Novo comentario beacon 1 e 2 samuel kevin j mellish

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1 e 2 SAMUEL

K E V I N J. M E L L I S H

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ACADร MICO


COMENTÁRIO BÍBLICO

REACON 1 e 2 SAMUEL KEVIN J. MELLISH


GERENCIA EDITORIAL E DE PRODUÇÃO

Jefferson Magno Costa COORDENAÇÃO EDITORIAL

Michelle Candida Caetano COORDENAÇÃO DE COMUNICAÇÃO E DESIGN

Regina Coeli TRADUÇÃO

1 e 2 Samuel New Beacon Bible Commentary / Kevin Mellish / © 2012 Published by Beacon Hill Press of Kansas City, A division of Nazarene Publishing House. Kansas City, Missouri, 64109 USA. This edition published by arrangement with Nazarene Publishing House. Ali rights reserved. Copyright © 2015 por Editora Central Gospel. Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

Autor: MELLISH, Kevin J. Título em português: Novo Comentário Bíblico Beacon: 1 e 2 Samuel. Título original: 1 & 2 Samuel New Beacon Bible Commentary. Rio de Janeiro: 2015 352 páginas

Elias Santos Silva 1. Bíblia - Teologia I. Título II. REVISÃO

Renata Facchinetti Maria José Marinho Welton Torres CAPA E PROJETO GRÁFICO

Eduardo Souza DIAGRAMAÇÃO

Raquel Frazão

Nota do editor no Brasil: Com o objetivo de facilitar a compreensão do comentário original, em alguns casos, a Central Gospel fez traduções livres de termos e palavras em inglês que não encontram equivalência nas versões oficiais do texto bíblico traduzido para o Português. Ressalte-se, todavia, que foram preservadas a ideia e a estrutura textual idealizadas pelo autor.

IMPRESSÃO E ACABAMENTO

Rotaplan

1a edição: 0utubro/2015

Editora Central Gospel Ltda

Estrada do Guerenguê, 1851 - Taquara Cep: 22713-001 Rio de Janeiro - RJ TEL: (21)2187-7000 www.editoracentralgospel.com


EDITORES DO COMENTÁRIO Editores Gerais Alex Varughese Ph.D., Drcw University Professor de Literatura Bíblica Monte Vernon Nazarene University Mount Vernon, Ohio

George Lyons Ph.D., Emory University Professor do Novo Testamento Northwest Nazarene University Nampa, Idaho

Roger Hahn Ph.D., Duke University Reitor do Corpo Docente Professor do Novo Testamento Nazerene Theological Seminary Kansas City, Missouri

Editores secionais Joseph Coleson Ph.D., Brandels University Professor do Antigo Testamento Nazarene Theological Seminary Kansas City, Missouri Robert Branson Ph.D., Boston University Professor Emérito de Literatura Bíblica Olivet Nazarene University Bourbonnais, Illinois Alex Varughese Ph.D., Drew University Professor de Literatura Bíblica Mount Vernon Nazarene University Mount Vernon, Ohio

Jim Edlin Ph.D., Southern Baptist Theological Semi­ nary Professor de Literatura Bíblica e Línguas Coordenador do Departamento de Religião e Filosofia MidAmerica Nazarene University Olathe, Kansas Kent Brower Ph.D., The University of Manchester Vice-reitor Palestrante Sênior de Estudos Bíblicos Nazarene Theological College Manchester, Inglaterra George Lyons Ph.D., Emory University Professor do Novo Testamento Northwest Nazarene University Nampa, Idaho


