O sentido mais profundo da vivência cultural na sociedade de hoje

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Palácio Vila Flor - CCVF

O sentido mais profundo da vivência cultural na sociedade de hoje por Paulo Pinto

A Cultura e os seus múltiplos sentidos Procurar a definição para cultura, levar-nos-ia a percorrer inúmeros caminhos, tantos quantas as diferentes definições propostas por numerosos antropólogos(1). Se atentarmos no facto de cultura - ou a sua definição extravasar o domínio conceptual de antropólogos e filósofos, facilmente nos consciencializaremos da vastidão de possíveis enunciações. Veja-se as várias significações da palavra cultura na nossa linguagem quotidiana, não raras vezes associadas a uma aplicação especializada do saber humano, mas sobretudo ligadas a uma abrangência de temas e conhecimentos. A partir de Bernardo Bernardi(2), apresentam-se duas divisões de cultura que serão objecto de reflexão: cultura humanística e cultura científica ou antropológica. Na genealogia do conceito de cultura, temos, desde a tradição mais antiga, dois elementos: descritivo e normativo. O elemento normativo é o factor discriminador que resulta dos diferentes estádios de desenvolvimento do ser humano. Primitivos(3) e não primitivos são classificações que - não fora as investigações realizadas por antropólogos clarificar(4) – poderiam ser tomadas como a não existência e existência de cultura. A proto-história, que coloca o homem em harmonia com a natureza, sofre uma ruptura - no mito grego de Prometeu e Epimeteu – que resulta na vida de sofrimento e de adaptação que o ser humano enceta. A caixa de Pandora que nos torna selvagens, bárbaros ou mais humanos abre o caminho para que o elemento descritivo - tudo aquilo que não procede da natureza – ligue a cultura ao seu significado etimológico. Este devir cultural do ser humano, claramente universal e necessário para evolução futura, consubstancia-se nas formas de agir e de viver. 1


Na etimologia latina, a palavra cultura recebe o significado do verbo colere, cultivar. Esta acepção original está na base do conceito humanístico, sinónimo de erudição. Uma cultura que se adquire através da artes e letras, do cultivo do espírito e do corpo humanos, e que encontra a sua expressão máxima nos ideais de paideia grega e das “Humanidades”(5) Esta componente cultural é extremamente valorizada, no século XVIII, através da filosofia idealista alemã e do conceito de bildung (construção). Segundo esta acepção, os padrões de formação intelectual e comportamental devem reger-se por padrões superiores e refinados(6). Com o nascimento das ciências humanas(7), no século XIX, nasce o conceito científico ou antropológico de cultura. A primeira definição canónica deste conceito pertence ao antropólogo inglês Edward Tylor que, na sua obra Primitive Culture, de 1871, diz: “Cultura ou civilização, em sentido etnográfico amplo, é aquele todo complexo que inclui o conhecimento, as crenças, a arte, a moral, o direito, os costumes e quaisquer outras aptidões e hábitos adquiridos pelo homem como membro da sociedade”. Com esta definição, determinamse as noções de “todo”, “conteúdo” e “condição fundamental” que definem o conceito antropológico que Tylor acreditava possuir uma base funcional e universal e que, pela sua transversalidade, abarca toda a cultura humanística. Faltará

determinar os elementos que permitem encontrar respostas ao como e porque se transmite. Nesse sentido vai a proposta de Clifford Geetz - fundador da Antropologia Hermenêutica ou Interpretativa – claramente alicerçada na componente etnográfica da cultura. Diz Geetz:

“... se você quer compreender o que é a ciência, você deve olhar, em primeiro lugar, não para as suas teorias ou as suas descobertas, e certamente não para o que seus apologistas dizem sobre ela; você deve ver o que os praticantes da ciência fazem(8)”. Adquire assim, o processo cultural, uma significação de carácter mais profundo que assenta numa vivência estreitamente ligada aos valores de cada povo, necessariamente dinâmica, e que é produto de factores inter-relacionados (indivíduo; povos; ambiente e tempo). Para o estudo da cultura, interessa agora tudo o que o ser humano faz significativamente – com sentido e finalidade – em sociedade. Entender o que representa a análise antropológica como forma de conhecimento, é compreender esta prática etnográfica(9).

