Heteronomia nas relações do trabalho na arquitetura contemporânea

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ENSAIO POR UMA CRÍTICA À HETERONOMIA NAS RELAÇÕES DO TRABALHO NA ARQUITETURA CONTEMPORÂNEA Análise dos processos alienantes sobre o desenho, suas influências e resultados na produção e utilização do objeto arquitetônico. UFF | EAU | TFG | 1º Sem. 2013



ENSAIO POR UMA CRÍTICA À HETERONOMIA NAS RELAÇÕES DO TRABALHO NA ARQUITETURA CONTEMPORÂNEA Análise dos processos alienantes sobre o desenho, suas influências e resultados na produção e utilização do objeto arquitetônico.

Paulo Ferreira

UFF - Universidade Federal Fluminense EAU – Escola de Arquitetura e Urbanismo Trabalho Final de Graduação – 1ºSem.|2013 Paulo José Nunes Ferreira Orientação: Glauco Bienestein Supervisão: Dinah Guimaraens



Índice Introdução

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1 | Desenho

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Da representação à simulação Crítica

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Divisão do desenho

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Produção digital

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Prescrição digital

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O desenho da forma como marca

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2 | Canteiro Trabalho e canteiro A “indústria” da construção Manufatura, migração e exploração O valor da forma como marca 3 | Produto A imagem do produto

45 46 52 54 60 65 66

Contradição e espetáculo

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Consumo e exclusão

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Espaço urbano e consumo

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Considerações finais

89

Bibliografia

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Agradecimentos

À família, aos amigos, à escola. Tudo que fez parte e continuará fazendo.



Introdução

Chamarei arquiteto aquele que, com uma razão e um método maravilhoso e preciso, sabe primeiramente dividir as coisas com seu espírito e inteligência, e em segundo lugar como associar com justeza, no curso do trabalho de construção, todos os materiais que, pelos movimentos dos pesos, pela reunião e a superposição dos corpos, podem servir eficaz e dignamente às necessidades do homem. E na realização dessa tarefa, ele terá necessidade do saber mais apurado e mais refinado.01

01

GALLIMARD, Apud BICCA, Paulo, Arquiteto, a máscara e a face, São Paulo, Projeto, 1984,p. 74-75

Introdução

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O exercício profissional em arquitetura é encarado como uma sutil habilidade de dar forma ao que se pretende entender como cultura de uma localidade, ou de um período de tempo específicos. O produto desse exercício deve provocar sensações e expectativas referentes ao modo de vida e trocas sociais. Essa habilidade, associada a um método maravilhoso, deveria então gerar um produto igualmente espetacular, refinado, digno e justo. E em seus processos, entender as trocas sociais presentes, e regulá-las com igual justeza e dignidade. No entanto, entender o trabalho do arquiteto como simples fruto de sua inteligência e espírito, sem que os mesmos sejam influenciados por fatores que lhes são heterônomos, é negar que a arquitetura, mais que fruto da razão do arquiteto, é antes de tudo produto da organização social que a contém. Desse modo, faz-se necessária uma intenção de crítica que envolva não só a capacidade inventiva do arquiteto, mas também dos fatores que implicam na adequação de sua inventividade aos anseios desses mesmos fatores externos. O presente trabalho buscará evidenciar alguns dos fatores externos que influenciam o exercício de arquitetura, e mais que isso, o resultado dessa produção condicionada e cuja influência é por si só reprodutora de um modo de pensar também condicionado à imagem que ela transmite. Traçando um panorama dos processos atuais da produção da arquitetura, pretende-se questionar o porquê da afirmação dessa imagem da arquitetura como simples resultado de jogos formais e indiferente às consequências resultantes dela.

Introdução

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Atendo-se à crítica arquitetônica, mas ao mesmo tempo rejeitando a análise formal, a proposta não é enumerar alternativas para um exercício isento de heteronomia, mas questionar a ausência de consideração aos fatores externos na crítica e prática arquitetônica, atualmente. As etapas de produção e suas particulares influências externas, além da influência de umas sobre as outras, são a pauta do trabalho. Como se relacionam, e qual o resultado dessa interação? Pretende-se então discutir como se dão hoje em dia as relações de trabalho entre essas etapas de produção. Qual o papel desse profissional que deve prever tais relações, e por outro lado, quais as consequências do profissional que está no meio dessas mesmas relações de trabalho e exploração. Para além disso, pretende-se buscar entender a reverberação desse modo de pensar a produção de arquitetura na construção e utilização da cidade. Como as intenções de controle da produção serão também controle do uso do espaço produzido, e estarão previstos desde as primeiras etapas da produção arquitetônica, não somente em sua utilização, e muito mais que isso, serão condicionantes à viabilidade dessa mesma produção.

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1 | Desenho

O desenho enfatizado por Ferro, ou, em termos mais gerais, o trabalho intelectual do arquiteto destacado por Bicca, são instrumentos de dominação do processo de construção. Eles existem sempre e tão somente em sociedades de classes. E especificamente o projeto,conhecido como desenho de um produto acabado, surge, se desenvolve e persiste na medida em que a construção passa a ter, por finalidade primeira, a reprodução e acumulação de capital. Apenas quando os processos construtivos são organizados para a extração de mais-valia, torna-se imprescindível transformar o artesão da construção em operário, isto é, romper a unidade de habilidade manual, conhecimento acumulado, imaginação e raciocínio que caracteriza o seu trabalho historicamente, para reduzi-lo a uma operação manual determinada por decisões alheias.02

02

BALTAZAR DOS SANTOS, Ana Paula; KAPP, Silke. Por uma Arquitetura não planejada: o arquiteto como designer de interfaces e o usuário como produtor de espaços. Impulso (Piracicaba), v. 17, p. 93-103, 2006.

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Da representação à simulação

A evolução das técnicas de representação em arquitetura data do Renascimento, primordialmente com Brunelleschi, que inaugurou o sistema de perspectiva na construção como um sistema científico.03 Seus desenhos procuravam trazer detalhes construtivos e aspectos gerais das construções, sem muitos detalhamentos. Os detalhes eram passados pessoalmente. Os encaixes e métodos construtivos eram estudados com maquetes em escala e representados em vistas ortogonais. Brunelleschi marca então o entendimento da arquitetura não mais como ofício artesanal, mas como expressão de um conhecimento técnico-científico, aplicando as regras de proporção da antiguidade e aperfeiçoando suas técnicas de representação gráfica. Tais aplicações das técnicas representativas contribuíram para que o conhecimento passasse a se concentrar nas mãos do arquiteto e não mais no saber prático do artesão em canteiro, origem do ofício. Como no trecho a seguir, onde Frommel (1997, p.102) recorre a um episódio para descrever o desenvolvimento dessa tendência no controle dos desenhos e, portanto, da obra:

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ARANTES, Pedro Fiori. Arquitetura na era digital-financeira: desenho canteiro e renda da forma – São Paulo, Editora 34, 2012, pg.128

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Na prática da arquitetura, Brunelleschi parece não ter ido além da estrita projeção ortogonal e das maquetes, como é sugerido pelo fato de que, ao partir para uma longa viagem, ele deixou simplesmente um desenho de fachada com seu mestre de obras, no canteiro de obras do Hospital dos Inocentes, desenhada em braccio piccolo, a unidade de escala e medida usada então em Florença. Nos seus projetos e maquetes, ele apresentava apenas o corpo do edifício, explicando os detalhes oralmente [Battisti fala, inclusive, que em dado momento, o mestre de obras foi ao encontro do arquiteto em Pistoia para tirar dúvidas] de modo que os trabalhadores frequentemente careciam de informação suficiente. É bem provável que, posteriormente, ele tenha procedido como Michelangelo, desenhando detalhes apenas quando se fizesse necessário na construção. Não há dúvida de que, ao fazê-lo, ele usava uma combinação de desenhos executivos, detalhes maquetes e moldes, porque os pedreiros ainda não dominavam o vocabulário da antiguidade.04

Esta retenção de informação caracteriza o que vamos chamar de master builder05. Brunelleschi como tal, teve seus ensinamentos vindos diretamente do canteiro. Sabia das propriedades de resistência de cada material, tinha conhecimento sobre abóbadas bizantinas e arcos romanos. O apogeu do master builder ocorreu no Renascimento, quando os arquitetos lideravam todo o processo de construção, de dentro e de fora, por meio de transformações em vários níveis: na representação e codificação do desenho, na organização dos processos de produção, na invenção de novas ferramentas e mecanismos, no aprimoramento de materiais e sua utilização, e, graças a tudo isso e ao combate a greves, a

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FROMMEL, Christoph L..Reflections on the Early Architectural Drawings in MILLON, Henry. The Renaissance from Brunelleschi to Michelangelo. The Representation of Architecture. New York: Rizzoli, 1997p.102 in MACEDO, Danilo Matoso. O papel da representação na poética de Filippo Brunelleschi, Belo Horizonte, 2000, pg. 08 05

O chamado master builder, definido por Arantes (2012) como o profissional dominante de todos os processos de produção.

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Alguns dos raros esboços de obra de Brunelleschi, para a cúpula da Basílica de Santa Maria del Fiore, em Florença, Itália (1436). À esquerda, esquemas do maquinário necessário para erguer os materiais à altura da base da cúpula e abaixo, a trama de tijolos que a forma.

fonte: www-history.mcs.st-and.ac.uk

fonte: archsoc.westphal.drexel.edu

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direção plena sobre todos os operários do canteiro.06 Novos tratados de geometria viriam a aperfeiçoar as representações de componentes da construção, como a geometria descritiva de Gaspard Monge no séc. XVIII. Ela é determinante para a representação gráfica de construção em geral que utilizamos até hoje (para arquitetura, engenharias ou design). Essa unificação das formas de representação em arquitetura permitiu que, ao longo do tempo, outras convenções específicas fossem aplicadas ao desenho, como as normas técnicas. O processo marca o desenvolvimento do desenho de arquitetura para algo menos artístico e mais próximo da produção industrial, possibilitando o parcelamento do trabalho. Ao longo do tempo, o arquiteto deixou de assumir a figura de master builder que domina os processos construtivos e os limites dos materiais e sabe como representá-lo de maneira didática ao trabalhador de canteiro, e passou então a ser um especialista em desenho, aplicando os conceitos de representação gráfica aos seus desenhos, cujas convenções são desconhecidas pelo trabalhador do canteiro. Estava posta então uma nova forma de alienação da força de trabalho, por intermédio de convenções de desenho que não sendo repassadas ao trabalhador executor das etapas construtivas, acarreta sua submissão a processos hierarquizados no canteiro, submetido a um mestre de obras que, por sua vez, é responsável por passar para ele, praticamente, o significado das convenções de desenho.07

06

ARANTES, Pedro Fiori. Arquitetura na era digital-financeira: desenho canteiro e renda da forma – São Paulo, Editora 34, 2012, pg.221 - A questão do controle sobre os operários e combate a greves, por consequência imposição de baixos salários será abordada mais tarde, por enquanto nos atenhamos aos aspectos que moldaram os procedimentos de projetação e representação que levaram à organização do trabalho intelectual atual. 07

FERRO, Sérgio. Arquitetura e trabalho livre – São Paulo, Cosac Naify, 2006, pg.116

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A aproximação do modo de produção industrial, ou apropriação dos métodos, era o que pretendiam os modernistas. O vislumbre pela dita eficiência das linhas de produção era o que os inspirava a tentar aplica-la aos processos em arquitetura. O desenho técnico deveria ser impecável, e transcrever as formas do elemento construtivo de um jeito que pudesse ser replicado em série e construído rapidamente. Tal objetivo permitiu que os desenhos fossem executados simultaneamente por vários desenhistas. A divisão do trabalho no escritório exigiu um novo conceito de produção separada do canteiro, e para tanto, o mestre de ofícios como o Brunelleschi conhecedor das particularidades construtivas, se tornou mais raro. Deu lugar a um arquiteto que controla a produção de arquitetura ainda em projeto, sob a forma do desenho prescritivo. A substituição do desenho tradicional executado nas pranchetas pelos softwares CAD (Computer Assisted Drawing) permitiu que além de simultâneos, esses desenhos de diferentes partes pudessem ser executados também de maneira remota. A rapidez de execução de um projeto é então proporcional ao número de pessoas trabalhando nele. Para o controle do projeto, fragmentado em inúmeras partes, o escritório demanda um novo tipo de arquiteto. Aquele que detém o conhecimento das particularidades da forma, mas diferentemente de Brunelleschi está muito mais longe do canteiro. O digital master builder tentará assumir o controle de todos os processos de projeto (e simulação da construção) controlando-as como uma grande biblioteca de informações do objeto arquitetônico, embora ainda lhe falte aquele conhecimento das particularidades dos materiais próprio do mestre de ofícios, por sua proximidade do canteiro.

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Desde perspectivas altamente realistas a cronogramas de obras com o orçamento detalhado, os meios digitais servirão para concentrar todas as informações da construção na figura do arquiteto (ou de seu escritório). Assim como Brunelleschi já esboçava no Renascimento, a construtibilidade estará condicionada às soluções encontradas pelo arquiteto em sua inventividade, restando ao artesão do canteiro executar todos os processos descritos em projeto. A figura do arquiteto master builder, presente na obra e responsável pela escolha de materiais e aplicação de técnicas necessárias foi, no canteiro, substituida pela figura do mestre de obras, que fica encarregado de decodificar e, por consequência, transferir os códigos e normatizações constantes no projeto desenvolvido no escritório, para os trabalhadores em contato com os materiais que vão executar a obra propriamente dita. Essa distância do arquiteto do domínio das propriedades dos materiais de sua obra evidenciará os problemas contemporâneos de incompatibilidade técnica na escolha dos materiais no projeto. Outros aspectos dos materiais, como seu potencial aspecto estético, não sua trabalhabilidade e possibilidade de adaptação, são considerados para a escolha dos mesmos. Enquanto digital master builder, ele está encarregado de planejar as etapas de montagem, quantificar as peças necessárias e orçar o custo de todas, por vezes até especificar o maquinário necessário para a construção (na maioria das vezes isso fica a cargo de outro escritório especializado). O que lhe falta é aquele conhecimento artesanal característico dos mestres de ofícios renascentistas e outros advindos do canteiro, sobre as propriedades dos materiais e suas possibilidades de adaptação e desempenho para uma aplicação específica.

