O Acre Existe

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paulo silva jr.


Quando a aula era chata e o sol esquentava a sala sem ventilador, eu fugia da escola e ia para a beira do rio tomar banho. Criar máscaras com casca de melancia, pegar gravetos e desenhar na areia. Quando chovia, eu perdia os meus desenhos, pois a areia se derretia. Eu ficava horas nessa brincadeira. Era como se tudo se apagasse para eu fazer de novo, e com isso fui ganhando uma paciêcia de jabuti, que espera um ano para a cajazeira dar fruto. Mensageiros de outras dimensões trazem e levam conhecimento, ciência e sabedoria para todos os lugares do planeta. E Raoni, Paulo, Graziano e Boca decidem andar pelo mundo em busca de descobertas e conferir o que tem na Região Norte, se o Acre existe, o que, de qual forma, quem e como existe. Pesquisadores respirando outros ares. Mapeando, escrevendo de maneira sutil, leve e precisa. Conhecendo eles próprios para que possam ser iluminados com determinação, responsabilidade, confiança, gratidão e resistência de jabuti. Para concluírem a tarefa de levar e trazer, cumprindo a missão de mostrar a cara do Acre com os mistérios que existem dentro de cada cultura. Desvendados pela busca constante através do amor que flui com as energias do campo da positividade. Cícero Farias Franca, o Zé do Coco











1.a edição, São Paulo, novembro de 2013. Impresso no Brasil. Grafia atualizada, quando conveniente, segundo o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, que entrou em vigor no Brasil em 2009.

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (cip) Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil Angélica Ilacqua CRB-8/7057 ______________________________________________________ Silva Junior, Paulo O Acre existe / Paulo Silva Junior. – São Paulo, 2013. 304 p. : il. color ISBN 978-85-916079-0-7 13-0993 CDD 918.12 ______________________________________________________ Índices para catálogo sistemático: 1. Acre – obras ilustradas 2. Cidades – descrições e viagens I. Título

prefácio cícero farias franca revisão maria fernanda moraes fotos bruno graziano imagem da capa menino espiando a tv do vizinho, santa rosa do purus projeto gráfico e tratamento de imagens bianca oliveira ilustração dos mapas denise matsumoto


paulo silva jr. 



índice 18

mapas

22

prefácio

28

introdução

34

cap 01 br-364

50

cap 02 zé do coco

70

cap 03 mendes

100

cap 04 hotel brasiléia

120

cap 05 a solidão do compositor

138

cap 06 o ano novo mais aleatório

num helicóptero ou num

estádio de futebol

vazio 158

cap 07 a história

168

cap 08 a bebida

190

cap 09 viagem à última casa do brasil

204

cap 10 santa rosa do purus

218

cap 11 rio branco

264

cap 12 cícero

274

cap 13 gigante

282

epílogo

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rota da viagem s達o paulo u rio branco trajeto de ida: 3.766 km




mapa do acre trajetos percorridos dentro do estado


prefรกcio


RESISTÊNCIA DE JABUTI

Quando a aula era chata e o sol esquentava a sala sem ventilador, eu fugia da escola e ia para a beira do rio tomar banho e atravessá-lo nadando. Criar máscaras com casca de melancia, pegar gravetos e desenhar na areia. Quando chovia eu perdia os meus desenhos, pois a areia se derretia. Quando não era dia de chuva, tinha uma embarcação chamada de batelão com um motorzinho de popa que passava e fazia com que o banzeiro (o mesmo que onda do mar, só que menor) apagasse os meus desenhos. Então eu me deitava ao lado do desenho para que o meu corpo servisse de barragem para protegê-lo. Eu ficava horas nessa brincadeira, e assim eu fui aprendendo muitas coisas com a natureza. Era como se ela apagasse para eu fazer de novo, e com isso fui ganhando uma paciência de jabuti que também espera um ano para a cajazeira dar fruto e ele poder se alimentar. O jabuti não corre, ele anda vagarosamente. Como diz a Silene Farias, ‘anda devagarinho e com muita paciência, contando sua história e o segredo da ciência’. Muitas vezes o jabuti fica soterrado debaixo de grandes árvores e seu casco duro lhe protege do impacto: ele com muita paciência e resistência aguarda mais de ano se for preciso até que a madeira se decomponha para que possa sair. O jabuti sempre é respeitado pelos outros bichos, até pela onça, devido a sua sabedoria, força e resistência. 23


