Remoção Física: O pensamento de Hans-Hermann Hoppe

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Paulo oliveira

hariel monte

tarcísio medeiros (org)

remoÇÃo Física o Pensamento de hans-hermann hoPPe



Paulo oliveira

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Copyright © 2016 by Paulo Eduardo Silva Oliveira Neto Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução total ou parcial desta obra sem autorização por escrito do autor.

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Oliveira, Paulo Eduardo Silva. Remoção Física: O pensamento de Hans-Hermann Hoppe / Paulo Eduardo Silva Oliveira, Hariel Lucas Câmara Monte, Tarcísio Medeiros Silva; 1.ed. Natal : Editora São Cipriano, 2016.

ISBN xxx-xx-xxxxx-xx-x 1. Ética. 2. Anarcocapitalismo. 3. Praxeologia. I. Oliveira, Paulo Eduardo Silva. II. Título. CDU : XXX



“O estado não nos defende; ao contrário, o estado nos agride, confisca nossa propriedade e a utiliza para defender a si próprio.” Hans-Hermann Hoppe


SUMÁRIO

1

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APRESENTAÇÃO.................................................................................

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INTRODUÇÃO.......................................................................................

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A ÉTICA ROTHBARDIANA..................................................................

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O PROBLEMA DA ORDEM SOCIAL....................................................

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A SOLUÇÃO DO PROBLEMA..............................................................

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ANARQUIA E ESTADO.........................................................................

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A CONSEQUÊNCIA DO ERRO MORAL..............................................

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A RESTAURAÇÃO DA MORALIDADE.................................................

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AS ELITES NATURAIS, OS INTELECTUAIS E O ESTADO...............

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A ORIGEM DA MONARQUIA................................................................

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O PODER MONOPOLIZADOR.............................................................

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A ASCENSÃO DA DEMOCRACIA........................................................

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O DESTINO DAS ELITES NATURAIS..................................................

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HISTÓRIA & IDEIAS..............................................................................

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O PAPEL DAS ELITES..........................................................................

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A ORIGEM DA PROPRIEDADE PRIVADA E DA FAMÍLIA.................

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REFERÊNCIAS.....................................................................................

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SOBRE O AUTOR.................................................................................

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APRESENTAÇÃO Este livro é o grito daqueles que, assim como o nome que originou esta ideia, buscam a intelectualidade do anti-intelectualismo. Diante de uma demanda cada vez maior de professores, acadêmicos, estudantes, trabalhadores em geral e – como não se poderia deixar de citar sem tornar uma traição a “ele” – indivíduos buscando compreender o que é a ética natural, o jusnaturalismo, o direito natural, a moral e a liberdade, uma missão foi dada pelos autores desta a]obra para os autores da mesma. Uma missão pessoal, uma dívida intelectual para com aquele que, ao menos atualmente, é o maior nome da Escola Austríaca – com a qual os traidores do livre pensar tem uma relação de ódio – e o rosto da geração que vem cada dia mais se levantando contra o grande Leviatã da corrupção, da degeneração e da coerção. “Remoção Física” é um aviso a cada um daqueles que deveriam sofrer, sobre suas consciências, este ato belo e moral. É com alegria que os autores desta obra presenteiam a humanidade com um compilado e uma análise do imenso e humilde pensamento de Hans-Hermann Hoppe.



INTRODUÇÃO Hans Herman hoppe, o eterno intelectual anti-intelectual, é um dos pensadores mais importantes da atualidade, conhecido como o mais importante expoente vivo da chamada ''escola austríaca’'' , hoppe tem como marca maior a versatilidade de seus escritos abrangendo questões das mais variadas áreas do pensamento sem academicismos prolixos ou falta de erudição, o eterno herdeiro intelectual de Erik von Kuehnelt-Leddihn não tem eufemismo, é um radical, sua defesa da monarquia como sistema de governo menos nocivo aos direitos naturais e seus fortes ataques a democracia e o estado como instituição o fizeram ser tanto amado como odiado , na academia será eternamente uma persona non grata. Tanto seu radicalismo quanto sua genialidade são inegáveis, assim tão necessário quanto repensar o papel do estado, principalmente no contexto brasileiro, é ler algum de seus trabalho e assimilar sua poderosa argumentação, aqui neste curto livro estão compilados os principais textos do filósofo alemão traduzidos para a língua portuguesa , o primeiro deles trata do pensamento de Murray Rothbard conhecido pelo seu pioneirismo na forma de se pensar o estado no paradigma ''austríaco'' , Rothbard foi seu professor e é uma das principais influências de Hoppe , junto com importantes lições econômicas o extremista Rothbard também transmitiu seu ódio pelo estado e seu amor pela liberdade, Rothbard também foi uma das figuras mais marcantes do pensamento econômico um de seus colegas de


classe Friedrich Hayek foi eternizado com a maior honra que pode ser conferida a um economista um Nobel de economia em 1974. O segundo dos textos presentes nesse volume é seu famoso ensaio'' As elites naturais os intelectuais, e o estado'' no qual os temas são descortinados pelo próprio título e é sem sobra de dúvidas um dois melhores trabalho sobre a anatomia do estado e suas origens . O terceiro texto desse volume é a brilhante introdução de ''Democracia o Deus que falhou '', onde Hoppe faz importantes investigações históricas e mostra a validade que tudo que o adjetivizou anteriormente. O terceiro texto '' A origem da propriedade privada e da família'', logo em seu título faz alusão ao famoso texto de Karl Marxs e Engels e é um texto predominantemente social e histórico. Assim se encerra esta curta compilação de textos hoppeanos , que visa além de divulgar suas importantes críticas as instituições burocráticas transmitir seus pensamentos a fim de popularizar alguns de seus mais importantes textos e ensaios.


1. A ÉTICA ROTHBARDIANA Por Hans-Hermann Hoppe

O PROBLEMA DA ORDEM SOCIAL Robinson Crusoé, sozinho em sua ilha, pode fazer o que ele quiser. Para ele, problemas relativos a regras de conduta humana pacífica — cooperação social — simplesmente não existem. Evidentemente, esses problemas só podem surgir no momento que uma segunda pessoa, Sexta-feira, chegar na ilha. Mas mesmo assim os problemas permanecem irrelevantes enquanto não houver nenhuma escassez. Suponha que a ilha seja o Jardim do Éden. Todos os bens externos estão disponíveis em superabundância. Eles são "bens livres", do modo que o ar que respiramos normalmente é um bem "livre". Qualquer coisa que Crusoé fizer com estes bens não terá nenhuma repercussão sobre seu próprio estoque futuro destes bens, nem sobre o estoque presente ou futuro dos mesmos bens para Sexta-feira (e vice-versa). Consequentemente, é impossível que ocorra um conflito entre Crusoé e Sexta-feira relativo ao uso destes bens. A possibilidade de um conflito passa a existir somente quando os bens são escassos, e apenas assim pode surgir um problema de formular regras que tornem possível uma cooperação social pacífica — sem conflitos. No Jardim do Éden só existem dois bens escassos: o corpo de uma pessoa e o local que ela está. Crusoé e Sexta-feira possuem apenas um corpo cada um e podem ocupar apenas um lugar ao mesmo tempo. Logo, mesmo no Jardim do Éden podem surgir conflitos entre Crusoé e Sexta-feira: eles não podem querer ocupar simultaneamente o mesmo local sem se envolverem em um conflito físico. Assim sendo, até mesmo no Jardim do Éden devem existir regras de conduta social pacífica — regras relativas ao posicionamento e movimento apropriados dos corpos humanos. E fora do Jardim do Éden, no mundo da escassez, deve haver regras que regulem não apenas o uso dos corpos das pessoas, mas de tudo que seja escasso, de modo que todos os conflitos possíveis possam ser eliminados. .


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A SOLUÇÃO DO PROBLEMA Na história do pensamento político e social muitas propostas foram oferecidas como supostas soluções para o problema da ordem social, e esta variedade de propostas mutuamente inconsistentes contribuiu para o fato de que hoje em dia a busca por uma única resposta "correta" para o problema seja frequentemente considerada ilusória. Ainda assim, como tentarei demonstrar, existe uma solução correta; e portanto, não há motivos para sucumbir ao relativismo moral. Não fui eu quem descobriu esta solução, nem, a propósito, Murray Rothbard.

Na

verdade, a solução já é essencialmente conhecida há centenas de anos, se não forem milhares. A fama dada a Murray Rothbard é "meramente" porque ele redescobriu esta antiga e também simples solução e a formulou de maneira mais clara e convincente do que qualquer um antes dele. Deixe-me começar a formular a solução — primeiramente para o caso especial representado pelo Jardim do Éden e subsequentemente para o caso geral representado pelo mundo "real" de escassez generalizada — e então proceder para a explicação de como esta solução, e nenhuma outra, é correta. No Jardim do Éden, a solução é fornecida pela simples regra que estipula que todos podem colocar ou mover seu próprio corpo onde quiser, contanto que nenhum outro já esteja ali ocupando o mesmo lugar. E fora do Jardim do Éden, no mundo da escassez generalizada, a solução é fornecida pela seguinte regra: Todos são os devidos donos de seus próprios corpos e também de todos os lugares e bens dados pela natureza que ocupem e coloquem em uso por meio de seus corpos, contanto apenas que nenhum outro játenha ocupado ou colocado em uso os mesmos lugares e bens antes dele. Esta propriedade de lugares e bens "originalmente apropriados" por uma pessoa implica em seu direito de usar e transformar estes lugares e bens da maneira que eles acharem apropriada, contanto que com isso ela não altere sem permissão a integridade física de lugares ou bens originalmente apropriados por outra pessoa.

Particularmente, uma vez que um lugar ou bem tenha sido

primeiramente apropriado através da, nas palavras de John Locke, "mistura do próprio trabalho" com eles, a propriedade sobre estes lugares e bens pode ser


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adquirida somente através de uma transferência voluntária — contratual — de seu título de propriedade de um dono anterior para um posterior. Considerando o predominante relativismo moral, vale a pena ressaltar que esta ideia de apropriação original e propriedade privada como uma solução ao problema da ordem social está em pleno acordo com nossa "intuição" moral. Seria por acaso um absurdo afirmar que uma pessoa não deveria ser a devida dona de seu corpo e dos lugares e bens que ela originalmente, i.e., antes de qualquer outra pessoa, se apropria, usa e/ou produz por meio de seu corpo? Pois quem mais, se não ela, deveria ser sua dona? E não é também óbvio que a esmagadora maioria das pessoas — incluindo crianças e homens primitivos — de fato age conforme estas regras, e o fazem sem questionar e de forma natural? No entanto, uma intuição moral, por mais importante que seja, não é uma prova. Porém, também existe prova de que nossa intuição moral está correta. A prova pode ser apresentada em duas etapas. Por um lado, explicando claramente as consequências que se seguem caso alguém fosse negar a validade da instituição da apropriação original e da propriedade privada: Se uma pessoa, A, não fosse a dona de seu próprio corpo e dos lugares e bens originalmente apropriados e/ou produzidos com este corpo como também dos bens adquiridos voluntariamente (contratualmente) de outro dono anterior, então apenas duas alternativas existem. Ou outra pessoa, B, deve ser reconhecida como a dona do corpo de A, bem como dos lugares e bens apropriados, produzidos ou adquiridos por A. Ou todas as pessoas, A e B, devem ser consideradas coproprietárias iguais de todos os corpos, lugares e bens. No primeiro caso, A seria reduzido ao posto de escravo de B e seria seu objeto de exploração. B é o dono do corpo de A e dos lugares e bens apropriados, produzidos e adquiridos por A, mas A por sua vez não é o dono do corpo de B e dos lugares e bens apropriados, produzidos e adquiridos por B. Consequentemente, sob esta regra duas classes categoricamente distintas de pessoas são constituídas — Untermenschen assim como A e Übermenschen assim como B — para as quais diferentes "leis" se aplicam. Assim sendo, tal regra deve ser descartada por não ser uma ética humana igualmente aplicável a todos qua seres humanos (animal


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racional). Logo de cara, pode-se perceber que qualquer regra deste tipo não é universalmente aceitável e, portanto não pode reivindicar representar a lei. Porque para uma regra ser considerada uma lei — uma regra justa — é necessário que esta regra se aplique igual e universalmente a todos. Alternativamente, no segundo caso de copropriedade igual e universal o requerimento de lei igual para todos é preenchido. No entanto, esta alternativa sofre de outra deficiência ainda mais severa, porque se ela fosse aplicada, toda a raça humana iria perecer instantaneamente. (E uma vez que toda ética humana deve permitir a sobrevivência da raça humana, esta alternativa, então, deve ser rejeitada também.) Pois se todos os bens fossem copropriedade de todos, então ninguém, em momento ou lugar algum, teria permissão de fazer qualquer coisa a menos que ele tenha obtido previamente o consentimento de todos os outros coproprietários; e ainda, como alguém poderia dar tal consentimento se ele não fosse o dono exclusivo de seu próprio corpo (incluindo suas cordas vocais) através do qual seu consentimento deve ser expressado? Na verdade, ele iria precisar primeiro do consentimento dos outros para poder expressar seu próprio, mas esses outros não podem dar seus consentimentos sem ter o dele primeiro etc. Este insight sobre a impossibilidade praxeológica do "comunismo universal", como Rothbard se referiu a esta proposta, me leva imediatamente a uma segunda maneira alternativa de demonstrar a ideia de apropriação original e de propriedade privada como a única solução correta para o problema da ordem social. Se as pessoas possuem ou não direitos e, se possuem, quais são eles, só pode ser decidido no curso de uma argumentação (trocas proposicionais). Uma justificação — prova, conjectura, refutação — é uma justificação argumentativa. Qualquer um que tentasse negar essa proposição se veria envolvido em uma contradição performática, pois sua própria negação constituiria um argumento. Mesmo um relativista ético, portanto, deve aceitar esta primeira proposição, que tem sido adequadamente chamada de a priori da argumentação. Desta aceitação inegável — a condição axiomática — deste a priori da argumentação, duas conclusões sucessivas igualmente necessárias se seguem. A primeira deriva-se do a priori da argumentação quando não existe solução racional para o problema de conflitos que surgem a partir da existência da escassez.


