Enfermeira Stella Cunha - O Presente.

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PAULO EMMANUEL

Enfermeira

STELLA CUNHA O PRESENTE


Este livro conta, pelo meu viés, a história da Enfermeira Stella Cunha, minha mãe, em suas andanças pela Amazônia. D. Stella viajou por toda região Norte, como funcionária da F. SESP, com a história iniciando em Manaus em 1957, quando foi cursar a Escola de Enfermagem. D. Stella Cunha sempre foi uma mulher integra em toda sua essência. Uma moral digna de dar orgulho a qualquer ser humano. Depois de formada foi trabalhar nas cidades de Lábrea, Nova Aripuanã, Benjamim Constant (na fronteira com a Colômbia) e São Paulo de Olivença, todas no Amazonas. No Pará, atuou em Monte Alegre, Breves, Abaetetuba e Capanema, além de ter trabalhado ainda, em Cametá e Altamira. Neste livro, realizei uma ideia que sempre tive, desde que amadureci como artista, que era o desafio de produzir um livro de crônicas, contos, memórias, quadrinhos, charges e ilustrações. Não me considero um escritor, apesar e ter viajado nos textos realizados em contos e crônicas, roteiros e argumentos para quadrinhos. As minhas atividades como diagramador e designer gráfico me deram muita experiência nos 15 anos em que atuei no jornalismo paraense dentro das redações de A Província do Pará e O Liberal. Grato à SECULT , do Governo do Pará e à Lei Aldir Blanc que proporcionaram a realização deste projeto.


PAULO EMMANUEL

Enfermeira

STELLA CUNHA

O PRESENTE




ROTA DAS 13 CIDADES PERCORRIDAS DUR ENFERMEIRA A SERVIÇO DA FUNDAÇÃO SESP ENFERMAGEM DE M

COM EXCEÇÃO DE BELTERRA, SUA CIDADE NA


RANTE OS 30 ANOS EM QUE ATOU COMO P, DESDE A SUA FORMATURA NA ESCOLA DE MANAUS EM 1962.

ATAL E SANTARÉM CIDADE DA SUA INFÂNCIA.



Dedicatória

Dedico este livro à minha mãe Stella Cunha, meu pai Cosme Gama, meus irmãos Ricardo, Melba, Cosme, Mabel. Meus filhos Paulo Mashiro, Alícia, Ana Paula e Pablo Galvão. Ao meu neto Nícolas e a sua mãe Carolina. A Vó Benita Cunha e Seu Vavá, Vó Dária Gama, Tio Hildebrando e Tio Vital. Tias Dianora, Rosa, Ester, Leônidas, Leunita, Maria, Valda. Tias Chic e Bené. Primos Rosinha, Nego, João Cunha, Ednelson Navarro, Roberta Navarro e Edinho e Ninilton Navarro. Ao primo Wagner Cunha e família . Meus sobrinhos Amandinha, Romero e Marcel, Lili e Bolota. Seu Raimundo e D. Therezinha Galvão. Lucianne Holanda e Daniel. Aos cachorros: Pluto, Hollypolly, Pafúncio, Xerlocão e Pentelho. Ao Gato Xonxón de minha mãe. A D. Benícia, D. Corina e Therezinha Escudeiro. Dr. Di Paula. Dr. Brandão e D. Dica Nobre. A Paulo Renato Bandeira . Dedico este livro a todas as mulheres amazônicas. Mulheres bravas, guerreiras e de fibra. Mulheres de luta que constrem essa região. Muitas vezes, como minha mãe, sozinhas carregando os filhos e sem perder a esperança .


Ficha Técnica Edição, criação, projeto gráfico, texto e ilustrações: Paulo Emmanuel Ilustrador convidado: Paulo Mashiro. Na arte de Santarém as cores são do cartunista Luiz Pinto. Revisão: Generosa presença do escritor Gigio Ferreira

Realização: Emman’Stúdios Travessa Monte Alegre, 335 - Fundos CEP - 66020-700 Cidade Velha - Belém/PA. Fone: 91 99318.3905 pauloemman@yahoo.com.br


Sumário 1. Cidade.............Belterra 2. Cidade.............Santarém 3. Cidade.............Manaus 4. Cidade.............Labrea 5. Cidade.............Nova Aripuanã 6. Cidade.............Benjamim Constant 7. Cidade.............São paulo de Olivença 8. Cidade.............Monte Alegre 9. Cidade.............Breves 10. Cidade.............Abaetetuba



Apresentação

E

ste livro conta, pelo meu viés, a história da enfermeira Stella Cunha, minha mãe, em suas andanças pela Amazônia. D. Stella viajou por toda região Norte, como funcionária da FSESP, começando em Manaus em 1957, quando foi cursar a Escola de Enfermagem de Manaus. D. Stella Cunha sempre foi uma mulher íntegra em toda sua vida. Uma moral digna de dar orgulho a qualquer ser humano. Depois de formada, ela foi trabalhar nas seguintes cidades: Lábrea, Nova Aripuanã, Benjamim Constant (na fronteira com a Colômbia), São Paulo de Olivença, Monte Alegre, Breves, Abaetetuba e Capanema. Depois foi colocada em disponibilidade pela FUNASA, antiga FSESP. Foi afastada depois de ter denunciado um esquema de desvio de material e corrupção na unidade. Houve uma sindicância e ela acabou sendo a maior prejudicada. Por amor à profissão e um idealismo natural, a enfermeira Stella Cunha deixou um legado que precisa ser lembrado e reconhecido pelo Estado brasileiro como umas das mulheres que lutaram e se doaram em nome da Saúde Pública brasileira. Essas mulheres guerreiras que sempre lutaram e nunca abriram mão de seus ideais. Ela viveu, sofreu, amou, sorriu, viveu sempre de cabeça erguida e muito orgulhosa de sua trajetória. Este livro não chega a ser um livro biográfico. É um livro histórico, mas não há o compromisso com a veracidade dos fatos nas narrações, porque às vezes, a ordem cronológica se perde. É um livro de relatos de uma vida. Muitas vezes essas histórias me foram contadas quando eu tinha apenas sete ou oito anos de idade. Outras eu vivi com ela, ou penso que presenciei, mas algumas vezes tenho a impressão de que eu sonhei. É um projeto de lembranças de quem viveu e acompanhou essa mulher incrível por quase 50 anos de sua vida. Este livro conta a história da vida de D. Stella Cunha, uma enfermeira amazônica e um livro que pretende homenagear a Mulher Amazônica, que minha mãe representou, como muitas outras que estão por ai. Mulheres guerreiras, que muitas vezes, sozinhas, tiveram de lutar pela vida para criar os cinco filhos. É uma homenagem, também, às enfermeiras – profissão que minha mãe amou até o fim de sua vida terrena. Já perto de partir, no leito de um hospital, uma enfermeira chegou com um sorriso e lhe perguntou: “Bom-dia, D. Stella! Como está a senhora? Quer dizer que a senhora era enfermeira?” Ela respondeu: - Era não. Eu sou enfermeira!



Stella Cunha, Enfermeira.

“Às 8 horas iniciou na sala de aula, a palestra sobre o regimento interno da Escola, feito pela nossa diretora, que falou dos deveres, das obrigações, do zêlo, do comportamento, como também do valor, da sublime beleza da profissão, cuja vida iniciei hoje e para sempre.” Stella Cunha - Manaus, 17-3-1957



S

Belterra

tella Santos da Cunha nasceu o distrito de Belterra, no município de Santarém em 1937. Foi a primeira filha de Valdelírio Santos da Cunha e Benita Santos da Cunha. A ela foi dado o nome de Estella Santos da Cunha. Segundo seus relatos, seu pai, meu avô Vavá, era capataz em uma das fazendas de extração da seringa, na fase já decadente da borracha na Amazônia. Seu Valdelírio Cunha casou-se com minha avó Benita Santos e teve sete filhas, um filho e um natimorto. Moravam em Belterra, onde foi instalado o projeto Ford para a implantação do projeto da borracha em 1934. A cidade fora planejada pelos americanos e o dinheiro corria farto. Cada funcionário tinha sua casa e toda assistência dada pela empresa americana. As ruas eram pavimentadas e tinha até hidrante. Uma cena nunca vista


neste mundão amazônico. Uma cidade projetada para ser o grande polo produtor da Amazônia. E o meu avô morreu de visagem... Reza a lenda que meu avô era muito mulherengo. Certo dia, voltando para casa de bicicleta, à noite, deu carona a uma antiga namorada – já falecida. Belterra ainda era uma cidade em formação, com parca iluminação. Uma cidade construída nos moldes americanos. No caminho para casa, ele passava em frente ao cemitério. Então, meu avô vinha pedalando em sua bicicleta, quando avistou uma moça parada na rua e, ofereceu-lhe uma carona. A moça aceitou imediatamente e foram embora. No meio do caminho, ele perguntou onde ela iria ficar. Ela respondeu que iria ficar ali na frente do cemitério. Ele achou que ela estava brincando e disse-lhe que não tinha nenhuma casa por ali, só o cemitério e, continuaram. Ao chegar em frente, ela pediu para ele parar e, ao descer da garupa, ela olhou pra ele e disse: “Tu não estás me reconhecendo?”. Segundo a história de minha mãe, o meu avô saiu em disparada, chegando em casa, gritando desesperado e caindo no canteiro de plantas da minha avó, em seguida, desmaiou. Foi levado para dentro e lá adoeceu de uma febre muito alta que culminou em sua morte aos 32 anos. É aí que começam as histórias miraculosas e escabrosas de minha família. Já ouvi outras versões, inclusive defendida pela minha mãe – muitos anos depois –, mas um fato não se pode mudar, de que meu avô morreu um mês depois, e já na cama do hospital ele dizia: “Eu vou morrer. Ela veio me buscar!”. E faleceu aos 32 anos, deixando minha avó com sete crianças menores e uma na barriga.


D

Santarém

e uma hora pra outra, eles perderam o patriarca da família, e D. Benita teve de voltar para Santarém com uma fieira de filhos pequenos. Era uma mulher pequenina, forte e muito orgulhosa. Foi buscar arrego na família Cunha, para lhe ajudar a criar aquela “penca” de filhos. Minha mãe sempre contava as histórias deste período. Foi um período de muita pobreza e muitas necessidades. Passaram fome e minha mãe com apenas nove anos, ajudou a minha avó D. Benita Cunha a criar os irmãos. A família Cunha ocupou uns terrenos na rua Sete de Setembro, no centro de Santarém. À minha avó, fora dado um terreno com uma casinha de barro e coberta de palha para ela morar com as crianças. Era uma casinha de barro – bem pobrezinha. E assim começaram os momentos de dificuldades e sofrimento. D. Stella , com apenas nove anos de idade, ajudava minha avó a cuidar dos irmãos mais novos. E a vida de “dificuldades” seguia em frente.


A

rua Sete de Setembro, no centro de Santarém, naquele quarteirão, era ocupada pela família Cunha, porém, naquele tempo, as pessoas iam ocupando as áreas e muitos terrenos não possuíam registros – ou por ignorância ou por desleixo mesmo. Eram ocupações e os mais espertos ficavam com as propriedades. Minha avó era uma mulher analfabeta. Mas na chegada e, quando teve posse do terreno que lhe fora dado pela família, a primeira coisa que fez, foi ir à prefeitura e registrar o terreno em seu nome. Fato que foi decisivo para uma situação que ocorreria logo depois. Um primo chamado Bamba, começou a vender todos os terrenos da família – a “preço de banana”. E segundo minha mãe, “pra comprar cachaça”. Sic. Conseguiu vender quase todos os terrenos e, certa vez, foi lá na casa de minha avó e disse-lhe que ela teria que sair porque aquele terreno já tinha sido vendido. Foi lá para expulsar a família, foi quando minha avó lhe esfregou a escritura na cara e o mandou embora. A questão estava resolvida, mas toda vez que ele bebia, ia para a frente da residência, ofendê-la, bem como prometia tocar fogo na casa. Mas tudo isso não passava de ameaças – felizmente. Nisso, a vida foi tomando seu rumo e, as crianças foram crescendo com minha avó trabalhando muito para sustentar toda a família. O tempo passou e, quando estávamos à mesa e não queríamos comer, minha mãe dizia que eles eram tão pobres, que minha avó não tinha dinheiro para comprar brinquedos e os ossinhos do mocotó viravam cavalinhos, bonequinhos e, que a gente tinha sorte de ter comida na mesa. Eu nunca me impressionei com essas histórias, mas sempre fantasiei essas transformações nos ossos. A ponto de, quando tinha feijoada, pegar os ossinhos e ver se tinham mesmo, a aparência de que ela sempre falara. Nunca consegui ver nada disso.