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Crítica

A proposta de Sérgio Ferro é desmistificar uma visão do desenho como simples contribuição para uma proposta arquitetônica. Segundo ele o conceito carrega um significado que deveria estar presente no decorrer da produção das soluções arquitetônicas, que levasse em conta as consequências de um planejamento estritamente formal. Em sua obra intitulada ‘O canteiro e o desenho’, de 1976, onde a discussão é a relação entre o que se desenha e o que se produz em arquitetura, sob um ponto de vista de uma crítica arquitetônica que considera o desenho como uma função no processo de valorização do capital, do que fruto de alguma coerência técnica ou artística.08 Ferro teve o discurso de Artigas ‘O Desenho’ como motivação para a pesquisa. O discurso gerou uma resposta em forma de artigo, no qual criticava o discurso do mestre por não se preocupar em avaliar quais as dissociações que o desenho irá produzir nos ofícios, no canteiro de obras e na indústria. “O que ocorreu na divisão do trabalho com o aparecimento do arquiteto moderno? Quais as relações de produção que tornam possível ao desenho virar um objeto concreto? Estas não-questões da aula de Artigas (1967) serão enfrentadas posteriormente por Sérgio Ferro, em seu livro ‘O canteiro e o desenho — uma resposta ao mestre’”.09

08

FERRO, Sérgio. op. cit. pg. 105-200 ARANTES, Pedro Fiori, Arquitetura Nova: Sérgio Ferro, Flávio Império e Rodrigo Lefèvre, de Artigas aos mutirões – São Paulo, Editora 34, 2002, pg.11

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O “desenho” – como palavra, segundo veremos, traz consigo um conteúdo semântico extraordinário. Este conteúdo equipara-se a um espelho onde se reflete todo o lidar com a arte e a técnica no correr da história. É o método da linguística; do “neo-humanismo filológico e plástico, que simplesmente se inicia, mas pode vir a ser uma das formas novas de reflexão moderna sobre as atividades superiores da sociedade”. 10

Para Ferro, a crítica arquitetônica deveria romper com a simples análise formal e expor a exploração provocada pelo desenho inconsequente. Condicionado aos processos produtivos industrializados, o desenho modernista (em se tratando de 1967) procurava somente responder às questões de eficiência na produção e simples compartimentação das funcionalidades do objeto. Sua crítica se resumia a condicionar o objeto aos preceitos de forma e ordem, boa aplicação das inovações tecnológicas (para o custo da construção pelo menos) e a solução encontrada para a articulação dos espaços. Essa crítica limitava-se às obras isoladas particulares, que poderiam adquirir valor de troca através da apropriação de um conhecimento comum (enquanto preceitos de vanguarda) para uma prática direcionada a tornar o objeto construído, além de mercadoria, significado de afirmação de uma vanguarda de atuação limitada a obras burguesas e institucionais, cujo financiamento permitiria a venda dessa imagem de avanço na técnica de projetar.

10 ARTIGAS, João Batista Vilanova, Caminhos da arquitetura – Vilanova Artigas, São Paulo, Cosac Naify, 2004. Pg. 108-118

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Trancados cada vez mais nas obras isoladas e particulares (de tipo residência burguesa, loja ou clube, por exemplo) os arquitetos foram duplamente pressionados a aproveitar essa deturpação profissional que é a venda privada de um conhecimento coletivo, como angustiada e contraditória oportunidade para afirmação insistente de suas teses mais genéricas. Obras isoladas, mesquinhas no seu significado próprio, e, por fugirem ao controle direto do sistema, obras que retêm os mais amargos contrastes do mesmo sistema.11

Pretendeu então reduzir a crítica da produção de arquitetura como simples intenção, em sua essência, de produzir mercadoria através do bom uso das técnicas de desenho. Para isso, Ferro (1976) utiliza a crítica marxista e caracteriza a produção como manufatureira, em razão de seus processos e dominações, e suas diferenças para com os outros métodos de produção como o industrial, por ter capital menor. Ele também busca criticar o termo “indústria da construção” A crítica deveria transcender as análises de vanguardas arquitetônicas e procurar avaliar somente o resultado desse método de produção na exploração do trabalhador e consequente acumulação capitalista. Para tanto é necessário também reduzir o objeto arquitetônico à sua característica de mercadoria para aplicar a comparação. Por isso, o estudo de “O canteiro e desenho” transcende os períodos da produção arquitetônica e busca evidenciar como o desenho sem compromisso social, baseado apenas em dogmas formais e funcionais, influenciado por uma possível aquisição de valor de mercado, vem a provocar contradições no discurso justificativo do arquiteto sobre o seu desenho.

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FERRO, Sérgio. op. cit. pg. 50

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No fundo, pouco importam uso e funcionalidade, ex-noções perdidas em desencontros. A palavra utensílio só aparece aqui por transferência. Porque na verdade, a figura que transita é outra: o objeto arquitetônico...é consumido antes e mais nada, como mercadoria. A função fundamental do desenho de arquitetura hoje é possibilitar a forma mercadoria do objeto arquitetônico que sem ele não seria atingida (em condições não marginais).12

O desenho então é instrumento para a totalização da produção sobre o capital, que conjugará os processos de trabalho cristalizando-os no valor de mercadoria do produto. É ao mesmo tempo dependente de seu valor de mercado, e despótico ao assumir o controle dos meios de produção. E a máxima serve para qualquer desenho que tenha como objetivo primeiro a sua comercialização, e não suas funções básicas. O produto final desse desenho deve aparentar que foram simultâneos os seus processos sucessivos dispersados.

Divisão do desenho

O desenho prescritivo totalizador, separado do processo de produção e ao mesmo tempo condicionante dele, é determinante para a instauração da divisão do trabalho de arquitetura. Tem cristalizado todo o resultado desta divisão. Nesse sentido, a mercadoria oriunda dele deve valer, pelo menos, o quanto de trabalho custou para ser elaborada. É na divisão do trabalho, e ao mesmo tempo na concentração do valor do desenho enquanto espacialização do tempo produtivo13, que o capitalismo encontra meios para explorar a mais-valia, pagando menos 12

FERRO, Sérgio. op. cit. pg. 105 idem, pg. 154

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por esse fluxo de trabalho do que o que receberá pela mercadoria, ou no caso, produto arquitetônico. Entretanto, o simples desenho prescritivo não é determinante para a efetiva divisão do trabalho. É necessário também monopolizar a concepção como processo artesanal, a criatividade e inventividade em uma cúpula, superior em hierarquia àqueles que recebem o trabalho divido. Um arquiteto-estrela apenas, ou um conselho de arquitetos sêniores, que impõe a forma para que o desenvolvimento dela seja partilhado. As técnicas de representação padronizadas em geometria projetiva permitem que essa previsão do desenho, tal qual construído, seja detalhada em todos os seus métodos construtivos, divididas em um processo de montagem típico da manufatura. A divisão do elemento cristalizado como documento de trabalho, fragmentado em disciplinas diversas de especialidades múltiplas, permitirá que o mesmo seja executado simultaneamente por inúmeras equipes sem que se relacionem. A concentração do trabalho de concepção é essencial para que as outras etapas de projeto sejam privadas de sua capacidade de adaptação e inventividade, em uma manufatura da produção do desenho. Arantes (2012) comenta a divisão do trabalho em escritório: Na contradição desenho/canteiro, mesmo que o desenho separado seja o polo do trabalho intelectual, ele deixa entrever um ofício artesanal: a produção manual do desenho, com o auxílio de diversos instrumentos. Como os trabalhadores do canteiro, os arquitetos, engenheiros e desenhistas estão subdivididos em diversas especialidades e camadas profissionais, que conformam um trabalhador típico da manufatura. A habilidade artesanal esta fraturada e inserida na divisão do trabalho, que separa o profissional de parcela do seu saber. Sem participar das decisões tomadas a priori que conformam o projeto, a maioria dos profissionais desenha fragmentos do produto. São desenhos de instalações elétricas e hidráulicas, de estrutura e fundações, de paisagismo, de contenções, de detalhes de todos os tipos ou

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ainda a normatização de textos e carimbos. Apenas o arquiteto-chefe e seus auxiliares imediatos, que controlam e coordenam os trabalhos parcelares de concepção e representação, têm ideia completa do que se executa - são definidores, junto aos clientes do “partido projetual”.14

A divisão desse trabalho deveria contribuir para o acúmulo de experiências diversas e para que todos os processos fossem pensados de modo a melhorar a qualidade do produto, tendo em vista uma especialização nos processos. No entanto, contribui apenas para que se possa extrair o valor do trabalho separado, com controle centralizado exclusivo. Do contrário haveria possibilidade de ausência do desenho prescritivo, pois o saber de cada item da divisão de trabalho estaria inserido culturalmente, pela constância do exercício.15 O que se vê apesar da expectativa de uma liberdade na atribuição de soluções para o projeto, é um desenvolvimento cada vez maior dos detalhes construtivos. O objeto é praticamente todo desenhado em seus pormenores e o planejamento dos serviços e materiais necessários para sua execução é feito em escritório. Feita a concepção final da forma e separada as disciplinas específicas, o projeto vai adquirindo o detalhamento que se pretende em partes. A produção desse detalhamento exige uma série de trocas de escala (do estudo preliminar ao projeto executivo) e a produção desses desenhos em papel já exigia uma técnica apurada para se evitar retrabalhos. Cada parte contribui para que o conjunto de plantas possa permitir o planejamento total da obra, seus processos construtivos, quantitativos e orçamentos, para que o valor investido não supere o valor do objeto. 14

ARANTES, Pedro Fiori. Arquitetura na era digital-financeira: desenho canteiro e renda da forma – São Paulo, Editora 34, 2012, pg.130 15 Sobre a prática artesanal e o estímulo a criatividade, contraposto às atribuições limitadas por um exercício autômato. Ver KAPP, Silke; BALTAZAR DOS SANTOS, Ana Paula. Arquitetura livre, Projeto contínuo. A&U - Arquitetura e Urbanismo, São Paulo, v. 19, n. 123, p. 75-77, 2004.

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Esse processo é próprio de escritórios maiores, em condições de trabalho submetidas às dinâmicas do capital financeiro. Com o advento do projeto digital, estão ainda maiores e cada vez mais parecidos com escritórios de empresas de processamento de dados16, com estações de trabalho separadas e mínimo contato entre as equipes. Nos ateliês autônomos, a organização se dava de forma mais horizontal. Por se tratar de um trabalho físico, de lápis no papel, as trocas entre as disciplinas ainda era considerável apesar das intenções de extração da mais-valia. A qualidade de execução vinha da prática e do intercâmbio dentro do ateliê. Técnica essa que poderia ser comparada ao aprendizado dos artesãos, em canteiro (mas nesse caso canteiro do desenho, segundo Arantes(2002)17). No entanto, o distanciamento do canteiro vai provocar que esse conhecimento dos pormenores executivos não ultrapassará o campo da representação e deixa a desejar em se tratando do domínio dos materiais e suas propriedades. Mais ainda, a representação digital vem a limitar esse desenvolvimento da técnica de desenho, e contribuir para a separação plena das equipes de trabalho.

ARANTES, Pedro Fiori. Arquitetura na era digital-financeira: desenho canteiro e renda da forma – São Paulo, Editora 34, 2012, pg.138 17 Ver o capítulo ‘O canteiro do desenho’, onde Pedro Arantes associa a divisão dos processos de produção em escritório com a produção em canteiro, principalmente pela divisão das atribuições e controle centralizado dos processos. ARANTES, Pedro Fiori. op. cit. pg. 128-136 16

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Produção digital

Da prancheta para a tela do computador, a princípio não muda muita coisa, em se tratando da divisão do trabalho. Os desenhos ainda seriam feitos um a um na produção em computador, com a vantagem da possibilidade de correção mais rápida e sem danos ao material impresso. Desde a prancheta, o papel vegetal e a caneta nanquim, as condições de trabalho no escritório melhoraram em certa maneira, no que tange a qualidade e otimização dos processos de fabricação dos desenhos. Entretanto, houve uma perda de identidade enquanto escritório de arquitetura. Era composto de espaços para concepção formal dos projetos e para a interdisciplinaridade entre os seus componentes, mas mudou para herméticas repartições de trabalho onde a troca de informações é rara. Os problemas que havia pela insalubridade em escritório como inalação de benzina ou formol para a produção dos desenhos sobre o papel, agora substituídos por problemas de estresse, lesões por esforço repetitivo e má postura em frente ao computador, comuns em espaços de trabalho anteriormente atribuídos somente a funções mais burocráticas. Os primeiros softwares CAD (Computer-Assisted-Design) não eram exatamente para a arquitetura, eram adaptados de outros setores da produção industrial, adaptados para funcionar como prancheta digital18. As disciplinas diversas executam as partes simultaneamente sem interação, e mais ainda, essa produção poder ser feita remotamente, sem a necessidade da divisão do mesmo espaço físico. Então, perde-se toda a 18

ARANTES, Pedro Fiori. op. cit. pg. 137

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transmissão de conhecimento técnico que havia com o desenvolvimento do trabalho em ateliê. A produção de desenhos em plataforma CAD contribuiu para a automação dos processos de desenho. Bem como o desenhista trabalhava sobre a prancheta e executava a mão as plantas em papel, atendendo aos detalhamentos de projeto em suas projeções ortogonais temáticas, o ‘cadista’ faz os mesmos desenhos em linguagem digital, e reduz o tempo necessário para completar os detalhes de projeto. De certa forma, o desenho de arquitetura exige uma certa imersão nas linguagens construtivas e sistemas próprios da construção civil, diferentes de desenhos de peças mecânicas ou produtos industrializados. Então, esse profissional desenhista em um escritório muitas vezes será um arquiteto recém-formados ou um estagiário, dispostos a receber os baixos salários oferecidos.19 Os escritórios para eles licenças de software. Ao mesmo tempo, a universalização do domínio desses aparelhos e a demanda de melhores salários decorrente da experiência em escritório, fará com que esses recém-formados e estagiários estejam submetidos às relações assalariadas, efeito da automação dos processos de desenho. Arantes (2012) define: A condição de classe do arquiteto, seja ele profissional autônomo, empregador ou assalariado, não é diretamente modificada com a introdução do computador, mas pode ser alterada com a reorganização geral do setor. O crescimento dos escritórios-empresa, cada vez mais informatizados e produtivos, pode significar a redução da viabilidade dos pequenos ateliês libe-

19 Por experiência própria, posso afirmar que eu mesmo nunca trabalhei de outra forma, em se tratando de trabalhos subordinados a outro arquiteto mais experiente. Na maioria das vezes alheio ao processo de concepção e definição do programa, as atribuições dizem somente respeito à produção de desenhos que permitam a previsão do custo necessário para que a obra seja executada. Os desenhos devem conter informações sobre paginação de revestimentos, pontos de instalações elétricas, detalhes de montagem de telhados e esquadrias, tudo com o quantitativo correspondente e às vezes com o orçamento também, através de planilhas periódicas ou mesmo pesquisa de mercado.