Cultura Portuguesa As acepções da palavra “cultura” que em António Sérgio adquirem significados bem distintos – o etnográfico (relativo) e o universal (absoluto)(10) – encontram eco em Eduardo Lourenço quando este, em 1952, 2

nas páginas da revista Bicórnio, promove um inquérito que pretende indagar da real existência de uma “cultura portuguesa” ou, em alternativa, de uma cultura importada da Europa que corresponderia a uma “cultura em Portugal”(11). Criticando a postura dogmática das fórmulas gerais, António Sérgio adverte para a necessidade de conhecer previamente as características dos outros povos como condição para a determinação do que é verdadeiramente nosso(12). Tanto António Sérgio como Eduardo Lourenço acentuam as diferenças marcantes da idiossincrasia portuguesa em relação aos restantes povos europeus, particularmente manifestas no espírito acrítico que perdurou em Portugal durante o período das luzes. Enquanto a França de Montaigne, Descartes ou Pascal produzira pensamento suficiente para um liberalismo cultural que se manifestava em finais do século XIX, Portugal via estagnado esse desígnio espiritual, só iniciado com a Geração de 70 – ou Geração de Coimbra - e sem consequências de monta(13). O fenómeno tipicamente português é resultado de um “magma obscuro de heranças e ritos milenários”(14), como refere Eduardo Lourenço, e de uma hiperidentidade resultante dos feitos quinhentistas da nação. Um messianismo que faz de Portugal a Jerusalém do povo judaico(15). Valerá a pena citar António José Saraiva, quando diz: “O messianismo, filosofia de exilados


exilados e de infelizes, mas também afirmação de forte personalidade espiritual, tem-se revelado uma das persistentes expressões do espírito português, desde Os Lusíadas até ao «25 de Abril» inclusive, assumindo várias formas, uma das quais foi o sebastianismo propriamente dito(16). Este sentimento surrealista terá raízes na “solidão” que nos marcou como povo, desde cedo na nossa nacionalidade. Castela funcionou como um “deserto isolador, mais do que como um espaço de ressonância e comunicação”, fazendo-nos viver entre a “aventura fora e a passividade dentro”(17). Experimentamos uma “mistura confusa de transcendênciaimanência da nossa vida à Vida que provoca um nevoeiro no espírito”(18). A nossa cultura militante que, segundo Eduardo Lourenço, é fruto da influência e omnipresença do Cristianismo(19), moldou-nos a nossa originalidade. Este “isolamento surrealista” deu lugar a uma cultura autista em Portugal. O estabelecimento da democracia não trouxe mudanças significativas ao nosso sentir como povo, nem transformou a nossa vocação lírica, o nosso delírio manso e a nossa Saudade. Uma nação que não aproveita os aspectos positivos da integração europeia e que continua a urdir a sua história com o fio da melancolia, numa espécie de irrealidade do “realismo”, é uma nação que continua a acreditar no superdesígnio da Providência. O completo desaproveitamento de

fundos comunitários - ocorrido nas décadas de 80 e 90 do século passado – é paradigma do nosso completo alheamento e do excesso de confiança que depositamos numa “consanguinidade cultural” que faz do nosso estatuto ontológico algo de eterno e inabalável.

O sentido mais profundo da vivência cultural na sociedade de hoje Globalmente, o “espaço público” de que necessitávamos deu lugar a uma cultura dos media de características marcadamente pós-materialistas. Com o desenvolvimento sócioeconómico, assistimos a uma vivência cultural redutora e, face à oferta de que dispomos, paradoxal. Os espaços públicos existentes carecem de massa crítica e abertura, alicerçando-se nas relações superficiais. Mergulhamos, como diz José Gil, num lugar de “transformação anónima dos objectos individuais de expressão”(20). As novas fontes de cultura são suportadas por um carácter de produção claramente independente, como disso é exemplo a proliferação da blogosfera. A teia em que nos tornamos fornece novos caminhos neuronais e cria massas solitárias, cada vez mais acríticas, que fomentam esta transformação de valores. É através das novas tecnologias que se comunica e se ganha notoriedade social e política. O modelo capitalista que, hoje mais do que nunca, 3

determina os objectivos individuais e faz aumentar o fosso entre as classes, resulta, como explicaria Tocqueville(21), numa resignação que esconde o ressentimento e a consciência dessas diferenças. É esta desmesurada ambição humana – quiçá pós- modernista – que nos coloca no mundo flutuante das nossas próprias construções e que é inimiga de um discernimento e reflexão cada vez mais necessários à redescoberta do sentido mais profundo da nossa vivência cultural.

