contrário da criança malcriada e cobarde, o indivíduo responsável está sempre pronto a responder pelos seus actos: «Sim, fui eu!» O mundo que nos rodeia, se reparares, está cheio de ocasiões que podem servir ao sujeito para se desfazer da sua responsabilidade. A culpa do mal que sucede parece ser das circunstâncias, da sociedade em que vivemos, do sistema capitalista, do carácter que tenho (sou assim!), de não ter sido bem educado (ou me terem mimado em excesso), dos anúncios da televisão, das tentações que se oferecem nos escaparates, dos exemplos irreslstíveis e perniciosos... Acabo de empregar a palavra-chave destas justificações: irresistivel. Todos os que querem demitir-se das suas responsabilidades acreditam no irresistivel, naquilo que subjuga sem remédio, seja a propaganda, a droga, o apetite, o suborno, a ameaça, a maneira de ser... qualquer coisa serve. Quando aparece o irresistivel, zás, deixamos de ser livres e convertemo-nos em fantoches articulados a que não é possível pedir contas. Os partidários do autoritarismo acreditam firmemente no irresistivel e sustentam que é necessário proibir tudo o que possa dominar-nos: uma vez que a polícia tenha acabado com todas as tentações, já não haverá nem delitos, nem pecados! Também não haverá liberdade, claro, mas tem sempre que se pagar um preço pelo que se quer.. Além disso, que enorme alívio sabermos que

80 se ainda ficar por aí alguma tentação à solta a responsabilidade do que possa acontecer é de quem não a proibiu a tempo e não de quem a ela cedeu! E se eu te dissesse que o «irresistivel» não é mais do que uma superstição, inventada pelos que têm medo da liberdade? Que todas as instituições e teorias que nos proporcionam desculpas para a responsabilidade não nos querem ver satisfeitos mas escravos? Que quem espera que tudo no mundo seja como deve ser para começar a comportar-se pessoalmente como deve ser nasceu para mentecapto, para patife ou para as duas coisas, o que também pode ser o caso? Que por muitas proibições que nos sejam impostas e por muitos polícias que nos vigiem poderemos sempre agir mal - quer dizer, contra nós próprios - se quisermos? Pois digo-to mesmo e digo-to com toda a convicção do mundo. Um grande poeta e contista argentino, Jorge Luis Borges, faz no começo de um dos seus contos a seguinte reflexão sobre certo antepassado seu: «Couberam-lhe, como a todos os homens, maus tempos para viver.» Com efeito, ninguém viveu nunca em tempos completamente favoráveis, em que fosse simples ser-se humano e viver uma vida boa. Sempre houve violência, espoliação,


cobardla, imbecilidade (moral e da outra), mentiras aceites como verdades porque agradáveis de ouvir.. A ninguém a vida humana boa é oferecida, e ninguém consegue o que lhe convém sem coragem e esforço: por isso, virtude deriva etimologicamente de vir, a força viril do guerreiro que se impõe no combate contra a maioria. Achas isto uma sensaboria completa? Pede, então, o livro de reclamações... A única coisa que te posso garantir é que nunca se viveu na Terra da Facilidade e que a decisão de viver bem temos de a tomar, cada um de nós, a respeito de nós próprios, dia a dia, sem esperar que as estatísticas sejam favoráveis ou o resto do mundo no-lo peça por favor. O núcleo da responsabilidade, se te interessa sabê-lo, não consiste simplesmente em termos a decência ou a honradez de assumirmos as nossas patadas na poça sem procurar desculpas à direita e à esquerda. Quem é responsável é consciente do real da sua liberdade. E uso «real» no duplo sentido de «autêntico» ou «verdadeiro» e no de «próprio de um rei»: aquele que toma decisões sem que ninguém acima de si lhe dê ordens. Responsabilidade é saber que cada um dos meus actos me vai construindo, me vai definindo, me vai inventando. Ao escolher

81 aquilo que quero vou-me transfonnando pouco a pouco. Todas as minhas decisões deixam a sua marca em mim antes de a deixarem no mundo que me rodeia. E, evidentemente, depois de aplicada a minha liberdade em ir-me construindo um rosto, já não posso queixar-me ou assustar-me com o que vejo no espelho quando me olho... Se a o bem ser-me-á cada vez mais difícil agir mal (e inversamente, por infelicidade): assim, o ideal é innos apanhando o vício... de viver bem. Quando no westem o herói tem ensejo de disparar contra o vilão pelas costas, mas diz: «Eu não posso fazer uma coisa dessas», todos percebemos o que ele quer dizer. Disparar, aquilo a que se chama disparar, claro que poderia fisicamente fazê-lo, só que o herói não tem semelhantes costumes. Por alguma coisa é ele, afinal, o «bom» da história! Quer continuar a ser fiel ao tipo que escolheu ser, a esse tipo de homem que fabricou livremente desde há muito. Desculpa-me se o capítulo saiu grande de mais, mas é que me entusiasmei um bocado e, além disso, tenho tantas coisas para te dizer! Vamos ficar por aqui e restabeleceremos as nossas forças, porque amanhã proponho-me falar-te sobre aquilo em que consiste tratar as pessoas como pessoas, quer dizer, com realismo ou, se preferes, com bondade.

Para ires lendo... «Oh, cobarde consciência como me afliges!... A luz despede clarões azulados!... É a hora da meia-noite mortal!... Um suor frio encharca a minha carne trémula!... Pois quê? Terei medo de mim propno?... Não há aqui mais ninguém... Ricardo ama Ricardo... É isso; eu sou eu... Haverá aqui algum assassino?... Não... Sim!... Eu!... Fujamos, então!... O quê? De mim próprio?... Valente razão!... Porquê?... Do medo da vingança! O quê? De mim contra mim? Ai! Eu amo-me! Por que motivo? Pelo escasso bem que a mim próprio fiz? Oh, não! Ai de mim! ... Deveria antes odiar-me pelas acções infames


que cometi! Sou um miserável! Mas minto: não é verdade... Louco, fala bem de ti! Louco, não te adules! A minha consciência tem milhares de línguas, e cada língua repete a sua história particular, e cada história me condena como miserável! O perjúrio, o perjúrio em supremo grau! O assassínio, o assassínio atroz até aos extremos da ferocidade! Todos os diversos crimes, todos cometidos sob todas as suas formas, acorrem para me acusar, e todos gritam: Culpado! Culpado!... Desesperarei! Não há criatura humana que me ame! E se morrer não haverá uma alma que tenha piedade de mim!... E porque a teria? próprio não tive piedade de mim!» (William Shakespeare, Ricardo III).

Se eu

«Não faças aos outros o que não queres que te façam a ti é um dos mais fundamentais princípios da ética. Mas seria igualmente justificado afirmar: tudo o que fizeres a outros fá-lo-ás também a ti próprio» (Erich Fromm, Ética e Psicanálise). «Todos, quando favorecem outros, se favorecem a si mesmos; e não me refiro ao facto de que o socorrido quererá socorrer e o protegido defender, ou de que o bom exemplo regressa, descrevendo um círculo, a quem o dá como os maus exemplos recaem sobre os seus autores, e nenhuma piedade alcança aqueles que padecem injúrias depois de terem demonstrado com os seus actos o que podiam fazer -, mas ao facto de o valor de toda a virtude radicar nela mesma, já que não é praticada em vista do prêmio: a recompensa da acção virtuosa está em a termos cumprido» (Séneca, Cartas a Lucílio).

83 CAPÍTULO SÉTIMO PÕE-TE NO SEU LUGAR

Robinson Crusoé passeia por uma das praias da ilha onde o confinaram uma tempestade inoportuna e o subsequente naufrágio. Leva o papagaio no ombro e protege-se do sol graças ao guarda-sol fabricado com folhas de palmeira que o faz sentir-se justificadamente orgulhoso da sua habilidade. Pensa que, dadas as circunstâncias, não se pode dizer que se tenha saído lá muito mal. Tem actualmente um refúgio para se abrigar das inclemências do tempo e dos assaltos das feras, sabe onde conseguir alimento e bebida, possui roupas que o agasalham e que ele próprio fez com elementos fornecidos pela Natureza da ilha, além dos dóceis serviços de um pequeno rebanho de cabras, etc. Enfim, sabe arranjar as coisas de maneira a organizar o melhor possível, tornando-a boa, a sua vida de náufrago solitário. Robinson continua pois a passear e está tão satisfeito consigo próprio que por um momento tem a impressão de que nada lhe falta. Mas de súbito há um sobressalto que o detém. Ali, na areia branca, desenha-se uma marca que vai revolucionar toda a sua pacífica existência: a marca de um pé humano. De quem será? De amigo ou de inimigo? Talvez de um inimigo que seja possível converter em amigo? De homem ou mulher? Como se entenderá Roblnson com ele ou com ela? Que tratamento lhe dará? Robinson está habituado a fazer-se perguntas desde de chegou à ilha e a resolver os problemas do modo mais engenhoso possível: Que vou comer? Onde me vou abrigar? Como me vou proteger do sol? Mas agora a situação não é a mesma porque ele já não tem de tratar com acontecimentos naturais, como a fome ou a chuva, nem com feras selvagens,


mas com outro ser humano: quer dizer, outro Robinson ou outros Robinsons e Robinsonas. Frente aos elementos ou aos animais,

87 Robinson pôde comportar-se sem levar em conta nada que não fosse a sua necessidade de sobrevivência. Tratava-se de ver se levaria ele a melhor, ou as condições a melhor sobre ele, sem complicações suplementares. Mas perante seres humanos a coisa já não é tão simples. Ele tem de sobreviver, claro, mas já não de qualquer maneira. Se Robinson se tiver convertido numa fera como as outras que rondam na floresta, por causa da sua solidão e da sua desventura, não se preocupará senão com saber se o desconhecido que deixou a marca do seu pé na areia é um inimigo a eliminar ou uma presa a devorar. Mas se quiser ainda continuar a ser um homem... então terá de se haver já não com uma presa ou um simples inimigo, mas com um rival ou um possível companheiro; em qualquer caso, com um semelhante. Enquanto está sozinho, Robinson enfrenta problemas técnicos, mecânicos, higiénicos ou até científicos, se quiseres levar as coisas tão longe. Do que se trata para ele é de salvar a vida num meio hostil e desconhecido. Mas quando se lhe depara a pegada de Sexta-Feira na areia da praia começam os seus problemas éticos. Já não se trata apenas de sobreviver, como uma fera ou uma alcachofra, perdido na Natureza; agora tem de começar a viver humanamente, quer dizer, com outros ou contra outros homens, mas entre homens. O que toma «humana» a vida é o facto de se passar na companhia de seres humanos, falando com eles, pactuando e mentindo, sendo-se respeitado ou traído, amando, fazendo-se projectos e recordando o passado, assumindo desafios, organizando em comum as coisas comuns, jogando, trocando símbolos... A ética não trata de como nos devemos alimentar melhor ou de qual é a maneira mais recomendável de nos protegermos do frio ou de como procederemos para passar um rio a vau evitando afogar-nos - questões estas, todas elas, sem dúvida de extrema importância para podermos sobreviver em certas condições; mas o que interessa à ética, o que constitui a sua especialidade, é como viver bem a vida humana, a vida que decorre entre seres humanos. Se não soubermos como arranjar-nos para sobreviver frente aos perigos naturais, perderemos a vida, o que é, de certeza, muito aborrecido; mas se não fizermos ideia do que seja a ética, o que perderemos e desperdiçaremos será a humanidade da nossa vida, e isso, francamente, também não tem graça nenhuma. Disse-te há pouco que a marca na areia anunciou a Robinson a proximidade comprometedora de um semelhante. Mas vejamos: até I que ponto era Sexta-Feira semelhante a Robinson? Por um lado, temos um europeu do século xvll, na posse dos conhecimentos científicos mais avançados da sua época, educado na religião cristã, familiarizado com os mitos homéricos e com a imprensa; por outro, um selvagem, canibal dos mares do Sul, sem outra cultura para além da tradição oral da sua tribo, fiel de uma religião politeísta e desconhecedor da existência das grandes cidades contemporâneas como Londres ou Amsterdão. Tudo era diferente entre um e outro: a cor da pele, as preferências culinárias, as distracções... Por certo que nem sequer à noite