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Suponha que naquela situação que descrevi do Crusoé e do Sexta-feira, Sexta-feira não fosse o nome de um homem, mas sim de um gorila. Obviamente, do mesmo modo que Crusoé pode entrar em conflitos relativos a seu corpo e o lugar que ele se encontra com o homem Sexta-feira, ele também pode com o gorila Sexta-feira. O gorila pode tentar ocupar o mesmo espaço que Crusoé já ocupa. Neste caso, contanto que o gorila seja o tipo de criatura que conhecemos como gorila, de fato não existe nenhuma solução racional para o conflito deles. Ou o gorila vence, e devora, esmaga ou expulsa Crusoé do local — esta é a solução do gorila para o problema — ou Crusoé vence, e mata, bate, expulsa ou doma o gorila — esta é a solução de Crusoé. Nesta situação, é de fato possível se falar em relativismo moral. Assim como fez Alasdair MacIntyre, um proeminente filósofo da vertente relativista, é possível fazer coro a ele na questão título de um de seus livros, Justiça de Quem? Qual Racionalidade? — do Crusoé ou do gorila. Dependendo de qual lado se escolhe, a resposta será diferente. No entanto, é mais apropriado se referir a essa situação como sendo uma em que a questão da justiça e da racionalidade simplesmente não surge: ou seja, como uma situação extra moral. A existência do gorila Sexta-feira simplesmente configura um problema técnico para Crusoé, não um problema moral. Crusoé não tem outra escolha a não ser aprender como conseguir administrar e controlar os movimentos do gorila, do mesmo modo que ele tem que aprender a administrar e controlar objetos inanimados de seu ambiente. Por consequência, somente se as duas partes de um conflito forem capazes de argumentarem entre si, é possível se falar em um problema moral e existe a questão de poder haver ou não uma solução significativa. Somente se Sexta-feira, independentemente de sua aparência física (i.e., se ele parece um homem ou um gorila), for capaz de argumentar (mesmo que ele tenha mostrado ser capaz apenas uma vez), ele pode ser considerado racional e a questão de existir ou não uma solução correta para o problema da ordem social passa a fazer sentido. Não se pode esperar que seja dada uma resposta — na verdade: qualquer resposta — a alguém que jamais fez uma pergunta, ou, mais precisamente, que jamais tenha expressado sua própria opinião relativista na forma de um argumento. Neste caso, este "outro" só pode ser considerado um, e tratado como, animal ou uma planta, i.e., como uma entidade extra moral. Somente se esta outra entidade puder, em princípio, interromper sua atividade, seja ela qual for, recuar e responder "sim" ou


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"não" a algo que alguém tenha dito, nós devemos uma resposta a essa entidade e, conforme for, temos a possibilidade de reivindicar que nossa resposta seja a correta para as duas partes envolvidas em um conflito. Além disso, positivamente o que também se segue do a priori da argumentação é que tudo aquilo que deve ser pressuposto no curso de uma argumentação — como precondições lógicas e praxeológicas da argumentação — não pode, por sua vez, ter sua validade argumentativamente contestada sem envolver, por conta disso, uma contradição interna (performática). Todavia, trocas proposicionais não são constituídas por proposições flutuando sozinhas pelo ar, e sim constituem atividades humanas específicas. Argumentação entre Crusoé e sexta-feira requer que ambos possuam, e mutuamente reconheçam um ao outro como possuidores de, controle exclusivo sobre seus respectivos corpos (seus cérebros, cordas vocais etc.) bem como do lugar ocupado por seus corpos. Ninguém poderia propor alguma coisa e esperar que a outra parte se convença sobre a validade de sua proposição ou então a negue e proponha outra coisa, a não ser que o direito de controle exclusivo dele e de seu oponente sobre seus respectivos corpos e locais já fosse pressuposto e assumido como válido. Na verdade, é precisamente este reconhecimento mútuo da propriedade do proponente e também do seu oponente sobre seus próprios corpos e locais que constitui o characteristicum specificum de toda disputa proposicional: que enquanto alguém possa não concordar com a validade de alguma proposição específica, contudo alguém pode concordar com o fato que alguém discorde. Além disso, o direito de propriedade sobre o próprio corpo e o lugar que esteja

deve

ser considerado

justificado a

priori (ou

indiscutivelmente) pelo

proponente e igualmente pelo oponente. Pois qualquer um que queira reivindicar a validade de alguma proposição vis-à-vis um oponente, já teria ter que pressupor os controles exclusivos dele e de seu oponente sobre seus respectivos corpos e lugares apenas para dizer "Eu reivindico que isto e aquilo são verdadeiros, e duvido que prove que eu esteja errado".[1] Além

do

mais,

seria

igualmente

impossível

se

envolver

em

uma

argumentação e contar com a força proposicional de seu argumento, se não fosse permitido que você possuísse (controle exclusivo) outros meios escassos (além do


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seu próprio corpo e do local que se encontra). Pois se não possuíssemos estes direitos, então todos nós iríamos morrer e o problema de se justificar regras — bem como todos os outros problemas humanos — simplesmente não existiria. Portanto, em virtude do fato de se estar vivo, direitos de propriedade sobre outras coisas devem ser pressupostos como válidos, também. Ninguém que está vivo poderia argumentar o contrário. E se não fosse permitido que uma pessoa adquirisse propriedade sobre estes bens e espaços por meio de um ato de apropriação original, i.e., estabelecendo um elo objetivo (intersubjetivamente averiguável) entre ele e um bem e/ou espaço específicos antes de qualquer outra pessoa, mas se, ao invés disso, a propriedade sobre bens ou espaços fosse concedida a quem chegasse depois, então não seria permitido a ninguém jamais começar a usar qualquer bem a não ser que ele tenha previamente obtido o consentimento destes que chegariam depois. No entanto, como alguém que chegasse depois pode consentir com as ações de alguém que chegou antes? Além disso, todos os que chegassem depois, por sua vez, precisariam do consentimento dos que chegariam ainda depois deles, e assim por diante. Ou seja, nem nós, nem nossos antepassados ou nossa prole teriam conseguido ou conseguiriam sobreviver se esta regra fosse seguida. Porém, para que uma pessoa — passada, presente ou futura — argumente qualquer coisa ela deve obviamente ser capaz de sobreviver aqui e agora; e para fazer apenas isso, direitos de propriedade não podem ser concebidos como sendo atemporais e indefinidos em relação ao número de pessoas envolvidas. Mais precisamente, direitos de propriedade devem ser concebidos como originados por ações em pontos específicos no tempo e no espaço por indivíduos específicos. Se não, seria impossível que qualquer pessoa dissesse qualquer coisa em um ponto e espaço específicos, e que qualquer outra pessoa pudesse responder. Então, meramente dizer que a regra do primeiro-usuário-primeiroproprietário da ética da propriedade privada possa ser ignorada ou é injustificável, implica em uma contradição performática, à medida que alguém ser capaz de dizer isso deve estar presuposta a existência desse alguém como uma unidade tomadora de decisões independente em um dado ponto do tempo e do espaço.


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ANARQUIA E ESTADO De tão simples que é a solução do problema da ordem social e de tanto que as pessoas, no seu dia a dia, intuitivamente reconhecem e agem de acordo com a ética da propriedade privada que acaba de ser explicada, esta solução simples e complacente acaba implicando em algumas conclusões surpreendentemente radicais.

Pois, além de rejeitar por serem injustificáveis atividades como

assassinato, homicídio, estupro, invasão, roubo, assalto, arrombamento e fraude, a ética da propriedade privada também é incompatível com a existência de um estado, definido como uma agência que possui um monopólio territorial compulsório de supremo tomador de decisões (jurisdição) e/ou o direito de cobrar impostos. A teoria política clássica, ao menos a partir de Hobbes, enxergou o estado como a própria instituição responsável pelo cumprimento da ética da propriedade privada. Ao considerar o estado injusto — na verdade, considerar "uma grande organização criminosa" — e chegando a conclusões anarquistas, Rothbard obviamente não negou a necessidade de se fazer cumprir a ética da propriedade privada. Ele não compartilhou a visão daqueles anarquistas, ridicularizados por Mises, seu professor e mentor, que acreditavam que todas as pessoas, se apenas fossem deixadas em paz, seriam criaturas boas e pacíficas. Ao contrário, Rothbard concordou plenamente com Mises que sempre existirão assassinos, ladrões, bandidos, vigaristas etc., e que a vida em sociedade seria impossível se eles não fossem punidos através da força física. Ao invés disso, o que Rothbard negou categoricamente foi a alegação de que a partir do direito e da necessidade de proteção da pessoa e da propriedade segue-se que a proteção deveria legitimamente, ou poderia efetivamente, ser fornecida por um monopolista de jurisdição e de tributação. A teoria política clássica, ao alegar isso, teve que apresentar o estado como o resultado de um acordo contratual entre detentores de propriedade privada. No entanto, explica Rothbard, isso era falso e seria uma incumbência impossível. Não é possível que um estado surja contratualmente, e correspondentemente é possível demonstrar que nenhum estado é compatível com a proteção legítima e efetiva da propriedade privada.


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A posse de propriedade privada, como o resultado de atos de apropriação original, produção ou troca realizada entre um dono anterior e um posterior, implica no direito do dono à jurisdição exclusiva sobre sua propriedade; e não é possível que um dono de propriedade privada abra mão deste direito de jurisdição suprema sobre sua propriedade e do direito de defesa física desta propriedade e o entregue a outra pessoa — a menos que ele venda ou transfira de outra forma sua propriedade (e neste caso outra pessoa possuiria a jurisdição exclusiva sobre ela). Sem dúvida, todo dono de propriedade privada pode compartilhar as vantagens da divisão do trabalho e buscar mais ou melhor proteção para sua propriedade através da cooperação com outros donos e suas propriedades.