Notas 1 Segundo uma compilação do antropólogo americano Alfred Kroeber, elaborada na década de 1950, existiriam cerca de 250 variações de deCinição de cultura. (Cf. Mércio Pereira Gomes, Antropologia, São Paulo: Contexto, 2008, p.33.) 2 B.Bernardi, italiano, é especialista em Antropologia, Etnologia, Arqueologia e Estudos Africanos. 3 Depois do aparecimento da teoria da evolução das espécies, o termo primitivo passou a aglutinar os termos bárbaros e selvagens. 4 Com as investigações dos antropólogos, conclui-­‐se que os chamados primitivos já não se encontravam na primeira fase da evolução e que não estavam privados de cultura (Cf. Bernardo Bernardi, Conceitos e problemas da antropologia cultural, in Antropologia, Lisboa: Teorema, 1989, p.18) 5 O conceito de “Humanidades”, renascentista, privilegia o desenvolvimento através da


redescoberta dos “clássicos”.

17 Ibidem, pp.81-­‐82.

6 Cf. Mércio Pereira Gomes, Antropologia, São Paulo:Contexto, 2008, p.34.

18 Cf. José Gil, Portugal, Hoje O Medo de Existir, Lisboa:Relógio D’Água, 2005, p.8.

7 Também designadas, por Edward B. Tylor, por ciências do espírito. 8 Cf. Clifford Geertz, A interpretação das culturas, Rio de Janeiro: Zahar, 1989, p.15. 9 Ibidem, p.15. 10 Cf. António Sérgio, Sobre a cultura portuguesa in Ensaios – VII, Lisboa:Sá da Costa, 1977, p.112. 11 Não é despicienda a carga política de base cultural contida neste inquérito, patente na discussão da questão defendida por Álvaro Ribeiro sobre uma “CilosoCia portuguesa” que fornecesse uma orientação geral de carácter unitário e identitário à maneira de ser portuguesa. (CF. Maria Manuel Baptista, Eduardo Lourenço -­ a paixão de compreender, Porto:Asa, 2003, pp.40-­‐41.) 12 António Sérgio, Sobre a cultura portuguesa in Ensaios – VII, Lisboa:Sá da Costa, 1977, pp.111-­‐112. 13 Pese embora o contínuo “combate” entre profano e religioso que marca a cultura portuguesa a partir de então. 14 Cf. Eduardo Lourenço, Portugal como cultura in Arquivos do Centro Cultural Português, Lisboa, vol.31, 1992, p.17. 15 Cf. Eduardo Lourenço, Identidade e memória in Nós e a Europa ou as Duas Razões, Lisboa:INCM, 1988, p.10. 16 Cf. António José Saraiva, A cultura em Portugal, Teoria e História, Livro I, Lisboa:Gradiva, 2007, p.82.

19 Cf. Eduardo Lourenço, Portugal como cultura in Arquivos do Centro Cultural Português, Lisboa, vol.31, 1992, p.19. 20 Cf. José Gil, Portugal, Hoje O Medo de Existir, Lisboa:Relógio D’Água, 2005, p.28.

BIBLIOGRAFIA BAPTISTA, Maria Manuel -­‐ Eduardo Lourenço a paixão de compreender. Porto:Asa, 2003. BERNARDI, Bernardo -­‐ Conceitos e problemas da antropologia cultural in Antropologia. Lisboa: Teorema, 1989. GEERTZ, Clifford -­‐ A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: Zahar, 1989. GIL, José -­‐ Portugal, Hoje O Medo de Existir. Lisboa: Relógio D’Água, 2005. GOMES, Mércio Pereira – Antropologia. São Paulo: Contexto, 2008. LOURENÇO, Eduardo -­‐ Identidade e memória in Nós e a Europa ou as Duas Razões. Lisboa:INCM, 1988. LOURENÇO, Eduardo -­‐ Portugal como cultura in Arquivos do Centro Cultural Português. Lisboa, vol.31, 1992.

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SARAIVA, António José -­‐ A cultura em Portugal, Teoria e História, Livro I. Lisboa:Gradiva, 2007. SÉRGIO, António -­‐ Sobre a cultura portuguesa in Ensaios – VII. Lisboa:Sá da Costa, 1977.


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