Histórias

Fantasmagóricas

S

antarém era uma cidade emergente do Baixo-Tapajós. Com uma vida cultural ainda em formação de uma cidade em desenvolvimento. Minha mãe contava as histórias fantasmagóricas que sempre envolviam a família. Havia a história de um homem que, em certo dia, o fantasma de um cabano lhe aparecia num sonho dizendo que, em determinado lugar, no meio do cemitério, havia um tesouro cabano enterrado, e que, ele só poderia desenterrá-lo, à meia-noite de uma sexta-feira 13 e sozinho. Havia muitas histórias sobre os cabanos no Pará. E muitas delas contavam que nas fugas, quando perseguidos pelo governo, muitas famílias ricas escondiam os bens em vários lugares não sabidos – e esse lugar, era um dos esconderijos perdidos. Esse rapaz, que teve essa visão, ficou bastante animado em encontrar o tesouro, mas teve medo de ir só, e para isso, convidou um amigo, que também viu a possibilidade de enriquecer e aceitou ir junto. Chegaram ao cemitério exatamente à meia-noite, cortou o dedo pra selar o pacto com sangue e começou a cavar. De repente, eclodiu do buraco, um grande enxame de abelhas que os colocou para correr. Minha mãe contava a história da tia Filismina – a tia Fuluca. Dizia que ainda menina, como não havia água encanada em sua casa, a família costumava ir buscar água no rio e, ela ia sempre com a prima Judith. Na volta pra casa, no meio do caminho, elas encontraram com uma mulher vestida toda de branco. A mulher lhe chamou e contou essa história do cemitério e do tesouro escondido, e que era para ela, lhe acompanhar até onde estava enterrado. A tia Fuluca ainda ficou tentada em ir ao encontro da mulher, mas a tia Judith disse-lhe: - Volta aqui, Fuluca. Não estás vendo que isso é assombração! – e saíram correndo, ainda a tempo de ouvir da mulher: - Se tu não fores buscar o tesouro, ele só poderá ser desenterrado, daqui a 50 anos. A minha avó era vizinha de um médico muito rico – que era dono de uma clínica –, e nos contavam que foi ele que encontrou o tesouro. Enriquecera por causa da aparição. E que isso fora feito através de um pacto de sangue. Diziam que o doutor tinha vendido a alma do seu filho primogênito – que morreria ao completar 18 anos. A história foi ganhando ares de veracidade, quando, de fato, o filho do doutor José Fernandes, morrera num acidente de carro – só que ele não tinha 18 anos, morrera com 28 anos. Não há confirmação, nem registro histórico ou algo que dê veracidade a essas histórias. O povo do interior na Amazônia é um grande contador de “causos”, e esses, fazem parte do imaginário popular.




A

Fundação de Serviço Especial de Saúde Pública - F.SESP.

vida em Santarém era uma vida cheia de privações e dificuldades. D. Benita trabalhava como lavadeira para sustentar a família, ajudada pelas filhas e as irmãs mais velhas, para criar e alfabetizar os irmãos mais novos e, todos os afazeres da casa, que apesar de pobrezinha, era muito bem cuidada. Em determinado momento, correu a informação na cidade, que a FSESP estaria contratando novos funcionários, e que isto, seria feito através de concursos. Todos ficaram animados. Era a oportunidade de minha avó conseguir um bom emprego, para que eles pudessem sair daquela situação. Minha avó decidiu fazer o concurso, mas havia um problema – ela era analfabeta, e as meninas, tiveram de correr, para alfabetizá-la, e assim, que ela pudesse ter condições de participar do concurso. Não tenho muitos detalhes sobre este fato, mas é neste momento que ocorre a aproximação de D. Stella com a Saúde Pública. A minha avó conseguiu ser aprovada, e assim, assumiu o cargo de merendeira da Fundação SESP em Santarém. Foi neste momento que minha mãe passou a ter contato com a FSESP, e ficar sempre perto daquele que um dia, seria o seu local de trabalho. Ela era muito inteligente e observadora, e adquiriu uma paixão pelo uniforme branco das enfermeiras. Sempre que ia ajudar minha avó no trabalho, aproveitava para visitar a ala da Enfermagem, observava e fazia perguntas sobre a profissão. Tinha muita curiosidade e interesse naquele ambiente. Já estava na adolescência e, já prestes a concluir o antigo segundo grau. Isso chamou a atenção em um dos médicos, que gostou muito dela – e foi este mesmo médico, que sabendo desse interesse dela pela Enfermagem, conversou com minha avó e falou sobre a Escola de Enfermagem de Manaus. Acabou sugerindo para ela, minha avó, que minha mãe fizesse o vestibular para o curso de Enfermagem, assim que tão logo concluísse o antigo segundo grau. E assim foi feito. Minha mãe prestou o vestibular e conseguiu aprovação para cursar Enfermagem, na importante Escola de Enfermagem de Manaus, em 1956. A jovem Stella Cunha se despediu da família em Santarém e, partiu para um período de internato; em uma das escolas de Enfermagem mais importantes do país. O país vivia um período transformador. Era um momento de grande crescimento a ponto do escritor e jornalista Zuenir Ventura, escrever “Feliz 1958, O Ano Que Não Devia Terminar.”, segundo ele, o ano foi tão harmonioso, que não devia terminar nunca. Adalgisa Colombo sagrou-se Miss Brasil, revolucionando os concursos de beleza com uma ousadia que antecipava as mulheres dos anos 60. E havia uma grande carência de profissionais na Amazônia, em especial, profissionais da área da Saúde, e o Governo Federal resolveu investir na formação desses profissionais a partir do Amazonas. E criou a Escola de Enfermagem de Manaus. O país estava em plena transformação – em seu diário escrito neste ano, há o registro de uma mulher em plena formação intelectual e profissional. Estava muito feliz por estar realizando seu sonho e anotava tudo neste pequeno diário cuidadosamente guardado. Fiz a transcrição literal deste diário, mantendo a escrita original e os poucos erros ortográficos.


Diário de Stella Santos da Cunha Rua Terezina, 495 C. Postal , 340 – Manáus - Amazonas / 1957.

“Dia 14 de março de 1957, assinei o contrato com o SNT; comprometendo como bolsista a trabalhar, após formada, um ano, para essa companhia, em qualquer parte do Brasil. “ – Manaus, 14-3-57

t Às 2,15 horas da tarde .

17-3-57

do valor, da sublime beleza da profissão, cuja vida iniciei hoje e para sempre .

n Hoje , às 16,30 horas da tarde , entramos para o Internato da Escola de Enfermagem.

Dia 18,

n Às 7,30 da manhã, fiquei imensamente alegre com a chegada de uma colega vinda de Santarém, a qual trouxe notícias de minha querida mãe e irmãos, como também o meu sapato ansiosamente esperado.

n Às 8 horas iniciou na sala de aula, a palestra sobre o regimento interno da Escola, feito pela nossa diretora, que falou dos deveres, das obrigações, do zêlo, do comportamento, como também

n Manaus – Escola de Enfermagem, às 15 pra 11 horas do dia 18 de março de 1957.

Stella Santos da Cunha

Dia 19,

tÀs 8,30 horas da manhã saímos com a fim de visitar o Hospital Beneficente Portuguêsa. Lá chegamos às 9 horas e iniciamos a visita percorrendo todo hospital , onde ficamos até as 10 horas.

Dia 20-3-57.

nHoje tivemos das 8 às 10 horas, a primeira aula, sendo “ História da Enfermagem”, administrada pela enfermeira D. Venância Lopes de Carvalho;


tudo transcorreu otimamente , parecendo ser boa matéria e de fácil compreensão.

Dia 21-3-57 .

nTivemos hoje a primeira aula de Química com o professor Raimundo Said . Das 7 às 8 horas da manhã. Das 9 às 10 horas visitamos a Casa da Criança, onde fiquei encantadíssima com o zêlo que as Irmãs de Caridade , têm com êsses frágeis sêres criados sem o amor materno. Das 11 horas às 12, tivemos a 1ª aula de Higiene Individual dada pela Enfermeira D. Daisy Richer, minha conterrânea.

Dia 22-3-57 .

nHoje , após uma longa volta pela cidade em nosso ônibus, chegamos ao Sanatório Adriano Jorge afim de visita-lo. Teve início esta visita às 9,5 horas da manhã e terminou às 10,30 horas, Em primeiro lugar visitamos a lavanderia onde olhamos minuciosamente o trabalho feito nas roupas dos doentes deste sanatório. nApós percorrermos outras partes como: cosinha, refeitório, salas, etc... passamos para as enfermarias. Visitamos primeiro os doentes já em convalescência, vimos a sala de operações, foi nos mostrado diversos pulmões retirados de pessoas doentes, o qual fiquei muito admirada e pensativa. nTambém vimos o curativo que está sendo feito em uma senhora já operada e quase boa .

nApós passarmos nas enfermarias mais afetadas pela doença; visitamos primeiro os homens e depois as mulheres, onde fiquei preocupadíssima em saber como essa doença, a tuberculose – está alastrada em nosso país – pois o hospital está completamente repleto de pacientes, de todo caráter, incluindo jovens, adolescentes e crianças. “ O meu desejo firme é que seja feliz em meu estudo para breve estar junto deles, dando-lhes a minha ajuda e um pouco de de conforto, pois vivem tão tristes e sozinhos o que pude perceber nessa visita” A Enfermeira que nos acompanhou foi a D. Selite , muito boa , pois logo conquistou nossa amizade , principalmente a minha.

Dia 23-3-57 .

nFiquei bastante contente com a chegada de uma colega, a qual , trouxe notícias de casa. Minha amiga do peitinho Wilma.

Dia 30-3-57 . nTivemos a primeira aula de Anatomia, com o Dr. Gilson Vieiralves , Dia 1-4-57 .

Hoje tivemos a oportunidade de visitar a Sta. Casa de Misericórdia, em companhia de D. Teresa Campos. Ao entrarmos no centro cirúrgico, dirigimo-nos à sala


de operações onde estava sendo executada uma operação de ovário. Dia 3-4-57 .

Após um big filme “ O Cálice Sagrado” em companhia de Wilma, jantamos na casa da enfermeira D. Selite Peseiro, pessoa muito bondosa , não somente ela como sua mãe e seus irmãos.

Dia 14-4-57 .

Dia de votação à diretoria da U.E.E

Dia 18-4-57 . – Recebi valor enviado por minha querida mãe ( 400,00) 6-5-57 – Hoje tivemos aula sobre T.P.R sendo posta logo em prática esta matéria. nOs operadores foram: Dr. Walucio, nosso professor, Dr. Arlindo Mota , que nos iam explicando minuciosamente detalhes da operação. A instrumentadora foi uma aluna do 2º ano, Terezinha Gomes e demais ajudantes , a enfermeira D. Aracy e outra aluna do 2º ano, Socorro Fernandes. O ato transcorreu normalmente durante uma hora, sem novidades. Tudo para nós era estranho e novo, mas enfrentamos com coragem e vontade . Às 10,10 a operação estava terminada e nos retiramos mui contentes deter assistido com êxito o primeiro passo da nossa carreira. Manáus, 10-5-57 – Stella cunha 11/5/57 : Pela primeira vez

fomos enviadas à Clínica Cirúrgica de Mulheres, para tirar.. o TPR . 18/5/57: Posse da nova diretoria do Grêmio “ 12 de maio”. 12/5/57: Comunhão pascoal de todas as enfermeiras na capela da Sta. Casa de Misericórdia. 19/5/57: Fomos a um big picnic num lugar chamado “Cacau Pereira” : bastante animada e alegre . 20/5/57: Pequeno show apresentado pelas meninas desta escola. 14/6/57: Assistimos uma nercrópsia, feita pelo Dr. Gilson Vieiralves, dada como aula de anatomia. 28/6/57: Hoje realizou-se com grande pompa, a tradicional festa , que todo ano aqui na escola se realiza no mês de junho. Esteve muito alegre e animada. 1º de julho.: “ Recebi Cr$ 500,00 enviado por my mother good” 21-7-57 –Casamento da enfª D. Vera Sarotinha. 13/7/57: Assisti “ Helena de Tróia” com Jacks Sernas, Rossana Dodesta. 14/7/57: “ Adorado Tirano” com Jorge Misstral e Miroslova 20-7-57: Assisti a “Chama de Calcutá”. 11-8-57: “ O ídolo de Ouro” com o bamba Jonhy Schefield e anne kimbell . 24-8-57: vi “ Morrendo a cada instante” , c/ Jack Pallance ,


‘A ENFERMEIRA É O ELO INDISPENSÁVEL ENTRE O INDIVIDUO, O MÉDICO E OS ORGANISMOS DA SAÚDE PÚBLICA.’

