Expresso, 7 de dezembro de 2013
Rui Ramos
danieloliveira.lx@gmail.com
Dar corda aos sapatos
Com o papa na barriga
país anda, com justiça, entusiasmado com as exportações do calçado. Todas as empresas que se saíram bem mudaram há mais de uma década, como reação ao enorme impacto da concorrência dos países do oriente. O que fizeram os industriais que conseguiram converter empresas familiares que produziam barato e mau para empresas exportadoras de referência? Investiram na modernização tecnológica, na criatividade, na inovação e na qualidade. Para o que receberam centenas de milhões de euros de apoios públicos. Portugal exporta calçado caro — os preços aumentaram 25%, só nos últimos seis anos. E quer exportar ainda mais caro. É isso que está escrito no plano estratégico da indústria até 2020, que não tem a China, mas sim a Itália, como concorrente. Como a economia europeia (que representa 95% das exportações) está em retração, será necessário mais arrojo para entrar em novos mercados, como o chinês. Para continuar este caminho a indústria quer atrair mais jovens qualificados e apostar ainda mais no design. Como há uma queda na procura do calçado do couro, que corresponde a 74% da faturação, vai ser necessária investigação para encontrar novos materiais. Porque a aposta no segmento caro, e não na fancaria, exige um grande investimento em design, criatividade e investigação, o plano estratégico é taxativo na recusa dos salários baixos. Muito se tem orgulhado o Governo do aumento das exportações. Acho estranho que um Governo liberal defenda que o aumento das exportações possa resultar de ação sua, mas adiante. Alguém acredita que a redução dos salários, a emigração dos jovens mais qualificados e o desinvestimento na investigação, na educação e nos apoios à indústria é compatível com este tipo de estratégia? Pelo contrário, este aumento das exportações só acontece porque a reconversão foi feita antes de se começar este caminho para o suicídio económico do país. E beneficiou daquilo que muitos consideram ter correspondido a vivermos acima das nossas possibilidades: um enorme investimento público na educação e qualificação. Que levou o programa internacional de avaliação de estudantes (PISA) a enfatizar, esta semana, os extraordinários resultados conseguidos por Portugal na última década (com estagnação desde 2009). Graças ao ‘facilitismo’ e ao ‘eduquês’, os jovens portugueses têm hoje competências semelhantes aos do Reino Unido, França e Itália. Tudo o que foi conseguido, e que é condição para que outras indústrias sigam o exemplo do calçado, pode estar a ser destruído com a redução absurda do investimento público em formação, educação, investigação e desenvolvimento, com a trágica fuga dos jovens mais qualificados e com a estúpida aposta na redução de custos para competir com os países que não acrescentam valor ao que produzem. E os efeitos dessas destruição, assim como os efeitos do que se fez de bom no passado, só se sentem a sério e de forma estrutural muitos anos depois. Até o pouco que corre bem nos diz que o caminho a seguir é o oposto ao que está a ser trilhado. E que ele não é compatível com o empobrecimento do país, a contração da economia e a redução do investimento público e privado. Tivessem alguns governantes e a indústria de calçado feito as contas de merceeiro que se fazem neste Governo, desinvestindo e apostando na redução de salários, e hoje dela apenas sobrariam umas dezenas de barracões abandonados.