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rais e, consequentemente, o aumento das relações de assalariamento. Ao mesmo tempo, a possibilidade de terceirização de projetos em CAD pela internet tem permitido a contratação de projetistas virtuais em várias partes do globo. Trata-se de uma forma cada vez mais disseminada de precarização das relações de trabalho, pois a contratação overseas/offshore de cadistas do terceiro mundo promove um rebaixamento geral da remuneração desses profissionais. Associada à baixa sindicalização e à perda de habilidades artesanais, ocorre uma quebra simbólica da aura da profissão, ao menos para os que se tornaram “infoproletários”. Nos EUA, os jovens arquitetos que vendem sua força de trabalho desse modo passaram a se denominar “CAD monkeys”.20

A partir desta nova dinâmica, os projetos podem ser feitos por trabalhadores em um mercado menos competitivo, como em países do terceiro mundo, que além da mão de obra mais barata, não possuíam as organizações sindicais e conquistas trabalhistas que os mais próximos da produção haviam adquirido. A concorrência desleal favoreceu a desvalorização do trabalho mecanizado dos desenhos prescritivos. Nesses casos, a estratégia é a contratação de arquitetos baseados em centros financeiros emergentes, em uma verdadeira globalização dos processos de detalhamento e representação gráfica dos projetos atribuídos aos grandes escritórios internacionais. O mesmo vale para o produto de seus desenhos, que submetidos a padrões/convenções internacionais, poderiam ser enviados a qualquer parte do mundo para a elaboração física dos detalhes prescritos em desenhos executivos. Ampliada a rede de capital da construção, a produção de itens para a montagem poderia ser feita longe do canteiro, desarticulando a classe trabalhadora da construção. O mercado de fornecedores locais também sofre perdas, mas como o capital fixo investido em construção é menor do que o industrial, essa não seria uma justificativa 20 ARANTES, Pedro Fiori. Arquitetura na era digital-financeira: desenho canteiro e renda da forma – São Paulo, Editora 34, 2012, pg.145

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fonte: www.fosterandpartners.com

A dinâmica de trabalho baseada nos recursos digitas atuais em um escritório de arquitetura se traduz em sua configuração espacial também. Acima, o escritório de Norman Foster em Londres. Abaixo, uma filial do OMA de Rem Koolhaas em Honk Kong.

fonte: www.flickr.com

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válida para um possível protecionismo de governo. Configura-se, então, uma dinâmica de capitalismo globalizado aplicada a arquitetura, onde o preço de mercado justifica as escolhas de projeto e construção, não mais o conhecimento prático cultural local ou o material disponível na localidade. Isso significava substituir a grande indústria pela produção em rede, facilitada pela informática e pelos bolsões de baixos salários, disponíveis na periferia do capitalismo para serem explorados. A série de informações e prescrições que convergia na produção da grande indústria, agora é centralizada, para depois se dispersar nas unidades de produção em rede. 21

Tal processo globalizado facilita, em termos de custo, a produção de desenhos prescritivos mais detalhados, que também incluem informações sobre o custo e desempenho dos materiais definidos em projeto. Os softwares CAD já não seriam suficientes para carregar a quantidade de informações que demanda o projeto prescritivo total, indicando a necessidade de criação/ampliação/aperfeiçoamento de mídias eletrônicas mais adequadas à produção – globalizada – da arquitetura enquanto concepção e planejamento do canteiro.

Prescrição Digital

Surge então a figura do digital master builder, que teria a função de dominar todos os processos de construção digitalmente, antes de sua fabricação. Para isso, softwares específicos tiveram que ser elaborados,

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ARANTES, Pedro Fiori. op.cit. pg.176

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incluindo as informações necessárias para o desenvolvimento da função. Recapitulando, o master builder Renascentista tinha a “função de representação e codificação do desenho, na organização dos processos de produção, na invenção de novas ferramentas e mecanismos, no aprimoramento de materiais e sua utilização”22, bem como do controle dos operários em seu canteiro. Os primeiros arquitetos a utilizar o método de trabalho ainda levarão consigo o aprendizado “à moda antiga”, dominando ainda as propriedades dos materiais e seus sistemas de montagem. É o caso de Frank Gehry, pioneiro na elaboração de um software que viria a ser o embrião do sistema BIM (Building Information Modeling), que tem a função de concentrar as informações dos edifícios, seus detalhamentos de projeto, seus quantitativos e custos. Para Gehry, a questão não era necessariamente o aperfeiçoamento das divisões do trabalho. Ele precisava comprovar que suas estruturas amórficas eram exequíveis, e quanto custaria para erguê-las. Foi necessário um esforço de seu próprio escritório junto a institutos de tecnologia que desenvolvessem um software que transcrevesse graficamente as informações de concepção de Gehry. Não somente as gráficas, mas também as informações de montagem, os ensaios de resistência e eficiência energética, necessários à viabilização do projeto. Dependendo da solução formal adotada, o escritório hoje em dia, não tem mais a possibilidade de executar um desenho mais geral de um componente do projeto e permitir que no canteiro sejam feitos os ajustes necessários empiricamente (ou como resultado da experiência pessoal do trabalhador de canteiro que a executará). As formas complexas não permitem que sejam feitos os ajustes permitidos pelo método de produção artesa22

ARANTES, Pedro Fiori. op.cit. pg.221

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nal. Segundo Arantes (op. cit.), passamos então da simples representação para um estágio de simulação.23 O escritório de Gehry é reconhecido como pioneiro no uso do modelo multidimensional de gestão de informações para a arquitetura. Esse modelo complexo, que não deve ser confundido com a mera renderização em três dimensões, passou a ser desenvolvido a partir da última década pela indústria de softwares comerciais para a construção civil sob a denominação de Building Information Modeling (BIM). Por meio dele o projeto pode ser abastecido com todas as informações que lhe são úteis, mesmo que elas não tenham representação gráfica, como num banco de dados. 24

O seu conhecimento de materiais adquirido o permitiu propor modelos de resolução das estruturas amórficas com o material adequado. Entretanto, esse modelo de controle da produção por simulação pode ser um problema para o arquiteto que não conhece as propriedades físicas de cada material. A liberdade de adotar formas únicas foi um incentivo para o desenvolvimento de vanguardas que a aplicavam pelo simples fato de criar formas únicas sem o compromisso de ordem ou forma específica, referenciadas a elas mesmas. Como sugere Ferro (2003): A plástica oficial tornou-se expressão sarcástica, depreciativa e rancorosa (sem saber disso) da liberdade proibida ao trabalho. É uma das razões do masoquismo que leva à autodestruição - por ironia (pós-modernismo) ou por catastrofismo (desconstrutivismo). Entretanto, se o desenho se desvia rumo à ornamentação por hipóstase do gesto projetual, é a aparência que continua proibida.25

23

ARANTES, Pedro Fiori. Arquitetura na era digital-financeira: desenho canteiro e renda da forma – São Paulo, Editora 34, 2012, pg.152 24 ARANTES, Pedro Fiori. op. cit. pg.154 25 FERRO, Sérgio. in Arquitetura e trabalho livre – São Paulo, Cosac Naify, 2006, pg.364

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Os problemas das escolhas por formas complexas por simples possibilidade de execução por simulação virá trazer problemas no trato do canteiro de obras e exigências aos seus trabalhadores. Iremos abordar essas questões posteriormente no capítulo “Canteiro” deste mesmo trabalho. Por ora tentaremos evidenciar o porquê do ímpeto dessas vanguardas em aplicar possibilidades que transcendem a simples funcionalidade do edifício enquanto objeto arquitetônico. Tal é a liberdade nas escolhas formais, que qualquer coisa que se queira e se consiga elaborar um plano preliminar sobre os possíveis materiais e sistemas de construção, ao mesmo tempo aplicá-los no desenho prescritivo da tela do computador, extraindo seus quantitativos e elaborando seus estudos de resistência, poderá ser escolhida como a forma do objeto arquitetônico. A forma então esconde uma cristalização do valor do trabalho em si. Só por ser complexa é que pode carregar esse efeito de exclusividade e servir como inovação tecnológica para daí então servir como marca. Nas formas disformes dos arquitetos da “vanguarda digital”, manipulações arbitrárias, aleatórias, randômicas, parcialmente automatizadas são promotoras de complexidades que têm um claro significado econômico. No limite, essas formas podem ser quaisquer, desde que sempre únicas, novas, atraentes, servindo de iscas para a valorização do capital, prontas para qualquer – ou nenhum - uso. 26

Logo, a forma não pode ser avaliada como inocente, ou seja, influenciada apenas pelas referências descritas pelo arquiteto. As justifica26 “

Sérgio Ferro fala dos paralelepípedos anônimos da arquitetura moderna de Mies van der Rohe como arquétipo da forma de “tipo-zero”. A indiferença quanto ao uso continua a mesma, mas pede agora uma forma única, e não anônima” in ARANTES, Pedro Fiori. Arquitetura na era digital-financeira: desenho canteiro e renda da forma – São Paulo, Editora 34, 2012, pg.173

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tivas vão além da simples transcendência dos limites tecnológicos, estão na afirmação de uma criatividade particular e de uma marca própria, do arquiteto ou da marca que representa, ou ainda dos dois ao mesmo tempo. Pouco importa então a sua funcionalidade ou como os processos de desenho, e posteriormente de construção, se darão. O objetivo está unificado na construção ou fortalecimento da forma como marca, para posterior vendagem dessa marca, então a forma pode abrigar qualquer funcionalidade e se torna a forma de “tipo-zero” que Ferro (1976) descreve, que pode ser qualquer se o desenho for uniforme e totalitário.27

O desenho da forma como marca

O desenho como instrumento do capital financeiro especulativo buscará sempre a obtenção da renda através de sua utilização como ícone. Superar os limites da tecnologia em seu processo de construção pode significar o alcance dessa intenção, mas as obras que produzem marcas, ou que estão associadas a elas, não estão diretamente à venda, mas seu uso como representação é o suficiente para afirmar que são expoentes de um modo de comportamento. São também suficientes para aquecer a economia onde estão situadas.28 Um modo de comportamento voltado para o aumento do consumo em geral, seja dele próprio, dos artigos que abriga ou da terra que o circunda, sobrevalorizando os lotes urbanizados à sua volta. 27

“Paralelepípedos anônimos, prontos para qualquer ou nenhum uso”, em comparação à forma institucional de tipo-zero descrita por Lévi-Strauss, in FERRO, Sérgio. Arquitetura e trabalho livre – São Paulo, Cosac Naify, 2006, pg.111 28 ver ‘Renda Juro e Fetiche’ in ARANTES, Pedro Fiori. Arquitetura na era digital-financeira: desenho canteiro e renda da forma – São Paulo, Editora 34, 2012, pg.114-122

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Ao mesmo tempo, não podemos esquecer os preceitos de necessários de viabilidade técnico-financeiros que condicionam o arquiteto, e incluir que o mesmo deverá prever e garantir os ganhos rentistas da sua obra e do entorno dela, enquanto marca e garantia de experiência única e inefável. Faz parte dessa previsão o condicionamento da localidade para que receba um novo ícone. Essa preparação está relacionada às reformas em cidades que disputam e ao condicionamento para que seus usuários ou visitantes estejam inseridos na dinâmica do consumo imposta como exigência para sua viabilidade, provocando excludentes relações na parcela da cidade em que se encontra. Para tanto, são feitos malabarismos governamentais para contratação dos arquitetos capazes de implementar uma forma de marca. Dentre eles estão as revitalizações e os megaeventos como justificativa para obras icônicas, que se aproveitam de parcerias público-privadas, de facilidades fornecidas pelos governos para que tais obras mudem ou renovem a dinâmica de desenvolvimento econômico de uma região. Logo, essa intenção de revitalizar se traduz na vontade do capital financeiro em valorizar as áreas urbanizadas e as tornarem verdadeiros espaços de fomento ao consumo. Essa questão, abordaremos novamente no capítulo “Produto” deste mesmo trabalho. Por enquanto, vamos tentar evidenciar qual o papel do arquiteto na produção desses espaços voltados para o consumo, na construção dessa imagem que gera renda e quais os condicionantes para que ele chegue a um patamar de starchitect solicitado para propor um desenho de forma difícil como solução para o cliente.

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Vale destacar que os desenhos de formas difíceis estão fora do mercado imobiliário convencional, são geralmente solicitados por grandes corporações ou governos em concorrências restritas. Dessas concorrências, irão participar escritórios de arquitetura com o potencial ou know-how para realmente impactar o local que receberá o objeto. Dificilmente um grupo menos experiente poderá ganhar uma concorrência dessas, não pela incapacidade de criar formas impactantes, mas pelo simples fato de ainda não possuir o capital necessário para garantir que a forma proposta será executada, não esquecendo de mencionar a própria “marca” dos starchitects globalizados. Coloco como capital nesse caso a extensão do escritório e a bagagem técnica que carrega. Afinal, mesmo com os programas BIM e outros adventos tecnológicos, a rede de produção do objeto amorfo é complexa o suficiente para limitar a escolha aos escritórios já internacionalizados. Sendo assim, as escolhas baseiam-se além de no potencial de rendimento da forma, no potencial de produção do escritório. No entanto, as escolhas não são tão limitadas quanto o ímpeto do starchitect em apresentar algo diferente de seus concorrentes. Nessa corrida, por vezes o conhecimento prévio não é suficiente para limitar a inventividade nos processos de concepção, e por vezes encontrará incongruências na execução da forma. Digo isso por que a forma é apresentada, defendida, escolhida e só então é que será detalhada, em nível de simulação da construção. É como no caso da Casa da Música do Porto, projeto do escritório OMA de Rem Koolhaas, que Arantes comenta:

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O projeto original vencera o concurso sem definir qual seria o material que constituiria a pele superficial do prisma irregular. A princípio, seriam chapas metálicas ou alguma superfície leve suportada por uma estrutura metálica como o baloon frame – solução que Koolhaas adotou na Biblioteca de Seattle, com uma treliça metálica envidraçada. Mas no Porto, Koolhaas resolveu fazer uma concessão à Tecnologia local mais desenvolvida, o concreto armado. Contudo, sua obra não foi concebida em função das exigências desse material, chamado a responder às formas polimórficas de uma obra cujo conceito fora desenvolvido, literalmente, de modo imaterial, na realidade virtual do computador.29

A proposta consistia em um sólido geométrico não regular, com faces inclinadas de difícil concretagem. Mais ainda, o arquiteto exigiu que fosse marcada uma grelha diagonal em toda a sua volta, o que contraria o preenchimento das formas de concreto, ou melhor dizendo, de acordo com a proposta que o fizera vencedor da concorrência, era necessário que o aspecto apresentado fosse mantido no objeto construído. Exigências resultaram de uma escolha de materiais baseada em simulações de computador, ignorando as propriedades físicas do material em troca do impacto visual pretendido. Outro projeto citado por Arantes (2012) que também merece nossa lembrança, por pecar na escolha do material que compunha a obra, é a Cidade da Cultura de Peter Eisenman, em Santiago de Compostela, Espanha. O processo de concepção no escritório de Peter Eisenman incorpora elementos da virada cibernética como automação parcial da criação, sobrepondo diagramas e outros elementos gráficos para a morfogênese de seu projeto. O resultado dessa sobreposição gera a forma a que o programa irá se encaixar.30 Com essa concepção automatizada, a escolha do material que compõe a forma definida fica em segundo pla29

ARANTES, Pedro Fiori. Arquitetura na era digital-financeira: desenho canteiro e renda da forma – São Paulo, Editora 34, 2012, pg.87 30 ver ‘A automação da forma’ in ARANTES, Pedro Fiori. op. cit. pg.161-170