Shelley Winters e outros. 7/9/57: Vi: As mulheres também roubam” e Paixões tormentosas” com M.A.Pons. 8/9/57: Vi “ Nas Garras da Tentação” com Clarke Glabe , Jane Russel e Robert Ryan . 14/9/57: Vi “ Big filme “ Juventude Transviada” com James Dean , Sal Mineo e Natalie Wood . 15/9/57: Pic nic no Dome ... anha – Animadíssimo. 22/9/57: Grande almoço na casa de uma colega. A tarde , eu, Daisy, Wilma, Conceição, Esmeralda e Waldiza, acompanhadas pelo japonês Roberto Moque , muito passeamos e divertimo-nos a valer. Foi o 1º domingo feliz que passei até o presente . 10-11-57: Domingo. Neste dia trabalhei pela primeira vez no domindo. Das 7 às 14 hs. 16-XI-57: Dei injeção pela primeira vez às 16,50hs, deste dia . Soro.

“ A enfermagem não é apenas uma profissão, é uma vocação para um campo de trabalho onde a dedicação eleva a profissão ao nível de um apostolado”. “ A enfermagem é a maior criação do gênio e do amor feminino em nossa civilização”. “ Tereis de servir e encontrar no serviço ao próximo a fonte do maior dos contentamentos que é o dever do bem cumprido” A profissão de Enfermeira presta grandes serviços à humanidade .” “... Inspirarnas jovens mulheres de caráter, em toda parte , o desejo inabalável de abraçar a profissão humanitária e plena de recompensas que é a Enfermagem.” A boa Enfermeira é o descanso do médico. “A enfermeira prepara e completa o trabalho do médico”.

17-XI-57 : Recebi pela primeira vez a bolsa da companhia, isto é , CR$ 1.709,50

“ É a enfermeira quem cuida do doente dando ao espírito, é ela quem protege a saúde buscando as fontes de infecção, ensinando a arte de viver saudável e lutando contra os males sociais que semeiam a doença”.

Sobre a Enfermagem

“A profissão de enfermeira exige

15-XI-57: Assisti “ O suplício Lady Godiva” com Maureen Ohanna e David Niven .


muito amor à profissão, muita abnegação e grande espírito de sacrif ício”. A enfermeira – A sentinela da Saúde” “ A enfermagem não é escrava, mas parte da medicina, tirarse ao médico, ao cirurgião, ao industrial a colaboração da enfermeira diplomada, será o mesmo que lhe tirar uma das mãos.” “ Sem a enfermeira, o doente sofre , o médico fracassa.” “ A importância da mulher na

assistência dos enfermos é imensa, incomparável .” “ Internou-os por não poder deixa-los sós. É lavadeira ganhando $600,00. O esposo abandonou-a com os filhinhos sem deixar localização. Possui 4 filhos. Mora num barracão, sem água, sem luz, possui apenas um cômodo que é o quarto onde dorme . É coberto de zinco com piso de cimento, sem paredes sendo portanto bastante ventilado e penetrado pelo sol . “.

“Enquanto houver na terra ignorância e miséria, obras como os “Miseráveis” jamais serão inúteis.” Stella Cunha - Manaus, 17-3-1957


FORMATURA

A

formatura de Stella Cunha da Silva aconteceu em 1962. Dois anos antes, casara-se com Cosme Gama da Silva. Conheceram-se dentro de unidade de Manaus. Ele era filho de João e Dária Gama. Meu pai era um servidor público, funcionário da FSESP. Segundo minha avó paterna, Daria Gama – foi um relacionamento rápido. Conheceram-se e logo depois já estavam casados. Casaram-se: Cosme Gama da Silva e Stella Santos Cunha. Em 1961 nasceu o primeiro filho, Ricardo Augusto Cunha da Silva. Os primeiros anos de vida do casal foram muito complicados. Minha mãe, enfermeira recém-formada com os princípios da Enfermagem lhe correndo nas veias, tendo que conciliar a vida de uma mulher casada, com um filho pequeno para criar e, mais a dedicação profissional. Em seu diário, estava escrito:

“A profissão de enfermeira exige muito amor à profissão, muita abnegação e grande espírito de sacrif ício”. Mas meu pai sabia de suas responsabilidades e dos compromissos assinados em contrato, que ela teria de cumprir, depois de formada. E assim começaram as viagens para o interior do Amazonas. Sobre esse início de carreira de minha mãe, possuo poucas informações e registros, e minha mãe sempre falava sobre essas viagens feitas para cidades onde era possível chegar apenas por via aérea – e o hidroavião era o único meio de transporte naquela época. Trabalhou em Nova Aripuanã e Lábrea no primeiro ano. A avó Dária Gama ficava com o filho pequeno, enquanto o meu pai passava o dia trabalhando na FSESP. No final do ano de 1961, uma viagem mais longa foi programada e ela fica-


ria um ano inteiro por lá. Desta vez, ela foi designada para trabalhar no município de Benjamin Constant, na fronteira do Brasil com a Colômbia. Meu pai decidiu que iria com ela, pois ela queria levar o filho e depois de muita conversa, ele decidiu largar o emprego e ir com ela. Ele respeitava suas funções e determinação. Em janeiro de 1962, o jovem casal chegou de hidroavião em Benjamim Constant. Em 15 de dezembro do mesmo ano,

nasce a segunda filha batizada de Melba Lóis Cunha da Silva. Em 1963, voltam a Manaus, logo em seguida, engravida do terceiro filho. Naquele tempo era assim – um no rabo do outro. Era o tempo do resguarde e lá vinha moleque. A gravidez do terceiro filho, batizado de Cosme Gama da Silva Júnior, foi muito complicada. No meio do ano, minha mãe muito cansada, solicitou licença e foi para Santarém, não só descansar, mas


ambém, visitar a mãe e ter o filho. Em 29 de novembro de 1963, nasce o único filho paraense da família. Retornando à Manaus, outra viagem havia sido programada. Ela fora designada para cumprir outra missão pela FSESP, no longínquo município de São Paulo de Olivença (AM), uma cidade isolada no rio Solimões. Desta vez, levaram todo mundo. Lá chegando, minha mãe engravida do quarto

filho. Ficaram até o terceiro mês de gravidez. Como o parto anterior havia sido muito complicado, resolveram então voltar, para ter o bebê em Manaus, já que a cidade não possuía estrutura alguma, caso a gravidez apresentasse alguma complicação. E eu nasci no dia 24 de dezembro de 1964. Numa trégua, dois anos depois, em abril de 1966, nasceu a última filha do casal, Mabel do Perpétuo Socorro Cunha da Silva.


R

egistro aqui algumas informações sobre essas quatro cidades importantes, neste período de formação e afirmação profissional obtido pela enfermeira Stella Cunha. Seu trabalho era sempre reconhecido e isto nos rendeu muitas histórias de suas viagens. Uma das histórias que ela sempre gostava de contar, era de que o povo ribeirinho de alguns vilarejos e lugares no Amazonas e algumas aldeias indígenas, como as do município de São Paulo de Olivença (AM), não comiam peixe de pele, como o Mandi e Dourada. Isto foi vivenciado em suas viagens. Ela contava sobre a abundância de peixes nos rios amazônicos. Peixes considerados nobres como o Tambaqui e o Tucunaré, eram fartos na região. Quando os pescadores chegavam, era comum a população jogar fora ou devolver para o rio, os peixes considerados “remosos”, segundo a população. Os peixes de pele, Mandi, Dourada, Pescada Branca – e todos os outros, considerados inferiores.

Segundo seu relato, “Dava pena ver todo aquele peixe sendo jogado fora”. Sic. Então, num desses lugares, ela decidiu conversar com o líder comunitário e deu uma palestra para a comunidade sobre este assunto. Encomendou os peixes e fez uma (Caldeirada), para mostrar que, além de nutritivos, eram deliciosos e que a comunidade não podia ficar jogando comida fora. Eram tempos de fartura, mas que, mais tarde, poderia faltar. Curiosamente, hoje a Amazônia sofre com a escassez de peixes e, os que existem e sobreviveram, estão com alto índice de contaminação por Mercúrio e outros metais pesados – advindo dos garimpos, contando com a conivência do governo federal. O livro “Os Peixes Sentem”, de Iremar Ferreira, presidente do Instituto Madeira Vivo, narra essa história e conta que os mandis desprezados de ontem, são os que matam a fome da população de hoje.

Nova Aripuanã Cumprindo o contrato estabelecido ainda no curso de Enfermagem, imediatamente ela começou a viajar a trabalho. A primeira cidade em que fora deslocada ficava nas imensas curvas do Rio madeira. Era a cidade de Nova Aripuanã. Um lugarejo perdido no meio do Amazonas, onde a única forma de se chegar , sem levar meses viajando de barco eram os hidro-aviões.

Nesta época, os hidro-aviões riscaram os céus da Amazônia centenas de vezes carregando tudo em seu interior. Foi um período curto de estágio. Mas, tudo muito novo para a recém formada enfermeira Stella Cunha.

Novo Aripuanã é um município brasileiro no interior do estado do Amazonas e pertencente à Mesorregião do Sul Amazonense e Microrregião do Madeira, Sua extensão territorial é de 41.191 km2, o que faz deste um dos maiores municípios do Brasil em área territorial.


Benjamim Constant Stella Cunha e família chegaram em Benjamim Constant em janeiro de 1962. O filho mais velho já ia fazer um ano de idade Nascera em 18 de julho de 1961. Passaram um ano em Benjamim Constant, quando nasceu a segunda filha: Melba Lóis Cunha da Silva.

Benjamin Constant é um município brasileiro do interior do estado do Amazonas, Região Norte do Brasil. Sua população era de 43 935 habitantes em 2020, de acordo com dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística.

São Paulo de Olivença Lábrea Lábrea é um município brasileiro no interior do estado do Amazonas, Região Norte do país. Sua população é de 46 882 habitantes, de acordo com estimativas do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística em 2020.

São Paulo de Olivença é um município brasileiro no interior do estado do Amazonas, Região Norte do país. Pertencente à Mesorregião do Sudoeste Amazonense e Microrregião do Alto Solimões, situa-se ao sudoeste da capital do estado, Manaus, distando desta cerca de 1 235 quilômetros. Ocupa uma área de 19.745,808 km², representando 1.2571 % do estado do Amazonas, 0.5124 % da Região Norte e 0.2324 % de todo o território brasileiro. Desse total 2,6279 km² estão em perímetro urbano. Sua população estimada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística em 2020 era de 40 073 habitantes, sendo assim o terceiro município mais populoso do Alto Solimões e o décimo sétimo mais populoso do Amazonas


MANAUS “ A enfermagem não é escrava, mas parte da medicina, tirar-se ao médico, ao cirurgião, ao industrial a colaboração da enfermeira diplomada, será o mesmo que lhe tirar uma das mãos.” Stella Cunha - Manaus, 17-3-1957

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epois de 1964, acabaram-se as viagens para o interior do Amazonas e a família estabeleceu-se definitivamente em Manaus. Morávamos numa casa no centro da cidade, na rua Major Gabriel. De lá me vêem algumas lembranças. Era uma casa de dois andares, com piso de tacos polidos e muito confortável. As lembranças de Manaus são muito presentes. Nesta casa, certo dia, minha mãe chegou dizendo que o vizinho, que trabalhava no aeroporto, havia morrido. A causa da morte foi um acidente no aeroporto. Ele era mecânico de avião e, numa inspeção, ao passar embaixo da aeronave, o motor foi ligado e a hélice esfacelou seu crânio. Eu era criança, mas por muito tempo, imaginei esta cena aterrorizante. Minha avó Dária Gama, era uma mulher grande, forte e brava. Acalentava-nos com um amor incondicional, mas era feroz na aplicação da disciplina. Até hoje sinto seu dedo indicador envolto em algodão e embebido de azeite de Andiroba – enfiado na minha goela. E ficamos nesta residência por mais três anos, quando nasceu em 1966, a última filha do casal, Mabel do Perpétuo Socorro Cunha da Silva. De 1968 para 1969, deram entrada em uma casa financiada pela COHAB, no novo Conjunto Habitacional Parque 10 e começando uma vida em sua casa própria. Meu pai era um homem forte e sorridente. Tenho boas lembranças dele, chegando em casa. Vinha da feira, carregando um cacho de bananas. Fazendo e ensinando a gente a empinar papagaios e pipas compradas na Zona Franca de Manaus.