os seus sonhos tinham fosse o que fosse em comum. E, todavia, apesar de tantas diferenças, havia também entre eles traços fundamentalmente parecidos, semelhanças essenciais que Robinson não compartilhava com nenhuma fera nem com nenhuma árvore ou fonte da ilha. Para começar, ambos falavam, embora em línguas completamente diferentes. O mundo para eles era feito de símbolos e de relações entre símbolos, não de simples coisas sem nome. E tanto Robinson como Sexta-Feira eram capazes de avaliar os comportamentos, de saber que uma pessoa pode fazer certas coisas que estão «bem» e outras que, pelo contrário, são «más». À primeira vista, o que ambos consideravam «bom» e «mau» não era, longe disso, idêntico, porque as suas avaliações concretas provinham de culturas muito distantes: o canibalismo, para não irmos mais longe, era um costume razoável e aceite para Sexta-Feira, enquanto representava para Robinson - como para ti, suponho eu, por muito voraz que sejas - o mais profundo dos horrores. E, apesar disso, os dois coincidiam ao supor que há critérios destinados a justificar o que é aceitável e o que causa horror. Embora tivessem posições muito diferentes a discutir, podiam discutir e compreender aquilo que estavam a discutir. Bastante mais do que se pode fazer com um tubarão ou uma avalancha de pedras, não achas? Está tudo muito certo, dirás tu, mas a verdade é que por muito semelhantes que sejam os homens não é antecipadamente evidente qual a melhor maneira de nos comportarmos em relação a eles. Se a marca que Robinson encontra na areia pertencer a um membro da tribo de canibais que tenciona comê-lo guisado, a sua atitude perante o desconhecido não deverá ser a mesma que ele adoptaria se se tratasse do grumete do barco vindo para o resgatar. Precisamente pelo facto de se parecerem muito comigo, os outros homens podem tornar-se mais perigosos do que qualquer animal feroz ou do que um tremor de terra.

89 Não há pior inimigo do que um inimigo inteligente, capaz de fazer planos minuciosos, de me armar ciladas ou de me enganar de mil e uma maneiras. Talvez então o melhor seja nós adiantanno-nos, sermos nós os primeiros a tratá-los, por meio da violência ou de emboscadas, como se eles fossem já e efectivamente esses inimigos que podem chegar a ser.. No entanto, tal não constitui uma atitude tão prudente como pode parecer à primeira vista: ao comportar-me perante os meus semelhantes como inimigo, aumento sem dúvida as possibilidades de que, por seu turno, eles se tomem inevitavelmente meus inimigos; e, além disso, perco a oportunidade de ganhar ou conservar a sua amizade, caso eles em princípio estivessem dispostos a oferecer-ma. Repara neste outro tipo de comportamento possível perante os nossos perigosos semelhantes. Marco Aurélio foi imperador de Roma e ao mesmo tempo filósofo, o que é bastante estranho, uma vez que os governantes pouco costumam interessar-se por quaisquer questões que não sejam indiscutivelmente práticas. Mas o nosso imperador gostava de tomar nota de uma espécie de conversas que tinha consigo próprio, dando-se conselhos ou mesmo descompondo-se. Frequentemente, tomava nota de coisas deste gênero (recorro à memória e não ao livro, por isso não tomes as citações à letra): «Quando hoje te levantares, pensa que ao longo do dia te vais encontrar com algum mentiroso, com algum ladrão, com algum adúltero, com algum assassino. E lembra-te de que os deves tratar como homens, pois são tão humanos como tu


e por isso são para ti tão indispensáveis como o maxilar inferior o é para o superior.» Para Marco Aurélio, o mais importante a respeito dos homens não está em determinar se a sua conduta me parece conveniente ou não, mas em ter presente que - enquanto seres humanos - eles me convêm, e isso é coisa que nunca devo esquecer quando entro em contacto com eles. Por maus que sejam, a sua humanidade coincide com a minha e reforça-a. Sem eles talvez eu pudesse viver, mas não poderia viver humanamente. Mesmo que tenha um dente postiço e dois ou três com cáries, sempre é mais conveniente na altura de comer contar com uma queixada em baixo para ajudar os dentes de cima... É que essa mesma semelhança na inteligência, na capacidade de cálculo e projecto, nas paixões e nos medos, isso mesmo que toma tão perigosos para mim os homens quando eles querem sê-lo, fá-los tarnbém supremamente úteis. Quando um ser humano não me cai bem, nada pode cair-me melhor. Vejamos: que conheces tu que seja melhor w apaz de fazer anar de mil e -nos, sermos emboscadas, que podem tão prudente rante os meus ssibilidades de us inimigos; e, a sua amizaer-ma. el perante os de Roma ma vez que os r questões que erador gostava onslgo propno, ntemente, toe não ao livro, te levantares, mentiroso, com o. E lembra-te os como tu e nferior o é para a respeito dos ce convenienumanos - eles ando entro em idade coincide viver, mas não postiço e dois tura de comer s de cima... capacidade de que toma tão -lo, fá-los tamme cai bem, seja melhor

do que ser-se amado? Quando alguém quer dinheiro, ou poder, ou prestígio... não lhe apetecerão essas riquezas para poder comprar metade daquilo que alguém quando é amado recebe de graça? E quem me pode amar verdadeiramente senão outro ser como eu, que funcione como eu, que me queira enquanto ser humano... e apesar disso mesmo? Bicho nenhum, por mais afectuoso que seja, me pode dar tanto como outro ser humano, ainda que se trate de um ser humano algo antipático. É bem verdade que devo ter cuidado ao tratar com os homens, não vale a pena escondê-lo. Mas esse «cuidado» não pode consistir antes do mais em desconfiança ou maldade, mas sim na atenção que devemos ter ao manejar as coisas frágeis, as coisas mais frágeis entre todas... porque os outros não são apenas coisas. E como o vínculo de respeito e amizade para com os outros seres humanos é o mais precioso de quanto existe no mundo para mim, que também sou ser humano, quando estiver com os outros devo ter o maior interesse em protegê-los ou até em acarinhá-los, se queres que te diga tudo. Nem mesmo quando se trata de salvarmos a pele convém que esqueçamos por completo esta prioridade. Marco Aurélio, que era imperador e filósofo, mas não era imbecil, sabia muito bem o que tu também sabes: que há gente que rouba, que mente e que mata. Naturalmente, não supunha que, para nos darmos bem com o próximo, deveríamos favorecer esse tipo de comportamentos. Mas considerava bastante claras duas coisas que acho da maior importância: Primeira: que quem rouba, mente, atraiçoa, viola, mata ou de qualquer outro modo abusa de alguém nem por isso deixa de ser humano. Aqui a linguagem toma-se enganadora, porque ao forjar um título de infâmia («esse é um ladrão»,


«aquela é uma mentirosa», «aqueloutro é um criminoso») faz-nos esquecer um pouco que estamos sempre perante seres humanos que, não tendo deixado de o ser, se comportam de maneira pouco recomendável. E quem se «transformou» em algo de detestável, como continua a ser um ser humano, poderá ainda transformar-se de novo, para ser o mais conveniente possível para nós, o mais imprescindível... Segunda: uma das características principais de todos os seres humanos é a capacidade que temos de imitação. A maior parte do nosso comportamento e dos nossos gostos é copiada dos demais. Por isso somos tão susceptíveis de educação e incessantemente aprendemos aqui-

91 lo que outras pessoas conquistaram em tempos passados ou latitudes longínquas. Em tudo aquilo a que chamamos «civilização», «cultura», etc., há um pouco de invenção e muitíssimo de imitação. Se não copiássemos tanto, cada homem teria constantemente que começar tudo a partir do zero. Por isso é tão importante o exemplo que damos aos nossos congéneres sociais: é quase certo que na maioria dos casos eles nos tratarão como tiverem sido tratados. Se não pararmos de semear inimizades um pouco por toda a parte, ainda que dissimuladamente, não é provável que consigamos em troca se não mais inimizade. É verdade que, por muito bom exemplo que nos esforcemos por dar, os outros terão sempre diante dos olhos um grande número de maus exemplos que poderão imitar. Para que nos daremos pois ao trabalho de renunciar aos benefícios imediatos que tantas vezes os patifes alcançam? Marco Aurélio responderia: «Parece-te prudente aumentar o já grande número dos maus, daqueles de quem pouco de positivo realmente podemos esperar, desanimando assim a minoria dos melhores, que em contrapartida te pode ser de tão grande préstimo na tua busca de uma vida boa? Não será mais lógico semeares o que desejas colher em vez do contrário, ainda que tenhas consciência de que o joio poderá estragar a tua colheita? Preferes comportar-te voluntariamente à maneira dos loucos a defender e demonstrar as vantagens da cordura?» Mas estudemos um pouco mais de perto o que fazem esses a que chamamos «maus», quer dizer, os que tratam os demais seres humanos como inimigos em vez de procurarem a sua amizade. Estás com certeza lembrado de um filme chamado Frankenstein, interpretado por esse adorável monstro dos monstros que era Boris Karloff. Tentámos vê-lo juntos na televisão quando eras ainda bastante miúdo e eu tive de desligar o aparelho porque, segundo me disseste, com elegância e franqueza, «parece-me que isto começa a dar-me medo de mais». Bom, no romance de Mary W. Shelley, em que o filme se baseia, a criatura feita de remendos de cadáveres faz a seguinte confissão ao seu inventor já arrependido: «Sou mau porque sou infeliz.» Tenho a impressão de que a maioria dos que consideramos «maus» neste mundo poderiam dizer o mesmo, caso fossem sinceros. Se se comportam de maneira hostil e desapiedada para com os seus semelhantes, é porque sentem medo, ou solidão, ou porque lhes faltam as coisas necessárias que muitos outros possuem: infelicidades, como vês. Ou porque sofrem da maior de todas as desgraças, a de se verem tratados pela w