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no, bem como as suas dificuldades de montagem. A megaobra de Eisenman em Santiago de Compostela é um festival de dificuldades de montagem de peças sob medida. As peças pré-fabricadas tiveram que ser todas içadas e posicionadas em altura...Algumas peças se partiam ao serem transportadas ou chegavam fora de medida, o quebra-cabeça de montagem ficava incompleto, algumas vezes paralisava toda uma frente de trabalho.31

Essas peças a que Arantes (2012) se refere são placas de pedra que configuram a forma do conjunto, que pré-concebidas no escritório, são cortadas e enviadas para montagem na obra. Para tanto, os desenhos têm de conter informações suficientes de cada peça para que seja cortada em três dimensões. As máquinas para o corte das peças funcionam através do CNC (Computer Numerical Control), e não podem ser modificadas depois em canteiro, pois não há margem de erro na simulação do computador. Além disso, as previsões em computador de quantidade da pedra necessária para o fechamento não foram condizentes com a disponível na região, esgotando a pedreira antes do final da obra. A utilização dos recursos tecnológicos para a concepção e previsão de quantitativo não pode ser dissociada do conhecimento sobre o material escolhido. Os processos digitais podem então ser aliados na proposta de forma complexa, mas sem o devido conhecimento sobre a aplicação do material escolhido, podem resultar em consequências caras para o projeto. No caso de Koolhaas, foi necessária a contratação de uma empresa de engenharia especializada em estruturas de concreto, e no de Eisenman, talvez a pedra utilizada para completar o fechamento não tenha o mesmo tom da que já foi utilizada até agora.32 31 32

ARANTES, Pedro Fiori. op. cit. pg.231

Sobre o quartzito utilizado e os 60 mil m² necessários para completara cobertura, ver ARANTES, Pedro Fiori. op. cit. pg.231

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fonte: www.panoramio.com

A liberdade de desenho na prancheta digital se traduz em complicações para a execução da forma, tal qual prescrita. Acima as paredes de concreto inclinadas da Casa da Música em Porto, Portugal, de Rem Koolhaas, que ainda exigiram uma grelha digaonal para condizer com a proposta apresentada. Abaixo, a Cidade da Cultura da Galícia, em Santiago de compostela, Espanha, cuja cobertura em quartzito cortado em CNC consumiu toda uma pedreira da região.

fonte: www.itaproject.eu

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Entretanto, podemos destacar o desempenho de Frank Gehry no domínio dos processos digitais e aplicação dos materiais. Como afirmamos aqui (em referência a Arantes 2012), Gehry foi pioneiro na função que definimos como digital master builder, e carrega como bagagem sua atuação anterior aos processos digitais. Sua concepção é simples, baseada em maquetes artesanais. O processo de digitalização se deu para viabilizar seus anseios de por em prática as formas complexas que fazia em maquete, e não como uma forma de aproveitar a liberdade que se tem no plano digital para impor uma forma ao objeto que se pretende. Suas folhas de titânio também passam por um processo de corte em CNC e por uma montagem com encaixe perfeito, mas são condizentes com a forma escolhida em projeto. Escolhas essas também influenciadas pela afirmação da marca, pela autonomização do desenho e por sensações impactantes. Segue a descrição de Arantes sobre os aspectos construtivos do museu Guggenhein de Bilbao: Visto como um edifício-escultura, não é fácil entender como foi construído, como é sua estrutura e onde ficam as salas de exposição recém-visitadas. Não há uma tectônica visível, como na arquitetura europeia tradicional, baseada na agregação e no peso da massa construída, obedecendo às leis da estática, e cujo espaço resultante é justamente o negativo dessa mesma massa. Na obra de Gehry não é a agregação que prevalece, mas a montagem de componentes leves pré-fabricados (assemblage). A pele metálica externa e o gesso acartonado interno sobrepõem-se à estrutura, que fica encoberta, ocultando sua engenhosidade.33

A estrutura funciona sem que com isso condicione o material que a recobrirá, pois o mesmo é escolhido pensando na forma que pode ser moldado. Toda a estrutura, bem como o fechamento em folhas de titânio, são peças únicas agregadas, mas sua montagem é possível, e as 33

ARANTES, Pedro Fiori. Arquitetura na era digital-financeira: desenho canteiro e renda da forma – São Paulo, Editora 34, 2012, pg.28

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condições planejadas em escritório para que os processos sejam feitos just-in-time no canteiro. Os problemas de montagem não serão decorrentes do desenho que desconsidera o material, mas sim do sistema construtivo baseado em peças cortadas em CNC que condiciona o trabalhador de canteiro a uma atuação automatizada e com possibilidade de adaptação nula. O artigo “How to make a Frank Gehry building”, baseado em depoimentos de operários que trabalharam em suas obras, descreve algumas delas: “os trabalhadores não podem confiar na sua experiência e intuição para acertarem, pois devem obedecer apenas ao comando da máquina. Cada peça encaixa em um espaço reticulado imaginário, ditado pelas coordenadas do software. Nem um único erro é permitido, sob pena das demais peças não encaixarem ao final”. Dada a precisão dos cortes em CNC, a menor imperfeição pode comprometer todo o conjunto.34

A tecnologia aplicada ao desenho não contribui para a eficiência do trabalho de canteiro, nem tampouco para uma liberdade de adaptação às questões de obra. Pelo contrário, condiciona a execução a um planejamento que por sua vez está condicionado à tecnologia que será usada e que a mesma está ainda condicionada à viabilização financeira das inovações tecnológicas propostas. Essa cadeia configura um quadro em que mesmo com a produção do desenho e dos componentes da construção automatizados, ainda se faz necessário o emprego do trabalho vivo na execução dos processos, pois automatizar toda a produção em canteiro seria inviável, não do ponto tecnológico, mas do comercial. Dividir os trabalhos e explorar mais-valia em cada processo de montagem é então essencial para tornar possíveis as formas complexas prescritas digitalmente.

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ARANTES, Pedro Fiori. op. cit. pg. 236

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“No capitalismo, esse trabalhador coletivo só existe enquanto tal porque sua separação, na divisão do trabalho, e sua posterior totalização, em um produto, são comandadas pelo capital e seus intermediários. Daí a existência de uma heteronomia do trabalhador não imposta pela máquina, mas pela violência e pelas formas de afastamento do que faz, como a geometria sábia do desenho do arquiteto e as superfícies polidas que apagam o rastro do trabalho dos demais construtores.”35

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ARANTES, Pedro Fiori. Arquitetura na era digital-financeira: desenho canteiro e renda da forma – São Paulo, Editora 34, 2012, pg.181

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Trabalho e canteiro

O papel do trabalhador de canteiro nos métodos mais arcaicos de construção é de um profissional que domina os processos construtivos e tem liberdade para aplicar e transmitir seus conhecimentos técnicos, frutos da interação com seus “mestres-artesãos”, mais experientes, que lhe passavam o ofício durante a prática construtiva, que costumava ser também um campo de experimentação e de troca de conhecimento. À medida que participa de mais obras, o trabalhador inclui em seu repertório as soluções e adaptações que aprendeu em sua experiência de vida. Como qualquer artesão, o profissional de canteiro detinha a liberdade de imprimir a técnica que lhe fora ensinada culturalmente para executar um planejamento que lhe fora sugerido36. A sua cultura e os materiais disponíveis determinavam como a técnica seria aplicada e quais eventuais adaptações deveriam ser feitas para aproximarem-se do resultado esperado pelo desenho proposto. Essa troca de experiências entre os pedreiros acontece principalmente na construção de sua própria casa, ou de seus vizinhos. Sendo um espaço de produção arcaica e sem o objetivo principal acumulação de bens (pelo menos no início da produção, quando ainda é por necessidade de moradia)37, a construção da casa popular será o reduto de suas adaptações com os materiais que lhe estarão disponíveis. A técnica, não será aquela aplicada no canteiro das obras maiores, condicionada à presença de um mestre de obras que saiba interpretar os desenhos que saem 35 ver ‘O desenho’ em ‘O canteiro e o desenho’. FERRO, Sérgio. Arquitetura e trabalho livre – São Paulo, Cosac Naify, 2006, pg.151 36 ver ‘A produção da casa no Brasil’ .FERRO, Sérgio op. cit. pg. 62-67

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do escritório, mas uma experimentação que é fruto de sua cultura local, como sugere Ferro: A técnica utilizada, mais do que aprendida, é vista, vivida, absorvida por contínua vizinhança. Faz parte do conhecimento popular quase espontâneo, que todos herdam, simples prática compatível com nenhuma especialização.38

A liberdade de atuação e a efetiva aplicação do saber fazer não serão suficientes para classificar o canteiro arcaico como efetivo suficiente para suprir as demandas de produção das cidades, em plena explosão demográfica e adensamento de meados do século XX. Logo se fez necessária uma nova forma de produção, modificando as relações econômicas, a fabricação dos materiais componentes (nesse momento, industrializados e padronizados), e os regimes de trabalho.39 A discussão sobre a efetividade do canteiro arcaico toma forma a partir do modernismo, quando se começou a questionar a organização da obra, a princípio com a intenção de aplicar os métodos industriais de produção no canteiro de obras. Nas palavras de Le Corbusier: “A experiência de Ford, repetidas em mil atividades do mundo moderno, na industriosa produção, nos dá a lição. Aceitemos a lição”.40 Essa intenção foi aplicada nas metodologias de desenho, que passaram a respeitar dimensões industrializadas para as peças construtivas, e aproximar a representação gráfica de um detalhamento próprio de produtos industrializados. O desenho então condiciona a atividade em canteiro como totalizador dos processos necessários para a produção de

FERRO, Sérgio op. cit. pg. 62 KAPP, Silke; BALTAZAR DOS SANTOS, Ana Paula. Arquitetura livre, Projeto contínuo. A&U - Arquitetura e Urbanismo, São Paulo, v. 19, n. 123, p. 75-77, 2004. 40 Le Corbusier, Quand les cathédrales etaient blanches. Paris: Gonthier, s/d, in FERRO, Sérgio. op. cit. pg. 136

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Processos de concepção digitais por vezes implicam em complexidade na montagem do canteiro de obras, pela liberdade em aplicar forma a um material virtual. Ao lado fases de concepção da Casa da Música de Rem Koolhaas. Abaixo, o canteiro de obras da mesma, com ênfase no volume de escoramentos necessários para atender às exigências da forma definida.

fonte: theputnamprogram.wordpress.com

fonte: theputnamprogram.wordpress.com

fonte: www.peri.com

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sua forma, que por sua vez oculta os traços do trabalho parcelado contido nela. O problema é que os métodos de produção industrial como o Fordismo/Taylorismo são instrumentos de controle de trabalho que demandam da indústria uma constância que os canteiros de obras não têm. Tomar o trabalho de um operário da construção como o trabalho de um funcionário de linha de montagem industrial não é possível se o canteiro não possui o “maquinário” necessário para ser comparável a uma linha de montagem. Além disso, as particularidades de cada construção não permitem que sejam empregados os mesmos meios de produção para diferentes formas. Arantes (2012) define com o paradoxo seguinte: “O paradoxo talvez pudesse ser assim resumido: a produção de uma merca doria imóvel, sob a forma manufatureira, mostrava-se inesperadamente flexível (móvel), enquanto a produção da mercadoria móvel, na era industrial fordista, havia se tornado padronizada e invariável (imóvel).”41

Visto que a industrialização do canteiro não necessariamente aumenta sua efetividade, podemos então definir quais os reais objetivos da tentativa de implantá-lo. Na verdade, o sistema de linha de produção não pode ser aplicado pelas circunstâncias que já comentamos, mas o canteiro contemporâneo conseguiu assimilar fatores da produção industrial. A imposição do desenho sobre o trabalho manual e individual é um deles. O trabalho autônomo, característico da produção arcaica, é coletivizado através da divisão do trabalho, tal qual a produção industrial e, num certo sentido, totalizada sob a forma de produto acabado, sem quaisquer traços da participação individual de cada alimentador da ca41

ARANTES, Pedro Fiori. Arquitetura na era digital-financeira: desenho canteiro e renda da forma – São Paulo, Editora 34, 2012, pg.185

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deia de produção. Mesmo não sendo a cadeia um conjunto de processos simultâneos e os produtos diferentes entre si. Essas diferenças levam a uma conclusão sobre o controle da produção no canteiro. Se não é o capital industrial da construção fundamental para sistematizar a divisão do trabalho em etapas heterogêneas, o desenho do produto e sua representação técnica é o que concentra o saber executivo o trabalhado autômato do canteiro. As técnicas de representação de desenhos para formas complexas que saem dos escritórios condicionam a execução ao planejamento intelectual do arquiteto, e as ditas adaptações também estão nos seus detalhamentos de desenho, não mais do conhecimento adquirido pelo trabalhador de canteiro em sua execução. Um exemplo claro desse condicionamento aos processos de divisão de trabalho em canteiro e dispensa do saber individual do trabalhador é a difusão da utilização do concreto armado, que dispensa o trabalho artesanal de carpinteiros e pedreiros Ao mesmo tempo em que condiciona a alvenaria ao quadro estrutural de vigas e pilares, limita a atuação do carpinteiro à fabricação de formas para as peças de concreto, que não farão parte do produto acabado. As tramas de tijolos aparentes e autoportantes dão lugar a simples fechamentos. O trabalho manual fica invisível após a montagem das fiadas e aplicação de revestimento (agora também necessário para dar resistência ao conjunto ‘tijolo furado+argamassa’). Ferro (2003) aborda a questão em seu texto “O concreto como arma”, e Arantes (2012) comenta:

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O pedreiro foi, na virada do século XIX para o XX, uma das categorias mais importantes do sindicalismo revolucionário. Saber e poder operários estavam associados, e não casualmente, pois a arquitetura desse período - de tijolos aparentes - era comandada, em grande medida, de dentro do canteiro. Como afirma Sérgio Ferro, “a alvenaria de tijolos de barro denota a eficácia da prática e as competências reunidas no saber fazer operário”, daí a disposição do capital em destruí-las. Em seu texto “O concreto como arma”, ele percebe como esse é um “material que deve, em parte, sua existência e seu sucesso ao fato de que arruína indiretamente a força (política) do saber fazer dos pedreiros e dos carpinteiros do fim do séc. XIX”42

Temos então um quadro onde as evoluções tecnológicas contribuem para efetivar o controle da produção pela divisão do trabalho, no sentido de extrair a mais-valia em canteiro ao privar o trabalhador de seu saber-fazer. Qualquer aplicação de nova tecnologia servirá para especificar cada processo necessário e unificar o trabalho manual em trabalho coletivo como parte componente do fluxo de produção em canteiro, permitindo então um planejamento onde não se considere as individualidades do exercício profissional, concentrando o poder de decisão no desenho, uma vez que o resultado desse conjunto de habilidades individuais está cristalizado no produto do desenho.