Ou seja, todo dono de

propriedade privada pode comprar de, vender para, ou de outra forma fechar um contrato com, qualquer outra pessoa, concernente a mais ou melhor proteção da propriedade. Mas todo dono de propriedade também pode, a qualquer hora, unilateralmente cancelar qualquer dessas cooperações com outros, ou alterar suas respectivas filiações. Portanto, para que a demanda por proteção possa ser satisfeita, seria legitimamente possível e é economicamente provável que surgissem indivíduos e agências especializados que forneceriam proteção, seguro e serviços de arbitragem por uma taxa à clientes pagantes voluntários. No entanto, se é fácil conceber a origem contratual de um sistema de fornecedores de segurança concorrentes, é impossível conceber como donos de propriedade privada poderiam assinar um contrato que designe a outro agente irrevogavelmente (eternamente válido) o poder de supremo tomador de decisões relativas a sua própria pessoa e propriedade e/ou o poder de tributar. Ou seja, é inconcebível como alguém poderia algum dia concordar com um contrato que permitisse que outra pessoa determinasse permanentemente o que ele pode ou não pode fazer com sua propriedade; pois ao fazer isso esta pessoa estaria efetivamente se tornando indefessa vis-à-vis este supremo tomador de decisões. E é igualmente inconcebível como alguém poderia alguma vez concordar com um contrato que permitisse que um protetor determinasse unilateralmente, sem o consentimento do protegido, o quanto o protegido deve pagar por sua proteção. Teóricos políticos ortodoxos, i.e., estatistas, de John Locke a James Buchanan e John Rawls, tentaram solucionar este problema fazendo uso do


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expediente de constituições estatais, acordos ou contratos "tácitos", "implícitos" ou "conceituais". No entanto, todas estas tentativas tipicamente sinuosas e confusas, apenas suplementaram a mesma conclusão inevitável descrita por Rothbard: Que é impossível derivar uma justificativa para o governo a partir de contratos explícitos entre donos de propriedade privada, e, consequentemente, que a instituição do estado deve ser considerada injusta, i.e., o resultado de um erro moral. A CONSEQUÊNCIA DO ERRO MORAL Todo erro tem um custo. Isto é mais óbvio quando se tratam de erros referentes as leis da natureza. Se uma pessoa erra em relação as leis da natureza, esta pessoa não conseguirá alcançar seus objetivos. Porém, como o fracasso em alcançar objetivos deve ser arcado por cada indivíduo que errou, prevalece neste campo um desejo universal de aprender e corrigir os próprios erros. Erros morais também têm seu custo. Mas diferentemente do caso anterior, seu custo não precisa, ao menos não necessariamente, ser arcado por cada uma das pessoas que comente o erro. Na verdade, este seria o caso somente se o erro em questão fosse o de se acreditar que todo mundo teria o direito de tributar e o de ser o supremo tomador de decisões relativas a pessoa e a propriedade de todos os outros. Uma sociedade em que os membros acreditassem nisso estaria condenada. O preço a se pagar por este erro seriam a morte e a extinção universal. No entanto, a questão é nitidamente diferente se o erro envolvido é o de se acreditar que apenas uma agência — o estado — possui o direito de tributar e o de ser o supremo tomador de decisões (ao invés de todo mundo, ou então, e corretamente, de ninguém). Uma sociedade em que os membros acreditem nisso — isto é, que deve existir leis diferentes aplicadas de forma desigual a mestres e servos, tributadores e tributados, legisladores e legislados — pode de fato existir e perdurar. Este erro deve ser arcado também. Mas nem todos que o cometem devem pagar igualmente por ele. Ao invés disso, algumas pessoas terão que pagar por ele, enquanto outras — os agentes do estado — na realidade se beneficiam do mesmo erro. Portanto, neste caso seria errado assumir um desejo universal de aprender e corrigir seus erros. Pelo contrário, neste caso deverá se assumir que algumas pessoas, ao invés de aprender e promover a verdade, possuem uma motivação constante para mentir, i.e., para manter e promover inverdades mesmo se eles souberem da verdade.


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De qualquer modo, quais são as consequências "embaralhadas" e qual é o preço desigual a ser pago por se cometer esse erro e/ou mentira de se acreditar na justiça da instituição de um estado? Uma vez que o princípio do governo — monopólio judicial e poder de tributar — seja incorretamente admitido como justo, qualquer noção de restrição do poder do governo e de salvaguarda da propriedade e liberdade individuais se torna ilusória. Ao contrário, sob auspícios monopolistas o preço da justiça e da proteção aumentarão continuamente e a qualidade cairá.

Uma agência de proteção

financiada por impostos é uma contradição em termos — um protetor de propriedade expropriador — e inevitavelmente resultará em mais impostos e menos proteção. Mesmo que, assim como alguns estatistas — liberais clássicos — propuseram, um governo limitasse suas atividades exclusivamente a proteção de direitos de propriedade pré-existentes, a questão adicional de quanto de segurança deveria ser produzida iria surgir. Motivado (como qualquer um seria) pelos próprios interesses e pela desutilidade do trabalho, mas dotado do singularíssimo poder de tributar, a resposta de um agente do governo será invariavelmente a mesma: Maximizar os gastos com proteção — e praticamente toda a riqueza de uma nação pode concebivelmente ser gasta em proteção — e ao mesmo tempo minimizar a produção de proteção. Quanto mais dinheiro se puder gastar e quanto menos se precisar trabalhar para produzir, melhor será. Além disso, um monopólio judicial inevitavelmente levará a uma constante deterioração da qualidade da justiça e da proteção. Se ninguém pode apelar a justiça que não seja a do governo, a justiça será pervertida em favor do governo, não obstante constituições e supremos tribunais.

Constituições e supremos

tribunais são constituições e agências estatais, e quaisquer limitações a ação estatal que eles contenham ou julguem, serão invariavelmente decididas por agentes da própria instituição sub judice. Previsivelmente, as definições de propriedade e proteção serão continuamente alteradas e o âmbito da jurisdição continuamente expandido em favor do governo até que, finalmente, a noção de direitos humanos imutáveis e universais — e, em particular, de direitos de propriedade — desaparecerá e será substituída por uma noção de leis sendo legislações criadas pelo governo e direitos sendo concessões dadas pelo governo.


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Os resultados, todos eles previstos por Rothbard, estão diante de nossos olhos, para que todos possam vê-los. A carga de impostos que incide sobre proprietários e produtores tem crescido continuamente, fazendo com que até mesmo o fardo econômico suportado por escravos e servos pareça moderado se comparado ao atual. Os déficits do governo — e, portanto, futuras obrigações tributárias — têm subido a alturas de tirar o fôlego. Todos os pormenores da vida privada, da propriedade, comércio e contrato são regulados por montanhas cada vez maiores de legislações burocráticas. Todavia, a única tarefa que o governo supostamente deveria assumir — a de proteger nossa vida e propriedade — não é desempenhada por ele. Ao contrário, quanto mais tem aumentado o gasto em segurança social, pública e nacional, mais têm sido corroídos nossos direitos de propriedade privada, mais nossa propriedade tem sido expropriada, confiscada, destruída e depreciada. Quanto mais legislações burocráticas são produzidas, mais incertezas legais e riscos morais têm sido criados, e mais a ilegalidade tem substituído a lei e a ordem. Ao invés de proteger do crime doméstico e do agressor estrangeiro, o governo dos E.U.A., por exemplo, munido de enormes quantidades de armas de destruição em massa, ataca qualquer suposto candidato a novo Hitler em qualquer parte do mundo fora de "seu próprio" território. Em suma, ao passo que ficamos cada vez mais indefesos, empobrecidos, ameaçados e inseguros, os governantes estatais se tornam progressivamente mais corruptos, arrogantes e perigosamente armados. A RESTAURAÇÃO DA MORALIDADE Então, o que se pode fazer? Rothbard não apenas reconstruiu a ética da liberdade e explicou o atual lamaçal resultante do estatismo, como também nos mostrou o caminho que devemos trilhar a fim de restaurar a moralidade. Primeiro e mais importante de tudo, ele explicou que os estados, não importa o quão poderoso e invencível ele aparente ser, devem sua existência fundamentalmente as ideias e, uma vez que em princípio ideias podem mudar instantaneamente, os estados podem esfacelar-se e ser derrubados praticamente da noite para o dia. Sempre e em qualquer lugar, os representantes do estado são apenas uma pequena minoria da população que eles governam. A razão disto é tão simples


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quanto é fundamental: cem parasitas podem viver confortavelmente se eles sugarem o sangue de mil hospedeiros produtivos, mas mil parasitas não podem viver confortavelmente dependendo de uma população de apenas uma centena de hospedeiros. Mas se os agentes do governo são meramente uma pequena minoria da população, como eles conseguem impor suas vontades sobre a população e ainda se safar? A resposta dada por Rothbard, e também por la Boétie, Hume e Mises antes dele, é: somente graças a cooperação voluntária da maioria da população subalterna com o estado. Porém, como o estado pode assegurar tal cooperação? A resposta é: somente porque, e a medida em que, a maioria crê na legitimidade do poder estatal. Isto não quer dizer que a maioria da população deva concordar com cada uma das medidas do estado. Na verdade, ela pode muito bem acreditar que muitas das políticas estatais são erradas ou mesmo desprezíveis. No entanto, a maioria da população deve crer na justiça da instituição do estado como tal, e, consequentemente, que mesmo que um governo em particular cometa erros, estes erros são meramente acidentais e devem ser aceitos e tolerados em vista de algum bem maior provido pela instituição do governo. Todavia, como pode a maioria da população ser levada a acreditar nisso? A resposta é: com a ajuda dos intelectuais. Nos tempos antigos isso significava tentar formar uma aliança entre o estado e a igreja. Nos tempos modernos, e de forma muito mais efetiva, isso significa utilizar a nacionalização (socialização) da educação: através de escolas e universidades geridas ou subsidiadas pelo estado. A demanda que existe no mercado pelos serviços dos intelectuais, em particular na área das ciências humanas e sociais, não é exatamente alta e nem um pouco estável ou segura. Os intelectuais estariam a mercê dos valores e das escolhas das massas, e as massas geralmente não se interessam por assuntos filosóficointelectuais. O estado, por outro lado, aponta Rothbard, favorece seus egos tipicamente hiperinflados e "está disposto a oferecer aos intelectuais um nicho seguro e permanente no seio do aparato estatal; e, consequentemente, um rendimento certo e um arsenal de prestígios". E de fato, o estado democrático moderno em particular, criou uma massiva superoferta de intelectuais. Este favorecimento logicamente não garante ideias "corretas" — estatistas —, e por mais que eles sejam muito bem pagos, os intelectuais continuarão reclamando


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do quão pouco seu "tão importante" trabalho é reconhecido. Mas certamente, algo que ajuda a chegar as conclusões "corretas" é perceber que sem o estado — a instituição de tributação e legislação — seu trabalho estaria seriamente ameaçado e ele poderia ser obrigado a ter que sujar as mãos no trabalho braçal de frentista ao invés de se preocupar com problemas prementes como alienação, desigualdade, exploração, a desconstrução da diferenciação dos sexos, ou a cultura dos Tupis Guaranis, dos Zulus e dos Esquimós.

E mesmo que um deles se sinta

desprestigiado por este ou aquele governo constituído, ele percebe que uma ajuda só pode vir de outro governo, e certamente não de um ataque intelectual contra a legitimidade da instituição do governo como tal. Portanto, não é nada surpreendente que, constatando-se um fato empírico, a imensa maioria dos intelectuais contemporâneos é pra lá de esquerdista, e que mesmo os intelectuais mais conservadores ou livre mercadistas como, por exemplo, Friedman e Hayek, são fundamental e filosoficamente estatistas. A partir desta constatação sobre a importância das ideias e do papel dos intelectuais como protetores do estado e do estatismo, segue-se que o papel mais importante no processo de libertação — a restauração da justiça e da moralidade — deve ser assumido por aqueles que podemos chamar de intelectuais antiintelectuais. No entanto, fica a pergunta: como estes intelectuais anti-intelectuais podem ter êxito em deslegitimar o estado perante a opinião pública se considerarmos que a esmagadora maioria de seus colegas é formada por estatistas que farão de tudo para isolá-los e desacreditá-los, taxando-os de extremistas e malucos? O espaço aqui me permite fazer apenas breves comentários sobre esta questão, que é fundamental. Primeiro: Dado que será necessário enfrentar a oposição cruel e maliciosa de seus colegas, para que o indivíduo possa resistir e não se deixar abater é de máxima importância não basear sua posição no utilitarismo e na ciência econômica, e sim em argumentos de ordem ética e moral. Pois somente convicções morais proveem a força e a coragem necessárias para uma batalha intelectual e ideológica. Poucos se sentem inspirados ou se dispõem a aceitar sacrifícios quando estão se opondo a coisas que consideram ser meros erros ou superficialidades. Por outro lado, inspiração e coragem podem ser obtidas em grande dose se se souber que se está


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lutando contra o mal e combatendo mentiras perversas. (Retorno a este ponto brevemente). Segundo: É importante reconhecer que não é necessário convencer outros intelectuais convencionais. Como demonstrou Thomas Kuhn, isto é algo bastante raro até mesmo nas ciências naturais. Nas ciências sociais, praticamente não se conhece casos de intelectuais consagrados que abandonaram suas opiniões anteriores e se converteram. Em vez disso, os esforços devem ser concentrados naqueles jovens que ainda não se comprometeram intelectualmente; jovens cujo idealismo também os torna particularmente mais receptivos a argumentos morais rigorosos. E, da mesma maneira, deve-se ignorar o mundo acadêmico e se esforçar para alcançar o grande público (isto é, os leigos inteligentes esclarecidos), o qual, de modo geral, nutre alguns saudáveis preconceitos anti-intelectuais, que podem ser facilmente explorados. Terceiro (retornando à importância de um ataque moral contra o estado): É essencial compreender que não se pode fazer nenhuma concessão em nível de teoria.