Um índio Kaxinawá, o Ibã, esteve aqui em casa esses dias e me contou a seguinte história sobre o jabuti. A onça resolveu comer o jabuti e partiu para cima dele, apesar de que não tem graça nenhuma para os felinos comer um bicho que espera para ser comido, mas estava faltando caça na floresta. A onça decidiu atacar o jabuti para ter um almoço diferente e o jabuti achou estranha a reação da onça. Tentou então entender a situação e perguntou para a onça o porquê dela querer devorá-lo. E a onça respondeu sutilmente: ‘é porque eu estou com fome e, como eu sou o animal mais poderoso da Floresta Amazônica, eu como quem eu quiser!’ E a onça partiu para cima do jabuti, que recuou e disse: ‘espera aí, dona onça, a senhora é que pensa que é o animal mais poderoso da floresta’. A onça disse: ‘como assim?’ O jabuti foi explicar para ela: ‘a senhora não tem poder para me pegar na carreira’. A onça achou muito engraçado o que o jabuti estava falando e, curiosa, aceitou o desafio dele, que disse: ‘sim, dona onça, vamos botar uma regra nesse jogo; já que eu sou menor que você, a senhora vai se virar de costas para que eu me prepare e possa tirar essa roupa pesada’. Assim foi feito. Quando ela se virou, o rei da fuga sumiu e a onça começou a lhe procurar. Ela disse: ‘onde você está, jabuti? Fala para que eu possa ver’. Quando ele falava vinham vozes de todo lado e a onça não sabia para que lado ela deveria seguir. E a onça disse: ‘apareça se você for corajoso, quero ver se você tem resistência mesmo’. E o jabuti apareceu na frente da onça. Quando a onça quis dar o bote, ela ouviu atrás outro jabuti dizendo ‘estou aqui’; quando ela foi se virando para o outro lado, outro jabuti fez o mesmo: ‘estou aqui’. E vários jabutis foram aparecendo, chegando a mais de 700, até que um deles exclamou: 24


Dona onça, a nossa força está na união de cada malha Por isso que nós somos resistentes A união é a força E ninguém pode com a gente E a onça encurralada sem saber para onde correr. E todos os jabutis marcharam em direção à onça. E a onça desesperada, sem ação, morreu nas mãos dos jabutis. E o pajé que tudo via se impressionou e aprendeu uma lição. Mensageiros de outras dimensões trazem e levam conhecimento para todos os lugares do planeta. Ciência e sabedoria. Alguns mistérios são desvendados, e quando se desvenda um mistério é hora de conhecê-lo, parar, olhar, sentir. A princípio, se abre a primeira página do livro e o mistério tem detalhes e uma linha por onde se caminha com atenção voltada para dentro do coração. Vimos a luz que mostra outra luz, espaço aberto, serenidade de espírito. Com confiança, seguimos a intuição andando em direção a algo que não se sabe o que é, descobrindo o que não procurava e chegando em algum lugar onde não se sabe onde nem por qual motivo parou. Cheguei, encontrei. Raoni, Paulo, Graziano e Boca decidem andar pelo mundo em busca de descobertas e conferir o que tem na Região Norte, se o Acre existe, o que, de qual forma, quem e como existe. Pesquisadores respirando outros ares. Mapeando, escrevendo de maneira sutil, leve e precisa. E não conhecem só o Zé do Coco, mas o Acre. Embora não tenha dado tempo para conhecer Camaleão, Lona, Jó, Liudo, Cancão de Fogo, Beija-Flor, Seu Rosendo, Raimundo Sapateiro, Conrado, Dona Deusa, Zé da Caixa, Matias, Helio Melo e etc. Conhecendo eles próprios para que possam ser iluminados com determinação, responsabilidade, confiança, 25


gratidão e resistência de jabuti. Para concluírem a tarefa de levar e trazer, cumprindo a missão de mostrar a cara do Acre com os mistérios que existem dentro de cada cultura. Desvendados pela busca constante através do amor que flui com as energias do campo da positividade.