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maioria sem amor nem respeito, como acontecia com a pobre criatura do Doutor Frankenstein, a quem só um cego e uma menina quiseram mostrar amizade. Não conheço gente que seja má de pura felicidade nem que martirize o próximo como sinal de alegria. Pelo contrário, há muita gente que para se sentir satisfeita precisa de não se inteirar dos padecimentos que abundam à sua volta, e de cuja existência nalguns casos é cúmplice. Mas a ignorância, mesmo que satisfeita consigo mesma, é também uma forma de desgraça... Pois bem: se quanto mais feliz e alegre uma pessoa se sentir menos vontade terá de ser má, não será prudente tentarmos fomentar o mais possível a felicidade dos outros em vez de os tornarmos desgraçados e portanto com propensão para o mal? Aquele que colabora na infelicidade alheia ou nada faz para a remediar... trabalha a favor da sua própria infelicidade. Depois, que não se queixe de que exista tanta gente má por aí! A curto prazo, tratar os semelhantes como inimigos (ou como vítimas) pode parecer vantajoso. O mundo está cheio de espertalhões ou patifes descarados que se consideram extremamente astutos quando extraem benefício da boa intenção dos outros frente aos seus infortúnios. Francamente, não me parecem tão «vivos» como gostam de se fazer crer. A maior vantagem que podemos obter dos nossos semelhantes não é a posse de mais coisas (ou o domínio sobre mais pessoas tratadas como coisas, como instrumentos), mas a cumplicidade e o afecto de um maior número de seres livres. Ou seja, a amplificação e reforço da n-únha humanidade. «E isso para que serve?», perguntará o espertalhão, julgando atingir assim o auge da perspicácia. Ao que poderás responder: «Não serve para nada do que estás a pensar. Só os servos servem e já te disse que estamos aqui a falar de seres livres.» O problema do patife é que não sabe que a liberdade não serve nem gosta de ser servida, antes procura comunicar-se. O


pobre lin-úta-se a ter uma mentalidade de escravo... por muito «rico» em coisas que se considere a si próprio! E o patife suspira a seguir, já a tremer e reduzido a simples cretino: «Se eu não me aproveitar dos outros, vão ser com certeza os outros a aproveitar-se de mim!» É uma questão de ratos-escravos e de leões-livres, com a devida reverência por ambas as espécies zoológicas que muito aprecio. Diferença número um entre o que nasceu para rato e o que nasceu para leão: o rato pergunta «Que me vai acontecer?» e o leão «Que vou fazer?». Número dois: o rato quer obrigar os restantes a

93 gostarem dele para assim ser capaz de gostar de si próprio e o leão gosta de si próprio devido ao modo como é capaz de gostar dos outros. Número três: o rato está disposto a fazer seja o que for contra os demais para impedir o que os demais possam fazer contra ele, enquanto o leão considera que faz em benefício de si próprio tudo o que faz a favor dos demais. Ser rato ou ser leão - eis a questão! Para o leão é bastante claro - «tenebrosamente claro», como diria o poeta Antonio Machado - que o primeiro prejudicado quando tento prejudicar o meu semelhante sou precisamente eu próprio... e no que tenho de mais valioso, de menos servil. Chegamos por fim ao instante de tentar responder a uma pergunta cuja expressão directa (porque indirectamente, e com rodeios, há muitas páginas que não falamos de outra coisa) já adiámos por demasiado tempo: em que consiste tratar as pessoas como pessoas, quer dizer, humanamente? Resposta: consiste em tentares pôr-te no seu lugar. Reconhecer alguém como semelhante implica acima de tudo a possibilidade de compreendermos a outra pessoa a partir de dentro, de adoptarmos por um momento o seu propno ponto de vista. É algo que só de maneira muito fantasista e duvidosa posso pretender diante de um morcego ou de uma sardinheira, mas que em contrapartida se me impõe perante os seres, como eu próprio, capazes de manejar símbolos. Afinal de contas, sempre que falamos com outra pessoa o que fazemos é estabelecer um terreno no qual quem agora é «eu» sabe que se transformará num «tu» e vice-versa. Se não admitíssemos que existe qualquer coisa de fundamentalmente igual entre nós (a possibilidade de eu ser para outro o que o outro é para mim), não poderíamos cruzar uma palavra que fosse. Mas onde nos cruzamos reconhecemos também que de certo modo pertencemos a quem nos está diante e que quem está diante nos pertence... Isto, mesmo que eu seja jovem e o outro velho, mesmo que eu seja homem e o outro mulher, mesmo que eu seja branco e o outro preto, mesmo que eu seja idiota e o outro inteligente, mesmo que eu esteja cheio de saúde e o outro doente, mesmo que eu seja rico e o outro pobre. «Sou humano», disse um antigo poeta latino, «e nada do que é humano pode parecer-me estranho.» Quer dizer: ter consciência da minha humanidade consiste em dar-me conta de que, apesar de todas as diferenças extremamente reais entre os indivíduos, eu estou de certo modo também dentro de cada um dos meus semelhantes. E, para começar, enquanto palavra... Não só, contudo, para poder falar com eles, é evidente. Porrno-nos no lugar do outro é algo mais do que o começo de toda a comunicação simbólica com ele: trata-se de levar em conta os seus direitos. E quando os direitos faltam é


preciso compreender as suas razões. Porque há uma coisa a que qualquer homem tem direito frente aos outros homens, ainda que seja o pior de todos os homens: tem direito - direito humano - a que um outro tente pôr-se no lugar dele e compreender o que ele faz e o que ele sente. Mesmo que seja para o condenar em nome de leis que toda a sociedade deve admitir. Numa palavra, pores-te no lugar do outro é tomá-lo a sério, considerá-lo tão plenamente real como tu próprio. Ainda te lembras do nosso velho amigo Kane? Ou de Gloucester? Levaram-se tão a seno a si propnos, atribuíram tanta importância aos seus desejos e ambições que agiram como se os demais não fossem seres de verdade, como se fossem simples bonecos ou fantasmas: aproveitavam-nos quando lhes caía bem a sua colaboração, abandonavam-nos ou matavam-nos se deixassem de lhes servir. Não fizeram o mínimo esforço por pôr-se no lugar deles, por relativizar os seus interesses propnos levando em conta igualmente os interesses de outrem. E também sabes o que lhes aconteceu. Não te estou a dizer que tenha algum mal teres os teus próprios interesses, nem que deverás renunciar sempre a eles para dares prioridade aos do teu vizinho. Os teus interesses são tão respeitáveis como os dele, e o resto não passa de conversa. Mas repara bem na palavra «interesse»: vem do latim inter esse, o que está entre vários ou o que põe vários em relação. Quando falo de «relativizares» o teu interesse quero dizer que esse interesse não é algo exclusivamente teu, como se vivesses sozinho num mundo de fantasmas, mas é algo que te põe em contacto com outras realidades tão «de verdade» como tu próprio. De maneira que todos os interesses que possas ter são relativos (segundo outros interesses, segundo as circunstâncias, segundo as leis e os costumes da sociedade em que vives), todos excepto um, o único interesse absoluto: o interesse de seres humano entre os humanos, de dares e receberes um tratamento humano, sem o qual não pode existir «vida boa». Por muito que alguma coisa possa interessar-te, se vires bem, nada pode ser tão interessante para ti como a capacidade de te pores no lugar daqueles com os quais o teu interesse te põe em relação. E ao pores-te no lugar deles não só deves ser capaz de atender às suas

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a é io o ais

95 razões como de algum modo terás de participar nas suas paixões e sentimentos, nas suas dores, anseios e prazeres. Trata-se de sentirmos simpatia pelo outro


(ou, se preferires, compaixão, pois ambas as palavras têm etimologias semelhantes, derivando uma do latim e outra do grego), quer dizer: sermos capazes de experimentar de alguma maneira em simultâneo com o outro, de não o deixarmos completamente só no seu pensar ou no seu querer. Trata-se de reconhecer, por outras palavras, que somos feitos da mesma massa, ideia, paixão e came ao mesmo tempo. Ou como disse com profundidade e beleza maiores Shakespeare: todos nós, seres humanos, somos feitos da mesma substância de que são feitos os sonhos. E é um parentesco que devemos ter em conta. Levares o outro a sério, quer dizer, seres capaz de te pores no lugar dele, aceitando praticamente que ele é tão real como tu próprio, não significa que devas dar-lhe sempre razão naquilo que ele reclama ou naquilo que faz. Nem tão-pouco que, considerando-o tão real como tu próprio e semelhante a ti, devas comportar-te como se um e outro fossem idênticos. O dramaturgo e humorista Bemard Shaw costumava dizer: «Nem sempre deves fazer aos outros o que desejas que te façam a ti: eles podem ter gostos diferentes.» Sem dúvida que nós, seres humanos, somos todos semelhantes; sem dúvida, seria magnífico que viéssemos a ser iguais (em oportunidades ao nascer e, mais tarde, perante as leis), mas não somos nem temos que nos esforçar por ser idênticos. Seria, mais do que um enorme tédio, uma tortura generalizada! Pores-te em lugar do outro é fazeres um esforço de objectividade e tentares ver as coisas como ele as vê, não é deixares o outro ocupar o teu lugar.. Ou seja, ele deve continuar a ser ele e tu deves continuar a ser tu. O primeiro dos direitos humanos é o direito a não sermos fotocópias dos nossos vizinhos, a sermos mais ou menos esquisitos. E não temos o direito de obrigar o outro a deixar de ser «esquisito» para seu bem, excepto se a sua «esquisitice» consistir em prejudicar directa e claramente o próximo... Acabo de empregar a palavra «direito» e parece-me que já antes a empreguei. Sabes porquê? Porque grande parte da difícil arte de nos pormos no lugar do próximo tem que ver com isso a que desde há muito tempo se chama justiça. Mas aqui não me refiro apenas ao que

a justiça tem de instituição pública (quer dizer, leis estabelecidos, juízes, advogados, etc.), falo também da virtude da justiça, uuer w @ I 96 dizer: da habilidade e do esforço que devemos praticar, cada um de nós - se quisermos viver bem -, a fim de entendermos o que os nossos semelhantes podem esperar de nós. As leis e os juízes tentam determinar obrigatoriamente o mínimo que as pessoas têm direito a exigir daqueles com quem convivem em sociedade, mas trata-se de um mínimo e nada mais. Muitas vezes, por mais legal que seja tudo, por muito que se respeitem os códigos e se fique ao abrigo de multas ou da prisão, o nosso comportamento poderá ser fundamentalmente injusto. Qualquer lei escrita não é mais do que uma abreviatura, uma simplificação - com frequência imperfeita - daquilo que o teu semelhante pode esperar concretamente de ti, e não do Estado ou dos seus juízes. A vida é


demasiado complexa e subtil, as nossas pessoas são demasiado diferentes, as situações são excessivamente variadas, por vezes demasiado íntimas, para que tudo possa ter lugar nos tratados de urisprudência. Do mesmo modo que ninguém pode ser livre em teu lugar, também é certo que ninguém pode ser justo por ti, se não te deres conta de que deves sê-lo para viveres bem. Para entenderes completamente o que o outro pode esperar de ti não tens outro remédio senão amá-lo um pouco, ainda que se trate de amá-lo somente por ele ser também humano... e este pequeno mas importantíssimo amor é algo que não pode ser imposto por nenhuma lei instituída. Quem vive bem deve ser capaz de uma justiça simpática, ou de uma justa compaixão. Vê lá tu! Foi mais um capítulo enorme! Mas tenho a desculpa de ser este o capítulo mais importante de todos. O fundamental na ética de que te quero falar é o que tentei dizer nestas últimas páginas. Atrevia-me quase a pedir-te, se não estiveres muito cansado, que lesses este capítulo uma segunda vez antes de continuares. Mas se o não fizeres por cansaço... então, bem, só me resta pôr-me no teu lugar!