42 ARANTES, Pedro Fiori. Arquitetura na era digital-financeira: desenho canteiro e renda da forma – São Paulo, Editora 34, 2012, pg.200

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A “indústria” da construção

A frequente escolha por materiais que suprimam o saber fazer do canteiro, é necessária para a manutenção da divisão do trabalho que proporciona o controle da produção. Materiais que permitam o fechamento das formas complexas são produzidos em rede. Mesmo o concreto, só é produzido in loco em condições mais arcaicas. Os componentes da construção chegam ao canteiro, prontos para serem montados. Isso implica que as equipes não serão mais divididas pelo sua atribuição, mas pelo material que fornecem à obra. A subcontratação de empresas menores, que ficarão responsáveis pela execução de certa etapa na obra é o caminho para a divisão do trabalho no canteiro. Sendo os funcionários da obra terceirizados, não há um compromisso trabalhista da administração central para com eles. Os compromissos são da esfera comercial, e como tais, sujeitos a concorrência e instabilidade no decorrer do trabalho. Com isso, cada empresa subcontratada se torna responsável pelo contrato por executar e gerenciar sua parte da obra. Cabe à administração central supervisionar todas as empresas presentes em canteiro. Dessa forma, a administração central do canteiro tem apenas como objetivo a certificação de que o desenho proposto seja executado, se eximindo das funções de controle de obra e conhecimento de materiais e processos. Fora das funções de master builder, resta ao starchitect a função de executivo de seu escritório, negociando meios de viabilizar o seu desenho, e vantagens para que os empreiteiros e incorporadores aceitem implementá-lo. A dissolução do controle central do canteiro tem como princípio a acumulação flexível, descrita por Harvey (1989): 52

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A acumulação flexível, como vou chama-la, é marcada por um confronto direto com a rigidez do fordismo. Ela se apoia na flexibilidade dos processos de trabalho, dos mercados de trabalho, dos produtos e padrões de consumo. Caracteriza-se pelo surgimento de setores de produção inteiramente novos, novas maneiras de fornecimento de serviços financeiros, novos mercados e, sobretudo, taxas altamente intensificadas de inovação comercial, tecnológi ca e organizacional.43

Harvey (1989) ainda citaria o processo de desenvolvimento de setores de serviço em regiões subdesenvolvidas. O assunto já foi tratado aqui, quando citamos os CAD monkeys descritos por Pedro Arantes, e a possibilidade de terceirização dos serviços de desenho digital para as periferias do capitalismo. Entretanto, em se tratando de canteiro, a situação é um pouco mais complexa. Para os componentes industrializados, é simples assimilar a acumulação flexível. Como exemplo as peças de titânio do fechamento de Gehry para o museu Guggenheim de Bilbao, que eram feitas com titânio extraído na Austrália, laminado nos Estados Unidos, cortado na Itália, para então ser montado no canteiro, na Espanha44. Esse é só um exemplo, levado ao extremo da globalização que o capitalismo neoliberal permite, mas as pequenas escolhas em canteiro também servem para evidenciar a acumulação flexível em canteiro. Essas escolhas são baseadas em resultados comerciais, através de pesquisa de mercado e concorrência direta, como se faz com qualquer mercadoria. É oposta ao método fordista porque são sempre direcionadas para a diminuição do investimento em capital fixo (maquinário, locação, etc.) e aposta em inovações tecnológicas de subcontratados dispostos a vencer as concorrências comerciais. HARVEY, David. A condição pós-moderna – São Paulo, Edições Loyola, 1992, pg.140 ARANTES, Pedro Fiori. Arquitetura na era digital-financeira: desenho canteiro e renda da forma – São Paulo, Editora 34, 2012, pg.207

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Mas em se tratando de canteiro, o trabalho vivo tem uma porção razoável sobre o orçamento da obra. Então, voltando à subcontratação de empresas menores para executar as etapas de obra, veremos que muitas delas conseguem o seu preço que vence concorrência através de violação dos direitos trabalhistas e exploração de seus empregados, assunto que veremos a seguir. Daí a dependência da mão de obra, do trabalho vivo propriamente dito, e sua respectiva extração de mais-valia, como viabilizadora da obra.

Manufatura, migração e exploração

Como vimos, as tentativas de impor um método industrializado à construção conseguem assimilar processos alheios ao canteiro. Processos esses que dizem respeito ao controle da divisão do trabalho e do fornecimento de matéria prima para a construção, que na construção contemporânea são em sua maioria componentes que chegam ao canteiro já previamente trabalhados em outra esfera de produção. Entretanto, ainda não conseguiu implantar a automação dos processos construtivos em virtude do controle das dinâmicas financeiras que viabilizam a construção. O canteiro como meio de produção da dita indústria da construção não possibilita um investimento maior em maquinário específico para os processos, pois sua viabilização está atrelada à exploração da mais-valia do trabalhador manual. A produção em canteiro, apesar dos esforços para se tornar linha de produção, ainda é manufatureira e ex-

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plora a força de trabalho que a produz. Os processos contemporâneos condicionam o trabalhador a um regime de produção distante da liberdade de utilização de seus meios de trabalho, condicionando-o aos métodos que lhe são impostos com o objetivo de aumentar a produtividade e viabilizar o desenho que foi simulado em computador. Os mesmos estão atrelados, mas desconexos, não permitem adaptações em canteiro e privam o trabalhador de sua habilidade artesanal para lidar com entraves de projeto. Ele está então sujeito a uma atuação de alimentador de uma “linha de produção” sem a constância da produção industrial, o que exige esforço característico para os processos diversos para os quais será empregado. A heteronomia do desenho sobre o canteiro provoca a alienação dos trabalhadores em relação aos processos que lhes são atribuídos. A produção just-in-time leva os componentes já prontos para montagem da forma, e provoca uma situação em que as equipes só entram no canteiro para exercer as etapas as quais foram designadas, e devem levar o mínimo tempo possível para minimizar o custo de montagem de canteiro. O preço de estabelecimento do canteiro é composto do valor dos componentes da obra somado ao valor de trabalho de seus operários, então quanto menos tempo o trabalhador permanecer em canteiro, menor será o custo de execução. As etapas são planejadas de modo que as equipes não se inter-relacionem, e que permaneçam no canteiro apenas o tempo suficiente para completar as etapas a que foram designadas. O trabalhador deve atentar para o tempo que tem para cumprir a devida

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fonte: www.cityu.edu.hk

As inovações tecnológicas aplicadas em projeto, não conseguem chegar às mão dos trabalhadores de canteiro. Obras com tecnologia avançada em desenho, ainda exploram mão de obra imigrante a baixos salários. Acima, operários-alpinistas em alguma obra chinesa. Abaixo, trabalhadores do Burj Kalifa, em Dubai, Emirados Árabes Unidos.

fonte: www.flickr.com

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tarefa. Caso não a cumpra, sua substituição é facilitada pela informalidade que há na sua relação trabalhista com a empresa prestadora de serviços, e nenhuma relação com a administração central do canteiro de obras. A administração central atenta para os prazos de suas subcontratadas, mas não às violações de direitos trabalhistas que ocorrem. Nos grandes centros capitalistas já desenvolvidos, as leis trabalhistas protegem os operários dessas explorações. A saída que os empreiteiros encontram é a contratação de empresas que utilizam mão-de-obra mais barata de centros menos desenvolvidos. Os trabalhadores são levados ao canteiro sem as garantias trabalhistas que dispõem os trabalhadores locais, como indica Arantes: ...o canteiro de obras é um espaço da produção hard da economia que não tem como ser exportado para o terceiro mundo e, desse modo, é o terceiro mundo, na condição de berço de trabalhadores migrantes, muitas vezes ilegais, que é importado para os canteiros dos países centrais. Eles são mobilizados na ponta das cadeias de subcontratação da construção civil por empresas de menor porte e mais difíceis de fiscalizar, ou ainda contratados como autônomos, sem vínculo empregatício.45

Desse modo, os grandes construtores contratam empresas que utilizam mão de obra migrante, sujeita a exploração por virem de países onde as organizações sindicais de trabalhadores da construção não conseguiram se organizar da mesma forma. A mão de obra migrante então acumula dívidas com os que viabilizaram sua migração e contratação, constituindo uma situação exploratória e de controle social em razão de diminuir os custos de produção, e que se aproxima das condições de trabalho escravo.

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ARANTES, Pedro Fiori. Arquitetura na era digital-financeira: desenho canteiro e renda da forma – São Paulo, Editora 34, 2012, pg.238

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As grandes obras de locais em desenvolvimento, como os Emirados Árabes ou a China são os principais locais de abusos dos direitos humanos em canteiro, segundo a organização não governamental Human Rigths Watch (HRW). Na China, as situações mais comuns são atrasos e calotes, más condições de alimentação e alojamento, ausência de aplicação de medidas de segurança e prevenção de acidentes de trabalho, ameaças para evitar organização e greves. Os empreiteiros se aproveitam da grande oferta de trabalhadores, que saídos das regiões rurais, vão para os centros em desenvolvimento acelerado, para minimizar os custos com os estabelecimento do canteiro. As condições são legitimadas com apoio na política chinesa de repressão a greves e limitação das garantias trabalhistas somente aos trabalhadores comprovadamente residentes dos grandes centros. Os chamados mingongs, apesar de tudo, ainda sentem-se orgulhosos de colaborarem para o crescimento do país, apesar da nula participação política e na colheita dos frutos desse crescimento, talvez como nossos candangos ao construírem Brasília. Nos Emirado Árabes, as migrações provém principalmente do sudeste asiático, e as mesmas situações se repetem, com o agravante da retenção de passaporte e alto endividamento dos trabalhadores. Eles são atraídos com promessas de um salário que não lhes é pago tal quanto prometido e acabam ficando muito mais tempo que previram, em condições de alojamento insalubres e sem qualquer direito trabalhista assegurado. Nos dois casos, bem ilustrados por Arantes46 e denunciados pela HRW, as condições políticas estatais colaboram para o quadro. Na Chi46

ver ‘Migrações e violações’ in ARANTES, Pedro Fiori. Arquitetura na era digital-financeira: desenho canteiro e renda da forma – São Paulo, Editora 34, 2012, pg.236-252

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na, o Partido Comunista reprime quaisquer manifestações por melhorias das condições e o sindicato oficial não está autorizado a responder por queixas de trabalhadores migrantes. Em Dubai, a administração ditatorial do Sheikh, que é ao mesmo tempo governante e executivo de seus grandes empreendimentos, se apoia nesse ganho de mais-valia para viabilizar os mesmos. Os escritórios responsáveis pelos projetos de objetos construídos nessas condições, dificilmente atentam à existência desses ciclos de exploração da força de trabalho exploratórios, mesmo com o alerta dado pela HRW. Por vezes, pelo contrário, sabem que isso é condição para viabilidade financeira de seus projetos. Este parece ser o caso de Jacques Herzog, Norman Foster e Rem Koolhaas, que têm declarações controversas sobre o tema47. A ordem de justificação acionada está baseada na exigência de que o valor da complexidade da forma proposta requer que se minimizem os custos com o trabalho vivo, cuja maior parte está concentrada no canteiro. A submissão do corpo do trabalhador às exigências mais extravagantes e insalubres é acompanhada pela composição cada vez mais estrangeira da força de trabalho na construção civil. Todas essas obras são executadas por contingentes significativos de trabalhadores migrantes que, submetidos a condições precárias de sobrevivência, insegurança jurídica e poucas garantias trabalhistas, como veremos, colaboram para reduzir o custo de reprodução social do trabalho na construção civil e para a baixa salarial nesse setor como um todo. O setor imobiliário reconhece que “migrantes ilegais cumprem um papel importante no mercado de trabalho”, pois, sem eles, “edifícios não seriam construídos no prazo e no custo previstos.48 47

Para exemplificar, cito a declaração de Jacques Herzog, do Herzog & DeMeuron, em entrevista a Ulrike Knöfel e Susanne Beyer : “Nós não temos nada o que fazer a respeito da organização do canteiro de obras, nem na China nem em qualquer parte do mundo” em “Only an idiot would have to say no”, Der Spiegel Online, 30/07/2008 in ARANTES, Pedro Fiori. Arquitetura na era digital-financeira: desenho canteiro e renda da forma – São Paulo, Editora 34, 2012, pg.236 48

ARANTES, Pedro Fiori. op. cit. pg.238

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Daí a posição dos construtores em aceitar essa mão de obra migrante e as situações em que é colocada para que execute o projeto, pois é vital para garantir o retorno financeiro do investimento no objeto, seja ele de forma complexa ou não, mas particularmente nas rendas pela marca que geram. As violações de direitos e a exploração do trabalhador migrante parecem seguir seu curso em megaprojeto que emerge. Uma nova denúncia da HRW aponta para as obras das instalações dos próximos Jogos Olímpicos de inverno em Sochi na Rússia. Cidade Resort russa, à beira do Mar Negro, Sochi têm recebido trabalhadores migrantes da Ucrânia, Albânia, Sérvia, entre outros. Segundo um relatório da HRW49 são situações de pagamento insuficiente ou atrasado para as jornadas de trabalho de doze horas que empreendem, para forçar o trabalhador a não deixar as imediações do canteiro antes da entrega.

