Reconto da obra A Minha Primeira República de José Jorge Letria

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Reconto de A Minha Primeira República, de José Jorge Letria

“Era um miúdo igual a muitos outros” mais ou menos da vossa idade. O menino era moreno, nem gordo nem magro, e os seus olhos brilhavam como se fizessem perguntas por cada novidade que observava. O seu nome era Manuel Francisco. Na manhã do dia 4 de outubro de 1910, o menino ia de sacola com cadernos e livros a tiracolo e apercebeu-se que as ruas de Lisboa tinham uma agitação diferente. As pessoas caminhavam para os empregos em passo acelerado e olhando nervosamente em volta como se desconfiassem de tudo e de todos. De repente, ouviram-se tiros. As pessoas recolheram-se em busca de abrigo. Uma senhora de voz nervosa e esganiçada gritava exaltadamente: “Parece que o diabo anda à solta!” Manuel Francisco seguia o caminho de sempre para a escola e recordava-se do pai a falar baixinho para sua mãe: “Deolinda, a Monarquia está por um fio. A família real está assustada com a manifestação de 50 mil pessoas em agosto passado a exigir menos gastos.” A sua mãe alarmada até comentou que temia por uma desgraça nas ruas de Lisboa e no país inteiro, recordando-se do assassinato do rei Dom Carlos e do infante herdeiro Dom Luís, no Terreiro do Paço. António, o pai de Manuel Francisco, era republicano. O seu filho não sabia a diferença entre Monarquia e República, mas o pai tratou de lhe explicar. O seu pai explicou-lhe que numa Monarquia quem mandava era um rei ou uma rainha, que não eram eleitos, bastando pertencer à família real para chegar a chefe do Estado, mesmo que houvesse eleições democráticas para a assembleia, numa República quem mandava era o povo que escolhia os seus representantes através de eleições. Deste modo, em vez de um rei a mandar haveria um Presidente da República, escolhido pelo voto popular. Manuel Francisco não entendia muito de política nem de partidos, mas de vez em quando ouvia umas conversas de seu pai com os colegas de trabalho, que afirmavam querer colocar as suas gentes a mandar no país. Agora, retornando àquela manhã de 4 de outubro de 1910, Manuel passou pela Rotunda do Marquês de Pombal e observou centenas de homens armados, uns fardados outros à civil, e sentiu o seu coração acelerando ao ver homens em cima de cavalos a galope como se o afastando do local.


Ele tentou aproximar-se com uma sensação confusa entre excitação e medo ficando com a respiração descontrolada. Viu homens armados enfiados em trincheiras num ambiente como se o diabo estivesse à solta (tal como dizia a senhora que ouvira atrás). Sem estar à espera, ouviu uma voz familiar que o travou de se aproximar mais. Era seu pai que o chamava e agora ordenava que regressasse a casa, sem passar pela escola, e ficasse junto de sua mãe para a ajudar. Terminou com um recado que em casa dissesse que ele não estaria só e que iriam vencer por serem muitos e valentes. O caminho até casa tornava-se perigoso por haver cada vez mais homens armados que o mandavam sair dali e por cada passo que dava para junto de sua mãe mais se preocupava com seu pai por receio da chegada das forças que defendiam o rei e a Monarquia. De repente, Manuel lembrou-se que faria anos no dia 5 de outubro e, por causa dos acontecimentos, não poderia haver alegria nem festa. Apesar de Manuel ser de família de poucas posses para comprar prendas, ele apenas desejava o regresso do pai são e salvo ao final da noite. A curiosidade pelo bem-estar do pai e dos novos acontecimentos, lembrou-se de subir a uma árvore para espreitar a Rotunda. Ouvia-se o nome do comandante das forças republicanas entre os homens: “Viva o comandante Machado Santos!” As horas passaram e observava homens que se aproximavam da Rotunda contando boas novas de outros confrontos pela cidade em que os republicanos venciam, acreditando-se que na Rotunda o mesmo seria possível. Pela cidade também se contava a reviravolta das tripulações de barcos de guerra para o lado republicano que agora começavam a disparar para as forças leais ao rei. Até o barco de Dom Carlos já estava entre as forças revoltosas. As forças instaladas na Rotunda foram confrontadas com as tropas no cimo do Parque Eduardo VII, junto da Penitenciária, comandadas por Paiva Couceiro. Estas foram travadas pelos homens do Regimento de Artilharia 1. Houve troca de tiros e registaramse alguns mortos e feridos graves, mas não chegaram até aos homens entrincheirados na Rotunda, junto de seu pai. Manuel começou a ficar preocupado com sua mãe e a sentir alguma fome e sede. Desceu da árvore e ouviu entre os homens próximos que o rei Dom Manuel II saíra de Lisboa para junto de forças leais próximo de Mafra, mais precisamente a Ericeira, onde se tinha atracado o iate real Amélia para os levar para longe. Parecia que a Monarquia tinha acabado por não haver quem a representasse, mas ninguém ainda a tinha proclamado.