Para ires lendo... «Uma vez, por volta do meio-dia, ao ir ver a minha embarcação, surpreendeu-me de maneira estranha descobrir na areia a marca recente de um pé descalço. Parei de repente, como que ferido por um raio, ou como se tivesse tropeçado nalguma aparição. Pus-me à escuta, lancei o olhar em redor, mas nada vi nem ouvi... » (Daniel Defoe, Aventuras de Robinson Crusoé).

@' 97 «Toda a verdadeira vida é encontro» (Martin Buber, Eu e Tu). «Unidos aos seus semelhantes pelo mais forte de todos os vínculos, o de um destino comum, o homem livre descobre que o acompanha sempre uma nova visão que lança sobre qualquer tarefa quotidiana a luz do amor. A vida do homem é uma grande caminhada que ele faz através da noite, rodeado de inimigos invisíveis, torturado pelo cansaço e pela dor, em direcção a uma meta que poucos podem esperar alcançar, e onde ninguém pode deter-se por muito tempo. Um após outro, à medida que avançam, os nossos companheiros afastam-se da nossa vista, apanhados pelas ordens silenciosas da morte omnipotente. É muito curto o lapso durante o qual podemos ajudá-los, durante o qual se decide a sua felicidade ou a sua miséria. Oxalá nos caiba derramar a luz do sol na sua senda, iluminar as suas dores com o bálsamo da simpatia, dar-lhes a pura alegria de um afecto que nunca se cansa, fortalecer o seu ânimo quebrado, inspirar-lhes fé nas horas de desespero» (Bertrand Russell, Misticismo e Lógica).

«Nunca existiu apaniguado da virtude e inimigo do prazer tão triste e tão rígido que pregasse as vigflias, os trabalhos e as austeridades sem ordenar, ao mesmo tempo, que nos dedicássemos com todas as nossas forças a aliviar a pobreza e a miséria dos outros. Todos supõem que se deve até glorificar, com o nome de humanidade, o facto de o homem ser para o homem salvação e consolação, uma vez que é essencialmente "humano" - e não há outra virtude tão própria do homem como esta - suavizar o mais possível


as dores dos outros, fazer desaparecer a tristeza, devolver a alegria de viver, ou seja: o prazer» (Tomás Moro, Utopia).

98 , o de uma vida de uma e por eiros omnio ar a patia, o seu ssell,

CAPÍTULO OITAVO GOSTAR E GOSTAR

e tão ar, ao .viar a com ao e outra dores seja: o

Imagina que alguém te diz que o teu amigo Fulano ou a tua amiga Sicrana foram detidos por «conduta imoral» na via pública. Podes ter a certeza de que a «imoralidade» deles não consistiu em passarem com o sinal vermelho ou em terem dito a outra pessoa uma rematada mentira em plena rua, nem tão-pouco significa que tenham subtraído uma carteira a coberto dos apertos urbanos. O mais provável é que o atrevido do Fulano se tenha dedicado a apalpar com brutal insistência o rabo das melhores «peças» que se lhe tenham atravessado no caminho ou que a tonta da Sicrana, depois de um tanto bebida, se tenha empenhado em mostrar aos transeuntes que a sua anatomia nada tem que invejar à de Sabrina ou Marta Sánchez. E, se uma dessas pessoas ditas «respeitáveis» (como se o resto das pessoas o não fossem!) te anunciar em tom severo que este ou aquele filme é «imoral», já sabes que não estará a referir-se ao facto de no ecrã aparecerem diversos assassínios ou de as personagens obterem dinheiro por processos menos asseados, mas ao facto de... bom, tu bem sabes o resto. Quando as pessoas falam de «moral» e sobretudo de «imoralidade», oitenta por cento das vezes - e estou com toda a certeza a calcular por baixo - o sermão trata de alguma coisa que tem a ver com o sexo. Tanto assim é que há quem julgue que a moral se dedica antes do mais a ajuizar do que as pessoas fazem com as suas partes sexuais. O disparate não podía ser maior e eu suponho que, por pouca atenção quc tcnhas dedicado ao que te tenho vindo a dizer até aqui, não te passaria pela cabeça subscrevê-lo. No sexo, por si próprio, nada há de mais «imoral» do que em comer ou passear no campo; claro que uma pessoa pode comportar-se imoralmente com o sexo (utilizando-o para prejudicar outra pessoa, por exemplo), do mesmo modo que há quem coma a parte do vizinho ou


ioi aproveite os seus passeios para planear atentados terroristas. E, evidentemente, como a relação sexual pode levar ao estabelecimento de vínculos muito fortes e a complicações afectavas delicadas entre as pessoas, é lógico que as atenções devidas aos nossos semelhantes em tais casos se tomem objecto de consideração especial. Mas, quanto ao mais, aflrrno-te rotundamente que naquilo que dá prazer a dois e não prejudica ninguém nada há de mal. O que está realmente mal é haver quem pense que o prazer tem alguma coisa de mal... Não só «temos» um corpo, como costuma dizer-se (quase com resignação), como somos um corpo, sem cuja satisfação não há bem-estar nem bem viver que resistam. Aquele que se envergonha das capacidades de fruição do seu corpo é tão estúpido como o que se envergonha de ter aprendido a tabuada da multiplicação. Sem dúvida, uma das funções indubitavelmente importantes do sexo diz respeito à procriação. Precisarei de to explicar melhor, a ti, que és meu filho? E trata-se de uma consequência do sexo - a procriação que não pode ser considerada de ânimo leve, uma vez que impõe obrigações éticas certas: relê, se já não te lembrares bem, o que te escrevi sobre a responsabilidade enquanto reverso inevitável da liberdade. Mas a experiência sexual não pode limitar-se simplesmente à função prociiadora. Nos seres humanos, os dispositivos naturais que asseguram a perpetuação da espécie têm sempre outras dimensões também, que a biologia não parece haver previsto. Juntam-se-lhes símbolos e requintes, invenções preciosas dessa liberdade sem a qual nós, os homens, não o seríamos. É paradoxal que sejam os que vêem algo de «mau», ou pelo menos de «turvo», no sexo os mesmos que dizem que dedicar-se-lhe com excessivo entusiasmo animaliza o homem. A verdade é que são precisamente os animais que só empregam o sexo para procriar, como só utilizam o que comem para se alimentarem ou o exercício físico para a conservação da saúde; os seres humanos, nós, em contrapartida, inventámos o erotismo, a gastronomia e o desporto. O sexo é um mecanismo de reprodução para os homens, como também para os veados e os besugos; mas nos homens o sexo produz muitos outros efeitos simultâneos, como, por exemplo, a poesia lírica e a instituição matrimonial, que nem os veados nem os besugos conhecem (não sei se por desgraça se por sorte, do ponto de vista deles). Quanto mais se separa o sexo da simples procriação, menos animal e mais humano ele se toma. É claro que do sexo resultam consequências boas e más, como sempre que está em jogo a liberdade... Mas desse problema tenho vindo eu a falar-te quase desde a primeira página. O que se trai em toda esta obsessão relativa à «imoralidade» sexual é nem

mais nem menos um dos mais velhos temores sociais do homem: o medo do prazer. E, como o prazer sexual se conta entre os mais intensos e vivos que se podem sentir, acaba por se ver rodeado de precauções e receios extremamente acentuados. Porque é que o prazer assusta? Suponho que será porque nele temos muito gosto, demasiado gosto. Ao longo dos séculos, as sociedades tentaram sempre evitar que os seus membros se comprazessem em satisfazer o corpo a toda a hora e momento, esquecendo-se do trabalho, da previsão do futuro e da defesa do grupo: a verdade é que uma pessoa nunca se sente tão contente nem tão de acordo com a vida como quando tem prazer; somente, se com isso esquecer tudo


o mais, acabará por não viver muito tempo. A existência humana foi em todas as épocas e momentos um jogo perigoso - o que é tão verdade para as primeiras tribos que se reuniram junto ao fogo há milhares de anos como para nós, hoje, que temos de atravessar a rua quando vamos comprar o jomal. O prazer distrai-nos algumas vezes mais do que o devido, e isso pode ser-nos fatal. Por isso os prazeres foram sempre rodeados por tabus e restrições, cuidadosamente racionados, permitidos só em certas ocasiões, etc.: precauções sociais (que às vezes se mantêm mesmo quando já não fazem falta) destinadas a garantir que ninguém se distraia demasiado do perigo de viver. Por outro lado, há os que só sabem satisfazer-se não deixando que os outros se satisfaçam. Têm tanto medo de que o prazer se lhes revele irresistivel, angustiam-se tanto pensando no que lhes pode acontecer se um dia fizerem realmente o gosto ao corpo, que se convertem em caluniadores profissionais do prazer. Se se tiver sexo isto, se se comer e beber aquilo, e se se brincar também, pois já chega de risos e festas sendo o mundo tão triste, etc. Não acredites. Tudo pode acabar por fazer mal ou servir para fazer mal, mas nada é mau só pelo facto de te dar gosto fazê-lo. Aos caluniadores profissionais do prazer é costume chamar «puritanos». Sabes quem é o puritano? É aquele que garante que o sinal de que uma coisa é boa consiste em não gostarmos de a fazer. É aquele que sustenta que tem sempre mais mérito sofrer do que gozar (quando, na realidade, pode ser mais meritório gozar bem do que sofrer mal). E pior ainda: o puritano acredita que quando alguém vive bem tem de passar mal e que quando alguém passa mal é por-que vive bem. Podes ter a certeza: os puritanos consideram-se as pessoas mais «morais» do mundo e, além disso, pretendem ser guardas da moralidade dos I