Parque 10

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hegamos ao Conjunto Parque 10 no final de 1968. O conjunto estava sendo entregue à população com as casas originais e as ruas pavimentadas com piçarras. Boa parte do conjunto estava na terraplanagem e havia muitas obras sendo realizadas como o ginásio de esportes e o Centro Social Urbano. Meses depois, meu pai deu inicio à ampliação de casa. Começou com os dois quartos de trás e da cozinha. Ele mesmo – com a ajuda de um pedreiro –, começaram as obras no final de 68 e consumiram todo o primeiro semestre de 1969. A avó Dária, sempre vinha nos visitar e nos trazia doces e broas de trigo. O Parque 10 ainda era uma área muito afastada do centro da cidade e tinha no seu entorno, uns balneários construídos nos inúmeros igarapés, em que a população, nos finais de semana, lotava indo tomar banho e fazer piqueniques. Chegou o mês de julho. Mês do verão amazônico e Manaus uma terra quente por natureza, nesse período, torna um lugar muito quente como toda a Amazônia. O mês de julho é a temporada de férias e veraneios – com os igarapés sempre lotados. Nos fins de semana, era pra onde íamos passear. E foi num desses passeios que aconteceu um fato que iria mudar – novamente, o rumo das nossas vidas. Meu pai sofre um acidente, pulando de cabeça no igarapé, quebrando a terceira vértebra da coluna cervical. Era um domingo de muito sol e novamente fomos ao balneário. Mabel, minha irmã mais nova, com três anos, ficara em casa, com um pouco de febre. Minha mãe pre-


ocupada, mas resolveu nos levar, deixando-a aos cuidados de uma babá. Quando deu meio-dia, ela preocupada com minha irmã, resolveu voltar, com todos nós e, meu pai continuou se divertindo e bebendo com os amigos a tarde toda. No início da noite, às 19 h, parou um fusca em frente de casa. Eu estava brincando na rua com os colegas e vi o carro chegar. Desceu um rapaz de sunga e chamou minha mãe, que veio apreensiva. Eu olhei para dentro do fusca e vi meu pai sonolento no banco de trás. Abriram a porta e o tiraram de lá, carregando-o para dentro de casa. Deram um banho rápido nele e depois minha mãe o ajeitou na cama. Fui ao quarto e olhei em seus olhos – estavam estáticos e sem vida, olhando para cima, parecia em transe. Minha mãe ordenou que eu saísse do quarto. Pela manhã, chegou uma ambulância e, o levaram para o hospital. Logo ficamos sabendo da gravidade do acidente. Lembro das conversas sobre o assunto. Na queda, ele fraturara a terceira vértebra da coluna cervical. Caso sobrevivesse, ficaria tetraplégico e teria uma vida vegetativa – muito triste essa constatação. Os meses seguintes foram uma grande confusão para todos nós. Depois de fazer todo tipo de exames, realizar cirurgias e outros tratamentos, minha mãe virou céus e terra para tentar salvar a vida de meu pai. Disseram que em São Paulo, ela teria mais êxito nesse tratamento. Providenciou transporte. Reorganizou nossas vidas e o levou para São Paulo, em busca de tratamento. Passaram-se três ou quatro meses lutando pela saúde dele. Nós ficamos espalhados por todo canto. A Melba e o Ricardo ficaram em Manaus. A Melba morando com um médico amigo, o doutor. Di Paula; e o Ricardo na casa da amiga enfermeira, a D. Corina. Eu, Cosme Jr. e Mabel, fomos enviados para Santarém, ficar com nossa avó Benita Cunha. Isso durou até novembro de 1969, quando retornamos para casa. Meu pai nunca mais voltou. Estava tetraplégico e continuou no hospital. Em casa não havia condições de cuidar de um paciente com tal gravidade. Emagreceu exageradamente, chegando aos 30 kg. Seu corpo inerte, quase todo tomado, por “escaras”. Que são imensas feridas, e que lhe cobriam a pele. No Natal fomos lhe visitar. Para ficarmos mais perto dele, minha mãe alugou uma casa no centro da cidade – novamente para ficar mais perto dele. Ao entrar no quarto, fui até a cama e dei-lhe um beijo. O olhar era o mesmo, só que envolto em um ar de tristeza. Um dia, aquele homem, que era forte e bonito, aparentava uma pessoa definhando no leito de um hospital e não poderia nunca mais abraçar seus filhos. Entrou o ano de 1970. No dia 15 de janeiro, estávamos em frente de casa, pela manhã, quando a Maria – uma empregada, que minha mãe arrumou –, entrou chorando e dizendo que o papai havia morrido. Seu Cosme Gama da Silva faleceu aos 33 anos dia 15 de janeiro de 1970.


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A viúva

inha mãe ficou viúva, repetindo minha avó, aos 34 anos. D. Stella Cunha, tinha, neste momento, como missão, a Enfermagem e, prosseguir a vida – agora com a responsabilidade de criar sozinha, cinco crianças pequenas. E por alguma razão do destino, seguira a saga de sua mãe. Com a diferença que era uma profissional graduada pela Fundação SESP, autarquia do Governo Federal – do qual “pensava”, que a autarquia nutria por seus servidores, a devida consideração e respeito. Depois da morte do meu pai, Manaus perdeu todo sentido para ela. Sentia-se sozinha e tinha muita saudade de sua mãe e sua família em Santarém. No mês de abril de 1970, outro fato ocorrido em casa, intensificou seu desejo de ir embora de Manaus. Meu pai, nós e ela mesma, gostávamos muito de cachorros. Sem perceber já tínhamos três vira-latas dentro de casa. Na morte de meu pai, ela se sentiu sem condições de ficar com os cachorros e resolveu se livrar dos animais. A solução encontrada foi colocar os animais no porta-malas de um carro e deixá-los no mercado de carne da cidade – que ficava no centro comercial de Manaus. Ela achava que lá, eles não passariam fome. Num sábado, ela pegou um carro e colocou os três animais no bagageiro e rumou para o centro de Manaus. Uma semana depois, ela estava já arrumada para ir ao trabalho, eu estava na frente de casa, brincando com um amiguinho, quando o cão – o mais miudinho –, o marrom que ela chamava de Bob, voltou pra casa. Considerando que eles foram dentro do porta-malas. - Olha mãe! O Bob voltou! E fizemos festinha pra ele. Minha mãe saindo para ir trabalhar, passou por ele, fez carinho em sua cabeça e foi embora. Pouco tempo depois, talvez meia hora, eu fiquei na frente de casa, brincando com um coleguinha chamado Edica, e resolvo ir até o Bob, dar um abraço nele. Nesta hora, o cachorro me ataca, mordendo a minha cara, diversas e várias vezes. O Edica tentou me socorrer e gritou. O Bob o atacou também, lhe mordendo rosto todo. Meu irmão Ricardo, saiu de casa por causa da gritaria e choros e tentou cercar o cachorro, que num salto, lhe mordeu a mão. E fugiu para rua. Foi um pânico na vizinhança. “Cachorro louco! Cachorro louco! Cachorro louco!” – gritavam. “Chamem os Bombeiros! Chamem a Defesa Civil!” – outros berravam. “Chamem a D. Stella!” – alguém sugeriu. Deixara para trás, dois moleques com a cara, que era uma pasta de sangue aos prantos. A mãe do Edica chegou e quase morre do coração ao ver o filho naquele estado. Acredito que nem teve tempo de minha mãe chegar ao trabalho no Hospital. Ela retornou imediatamente. Chamaram a ambulância e lá fomos nós para o hospital.


Ao limparem o sangue para fazer os curativos – era impressionante o número de furinhos na minha cara, mas era mais ainda na cara do meu amigo. O cachorro só atingiu um lado da minha face, mas no Edica, foi o rosto todo. Eu tinha cinco anos e ele seis. Minha mãe, ainda de luto, pela morte recente de meu pai, entrou em pânico. Fora as mordidas no rosto e as mais de 40 injeções anti-rábicas que tomamos na barriga, não houve nada mais grave. Uma dentada perto da pálpebra do Edica foi o maior risco dele perder a visão. Mas nas cabeças das mães, poderiam ter perdido um filho. Foi o resto do ano indo ao posto de saúde, tomar as 40 vacinas. Aí começou a peregrinação da D. Stella para sair de Manaus. Estava pleiteando uma vaga em Santarém. Assim, ficaria perto de sua mãe e suas irmãs. Fez vários requerimentos, procurou os amigos mais próximos, mandou cartas para Brasília e nada. Até o momento em que chegou um documento autorizando a transferência. Ela tinha opções para mudar para o Pará, mas Santarém não estava entre elas. Ela não entendia o motivo da recusa da diretoria da FSESP por Santarém, e lhe deram a opção de escolher outras cidades da região. Uma das opções era a cidade de Monte Alegre, pela proximidade de sua casa, uma proximidade amazônica de 12 horas viajando de barco pelo rio Tapajós e pelo lago Monte Alegre.

“ A importância da mulher na assistência dos enfermos é imensa, incomparável.” Stella Cunha - Manaus, 17-3-1957


Monte Alegre

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e repente, me vi dentro de uma rede em um barco com um potente motor singrando as águas negras e translúcidas do Tapajós – rumo ao desconhecido, em uma viagem à noite, que duraria em torno de 12 horas. Era uma estranha sensação de estar perdido no meio do mundo. Tudo muito escuro. Tão escuro que tinha que cerrar os olhos para poder ver a margem do rio com a vegetação na beira do rio. Margens estas, que às vezes desapareciam, tal a imensidão do rio. Não conseguia dormir. Ficava horas olhando os rebujos da proa do barco, cortando o límpido e liso leito do rio. Era uma noite calma, estrelada e muito tranquila. O barco rumava e a nós só restava dormir ou esperar o tempo passar. Eu já era um garoto muito observador e essas cenas ficaram na minha cabeça desde aquele momento. Foi assim que presenciei a chegada do barco na escuridão da noite – por volta das 22 horas na cidade de Monte Alegre. As parcas luzes da cidade, adormecida na chegada, em apenas um filete foi se aproximando As parcas luzes da cidade, adormecida na chegada, em apenas um filete foi se aproximando e aquele paredão escuro de uma montanha foi ganhando forma. Surgiu uma


cidade num sopé de uma “montanha”. Faço uma observação sobre “montanha”. Para uma criança de seis anos, qualquer elevação é importante. A altitude nem deveria ser tão grande, mas nos olhos de um menino de seis anos, era sim, uma montanha. Para quem tem um pouco mais de um metro e dez de altura, qualquer coisa fica muito grande. O cheiro de óleo do motor, o trepidar provocado pelo bater da máquina. A desaceleração e o apito do capitão. A catraca da mudança de marcha, tudo isso ficou no meu imaginário. A escuridão das águas provocava certo medo. O barco aportou, foi colocado em ponto morto e ficou trepidando – apenas com a mudança de marcha para ajustar o atracamento no trapiche. Saímos nos equilibrando por uma prancha de madeira. A noite estava chuvosa. Era janeiro de 1972. Tinham alguns jipes estacionados. E um jipe nos esperava. Naquela cidade montanhosa e escorregadia, apenas os jipes com tração nas quatro rodas estavam aptos a rodar – sem correr o risco de deslizar até cair no rio. E assim, encolhidos na traseira de um desses veículos, subimos a montanha, até chegar a casa – onde iríamos morar.






A casa Azul

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os alojamos numa casa cedida pela Fundação SESP – ao lado de dois grandes hospitais. Um recém construído – todo moderno. E o outro, desativado ao lado. Era um casarão de madeira, construído no terreno do próprio hospital. Ao lado, ficava um campinho de areia – que acabava no muro deste hospital, antigo e desativado. Na frente de casa, surgia o hospital novo, recém-inaugurado. Atrás de casa havia um grande terreno, um matagal, e lá no fundo, havia uma casa de uma família – mas já fora da propriedade da Fundação SESP. Na frente da casa havia uma grande árvore – com um caminho feito com blocos de cimento, que iam até a pista do hospital


“ Sem a enfermeira, o doente sofre, o médico fracassa.” Stella Cunha - Manaus, 17-3-1957 No terreno da casa vizinha, havia um grande taperebazeiro, onde passávamos horas comendo taperebá – na árvore carregada desses suculentos frutos. Logo depois, havia uns caminhos no terreno, que ia para o declive do paredão que ficava na frente da cidade, e caia para o precipício, e descia, num paredão de mais de 20 metros de altura – que ficava na frente da cidade, na chamada Cidade Baixa. A casa de madeira ficava de fundos para o rio. Fora construída pra ter um gradil de madeira no telhado – o que facilitaria a circulação do vento e deixaria a casa mais ventilada. As tempestades ocorriam de norte para o sul e, o construtor teve a ideia de fazer a ventilação nos altos da casa, para que o vento circulasse por aquelas entradas na parte de cima. O problema é que ele não contava com as chuvas e tempestades que invadiam a casa e molhavam tudo por dentro. O único quarto livre das águas da chuva, era o quarto de minha mãe – e lá, todos se amontoavam, até a chuva passar.