Vencido pela fome e o cansaço, Manuel Francisco regressou a casa, mas antes acenou a seu pai de lágrimas nos olhos. Em casa, sua mãe esperava ansiosa. Já contava com notícias de desgraça e perda da família após tantas horas sem nada saber, ficando aliviada em saber que tanto seu marido e filho estão vivos. Manuel Francisco orgulhoso afirmou: “O meu pai é um valente, um herói, e eu só gostava de já ter idade para estar ao lado dele para ajudar os republicanos.” A mãe ficou em silêncio as palavras de seu filho que daí a poucas horas faria anos, no dia 5 de outubro, com Lisboa em alvoroço e receosa pelo fim da Monarquia. Manuel adormeceu por fim na sua cama. Pegou num sonho agitado pelas lutas assistidas na Rotunda, vendo o seu pai a combater outros civis e militares. Viu também cruzadores no Tejo a apontarem os canhões ao Palácio das Necessidades, onde se encontrara o rei Dom Manuel II. Era um sonho que parecia nunca terminar por ser mais intenso e colorido do que todos os outros anteriores. E parecia tão real, tão verdadeiro que quase conseguia ser real. Pela manhã, a mãe de Manuel acorda-o para procurar o pai e lhe levar comida quente, acreditando que ele já não comia nem dormia há quase dois dias. Manuel logo se levantou da cama. O que ele mais desejava era ir até à Rotunda e ver o seu pai entre os revoltosos. Preparou-se rapidamente e, na outra sala da casa, viu que recebera a visita do seu tio Januário, padre da paróquia vizinha, que não se esqueceu do seu aniversário, dando-lhe uma medalha de Santo António e dizendo: “Guarda-a bem, meu filho, que vais precisar muito dela nestes tempos difíceis. Nunca te separes dela!” Manuel, por respeito ao seu tio padre, guardou-a no bolso do casaco e nunca mais se separou dela. De saída de casa, nessa manhã de 5 de outubro, Manuel Francisco reparou que muita coisa estava a mudar na cidade. Havia mais gente na rua, faltava-se ao emprego, as pessoas circulavam-se como se fossem exércitos civis. A maioria das pessoas estava na rua porque desejava ver a República a hastear a bandeira vermelha e verde da mudança. Por toda a parte se viam tropas em movimento, umas ligadas aos revoltosos, outras em defesa de pouco que ainda restava da Monarquia. Destas podia dizer-se que estavam desanimadas, esperando pela derrota final que parecia inevitável. Os corações de Deolinda e do filho batiam intensamente, pois não sabiam se o marido e o pai tinha escapado ileso do confronto das tropas e dos bombardeamentos. Ao chegarem à Rotunda, viram uma multidão a apoiar os revoltosos e sentiram-se mais aliviados e confiantes, mas ainda não tinham conseguido avistá-lo. Onde estaria ele? Estaria vivo? Estaria ferido? Quem lhes poderia dar notícias dele?


Manuel Francisco gritou –“Mãe, mãe, aquele é Machado Santos!”, apontando para o comandante de fadiga estampada no rosto, mas sorridente de satisfação. Encaminhavase para o Quartel-General a fim de obter a rendição das forças monárquicas. Acompanhado por alguns dos seus homens, militares e civis, Machado Santos era o herói do dia e iria ser um dos heróis da História portuguesa. Atrás deles caminhavam, dando “vivas” à República, muitas pessoas do povo que se sentiam felizes por ver a Monarquia à beira da rendição. Foi nesse instante que Manuel Francisco avistou o pai, um pouco atrás do comandante. Tinha a cabeça ligada devido a um ferimento ligeiro, mas mantinha o passo firme e determinado, consciente da sua missão e do triunfo conseguidos. - Pai, pai, estamos aqui! – gritou Manuel Francisco, mas o pai tinha dificuldade em o ouvir entre tanta multidão eufórica. Por fim, viu-o e correu para eles para lhes dar um abraço comovido mas breve, recordando-se do aniversário do filho. Deolinda comovida tira da sacola pão, queijo, chouriço e um pouco de vinho. Ele repartiu o que pode com os seus companheiros exaustos. Depois, pediu que regressassem a casa por receio de atiradores escondidos. Depois de se afastarem, uma multidão eufórica empurrou-os em direção à Praça do Município, onde puderam assistir a outro momento que nunca mais esqueceriam. Na varanda do edifício da Câmara Municipal, um homem usava da palavra com a voz potente e bem timbrada para anunciar que a Monarquia acabara de ser derrubada e que a República triunfara e também fora nomeado um Governo Provisório até às próximas eleições. O homem que discursava chamava-se José Relvas e era um dos chefes do movimento revolucionário. Após ouvir o discurso, Deolinda abraça o filho com força e, mais uma vez, não conteve o choro. A comoção era tão forte que gritou “Viva a República!” Ambos regressaram a casa, esperando que o seu pai também lá estivesse para todos descansarem e festejarem a vitória da revolta e o seu aniversário. A mãe afirmava: “Já merecemos paz!”


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