@3 vizinhos. Não gostava de exagerar, ainda que costume ser exagerado, mas ia dizer-te que é mais «decente» e mais «moral» o desavergonhado comum do que o puritano oficial. O modelo deste último é habitualmente a senhora daquela história... lembras-te? Chamou a polícia para protestar porque havia uns rapazes nus diante da casa dela. A polícia afastou os rapazes, mas a senhora voltou a telefonar dizendo que eles estavam a tomar banho (nus, sempre nus) um pouco mais acima e que o escândalo continuava. A polícia volta a mandar os rapazes embora e a senhora volta a protestar. «Mas, n-únha senhora», disse o inspector, «já os pusemos a mais de um quilómetro e meio de distância ... » Ao que a puritana respondeu, então, «virtuosamente» indignada: «É verdade, mas com os binóculos ainda consigo vê-los!» Como na n-únha opinião o puritanismo é a atitude mais contrária à ética que se pode imaginar, nunca ouvirás de mim uma palavra contra o prazer, nem evidentemente tentarei seja como for que te envergonhes, ainda que só um bocadinho, do apetite de teres o máximo possível de prazer no corpo e na alma. Estou até disposto a repetir-te com a maior convicção o conselho de um velho mestre francês que muito te recomendo, Michel de Montaigne: «Temos que nos agarrar com unhas e dentes ao uso dos prazeres da vida, que os anos nos vão arrancando das mãos uns atrás dos outros.» Nesta frase de Montaigne gostava de sublinhar duas coisas. A primeira surge no final da recomendação, e diz


que os anos nos vão tirando incessantemente as possibilidades de prazer, pelo que não é prudente esperarmos demasiado tempo antes de nos decidirmos a viver como gostamos. Se demorares muito, acabas por desistir.. Devemos saber entregar-nos a saborear o presente, aquilo que os romanos (e aquele «prof.»-poeta um bocado chato de O Clube dos Poetas Mortos) resumiam na sentença carne diem. Mas isto não quer dizer que devas procurar todos os prazeres, mas sim que deves procurar todos os prazeres de hoje. Um dos meios mais certos de mutilares os prazeres do presente é esforçares-te por teres tudo a todo o momento, todas as satisfações, mais diversas e improváveis, no mesmo instante. Não tenhas a obsessão de encaixar à força no instante que vives todos os prazeres que não vêm a propósito; procura antes encontrar em tudo o seu aspecto agradável, Pois bem: não deixes arrefecer o ovo estrelado esforçando-te a contracorrente por um hamburger, nem estragues o hamburger já servido por não teres molho de tomate... Lembra-te de que o agradável não é o ovo, nem o hamburger, nem o molho, mas o facto de tu saberes extrair prazer daquilo que te rodeia. w O que me leva ao princípio da citação de Montaigne - quando ele fala de nos agarrarmos com unhas e dentes ao «uso dos prazeres da vida». O que é bom é usarmos os prazeres, ou seja, termos sempre certo controlo sobre eles, não lhes pern-útindo que se voltem contra o mais que forrna a tua existência pessoal. Lembra-te de como há umas largas páginas atrás, a propósito de Esaú e das suas lentilhas, falámos da complexidade da vida e de como era recomendável, para a vivermos bem, não a simplifican-nos em excesso. O prazer é muito agradável, mas tem uma aborrecida tendência para a exclusividade: se te entregares a ele com demasiada generosidade, ele é muito capaz de te deixar sem nada a pretexto de te satisfazer. Usar os prazeres, como diz Montaigne, é não permitir que qualquer deles apague a possibilidade de todos os outros, para que nenhum esconda também por completo o contexto da vida nada simples em que a sua oportunidade surge. A diferença entre o «uso» e o «abuso» é precisamente essa: quando usas um prazer, enriqueces a tua vida, e não só o prazer em causa como a propna vida te agrada cada vez mais; sinal de que estás a abusar é quando notas que o prazer te vai empobrecendo a vida, sem que já nada nela te interesse excepto o seu gosto particular. Ou seja: o prazer deixa de ser um ingrediente aprazível da plenitude da vida, e toma-se um refúgio para onde foges da vida, onde te escondes dela para a caluniares melhor.. Às vezes dizemos: «morto de prazer». Enquanto se trata de um sentido figurado, nada a objectar, pois um dos efeitos benéficos do prazer mais intenso é dissolver as couraças de rotina, medo e trivialidade que vestimos e muitas vezes nos doem mais do que protegem; perdendo essas couraças, é como se «morrêssemos» em relação ao que habitualmente somos, mas para em seguida renascen-nos mais robustos e decididos. Por isso os Franceses, especialistas refinados em tais temas, chamam ao orgasmo «la petite mort», a «pequena morte»... Trata-se de uma «morte» para vivermos mais e melhor, uma «morte» que nos toma mais sensíveis, mais doces ou altivamente apaixonados. Todavia, noutros casos, o gosto que obtemos com o prazer ameaça matar-nos no sentido mais literal e irremediável da palavra. Ou mata a nossa saúde e o nosso corpo ou nos embrutece matando a nossa humanidade, as nossas atenções para com os demais e para com o resto daquilo que constitui a nossa vida. Não vou negar-te que haja certos prazeres pelos quais possa valer a pena jogar a vida. O


«instinto de conservação» a todo o preço é muito bonito, mas não passa disso mesmo: um instinto. E nós, seres

'-1 05 humanos, vivemos um pouco para além dos instintos, caso contrário as coisas passariam a ser bastante enfadonhas. Do ponto de vista do médico ou do «encolhas» profissional, certos prazeres causam-nos prejuízo e acarretam um perigo, embora para nós, que temos uma perspectiva menos clínica, continuem a ser dignos de todo o respeito e consideração. Mas, apesar de tudo, pern-úte-me que desconfie de todos os prazeres cujo principal encanto parece ser o «prejuízo» e o «pefigo» que proporcionam. Uma coisa é «morreres de prazer» e outra muito diferente que o prazer consista em morrer.. ou pelo menos em quase morrer. Quando um prazer te mata, ou está sempre - para te satisfazer - quase a matar-te, ou quando vai matando em ti o que há de humano na tua vida (o que toma a tua existência complexa e rica e te permite pores-te no lugar dos outros)... é um castigo disfarçado de prazer, um reles engano da morte, nossa inimiga. A ética consiste em apostar em que a vida vale a pena, já que até as penas da vida valem a pena. E valem a pena porque é através delas que podemos alcançar os prazeres da vida, sempre vizinhos - é o nosso destino das suas dores. De maneira que, se me obrigares a escolher à força entre as dores da vida e os prazeres da morte, eu escolherei sem hesitar as primeiras... justamente porque aquilo de que gosto é de saborear a vida e não de perecer! Não quero prazeres que me permitam fugir da vida, mas prazeres que ma tomem mais intensamente agradável. E agora aí vem a pergunta do grande prêmio: qual é a maior gratificação que uma coisa pode dar-nos na vida? Qual é a recompensa mais alta que podemos obter de um esforço, uma carícia, uma palavra, uma música, um conhecimento, uma máquina, ou de montanhas de dinheiro, do prestígio, da glória, do poder, do amor, da ética ou do que bem mais quiseres? Previno-te de que a resposta é tão simples que se arrisca a decepcionar-te: o máximo que podemos obter seja do que for é a alegria. Tudo o que conduz à alegria tem justificação (pelo menos de certo ponto de vista, mesmo que não se trate de um ponto de vista absoluto) e tudo o que nos afasta sem remédio da alegria é o caminho errado. O que é alegria? Um «sim» espontâneo à vida que nos jorra por dentro, às vezes quando menos o esperamos. Um «sim» ao que somos ou, melhor, ao que sentimos ser. Quem tem alegria já recebeu o prêmio máximo e nada lhe falta; quem não tem alegria - por sábio, belo, saudável, rico, poderoso, santo, etc., que seja - é um desgraçado que carece do mais importante. Pois bem, escuta: o prazer é magnífico e desejável quando w s

sabemos pô-lo ao serviço da alegria, mas não quando a turva ou compromete. O lin-úte negativo do prazer não é a dor, nem sequer a morte, mas a alegria: quando começamos a perdê-la por causa de deten-ninado gosto, a verdade é que estamos a satisfazer-nos com alguma coisa que não nos convém. Porque a alegria - não sei se me estás a entender, mas não consigo


explicar-me melhor - é uma expenencia que inclui prazer e dor, morte e vida; é a experiência que em última análise aceita o prazer e a dor, a morte e a vida. A arte de pôr o prazer ao serviço da alegría, quer dízer, à virtude que sabe não cair do gosto no desgosto, chama-se desde tempos antigos: temperança. Trata-se de uma capacidade fundamental do homem livre, mas hoje não está muito na moda: tende a ser substituída ou pela abstinência radical ou pela proibição policial. Em vez de tentarem usar bem alguma coisa que se pode também usar mal (de que se pode, quero eu dizer, abusar), os que nasceram para autómatos preferem renunciar por completo a isso e, se possível, vê-lo proibido a partir do exterior, para que a sua vontade tenha que fazer menos exercício. Desconfiam de tudo aquilo de que gostam; ou, pior ainda, julgam que gostam de tudo aquilo de que desconfiam. «O melhor é não me deixarem entrar numa sala de jogo, ou jogarei tudo o que tenho e não tenho! O melhor é não me autorizarem a experimentar um charro, ou transformo-me num escravo hipnotizado da droga!» E assim por diante. São pessoas como essas que comprarn uma máquina para lhes massajar a barriga para não terem que fazer flexões recorrendo ao esforço próprio. E, é claro, quanto mais pela força se privam das coisas, mais loucamente elas lhes apetecem, mais se lhes entregam com má consciência, dominadas pelo mais triste de todos os prazeres: o prazer de se sentirem culpadas. Não te iludas: quando uma pessoa gosta de sentir-se «culpada», quando julga que um prazer é mais autêntico se for de algum modo «criminoso», aquilo que no fundo está a reclamar a plenos pulmões é castigo... O mundo está cheio de pretensos «rebeldes» que, no fundo, tudo o que desejam é que os castiguem por serem livres, que algum poder superior deste mundo ou do outro os impeça de se defrontarem a sós com as suas tentações. Em contrapartida, a temperança é uma amizade inteligente com aquilo que nos agrada. A quem te disser que os prazeres são «egoístas» porque há sempre alguém que sofre enquanto tu gozas, responde que é bom Grudar o outro, na medida do possível, a deixar de sofrer, mas que

107 é doentio sentirmos remorsos por não estarmos, no mesmo momento, a sofrer também - ou por nos estarmos a satisfazer como o outro gostaria de poder satisfazer-se. Compreender o sofrimento de quem sofre e tentar remediá-lo supõe simplesmente interesse em que o outro possa ter prazer também, e não vergonha por o termos nós. Só uma pessoa com muita vontade de tomar a vida amarga, a si e aos demais, poderá julgar que temos prazer só e sempre contra alguém. E autorizo-te a considerares suja e bastante animal a pessoa que vires considerar «Sujos» e «animais» todos os prazeres de que não compartilha ou não se atreve a permitir a si própria. Mas acho que toda esta questão ficou já suficientemente esclarecido, não te parece?