Cícero Farias Franca, o Zé do Coco

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introdução


No final do ano de 2011, Bruno Graziano, Milton Leal, Raoni Gruber e eu, Paulo Silva Junior, resolvemos fazer uma jornada de carro pro lugar de onde a gente menos tivesse notícia no país e de lá sair com um filme que pudesse juntar duas das coisas que nos ligavam: o gosto por contar histórias – seja no jornalismo ou no cinema – e o prazer por viajar. Ficou fácil a escolha pelo Acre e a ideia de gravar um documentário chamado O Acre Existe, um projeto de usar o mote da piada pra falar do estado, da região, das pessoas, da cultura, do modo de vida, da viagem, da nossa experiência e de tudo que aparecesse durante uns dois meses, entre ida, estadia nas cidades acreanas e volta. Achei que seria chato ficar contando nestas primeiras linhas como a ideia surgiu, quem somos nós, de onde nos conhecemos, qual nosso grau de proximidade e como fizemos e viabilizamos tudo isso – soaria linear demais. Mas achei necessário deixar claro que, na ausência dessas informações introdutórias aqui, elas estão diluídas ao longo do livro. Vale dizer, de cara, que este texto foi escrito em primeira pessoa, narrado por mim, mas pertence a nós quatro. Ele trata dos nossos encontros pela estrada e também da nossa viagem, literal e não literalmente, além de nossas escolhas, medos, diferenças, transformações. Um tanto pelo nosso desconhecimento sobre o tema e um pouco mais pela proposta inicial de não preparar roteiros ou longas pesquisas prévias, é consenso que isso tudo superou qualquer expectativa. O que estava perdido entre um documentário road movie e um registro de memória, sem a ideia de que perfil de entrevistados ou temas teríamos, muito 29


menos qualquer noção de linguagem ou ponto de partida, acabou andando com as próprias pernas. É que à medida que nossas dúvidas se multiplicavam – falar com quem?, sobre o quê?, em que circunstância?, será que não estamos sendo repetitivos?, procurar um artista?, achar um político?, quantos dias na tribo indígena?, será que não vale ficar mais tempo na capital? – nós quatro éramos bombardeados, sem dó nem cerimônia, com uma riqueza de assuntos e temas que hoje já não imagino como era não ter noção nenhuma de que eles existiam. Assim, de forma geral e mesmo antes de começar este livro, é possível dividir tudo o que aconteceu em três atos: primeiro, uma semana em que somos quatro curiosos meio sem jeito ainda muito ligados à questão da viagem, do projeto, dos dois meses longe de casa largando trabalho, com pouco dinheiro e nenhuma certeza nem de que seríamos bem recebidos ou expulsos de uma cidade lá na pontinha do país que a gente mal conhece; segundo, praticamente dois meses de completa imersão no cotidiano acreano, um momento em que o formato de road movie é de certa forma engolido por personagens que ganham a câmera, a narrativa, e vão criando nosso relato cheio de recortes, heterogêneo e natural, como se o Acre e os acreanos tomassem a frente e virassem os protagonistas de uma página em branco; terceiro, uma comunhão até mística entre nós e tudo isso, a ponto de viagem, viajantes e locais passarem a se confundir dos registros no vídeo às mesas de bar. Em números, visitamos 16 dos 22 municípios acreanos, comemos, bebemos ou dormimos ainda por São Paulo, Mato Grosso do Sul, Mato Grosso, Rondônia e pelas cidades próximas dos vizinhos Peru e Bolívia. O hodômetro do carro, quando voltamos pra casa, marcou pouco mais de dez mil quilômetros percorridos entre as quatro da manhã de 16 30


de dezembro de 2011, quando pegamos a rua da Consolação, em São Paulo, até as primeiras horas do dia 1º de fevereiro de fevereiro de 2012, momento em que sentamos frente ao mar na areia da praia do Tombo, no Guarujá, litoral paulista. Deu tempo de entender o tamanho da Revolução Acreana e os motivos que fazem do cidadão local um exímio defensor de suas terras que tanto lutaram até fazê-las brasileiras; conhecer a histórica migração dos cearenses no Ciclo da Borracha, fato que faz do Acre um ponto praticamente nordestino na Amazônia; estar num aniversário de morte de Chico Mendes em Xapuri, cidade em que o mais famoso líder no combate contra o desmatamento na região nasceu, viveu e morreu há um quarto de século; passar um Natal com os haitianos que buscam reiniciar a vida após o terremoto que devastou o país e começam essa caminhada na pequena Brasiléia, mínima na estrutura, elástica no coração; conviver nas cidades de fronteira, tão próximas e tão distantes dos povos vizinhos de língua espanhola; acompanhar uma festa de virada de ano do lugar mais improvável que qualquer um poderia imaginar, o céu de Rio Branco; mergulhar na cultura da ayahuasca, o chá sagrado que move aquele povo tão sensível; morar por alguns dias numa tribo indígena, ou passar uma tarde numa comunidade ribeirinha, ou ainda visitar o mais ocidental dos moradores do país, ou também estar numa cidade onde só se chega com uma viagem de barco de uma semana ou num voo de teco-teco; tudo isso passando por arte, música, poesia, análise crítica, projeto social, política, choros, beijos, alegria. Adaptando a frase de Euclides da Cunha, que há mais de um século esteve no mesmo Acre com a missão de reconhecer a região do Alto Purus, o acreano é, antes de tudo, um forte. E é pra essa figura ímpar – essa confusão maravilhosa entre um índio, um seringueiro, um nordestino, um artista, 31