É claro que não se deve recusar uma cooperação com pessoas que

possuam opiniões que sejam essencialmente erradas e confusas, desde que os objetivos delas possam ser classificados, clara e inequivocamente, como um passo correto em direção à desestatização da sociedade. Por exemplo, é correto cooperar com pessoas que pretendem introduzir um imposto de renda uniforme (flat) de 10% (embora não iríamos querer cooperar, por exemplo, com aqueles que gostariam de combinar esta medida com um aumento em outros impostos a fim de manter a arrecadação inalterada). No entanto, sob nenhuma circunstância esta cooperação deve levar a, ou ser obtida por meio de, uma contemporização dos próprios princípios. Ou a tributação é algo justo ou ela é injusta. E uma vez que ela seja aceita como justa, como então será possível se opor a qualquer aumento da mesma? A resposta logicamente é que não é possível! Em outras palavras, fazer concessões em nível de teoria, como vemos acontecer, por exemplo, entre liberais moderados como Hayek e Friedman, ou mesmo entre os chamados minarquistas, não apenas denota uma grande falha filosófica, como também é uma atitude, do ponto de vista prático, inútil e contraproducente. As ideias destas pessoas podem ser — e de fato são —


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facilmente cooptadas e incorporadas pelos governantes e pelos ideólogos do estado. Aliás, não é de se estranhar a frequência com que ouvimos estatistas defendendo a agenda estatista dizendo coisas como "até mesmo Hayek (Friedman) diz — ou, nem mesmo Hayek (Friedman) nega — que isto e aquilo deve ser feito pelo estado!" Pessoalmente, eles até podem ter ficado descontentes com isso, mas não há como negar que suas obras serviram exatamente a este propósito; e, consequentemente, queiram ou não, eles realmente contribuíram para o contínuo e incessante crescimento do poder do estado. Ou seja, gradualismo ou concessão teórica irá gerar apenas a perpetuação da falsidade, do mal e das mentiras do estatismo. Somente o purismo teórico, com seu radicalismo e sua intransigência, pode e irá resultar primeiro em reformas práticas e graduais, depois no aprimoramento, até finalmente chegar a uma possível vitória final. Deste modo, sendo um intelectual anti-intelectual no sentido rothbardiano, um indivíduo não deve se limitar apenas a criticar diversas tolices do governo, ainda que ele possa ter de começar por elas; ele deve sempre partir deste ponto e ministrar um ataque fundamental à instituição do estado, mostrando-o como uma afronta ética e moral. O mesmo deve ser feito com seus representantes, que devem ser expostos como fraudes morais e econômicas, bem como mentirosos e impostores — devemos sempre apontar que os reis estão nus. Particularmente, o indivíduo jamais deve hesitar em atacar o próprio núcleo da legitimidade do estado: seu suposto papel de indispensável fornecedor de segurança e proteção. Já demonstrei em termos teóricos o quão ridícula é esta alegação: como é possível uma agência que pode expropriar propriedade privada alegar ser protetora da propriedade privada? Mas tão importante quanto o ataque teórico é atacar também a legitimidade do estado em bases empíricas. Isto é, trabalhar arduamente sobre o tema de que os estados, que supostamente deveriam nos proteger, são eles próprios a instituição responsável por 200 milhões de mortes apenas no século XX — mais do que as vítimas de crimes privados em toda a história da humanidade (e este número de vítimas de crimes privados, crimes contra os quais o governo não nos protegeu, teria sido bem menor caso os governos de todos os locais e de todas as épocas não tivessem se empenhado continuamente em desarmar seus próprios cidadãos para que eles mesmos, os governos, não


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encontrassem resistência e pudessem se tornar máquinas mortíferas ainda mais eficientes)! Portanto, em vez de tratar políticos com respeito, nossa crítica a eles deveria ser significativamente intensificada: quase sem exceção, eles não são somente ladrões; são também falsificadores, corruptos, charlatães e chantagistas. Como ousam exigir nosso respeito e nossa lealdade? Mas será que uma vigorosa e distinta radicalização ideológica trará os resultados desejados? Não tenho a menor dúvida que sim. De fato, apenas ideias radicais — e, na verdade, radicalmente simples — podem incitar as emoções das massas inertes e indolentes, e deslegitimar o governo perante seus olhos. Quanto a isto, deixe-me usar uma citação de Hayek (e ao fazer isso, espero ressaltar também que minha dura crítica anterior a ele não deve ser mal entendida como uma implicação de que não se pode aprender nada com autores que sejam fundamentalmente errados e confusos): Devemos fazer novamente da construção de uma sociedade livre uma aventura intelectual, uma façanha de coragem. O que carecemos é de uma Utopia liberal, um programa que não pareça nem uma mera defesa das coisas como elas são, nem um tipo de socialismo diluído, mas um radicalismo verdadeiramente liberal que não ceda as suscetibilidades do poderoso . . ., que não seja tão rigorosamente prático e que não se limite ao que parece ser politicamente possível hoje. Precisamos de líderes intelectuais que estejam prontos para resistir as bajulações do poder e da influência e que estejam dispostos a trabalhar por um ideal, não importa o quão distante sejam os prospectos de sua realização. Eles precisam ser homens que estejam dispostos a se manter fieis a princípios e a lutar pela sua aceitação total, não importa o quão remota seja. Livre comércio e liberdade de oportunidades são ideias que ainda podem estimular a imaginação de um grande número de pessoas, mas uma mera "liberdade razoável de comércio" ou uma mera "atenuação de controles" não são nem intelectualmente respeitáveis e nem propensos a inspirar qualquer entusiasmo.... A menos que possamos novamente tornar as fundações filosóficas de uma sociedade livre um assunto intelectual vivificante, e sua implementação uma tarefa


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que desafie a perspicácia e a imaginação de nossas mais vigorosas mentes, os prospectos da liberdade serão de fato tenebrosos. Mas se pudermos recuperar a crença no poder das ideias, que era a marca do liberalismo em seu esplendor, a batalha não estará perdida.[2] Hayek logicamente não seguiu seu próprio conselho e não nos forneceu uma teoria consistente e inspiradora. Sua Utopia, conforme desenvolvida em seu Os fundamentos da liberdade, é de certa forma a desinteressante visão do estado de bem estar social sueco.

Ao contrário, é Rothbard quem fez aquilo que Hayek

reconheceu como necessário para uma renovação do liberalismo clássico; e se tem algo que pode reverter a aparentemente irreversível onda de estatismo e restaurar a justiça e a liberdade, é o exemplo pessoal dado pro Murray Rothbard e a divulgação do rothbardianismo.


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2 AS ELITES NATURAIS, OS INTELECTUAIS E O ESTADO Por Hans-Hermann Hoppe

O estado é um monopolista territorial da coerção, uma agência que pode se dedicar a violações contínuas e institucionalizadas dos direitos de propriedade e a espoliar todos os donos de propriedades privadas através da expropriação, da tributação e da regulamentação. Mas como os estados vieram a existir? Há duas teorias sobre a origem dos estados. Uma visão está associada a nomes como Franz Oppenheimer, Alexander Ruestow e Albert Jay Nock, e alega que os estados surgiram como resultado da conquista militar de um grupo sobre outro. Esta é a teoria da origem exógena do estado. Mas esta visão tem sido severamente criticada, tanto em bases históricas como em bases teóricas, por etnógrafos e antropólogos como Wilhelm Muehlmann. Essas críticas afirmam que nem todos os estados se originaram da conquista externa. Na realidade, os críticos consideram cronologicamente falsa a idéia de que os primeiros estados foram o resultado de vaqueiros nômades que se sobrepuseram sobre fazendeiros já estabelecidos. Além disso, esta visão sofre do problema teórico de que essa conquista em si parece pressupor a existência, dentre os conquistadores, de uma organização semelhante a um estado. Consequentemente, a origem exógena dos estados requer uma teoria mais fundamentada sobre as origens endógenas do estado.


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Tal teoria foi apresentada por Bertrand de Jouvenel. De acordo com sua visão, o estado é o fruto do crescimento das elites naturais: o resultado natural de transações voluntárias entre donos de propriedade privada é algo não-igualitário, hierárquico e elitista. Em todas as sociedades, alguns poucos indivíduos adquirem o status de elite através do talento. Devido às suas conquistas superiores em termos de riqueza, sabedoria e bravura, esses indivíduos ganham o reconhecimento de autoridade natural, e suas opiniões e julgamentos passam a gozar de vasto respeito. Além disso, devido ao acasalamento seletivo, o matrimônio, e às leis da herança civil e genética, as posições de autoridade natural estão fadadas a serem passadas para os herdeiros seguintes de poucas e nobres famílias, que assim mantêm sua tradição. É para os chefes dessas famílias, que têm longos e firmados históricos de conquistas supremas, sagacidade e conduta pessoal exemplar, que os homens comuns levam suas queixas e conflitos contra outros homens. Esses líderes das elites naturais agem como juízes e pacificadores, frequentemente sem cobrar nada por esse serviço, seja porque ele é considerado como uma obrigação de uma pessoa munida de autoridade, seja pela preocupação de a justiça civil estar sendo tratada como um “bem público” produzido privadamente. O pequeno, porém decisivo passo para haver a transição para um estado consiste precisamente na monopolização da função de juiz e pacificador. Isso ocorreu quando um único membro da voluntariamente reconhecida elite natural foi capaz de conseguir, não obstante a oposição dos outros membros da elite, que todos os conflitos dentro de um território especificado fossem trazidos para ele. Assim, as partes conflitantes não mais podiam escolher algum outro juiz ou pacificador. A ORIGEM DA MONARQUIA Uma vez que a origem do estado foi vista como resultado do crescimento de elites naturais, formadas por uma ordem prévia e hierarquicamente estruturada, torna-se claro por que a humanidade, a partir do momento em que esteve sujeita a qualquer tipo de governo, tem estado sob um regime monárquico (ao invés de democrático) por grande parte da história. Houve exceções, é claro: a democracia ateniense, Roma até 31 A.C., as repúblicas de Veneza, Florença e Gênova durante


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a Renascença, os cantões suíços desde 1291, as Províncias Unidas (os Países Baixos) de 1648 até 1673, e a Inglaterra sob Cromwell. Mas essas foram ocorrências raras, e nenhuma delas se assemelhava sequer remotamente aos modernos sistemas democráticos de um homem/um voto. Ao contrário, elas também eram altamente elitistas. Em Atenas, por exemplo, não mais do que 5% da população podia votar e era elegível para posições de comando. Foi apenas após o fim da Primeira Guerra Mundial que a humanidade verdadeiramente saiu da era monárquica. O PODER MONOPOLIZADO A partir do momento em que um único membro da elite natural obteve sucesso em monopolizar a função de juiz e pacificador, as leis e a execução delas se tornaram mais caras. Ao invés de serem oferecidas gratuitamente ou em troca de pagamento

voluntário,

ambas

passaram

a

ser

financiadas

por

impostos

compulsórios. Ao mesmo tempo, a qualidade das leis se deteriorou. Ao invés de preservar as antigas leis da propriedade privada e de aplicar princípios universais e imutáveis de justiça, um juiz monopolista, que não precisava temer perder clientes como conseqüência de sua parcialidade, passou a desvirtuar as leis existentes para seu próprio proveito. Como foi possível ocorrer esta pequena, porém decisiva ação de se monopolizar a lei e a ordem através de um rei, o que previsivelmente levou a preços maiores e a uma menor qualidade da justiça? Certamente, outros membros das elites naturais teriam resistido a qualquer tentativa deste tipo. No entanto, é exatamente por isso que os reis da época eventualmente se alinhavam com “o povo” ou “o homem comum”. Apelando ao sempre popular sentimento da inveja, os reis prometeram ao povo uma justiça melhor e mais barata em troca — e à custa — da tributação de seus superiores (no caso, os concorrentes do rei). Além disso, os reis recrutaram a ajuda da classe de intelectuais. Era esperado que a demanda por serviços intelectuais aumentasse à medida que o padrão de vida também aumentasse. No entanto, a maioria das pessoas estava preocupada era com assuntos terrenos e mundanos, e não viam objetivo em empreitadas intelectuais. Além da Igreja, as únicas pessoas que demandavam