O valor da forma como marca

Os ícones de marca precisam transmitir a forma pura, que seja referenciada a si mesma, que seja obra da genialidade do arquiteto, que represente a vontade e o ímpeto de uma administração governamental. Tudo menos fruto do trabalho físico aplicado sobre ela. O rastro do trabalho de canteiro deve ser apagado para que os trabalhadores não dividam o crédito. E nesse processo de cristalizar o trabalho físico no valor 49 Race to the Bottom - Exploitation of Migrant Workers Ahead of Russia’s 2014 Winter Olympic Games in Sochi - Human Rights Watch - http://www.hrw.org/ - acesso em 08/2013

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da forma, o trabalho de canteiro passa a ser uma atribuição mecanizada e fora da naturalidade do antigo canteiro arcaico, embora, conforme já se observou anteriormente, isto venha ocorrendo num campo consideravelmente específico da produção da arquitetura contemporânea, especialmente aquela vinculada ao espetáculo e à produção/valorização de imagem. Admitir o “trace” do trabalhador de canteiro, é dividir com ele a genialidade da pureza da forma50, então desde que os arquitetos entenderam que o desenho devia conter em si toda a criatividade para a execução da forma pura, tentam encontrar meios para automatizar os processos e suprimir a divisão do trabalho artesanal criativo. Cabe a eles apenas a divisão dos processos em canteiro através da prescrição dos processos em desenho que, por sua vez, é instrumento da acumulação de capital e exploração da mais-valia e do saber fazer dos mesmos. Sendo assim, a especialização em processos de construção não torna o operário um artesão apto a lidar com os problemas surgidos em canteiro (pois esses mesmos devem estar previstos desde o escritório) e não tem a liberdade para aplicar os métodos que lhe convém para executar uma determinada tarefa. Torna-se então um elemento que tem como premissa a aplicação de suas habilidades no sentido da excelência em precisão de execução, não de aptidão de resolução de problemas construtivos. Essa tarefa fica restrita aos arquitetos que não necessariamente têm aquele conhecimento que os caracterizava como master builders, que estão distantes do canteiro e por vezes baseiam suas escolhas de métodos e materiais construtivos em aspectos de acabamento e impacto, não em construtibilidade e nas condições a que vai estar submetido o traba50

trace por Ferro de Charles Peirce, o rastro , a marca do trabalho. Sobre a monopolização do arquiteto no trace da forma do produto de seu trabalho, sem vestígio de trabalho manual artesanal. ver FERRO, Sérgio. Arquitetura e trabalho livre – São Paulo, Cosac Naify, 2006, pg.286

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lhador em canteiro para que aconteça o resultado esperado. Isso nos leva a situações onde a execução demanda um esforço excessivo ao trabalhador, uma vez que a sua execução está condicionada ao seu resultado final, e não à qualidade na execução do processo em si. A sua eficiência está atrelada à capacidade de responder às exigências de desenho em conservar a disposição dos materiais tal quais prescritos na simulação, sem que para isso seja necessário aplicar as habilidades desenvolvidas pela experiência em construção. O exercício estará atrelado a um rigor técnico e um controle tecnológico que não condizem com seu saber prático habitual. Logo, como já dito, temos uma situação de heteronomia do desenho sobre o canteiro, em que a imagem simulada de um edifício está acima de seus processos de construção, de sua possibilidade e condições de construção. A imagem que tende ao único e impossível é o que direciona as escolhas das formas e materiais, que provocarão exploração no canteiro à custa de prováveis emoções únicas vivenciadas por quem vier a visitar as “mônadas” de formas complexas comum dos starchitects atuais. A pesquisa formal é autorreferente, dobra-se sobre si mesma de modo autista, complexificando a geometria e simplificando as relações sociais e urbanas do entorno, anulando o tempo histórico, apagando contradições e conflitos. Tal arquitetura é apresentada como se fosse uma mônada isolada – um “signo puro, privado de referências para além das que remetem ao próprio objeto”.51

Arantes (2012) citando Tafuri (1985) resume a questão, e direciona o estudo para os efeitos dessa prática contemporânea na arquitetura, que negligencia a sua influência nos espaços em que é construída alterando as dinâmicas econômicas e sociais. Ela é, entretanto, causa 51

TAFURI, Manfredo. Projecto e utopia. Lisboa, Presença, 1985, pg. 103 in ARANTES, Pedro Fiori. Arquitetura na era digital-financeira: desenho canteiro e renda da forma – São Paulo, Editora 34, 2012, pg.171

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e efeito dessas mudanças. Influenciada pelas dinâmicas do capitalismo atualmente, de corte neoliberal, assume os propósitos de acumulação rentista e, por sua vez, transmite o controle do capital sobre o canteiro, e sobre o espaço em que se encontra. São essas dinâmicas que, com base em Arantes (2012), iremos tratar no capítulo seguinte.

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Como na obra de Eisenman, Gehry e Koolhaas, os exercícios formais pouco oferecem para a construção de uma teoria diferente da do modernismo, e menos ainda para a reflexão sobre o papel do arquiteto - e isso apesar das dramáticas mudanças sociais e econômicas ocorridas desde a década de 1960. Na verdade, em sua indiferença absoluta aos problemas de contexto, em sua exaltação do papel do arquiteto como formador e intérprete da sociedade, é difícil discernir diferenças significativas do modernismo dogmático, a não ser em particularidades da forma.52

52 GHIRARDO, Diane. Arquitetura contemporânea: uma história concisa – São Paulo, Martins Fontes, 2002 pg. 36

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A imagem do produto Como último assunto a ser tratado neste trabalho, trata-se a seguir do produto dos processos de produção de arquitetura que se discutiu até agora. As teorias sobre desenho colocam o arquiteto como profissional responsável pela forma e programa que impõe às suas obras, e esses fatores influenciam o entorno onde seu produto está inserido. É detentor da capacidade de interpretação de suas dinâmicas de funcionamento e procura solução mais adequada para questões que são próprias do desenvolvimento das mesmas. Mas o que vimos é que essa capacidade é influenciada por fatores econômicos alheios ao simples pensar do arquiteto. A heteronomia que o capital exerce sobre as decisões de desenho traz as consequências evidenciadas no canteiro e, além disso, enquanto norteadora da produção, sobrepõe-se também ao resultado do que arquitetos produzem. Dessa forma, o resultado do desenho procura atender às exigências da produção de marca no artigo de arquitetura, como expoente de uma dinâmica capitalista acumulativa. Os resultados dessa heteronomia do capital sobre a dinâmica produtiva da construção nas cidades geram um controle social necessário para efetivar a dinâmica consumista, que por sua vez traz gentrificação aos espaços onde está inserida, resultando, via de regra, numa forma de espaço voltada para a alimentação do consumo. Como marca, o produto do desenho heterônomo assume uma posição fetichizada de artigo de luxo, expoente de uma sociedade baseada na produção acumulativa e no consumo. Ampliando tal argumentação, Ferro (1969) sugere que:

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/.../o progresso da produção capitalista não cria apenas um mundo de prazeres. Ele abre com a especulação e o sistema de crédito milhares de fontes de súbito enriquecimento. Em certo nível de desenvolvimento, um grau convencional de esbanjamento, que é ao mesmo tempo ostentação de riqueza, e portanto, meio de se obter crédito, tornando-se até uma necessidade do negócio para o ‘infeliz’ capitalista. O luxo entra nos custos de representação do capital.53

As cidades, como resultado da produção de arquitetura também entram nessa corrente de acumulação e disputa por investimentos, pois precisam deles para manter aceso o ímpeto ao consumo e com isso a sua própria produtividade e desenvolvimento. Em se tratando de produção industrial, como vimos, a acumulação flexível é mais favorável ao planejamento de cidades em rede, com o capital diversificado e fragmentado entre elas. Entretanto, sob o domínio das marcas, as cidades do capitalismo neoliberal globalizado são concorrentes. Assim sendo, o capital financeiro se concentra na prosperidade das cidades que se dispõem a receber seus negócios e fortalecer um comportamento de consumo e submissão aos processos de acumulação de renda. As grandes obras de arquitetura, os megaeventos esportivos, as grandes marcas internacionais, etc. Contribuem, sobremaneira, para tal processo, reafirmando não somente a competitividade urbana como também o fomento da sua veiculação na mídia e o incremento do ganho especulativo por intermédio da imagem urbana fetichizada. O exemplo da arquitetura “mônada”, cuja complexidade é apenas formal e construtiva, e é o melhor objeto para ser esvaziado e transformado novamente em uma imagem, pois nasceu para ser signo de si mesmo. “A imagem da arquitetura transformada em arquitetura da imagem encerra, por isso, um paradoxo”.54 53 54

FERRO, Sérgio. Arquitetura e trabalho livre – São Paulo, Cosac Naify, 2006, pg.69

in ARANTES, Pedro Fiori. Arquitetura na era digital-financeira: desenho canteiro e renda da forma – São Paulo, Editora 34, 2012, pg.272

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Isto posto, aquela lógica vitruviana da arquitetura tendo que cumprir apenas suas funções básicas de firmeza, forma e função (utilitas, firmitas e venustas) não cabe à arquitetura contemporânea. Nem tampouco a lógica modernista que o programa define a forma, pois a de forma de “tipo-zero” aplicada hoje não define forma para quaisquer programas, o desenho se referencia a qualquer coisa que não o programa. Atualmente as referências são definidas pela inventividade do arquiteto e outras influências externas aos dogmas arquitetônicos, pouco importando as demandas técnicas enfrentadas ou questões programáticas as quais as novas formas irão abrigar. A referência, geralmente estando fora da própria arquitetura, rejeita exigências funcionalistas prévias e ao mesmo tempo reduz comparativamente a imagem por uma simples referência de livre escolha. Assumir a escolha do desenho por simples similaridade formal com uma referência livre é aceitar a sua condição de mônada, ou imagem pela imagem. Como sugere Bernard Tschumi(1980): O pensamento arquitetônico não é uma simples questão de opor o Zeitgeist ao Genius loci, de opor questões conceituais a questões alegóricas ou alusões históricas a uma pesquisa purista. Infelizmente, a crítica arquitetônica ainda é um campo muito pouco desenvolvido./.../Por isso não surpreende a ausência quase total de uma crítica mais consistente a respeito da frivolidade atual da arquitetura no noticiário arquitetônico. “Os limites além dos quais algo deixa de ser possível ou permissível” foram a tal ponto estreitados que hoje deparamos com um conjunto de reduções altamente prejudiciais ao campo de ação da disciplina. O estreitamento da arquitetura como forma de conhecimento a uma arquitetura de mero conhecimento da forma só é comparável à derrocada das generosas estratégias de pesquisa em relação às táticas operacionais dos corretores políticos.55

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TSCHUMI, Bernard. ‘Arquitetura e limites I’ in Uma nova agenda para arquitetura, NESBITT, Kate – São Paulo, Cosac Naify, 2008, pg. 175

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Da mesma forma que seus condicionantes não são mais a forma a função ou a razão de existir, parece não haver mais limites para as referências em arquitetura; então porque reduzir a sua leitura a uma simples corrente de pensamento ou contemporaneidade? A crítica arquitetônica deve transcender a simples análise formal e entender o que influência seus contornos, em vez de tentar encaixá-los em alguma forma caracterizada. Tschumi (1980) compara a atual crítica às manipuladas pesquisas de intenção de voto em política, que não tem nada de análise política, apenas direcionam a crítica a uma simples análise superficial sobre as condições dos candidatos, por exemplo, que de nada servem para entender a trajetória de campanha dos concorrentes. É preciso entender as contradições dos referenciais arquitetônicos além da arquitetura, e rejeitar isso é seguir a lógica da produção de imagem pela imagem ao criticar a forma pela forma. O caminho seria evidenciar as influências que levaram àquela forma e as consequências dessa forma, além da arquitetura. Transcender os limites do campo da arquitetura e criticar a imagem em seu processo e posteriormente seus efeitos, para que a crítica não se encerre no produto em si. Nesta direção, Ghirardo (1996) complementa este argumento, afirmando: O argumento de que apenas os elementos formais importam na arquitetura denuncia uma tremenda recusa a enfrentar problemas sérios; significa evitar a crítica de poder existente, dos efeitos do uso de poder e da identidade daqueles cujos interesses são servidos pelo poder.56

Vista dessa forma, a crítica arquitetônica também colabora para a produção do desenho com vistas para acumulação e consumo. A propagação da imagem e aceitação de seus condicionamentos por uma crítica que os negligencie é vital para o fortalecimento dessa mesma 56

GHIRARDO, Diane. Arquitetura da fraude in Uma nova agenda para arquitetura, NESBITT, Kate – São Paulo, Cosac Naify, 2008, pg. 421

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imagem como expoente de atuação. Condições essas que parecem não dizer respeito ao processo de criação do desenho, e sem elas, a crítica fica restrita ao simples fornecimento de uma imagem cultural aceitável que encoraje os visitantes e a crítica a fixarem-se em análises formais, em vez de combater as consequências sociais e políticas do projeto.57

Contradição e espetáculo Desde que os ideais modernistas tentaram implantar as revoluções da indústria na produção de arquitetura, os agentes econômicos têm enxergado nela a capacidade de conseguir ganhos por intermédio de diversos fatores. Dentre eles, podem ser destacados: ganhos de produtividade por meio da padronização e, mais recentemente, a exploração da renda das formas. Talvez por isso alguns ideais modernistas para mudanças sociais através de um desenho mais comprometido com essas questões tenham fracassado. Não pela falta de comprometimento com a causa, desrespeito aos dogmas do funcionalismo, desenho responsável e direcionado para as demandas mais urgentes das cidades. Talvez tenha falhado por sugerir uma divisão do trabalho própria daquelas impostas para permitir a ampliação da extração da mais-valia e do controle das atividades componentes da fabricação. O projeto moderno, ao atingir sua decadência, acaba dando lugar a outro tipo de desenho mais afeito às formas de dominação do capital financeiro. Se, anteriormente os agentes econômicos vislumbraram o potencial na similaridade da produção industrial com a de arquitetura, agora vão condicioná-la para que ela não tenha qualquer ímpeto de 57

GHIRARDO, Diane. Arquitetura contemporânea: uma história concisa – São Paulo, Martins Fontes, 2002 pg. 229

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mudança social. Os pós-modernistas ou anti-modernistas, vêm então a iniciar um ciclo da arquitetura autorreferenciada, cujo desenho exclusivo serve apenas para que seja vendida com um valor extra de exclusividade. Como afirma Ghirardo(1996): Na década de 70, os projetistas pós-modernos produziram cada vez mais panfletos (e alguns edifícios) contra o que veio a tornar-se uma versão caricatural do modernismo. Ignoraram os expoentes do modernismo das décadas de 1920 e 1930, que tinham atacado as instituições arquitetônicas burguesas e elitistas, e ridicularizaram a esperança modernista de que uma estética inovadora pudesse ser acompanhada por transformações sociais.58

Ainda podemos realizar essa leitura na arquitetura contemporânea. Os panfletos representam o que é vendável como marca. Seja uma grande corporação, uma cidade sede de megaeventos, ou uma cidade sede de uma grande corporação, grandes instituições culturais, financeiras, industriais, etc.. Isso também vale para a interpretação de inovação tecnológica proposta pelos modernistas, que agora gera “panfletos” procura ampliar suas possibilidades por intermédio de temas tais como: sustentabilidade, eficiência energética, mobilidade urbana, sempre com mais ênfase na imagem como referência, do que na própria função do objeto em questão. A função geral, independente do tema do panfleto, é a criação ou fortalecimento da marca, reafirmando sua função primordial de produzir renda com a sua utilização como referência. Tendo isso em mente, os espaços produzidos por essa arquitetura de forma “tipo-zero”, também citada anteriormente e explicitada por Ferro, como tendo em sua função “vitruviana” a última coisa a ser determinada, estando heterônomas a ela as intenções de utilização de sua imagem apenas, fora da sua própria esfera construtiva, provocam 58 GHIRARDO, Diane. Arquitetura contemporânea: uma história concisa – São Paulo, Martins Fontes, 2002 pg. 25

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processos que a ela também são alheios, mas que estão diretamente relacionados à razão para existirem. A necessidade de produtos arquitetônicos no espaço planejado está então vinculada às dinâmicas de produção de capital além das convencionais, da construção e dos negócios imobiliários. A produção cumpre então um papel especulativo com suas referências associadas a marcas e modos de comportamento. Esses processos fomentam a especulação do espaço que ocupam nas cidades, e para o que está disponível. Condicionam a execução dos novos empreendimentos, mais que a sua viabilidade, à sua rentabilidade. Entendamos rentabilidade, não como uma possibilidade de obter lucro na venda do produto (que nos casos tratados aqui, não estão à venda nos modos convencionais imobiliários), mas de garantir que os ganhos venham também de outros meios de aproveitamento do objeto não convencionais, como com o marketing da sua forma e utilização de sua imagem atrelada a outros artigos característicos de um comportamento consumista. Citando Otília Arantes(2000): O “tudo é cultura” da era que parece ter se inaugurado nos idos de 1960 teria, pois, se transformado de vez naquilo que venho chamando de culturalismo de mercado. De tal forma que a cultura - que nos primórdios da Era Industrial se cristalizara como esfera autônoma dos valores antimercado - ao tornar-se imagem, quer dizer, representação e sua respectiva interpretação (como sabe qualquer gerente de marketing numa sociedade do espetáculo), acabou moldando, de um lado, indivíduos (ou coletividades “imaginadas”) que se auto-identificam pelo consumo ostensivo de estilos e lealdade a todo tipo de marca;59