um cidadão da floresta mais impressionante deste planeta, um novo homem da cidade calmo, coerente, amoroso – que dedico este livro. E insisto: estas páginas só existem pela paixão que o Acre e o acreano despertaram em nós. Pessoalmente, digo que isso aqui mudou minha vida, na simplicidade direta da expressão. Mudou, mudou tudo. Saí do emprego, perdi a paciência com coisas que levava até outro dia e me vejo empurrado a buscar cenários como esse aqui, que mesmo difíceis de serem concebidos, são o mais perto que já consegui chegar em relação ao que acredito sobre arte, sobre comunicação, sobre convivência e, num âmbito mais existencial, sobre a própria vida, o próprio passar dos anos. Em termos práticos, a prioridade clara era o documentário, que depois de muito esforço finalmente alcança as retinas acreanas neste novembro de 2013 e o qual tive o prazer de ajudar a pensar do começo ao fim. O livro se torna, portanto, uma retaguarda pro filme. Ou vice-versa, como se o filme desse voz, cor e brilho pra estas palavras. Mas vale ressaltar que um não é base pro outro, ao ponto em que foram construídos simultaneamente e são lançados juntos, dois anos depois da viagem, neste final de 2013, começo de 2014. Vale registrar ainda o nome de quem fez isso junto com a gente. No livro, toda a confiança de Bianca Oliveira, que desenhou e diagramou essas páginas; e toda a disposição de Maria Fernanda Moraes, minha primeira chefe, não esqueço, que revisou essas tantas histórias. No filme, o trabalho de primeira das produtoras Controle Remoto Filmes e Jangada Cultural; da Capitão Monga, quem pensou e criou toda a trilha sonora original dum projeto tão sensorial; dos estúdios 1+2 e Teremim, que emprestaram seus traços pras animações; de Tiago Tosh, que fez o desenho, e Victor Fão, que finalizou, e são os artistas por trás do pôster; de Everton Oliveira, o camarada da correção de cor; do Festival Pachamama 32


– Cinema de Fronteira, que com seu chamado nos faz voltar à saudosa Rio Branco enquanto documentário convidado; e de Denise Godinho e Ana Paula Freitas, que deram importante retaguarda durante nossos dias de Acre. Claro que neste relato que começa agora talvez nem tudo seja fiel ao que os três parceiros da coisa mais legal que eu já fiz na vida pensam. Mas tento, de alguma forma, representá-los também e espero que tenha conseguido deixá-los minimamente satisfeitos, já que essa história não é só minha. Mais que isso, nem só de nós quatro ela é mais.

São Paulo, novembro de 2013.

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01 br-364 começo da viagem

sĂŁo paulo u acre


– Vai, vocês que falam com o cara. – Avisar da filmagem, ver se ele topa, fala... – É. – Tá... Marcos, a gente anda fotografando e filmando os lugares por onde a gente passa, tudo bem se... – Tranquilo. (…) Marcos é um paulistano que vive à beira da br-364 na altura de Cáceres, Mato Grosso, e segue sem se mexer, não faz nenhuma reação à câmera como também não foge dela, não cresce nem diminui, fica ali, sentado e com os olhos firmes mirando a televisão de imagem trêmula. É rigorosamente um homem médio, na altura, no peso, na cor, no tom de voz, é tão médio que é bastante desafiador querer saber se Marcos está feliz ou triste, ou ainda se há ali uma grande distância entre isso na indiferença que o cinquentão carrega, chinelo de dedo, bermuda sem cinto, barriga à mostra, mãos coçando a cabeça. Ao lado dele está Luiz, tão ou ainda mais calado, tão ou ainda mais corpo e carne e osso num banco de madeira colocado na diagonal da sala. É com Luiz que Marcos divide um casarão simples cercado por uma reserva natural de onde a dupla tira o sustento, da terra, com a diferença de que Luiz é casado – a casa é, portanto, dividida por três – e Marcos é só, naturalmente só no esforço de ser frio ao contar os anos que já não vê nem mãe nem os sete irmãos. Há um ano e três meses Marcos chegou por ali, onde faz um tipo de caseiro do lugar, tanto que até agora diz ter tido tempo apenas de limpar todo o terreno e tirar os barracos 35