Minha mãe nos reunia na sala de casa. Era uma casa de madeira com poucos móveis dentro. A primeira coisa que ela fez, foi montar uma pequena estante com tábua e tijolos – para guardar seus livros. Amava ler. Ela não mobiliou a casa, porque sabia que nós, não ficaríamos ali por muito tempo. Fato, que aconteceu três anos depois. A Fundação SESP a transferiu para a cidade de Breves, no Marajó. Trabalhava o dia todo e guardava os fins de semana para nós. Éramos cinco filhos pequenos e ela sempre foi muito carinhosa – e fez o que pôde, para termos uma infância feliz. Certo dia, ela chegou em casa com um gravador e fitas. Uma novidade na época. Aos sábados, depois do jantar, ela nos reunia na sala e começava a contar as histórias, e bancava de fazer teatrinho conosco. Riamos muito, e tudo isso era gravado em fitas cassetes. Foram muitos sábados assim – já tinha uma boa quantidade de fitas. Certo dia, um ladrão entrou em casa e roubou, não só o gravador, como todas as nossas fitas, com todos os registros da nossa infância – levou tudo. Ele levou as fitas, mas as imagens e lembranças das histórias e daqueles momentos, sempre ficaram comigo. Guardei cada um daqueles momentos felizes que passamos naquela sala, sentados no chão – nas esteiras de palha. Dormíamos em cima de esteiras forradas. Todo mundo. Depois que ela comprou uma cama e redes. Muitas e boas lembranças da cidade de Monte Alegre. Ficamos amigos de uma família, em que a irmã mais velha, Lucinha, também era funcionária do FSESP – e ficou muito amiga de minha mãe. Logo conhecemos a Mônica e o Durango. Eram fabricantes de artesanato feito com balata. Uma matéria prima (Látex), adquirida da seringueira. A Mônica era um ano ou dois, mais velha que eu e meu irmão – já chamado de “Cobi”, nessa época. Ela se tornou nossa grande amiga. Vivíamos sempre os três – juntos. Éramos inseparáveis.

O Artesanato de Balata Começamos a frequentar a sua casa – que era bem próxima do hospital. O espaço em que eles fabricavam o artesanato da Balata – ficava na parte de trás, da casa perto do galinheiro. O artesanato da Balata era muito interessante. Eles produziam cavalos, canoas, cobras, pescadores, indígenas e tudo que a imaginação pudesse produzir. Eu ficava, e ainda hoje em dia – fico encantado com a escultura de Balata. Ainda hoje trabalham com o artesanato da Balata na Praça da República em


Belém – e fazem parte da Associação dos Balateiros de Monte Alegre. Encontrei a Mônica casualmente duas vezes. A primeira vez, já adolescente, e a segunda, já na fase adulta. É dona de uma banca de revista no bairro de São Brás – em Belém. A Banca Pinta Cuia. Muito montealegrense – como não poderia deixar de ser

“Fontes Sulfurosas”. Monte Alegre é uma cidade construída numa região que possui uma constituição rochosa muito antiga. É uma região com solo vulcânico, com pinturas rupestres milenares – inclusive já identificadas pelo Museu Emílio Goeldi. É um relevo totalmente diferente das regiões que eu vi pelo Pará – anos depois. É uma região bastante acidentada, com corredeiras e cachoeiras geladas. Águas negras do Lago da grande Monte Alegre banham a cidade. Frequentávamos um igarapé em formato de lagoa, chamado Pajuçara, bem como um grupo de casinhas chamadas “Fontes Sulfurosas”. As “Fontes Sulfurosas” era um lugar, que ficava na estrada, a caminho de uma comunidade rural chamada “Campi” – onde brotaram três veios de águas vulcânicas. Eram águas termais, quentes, com um forte cheiro de Enxofre. Construíram em cima dos olhos, três casinhas de alvenarias – onde todo mundo, que passava pelo lugar –, parava para mergulhar nas “Águas Sulfurosas”. Pra mim, era assustador. As casinhas eram escuras, com as paredes lodosas, com uma parca iluminação e, as águas dentro, eram escuras, com forte cheiro de Enxofre e fumaça se espalhando pelo ambiente. Pra mim, um monstro iria sair dali e puxar a gente pelo pé. Os adultos pulavam dentro e, ficavam boiando – tal a densidade da água. Diziam que não tinha fundo. E devia não ter mesmo, porque esse tipo de constituição termal, são águas de rios subterrâneos – que escapam para a superfície e lá se mantém. Nunca secam. As crianças eram colocadas dentro d’água para curar as micoses e coceiras. Efeito curativo do Enxofre. Conversando com a Mônica – recentemente –, fiquei horrorizado e surpreso ao saber que um ex-prefeito da cidade, selou as fontes de águas sulfurosas com concreto. Ele destruiu um dos pontos turísticos com grande potencial em Monte Alegre. E nas minhas pesquisas, descobri que a cidade foi totalmente remodelada – e não consegui identificar quase nada, da cidade que um dia povoou minha mente Nem a frente da cidade, com seu paredão de pedra – onde as garças pousavam no fim da tarde, deixando o rochedo bem tranquilo –, deixou de existir.


“A antiga Monte Alegre das minhas lembranças, não existe mais”


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enfermeira Stella Cunha era uma mulher pequenininha, bonita e vaidosa – mas impunha muito respeito. Chegou chefiando uma Unidade de Saúde, aos 37 anos, numa machista sociedade interiorana dos anos setenta – onde até então –, era comandada apenas por “médicos machos”. Os médicos, muitos deles, já em idade avançada, acolheram-na muito bem, outros mais jovens, porém – ficaram incomodados. Assim, ela era observada e não podia errar – como de fato não errou. Certa vez, um deles, um jovem médico, tentou assediá-la sexualmente. A convidou para sair e, como ela recusou, ele ficou furioso. Quando acabou o expediente, ela chegou em casa e disse: “Vamos nos preparar que vamos ter problemas” “Um cara” vem aí pra me bater!” Estávamos as cinco crianças e mais a tia Nita em casa. Minha mãe nos armou com facas de mesa e colheres pra jogar no cara. Fizemos umas barricadas com sapatos e tudo que se podia ter na porta. Pra mim, seria uma brincadeira. Lembro que eu achava divertido. Ela apagou todas as luzes e ficamos os sete, em silêncio, olhando pelas frestas. Logo depois, umas sete da noite, um cara chegou gritando: “Stellaaa! Stellaaa! Sei que estás aí. Vem aqui fora, falar comigo!” Como não obteve nenhuma resposta, gritou de novo: “Se tu não sair, eu vou entrar ai e te pegar!” Foi quando garfos, facas, sapatos e se lá mais o que, voaram em sua direção. Minha mãe foi na varanda e gritou com ele. Sem saber quem realmente, estava com ela, ele recuou, esbravejou e foi embora. Passamos a noite toda em claro, esperando pelo pior. Pela manhã, ela foi à Delegacia de Polícia, deu parte da situação e fomos levados para um convento de freiras. Passamos uma semana – dormindo em camas quentinhas e lençóis perfumados. Num ambiente absolutamente asséptico e lindo. Queria ficar ali para sempre. O resultado disso é que o médico foi transferido de Monte Alegre e nunca mais houve outro caso desse tipo. Os anos seguintes foram relativamente tranquilos. Com um ou outro sobressalto; idas ao velho cinema na Cidade Baixa; bailes de Carnaval rubro-negro no Clube Norte Brasileiro e as “furadas por baixo da lona”. Minha e do meu irmão – para assistir aos espetáculos no Circo “ Pinico sem Tampa”. As incursões à igreja de Nossa Senhora da Conceição, na Cidade Alta, aos domingos em que a Mônica chegava cedo em casa e sempre saíamos atrasados, tão atrasados a ponto de um dia, ao chegarmos na porta da igreja, o padre estava dizendo: - E vão em paz e que o Senhor vos acompanhe! E passou todo ano de 1974. Mudamos de escola. De um grande colégio de freiras – o Colégio Nossa Senhora dos Prazeres –, fomos para um grupo escolar perto de casa. No mês de outubro, chegou a notícia de uma nova transferência. A escola adiantou as provas de fim de ano e antes do Natal, fomos para Santarém e, lá ficamos até o mês de março, antes de viajarmos para morar na cidade de Breves no Marajó.




Breves A cidade de Breves, nos idos anos 1970, era uma pequena cidade da região do Marajó. Com uma pequena população, e banhada pelo rio Pará. Possui uma pequena e linda igreja matriz com pracinha na frente. E Todo ano, no mês de agosto, comemora-se a Festividade de Nossa Senhora de Santana – a padroeira da cidade. Era no trapiche municipal, em frente à prefeitura, que a população fazia de balneário aos fins de semana. Na maré, quando esta, estava cheia, o rio ficava a um palmo do assoalho do trapiche e, as águas turvas encrespavam com a força do vento a correnteza do rio que era chamado de estreito de Breves. É um rio bastante caudaloso com um “peral” muito profundo. O estreito de Breves serve obrigatoriamente, para trânsito dos grandes navios cargueiros – alguns enormes e suntuosos transatlânticos que por lá atracam também. Lembro do pomposo nome “Mattarazzo”, gravado em letras gigantes no casco de um dos navios que passavam de tempos em tempos, a caminho de Manaus e Santarém. Essa era rota, desses grandes navios de passageiros como “Presidente Vargas, Leopoldo Peres, Augusto Montenegro, Lauro Sodré e o Lobo D’Almada”, que frequentavam o porto de Breves, trazendo mercadorias, embarcando e desembarcando passageiros que iam a todos os cantos da Amazônia. A presença daquelas grandes embarcações era motivo de festa na cidade. Todos iam ao trapiche, esperar aquelas belas máquinas. Quando eles chegavam de dia, nós, moleques, pulávamos no rio, para pegar a onda, na passagem do navio – e alguns se arriscavam pegando o rebujo do motor. Apesar do iminente perigo na reversão dos motores, nenhum acidente foi registrado. Moleque é parente do capeta. Do interior, então, nem se fala.