Sendo assim, os financiadores da produção de arquitetura nas cidades orientadas por políticas neoliberais esperam conseguir a vendagem de tudo que está relacionado ao edifício e à sua imagem, por ser 59

ARANTES, Otília, MARICATO, Ermínia e VAINER, Carlos. A cidade do pensamento único: desmanchando consensos, Rio de Janeiro, Vozes, 2000, pg. 16

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fruto da marca do arquiteto, que é a origem de sua imagem, por gerar uma marca para a cidade, por vender uma experiência ou um comportamento, único e exclusivo. Um comportamento que responde a esse “culturalismo de mercado”, onde o consumo se traduz na oportunidade de acesso à cultura, baseada no espetáculo. Pois esse viés cultural configura-se pela capacidade de proporcionar renda nesses espaços criados, e para gerar renda para os detentores do espaço, eles só serão acessíveis àqueles que têm demanda solvável para despender neles, e direcionados para tal. Arantes(2012) entende essa interpretação dos espaços culturais como um laço entre a produção restrita (dominada pelo poder simbólico) e a produção de massa (dominada pelo poder econômico), e cita Stevens(2003) para explicar que os espaços culturais fabricados nesse contexto servem para legitimar e reproduzir um modus operandi próprio do capital, baseado na estrutura de classes e um sistema de desigualdades(Bordieu,1972).60 Em suma, qualquer forma pode ser aplicada ao produto, pois a particularidade da forma será indiferente para provocar o fomento ao consumo, que já está atrelado à dinâmica de produção restrita direcionada a um consumo de massa do capital. O importante será o incentivo à visitação e certificação do “fator uau!”61 durante a visita, para que seja plena a fixação da imagem e sua propagação. A heteronomia do fomento ao consumo sobre desenho arquitetônico nos leva a uma situação em que o arquiteto fica incumbido de aplicar esse conhecimento técnico e criativo para criar situações que fomentam o consumo, e por isso devem ser restritivas, mas ao mesmo 60 STEVES, Garry. O círculo privilegiado:fundamentos sociais da distinção arquitetônica. Brasília: UnB, 2003, pg. 74-75 in ARANTES, Pedro Fiori. Arquitetura na era digital-financeira: desenho canteiro e renda da forma – São Paulo, Editora 34, 2012, pg.289 61 “Capacidade de impressionar, atrair o observador e reter na sua memória aquele objeto arquitetônico único” in ARANTES, Pedro Fiori. op. cit. pg. 119

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tempo atrair massas dispostas ao consumo. Essa contradição impõe preceitos de controle social sobre seus usuários e direcionamento para o consumo. No contexto das obras que citamos, em sua maioria, envolvem os temas de entretenimento e cultura, e um expoente desse método de direcionamento para o consumo foi Walt Disney. Diane Ghirardo (1996, pg.51) evidencia as técnicas de controle social em seus parques temáticos, que devem representar a imagem da sua marca. Aqui sobre o primeiro parque, na Califórnia, que mantinha como eixo central de circulação a Main Street, um pastiche da cidade “ideal dos Estados Unidos no final do século XIX”. O puro consumismo move a Main Street, pois as únicas atividades possíveis envolvem gasto de dinheiro com comida ou lembranças. Falta a Main Street, indústria, pobreza e, principalmente, vida política. Tem leis e políticas disfarçadas, por mais que ali estejam. Como espaço privado, a Disney Corporation pode proibir, e proíbe, a atividade política, assim como impõe a seus empregados um código de vestimenta e comportamento, para os quais a desobediência significa demissão.62

Essa dinâmica do parque temático seguirá para o espaço urbano público e para as grandes obras tais como centros culturais, museus ou estádios. O estar gratuito é evitado, o fomento ao consumo é constante e o controle de comportamento aliado à exclusão social dará a esses espaços uma condição de “Shopping Center Cultural” que Ghirardo desenvolve em sua pesquisa. Para efeito de crítica à forma única e relativização ao tema Disney chamado, ficaremos com a definição de Arantes, que a chama de “Disneyficação”:

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GHIRARDO, Diane. Arquitetura contemporânea: uma história concisa – São Paulo, Martins Fontes, 2002 pg. 51

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O processo de “Disneyficação” da paisagem urbana, como denominou Sharon Zukin a forma de “economia simbólica na mídia, no mercado imobiliário e na produção artística”, encontrava aqui um limite do ponto de vista das bases materiais: o desafio parecia superior às condições objetivas da produção arquitetônica. Era parte do negócio da Disney a criação de formas fantasiosas, mas quando elas saíam das telas para a realidade concreta, os efeitos de animação deveriam passar pelo teste da construtibilidade.63

Retomando as elucubrações sobre o desenho, se este, quando aplicado à forma difícil pretende obter ganhos através de seu consumo como marca e símbolo de experiências únicas, de que adianta ele existir se não for pago, ou não fomentar o consumo de coisas relacionadas à sua imagem? De que adianta se não vier a valorizar seu entorno, aquecer os negócios imobiliários, os espetáculos culturais, as feiras de negócios, etc.? Desse modo, como tais mônadas conseguem acumular renda através de seu uso e propagação de suas marcas? Superar as condições objetivas da arquitetura quer dizer transcender sua fruição usual e chegar a um aproveitamento de seus significados, imagens e sensações provocadas direcionadas para reafirmação da marca, que é a sua imagem por si própria. Nem que para isso ela tenha que transcender também seus limites de construtibilidade, e use isso para tomar o significado de ícone a que se propõe. Nesse contexto, a produção de ícones arquitetônicos terá como premissa a afirmação da cultura do consumo dos espaços privados, os quais, tendo em vista a crescente afirmação do padrão de desenvolvimento seletivo e excludente do capitalismo, passam agora a serem considerados como públicos. O local de encontro na cidade tomará a forma desses espaços controlados, uma vez que o espaço realmente público é tomado como inseguro e próprio a ações ilícitas pelos interessados no uso de seus espaços controlados. Mesmo em manifestações populares, 63

ARANTES, Pedro Fiori. op. cit. pg. 125

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como em jogos de futebol, a intenção será o direcionamento ao consumo, a afirmação da marca e o controle de comportamento (vide o padrão FIFA de administração de estádios, por exemplo)64.

Consumo e exclusão Sobre o local público, não podemos concentrar o estudo apenas nos processos capitalistas de meados do séc. XX apenas, cujas dinâmicas de produção de capital cultural restritivo afetou os espaços citadinos. A urbanização sempre foi um fenômeno de classe, e o controle sobre o seu uso sempre ficou tipicamente na mão de poucos. Sob o capitalismo, emergiu uma conexão íntima entre o desenvolvimento do sistema e a urbanização, e a produção de cidade, segundo Harvey (2013), é uma questão que não pode ser dissociada de saber que tipo de vínculos sociais, relacionamentos com a natureza, estilos de vida, tecnologias e valores estéticos. É muito mais que a liberdade individual de ter acesso aos recursos urbanos. Deveria ser um direito coletivo, e não individual, já que essa transformação para fugir à heteronomia do capital, deveria surgir do exercício de um poder coletivo para remodelar os processos de urbanização. No entanto, é um dos nossos direitos humanos mais preciosos e ao mesmo tempo mais negligenciados.65 Esta ótica de produção do espaço, tem contribuído para mais espaços públicos controlados e voltados ao consumo, em detrimento de um planejamento voltado para as funções 64

Segundo relatos de torcedores, serviu para: “...descaracterizar o que já existe para transformar o estádio em um ambiente asséptico, padronizado (claro!) e livre de qualquer traço de originalidade.” in O novo Maracanã parece um shopping center - Diário do centro do mundo em 24/06/2013 - www.diariodocentrodomundo.com.br/um-relato-sobre-o-novo-maracana/ - acesso em 08/2013 65 HARVEY, David. O direito à cidade - in Revista Piauí nº82, Tribuna livre da luta de classes, 07/2013

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necessárias do espaço público, como lazer e entretenimento, além possibilidade de ativismo político. Tais funções, sob a ótica individualista consumista, ficam por sua vez enclausuradas em edifícios multifuncionais ou complexos de entretenimento, que não permitem manifestação política e oferecem entretenimento pago. O que entendemos como espaço realmente público e gratuito fica entendido como lugar de acesso das classes mais pobres e marginalizadas, e por isso criminalizado e rejeitado pelas elites, que prefere a utilização desses espaços controlados, ditos públicos, mas sem liberdade de uso. Isso é resultado também de grandes reformulações nas dinâmicas das cidades por parte do poder público, influenciado obviamente pela promessa especulativa dos responsáveis pelo consumo nas cidades e perdura ainda como norteadora das escolhas de áreas a se investir nos centros citadinos. Otília Arantes (2000) cita as reformas de Haussmann em Paris e suas reais intenções: Haussmann reorganiza a cidade de acordo com os interesses do capital, como é sabido, por isso expulsa do centro de Paris seus antigos habitantes, implanta uma forma sectária de metrópole, decomposta em setores, aberta tanto para a circulação de mercadorias como de tropas em guerras contra barricadas, favorecendo caso pensado a especulação imobiliária e a discriminação social e, assim, afirmando a vontade de poder da cidade como forma “especulativa”, para falar como Cacciari.66

Em casos de reconfiguração das dinâmicas urbanas, os processos são direcionados à submissão aos efeitos especulativos do culturalismo de mercado e ao controle social e de comportamento, inclusive com a exclusão das classes com menor poder aquisitivo das zonas de fomento ao consumo, de mercadorias e da experiência de viver em um espaço 66

ARANTES, Otília Beatriz Fiori. O Lugar da arquitetura depois dos modernos. Edusp, São Paulo; 3ª edição, 2000, pg. 120

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como tal. A terra urbana ganha valor apropriado à sua proximidade dos produtos espetaculares proporcionados pela dinâmica consumista, que “fagocita” a cultura e o lazer para uma lógica de consumo, ao mesmo tempo em que repele os espaços públicos e gratuitos. Quando não os repele, estipula aos mesmos, meios de controle repressivos diferenciados do resto da cidade. Pois, para os investidores do espaço construído, atividades gratuitas são vistas como não rentáveis. Por isso tentam propagar a imagem do espaço público como área para atividades ilícitas ou perigosas. Qualquer atividade que desvie a atenção do transeunte de seu marketing consumista é vista como prejudicial para os negócios. Como reforça Ghirardo, em comentário a uma controversa Praça de Aldo Rossi em Milão: Para parar e descansar na requintada zona Manzoni, em Milão, é preciso gastar dinheiro em bares, restaurantes ou lojas. Tal visão limita implicitamente o campo de usuários legítimos da cidade aos poucos que possuem gordas contas bancárias. Os degraus e bancos de Rossi são gratuitos e abertos a todos, seja qual for a posição econômica. Os comerciantes temiam que isso convidasse as pessoas a ficar por ali sem gastar dinheiro. Os assentos gratuitos também poderiam encorajar outro grupo malquisto – os usuários de droga, subcultura muito visível na Itália, especialmente à noite em espaços públicos com assentos.67

Seguindo essa lógica, os espaços culturais produzidos por essa arquitetura pela imagem, também terão de se tornar espaços de consumo para serem rentáveis, apesar de nem sempre serem patrocinados pelo comércio. A cultura do consumo vem a associar a cultura com o consumo, de modo que de nada adianta aproximar a cultura de classes que não possam gastar seu dinheiro ao apreciar a cultura.

67 GHIRARDO, Diane. Arquitetura contemporânea: uma história concisa – São Paulo, Martins Fontes, 2002 pg. 120

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Espaço urbano e consumo O ímpeto dos atores do consumismo urbano vem criando essa ótica de criminalização do espaço público e das suas consequentes interações sociais. Sob essa ótica, os planejadores são impelidos a propor espaços que permitam essas interações de forma controlada e com foco no consumo indireto, não do espaço em si, mas das marcas relacionadas a ele. Como vimos, isso não é uma novidade, posto que as reconfigurações urbanas de meados do século XIX e início do XX já propunham um desenho de cidade excludente, com vista para o desenvolvimento de seus centros comerciais de serviços. Otília Arantes (2000) cita Camillo Sitte (1992) e nos mostra que o processo é mudar a postura do cidadão para condicioná-lo a utilização desses espaços: Assim, a agorafobia respondia a uma mudança radical nos rumos da vida na cidade, que refluíra dos espaços públicos para os interiores, para os recintos fechados. Em consequência, seus habitantes iam se transformando no que ele como ironia chama de “modernos pantouflards”. Política parlamentar, imprensa, entrega em domicílio, água encanada etc., tudo concorre para esse enclausuramento: nem termas, nem colunatas, nem praças do mercado, nem fontes etc., podem mais (caso fossem de novo ressuscitadas) impedir que a vida popular continue se retirando da praça pública, tornando cada vez mais problemático algo como uma “urbanização artística”.68

Dessa forma, o modo de comportamento está intrínseco na postura dos cidadãos, e uma vez vendida essa imagem do recinto fechado, controlado, hermético e apolítico é o que proporciona o que já vimos que é a ótica do shopping center, no nosso caso o cultural, não simplesmente varejista. Sendo intrínseco, veremos que nas cidades as pessoas adotarão ARANTES, Otília Beatriz Fiori. O Lugar da arquitetura depois dos modernos. Edusp, São Paulo; 3ª edição, 2000, pg. 103

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esses espaços como sua “sala de estar”69 pública, lugar de interação social, apolítico e para a conveniência do capitalismo financeiro, fomentadores de consumo. Na proposição do lugar como Shopping Center cultural para o espaço público, as novas remodelações urbanas vão levar o “melhor” desse tipo de estrutura, sob a ótica do aproveitamento consumista capitalista, para o passeio e praças públicos, obviamente em condições que o retorno através do consumo justifique a revitalização do espaço. Com a modernização das cidades e migração das indústrias pesadas para suas periferias, algumas áreas industriais ou portuárias perdem sua real vocação. Por estarem no entorno dos centros comercias das cidades, essas terras possuem valores de uso e troca consideráveis. Enxergando um potencial nesses espaços, alguns agentes econômicos procuram impulsionar essas remodelações, mas com uma diferença básica nas primeiras remodelações urbanas. O potencial talvez sempre estivesse lá, a diferença estará nas condições para essas remodelações. O valor da terra e o uso como apoio da produção industrial ou apenas de serviços mais básicos serão impeditivos para que tais agentes apliquem seu ímpeto para, digamos, “carregar” os ônus iniciais da remodelação. O que se vê é a difusão do que é chamado de parcerias público-privadas, onde os governos recebem a promessa de ganhos com a exploração comercial dos espaços e proporcionam as mudanças necessárias para que a remodelação seja, digamos, rentável.