02 zĂŠ do coco 3.776 km rodados atĂŠ aqui

/ rio branco /


O Raoni perdeu a carteira de habilitação pouco antes da viagem, mas perdeu de perder assim fisicamente, não que ela estivesse suspensa, mas por via das dúvidas eu sempre pegava o carro nos trechos urbanos, o que me deu a honra de ser o responsável por abrir a reta na via Chico Mendes e ser o primeiro a sentir o ar de Rio Branco, a capital verde, imponente, cortada pelo rio Acre. Era meio de tarde, um sol pra cada um e pelo menos mais vários nos esperando. Chegamos e tínhamos um encontro marcado: a Rede Amazônica, tv Globo local, estaria preparada e aguardando a chegada pra uma reportagem com os quatro paulistas que estão pedindo dinheiro pra fazer um filme, e aqui valem dois parênteses essenciais pra que se entenda dois aspectos de tudo isso que a gente chama sinteticamente de viagem pro Acre – um é sobre dinheiro, outro sobre exposição. A gente viajou com a grana do próprio bolso, uns mais, outros menos. Os dois caras que tiveram a ideia, Boca e Graziano, bancaram a coisa toda, o primeiro com o dinheiro que a gente viu saindo da carteira, o segundo com os equipamentos e a estrutura burocrática da retaguarda da produtora, a Controle Remoto; eu fui chamado no começo e passei a ter basicamente a mesma condição que eles dois em termos de ser um dos sócios do projeto, digamos, sendo que não ia receber nada e assumiria a dívida em relação ao carro (que 51


03 mendes 3.990 km rodados atĂŠ aqui

/ xapuri /


Nilson foi o responsável por nos apresentar a floresta na intimidade da mata fechada e lá estávamos nós, completando uma semana de viagem e entrando num pedaço mínimo de Amazônia, coisa de uma hora dentro da maior riqueza ambiental que este planeta já foi capaz de mostrar. Dormimos na Pousada do Seringal Cachoeira, município de Xapuri, percorremos nem dez minutos de carro e paramos na beira de uma trilha aberta, turística, nas palavras do nosso guia, que nos primeiros passos já começou a passear pelo conhecimento impressionante sobre cada pedaço de terra, de planta, de bicho, uma coisa meio fora do normal mesmo, afinal, pode parecer meio óbvio hoje, tanto tempo depois e na frieza dessas linhas, mas de onde este homem de meia idade, seringueiro de essência e paixão, tirou tanta memória e tanta informação pra dobrar qualquer professor de biologia que já se teve notícia? – Se o homem passa mal, dor de estômago, incômodo na barriga, come essa plantinha aqui, toma o líquido dela e passa o mal estar. É chamada de ninho de porca, família Rubiácea. – Cânfora também tem. Se uma vespa lhe ferra, um maribondo, uma formiga que seja, mas você não tem cânfora, usa a batata desta plantinha natural aqui, a mais pura da Amazônia. Mas cuidado com a água: tem animal que come essa planta e depois bebe água, morre e vira uma bolha de ar. 71


04 hotel brasiléia 4.070 km rodados até aqui

brasiléia

/ epitaciolândia / cobija [bolívia]


Max (Gabart); Thelanor, Germain (Jacques), Gabbardi e Bourcicaut (Stephane); Guillaune, Bourdot (Barthelmy), Gilles (Telamour) e Romulut (Mones), Fleury (Francis) e Desir (Herold). Esse é o time do Haiti que foi a campo em agosto de 2004 num amistoso diante da seleção brasileira daquele que receberia meses depois o prêmio de melhor jogador do mundo, Ronaldinho Gaúcho, pra uma partida de futebol na capital Porto Príncipe. Antes do jogo o presidente brasileiro Luiz Inácio Lula da Silva chegou a dizer que não gostaria de ver a equipe, atual campeã mundial, fazer muitos gols contra os haitianos, então ocupando a posição de número 95 no ranking mundial da Fifa, ao tempo em que os anfitriões receberam uma boa proposta do primeiro-ministro Gerard Latortue: quem marcasse um gol receberia mil dólares, muita grana pros padrões do país mais pobre do continente americano. O jogo da paz (Brasil 6 a 0), como ficou conhecido, nasceu como parte da representatividade do Brasil na liderança das tropas das Nações Unidas dedicadas ao país da América Central com o suposto propósito de colaborar com a estabilização de um país que vivia um momento político delicado após a saída do presidente Jean-Bertrand Aristide. Tendo como base o último levantamento do idh, Índice 101


06 o ano novo mais aleat贸rio num helic贸ptero ou num est谩dio de futebol vazio 4.550 km rodados at茅 aqui