Francisco foi recebido de armas na mão, como um colaborador da ditadura argentina. Subitamente, ei-lo promovido a Guevara de sotaina. Até há uns meses, a igreja só justificava notícias de pedofilia e de corrupção vaticana. Tudo mudou
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DANIEL OLIVEIRA ESCREVE EM www.expresso.pt DE 2ª A 6ª FEIRA
á não é Marx nem Lenine: é o Papa Francisco. Citam-no, comentam-no, aplicam-no. Era previsível. Falhada a rua, que nunca lhes proporcionou a Ucrânia com que sonhavam, desiludidos de Paul Krugman, que esta semana admitiu no seu blogue ter-se enganado acerca das consequências políticas da austeridade na zona euro, a que mais
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podiam deitar mão os caciques da nossa oposição radical? Antigamente dizia-se que a voz do povo é a voz de Deus. Restava à nossa elite de Aula Magna acreditar que a voz de Deus é a voz do povo. E ei-los assim agarrados à boia de umas frases papais, com o dr. Soares a desempenhar o papel de núncio apostólico alternativo. Primeira pergunta: o que esperam do sucessor de Bento XVI? A excomunhão do Presidente e do Governo, como na idade média os Papas faziam aos reis? O devaneio ultramontano dos netos de Robespierre já justificou várias erratas. Mas o mais importante é perceber porque é que alguém pensou que a mistificação podia pegar. E uma dos motivos é o preconceito de que o ‘social’ é monopólio das esquerdas, de modo que manifestar qualquer inquietação com a desigualdade e a pobreza é necessariamente andar de punho erguido. Não é. Pode ser apenas uma questão de justiça e de decência, que não são reserva de nenhuma fação. O cuidado ‘social’ das esquerdas está aliás submetido à luta pelo poder e à sua visão da sociedade, como seria de esperar em correntes políticas. Por isso, as esquerdas só são solidárias burocraticamente, através do Estado (isto é, com o dinheiro dos outros), e detestam quem se envolve pessoalmente no reforço da coesão social. Que o diga Isabel Jonet. Ainda nos lembramos que Francisco foi recebido de armas na mão, como um colaborador da ditadura ar-
gentina. Subitamente, ei-lo promovido a Guevara de sotaina. Ainda nos lembramos que a igreja só justificava, até há uns meses, notícias de pedofilia e de corrupção vaticana. Tudo mudou. Porquê? Em grande medida, porque a contestação à austeridade é dirigida pelos velhos do costume. Os movimentos de ‘indignados’ não produziram nem líderes nem organizações novas. Naturalmente, os ‘jovens de 1963’ não esqueceram que o chamado ‘catolicismo progressista’ deu muito jeito para socializar à esquerda as elites portuguesas de há cinquenta anos. Procuram agora algo de semelhante. Mas entretanto houve João Paulo II e um renascimento religioso global que passa pela recusa dos crentes em submeterem-se a agendas que não as da fé. É fácil encontrar precedentes católicos para as inquietações do Papa. Por exemplo, quem escreveu que “a atividade económica não pode resolver todos os problemas sociais através da simples extensão da lógica mercantil”? Bento XVI, em “A Caridade na Verdade”. Mas não chega dizer que a igreja sempre zelou pelos pobres e pelos que sofrem. É preciso compreender o sentido da ‘caridade na verdade’. A ‘caridade’ só faz sentido na ‘verdade’, e para os Papas a ‘verdade’ é o ‘projeto de Deus’. O papa Francisco não renegou a ‘verdade’, e isso coloca as suas palavras fora do alcance das nossas pequenas digestões políticas.
henrique.raposo79@gmail.com
O Banco Alimentar e o ódio
OE-2014: segundo ato stá-se tornando já habitual: descido o pano sobre o debate do OE no Parlamento com a aprovação da respetiva lei pela maioria que suporta o Governo, a ação é transferida para o Palácio Ratton e, com o país em suspenso, entram em cena os juízes do Tribunal Constitucional para darem a última palavra sobre a conformidade de algumas das providências orçamentais com a letra e o espírito da Constituição. A situação explica-se facilmente: confrontado com uma grave emergência financeira, o Governo, sob forte pressão dos nossos credores internacionais, tende a optar pela via dupla de aumentar os impostos e cortar nas despesas, exibindo uma firme determinação de levar tudo a raso… Ora, o Estado de direito não permite tudo, limita o poder em defesa dos cidadãos e o Tribunal Constitucional tem por missão garantir isso mesmo. Segundo o brocardo, de origem norte-americana, a Constituição diz aquilo que o Tribunal diz que ela diz! Os juízes interpretam os preceitos constitucionais conforme lhes ditam os seus conhecimentos e a sua consciência e, por formarem um órgão colegial, tiram as decisões por votação maioritária. È assim em todos os tribunais dotados de tal competência e, em termos democráticos, nada há a apontar. Ninguém é obrigado a concordar com a jurisprudência do Tribunal Constitucional e aqui está quem bastante tem criticado a persistente interpretação restritiva adotada quanto aos poderes das Regiões Autónomas. Mas todos lhe devem respeito e acatamento! De resto, é sempre possível ultrapassar o entendimento do Tribunal Constitucional revendo e clarificando ou mesmo alterando, como tem acontecido na matéria referida, a própria Constituição, desde que, alegando boas razões, com muito diálogo e cedências mútuas, se obtenha a requerida maioria de dois terços na Assembleia da República. Atribuir ao Tribunal Constitucional a responsabilidade por medidas mais gravosas, caso venha a invalidar algumas das constantes na lei orçamental, não parece apropria-