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serviços dos intelectuais eram os membros da elite natural — que queriam professores para seus filhos, conselheiros pessoais, secretárias e bibliotecários. Empregos para os intelectuais eram precários e o pagamento era tipicamente baixo. Ademais, apesar do fato de que os membros da elite natural apenas raramente eram compostos de intelectuais (isto é, pessoas gastando todo o seu tempo em atividades eruditas), mas que, ao contrário, eram pessoas preocupadas apenas em conduzir empreendimentos mundanos, elas tipicamente eram pelo menos tão brilhantes quanto seus empregados intelectuais. Assim, a estima pelas conquistas de “seus” intelectuais era apenas modesta. Por isso, não é nada surpreendente que os intelectuais, que haviam inflado enormemente sua auto-imagem, se ressentissem desse fato. Como era injusto que aqueles — as elites naturais — que foram ensinados por eles fossem agora seus superiores e levassem uma vida confortável, enquanto que eles — os intelectuais — estivessem comparativamente pobres e dependentes! E justamente por isso não é de se estranhar que os intelectuais pudessem ser seduzidos facilmente por um rei que estivesse tentando se estabelecer a si próprio como o monopolista da justiça. Em troca de uma justificativa ideológica para o regime monárquico, o rei poderia oferecer aos intelectuais não apenas empregos melhores e de maior prestígio, mas sendo agora intelectuais da corte real eles poderiam finalmente dar o troco nas elites naturais por sua falta de consideração. Ainda assim, a melhora da posição da classe intelectual foi apenas moderada. Sob o regime monárquico, havia uma distinção nítida entre o governante (o rei) e os governados, e os governados sabiam que jamais poderiam se tornar governantes. Conseqüentemente, houve considerável resistência não apenas por parte das elites naturais, mas também por parte das pessoas comuns contra qualquer aumento do poder do rei. Era, portanto, extremamente difícil para o rei aumentar impostos, e com isso as oportunidades de emprego para os intelectuais permaneceram altamente limitadas. Além disso, uma vez que já estava seguramente resguardado e garantido em seu poder, o rei não tratava seus intelectuais melhor do que as elites naturais faziam. E dado que o rei controlava territórios maiores do que as elites naturais jamais chegaram a controlar, sair fora deste favorecimento real era ainda mais


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arriscado, e isso fez com que a posição dos intelectuais fosse de alguma maneira ainda mais caprichosa. Uma inspeção nas biografias dos principais intelectuais — de Shakespeare a Goethe, de Descartes a Locke, de Marx a Spencer — mostra praticamente o mesmo padrão: até quase meados do século XIX, seus trabalhos eram patrocinados por doadores privados, membros das elites naturais, príncipes, ou reis. Sempre dependendo de favores de seus patrocinadores, eles frequentemente mudavam de emprego e eram altamente móveis, em termos geográficos. Conquanto isto significasse insegurança financeira, essa situação acabou contribuindo não apenas para um cosmopolitanismo único de intelectuais (como indicada por sua proficiência em inúmeros idiomas), mas também para uma atípica independência intelectual. Se um doador ou patrocinador não mais os apoiasse, haveria muitos outros que alegremente preencheriam esse vazio. E de fato, a vida cultural e intelectual prosperou mais, e a independência dos intelectuais era a maior, nas regiões onde a posição do rei e do governo central era relativamente fraca e as elites naturais se mantiveram relativamente fortes. A ASCENSÃO DA DEMOCRACIA Uma mudança fundamental na relação entre o estado, as elites naturais, e os intelectuais ocorreu somente com a transição do regime monárquico para o democrático. Foi o inflado preço do serviço da justiça e as deturpações das leis antigas feitas por reis que se arrogavam o monopólio da justiça e da paz que motivaram a oposição histórica contra a monarquia. Mas confusões quanto às reais causas desse fenômeno prevaleceram na época. Havia aqueles que reconheciam corretamente que o problema estava nos monopólios, e não nas elites ou na nobreza. Entretanto, eles estavam em número bem menor do que aqueles que erroneamente culpavam o caráter elitista do governante pelo problema, e que defendiam a manutenção do monopólio da lei e de sua execução, porém meramente substituindo o rei e a altamente visível pompa real pelo “povo” e a suposta decência do “homem comum”. Daí advém o sucesso histórico da democracia. É irônico que o monarquismo tenha sido destruído pelas mesmas forças sociais que os reis tinham previamente estimulado e recrutado quando eles


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começaram a excluir a possibilidade de as autoridades naturais concorrentes agirem como juízes. Essas forças sociais seriam, no caso, a inveja do homem comum em relação a seus superiores e o desejo dos intelectuais de conquistar seu supostamente merecido lugar na sociedade. Quando as promessas do rei sobre uma justiça melhor e mais barata se revelaram vazias, os intelectuais apontaram a artilharia de sentimentos igualitários que os próprios reis haviam anteriormente cortejado contra esses próprios governantes monárquicos. Consequentemente, parecia lógico que os reis também deveriam ser derrubados, e que as políticas igualitárias — que os próprios monarcas haviam iniciado — deveriam ser levadas à sua conclusão suprema: o controle monopolístico do judiciário pelo homem comum. Para os intelectuais, “pelo homem comum” significava “por eles mesmos”, que assumiriam o papel de porta-voz do povo. Como a mais elementar teoria econômica poderia prever, com a transição da monarquia para o sistema democrático de um homem/um voto e a substituição do rei pelo povo, as coisas pioraram. O preço dos serviços de justiça subiu astronomicamente, enquanto a qualidade das leis se deteriorou constantemente. O que aconteceu foi que um sistema de controle privado da administração — um monopólio privado — acabou sendo substituído por um sistema de controle público da administração — um monopólio publicamente controlado. A “tragédia dos comuns” estava criada. Todos, e não apenas o rei, estavam agora autorizados a tentar roubar a propriedade privada uns dos outros. As conseqüências foram mais exploração governamental (taxação), deterioração da lei até o ponto em que a idéia de um corpo de princípios de justiça universais e imutáveis desapareceram e foram substituídos pela idéia da lei como mera legislação (leis fabricadas, ao invés de leis estabelecidas e eternamente “dadas”), e um aumento na taxa social de preferência temporal (um aumento na orientação voltada para o tempo presente, isto é, preocupação exclusiva para com o presente, em detrimento do futuro). Um rei era o proprietário de todo o território e poderia passá-lo adiante para seu filho, e por isso tentaria preservar ao máximo o seu valor. Um governante democrático sempre será apenas um zelador temporário, e por isso tentará


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maximizar a receita atual do governo de todas as formas, à custa do valor do capital alheio. Sendo assim, inevitavelmente haverá desperdícios e estragos. Eis algumas das conseqüências: durante a era monárquica anterior à Primeira Guerra Mundial, os gastos do governo como porcentagem do PIB raramente ultrapassavam 5%. Desde então, eles têm previsivelmente subido para até 50%. Antes da Primeira Guerra, os empregos públicos consistiam em menos de 3% dos empregos totais. Desde então, os números subiram para entre 15 e 20%. A era monárquica foi caracterizada por uma moeda-commodity (ouro) e o poder de compra da moeda aumentava gradualmente. Em contraste, a era democrática é a era do dinheiro de papel, cujo poder de compra tem decrescido permanentemente. Os reis, por sua vez, contraíam dívidas cada vez maiores, mas pelo menos durante períodos de paz eles reduziam sua carga devedora. Já durante a era democrática, a dívida do governo tem aumentado, tanto na guerra como na paz, a níveis inacreditáveis. As taxas de juros reais durante a era monárquica foram caindo gradualmente para algo em torno de 2,5%. Desde então, as taxas de juros reais (taxas nominais ajustadas pela inflação) aumentaram para algo em torno de 5% —igual às taxas do século XV. Legislações praticamente não existiam até fins do século XIX. Hoje, em um único ano, dezenas de milhares de leis e regulamentações são aprovadas. As taxas de poupança estão declinando ao invés de estarem aumentando com o aumento da renda, e indicadores criminais e de desagregação familiar estão constantemente se movendo para cima. O DESTINO DAS ELITES NATURAIS Enquanto o estado melhorou em muito a sua situação sob o regime democrático, ao passo que o “povo” só piorou desde que ele começou a “governar a si próprio”, o que aconteceu com as elites naturais e com os intelectuais? Em relação ao primeiro grupo, a democratização teve sucesso naquilo em que os reis começaram a fazer apenas modestamente: a destruição derradeira da elite natural e da nobreza. As fortunas das grandes famílias foram dissipadas em impostos confiscatórios, durante a vida e mesmo após a morte. A tradição de independência econômica, sagacidade intelectual e liderança moral e espiritual dessas famílias foi perdida e esquecida.


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Existem ricos atualmente, é claro, mas mais do que frequentemente eles devem suas fortunas direta ou indiretamente ao estado. Por isso, eles geralmente são mais dependentes dos favores contínuos do estado do que muitas pessoas de riqueza bem menor. Eles não mais são os típicos chefes de antigas famílias proeminentes, mas “novos ricos”. Suas condutas não são caracterizadas pela virtude, sabedoria, dignidade ou gosto, mas são o reflexo da mesma cultura proletária de massa — que preza a orientação voltada para o presente, o oportunismo e o hedonismo — que os ricos e famosos agora compartilham com todo o resto. Consequentemente — e ainda bem —, suas opiniões não têm mais peso sobre a opinião pública do que a opinião da maioria das outras pessoas. A democracia conseguiu aquilo que Keynes apenas sonhou: a “eutanásia da classe rentier“. A declaração de Keynes de que “no longo prazo todos estaremos mortos” expressa acuradamente o espírito democrático dos nossos tempos: hedonismo orientado para o presente. Mesmo sendo perverso não se pensar além da própria vida, tal pensamento se tornou característico. Ao invés de enobrecer e dignificar os proletários, a democracia acabou por proletarizar as elites e a deturpar sistematicamente o pensamento e o julgamento das massas. Por outro lado, enquanto as elites naturais estavam sendo destruídas, os intelectuais assumiram uma posição mais proeminente e mais poderosa na sociedade. De fato, eles atingiram seu objetivo quase que inteiramente, e se tornaram a classe dominante, controlando o estado e fazendo o papel do juiz que tem o monopólio das virtudes. Isso não quer dizer que políticos eleitos democraticamente são todos intelectuais (apesar de que com certeza existem atualmente mais intelectuais que se tornaram presidentes do que houve intelectuais que se tornaram reis). Afinal, o talento e a habilidade necessários para ser um intelectual são um tanto diferentes das qualidades necessárias para se ter o encanto das massas e saber angariar fundos. Mas mesmo os não-intelectuais são produtos da doutrinação feita por escolas e universidades públicas e por intelectuais com cargos públicos — e quase todos os seus conselheiros são recrutados desse reservatório.


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Quase não existem economistas, filósofos, historiadores ou sociólogos de qualidade empregados privadamente por membros da elite natural. E aqueles poucos remanescentes da velha elite que poderiam ter comprado seus serviços não mais podem bancar financeiramente esses intelectuais. Por isso, os intelectuais de hoje são tipicamente funcionários públicos, mesmo que eles trabalhem para instituições ou fundações nominalmente privadas. Por estarem completamente protegidos contra os caprichos da demanda do consumidor (“sinecura”), seus números aumentaram dramaticamente e seus salários estão, na média, bem acima de seu genuíno valor de mercado. Ao mesmo tempo, a qualidade de sua produção intelectual vem despencando constantemente. O que você irá descobrir nessas produções serão, na maioria das vezes, coisas irrelevantes e incompreensíveis. Pior, das poucas produções intelectuais que são relevantes e compreensíveis, a maioria é ferozmente estatista. Há exceções, mas dado que praticamente todos os intelectuais estão empregados nas múltiplas sucursais do estado, não deve ser nenhuma surpresa que a maioria de seus cada vez mais volumosos trabalhos será, seja por comissão ou omissão, pura propaganda estatista. Existem mais propagandistas do regime democrático atualmente do que jamais houve para o regime monárquico em toda a história da humanidade. Essa aparentemente irrefreável guinada em direção ao estatismo é bem ilustrada pelo destino da chamada Escola de Chicago: Milton Friedman, seus predecessores e seus seguidores. Nas décadas de 1930 e 40, a Escola de Chicago ainda era tida como de esquerda, e corretamente, considerando que Friedman, por exemplo, defendia a existência de um banco central e de um regime monetário baseado em um papel-moeda ao invés de em um padrão-ouro. Ele apoiava animadamente a idéia de um estado assistencialista, sendo o exemplo clássico a sua proposta de uma renda mínima garantida (imposto de renda negativo), sobre a qual ele não chegou a impor qualquer limite. Ele defendia um imposto de renda progressivo com a intenção de atingir seus objetivos explicitamente igualitários (e ele ajudou pessoalmente a implementar o imposto de renda retido na fonte). Friedman endossava a idéia de que o estado impusesse taxas com a intenção de financiar a produção de todos os bens que trouxessem externalidades positivas — ou, ao


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menos, daqueles que ele achava que iriam trazer tal efeito. Isso implica, é claro, que não há praticamente nada que o estado não possa financiar com impostos!