/ rio branco /


Foram treze dias pesados e bastante parecidos, de muita gravação, entrevista e pouco sono, acordando cedo e indo dormir bem, bem tarde, da viagem até os primeiros personagens e as três pedradas na cabeça em sequência: a história de Chico Mendes, a situação dos haitianos e a imersão na bucólica Assis Brasil, nosso lugar preferido no interior até então. A volta pra Rio Branco marcava duas coisas, primeiro o ineditismo de finalmente se chegar num lugar que já se conhece, ainda que os primeiros dias na capital não tivessem sido tão longos assim; segundo, era o fim do primeiro terço da viagem, aquele que até o ano novo a gente faria o tripé Xapuri, Brasiléia e Assis Brasil pra voltar a estar na principal cidade acreana na entrada de 2012. O apoio do governo significou que a gente saiu da nossa linha de quartos ridiculamente baratos e quartos compartilhados ao extremo pra ficar no Loureiro, o hotel em que mais dormi na vida e que consagrou Morcegão, o funcionário que assim apelidamos pela capacidade insone de estar trabalhando em todas as horas do dia, juro. As coisas pra quem acompanhava o projeto pela internet iam bem. O nosso blog funcionava profissionalmente, já que nos rendeu um vasto making of e muitas coisas que servem inclusive como base pra este livro e pro documentário, mas era também uma terapia, um canal de divertimento, uma 139


07 a história 5.000 km rodados até aqui

/ tarauacá /


Ainda era século xix e a região do estado do Acre começava a ganhar força econômica pelo potencial no que diz respeito à extração da borracha, produto de extremo valor pra época e que demandava gritos de norte-americanos e europeus em busca do látex pro abastecimento interno. A valorização da região fez com que as pessoas se deslocassem de outros centros do Norte, mas principalmente do Nordeste, ainda mais especificamente do Ceará, pra tentar a vida cortando seringa no local mais próspero pra tal. Ainda em 1867, um acordo definiu os limites entre Brasil e Bolívia, e mesmo que isso não tivesse tanta importância até o momento em que os países perceberam o tamanho da riqueza chamada látex, o Acre era parte boliviana. Já nos últimos anos do século, com a região sendo formada quase que na totalidade por brasileiros, teve início um sentimento de garantir que aquele pedaço de terra, o Acre, se tornasse área integrante do Brasil, ao invés de ceder aos interesses vizinhos. Foi então que em 14 de julho de 1899 um espanhol chamado Luis Galvez Rodríguez de Arias, funcionário do consulado boliviano em Belém, no Pará, proclamou a República do Acre e pretendeu governar aquele novo estado. Mas isso durou pouco visto que o governo brasileiro estava mais disposto a manter as terras como posse da Bolívia pra seguir o acordado anos antes, o que fez com o que o ato de Galvez fosse apenas simbólico. 159


08 a bebida 5250 km rodados atĂŠ aqui + aldeia mutum [barco] + comunidade ribeirinha, croa [barco]

tarauacĂĄ / cruzeiro do sul


Existia um povo no começo da criação que não tomava o Uni. E o uruá, que é como se fosse o rei, o dono de uma tribo, tem poder pra tudo. Dominava um povo muito grande que nunca morria, não sentia dor, não sabia o que era doença. E esse uruá trabalhava muito e quando chegava num certo tempo reunia todos os homens, uns 30 mil, e fazia uma parede, um segurado no braço do outro, e vinha batendo, gritando, cercando um lago e chegando mais perto pros animais caírem dentro do lago. Aí matavam todos os tipos de animais. Quando chegou um tempo, o uruá disse que queria fazer esse tipo de caça e depois que esse povo já tinha ido, ele foi ver se já estavam se aproximando dos animais, mas quando chegou na beira do lago, ele começou a ver um bicho que vinha, tamanho de uma galinha, flechou, matou, e o lago começou a vibrar muito, aparecendo muitas cores e umas tartarugas pequenas. Com isso, deu um efeito muito forte nele, ele sentiu o corpo diferente e caiu. A mulher dele ficou preocupada, levantou ele, e ele disse que não tinha acontecido nada. Ele teve o ataque novamente ao não tirar aquilo dele, ele via aquelas tartarugas no lago em malhas de jiboia e caiu novamente e não levantou mais. Ninguém sabia o que era, porque nunca tinham visto morte. Então mandaram chamar todo aquele povo e ninguém sabia que ele tinha morrido. Passaram três dias e disseram que ele não ia mais acordar, mas aí o que iam fazer com o corpo 169