A chegada Chegamos em Breves, num sol escaldante do meio-dia – era o mês de janeiro. À primeira vista, a cidade era um horror. Feia, quente, esburacada, atrasada e poeirenta. Bem diferente daquela Monte Alegre, já bem estruturada e ainda em transformação. Um caboclo carregou nossas bagagens num carro de madeira, puxado por ele mesmo, até a pensão da Dona Pacheco – que ficava na avenida principal. Lá nos acomodamos nessa chegada. Pra mim, saindo de Manaus, depois de ter morado em Monte Alegre, Breves era menos que eu esperava. Mas o tempo passou, a FSESP nos cedeu uma casa pra gente morar – no fundo do terreno do hospital. Era uma casa que ninguém queria, por que dava pra ver o pé do defunto no necrotério – se a gente estivesse na cozinha. Era comum ver os cadáveres sendo levados para lá. Mas minha mãe não se importou com isso – e nós também. Com o passar do tempo, até viramos frequentadores do necrotério, em nossas brincadeiras, inclusive quando tinha algum defunto aguardando o enterro. Atrás de casa, havia um campinho, onde amolecada jogava futebol à tarde. E o lugar também era um antigo cemitério desativado e a “grade”, era esperada com a galera sentada sobre os túmulos abandonados – e ninguém se importava com isso. Certa vez, numa grande tempestade, um fio de alta tensão arrebentou e caiu em cima de um senhor, o eletrocutando de imediato. O corpo foi levado para o necrotério e pela manhã, nós, curiosos, fomos olhar o cadáver. Era um corpo assado pela alta tensão. Meu irmão levantou o lençol e só deu pra eu ver um braço torrificado. Fiquei horrorizado e saímos correndo – essa foi a última vez que frequentei um necrotério. Era algo terrivelmente macabro. E a vida foi seguindo seu rumo. Tivemos uma boa infância na cidade de Breves. Logo estávamos estabelecidos. A casa do necrotério foi assimilada. Fui matriculado no colégio Santo Agostinho – um colégio religioso, onde se enfileirava para cantar o Hino Nacional, toda manhã. Dos colegas de escola, eu me lembro do Antonio Paranhos, Pedro Tupinambá, Kennedy e da Totoya – menina por quem me apaixonei –, e do Expedito. Minha mãe sempre falava dos novos colegas do hospital e de quem tenho lembrança são o doutor Sinézio – um médico já idoso –, do seu Pedro, que trabalhava na construção de cisternas de concreto – que a fundação doava para comunidade. Havia um terreno ao lado do hospital – cheio de mato. Vendo aquele terreno ocioso, minha mãe propôs a construção de uma horta comunitária e, logo depois, aquele terreno estava produzindo verduras e hortaliças – que eram utilizadas nas refeições dos pacientes do próprio hospital –, além de serem doadas à comunidade. Dos amigos, lembro dos filhos de D. Nazaré – costureira que se tornou amiga


da família. Amigos da mesma idade, eu tinha o Nego, Paulo e Jeová, Havia também um garoto chamado Jó. Fomos morar numa casa, na rua principal, que ficava ao lado do Banco do Brasil e passamos quase todo esse período lá, até mudarmos para uma casa na beira do rio – ao lado do Bar “Meu Cantinho”. Minha mãe e o Rubens ficaram amigos desta família, que, quando a esposa ficou grávida, minha mãe fez seu parto na própria casa – sendo inclusive convidada para ser madrinha da criança –, e passou a chamá-los de comadre e compadre. Da D. Adelina, sempre estava em casa, e a amiga Regina, que todos apelidaram de vovó. E essas foram as pessoas importantes que marcaram minha passagem por esta cidade.

Kennedy e Brasília Do Kennedy tenho uma menção especial – foi o Kennedy que me ensinou a desenhar. A gente sempre ia pra beira do rio e, ele desenhava uns barcos, magistralmente. Logo me interessei e passei a copiar seus desenhos. Era um dom de família. Sua irmã chamada Brasília, também desenhava e fazia caricaturas dos professores na escola – onde estudava minha irmã mais velha. Minha mãe teve a ideia, na reforma da ala infantil do hospital, de chamá-la para decorar a ala. Ela topou e fez um trabalho muito bonito. A ala ficou linda. Kennedy e Brasília me foram inspiração para me tornar o desenhista que sou hoje.


Rubens Rosa Certo dia, minha mãe conheceu aquele que se tornaria seu segundo marido. Um rapaz cinco anos mais novo que ela – chamado Rubens Rosa. Eles chegaram em casa, depois de uma tarde na beira do rio – e foi ficando. Logo, estavam namorando, e logo foi morar com a gente. A chegada do Rubens Rosa mudou completamente a vida de minha mãe. Ela dizia que fora a primeira vez que realmente se apaixonara e que queria viver aquele amor. Era uma relação conturbada e o Rubens não era exatamente o pai que gostaríamos de ter – até se esforçava para ser. O meu irmão Ricardo detestava o novo padrastro. E nunca teve sossego essa rivalidade. O Ricardo disputava a atenção da mãe, com ele. Pra ele, o Rubens era um intruso em nossas vidas. Não quero dar detalhes do cotidiano, mas foi por ele, que a minha mãe alugou uma casa decente, mobiliou e tivemos uns bons momentos naquele período. Tínhamos novamente uma família – apesar das brigas entre ele e o meu irmão Ricardo.


O Boto No mês de novembro, os finais de tarde eram muito agradáveis na cidade de Breves. Muita gente ia passear na beira, para conversar, namorar, olhar o rio e o lindo pôr do sol na região. Certa vez, eu estava na mureta do trapiche, olhando o rio, distraidamente e vendo o sol se por. O rio estava tranquilo e sereno. As maresias se formavam e corriam suavemente para as margens e agitavam milhares de toras de madeiras – que estavam estacionadas em frente a uma serraria, esperando a vez de serem dilaceradas. Tudo estava muito calmo. Um ou outro (pô-pô-pô), passava pra lá e pra cá – num navegar preguiçoso. Os barcos eram tão lentos, que pareciam não sair do lugar. Eles cruzavam o rio, meio de lado, o que dava realmente a impressão de estarem parados.

Eu observava e fixava o olhar, esperando acontecer alguma coisa naquela cidade morna. Os pensamentos estavam muito longe. De repente, um imenso boto cinza saltou para fora d’água. Num segundo, aquele imenso animal – que devia ter mais de dois metros de comprimento –, saiu da água num grande impulso e conseguiu colocar o corpo todo para fora da água, num pulo de mais de dois metros. Subiu, balançou a cauda, olhou para frente e arremeteu num belo espetáculo. Fiquei maravilhado e de boca aberta. Foi a primeira vez que eu vi um boto por inteiro. É um belo e misterioso animal. .


“ É a enfermeira quem cuida do doente dando ao espírito, é ela quem protege a saúde buscando as fontes de infecção, ensinando a arte de viver saudável e lutando contra os males sociais que semeiam a doença”. Stella Cunha Manaus, 17-3-1957


A Kombi e o Presente (Uma história quase Verídica)

E

m 1977, minha mãe resolveu dar de presente de 15 anos, ao meu irmão mais velho, uma viagem ao Rio de Janeiro. Nada de mais, se nessa época, não morássemos na cidade de Breves, na Ilha do Marajó no Pará, e a viagem – não fosse feita de uma forma tão pouco convencional. Um ano se passou e nos habituamos à cidade, e o que eu chamei de fim-de-mundo na chegada. Tornou uma cidadezinha extremamente agradável, uma região propícia a mil aventuras e com um rio maravilhoso à frente – como em quase todas as cidades da região. Em 1976, surgiu a ideia do tal presente. Meu irmão completaria 15 anos em julho do ano seguinte – justamente no mês das férias escolares. Neste ano, aconteceu


um fato que só contribuiu para que essa história ficasse cada vez mais emocionante. Minha mãe nos arranjou um padrasto. Ajustou a nossa vida à dele, mudamos de casa e no segundo semestre ela disse que iria comprar um carro. O anúncio foi confirmado, a data do desembarque feita e, no dia marcado, fomos para o trapiche, esperar a chegada do automóvel. O B/M (barco-motor) S. João aportou lotado. Passou um bom tempo saindo gente de dentro do barco, logo apareceram dois automóveis. Uma Brasília mais ou menos e uma Kombi velha. Não demorei muito para descobrir – pelos cuidados do meu padrasto, que o nosso carro era a Kombi. E eu pensei – poxa! O nosso carro é a Kombi! No dia seguinte, lá estávamos nós, desfilando dentro da Kombi, pela cidade. Eu sei que, nesse intervalo, até a viagem, meu padrasto barbarizou com a Kombi pela cidade. Certo dia, completamente bêbado, ele conseguiu capotar a Kombi – quase destruindo o patrimônio da família. Minha mãe o perdoou e mandou consertar a lataria

– que ficou um pouco amassada. Os meses seguintes transcorreram sem mais incidentes, a vida fluiu normalmente, apenas a paz sendo interrompida com uma ou outra briga ocasional na família. No mês de maio, os preparativos para a viagem estavam em dia. O roteiro foi estudado e feito cuidadosamente, fora o detalhe, que minha mãe resolvera levar não apenas meu irmão para o Rio de Janeiro – mas como toda a família. Na Kombi. Alheios aos detalhes da viagem, sei que pra começar a aventura, tínhamos primeiro de chegar a Belém, saindo do Marajó, já dentro da Kombi, numa viagem que duraria pelo menos 36 horas, pois teríamos de viajar de balsa, e a balsa, que vinha de Manaus, era uma embarcação pesada e lenta, pois vinha entupida de carretas e automóveis e, chegaria numa hora incerta e não sabida. Foi ideia do meu padrasto – para economizar passagem. O problema era que ninguém sabia quando a balsa passaria pela cidade. Ficamos todos arrumados para a jornada e dormimos na primeira noite na frente da cidade, à beira do rio, na parte es-



tratégica, para dar tempo de ver a balsa chegando. E sempre com um adulto de plantão – para avisar e dar tempo de se dirigir ao trapiche. Dois dias se passaram e nada. Numa reunião de cúpula, minha mãe decidiu que voltaríamos pra casa e iríamos para Belém no barco Fé em Deus – que sairia no dia seguinte. Aliviados, iniciamos a viagem mais confortavelmente. Chegando a Belém, ficamos na casa de dona Laura – a mãe do Rubens. Aquela velha devia me odiar, pelo jeito que me olhava. Tinha medo dela. Uma senhora matrona de uns 65 anos de idade – uma tonelada de peso e um humor do cão. Casada com o “seu” Leite – que era um doce de tranquilidade. Eles eram donos do Churrasquinho Leite, na rua doutor Freitas, no bairro do Marco. Uma semana se passou e foi incluído na lista de passageiros, o irmão do meu padrasto. Aproveitando o ensejo – já que é uma lotação, por que não, mais um? –, e o Rubens aproveitou para dar uma viagem de presente ao irmão Cláudio. Dias depois, minha tia chegou de Santarém e foi bondosamente convidada a integrar a lista de convidados de última hora. Minha mãe merecia um Oscar. Parece que tinha comprado um ônibus de turismo. Aí veio a conferência – conferência de conferir –, minha mãe, meu padrasto, cinco filhos, Cláudio e tia Nita, igual a nove pessoas. Espaço da Kombi: três bancos e um bagageiro que não contava, pois estava com a bagagem de nove pessoas, naturalmente, o piso na frente e dois assoalhos na parte de trás. Resultado: quatro adultos, dois adolescentes (grandes) e quatro crianças – se espremiam na hora de dormir, num espaço, em que fisicamente, era impossível racionalizar. Partimos numa madrugada no início de julho. Acredito que saímos neste horário, porque era capaz de minha mãe chamar mais alguém na rua. Partimos de Kombi, rumo à Cidade Maravilhosa. Os primeiros 100 Quilômetros ocorreram tudo na santa paz, o problema é que ainda faltavam 8.568 Quilômetros de estrada – e estávamos apenas no começo de tudo. Um silêncio, alguns dormindo e, depois de três horas de viagem, minha irmã, tirou não sei se onde uma música de viagem. Ela disse: “vamos cantar pra animar”. Pra quê? Escolheu Andanças, e começamos a cantar – talvez pelo tédio. Poucos tempo depois, era a Kombi toda – em duas vozes em uníssono bradava: “Olha a lua mansa a se derramáááááá...” E o outro grupo: “Me leva amôôôôôÔÔÔÔ...” E essa foi a única vez que cantamos na viagem. Passamos o primeiro dia de viagem, um calor dos infernos – paramos pra comer num restaurante de beira de estrada. Aqueles que têm aquela deliciosa carne assada – que dão medo. Por volta das três da tarde, a Kombi começou a fazer um barulho


estranho. Todo mundo já ficou de orelha em pé – que nem cachorro. Todo mundo, vírgula – eu tinha 12 anos e não estava nem ai. Tinha a “mamãe heroína “pra me proteger. Meu padrasto disse que alguma coisa estava errada e íamos ter de parar numa oficina para ver o que era. A Kombi aguentou mais alguns quilômetros e, paramos num daqueles muitos postos de combustíveis “SHELL”, que ainda iríamos passar pelo caminho. A Kombi foi levada para uma oficina. E o mecânico – tradicionalmente sujo de graxa –, disse: “O motor pifou!”. Chamou o casal, conversaram sobre os valores do conserto e pronto! O mecânico retirou o motor e começou o conserto – que durou até o dia seguinte. Enquanto isso, aguardamos, esperando, em pleno posto de gasolina, no meio da Belém-Brasília. Dormimos esta noite, na carcaça do carro e, o motor dormiu pendurado por uma corrente de aço. Acordamos bem cedo e fomos tomar café no restaurante do posto. Almoçamos PF, um prato pra dois moleques – pra economizar –, e comemos biscoitos com refrigerantes. Não tínhamos problemas com dinheiro, pois pensando bem, aquele conserto deve ter custado o preço de outra Kombi. Partimos às duas da tarde e, logo à noitinha, estávamos entrando em Paragominas. Lá fomos visitar um amigo do Rubens – que era sargento do Exército e, nesta noite, jantamos no quartel. Nos despedimos de Paragominas e, seguimos viagem. À noite, sempre dormíamos num posto de gasolina – dentro e fora da Kombi. A viagem longa num carro desconfortável, apertado, cheio de gente, com um calor infernal do meio Norte – propiciaram o evento que viria a seguir: as brigas na Kombi. Isso começou no amanhecer do terceiro dia. Meu irmão mais velho começou a implicar com o Cláudio – que era da mesma idade dele –, e o meu padrasto tomou as