Além disso, Friedman e seus seguidores eram proponentes da mais superficial de todas as filosofias superficiais: o relativismo ético e epistemológico. Não existe algo como uma verdade moral suprema, e todo o nosso conhecimento factual ou empírico é, na melhor das hipóteses, apenas hipoteticamente verdadeiro. No entanto, eles nunca duvidaram de que deveria sim haver um estado, e de que esse estado deveria ser democrático. Hoje, meio século depois, tanto a Escola de Chicago como Friedman, sem que tenham mudado de maneira essencial qualquer uma de suas posições, são tidos como de direita e pró-livre mercado. E na verdade, Chicago define a linha fronteiriça da opinião respeitável da Direita política, linha essa que somente os extremistas cruzam. Essa é a magnitude da mudança na opinião pública que esses funcionários públicos trouxeram. Consideremos mais alguns indicadores de deformação estatista trazida pelos intelectuais. Se olharmos as estatísticas eleitorais, perceberemos claramente a seguinte situação: quanto maior o tempo gasto por uma pessoa em instituições educacionais — alguém com PhD, por exemplo, em relação a alguém que tenha apenas um bacharelado —, maior a probabilidade de essa pessoa ser ideologicamente estatizante. Ademais, quanto maior a quantidade de impostos utilizada para financiar a educação, menores serão as pontuações do SAT e de outras medidas similares de performance intelectual. E suspeito ainda que os padrões tradicionais de comportamento moral e de conduta civil continuarão a declinar inexoravelmente. Ou apenas considere o seguinte indicador: em 1994, nos EUA, houve uma “revolução” e o presidente do Congresso americano, o republicano Newt Gingrich, foi chamado de “revolucionário” quando ele endossou publicamente o New Deal e a Previdência Social, e louvou a legislação dos direitos civis, isto é, as ações afirmativas e a integração forçada, que são responsáveis pela quase total destruição dos direitos de propriedade privada, e pela erosão da liberdade de contrato, de


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associação e de desassociação. Que tipo de revolução é essa, em que os revolucionários animadamente aceitam as premissas estatistas e causam o presente desastre? Obviamente, isso só pode ser rotulado de revolução em um ambiente que já é estatista até a medula. HISTÓRIA & IDEIAS A situação pode parecer desanimadora, mas não é. Primeiro, deve-se reconhecer que essa situação dificilmente pode continuar para sempre. A era democrática não tem como ser “o fim da história”, como os neoconservadores querem que acreditemos, simplesmente porque há um aspecto econômico nesse processo. As intervenções no mercado inevitavelmente irão causar mais dos mesmos problemas que elas supostamente querem curar, o que levará a mais e mais controles e regulamentações até que finalmente chegaremos ao socialismo completo. Se a tendência atual continuar, pode-se seguramente prever que os estados assistencialistas da democracia ocidental irão finalmente entrar em colapso, assim como ocorreu com as “repúblicas populares” do Leste Europeu no fim dos anos 1980. Por décadas, a renda real do Ocidente se estagnou ou mesmo caiu. A dívida do governo e o custo dos esquemas de “seguridade social” trouxeram o prospecto do colapso econômico. Ao mesmo tempo, conflitos sociais se elevaram a níveis perigosos. Talvez será necessário esperar que haja um colapso econômico para que a atual tendência estatizante sofra uma mudança. Mas mesmo no caso de um colapso, algo mais é necessário. Um desarranjo não resultaria automaticamente em um recuo do estado. As coisas podem ficar ainda piores. E de fato, na recente história do Ocidente, houve apenas dois exemplos claros onde os poderes do governo central foram de fato reduzidos, mesmo que apenas temporariamente, como resultado de uma catástrofe: na Alemanha Ocidental pós-Segunda Guerra Mundial sob o comando do Chanceler Ludwig Erhard, e no Chile sob o General Pinochet. Além de uma crise, são necessárias idéias — idéias


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corretas — e homens capazes de entendê-las e implementá-las uma vez que a oportunidade surja. Mas se o curso da história não for inevitável (e não é), então uma catástrofe não é necessária e nem irrevogável. Em última instância, o curso da história é determinado por idéias, sejam elas falsas ou verdadeiras, e por homens agindo sobre — e sendo inspirados por — idéias falsas ou verdadeiras. Apenas enquanto idéias falsas estiverem comandando, uma catástrofe será inevitável. Por outro lado, uma vez que idéias corretas forem adotadas e prevalecerem na opinião pública — e idéias podem, a princípio, ser mudadas quase que instantaneamente — não será mais necessário haver qualquer catástrofe. O PAPEL DAS ELITES Isso nos leva ao papel que os intelectuais devem ter na necessária, radical e fundamental mudança da opinião pública, e ao papel que os membros das elites naturais, ou o que quer que tenha sobrado delas, também terão de ter. As exigências sobre ambos os lados são grandes, no entanto por maiores que sejam, com o intuito de prevenir uma catástrofe ou para emergir com sucesso dela, essas exigências terão de ser aceitas por ambos como sua tarefa natural. Mesmo que a maioria dos intelectuais tenha sido corrompida e seja grandemente responsável pelas perversidades atuais, é impossível haver uma revolução ideológica sem a ajuda deles. O domínio dos intelectuais públicos só pode ser quebrado por intelectuais anti-intelectuais. Felizmente, as idéias de liberdade individual,

propriedade

privada,

liberdade

de

contrato

e

de

associação,

responsabilidade e obrigações pessoais, e do poder governamental como sendo o inimigo principal da liberdade e da propriedade não irão morrer enquanto houver raça humana, simplesmente porque elas são verdadeiras e a verdade se fortalece a si própria. Além disso, os livros dos pensadores passados que expressam essas idéias não irão desaparecer. Entretanto, também é necessário haver pensadores vivos que tenham lido esses livros e que possam relembrar, reafirmar, reaplicar, afiar e fomentar essas idéias, e que sejam capazes e estejam dispostos a dar a elas uma expressão pessoal e que se oponham abertamente, ataquem e refutem seus companheiros intelectuais.


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Dessas duas exigências — competência intelectual e caráter —, a segunda é a mais importante, especialmente nestes tempos. Do ponto de vista puramente intelectual, as coisas são comparativamente fáceis. A maioria dos argumentos estatistas que ouvimos diariamente são facilmente refutadas como sendo meras tolices econômicas. Também não é raro encontrar intelectuais que pessoalmente não acreditam naquilo que eles próprios proclamam com grande fanfarronice em público. Isso não quer dizer que eles simplesmente se enganaram. Eles deliberadamente dizem e escrevem coisas que sabem não serem verídicas. A eles não falta intelecto; falta moral. Isso por sua vez implica que deve-se estar preparado para lutar não apenas contra a falsidade, mas também contra o mal — e esta é uma tarefa muito mais difícil e temerária. Além do melhor conhecimento, ela exige coragem. Sendo um intelectual anti-intelectual, pode-se esperar que subornos sejam oferecidos — e é incrível o quão facilmente algumas pessoas podem ser corrompidas: algumas centenas de dólares, uma viagem legal, uma sessão de fotos ao lado de poderosos frequentemente são mais do que suficientes para comprar alguém. Tais tentações devem ser rejeitadas como desprezíveis. Além disso, ao lutar contra o mal, deve-se estar disposto a aceitar que provavelmente nunca se obterá “sucesso”. Não haverá ganho de riquezas, não haverá promoções magníficas, não haverá prestígio profissional. E na realidade, “fama” intelectual é algo que deve ser tratado com a máxima desconfiança. E de fato, não apenas deve-se aceitar o fato de que tal pessoa será marginalizada pelo establishment acadêmico, como também ela deverá esperar que seus colegas tentarão de tudo para arruiná-la. Apenas veja o que aconteceu com Ludwig von Mises e Murray N. Rothbard. Os dois maiores economistas e filósofos sociais do século XX foram ambos inaceitáveis e não-empregáveis para o establishment acadêmico. Entretanto, por toda a suas vidas, eles nunca cederam, nem um milímetro. Eles nunca perderam a dignidade e nunca sucumbiram ao pessimismo. Ao contrário, em face de constantes adversidades, eles permaneceram destemidos e até mesmo animados, e trabalharam a um nível espantoso de produtividade. Eles estavam satisfeitos em serem devotos da verdade e de nada mais do que a verdade.


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É nesse ponto que o que restou das elites naturais entra em cena. Verdadeiros intelectuais, como Mises e Rothbard, não poderiam ter feito o que precisavam fazer não fossem as elites naturais. Apesar de todos os obstáculos, foi possível que Mises e Rothbard se fizessem ouvir. Eles não foram condenados ao silêncio. Eles conseguiram lecionar e publicar. Eles ainda foram capazes de discursar para platéias e inspirar pessoas com seusinsights e idéias. E isso não teria sido possível sem o apoio de terceiros. Mises tinha Lawrence Fertig e o William Volker Fund, que pagou seu salário na NYU, e Rothbard tinha o Ludwig von Mises Institute, que o apoiou, ajudou a publicar e promover seus livros, e forneceu a estrutura institucional que permitiu-lhe dizer e escrever o que era necessário ser dito e escrito, e que já não pode mais ser dito e escrito dentro de instituições acadêmicas e pelo establishment midiático oficial e estatista. Ainda na época da era pré-democrática, quando o espírito do igualitarismo ainda não havia destruído a maioria dos homens de riqueza independente e de independência mental e opinativa, essa tarefa de apoiar intelectuais impopulares foi levada adiante por indivíduos. Mas hoje em dia qual o indivíduo que pode, sozinho, empregar um intelectual privadamente, como seu secretário pessoal, conselheiro, ou mesmo professor para seus filhos? E aqueles poucos que ainda podem estão cada vez mais profundamente envolvidos na crescentemente corrupta aliança entre o governo e as grandes corporações — e além disso eles promovem os mesmos cretinos intelectuais que dominam o meio acadêmico estatista. Pense em Rockefeller e Kissinger, por exemplo. Assim, a tarefa de apoiar e manter vivas as verdades sobre a propriedade privada,

a

liberdade

de

contrato

e

de

associação

e

desassociação,

a

responsabilidade pessoal, e de lutar contra as falsidades, as mentiras, e os malefícios do estatismo, do relativismo, da corrupção moral e da irresponsabilidade pode hoje ser mantida apenas coletivamente, doando recursos e apoiando organizações como Mises Institute, uma organização independente, dedicada aos valores fundamentais da civilização Ocidental, inflexível, e distante, até mesmo fisicamente, dos corredores do poder. Seus programas de bolsas de estudos, aulas, publicações e conferências representam uma ilha de decência moral e intelectual em um mar de deturpação.


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Para deixar claro, a primeira obrigação de qualquer pessoa decente é para com ela mesma e sua família. Ela deveria — no livre mercado — conseguir juntar o máximo de dinheiro que puder, porque quanto mais ela conseguir, maiores os benefícios que terá levado aos seus semelhantes. Mas isso não é suficiente. Um intelectual deve estar comprometido com a verdade, mesmo que ela não tenha qualquer possibilidade de sucesso no curto prazo. Similarmente, a elite natural tem obrigações que se estendem para muito além dela própria e de suas famílias. Quanto mais sucesso os membros das elites naturais tiverem como empresários e profissionais, e quanto mais os outros reconhecerem-nos como prósperos, mais importante será que eles dêem o exemplo: que eles se esforcem para viver de acordo com os mais altos padrões de conduta ética. Isso significa aceitar como sua tarefa — na realidade como sua nobre tarefa — apoiar da maneira mais aberta, orgulhosa e generosa possível os valores que eles reconheceram como certos e verdadeiros. Eles receberão em troca a inspiração intelectual, o suporte e a força, bem como o reconhecimento de que seus nomes para sempre serão sinônimos de indivíduos excepcionais que se elevaram sobre as massas e fizeram uma contribuição duradoura para a humanidade. O Ludwig von Mises Institute pode ser uma instituição poderosa, um modelo para a restauração do genuíno aprendizado, e algo próximo a uma universidade de ensino e difusão do conhecimento. Mesmo se não chegarmos a ver nossas idéias triunfando durante nossas vidas, para sempre saberemos e estaremos eternamente orgulhosos de que fizemos o nosso máximo, e que fizemos aquilo que cada pessoa honesta e nobre teria feito.


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3 A ORIGEM DA PROPRIEDADE PRIVADA E DA FAMÍLIA Por Hans-Hermann Hoppe

É razoável começar uma análise da história humana 5 milhões de anos atrás, quando a linhagem humana evolucionária se separou da linhagem de nosso parente não-humano mais próximo, o chimpanzé. Também é razoável começar 2,5 milhões de anos atrás, com a primeira aparição do homo habilis; ou 200.000 anos atrás, quando surgiu o primeiro representante do “homem anatomicamente moderno”; ou 100.000 atrás, quando o homem anatomicamente moderno adquiriu a forma humana padrão. Entretanto, quero começar apenas 50.000 anos atrás. Esta é uma data eminentemente razoável também.