09 viagem à última casa do brasil 5.300 km rodados até aqui + serra do divisor [barco]

cruzeiro do sul / mâncio lima


Saindo de Rio Branco e dividindo a viagem em duas partes, já tínhamos então feito a perna de baixo do mapa, que sai da capital e vai até Assis Brasil, e foi depois da ida à aldeia Mutum que completamos a perna de cima, que chega no ponto mais ocidental do país. Se a parte mais próxima da Bolívia, incluindo a capital, é o Vale do Acre, essa outra região, que passa por Taruacá, é o Vale do Juruá, e tem como principal cidade Cruzeiro do Sul. E se Rio Branco tem metade da população do estado, uns 350 mil de quase 800 mil de todo o Acre, Cruzeiro do Sul fica bem pra trás, com 80 mil, mas está tranquila na posição de segunda cidade com mais gente. E isso consolida um cenário de certa autonomia. A gente ouviu muito sobre essa coisa de independência antes de chegar lá, mas não chegamos a encontrar ninguém com esse tom separatista também, sem exageros, vai. De fato é fácil achar gente em Cruzeiro do Sul que nunca foi pra Rio Branco, nem nunca precisou, nem nunca cogitou, e mais, trata de dizer que ali é o melhor lugar do estado, oras. E vários ainda respondem: pô, mas eu moro sim na capital, na capital do Juruá. O lance é que até pouco tempo atrás, na virada do século, talvez, ir de Cruzeiro do Sul pra Rio Branco era uma aventura. Basta dar uma olhada no mapa pra ver que não há muitos 191


10 santa rosa do purus 5.600 km rodados até aqui + tarauacá u santa rosa [avião]


O avião marcado pra sair de Tarauacá atrasou mais de duas horas e eu que nunca tinha imaginado um aeroporto onde a sala de embarque fosse um jogo de dois trios de cadeirinhas e a lanchonete tivesse café por um real cheguei a ficar impaciente como talvez nunca ficara no Acre, porque além de eu não ter muito saco pra coçar o saco enquanto alguma coisa está atrasada ali não havia uma tela ou uma caixa de som avisando que o voo estava demorando por tal motivo ou então que sairia na hora x, mas o que eu tinha era um caderno de anotações e uma mulher dizendo que o avião devia estar pra chegar, não sabemos que horas. Santa Rosa do Purus contribuiu pra confundir ainda mais todos esses conceitos de distância, de isolamento, de geografia, até. A cidade, que surgiu oficialmente em 1993, é o ponto mais dentro do estado que a gente chegou, já que as principais zonas urbanas estão perto dos limites com Bolívia, Peru, Amazonas e Rondônia. Pra lá, não tem estrada, e o transporte é feito por barco ou avião. E a gente descolou esse teco-teco que cabia um piloto, um copiloto e nós quatro sentados em duas duplas que ficavam frente a frente, um espaço pequeno, mas não apertado. Levou nem uma hora e descemos na pista da parada mais pitoresca dessa jornada que chegava na parte final. Atravessamos longas ruas largas de terra e cruzamos com quase ninguém num calor desértico, com mosquitos 205


11 rio branco 6.000 km rodados atĂŠ aqui


Trocamos alguns dias em algumas outras cidades pelo estado porque a gente tinha coisas a resolver em Rio Branco. Tínhamos que ir atrás do cara que pinta os muros da cidade, do poeta que tinha falado com a gente pela internet, de algum jogador ou ex-jogador de futebol e do jornalista que tem o Blog da Amazônia, um dos principais canais com noticiário sobre a região dentro da grande mídia. Se a viagem não teve roteiro nenhum, ao menos a última semana precisava desse cuidado, afinal, vá saber quando a gente teria a chance de encontrar com esses caras de novo. Enfim, assim o fizemos, imagino ter sido um acerto, e aqui vão os quatro personagens da nossa reta final. s Pelas ruas de Rio Branco não raro se cruza com algum grafite de traços que misturam temas indígenas, ambientais e críticas sociais. Não são os desenhos de temática mais urbana como estamos acostumados a ver em São Paulo, mas também não dá pra dizer que são exatamente o contrário disso. Além do mais surgem num ambiente mais nu visualmente, desprovido das sequências de arranha-céus das maiores capitais, de grandes lojas de enormes marcas internacionais e ainda sem a presença de pixações. 219