Para ires lendo... «O que o ouvido deseja é ouvir música, e a proibição de ouvir música chama~se negação do ouvido. O que os olhos desejam é ver beleza, e a proibição de ver beleza chama-se negação da vista. O que a narina deseja é cheirar perfume, e a proibição de cheirar perfume chama-se negação do olfacto. Do que a boca quer falar é do justo e do injusto, e a proibição de falar do justo e do injusto chama-se negação do entendimento. O que o corpo deseja gozar são alimentos ricos e roupas belas, e a proibição desse gozo chama-se negação das sensações do corpo. O que o espírito quer é ser livre, e a proibição desta liberdade chama-se negação da natureza» (Yang Chu, século til d. C.). «O vício corrige melhor do que a virtude. Suporta um vicioso e ganharás horror ao vício. Suporta um virtuoso e em breve odiarás toda a virtude» (Tony Duvert, Dicionário Malévolo). «A moderação pressupõe o prazer; a abstinência não. abstêmios do que moderados» (Lichtenberg, Aforismos).

Por isso, há mais

«A única liberdade digna desse nome é a de buscarmos o nosso próprio bem pelo nosso próprio caminho, na medida em que não privemos os outros do seu bem nem os impeçamos de se esforçarem por consegui-]o. Cada um de nós é o guardião natural da sua propna saúde, seja esta física, mental ou espiritual. A humanidade ganha mais consentindo a cada qual viver à sua maneira do que obrigando-o a viver à maneira dos demais» (John Stuart Mill, Sobre a Liberdade). CAPÍTULO NONO ELEIÇÕES GERAIS

Há uma coisa de que vais ouvir falar um pouco por toda a parte, de maneira que não temos outro remédio senão tratar dela também aqui. «A política é uma vergonha, uma imoralidade! Os políticos não têm ética!»: já deves ter ouvido tudo isto um bom milhão de vezes. Como primeira norma, nestas questões de que temos vindo a ocupar-nos, o mais prudente é desconfiarmos dos que julgam que a sua «santa» obrigação consiste em estar sempre a despedir raios e coriscos morais contra as pessoas em geral, sejam estas os políticos, as mulheres, os judeus, os farmacêuticos ou o pobre e simples ser humano tomado enquanto espécie. A ética, já o dissemos, mas nunca será de mais repeti-lo, não é uma arma de arremesso nem uma munição destinada a acertar em cheio, ferindo o próximo na sua auto-estima. E muito menos se destina a ferir o próximo em geral, como se os seres humanos fossem feitos em série como os donuts. A única coisa para que a ética serve é para nos tentarmos melhorar a nós próprios, e não para repreender eloquentemente o vizinho; e a única coisa certa que a ética sabe é que o vizinho, tu, eu e os restantes fomos todos feitos artesanalmente, um a um, com apaixonada diferença. De maneira que a quem nos ruge ao ouvido: «Todos os... (políticos, negros, capitalistas, australianos, bombeiros, o que se queira) são uns imorais sem o mínimo de ética», podemos


amavelmente responder: «Preocupa-te contigo próprio, com o que te vai dentro, que é melhor para ti», ou outra coisa no mesmo gênero. Ora bem: porque é que os políticos têm tão má fama? Afinal de contas, numa democracia polfticos somos todos, directamente ou por representação de outros. O mais provável é que os políticos se pareçam muito connosco que votamos neles, talvez se pareçam connosco até

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mais do que seria desejável; se fossem muito diferentes de nós, muito piores ou exageradamente melhores do que as restantes pessoas, com certeza os não elegeríamos para nos representarem no governo. Só os govemantes que não chegam ao poder por meio de eleições gerais (como os ditadores, os chefes religiosos ou os reis) baseiam o seu prestígio no facto de os outros os considerarem diferentes do comum dos mortais. Como se distinguem dos demais (pela sua força, pela inspiração divina, pela famflia a que pertencem ou seja pelo que for), consideram-se com direito a mandar sem se submeterem à prova das urnas nem ouvirem a opinião de cada um dos seus coneidadãos. Em contrapartida, dirão com toda a seriedade que o «verdadeiro» povo está com eles, que a «rua» os apoia com tanto entusiasmo que não é preciso contarem-se os seus partidários para sabermos que são muitos ou um pouco menos do que isso. Pelo contrário, os que desejam conquistar os seus cargos por via eleitoral procuram apresentar-se ao público como pessoas comuns, seres extremamente «humanos», com os mesmos gostos, problemas e até pequenos vícios que a maioria de cujos sufrágios necessitam para governar. Evidentemente, oferecem ideias destinadas a melhorar a gestão da sociedade e consideram-se capazes de as pôr competentemente em prática, mas são ideias que qualquer pessoa deve poder compreender e discutir, do mesmo modo que eles próprios têm de aceitar também a possibilidade de ser substituídos nos seus cargos se não forem tão competentes como disseram ou tão honrados como pareciam. Entre os políticos haverá pessoas muito decentes e outras mais descaradas e oportunistas, como acontece também entre os bombeiros, os professores, os alfaiates, os futebolistas e qualquer outra associação profissional. De onde vem, então, a sua notória má fama? Para começar, ocupam lugares especialmente visíveis na sociedade, e lugares de privilégio. Os seus defeitos são mais públicos do que os das restantes pessoas; além disso, têm mais ocasiões de incorrer em pequenos ou grandes abusos do que a maioria dos cidadãos de menor destaque. O facto de serem conhecidos, invejados e mesmo temidos também não contribui para que sejam equanimemente tratados. As sociedades igualitárias, quer dizer, democráticas, são muito pouco caridosas para com os que fogem à média - por alto ou por baixo: vontade de apedrejar quem sobressai, ou espezinhamento sem remorso de quem se afunda. Por outro lado, os políticos costumam dispor-se a fazer mais promessas do que sabem ou podem cumprir. Exige-o a sua clientela: quem não exagera as possibilidades do futuro perante os seus eleitores e põe mais ênfase nas dificuldades do que nas ilusões em breve ficará isolado. Jogamos com a ideia de que os políticos tem poderes mais do que humanos e,


em seguida, não lhes perdoamos a decepção inevitável que eles nos causam. Se confiássemos menos neles desde o princípio, não teríamos mais tarde que aprender a desconfiar tanto deles. Mas, bem vistas as coisas, sempre é melhor que sejam regulares, vaidosos ou até um pouco «embrulhados», como tu ou como eu, contanto que seja possível criticá-los, controlá-los e afastá-los ao fim do tempo devido, se disso for caso. O pior é quando são «chefes» perfeitos, que, como se julgam sempre detentores da verdade, só podemos mandar para casa a tiro... Deixemos em paz, porém, os senhores políticos, que já são causa de bastante confusão mesmo sem a nossa ajuda. O que a ti e a mim agora nos importa apurar é se a ética e a política terão alguma coisa a ver uma com a outra e o modo como se relacionam entre si. Quanto à finalidade, ambas parecem fundamentalmente aparentadas: não se tratará, em ambos os casos, do problema de viver bem? A ética é a arte de escolher o que mais nos convém para vivermos o melhor possível; o objectivo da política é organizar o melhor possível a convivência social, de modo a que cada um possa escolher o que lhe convém. Como ninguém vive isolado (já te disse que tratarmos humanamente os nossos semelhantes é a base da vida boa), quem quer que tenha a preocupação ética de viver bem não pode alhear-se olimpicamente da política. Seria como fazermos questão de estar confortavelmente instalados numa casa sem nada querermos saber das telhas partidas, dos ratos, da falta de calefacção e das paredes carcomidas que podem fazer com que o prédio caia enquanto dormimos... Contudo, também há diferenças importantes entre ética e polftica. Para começar, a ética ocupa-se do que a própria pessoa (tu, eu ou qualquer outra pessoa) faz com a sua liberdade, ao passo que a política tenta coordenar da maneira mais benéfica para o conjunto aquilo que muitos fazem com as suas liberdades. Em ética, o importante é querer bem, porque se trata somente daquilo que cada um faz porque quer (e não do que acontece a alguém, queira-o ou nao, nem do que é levado a fazer pela força). Para a política, em contrapartida, o que contam são os resultados das acções, sejam estas feitas lá pelo que for, e o polftico I I"

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tentará fazer pressão através dos meios ao seu alcance - incluindo a força - no sentido de obter certos resultados e de evitar outros. Observemos um caso banal: o respeito das indicações dos semáforos. Do ponto de vista moral, o que é positivo é querermos respeitar a luz vermelha (compreendendo a sua utilidade global, assumindo o lugar de outras pessoas que poderão ser prejudicadas se infringirmos a norma, etc.); mas se considerarmos o problema em termos políticos, o que importa é que ninguém desobedeça aos semáforos, ainda que apenas por recear a multa ou a prisão. Para o político, todos os que respeitam a luz vermelha são igualmente «bons», façam-no por medo, por rotina, por superstição ou graças à convicção racional de que os semáforos devem ser respeitados; para a ética, pelo contrário, só estes últimos merecem verdadeira estima, pois são eles os que melhor entendem o uso da liberdade. Numa palavra, existem diferenças entre a pergunta ética que coloco a mim próprio (como quero ser, sejam os demais como forem?) e a preocupação política visando que a maioria funcione da maneira considerada mais recomendável e


harmoniosa. Pormenor importante: a ética não pode ficar à espera da política. Não ligues aos que te disserem que o mundo é politicamente inabitável, que está pior do que nunca, que ninguém pode ter uma vida boa (eticamente falando) numa situação tão injusta, violenta e aberrante como aquela em que vivemos. O mesmo foi dito em todas as épocas e com razão, porque as sociedades humanas nunca foram nada «do outro mundo», como costuma dizer-se, sempre foram coisas deste mundo e, por isso, coisas cheias de defeitos, de abusos e de crimes. Mas em todas as épocas houve pessoas capazes de viverem bem ou pelo menos empenhadas em tentar viver bem. Quando podiam, colaboravam no sentido de melhorar a sociedade em que lhes coube desenvolverem-se; se tal não fosse possível, pelo menos não pioravam essa sociedade, e muitas vezes isso já não era pouco. Lutaram - e lutam ainda hoje, não duvides - para que as relações humanas politicamente estabelecidos se tomassem isso mesmo, relações mais humanas (quer dizer, menos violentas e mais justas); mas nunca ficaram à espera de que tudo à sua volta fosse perfeito e humano para começarem a aspirar à perfeição e à verdadeira humanidade. Falo-te de pessoas que querem ser as primeiras no que se refere a uma vida boa, arrastando os outros em vez de ficarem para trás, na cauda de todos. Talvez as circunstâncias não lhes w permitam levar mais do que uma vida relativamente boa, pior do que desejam... Bom, e depois? Seriam mais sensatas sendo completamente más, para agradar ao que há de pior no mundo e desagradar ao que há de melhor em si próprias? Se tiveres a certeza de que entre os alimentos que te são proporcionados há muitos que estão adulterados ou podres, tentarás enquanto te for possível comer coisas saudáveis, ou envenenar-te-ás o mais depressa que sejas capaz, para seguires a corrente da maioria? Nenhuma ordem política é tão má que nela ninguém possa em parte ser bom; por muito adversas que sejam as circunstâncias, a responsabilidade final pelos seus actos cabe a cada um de nós, e o resto são desculpas. Do mesmo modo, traduz-se também uma vontade de esconder a cabeça debaixo da asa no sonho de uma ordem política tão impecável (utopia, como costuma dizer-se) que nela toda a gente seria «automaticamente» boa, uma vez que as circunstâncias não permitiriam cometer o mal. Por muito mal que exista à nossa volta, haverá sempre bem para quem queira o bem; por muito que seja o bem que tenhamos conseguido instalar publicamente, o mal estará sempre ao alcance de quem queira o mal. Lembras-te? Trata-se daquilo a que desde há já um pedaço temos vindo a chamar «liberdade»... De um ponto de vista ético, quer dizer, da perspectiva do que convém à vida boa, como será a organização polftica preferível, aquela que devemos esforçar-nos por conseguir e defender? Se recapitulares um pouco aquilo que temos vindo a discutir até aqui (mas receio, infelizmente, que a lição vá já longa de mais para te lembrares de tudo), certos aspectos desse ideal ser-te-ão evidentes, contanto que reflictas um pouco atentamente no caso:

a) Como todo o projecto ético parte da liberdade, sem a qual não há vida boa que valha, o sistema polftico desejável terá de respeitar ao máximo - ou imitar ao mínimo, como preferires - as componentes públicas da liberdade humana: a liberdade de nos reunirmos ou separarmos, a de exprimirmos as nossas


opiniões ou inventarmos a beleza e a ciência, a de trabalharmos de acordo com a nossa vocação ou interesses, a de intervirmos nos assuntos polfticos, a de nos deslocarmos de um lugar para o outro e nos instalarmos aqui ou ali livremente, a liberdade de escolhermos os nossos prazeres do corpo ou da alma, etc. Devemos recusar as ditaduras, sobretudo as que são «para nosso w

I" 115 bem» (ou querem «o bem comum», o que vem a dar no mesmo). O nosso maior bem - particular ou comum - é sermos livres. Assim, um regime polftico que conceda a devida importância à liberdade insistirá também na responsabilidade social das acções e omissões de cada um (digo «omissões», porque às vezes também se faz não fazendo). Regra geral, quanto menos responsável se revele cada pessoa pelos seus méritos ou más acções (sustentando, por exemplo, que tudo isso são frutos da «história», da «sociedade estabelecido», das «reacções químicas do organismo», da «propaganda», do «demónio» e outras coisas do mesmo gênero), menor o grau de liberdade que lhe será concedido. Nos sistemas polfticos em que os indivíduos nunca são completamente «responsáveis», tão-pouco costumam sê-lo os governantes, que agem sempre impelidos pelas «necessidades» históricas ou pelos imperativos da «razão de Estado». Cuidado com os polfticos para os quais toda a gente é «vítima» das circunstâncias... ou tem a «culpa» delas! b) Um princípio de base da vida boa, como já vimos, é tratar as pessoas como pessoas, quer dizer: sermos capazes de nos porinos no lugar dos nossos semelhantes e de relativizar os nossos interesses para os harmonizan-nos com os deles. Se preferes dizer a mesma coisa de outro modo, trata-se de aprendermos a considerar os interesses do outro como se fossem nossos, e os nossos como se fossem do outro. A esta virtude chama-se justiça, e não pode existir regime polftico decente que não pretenda, por meio de leis e instituições, fomentar a justiça entre os membros da sociedade. A única razao que justifica limitar a liberdade dos indivíduos quando indispensável é impedi-los, pela força se não houver outro modo, de tratarem os seus semelhantes como se estes o não fossem, ou seja, como instrumentos, bestas de carga, brinquedos, seres inferiores, etc. À condição que cada ser humano pode exigir de ser tratado como semelhante pelos demais, seja qual for o seu sexo, cor de pele, ideias ou preferências, etc., chama-se dignidade. E repara como é curioso: embora a dignidade seja coisa que todos nós, os seres humanos, temos em comum, ela é precisamente o que também serve para reconhecermos cada um de nós como único e irrepetível. As coisas podem ser «trocadas» umas pelas outras, podern ser «substituídas» por outras parecidas ou melhores, numa palavra: têm o seu «preço» (o dinheiro costuma servir para facilitar estas trocas, w


116 medindo-as a todas por um mesmo padrão). Deixemos de lado por agora o facto de certas «coisas» estarem tão vinculadas às condições da existência humana que se tornam insubstituíveis, não podendo, por isso, «ser compradas nem por todo o ouro do mundo», como acontece com certas obras de arte ou certos aspectos da Natureza. Pois bem, todo o ser humano tem dignidade e não preço, ou seja, não pode ser substituído nem deve ser maltratado em vista do benefício de outro. Quando digo que não pode ser substituído, não me refiro à função que realiza (um carpinteiro pode substituir no seu trabalho outro carpinteiro), mas à personalidade que lhe é própria, àquilo que verdadeiramente é; quando falo de «maltratar» quero dizer que, nem sequer se for castigado de acordo com a lei ou considerado inimigo político, deixa de ser credor de atenções e respeito. Mesmo na guerra, que é o pior malogro do intento de «vida boa» em comum dos homens, há comportamentos que implicam um crime maior do que o próprio crime organizado que a guerra representa. É a dignidade humana que nos toma a todos semelhantes, justamente porque certifica que cada um de nós é único, não intercambiável e detentor dos mesmos direitos a ser socialmente reconhecido que qualquer outro.

c) A experiência da vida revela-nos na came, até quando somos mais felizes, a realidade do sofrimento. Levar o outro a sério, pondo-nos no seu lugar, consiste não só em reconhecermos a sua dignidade de semelhante mas também em simpatizarmos com as suas dores, com as infelicidades que por erro pessoal, acidente fortuito ou necessidade biológica o afligem, como mais cedo ou mais tarde nos podem afligir a todos. Doenças, velhice, debilidade insuperável, abandono, perturbações emocionais ou mentais, perdas do que é mais querido ou mais indispensável, ameaças e agressões violentas por parte dos mais fortes ou dos menos escrupulosos... Uma comunidade polftica desejável deve garantir dentro do possível a assistência comunitária aos que sofrem e a ajuda aos que, por qualquer razão, pouco ou nada podem ajudar-se a si próprios. O difícil é conseguir que esta assistência não se faça à custa da liberdade e da dignidade da pessoa. De vez em quando, o Estado, a pretexto de ajudar os inválidos, acaba por tratar toda a população como se esta não passasse de um agrupamento de inválidos. As desgraças põem-nos nas mãos dos outros e aumentam o poder colectivo sobre o indivíduo: é muito importante esforçanno-nos por

117 que esse poder seja utilizado apenas para remediar carências e debili dades, mas não para as perpetuar sob anastesia em nome de um «compaixão» autoritária. Quem deseja a vida boa para si próprio, de acordo com o project ético, tem também de desejar que a comunidade política dos homen assente na liberdade, na justiça e na assistência. A democracia moderna tentou ao longo dos dois últimos séculos estabelecer (primeiro n teoria e depois, pouco a pouco, na prática) essas exigências mínima que a sociedade política deve cumprir: são os chamados direitos humanos, cuja lista ainda hoje é apenas, para nossa


vergonha colectiva, u catálogo de bons propósitos, e não de efectivas conquistas. Insistir e reivindicámos por completo, em toda a parte e para todos, e não s alguns só para alguns, continua a ser a única iniciativa política de qu a ética não se pode alhear. No que se refere ao emblema que ponhas n lapela, tanto pode ser de «direita», de «esquerda», de «centro» ou sej do que for.. bom, disso tratarás tu, porque, por mim, acho em larg medida dispensável essa nomenclatura antiquada. O que me parece evidente é que muitos dos problemas que hoje s nos põem, aos cinco mil milhões de seres humanos que enchem planeta (e o número, infelizmente, tende a aumentar), não podem se resolvidos nem sequer bem colocados a não ser de forma global, e termos mundiais. Pensa na fome, que ainda mata tantos milhões de pessoas, ou no subdesenvolvimento económico e educacional de numerosos países, na sobrevivência de sistemas políticos brutais que oprimem sem contemplações o seu povo e ameaçam os vizinhos, no desperdício de dinheiro em ciências armarnentistas, na pura e simples miséria de um número demasiado grande de pessoas, mesmo nas nações prósperas, etc. Creio que a actual fragmentação política do mundo (de um mundo já unificado pela interdependência económica e a uníversalização das comunicações) só serve para perpetuar estas marcas e paralisar as soluções que se proporcionem. Outro exemplo: o militarismo, o investimento frenético em armamentos de recursos que poderiam resolver a maioria das carências de que hoje o mundo sofre, o cultivar da guerra de agressão (arte imoral de suprimir o outro em vez de procurar assumir o seu lugar)... Pensas que haja outra maneira de acabar com essa loucura que não seja o estabelecimento de uma autoridade à escala mundial, com força suficiente para dissuadir qualma cto ns rna as um em só ue na ej a a se o ser em de Uue no les nanquer grupo do gosto de brincar aos combates? Por fim, disse-te atrás que, ao contrário de outras, certas coisas não são substituíveis: esta «coisa» em que vivemos, o planeta Terra, com o seu equilíbrio vegetal e animal, não parece ter substituto disponível, e também não parece que possamos «comprar» outro mundo, se por avidez no lucro ou por estupidez destruirmos este. Pois bem, a Terra não é um conjunto de partes nem de parcelas : conservá-la habitável e bela é uma tarefa que só pode ser assumida pelos homens enquanto comunidade mundial, e não pelà busca míope do ganho lançando uns contra os outros. Pelo que concluo: tudo o que favorece a organização dos homens de acordo com a sua pertença à humanidade e não pela sua pertença a tribos afigura-se-me em princípio politicamente interessante. A diversidade de formas de vida é algo essencial (imagina o tédio que seria se faltasse!), mas será sempre necessário que existam certas pautas mínimas de tolerância entre elas e que certas questões congreguem os esforços de todos. Caso contrário, conseguiremos apenas uma diversidade de crimes e não de culturas. Por isso, confesso-te que abomino as doutrinas que põem os homens irremediavelmente uns


contra os outros: o racismo que classifica as pessoas em primeira, segunda ou terceira classe de acordo com fantasias pseudocientíficas; os nacionalisnws ferozes, que consideram que o indivíduo não é nada e a identidade colectiva é tudo; as ideologias fanáticas, religiosas ou civis, incapazes de respeitarem o conflito pacífico entre opiniões, e que exigem a toda a gente que creia e respeite aquilo que consideram a «verdade», e só isso, etc. Mas não quero começar agora a discutir política contigo nem tenciono expor-te aqui os meus pontos de vista sobre o divino e o humano no seu conjunto. Neste último capítulo só pretendi indicar-te que há exigências políticas que nenhuma pessoa que queira viver bem pode deixar de fazer suas. Do resto falaremos depois... Num outro livro.

se ca as pessoas em pnmeira, segun a ou ei o fantasias pseudocientíficas; os nacionalisnws ferozes, que consideram ser que o indivíduo não é nada e a identidade colectiva é tudo; as ideologias em fanáticas, religiosas ou civis, incapazes de respeitarem o conflito pacífide co entre opiniões, e que exigem a toda a gente que creia e respeite aquilo Uque consideram a «verdade», e só isso, etc. Mas não quero começar ue agora a discutir política contigo nem tenciono expor-te aqui os meus no pontos de vista sobre o divino e o humano no seu conjunto. Neste último les capítulo só pretendi indicar-te que há exigências políticas que nenhuma napessoa que queira viver bem pode deixar de fazer suas. Do resto falarenmos depois... Num outro livro. a aro Para ires lendo... e «Não é o Homem, são os homens que habitam este planeta. A pluralidade em é a lei da Terra» (Hannah Arendt, A Vida do E.,;pírito). ira ma «Se eu soubesse de alguma coisa que me fosse útil e fosse prejudicial à alminha famflia, expulsá-la-ia do meu espírito. Se soubesse de alguma coisa útil

Para ires lendo... «Não é o Homem, são os homens que habitam este planeta. A pluralidade é a lei da Terra» (Hannah Arendt, A Vida do E.,;pírito).