Nessa época, os

humanos já haviam desenvolvido uma linguagem completa, o que permitiu um radical aperfeiçoamento em sua capacidade de aprender e inovar, fazendo com que o “homem anatomicamente moderno” evoluísse e se transformasse no “homem de comportamento moderno”.

Isto é, o homem havia adotado o estilo de vida

do caçador-coletor, estilo esse que ainda existe até hoje em alguns pontos do mundo. Há aproximadamente 50.000 anos, o número de “humanos modernos” provavelmente não era superior a 5.000, todos confinados ao nordeste da África. Eles viviam em sociedades formadas por um pequeno número de pessoas (de 10 a 30), as quais ocasionalmente se encontravam e formavam um ajuntamento genético comum de aproximadamente 150 a 500 pessoas (tamanho esse que os geneticistas descobriram ser o necessário para se evitar efeitos disgênicos). A divisão do trabalho era limitada, com a principal separação sendo aquela entre mulheres, que atuavam principalmente como coletoras, e homens, que atuavam principalmente como caçadores. Apesar de tudo, a vida a princípio parecia ter sido boa para nossos ancestrais. Apenas algumas horas de trabalho regular permitiam uma vida confortável, com boa nutrição (alta proteína) e tempo de lazer abundante. Entretanto, a vida dos caçadores e coletores teve de enfrentar um desafio excepcional.

Sociedades baseadas na caça e na coleta viviam de maneira


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essencialmente parasítica. Isto é, eles nada acrescentavam à oferta de bens fornecida pela natureza. Eles apenas exauriam a oferta de bens. Eles não produziam (exceto algumas poucas ferramentas); apenas consumiam. Eles não cultivavam e nem criavam; simplesmente esperavam que a natureza regenerasse e repusesse o estoque de bens consumidos. O que essa forma de parasitismo gerava, portanto, era o inescapável problema do crescimento populacional. Para manter uma vida confortável, a densidade populacional tinha de permanecer extremamente baixa. Estima-se que 2,6 quilômetros quadrados de território era o mínimo necessário para sustentar confortavelmente uma ou duas pessoas; e em regiões menos férteis, eram necessários territórios ainda maiores. As pessoas podiam, é claro, tentar impedir que tal pressão populacional surgisse, e de fato as sociedades de caça e coleta fizeram o possível nesse sentido. As pessoas praticavam abortos, recorriam a infanticídios — principalmente infanticídio feminino —, e reduziam o número de gravidezes ao incorrerem em longos períodos de amamentação (o que, em combinação com a baixa gordura corporal típica de mulheres que estavam sempre em contínuo movimento, reduz a fertilidade feminina). Entretanto, embora isso aliviasse o problema, não o resolvia. E a população continuou aumentando. Dado que o tamanho da população não podia ser mantido em um nível estacionário, restavam apenas três alternativas para o crescente problema do “excesso” populacional. Podia-se abrir mão da vida de caça e coleta e encontrar uma nova forma de organização social; podia-se entrar em conflito mortal para se apossar da oferta limitada de alimentos; ou podia-se migrar. Embora a migração de modo algum fosse algo sem custos — afinal, tinha-se que trocar um território conhecido por territórios completamente desconhecidos —, ela se transformou na opção menos custosa. E foi assim que, partindo da África Oriental, sua terra natal, todo o globo foi sendo sucessivamente conquistado por grupos de pessoas que se separaram de seus familiares e foram formar novas sociedades em áreas até então nunca ocupadas por humanos. Essencialmente, esse processo era sempre o mesmo: um grupo invadia um território qualquer, a pressão populacional começava a incomodar, algumas pessoas


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permaneciam ali, e outras se mudavam para outros lugares — geração após geração. Uma vez separadas, praticamente não mais havia contato entre as várias sociedades de caça e coleta. Consequentemente, embora de início estivessem intimamente relacionadas umas às outras através de relações de parentesco direto, essas sociedades formaram concentrações genéticas separadas, e, ao longo de tempo, confrontadas com ambientes naturais diferentes e como resultado de mutações e derivações genéticas interagindo com a seleção natural, elas assumiram aparências claramente distintas. Tudo indica que esse processo também começou há aproximadamente 50.000 anos, pouco tempo depois do surgimento do “homem de comportamento moderno” e sua aquisição da habilidade de construir barcos. Dessa época até por volta de 12.000 a 11.000 anos atrás, as temperaturas globais caíram gradualmente (desde então estamos em um período de aquecimento interglacial) e os níveis dos oceanos também caíram correspondentemente. As pessoas cruzaram o Mar Vermelho no Portão das Lágrimas — que, na época, era apenas um curto espaço de água salpicada de ilhas —, e chegaram à ponta sul da península Arábica (que apresentava um período comparativamente úmido àquela época). Dali em diante, preferindo se manter em climas tropicais, para os quais o organismo havia sido adaptado, a migração continuou voltada para o leste. As viagens eram feitas na maioria das vezes em barcos, pois, até há aproximadamente 6.000 anos, quando o homem aprendeu a domar os cavalos, essa forma de transporte era muito mais rápida e mais conveniente do que viajar à pé. Assim, primeiramente a migração ocorreu ao longo do litoral — e prosseguia dali até o interior por meio de vales fluviais — até a Índia. Na Índia, aparentemente o movimento populacional se dividiu em duas direções. De um lado, ele prosseguiu contornando a península índica até o sudeste asiático e a Indonésia (que, na época, era conectada ao continente asiático), finalmente chegando ao hoje “alagado” continente de Sahul (Austrália, Nova Guiné e Tasmânia, países esses que, até 8.000 anos atrás, eram interligados por terra). Esse continente, na época, era separado do continente asiático apenas por um largo canal de água salpicado de ilhas que


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permitiam jornadas curtas entre si. Outra parte desse mesmo movimento contornou a Índia e tomou o rumo norte até a costa da China e, finalmente, até o Japão. O segundo movimento populacional, assim como o relatado acima, também se subdividiu. Uma corrente saiu da Índia e tomou a direção noroeste, passando por Afeganistão, Irã e Turquia, até finalmente chegar à Europa. A outra corrente seguiu a direção nordeste até o sul da Sibéria. Migrações posteriores, muito provavelmente ocorridas em três ondas, com a primeira ocorrendo entre 14.000 e 12.000 anos atrás, saíram da Sibéria, passaram pelo Estreito de Bering — na época (aproximadamente 11.000 anos atrás) uma ponte de terra — e chegaram ao continente americano. Apenas 1.000 anos depois, aparentemente chegaram à Patagônia. A última rota de migração partiu de Taiwan, que 5.000 anos atrás já estava ocupada, navegou pelo Pacífico e chegou às ilhas da Polinésia. E, finalmente, apenas 800 anos atrás, chegaram à Nova Zelândia. Independentemente de todos os detalhes complicados, o fato é que, a partir de um determinado momento, a massa de terra disponível para ajudar a satisfazer as necessidades humanas não mais podia ser aumentada. Para utilizar um jargão econômico, a oferta do fator de produção “terra” se tornou fixa, o que significa que todo e qualquer aumento no tamanho da população humana tinha de ser sustentado pela mesma e imutável quantidade de terra. Baseando-se na lei econômica dos retornos, sabemos que esta situação tem de resultar em um problema malthusiano. A lei dos retornos declara que, para qualquer combinação dos fatores de produção — no caso específico: terra e trabalho —, existe uma combinação ótima. Se esta combinação ótima não for seguida, isto é, se apenas um fator de produção for aumentado — no caso, o trabalho — enquanto o outro — a terra — for mantido constante, então a quantidade de bens físicos produzida não aumentará absolutamente nada ou, na melhor das hipóteses, aumentará em uma proporção muito menor do que o aumento do fator trabalho. Ou seja, tudo o mais constante, um aumento no tamanho da população para além de um determinado ponto não é acompanhado de um aumento proporcional da riqueza. Se esse ponto for ultrapassado, a quantidade per capita de bens físicos


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produzidos diminui. E o padrão de vida, na média, irá cair. Atinge-se um ponto de superpopulação absoluta. O que fazer quando confrontado com esse desafio? Das três opções previamente disponíveis como resposta a um aumento na pressão populacional — migrar, guerrear ou encontrar um novo modo de organização social —, somente as duas últimas continuavam disponíveis. Aqui irei abordar a última resposta, que é a solução pacífica. O desafio foi respondido com uma reação dupla: de um lado, por meio da economização da terra; de outro, por meio da “privatização” da produção de rebentos — em suma: por meio da instituição da família e da propriedade privada. Para entender essas reações, é preciso antes olharmos o tratamento dado ao fator de produção “terra” pelas sociedades de caça e coleta. Pode-se seguramente assumir que a propriedade privada existia dentro da estrutura de uma família tribal. A propriedade privada existia para coisas como vestimentas pessoais, ferramentas, utensílios e ornamentos. Quando tais itens eram produzidos por indivíduos específicos e identificáveis (durante seus momentos de lazer), ou eram adquiridos de seus fabricantes originais por meio de trocas ou mesmo como presentes, eles eram considerados propriedade individual. Por outro lado, quando os bens eram o resultado de algum esforço conjunto, eles eram considerados bens coletivos. Isso se aplicava de maneira mais definitiva para os meios de subsistência: aos alimentos coletados e aos animais selvagens caçados em decorrência de alguma divisão intra-tribal do trabalho. (Sem dúvida, a propriedade coletiva, desta forma, teve um papel muito proeminente nas sociedades de caça e coleta, e é por causa disso que o termo “comunismo primitivo” tem sido frequentemente empregado para descrever as economias tribais primitivas: cada indivíduo contribuía para a “renda” familiar de acordo com suas capacidades, e cada indivíduo recebia sua fatia de renda de acordo com suas necessidades.) E o que dizer sobre a terra em que todas as atividades tribais ocorriam? Pode-se seguramente descartar a hipótese de que a terra era considerada


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propriedade privada. Porém, seria ela propriedade coletiva? Tipicamente, isso tem sido assumido como verdade. Entretanto, o fato é que a terra não era nem propriedade

coletiva

nem

propriedade

privada,

mas

sim

apenas

parte

do ambiente — ou, mais especificamente, a terra possibilitava as condições gerais da ação humana. O mundo externo em que as ações do homem ocorriam pode ser dividido em duas partes categoricamente distintas. De um lado, havia aqueles elementos que eram considerados meios — ou bens econômicos; de outro lado, havia aqueles elementos que eram considerados o ambiente. São três os requerimentos para que um elemento do mundo externo seja classificado como um meio ou como um bem econômico. Primeiro, para que um elemento se torne um bem econômico, deve haver uma necessidade humana. Segundo, deve haver a percepção humana de que tal elemento é dotado de propriedades que satisfaçam essa necessidade. Terceiro, e mais importante no presente contexto, um elemento do mundo externo assim percebido deve estar sob ocontrole humano, de modo que ele possa ser empregado para satisfazer essa necessidade. Ou seja, somente se um elemento apresentar uma conexão causal com uma necessidade humana, e esse elemento estiver sob o controle humano, pode-se então dizer que essa entidade foi apropriada — tornou-se um bem — e, assim, virou propriedade de alguém. Por outro lado, se um elemento do mundo externo apresentar uma conexão causal com uma necessidade humana, porém ninguém o controla ou interfere nele, então tal elemento deve ser considerado parte de um ambiente não apropriado por ninguém — logo, não é propriedade de ninguém. Com o auxílio dessas considerações, é possível agora responder à questão a respeito do status da terra em uma sociedade de caça e coleta. Certamente, os frutos colhidos em um arbusto são propriedade privada; porém, o que dizer do arbusto de onde os frutos foram colhidos? Ele sem dúvida apresenta uma conexão causal com esses frutos. Porém, o arbusto só deixará seu status original de possibilitador das condições gerais da ação humana, e de mero fator contribuinte para a satisfação das necessidades humanas, e ascenderá ao status de propriedade e de genuíno fator de produção quando ele tiver sido


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apropriado — isto é, quando o homem tiver propositadamente interferido no processo causal e natural que interliga o arbusto aos frutos por ele produzidos. O homem pode fazer isso ao, por exemplo, regar o arbusto ou aparar seus galhos com o intuito de produzir um resultado específico: no caso, um aumento da colheita de frutos acima daquele nível que, em outros contextos, seria o obtido naturalmente. Similarmente, não há dúvidas de que o animal caçado é propriedade privada; porém, o que dizer de toda a manada da qual esse animal fazia parte? A manada deve ser considerada sem proprietário enquanto o homem ainda não tiver feito nada que possa ser interpretado (e isso está em sua própria mente) como sendo algo que crie uma conexão causal com a satisfação de uma dada necessidade. A manada se torna propriedade somente quando o pré-requisito da interferência sobre a cadeia natural de eventos (com o intuito de produzir algum resultado desejado) tiver sido satisfeito. Isso ocorreria, por exemplo, assim que o homem incorresse na prática de arrebanhar e pastorear os animais — isto é, tão logo ele efetivamente tentasse controlar os movimentos do rebanho. E o que dizer, entretanto, da terra sobre a qual o movimento controlado do rebanho ocorre? De acordo com nossas definições, esse pastor não pode ser considerado o proprietário dessa terra. Condutores de rebanho meramente seguem os movimentos naturais da manada, e sua interferência sobre a natureza restringese a manter o rebanho unido de modo a ter um acesso fácil a qualquer um dos animais caso haja a necessidade de uma maior oferta de carne animal. Condutores de rebanho não interferem na terra para controlar os movimentos da manada; eles interferem apenas nos movimentos dos membros da manada. A terra só irá se tornar propriedade quando os condutores de rebanho deixarem de ser condutores e se dedicarem à pecuária — isto é, assim que eles começarem a tratar a terra como um meio (escasso) com o intuito de controlar o movimento dos animais. Para isso, eles têm de controlar a terra. Isso requer que a terra seja de certa forma delineada, seja por meio de cercas ou pela construção de alguns outros obstáculos que restrinjam o livre fluxo natural de animais. Em vez de ser meramente um fator que contribui para a produção de rebanhos, a terra passa assim a ser um genuíno fator de produção.