12 cĂ­cero 6.000 km rodados atĂŠ aqui

/ rio branco /


Chegamos a quase trezentas páginas sem saber direito se deu pra entender que pra nós o maior personagem de toda essa história se chama Cícero Farias Franca. Apesar de ele aparecer com certa força ali no começo da história como primeiro cara a ser entrevistado na capital, é neste final de viagem que nos encontramos mais umas cinco vezes em situações completamente diferentes que o consolidam como o principal símbolo do que o Acre representou pra nós. Cícero é um artista de mil faces que circula por onde pode alcançar passando por música, teatro, artes plásticas, e quando falamos de música, teatro e artes plásticas, falamos de fato de um cara que compõe poesias e melodias pro grupo popular Jabuti-Bumbá, que sobrevive da força e do talento principalmente dessa família que vive na rua do Coco, bairro de Mocinha Magalhães, cidade de Rio Branco; que se apresenta onde quer que seja, faça chuva ou faça sol, pra rodar o chapéu e descolar um trocado; e que experimenta todos esses conceitos misturados das tintas que cria e imagens que vislumbra em quadros e mais quadros num ateliê caseiro que ganha corpo em locais como a Casa de Cultura, onde é possível ver as obras do acreano. É um caboclo da floresta que vive numa casa com um quintal gigantesco e expõe aquele perfil autodidata do amazônico que sai falando sobre os usos de cada planta e sabe as 265


13 gigante 10.000 km rodados

rio branco u s達o paulo


A produção do filme acabou oficialmente e meio sem querer no quadragésimo dia da viagem, exatamente em 24 de janeiro de 2011, uma terça-feira de garoa fina por toda a noite, na qual varamos a madrugada jogando sinuca com amigos e amigas que conhecemos em Rio Branco falando de cinema, de cultura, de viagem, de tudo. Ainda tiramos quatro dias pra ficar perambulando pela cidade e tivemos a ideia de chamar um debate na Universidade Federal do Acre com quem tivesse disposto a compartilhar um último papo, enriquecer nosso material com peculiaridades e pontos de destaque do atual momento do Acre e sua relação com o resto do país. Compareceram cinco pessoas: Maurício, um professor de jornalismo da própria ufac, paulista, há seis anos em Rio Branco; Sandro, acreano e também professor da universidade; Maria Luiza, formada na Universidade Federal do Pará e moradora do Acre; e duas amigas que fizemos por lá, Katharina e Nany. Maurício foi o mais participativo e soltou boas frases pra complementar a ideia estabelecida pelo filme até porque chegou do Sudeste e se mostrou, portanto, um bom exemplo dessa ruptura ou dessa troca de culturas de alguém que deixou São Paulo pra lecionar em Rio Branco e encontrar uma realidade bastante diferente: 275


O Acre Existe é uma publicação independente. Participaram desta edição: Bianca Oliveira, Bruno Graziano, Cícero Franca, Denise Matsumoto, Maria Fernanda Moraes, Milton Leal e Raoni Gruber. O documentário O Acre Existe também é um trabalho independente, com produção da Controle Remoto Filmes e apoio de: Jangada Cultural, Capitão Monga Studio, Estúdio 1+2, Estúdio Teremim e Secretaria de Turismo do Estado Acre. Arte do pôster: Tiago Tosh e Victor Fão. Controle Remoto Filmes Avenida Ipiranga, 1071, sala 408 . Centro . São Paulo [11] 97465 1308 . 98035 6254 . contato@controleremotofilmes.com www.controleremotofilmes.com



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tipografia Minion Pro e NexusTypewriter papel Pólen Soft 80g/m2 e Supremo 250g/m2 impressão Gráfica Juisforana tiragem 500 exemplares


Dois meses de estrada, uma câmera no braço e um documentário de descoberta sem roteiro definido. Quatro amigos paulistas – dois jornalistas e dois cineastas – partem em direção ao estado que menos conheciam e veem um road movie se perder em encontros, memórias, personagens, culturas, ambientes. No caminho, a Revolução Acreana, a Floresta Amazônica, a herança de Chico Mendes, os soldados da borracha, a imigração haitiana, a ayahuasca. Uma mistura entre um retrato histórico e contemporâneo, um livro que trata de arte, de histórias de gente comum, de experiências, de cinema de baixo orçamento e da cara dessa confusão mística chamada Acre.

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– O Chico Mendes sempre dizia: Vamo minha gente Vamo se reunir Não vamos deixar Essa floresta cair – Aí um seringueiro falou: Se a floresta cair Estamos na mão Descontrola o tempo E a região No lugar do inverno Virá o verão Vamo ver a Amazônia Virar um sertão A floresta é bonita Foi Deus quem deixou Pra preservarmos Com muito amor É o esconderijo dos bichos É o abrigo do homem É a respiração do compositor É um tapete verde Do planeta Terra É a riqueza maior Que a natureza deixou Temos a seringueira Que é a mãe da nação Se não fosse a borracha Não voava avião Não jogava-se bola Não tinha diversão Era uma tristeza Esse pedaço de chão


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