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papa
O Francisco imaginário Tolerante, progressista, senão próximo do marximo, o Papa Francisco é o novo ídolo dos colunistas da esquerda bem-pensante. Uma ideia com que o semanário conservador britânico não concorda por aí além... REVISTA ThE SPECTATOR LONdRES
F 24
AUTOR Luke Coppen (excertos)
MARÇO 2014 — N.º 217
dATA 11.01.2014
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m 31 de dezembro de 2013, a comunicação social recebia um despacho surpreendente: o Vaticano desmentia oficialmente a intenção do Papa Francisco de abolir o pecado. Parecia uma brincadeira, mas não era. Quem teria levado o Vaticano a publicar um comentário sobre algo tão improvável? Parece que foi um dos mais proeminentes jornalistas de Itália: Eugenio Scalfari, cofundador do jornal esquerdista La Repubblica. O seu artigo intitulava-se “A revolução de Francisco: ele aboliu o pecado”. Porque teria um jornalista, sobretudo um analista tão prestigiado como Scalfari, imaginado que o Papa teria mandado às urtigas um dos princípios fundamentais da teologia cristã? Pois bem, desde que assumiu o cargo, no ano passado, Francisco foi promovido a estrela mundial da esquerda liberal [liberal, no sentido anglo-saxão, isto é, refor-
TRAdUTORA Ana Cardoso Pires
mista]. As suas origens modestas (foi segurança numa discoteca), a sua aversão pela pompa do Vaticano (cozinha as suas próprias refeições de esparguete) e a sua determinação em destacar o compromisso da Igreja com os pobres tem levado pessoas de esquerda, e até mesmo ateus como Scalfari, a acreditar que é tão avesso aos dogmas da Igreja como eles. Por outras palavras, pensam que o Papa não é católico. No ano passado, quase todos os comentadores com orientação de esquerda se renderam aos encantos deste jesuíta lavador de pés. Artigo atrás de artigo, projetam os seus sonhos mais loucos em Francisco. O “novo herói da esquerda” Em novembro, Jonathan Freedland, jornalista de The Guardian, anunciou que Francisco era “o novo herói óbvio da esquerda”. Para ele, os retratos do Sumo Pontífice deviam substituir os cartazes desbotados de Obama “nas paredes dos quartos dos estudantes, por todo o mundo”. Poucos dias depois, Francisco pronunciava uma homilia em que denunciava aquilo a que chamou “progressismo
O NOVO PAPAMÓVEL. ILUSTRAÇÃO DE NATE BEELER PARA THE COLOMBUS DISPATCH, EUA
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adolescente”. Mas as pessoas só veem e ouvem o que querem e ninguém reparou nisso. Eis como se fez do Papa um ídolo da esquerda. Assim que se manifesta fiel à doutrina católica, os seus fãs de esquerda fazem orelhas moucas. Em dezembro, a mais antiga revista gay dos Estados Unidos, The Advocate, saudava em Francisco o seu Homem do Ano, pela compaixão expressa para com os homossexuais. Não tinha nada de revolucionário: o artigo 2358 do catecismo da Igreja Católica apela a que se trate os homossexuais “com respeito, compaixão e sensibilidade”. Por reafirmar um ensinamento católico, Francisco tornou-se um herói. Mas a palma da glorificação mais absurda cabe aos jornalistas da Esquire, que o fizeram passar pelo homem mais bem vestido do ano, em 2013, ele que usa a mesma indumentária todos os dias.
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Assim que o Papa se manifesta fiel à doutrina católica, os seus fãs de esquerda fazem orelhas moucas Alguns especialistas assinalaram já o fosso existente entre o Francisco imaginário, figura nascida da fantasia da esquerda, e o ocupante real do trono de São Pedro. James Bloodworth, redator do blogue político Left Foot Forward, apelou recentemente a que os seus pares moderassem as manifestações de entusiasmo. “As posições do Papa Francisco sobre a maioria dos temas são de pôr os cabelos em pé a qualquer pessoa de esquerda”, escreveu. “Em vez disso, artigo após artigo, mesmo jornalistas dos quais seria de esperar um pouco mais de ponderação escrevem as mesmas xaropadas.” A observação de Bloodworth anuncia um despertar dos laicos? Durante algum tempo, pareceu inevitável que os adeptos do novo Papa se fossem dando conta de que ele não está disposto a dar a sua bênção ao sacerdócio de mulheres, ao uso do preservativo, ao casamento homossexual ou ao aborto, e que isso os faria voltar-se contra ele. Mas começa a parecer pouco provável. Agora que inventaram um Francisco imaginário, os seus simpatizantes de esquerda não
C POR OUTRO LAdO
IMPOPULAR
Ao contrário do capital de simpatia de que goza noutros lugares, o Papa Francisco não está nas boas graças dos bispos croatas. Uma meia dúzia deles, considerados próximos da direita nacionalista, poderá ser destituída na primavera, a pretexto da sua idade avançada. Mas é a atenção que o Papa dedica aos pobres que não se compadece com o luxo e os Mercedes dos sacerdotes da Igreja croata, considera o diário de Belgrado DANAS. “A hipocrisia é consequência do clericalismo e o clericalismo é um dos males maiores”, declarou recentemente o Papa Francisco. A Igreja croata recebeu essas palavras como uma ameaça.
parecem com vontade de matar a sua criação. Obviamente, os jornalistas têm também um interesse económico em manter o seu idílio com esse Francisco imaginário: os artigos sobre este personagem vendem bem. Afinal, foi a personalidade mais debatida na internet no ano passado. Se colocarmos na web uma bela fotografia dele a beijar uma criança, ou um selfie [retrato do próprio tirado por telemóvel] com jovens admiradores do Papa no Vaticano, o número de visualizações dispara. Francisco tornou-se um dos produtos com mais venda pela internet. A nenhum bloguista interessa estragar o negócio. O papa é marxista? Rush Limbaugh, apresentador de rádio norte-americano, conservador, acusou o pontífice de pregar “um marxismo puro e duro”. Obviamente, tratava-se de um novo avatar do Francisco imaginário. Com Francisco, a Igreja está firmemente empenhada em pôr em prática aquilo a que os teólogos chamam “opção preferencial pelos pobres”. Mas, para fazer esta opção, a Igreja tem de cortejar os mais ricos. Por exemplo, alguns multimilionários generosos financiam a maior parte das iniciativas católicas em Inglaterra e no País de Gales. Bastaria que um deles se sentisse dececionado com a imagem “marxista” de Francisco para a Igreja ficar em apuros. Este homem de 77 anos sabe que deve pôr rapidamente em prática as reformas financeiras iniciadas pelo seu antecessor, Bento XVI, remodelar a Cúria Romana, impor padrões rigorosos de conduta para responder a casos de abusos sexuais cometidos por padres, continuar a defender a paz na Síria, convidar israelitas e palestinianos para negociações durante a sua visita à Terra Santa e supervisionar um sínodo marcado pela controvérsia, que pode rever a posição da Igreja em relação aos católicos divorciados e casados de novo. Entretanto, o Francisco imaginário vai suprimindo dogmas, atiçando a luta de classes e influenciando as tendências da moda masculina. Mas não se deixe iludir: trata-se de uma ilusão alimentada pela comunicação social, tal como a ideia de que a Igreja Católica vive obcecada por sexo e dinheiro. O que conta são as palavras e os atos do verdadeiro Francisco. Que deviam ser mais interessantes do que as invenções, mesmo as mais cativantes. N.º 217 — MARÇO 2014
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