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Os que essas considerações demonstram é que se trata de um erro imaginar que a terra era propriedade coletiva nas sociedades de caça e coleta. Caçadores não são condutores de rebanho e muito menos praticam a pecuária ou a criação de gado; e coletores não são jardineiros ou agricultores. Eles não exercem controle sobre a fauna e flora naturalmente ofertadas pelo ambiente, pois eles não as cultivam nem administram. Eles simplesmente se apossam das partes da natureza que estão facilmente disponíveis. Para eles, a terra nada mais é do que uma condição para suas atividades; a terra não é sua propriedade. Portanto, o que pode ser considerado o primeiro passo rumo a uma solução da armadilha malthusiana enfrentada pelo crescente número de sociedades baseadas na caça e na coleta foi precisamente o estabelecimento da propriedade sobre a terra. Pressionados pela queda no padrão de vida — resultante da superpopulação absoluta —, membros das tribos (separadamente ou coletivamente) sucessivamente se apropriaram de um número cada vez maior de terras (natureza) até então desapropriadas. Essa apropriação da terra teve um imediato efeito duplo. Primeiro, mais bens foram produzidos e, correspondentemente, mais necessidades puderam ser satisfeitas. De fato, esse efeito foi o exato motivo por trás da apropriação da terra: a constatação de que a terra possui uma conexão causal com a satisfação das necessidades humanas e que, mais ainda, ela pode ser controlada. Foi ao controlar a terra que o homem de fato começou a produzir bens ao invés de meramente consumi-los. (Importante observar que essa produção de bens também envolvia poupar e estocar bens para o consumo posterior). Segundo, e como consequência do primeiro, a maior produtividade obtida por meio da economização (racionalidade no uso) da terra possibilitou que um maior número de pessoas pudesse sobreviver com uma mesma quantidade de terra. Com efeito, foi estimado que a apropriação de terra e a correspondente mudança de uma existência baseada na caça e na coleta para uma existência baseada na agricultura e na criação de animais possibilitou que uma população de dez a cem vezes maior do que a população anterior pudesse ser sustentada com a mesma quantidade de terra. Entretanto, a economização da terra era apenas parte da solução para o problema criado pela crescente pressão populacional. Por meio da apropriação da


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terra, fez-se um uso mais eficaz da mesma, permitindo que uma população amplamente maior pudesse ser sustentada. Porém, a instituição da propriedade da terra, por si só, não afetou o outro lado do problema: a contínua proliferação de novos rebentos. Esse aspecto do problema também requeria uma solução. Era necessária a criação de uma instituição social que deixasse essa proliferação sob controle. E a instituição criada para consumar esse objetivo foi a instituição da família.

Como explicou Thomas Malthus, para solucionar o problema da

superpopulação, junto com a instituição da propriedade, o “as relações sexuais entre os gêneros” também teve de passar por mudanças fundamentais. Qual era a relação sexual entre os gêneros antes e qual foi a inovação institucional produzida nesse sentido pela família? Em termos de teoria econômica, pode-se descrever que a mudança se deu de uma situação em que tanto os benefícios de se criar descendentes — a criação de mais um produtor em potencial —

quanto

especialmente

os

custos

dessa

criação

a

criação

de

um consumidor (comedor) adicional — eram socializados, isto é, pagos por toda a sociedade e não apenas pelos “produtores” desses rebentos, para uma situação em que tanto os benefícios quanto os custos envolvidos na procriação passaram a ser internalizados pelos indivíduos diretamente responsáveis pela produção dos rebentos. Quaisquer que tenham sido os detalhes mais exatos, tudo indica que a instituição de um relacionamento monógamo estável — bem como a de um relacionamento polígamo estável — entre homens e mulheres, o que atualmente é associada ao termo família, é algo relativamente recente na história da humanidade, e foi precedido por uma instituição que pode ser amplamente definida como sendo de relações sexuais “irrestritas” ou “não reguladas”, ou mesmo de “matrimônio grupal” ou “poliamor” (algumas vezes também rotulado de “amor livre“). As relações sexuais entre os gêneros durante esse estágio da história humana não excluíam a existência de relacionamentos temporários a dois entre um homem e uma mulher. Entretanto, em princípio, toda mulher era considerada uma potencial parceira sexual para todo homem, e vice versa. Nas palavras de Friedrich Engels: “Os homens viviam em poligamia e suas mulheres simultaneamente em poliandria, e seus filhos


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eram considerados como sendo de todos eles. … Cada mulher pertencia a todos os homens, e cada homem pertencia a todas as mulheres.”

Porém, o que Engels e vários outros socialistas posteriores não perceberam em relação à glorificação do amor livre — tanto a que ocorrera no passado quanto a que supostamente viria no futuro — é o fato de que tal instituição possui um efeito direto na produção de rebentos. Como Ludwig von Mises comentou: “O fato é que, mesmo que uma comunidade socialista possa implementar o ‘amor livre’, ela não pode de maneira alguma ficar livre de procriações”. O que Mises quis subentender com esse comentário é que o amor livre tem consequências: gravidezes e descendentes. E uma prole gera benefícios e também custos. Esse dilema não seria um problema enquanto os benefícios excedessem os custos, isto é, enquanto um membro adicional da sociedade agregasse mais a ela como produtor de bens do que subtraísse dela como consumidor — e isso pode perfeitamente vir a ser o caso por algum tempo. No entanto, como ensina a lei dos retornos, essa situação não pode durar para sempre. Inevitavelmente, chegará um ponto em que os custos de rebentos adicionais irão exceder os benefícios. A partir daí, portanto, qualquer procriação adicional deve ser interrompida — contenções morais devem ser exercidas —, a menos que se queira vivenciar uma queda progressiva nos padrões de vida. Contudo, se as crianças são consideradas como sendo de todo mundo e, ao mesmo tempo, de ninguém, pois todo mundo mantém relações sexuais com todo mundo, então os incentivos para conter a procriação desaparecem ou são significativamente diminuídos. Instintivamente, em virtude da natureza biológica do ser humano, todo homem e toda mulher são impulsionados a difundir e espalhar seus genes para a próxima geração da espécie. Quanto mais rebentos um indivíduo gerar, melhor, pois mais de seus genes sobreviverão. É claro que esse instinto humano natural pode ser controlado por uma deliberação racional. Porém, se pouco ou nenhum sacrifício econômico tivesse de ser feito em decorrência dos instintos animais de cada indivíduo — porque todas as crianças seriam sustentadas pela sociedade como um


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todo —, então pouco ou nenhum incentivo existiria para se empregar a razão em questões sexuais, isto é, para se exercer a contenção moral. De um ponto de vista puramente econômico, portanto, a solução para o problema da superpopulação deveria ser imediatamente aparente. A administração das crianças — ou, mais corretamente, a curadoria das crianças — tinha de ser privatizada. Em vez de considerar as crianças como sendo propriedade coletiva da “sociedade”, ou responsabilidade da “sociedade”, ou mesmo ver o nascimento de crianças como um evento natural incontrolado e incontrolável — e, como consequência, encarar as crianças como propriedade de ninguém e não estando aos cuidados de ninguém —, as crianças tiveram de passar a ser consideradas entidades que foram produzidas privadamente e, por isso, confiadas aos cuidados privados de quem as produziu. Além do mais e finalmente: com a formação de famílias monógamas ou polígamas surgiu outra decisiva inovação. Antes, todos os membros de uma tribo formavam uma família única e uniforme, e a divisão do trabalho intra-tribal era essencialmente uma divisão do trabalho intra-familía. Com o advento da formação de famílias veio a fragmentação de uma grande família uniforme em várias famílias independentes, e com isso veio também a formação de várias propriedades privadas sobre a terra. Ou seja, a apropriação de terras anteriormente descrita não foi simplesmente uma transição de uma situação em que uma terra que antes era sem dono passou a ser propriedade, mas sim, mais precisamente, uma transição de uma situação em que uma terra até então sem dono foi transformado em propriedade de famílias separadas (permitindo assim também o surgimento da divisão do trabalho interfamílias). Consequentemente, portanto, a maior renda social possibilitada pela propriedade da terra não mais era distribuída como era anteriormente: para cada membro da sociedade “de acordo com suas necessidades”. A fatia de cada família no total da renda passou a depender do produto que cada uma imputava à economia — isto é, passou a depender do seu trabalho e da sua propriedade investidos na produção. Em outras palavras: o antes difuso “comunismo” pode até


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ter continuado existindo dentro de cada família, porém o comunismo desapareceu da relação entre os membros de famílias diferentes. As rendas das diferentes famílias eram distintas, dependentes da quantidade e da qualidade do trabalho e da propriedade investidos, e ninguém tinha o direito de reivindicar a renda produzida pelos membros de outra família. Com isso, a “carona” sobre os esforços alheios tornou-se amplamente — ou totalmente — impossível. Aquele que não trabalhasse não mais poderia esperar comer gratuitamente. Deste modo, em resposta à crescente pressão populacional, um novo modo de organização social passou a existir, substituindo aquele estilo de vida “caça e coleta” que havia caracterizado a maior parte da história. Como resumiu Ludwig von Mises:

“A propriedade privada dos meios de produção é o princípio regulador que, dentro de uma sociedade, equilibra os limitados meios de subsistência à disposição da sociedade com a bem menos limitada capacidade de aumento na quantidade de consumidores. Ao fazer com que a fatia do produto

social

de

cada

membro

da

sociedade

seja

dependente do produto economicamente imputado a ele, isto é, dependente de seu trabalho e de sua propriedade, a matança de seres humanos em decorrência da luta pela sobrevivência, como ocorre nos reinos animal e vegetal, é substituída por uma redução na taxa de natalidade em decorrência das forças sociais. A ‘contenção moral’ — as limitações sobre a produção de rebentos impostas pelas posições sociais — substitui a batalha pela existência.”


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REFERÊNCIAS HAYEK, H. Studies in Philosophy, Politics, and Economics. New York: Simon and Schuster, 1969. HOPPE, H. A Ética Rothbardiana. Instituto Mises Brasil, São Paulo. Disponível em: < http://mises.org.br/ArticlePrint.aspx?id=1437> HOPPE, H. As elites naturais, os intelectuais, e o estado. Instituto Mises Brasil, São Paulo. Disponível em: http://www.mises.org.br/ArticlePrint.aspx?id=82 HOPPE, H. A Origem da propriedade privada e da família. Instituto Mises Brasil, São Paulo. Disponível em: <http://www.mises.org.br/ArticlePrint.aspx?id=1037> HOPPE, H. Democracia: O deus que falhou.São Paulo: Instituto Ludwig Von Mises Brasil, 2012.


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SOBRE O AUTOR hans-hermann hoPPe é um membro sênior do Ludwig von Mises Institute, fundador e presidente da Property and Freedom Society e co-editor do periódico Review of Austrian Economics. Ele recebeu seu Ph.D e fez seu pós-doutorado na Goethe University em Frankfurt, Alemanha. Ele é o autor, entre outros trabalhos, de Uma Teoria sobre Socialismo e Capitalismo e The Economics and Ethics of Private Property.


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este livro Foi comPosto na tiPologia arial 12, e imPresso em PaPel oFF-white, no sistema cameron da hhh editora.


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