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Apropriação da descrição que Frank Gehry faz a seu Disney Concert Hall, em Los Angeles, CA, EUA, cujo programa arquitetônico se enquadra no conceito de shopping center cultural. in GHIRARDO, Diane. op. cit. pg. 115

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O Shopping Center Cultural assume então a função de cartão de visitas da cidade. Mas além de sua função convencional, deverá diferenciar-se dos outros equipamentos culturais de outras cidades, através de sua forma . O custo da complexidade formal se traduzirá então em controle de utilização com vias para o consumo, de sua imagem e função. Abaixo, o Disney Concert Hall, de Frank Gehry, em Los Angeles

fonte: pt.wikipedia.org

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Aí entra a responsabilidade do arquiteto em propor algo que mude a imagem do espaço a ser revitalizado em questão, para uma que permita a exploração de sua imagem e de seus ganhos comerciais. Para isso, retornamos ao assunto do controle do espaço público. Como vimos, na Praça de Aldo Rossi em Milão, as propostas deverão direcionar o seu transeunte a uma postura consumista. As escolhas de funções para essas revitalizações estarão limitadas a atividades turísticas e de comércio e serviços. Dificilmente habitacionais, mas quando existem, têm o propósito da supervalorização das unidades para a futura gentrificação das mesmas. Essa dinâmica se dará de forma mais acelerada nas cidades com potencial turístico, como comenta Ghirardo: As instalações localizadas em cidades onde se podia prever uma expansão do turismo foram mais rapidamente transformadas. Entre as várias estruturas industriais antiquadas e sem uso em toda Europa e na América no início da década de 70, os portos, no passado entradas de grandiosas cidades marítima, atraíram incorporadores que neles viram uma localização promissora para projetos multifuncionais.70

Entendamos multifuncionais como atividades dentro da lógica do capitalismo financeiro globalizado, onde o que está em voga é a afirmação da imagem da marca. O objetivo será criar espaços, ícones de modernidade e controle urbano, apropriados e seguros, para o turista, para o executivo, etc., atores constantemente condicionados a um comportamento de consumo. Suas atitudes têm de ser individualistas e respeitarem o protocolo de segurança estipulado. Posto isso, as dinâmicas acabam levando ao passeio público o conceito de shopping center. Um espaço urbano de qualidade deve ter as mesmas propriedades dos espaços direcionados para o consumo. Quais 70 GHIRARDO, Diane. Arquitetura contemporânea: uma história concisa – São Paulo, Martins Fontes, 2002 pg. 206

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as suas intenções enquanto parte pública de uma cidade, quando renuncia às suas vocações funcionais naturais para fomentar uma cultura de consumo e valorização da exclusividade de sensações proporcionada pela arquitetura pela imagem, ou limitar o a participação popular em espaços com qualidade arquitetônica? Não que a população precise de espaços projetados para o exercício da cidadania, mas com esse controle, ele acaba acontecendo nas franjas do centro cívico da cidade, que por sua vez está totalmente entregue às dinâmicas acumulativas capitalistas. Citando as mudanças no código de posturas na orla de Los Angeles, Ghirardo (1996) resume: Com muita frequência, os arquitetos entendem o espaço público como negativo ou vazio, inútil para objetivos mercadológicos sem que haja alguma intervenção por parte das autoridades civis para controlar o acesso, acompanhar o comportamento e minimizar tudo o que possa desviar a atenção das atividades de consumo, muitíssimo mais importantes. É quase completamente ignorada por esta concepção popular do espaço público a ampla gama de reivindicações temporárias ou provisórias de áreas urbanas para coisas como o passeio de adolescentes…; manifestações, marchas e desfiles; festas de quarteirão e outras comemorações urbanas e suburbanas.71

Evidenciada a inutilidade de um espaço público, com equipamentos gratuitos, que não seja controlado e que esse controle seja direcionado para que os frequentadores consumam, podemos entender a estética dessas revitalizações portuárias contemporâneas. O exemplo das Docklands de Londres, mais particularmente do quarteirão Canary Wharf, que Ghirardo (1996) define bem, constituem um bom recurso para poder explicitar como se dá essa processo. Em seu estudo, ficam evidentes os esses sintomas da renovação urbana contemporânea: espaços industriais ou portuários desativados, negociação com os entes 71

GHIRARDO, Diane. op. cit. pg. 47

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públicos sobre os valores e usos permitidos da terra bem como investimentos em infraestruturas urbanas para garantias de retorno financeiro, gentrificação e servir de elemento marcante do poder dos agentes econômicos que tais espaços abrigam. Concebido para abrigar atividades econômicas burocráticas globalmente integradas que na década de 1990 teriam ultrapassado a indústria como principal atividade econômica, Canary Wharf precisava transparecer essa prosperidade do capital financeiro. A proposta abriga uma densidade e grandiosidade inteiramente comercial, e a grande torre proposta por Cesar Pelli configura a imagem da qual o quarteirão necessita para ser reconhecida como expoente da prosperidade das atividades financeiras. No entanto, o espaço urbano que se criou não é público, limita o acesso e possui vigilância particular. A arquitetura assinada serve como instrumento importante para dois objetivos afins: vender espaço comercial e concentrar a crítica na forma. Não surpreende que o arranha-céu de Cesar Pelli no número um da Canada Square tenha gerado uma calorosa discussão. Recoberto de painéis de aço inoxidável, o obelisco de 244 metros é o edifício mais alto da Grã-Bretanha e o segundo da Europa. Eleva-se sobre tudo mais em Londres, realizando a função óbvia de um arranha-céu – um emblema de poder.72

Canary Wharf está então destinada, pelo quadro apresentado, a ser frequentada pelos trabalhadores de escritório em seus trajes finos, não por atividades políticas ou manifestações culturais livres, pelo menos na imagem que seus administradores procuram afirmar, como uma marca de um espaço urbano propenso ao investimento, como um produto à venda mesmo, mas se tratando no caso de um quarteirão, em tese, público. 72 GHIRARDO, Diane. Arquitetura contemporânea: uma história concisa – São Paulo, Martins Fontes, 2002 pg. 226

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fonte: blog.oceanvillasgroup.com

Enquanto ícone do poderio capitalista financeiro, Canary Wharf ostenta as marcas em grandes torres com função de concentração do controle de suas transações. Enquanto espaço urbano, reserva-se à fruição apenas daqueles que fazem parte desse controle e trabalham para sua perpetuação. Acima, a torre de Cesar Pelli ladeada por outras duas que carregam marcas de dois dos maiores bancos do mundo. Abaixo um panorama do espaço urbano hermético e controlado por seguranças particulares que as circunda, nas Docklands de Londres.

fonte: commons.wikimedia.org 3 | Produto

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As intervenções então estarão todas baseadas nessa temática da criação da marca, na estipulação de emblemas do poder financeiro das cidades. Como casos mais contemporâneos, podemos citar as revitalizações de Barcelona ou do Rio de Janeiro, que possuem o agravante de estarem associadas a eventos de apelo populares que são os Jogos Olímpicos de verão, que já citamos como pretexto para multiplicar os ganhos rentistas na produção de seus equipamentos. O fortalecimento da marca da cidade estará então, dessa forma, totalmente atrelado à construção de marcos que representem essa prosperidade e proporcionem os ganhos esperados. Podemos entender como entrave à modificação dessa lógica, a limitação da crítica arquitetônica aos aspectos formais das revitalizações, que de certa forma espera que assim seja para que os campos de atuação estejam sempre abertos a um exercício profissional que se atenha somente a forma como marca, não importando a dinâmica de controle das atividades urbanas que serão impostas ao produto de sua arquitetura. Caminhamos então para um futuro desanimador, com espaços “renovados” sem qualquer aspiração democrática, altamente segregadas e controladas e progressiva concentração do poder em mãos das instituições financeiras.73

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GHIRARDO, Diane. op. cit., pg. 269

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Considerações Finais

O sol nasce e ilumina as pedras evoluídas Que cresceram com a força de pedreiros suicidas Cavaleiros circulam vigiando as pessoas Não importa se são ruins, nem importa se são boas E a cidade se apresenta centro das ambições Para mendigos ou ricos e outras armações Coletivos, automóveis, motos e metrôs Trabalhadores, patrões, policiais, camelôs A cidade se encontra prostituída Por aqueles que a usaram em busca de saída Ilusora de pessoas de outros lugares A cidade e sua fama vai além dos mares No meio da esperteza internacional A cidade até que não está tão mal E a situação sempre mais ou menos Sempre uns com mais e outros com menos

A cidade – Chico Science & Nação Zumbi74

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Chico Science & Nação Zumbi. Da lama ao caos, faixa 04. 1994. Chaos/Sony Music. Brasil

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Nos versos da Nação Zumbi, liderada por Chico Science, o movimento manguebeat já diagnosticava em 1994 uma situação de pós-crise econômica da década de 1980 e certa recuperação econômica de Recife, traduzida na construção civil e seu boom imobiliário. É o resumo das consequências de uma produção arquitetônica, independente de sua esfera (se starchitecture ou convencional), baseada na simples afirmação de sua imagem de progresso e prosperidade. Por isso, traduz por si só toda a lacuna da crítica arquitetônica baseada apenas na forma e sua resolução. Não por acaso podemos encontrar essas críticas mais isentas longe dos periódicos de arquitetura, pois a heteronomia do capital financeiro especulativo também está presente na produção da crítica arquitetônica. No decorrer do trabalho, vimos que as influências externas à produção são ao mesmo tempo causa e efeito da situação do exercício profissional em arquitetura. Não é possível então modificar esse quadro reformulando somente os processos endógenos ao campo de trabalho. O apelo é por uma crítica mais abrangente e uma atuação mais crítica, que leve em conta também essas influências externas que condicionam a produção de arquitetura. Entretanto, reduzir os problemas de exploração dos trabalhadores e do desenho inconsequente aos simples objetivos da arquitetura, enquanto produto, é negar que os processos de construção é planejamento também são influenciados por fatores externos e que a exploração e vazio de conteúdo, se dão também, no decorrer dessas etapas. Faz-se necessária então uma proposta de atuação que contemple em seu planejamento, além dos estudos dos processos de viabilidade econômica e tecnológica, uma análise do impacto social da produção

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de arquitetura. Transcender os limites da crítica meramente formal e seus objetivos de afirmação enquanto imagem, influenciados por fatores heterônomos a essa mesma imagem, é igualmente necessário. A busca pela afirmação do produto enquanto ícone não se resume aos poucos starchitects. O fetiche da arquitetura de qualidade como produto a ser consumido, baseado em um modo de vida consumista, é então estendido à produção imobiliária convencional. Influenciado pelos ícones da arquitetura estelar, os valores de boa arquitetura são deturpados e contribuem para que perdurem as mesmas dinâmicas de produção acumulativas monopolistas. Para um desenho livre de heteronomia e que seu produto satisfaça as suas funções de formador da cidade ao mesmo tempo em que sua produção se dê livre de explorações e intenções diferentes daquelas que o próprio desenho traduz, é preciso repensar os meios de atuação e os referenciais de trabalho em arquitetura. O trabalho livre, por assim dizer, pode ser então resumido como objetivo para uma atuação que respeite os meios de produção e utilização do produto da arquitetura. Essas condições não serão alcançadas enquanto houver implicações externas às escolhas de projeto, que não aquelas que definiriam as melhores aplicações do produto e de seus meios de produção. Em condições de heteronomia, é o produto que condiciona os meios, não por seu viés técnico, mas por vieses financeiros e imagéticos. Os valores atribuídos à imagem do produto, não são os mesmos de seus meios de produção, e isso caracteriza a privação da liberdade de trabalho, pelas mesmas escolhas baseadas em análises estéticas e financeiras. Parece redundante, mas serve como base para uma crítica a arte de produzir arquitetura, ante a indústria da produção arquitetônica. Como assim sugere Ferro(2005):

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De modo geral, trata-se do melhor trabalho utilizando-se a melhor técnica e o melhor material disponível segundo a melhor forma do estado do saber e do saber fazer. Isso não se produz em condições de heteronomia a não ser por acaso. É isso que se chama arte. É também, apenas assim que um espaço produzido pode ser dito “humano”, quente, belo, acolhedor. Estamos na posição oposta à do “gênio” de Kant (figura da natureza!), estamos mais na posição considerada por ele como arte “mecânica”.75

Essa afirmação encerra em si a construção de uma crítica à aplicação das técnicas de produção como instrumento de dominação, de um processo sobre outro. É a contradição que nos faz crer que a condição de arte não será atingida pela arquitetura enquanto, por trás de seu produto, houver processos que denunciem a imagem enquanto resultado de condições que neguem todo o fetiche que a sua imagem proporciona. Como se a obra artística fosse manchada pela exploração que a produziu.76 Uma crítica que atribui genialidade à arte deve então ser reservada àqueles exemplos que estejam em conformidade com as condições humanas que os produziram, que não alterem as atribuições de seus componentes e que o resultado dessa conjugação seja aproveitado plenamente em sua proposta de utilização. Quando o melhor desenho for aplicado para um melhor canteiro que gerem um melhor produto, livre de condições heterônomas de qualquer espécie, poderemos então ter uma crítica, por sua vez, também isenta.

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FERRO, Sérgio. Arquitetura e trabalho livre – São Paulo, Cosac Naify, 2006, pg.405 Sobre a entrevista de Sérgio Ferro a Pedro Arantes, onde justifica o desprezo por uma análise meramente formal da arquitetura citando as pirâmides egípcias, por saber que foram fruto de trabalho escravo, in FERRO, Sérgio. op. cit., pg.405 76

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Bibliografia Livros ARANTES, Pedro Fiori. Arquitetura na era digital-financeira: desenho canteiro e renda da forma – São Paulo, Editora 34, 2012 ____________________, Arquitetura Nova: Sérgio Ferro, Flávio Império e Rodrigo Lefèvre, de Artigas aos mutirões – São Paulo, Editora 34, 2002 ARANTES, Otília, MARICATO, Ermínia e VAINER, Carlos. A cidade do pensamento único: desmanchando consensos, Rio de Janeiro, Vozes, 2000 ARANTES, Otília Beatriz Fiori. O Lugar da arquitetura depois dos modernos. Edusp, São Paulo; 3ª edição, 2000 ARTIGAS, João Batista Vilanova, Caminhos da arquitetura – Vilanova Artigas, São Paulo, Cosac Naify, 2004. FERRO, Sérgio. In Arquitetura e trabalho livre – São Paulo, Cosac Naify, 2006 GHIRARDO, Diane. Arquitetura contemporânea: uma história concisa – São Paulo, Martins Fontes, 2002 HARVEY, David. A condição pós-moderna – São Paulo, Edições Loyola NESBITT, Kate. Uma nova agenda para arquitetura, – São Paulo, Cosac Naify, 2008 SENNETT, Richard, A corrosão do caráter: as conseqüências pessoais do trabalho no novo capitalismo / Richard Sennett; tradução Marcos

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