119 para a minha famflia e que o não fosse para a minha pátria, tentaria esquecê-Ia. Se soubesse de alguma coisa útil para a minha pátria e que fosse prejudicial para a Europa, ou que fosse útil para a Europa e prejudicial para o gênero humano, consideraria isso um crime, porque sou homem necessariamente, ao passo que francês somente o sou por acaso» (Montesquieu).

«Ainda que os Estados observassem perfeitamente os pactos que celebram entre si, continuaria a ser lamentável que o uso de tudo ratificar por meio de um juramento religioso tenha entrado nos costumes - como se dois povos separados por um breve espaço, somente por uma colina ou por um rio, não estivessem unidos por laços sociais assentando na própria natureza - porque esta prática faz com que os homens acreditem ter nascido para serem adversários ou inimigos, e que têm o dever de trabalharem para a sua recíproca perda, a menos que os tratados o impeçam. (... ) Pelo contrário, ninguém deveria ser considerado inimigo, a menos que tivesse sido causa de um dano real. A comunidade de natureza é o melhor dos tratados e os homens estão mais íntima e fortemente unidos pela vontade de se fazerem reciprocamente o bem do que por pactos, mais vinculados pelo coração do que pelas palavras» (Tomás Moro, Utopia). EPÍLOGO TERÁS DE SER TU PRÓPRIO A PEN

Bom, já está. Sem grande arrumação, claro, mas julgo que o principal ficou dito. Refiro-me ao «principal» do que sou aqui capaz de te dizer: outras coisas muito mais principais terás de as aprender com outros ou, melhor ainda, terás de ser tu próprio a pensá-las. Não desejo que leves este livro demasiado a sério - por nada deste mundo! Afinal de contas, é muito provável que nem sequer se trate de um verdadeiro livro de ética, pelo menos no caso de Wittgenstein ter tido razão. Esse notável filósofo contemporâneo, com efeito, considerava tão impossível escrever um verdadeiro livro de ética que afirmou: «Se um homem fosse capaz de escrever um livro sobre ética que fosse deveras um livro sobre ética, esse livro, como uma explosão, aniquilaria todos os outros livros do mundo.» Aqui me tens tu, porém, a acabar estas páginas que te são dirigidos e sem ter ouvido o mínimo ribombar aniquilador de qualquer explosão. Os meus velhos livros de que tanto g,osto (incluindo esse em que Wittgenstein exprime a opinião antes citada) continuam felizmente incólumes, nas prateleiras da estante. Pelos vistos o feitiço comigo não deu resultado, ou não deu resultado o livro de ética: podes estar descansado, não te preocupes. Outros muitíssimo melhores do que eu tentaram a mesma coisa antes, obtendo resultados que também não fizeram voar em pedaços o resto da literatura, mas que, em todo o caso, farias bem se experimentasses conhecer: Aristóteles, Espinosa, Kant, Nietzsche... Embora me tenha esforçado por não os citar a todo o instante, uma vez que estávamos a falar entre amigos, confesso-te que o mais aproveitável que possa haver nas páginas anteriores é deles que vem: a mim só a paternidade dos disparates cabe (desculpa, não enfies a carapuça, que não era de ti que eu estava a falar!).


123 Assim, não deves levar demasiado a sério este livro. Entre outras coisas porque a «seriedade» não costuma ser um sinal inequívoco de sabedoria, como julgam os pasmados: a inteligência deve saber rir... Mas o tema de que o livro trata, em contrapartida, farás bem se não o puseres de lado: refere-se àquilo que podes fazer com a tua vida, e se isso não te interessa não sei que possa afinal interessar-te. Como viver da melhor maneira possível? Esta pergunta parece-me muito mais substancial do que outras na aparência mais imponentes: «Tem sentido a vida? Vale a pena viver? Há vida depois da morte?» Olha, a vida tem sentido e sentido único; segue em frente, as cartadas não se repetem nem podem, habitualmente, corrigir-se. Por isso devemos reflectir sobre aquilo que queremos e reparar no que fazemos. Depois... conservar sempre a coragem diante do fracasso, porque a sorte também faz parte do jogo e ninguém pode acertar em todas as ocasiões. O sentido da vida? Primeiro, procurar não falhar; depois, tentar falhar sem desanimar. Quanto a sabermos se vale a pena viver, remeto-te para o comentário a esse propósito de Samuel Butler, um escritor inglês, muitas vezes irónico: «Isso é uma pergunta para ser feita a um embrião, não a um homem.» Qualquer que seja o critério que escolhas para 'ulgar se a vida vale ou não a pena, terás de o ir buscar a esta mesma vida na qual já estás mergulhado. Mesmo que rejeites a vida, fá-lo-ás em nome de valores vitais, de ideais ou ilusões que aprendeste no ofício de viver. De modo que a vida é o que vale... até mesmo para quem chega à conclusão de que não vale a pena viver. Mais razoável seria que nos perguntássemos se «tem sentido a morte», se a morte «vale a pena» - porque dela, sim, nada sabemos, dado o facto de todo o nosso saber e de tudo o que para nós vale ser da vida que nos vem! Acredito que qualquer ética digna desse nome parte da vida e se propõe reforçá-la, torná-la mais rica. Atrevo-me a ir mais longe, aqui que ninguém nos ouve: penso que só é bom quem sente uma antipatia activa pela morte. Atenção! Digo «antipatia» e não «medo»; no medo há sempre um começo de respeito e uma boa dose de submissão. Não creio que a morte mereça tanto... Mas haverá vida depois da morte? Desconfio de tudo o que tem de ser conseguido graças à morte, aceitando-a, utilizando-a, entrando em cumplicidade com ela, quer se trate de obter a glória neste mundo quer de conquistar uma vida mais duradoura nalgum outro. O que me interessa não é saber se há vida depois da morte, mas sim o facto de haver vida antes. E interessa-me que esta vida seja uma vida boa, não uma simples sobrevivência ou um constante medo de morrer. Fico-me portanto pela pergunta acerca dos modos de vivermos melhor. Ao longo de todos os capítulos anteriores tentei não tanto responder-lhe como ajudar-te a compreendê-la mais a fundo. Quanto à resposta receio que não tenhas outro remédio, a não ser procurá-la pessoalmente. E isso por três razões: a) Pela própria incompetência do teu mestre improvisado, ou seja: eu. Como vou eu ensinar a viver bem quem quer que seja, se tudo o que consigo é viver regularmente, e já não é mau? Sinto-me como um careca a anunciar um tónico capilar imbatível... b) Porque viver não é uma ciência exacta, como as matemáticas, mas uma arte, como a música. Podem, da música, aprender-se certas regras e podemos ouvir também o que os grandes compositores criaram, mas se não tiveres ouvido, nem


ritmo, nem voz, isso de pouco te servirá. Com a arte de viver acontece a mesma coisa: o que pode ensinar-se é fácil para quem tem as condições requeridos, mas para o «surdo» de nascença não passa de coisas que o aborrecem e tolhem ainda mais do que ele já está. Claro que, no campo que nos ocupa, a maior parte dos surdos são-no voluntariamente... c ) A vida boa não é algo de genérico, fabricado em série, mas só existe por medida. Cada um precisa de a ir inventando de acordo com a sua individualidade, única, irrepetível... e frágil. No que se refere ao bem viver, a sabedoria ou o exemplo dos demais podem ajudar-nos, mas não substituir-nos... A vida não é como os medicamentos, que trazem todos uma «literatura inclusa» onde se explicam as contra-indicações do produto e se indicam as doses a consumir. A vida é-nos dada sem receita e sem literatura inclusa. A ética não pode suprir por completo essa deficiência, porque não é senão a crónica dos esforços feitos pelos seres humanos no sentido de a colmatarem. Um escritor francês, que morreu há pouco tempo ainda, Georges Perec, escreveu um livro com o seguinte título: A Vida: Modo de Usar. Mas trata-se de uma deliciosa e inteligente ironia literán'a, e não de um sistema de ética. Por isso renunciei a dar-te aqui uma série de instruções sobre problemas concretos: o aborto, os preservativos, a objecção de consciência, e mais w 125 isto e maís aquilo. Nem muito menos me atrevi (hábito tão repugnantemente típico dos que se consideram «moralistas»!) a pregar-te em tom de lástima ou indignação sobre os «males» do nosso século: o consumismo, ah!, a falta de solidariedade, eh!, a ganância monetária, oh!, a violência, uh!, a crise dos valores, ah, eh, oh, uh! Tenho as minhas opiniões sobre esses e outros assuntos, mas eu nao sou «a ética»: sou só o teu pai. Através de mim, a única coisa que a ética pode dizer-te é que procures e penses por ti próprio, numa liberdade sem enganos: responsavelmente. Tentei ensinar-tefortnas de andar, mas nem eu nem ninguém tem o direito de te levar às costas. Poderei, apesar de tudo, acabar com um último conselho? Já que se trata de escolher, procura sempre escolher essas opções que depois te permitam o maior número de outras opções possíveis, e não as que te deixem entalado, contra a parede. Escolhe o que abre: aos outros, a novas experiências, a diferentes alegrias. Evita o que te encerra e te enterra. Quanto ao mais, boa sorte ! Acrescento ainda a recomendação que uma voz parecida com a minha te gritou da outra vez, em sonhos, quando havia um turbilhão que ameaçava arrastar-te: confiança!

Despedida «Adeus, leitor amigo; tenta não gastares a tua vida a odiar e a ter medo» (Sthendal, Lucien Leuwen). nem do, cura ero tra a dife, boa m a lhão


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