dores. Como Rubens não se dava bem com o Ricardo, começou a brigar com ele. Minha mãe interferiu e defendeu o meu irmão. Minha tia ficou do lado de minha mãe e minha mãe pra completar, descontava na gente (eu e meu irmão). Enfim, o inferno tomou conta da Kombi. E aquele rebuliço rodou por mais alguns quilômetros e umas gritarias – tudo no script do roteiro. Entramos no estado de Goiás e paramos para almoçar num restaurante de beira de estrada – como sempre. Já observando a mudança da região e das pessoas naquela parte do país. Aí, aquele grupo imenso, mal vestido e descabelado, aparece na porta do restaurante. Entramos na churrascaria e o garçom juntou três mesas e colocou uma infinidade de pratos, copos e talheres. Confesso que fiquei meio envergonhado, pois tínhamos acabado de sair do meio do mato – e começávamos a ver a cara da civilização. À nossa frente, um casal com uns meninos super educados e lourinhos – quase todos da nossa idade –, comiam utilizando garfo e faca, e a gente, mal se equilibrando com a colher – na frente daquele imenso PF. Mas era muita fome e todo mundo atacou o prato “firme” e a vergonha passou. Depois do almoço, outra briga pra digestão: meu irmão ficou nervoso com minha mãe, porque ela, equivocadamente, comprara cuecas, tamanho (P). E nenhuma não lhe serviu – meu padrasto tomou as dores dela e eles brigaram de novo. O meu irmão furioso – saiu correndo e sumiu. O clima ficou péssimo. Ficamos à tarde toda procurando o infeliz, que teimava em não voltar, pra gente dar prosseguimento ao presente dele. A Polícia local foi acionada e minha tia disse: “Será que aquele pontinho preto ali em cima daquela montanha não é ele?” Era ele. Meu padrasto e um policial foram buscá-lo e prosseguimos viagem com ele emburrado, todo mundo calado – e eu e meu outro irmão, felizes de cueca nova. Chegamos a Anápolis e, entramos na cidade, com o meu padrasto logo perguntando por um posto de gasolina, um restaurante, ou uma oficina mecânica. Mas, saímos logo de Anápolis e seguimos viagem. O motor recauchutado, dando conta do recado, rodando milhares de quilômetros sem reclamar – e haja estrada. Depois de muito tempo só ouvindo barulho do motor e contando vacas nas fazendas, meu padrasto disse: “Lá pelas seis da tarde, chegaremos a Brasília”. Respirei


feliz e pensei, a viagem estava dando certo – Pra quê fui abrir minha boca? Chegamos a Brasília, lá pelas sete da noite e, rodamos por imensas avenidas, olhando curiosos – a capital do país. Minha mãe havia dito que faríamos uma parada para conhecer a cidade. Tudo indo muito bem, quando na saída de um viaduto, numa das muitas alças viárias que formavam aquele complexo de asfalto, Cláudio disse: “Vocês não estão sentindo cheiro de queimado?”. Entre ele sentir e todo mundo entrar em pânico – levou uns 30 segundos. O cheiro e o pânico tomaram conta de todos. E o meu padrasto rapidamente jogou o carro no acostamento e todos nós saímos apressadamente – com a Kombi soltando rolos de fumaça na parte de trás. Foi um pandemônio. O meu irmão pegou o extintor de incêndio e o fogo foi debelado em poucos minutos – mas com a parte de trás, saindo bastante fumaça. Logo, estávamos nos refazendo do pânico – sentados na grama do acostamento, esperando o que os adultos iriam fazer. E ali permanecemos por um tempo olhando pra Kombi. Estávamos numa cidade que não conhecíamos, sem conhecer ninguém nem pra pedir socorro, e com nenhum sinal de que por ali haveria um bairro popular pra achar uma oficina mecânica. Sete e meia da noite e aquele monte de gente sem saber o que fazer – à beira do asfalto. De repente para à nossa frente, um Opalão preto, chapa branca. Um rapaz negro, alto, simpático, de terno preto, parecia o MIB, parou o carro, desceu e aproximou-se de nós e perguntou o que estava acontecendo. Conversaram por um tempo e em poucos minutos estávamos confortavelmente dentro do Opala, olhando as luzes brilhantes da cidade e indo em direção a algum lugar de Brasília.


No dia seguinte, este rapaz cuidou para que a Kombi tivesse os reparos necessários, nos levou para um hotel e nos convidou para um passeio turístico pela cidade. Tiramos fotos no Congresso Nacional, corremos na Praça dos Três Poderes, visitamos a famosa Catedral do Niemayer e subimos no Mirante – uma torre linda com uma vista maravilhosa de Brasília –, e fomos jantar em algum lugar bacana. No dia seguinte, milagrosamente, lá estava a Kombi, novinha em folha e pronta para viagem. Nos despedimos calorosamente, daquele que minha mãe passou a chamar, com a aprovação de todos, de “nosso anjo da guarda”. Sic. Aquele rapaz devolveu algo que o grupo estava perdendo – a alegria e o riso, que voltaram a reinar na Kombi. Já era o quinto dia desde a partida de Belém, e o décimo desde a saída do Marajó. Saímos do Planalto Central e entramos no estado de Minas Gerais – passando por Uberlândia. Percebemos com muita curiosidade, as mudanças que iam surgindo à nossa frente. O ambiente, o sotaque, a fala caipira dos mineiros, a limpeza das ruas, e o frio que já gelava a Kombi. Paramos para o mesmo ritual de sempre – agora na rodoviária, para tomar banho, escovar dentes, tomar café, lanchar, essas coisas. As mudanças de relevo; a vegetação; o asfalto lisinho; as rodovias bem cuidadas; os lugares lindos; com todas aquelas casas, incrustadas, lá no fundo verde e frio; e o gado, nas colinas, parecendo que poderiam rolar de lá – tudo era novidade e observado com muita curiosidade. Mais algumas horas de viagem, logo estávamos passando por Belo Horizonte. Nesta parte não foi registrado nenhum incidente ou briga – ou problema nos anais da viagem. Passamos por BH, fizemos mais uma parada. Colocamos agasalhos quentes, pois o frio do inverno já era pesado na região e continuamos a viagem em direção ao Rio de Janeiro. Neste momento, o grupo já tinha se estabilizado e se sentia um calor e uma fe-


licidade prazerosa na viagem maluca de minha mãe. Talvez, depois do ocorrido em Brasília, quando um estranho nos ajudara e nos confortara num momento em que o grupo estava em pé de guerra, tenha mudado os humores e sensibilizado mais a família. Foi algo muito especial o que acontecera. A viagem ganhou outro sentido depois disso. Muitas horas depois de chão rodado, logo estávamos descendo a Serra de Petrópolis e vendo o Rio de Janeiro – bem pequenininho, lá embaixo. A estrada descia uma imensa montanha, a Serra de Petrópolis. Na descida, deu um frio na barriga, olhando o abismo que avistava ao lado direito. Temi pela saúde da Kombi, e claro, pela nossa também. Mas a lotação Breves-Cidade Maravilhosa, resistira bravamente e, finalmente chegamos ao Rio de Janeiro. A Kombi rodou pelo Rio de Janeiro e, com minha mãe de mapa em punho, começamos a procurar o local onde morava a irmã do meu padrasto, com os dois filhos. Ele disse: “Fica em Belford Roxo, Baixada Fluminense. Hum... Achei! Por ali”. Em que ano isso? 1977 – o auge do Esquadrão da Morte. Depois de horas procurando a Baixada na imensidão do Rio, chegamos finalmente na vila onde nossa tia postiça Jandira – morava. De repente, a casa de dois cômodos foi invadida por nove pessoas e virou um albergue, com todo mundo se abraçando e uma fila imensa pro banheiro. O meu irmão e meu padrasto continuaram se pegando, de vez em quando, mas tudo correu sem mais problemas. Eu e meu irmão logo nos enturmamos com os garotos da vizinhança – que nos convidaram pra jogar bola e a empinar pipa com a molecada. Na vila, havia uma turminha da nossa idade e, em frente da casa de minha tia Jandira, morava uma menina linda chamada Irene, que tinha uns 10 anos – e que sempre vinha pro meu lado, fazendo umas perguntas e me olhando de um jeito estranho. O garoto que sempre estava com ela, ficou enciumado porque ela só vivia junto a mim. E me disse: “Vocês vieram só estragar a vila”. Eu não me importei. Vi que ele estava com ciúmes dela. Num final de tarde, eu estava sentado no murinho da casa da minha tia, quando ela se aproximou. Todos os meninos estavam no pátio da vila. Era uma tarde bonita e apesar de estar no inverno, estava um clima bem gostoso. Ela se aproximou, encostou-se na minha perna e disse: “Me dá um beijo?!”. Fiquei envergonhado, mas me aproximei e a beijei no rosto. Ela me olhou e me deu um beijo na boca. Ganhamos uma vaia da turma e gritos de: “Estão namorando! Estão namorando!”. Naquele momento, me dei conta que estava apaixonado. Ficamos ali, conversando ao lado da Kombi e, ela escreveu no vidro empoeirado: “Eu Te Amo!”. E eu escrevi também. Essa foi a última vez que eu vi a Kombi, pois ela foi vendida ainda no Rio. Fiquei apaixonado, lembrando da menina, durante toda a viagem de volta. Eu tinha apenas 12 anos de idade.



ABAETETUBA

M

ais uma vez, no final do ano de 1977, o destino joga novamente seus dados e nos preparamos para viajar. Já se tornara uma rotina em nossas vidas. Pela terceira vez na década, íamos mudar de cidade. Em 1971, mudamos de Manaus para Monte Alegre; em 1975 chegamos a Breves. E agora estávamos novamente a caminho de uma nova cidade. Minha mãe tinha de decidir entre as cidades de Abaetetuba, Marabá ou Itaituba. Desde a saída de Manaus, depois da morte trágica de meu pai, seu objetivo era ficar cada vez mais perto de minha avó – que morava em Santarém. Os motivos da FSESP não a ter lhe transferido para Santarém, sempre foi um mistério. Ir para Abaetetuba foi uma opção estranha, já que a lógica seria Itaituba – que ficava mais próxima. Chegamos em Belém e, de lá pegamos o barco da Rodomar – neste tempo a empresa possuía transportes em Kombis, e chegamos em Abaetetuba. A cidade que iría-


mos morar pelos próximos anos. Abaetetuba se mostrava como uma cidade um pouco mais desenvolvida entre as cidades que tínhamos passado. Era final de ano e minha mãe alugou uma casa na Rua Humberto Parente, no centro da cidade. Na entrada do ano de 1978, os alto-falantes da rádio Copacabana tocavam a música de Ruy Mauriti para as vinhetas de fim de ano da Rede Globo. “... Este ano, quero paz no meu coração. Quem quiser ter um amigo, que me dê a mão....”. Acordamos cedo e descemos a rua principal, a D. Pedro I, mal asfaltada, com buracos, poças de lama e muita piçarra. Passamos pelo canto do Basa – ponto de encontro do Carnaval abaetetubense –, e caminhamos até a Praça da Bandeira. São várias sensações ao se chegar numa cidade, onde não se conhece ninguém. Uma delas, é que, mais cedo ou mais tarde, as pessoas vão te conhecer e algumas se tornarão seus amigos. A unidade da fundação SESP ficava bem no centro da cidade, na Praça da Matriz e, a escola em que fui matriculado, o Colégio São Francisco Xavier, na rua ao lado da igreja. Eu adorei o colégio, que tinha um uniforme muito peculiar com um negócio atrás da blusa. A expectativa de conhecer os novos amigos era grande. Duas coisas me chamaram muito atenção: a igreja de Nossa Senhora da Conceição e o Cristo Crucificado – no centro da praça. Era uma praça linda. Com dois coretos e bastante arborizada. Certo dia, fui caminhando até a Praça Matriz e fiquei por lá. Vi uma vespa entrar num buraco e fui lá tentar pegar. Estava agachado, de olho no buraco, quando uma voz surgiu atrás de mim: “O que estas fazendo ai moleque?”. Num susto, olhei pra trás e o estranho era o Ronald Reis Ferreira. Ele se agachou e me ajudou a tentar pegar a vespa – que conseguiu escapar. A partir deste dia, ficamos amigos. O Ronald morava num casarão, na rua principal, bem em frente à minha rua – que era a passagem Humberto Parente. Tinha uma família de políticos e seu tio havia sido vice-prefeito de Abaeté. Na minha rua moravam as seguintes famílias: Monteserrat, Negrão e a família do Orlando, composta por, Beth, Júlio e Messias. Dos Negrão, eram o Francisco, Dorinha, Cecília, Lino, Edu e baixola. Dos Montserrat, o Helder, Marquinhos e sua irmã caçula de nome Marluce. Dos Ferreira, eram Ronald, Rosicely, Júnior e as menores. E na frente de casa, uma família cujos nome esqueci– esse era o núcleo de amigos da rua Humberto Parente. A unidade da FSESP era um prediozinho azul e branco que ficava na Rua Barão do Rio Branco, em frente à Igreja da Matriz. Minha mãe ficava numa sala com a janela dando vista para a rua – e de vez em quando eu passava por lá. Era um trabalho mais tranquilo, menos complicado que as unidades de Monte