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o ano passado, quando a canzoada anticlerical andava a morder os calcanhares de Isabel Jonet, a minha querida e amada sogra participou na ação do Banco Alimentar em Coimbra. À porta do supermercado grã-fino da cidade, o Supercor, a minha querida e amada sogra deparou-se com várias personagens que recusaram participar na campanha. Empinaram o nariz, viraram a cara, recusaram receber o saco vazio e lançaram pérolas de enorme calibre progressista, “não faço caridade”, “a Jonet que vá passear”. Os professores doutores de esquerda são sempre uns amores, não é verdade? Ora, este tipo de reação, que se repetiu na campanha do fim de semana passado, revela como certa esquerda é incapaz de largar o ódio anticatólico. Estas alminhas precisam desse ódio para pensar, é através dele que veem o mundo, ficam cegos sem ele. Mais: a birra anticaridade revela que o esquerdismo indígena fica assustado perante uma sociedade civil que se organiza sozinha, sem a ajuda da mecânica burocrática e do decreto legislativo. Naquelas cabeças, apenas o ‘funcionário público’ pode fazer o bem; como não passam por quaisquer braços burocráticos do Estado, os sacos de arroz do Banco Alimentar são pestíferos; para ser uma cidadã exemplar, a minha sogra não devia dar arroz diretamente às pessoas, devia, isso sim, ir até uma repartição pública para que o arroz fosse devidamente benzido por um carimbo estatal. Sim, o arroz também pode ser de esquerda. O curioso é que as pessoas que recusam encher um saco para os pobres da sua rua são as mesmas pessoas que escrevem colunas ou posts inflamados sobre os pobres da Grécia, sobre os pobres do mundo, sobre um pobre abstrato, sobre a pobreza em teoria. Eis, portanto, o velho paradoxo dos revolucionários de cadeirão: amam a Humanidade enquanto odeiam os homens; legitimam o ódio que sentem por pessoas concretas através de palavras ou expressões grandiloquentes como solidariedade, fraternidade, combater a pobreza. E o desprezo pela caridade da minha sogra nasce precisamente aqui. Para quê fazer uma justiça local, concreta, centrada em pessoas reais, quando podemos vestir a pele de profetas da Justiça que há de vir? E, de facto, deve ser uma maçada ter de ajudar o sr. João ou a Dona Maria quando se tem a honra de representar o homem novo, a revolução, a esquerda, o combate ao capitalismo. Se tivessem coragem para conduzir este ódio até às últimas consequências, os revolucionários de cadeirão teriam de dar um passo em frente e fazer campanha contra o centro da caridade da Igreja, a rede das IPSS católicas, o verdadeiro Estado social do país. É esta rede que acolhe os membros mais frágeis da sociedade, os velhos e as crianças. São as IPSS que cuidam dos bebés portugueses enquanto os pais trabalham. Isto devia garantir uma respeitabilidade transversal a este conjunto de instituições, mas não garante. Dentro do esquema mental do ódio jacobino, as creches católicas fazem parte da ignóbil caridadezinha. As educadores de infância, tal como os sacos de arroz, precisam de um carimbo estatal, não é verdade? Sim, é verdade. E também é verdade que a minha sogra e demais beatério da pátria fazem parte de uma enorme conspiração católico-capitalista-neoliberal, que, bem vistas as coisas, tem a sede de comando algures em Santa Comba.
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O ex-presidente da Assembleia da República diz ser digno de repúdio que responsáveis estrangeiros critiquem o Tribunal Constitucional
João Bosco Mota Amaral
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Henrique Raposo
do e é mesmo digno de repúdio quando tal provém de responsáveis estrangeiros ou supranacionais. Com efeito é ao Governo que compete escolher entre as várias medidas possíveis e deve fazê-lo cumprindo a Constituição. Ao contrário do que alguns gostam de repetir, talvez para seu conforto, Portugal é um país independente e soberano, que no exercício da sua soberania aceita ou não aceita, ponderando os seus interesses, colaboração e obrigações relativamente a outras entidades da cena internacional. Cada vez é mais claro que o memorando de entendimento padece de um defeito de origem, que é o de exigir objetivos, em termos de consolidação das contas públicas, impossíveis de alcançar no prazo tão curto no mesmo previsto. A formação de uma maioria, no começo da XII legislatura, avalizada pelo Presidente da República, titular de um mandato cobrindo toda a duração da mesma, foi a oportunidade perdida para uma sensata renegociação. Só nos resta agora esperar, uma vez desaparecido o farol celta, que o previsível programa cautelar não tenha quaisquer semelhanças com um segundo resgate em versão suave, pior se ainda mais duro.
ILUSTRAÇÃO CRISTINA SAMPAIO
Daniel Oliveira
PRIMEIRO CADERNO
HENRIQUE RAPOSO ESCREVE EM www.expresso.pt DE 2ª A 6ª FEIRA