Alegre e Breves – que eram hospitais de alto fluxo. Nestes hospitais não havia hora para ser chamada. As emergências constantes e necessidades de atendimento, muitas vezes a faziam virar plantões de 24 horas dentro de um hospital. Dos colegas de trabalho de minha mãe, e que lembro, está o doutor Brandão, médico que se tornou seu grande amigo. Outra amiga era a doutora Lindeth Fittipaldi – uma pernambucana, parente do piloto de Fórmula 01. Marinho e Marão, D. Maria e outros – a minha memória não guardou devidamente algumas lembranças. O meu irmão Cobi foi matriculado no Colégio Bernardino Santos. Fui matriculado na quinta série e, na minha turma do São Francisco, estavam o Natalino, Amiraldo, Badu, Alexandre, Cabecinha, Edna, Celina e Carlo Alberto Patinhas e outros – que me falham a memória nesse momento –, mas lembro do Lucivaldo, irmão do Elias e o menino que faleceu de Leucemia, no ano seguinte. Foram os colegas que seguiram até o primeiro ano, quando sai de Abaeté para Belém. No período escolar tudo ocorreu muito bem. Aluno mediano, ruim em Matemática e bom em Artes Visuais. Matérias de Humanas eram as preferidas, já os números são uma incógnita até hoje.

Bicicletas O que me chamou atenção em Abaeté foi a enorme quantidade de bicicletas que a cidade possuía. Tinha bicicleta pra todo lado e de todo tipo e toda hora. Na praça, tinha o aluguel de bicicletas. Pagava-se um valor (x) por hora – era baratinho. E nem precisava de documento ou registro. Pega aquela ali e vai. E o cara anotava a saída. Era um sistema de confiança e do “me rouba pra ti ver o que acontece”. E não lembro, sinceramente falando, de saber que alguém houvesse roubado alguma bicicleta de aluguel. O transporte para qualquer lugar era feito de bicicleta. Estava na feira com as compras – chama o moleque da bicicleta para o carreto. Estava querendo ir para algum lugar distante? Bicicleteiro passando – era chamado. Quer ter transporte diário para o trabalho? Contratava-se um bicicleteiro – com pagamento quinzenal ou mensal. Quer ir tomar um banho no Tijuquaquara? Chama a turma e vamos de bicicleta. Enfim, Abaetetuba é a cidade com mais bicicletas no Brasil – diziam os propagandistas com muito orgulho. Monark, aro circular – dizia a propaganda. Monareta e a chegada da Peugeot – são as marcas que lembro na época. Tinha a famosíssima Caloi, cuja propaganda era marcante: neste Natal, não esqueça a minha Caloi!


E o Futebol chegou na minha vida. Até este momento, eu não tinha muito contato com o Futebol. Apesar de Breves ser uma cidade com apenas dois times, o Santana – com as cores alviazul (bicolor). E o Atalaia – em vermelho e preto. O único jogo que eu havia assistido, até então, fora uma partida amistosa entre o combinado da cidade de Breves e a seleção de Portel – rivalidade local. Não lembro do placar, mas lembro do “frango” tomado pelo goleiro de Portel, e como se deu a comemoração. Como o campo não tinha arquibancada, apenas um alambrado de madeira separava a torcida do campo, na comemoração do gol, a torcida toda invadia o gramado e comemorava junto com os atletas – e levava-se muito tempo para tirar todo mundo e recomeçar o jogo. Mas desde então, isso não aconteceu mais. Chegando em Abaeté, com o anúncio da Copa do Mundo na Argentina, minha mãe realizou seu sonho de consumo: comprou uma TV Sânyo colorida. A chegada da TV em casa se equiparou a um gol em final de Copa do Mundo – com gritarias e comemorações. Até este momento, nunca tivemos uma TV. Na verdade, esse tipo de eletrodoméstico, era caro e inacessível à maioria da população. Ate antão, eu e meus irmãos, éramos o que se chamava de – televizinho. Íamos assistir os desenhos na casa da família Montserrat. E de vez em quando na casa do Rafa, filho da folclórica Nina Abreu – uma das precursoras da arte e do artesanato em Abaeté. Quando a TV Sanyo Ultracolor chegou, o mundo se abriu para mim e as programações começaram a fazer parte das nossas vidas. Pela manhã TV Globinho, Sessão da Tarde, novela das seis, nos intervalos das novelas ainda não existiam jornais locais, passava então o desenho animado Tom & Jerry. Novela das sete e oito. Jornal Nacional, Globo Repórter, Chico City, Viva o Gordo, Planeta dos Macacos. No sábado, Clube do Chacrinha e Primeira Exibição. No domingo, Globo Esporte, Trapalhões e Fantástico. Era a Globo entrando nas nossas vidas. As outras emissoras – não possuíam potentes antenas –, e era difícil sintonizá-las, mas onde todo mundo ficava ligado mesmo, era na Globo. E foi em Abaetetuba que aconteceram os primeiros beijos, as primeiras namoradas e as primeiras paixões.


Lembro sempre com saudade dos passeios nas praças aos sábados e da música de cowboy para a última chamada antes de começar os filmes no Cine Imperador. Das festas matinês na antiga sede do Vênus Velho, ao som de “Shocking Blue” e “Never Marry A Railroad Man “ e Bill Harley e Seus Cometas – que balançavam a moçada. Das festas no famoso e glamouroso Tartarugão – onde não tinha caboca seca. Nos Carnavais do Bancrévea e Assembleia Abaetetubense – onde invariavelmente acabavam em muita porrada. Saudade do Vasquinho de Abaeté, onde joguei o campeonato infantojuvenil e fiz um golaço – digno de ser desenhado (em outro momento).

Vasquinho de Abaeté, O nosso amigo Xibé – o Gonzaga –, artista abaetetubense e gente da melhor qualidade, chegou a praça e disse que ia começar um campeonato de Futebol e, o Vasco de Abaeté iria montar um time infantil. Nesse campeonato havia vários times já formados com jovens muito bons de bola. Dos que eu conhecia, eram o Reginaldo e Nei – que jogaram pelo São Francisco. Havia o time do Tietê, do Palmeiras, onde jogava o Amiraldo, moleque bom de bola e metido a craque. Rápido, driblador. Tinha um time da estrada, que falaram que estava cheio de “gatos” – que eram “Jogadores fora da idade”, e o Vasquinho de Abaeté, formado na praça, por garotos como eu, que nunca tinham pisado num gramado de Futebol. O time era dirigido pelo Nenéu, o nosso técnico com lábios leporinos – e naturalmente fanho. A formação era a seguinte: o Xibé, Paulo Emmanuel, Mano, Lino, Doti, Ronaldo e Neneca no gol. Pra não dizer que fizemos feio, ganhamos o torneio início. Mas vou contar sobre o único gol que fiz na vida. Eu era um jogador meio bomba. Estava ali porque achava legal pensar que era jogador de Futebol. Não era tão ruim, mas o campo era imenso. Jogava na lateral e, por lá ficava fazendo a marcação e eventualmente apoiando o meio-campo. Eu pensava – fica aqui, não passe do meio, porque na volta, vais cansar e eu ficava. O jogo tava bom pra gente. O nosso time estava dominando o jogo e eu pensei – vou passar mais um pouco pra lá e ver como é e volto. Recebi a bola e avancei. Nenhum marcador surgiu para me obstruir. Passei do meio-campo e novamente nenhum marcador para me barrar. Aí, pensei – se eu avançar mais um pouquinho? Avancei e apareceu um marcador. Aí veio a cagada. Avancei demais. Quando recebi a pressão, eu cruzei – na verdade, eu me livrei da bola. Em vez de voltar, eu continuei avançando e olhando. A bola caiu no pé de um zagueiro brabo, que deu uma cachuleta na bola. Ela pegou um efeito pra trás e caiu bem na minha frente. De repente eu me vi com aquele monte de gente correndo atrás de mim e na frente, o goleiro. Aí pensei – agora vou ter que fazer a porra do gol e chutei. Pimba! Gol! Depois dessa, nunca mais fui pro ataque, por que me substituíram – e ao virar reserva, desisti. Não durou muito tempo minha aventura futebolística.


Basquete Certo dia, numa aula de Educação Física, o professor apareceu com uma bola de basquete. Eu assistia aos jogos da seleção brasileira na Globo. O time de Basquete do Brasil em 1978 – havia ficado em terceiro lugar no mundial, por causa de uma cesta do jogador Marcel, no último segundo do jogo. Uma sensação maravilhosa. O time adversário vencendo o jogo, O Brasil, um ponto atrás. Os segundos correndo velozmente e a bola vai para defesa brasileira. Sem mais tempo, o Marcel voa com a bola da cabeça do garrafão. Cena de filme. Em câmara lenta a bola atravessa a quadra e “descai”. _Chuáááááááá´! Uma das coisas mais lindas do mundo, a superação e genialidade de um atleta. Todos na plateia, estáticos, coração acelerado e explosão de alegria. Me apaixonei pelo Basquete. Desde aquele momento, na quadra, comecei a treinar e montamos um time com garotos da cidade. Era o Putica, Lino, Sérgio, Mifi, eu e o Marquinhos da praça. Começamos a jogar e nos divertir com esse novo esporte.

Belém Primeiro foi o Ricardo, depois a Melba, eu vim sozinho, e por fim, os dois que ficaram. Minha mãe comprou um apartamento na Almirante Barroso – onde vivemos por 25 anos. Ela permaneceu em Abaeté por mais uns quatro anos, quando foi designada para o hospital de Capanema, onde permaneceu até ser colocada em disponibilidade. A FSESP e sua profissão de enfermeira – foram os seus dois grandes amores. Foi traída pela instituição pelo qual deu sua vida. Nunca faltou ao trabalho. Mas não teve o reconhecimento merecido. Processos e mais processos perdidos para resgatar o FGTS que lhe daria uma aposentadoria tranquila. Alegavam não ter condições de encontrar registros de sua vida funcional. Dado estar espalhados por tantas cidades – onde os registros se perderam. Por consequencia dessas mudanças, ela também perdera os contracheques que lhes confirmaria a existência profissional. Perdeu em todas as instâncias e nem o recurso usado pelo cidadão, em caso de doença grave, foi liberado. A FUNASA nunca lhe fez justiça e 600 mil reais dormem nos cofres do governo em seu nome. Pouco antes de sua partida, ela perdera o último recurso.


Saudações Minha irmã Melba Lóis foi quem cuidou quando D. Stella ficou doente. Ficou com ela até o fim da vida. Fui negligente com esse cuidado e não há um dia em que não peça perdão. Este livro foi escrito quando ela ainda estava com saúde. Viu e leu alguns textos. Fiz algumas entrevistas – que se perderam. É um livro que começou a ser escrito há quarenta anos atrás. O primeiro texto – que não consta no livro –, se perdeu. E depois analisei e decidi que, mesmo que tentasse escrever, ele não teria mais a paixão e o conteúdo do original – por isso deixei de lado. Este livro é pra senhora, minha mamãe. Eu cumpri a minha palavra – e seu livro finalmente será publicado. Te amarei para sempre. A saudade mora no meu coração. Obrigado por ter tido o privilégio de ser seu filho.


“A profissão de enfermeira exige muito amor à profissão, muita abnegação e grande espírito de sacrifício”. Stella Cunha - Manaus, 17-3-1957






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