SUMARIO

Prefácio dos editores gerais....................................................................................................11 Prefácio do autor.................... ............................................................................................13 Abreviações...........................................................................................................................15 Bibliografia........................................................................................................................... 21 INTRODUÇÃO................................................................................................................ 27 A. Disposição canônica............................................................................................... 27 B. História textual_________ *................................................................................. 28 C. História da composição......................................................................................... 29 1. Visão tradicional da autoria............................................................................... 29 2. Teorias modernas concernentes à autoria.......................................................... 30 3. A História Deuteronomista............................................................................... 33 4. Os livros de Samuel.......................... ................................................................ 36 a. A história de Samuel....................................................................................... 37 b. A narrativa da arca........................................................................................ 37 c. As tradições sobre Saul................................................................................... 37 d. A história da ascensão de Davi........................................................................39 e. A narrativa da sucessão................................................................................... 44 f. Os apêndices................................................ ..................................................45 D. Temas teológicos.................................................................................................... 45 1. Liderança............ .............................................................................................. 45 a. A monarquia.................................................................................................. 46 b. O fracasso da liderança de Saul....................................................................... 47 c. O sucesso da liderança davídica...................................................................... 47 d. A ascensão dos profetas..................................................................................48 2. A reversão da sorte............................................................................................ 49 3. A teologia da recompensa-punição................................................................... 49 COMENTÁRIO......... ......... ............................................................................................. 51 O LIVRO DE 1 SAMUEL..................................................................................................51 I. O período pré-monárquico em Israel: as narrativas sobre Samuel e a arca (1.1—7.17).....51 A.

O nascimento de Samuel (1.1 -28; 2.11).............................................................51


SUMÁRIO

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1. Prólogo (1.1-3).................................................................................................... 54 2. A família de Elcana em Siló (1.4-8)......................................................................56 3. O voto de Ana a Yahweh (1.9-11)....................................................................... 58 4. Eli e Ana no santuário (1.12-18)......................................................................... 59 5. Samuel é apresentado a Yahweh (1.19-28; 2.11).................................................61 B. O hino de gratidão de Ana (2.1-10)......................................................................65 C. Eli e seus filhos (2.12 -3.1a)............................................................ .................... 69 1. Os filhos de Eli em ação (2.12-26).................................................................... 70 2. A condenação da casa de Eli (2.27-36; 3.1a).................................................... 73 D. A teofania no sonho de Samuel (3.1b—4.1a)............................................ ......... 76 1. A situação religiosa em Siló (3.1b-3)............................................... — «.......... 77 2. A palavra de Yahweh a Samuel (3.4-9).............................................................78 3. A mensagem de Yahweh a Samuel (3.10-21; 4.1a)...... ........................ — 79 E. A captura da arca da aliança (4.1b—7.1).............................................. ............... 81 1. O cenário da captura da arca (4.1b-4).............................................. ................ 83 2. A captura da arca (4.5-11)............................................................... .................84 3. O relato da captura da arca (4.12-18)................................................................ 85 4. O relato do nascimento de uma criança (4.19-22)...............................................87 5. A arca é levada ao cativeiro pelos filisteus (5.1-12)..............................................87 6. Os filisteus preparam-se para transportar a arca (6.1-9)................................ ...89 7. A arca retorna a Bete-Semes (6.10—7.1)......... ................................................ 91 F. Samuel como juiz (7.2-17)................................................................................... 95 1. Samuel preside sobre o arrependimento de Israel (7.2-4).................................... 96 2. A assembleia de Mispá e a derrota dos filisteus (7.5-14)......................................97 3. Samuel como juiz (7.2-17)..................... ........................................................... 100 II. O surgimento da monarquia em Israel: Saul, o primeiro rei de Israel (8.1—15.35)....... 101 A. Israel pede um rei (8.1-22)..... ..............................................................................101 1. O cenário (8.1-3)........ .....—*........................................................................— ....103 2. A requisição de um rei (8.4-22).......................... .............................................. 103 B. Saul é escolhido como rei (9.1 —10.27).................................................................106 1. A introdução de Saul (9.1-2)............................................................................. 107 2. Saul é escolhido e ungido (9.3—10.16)............................................................108 3. O povo escolhe Saul (10.17-27)..................... .— ............................................112 C. Saul derrota os amonitas (11.1-15)....................... .............................. ...............115 1. Saul contra os amonitas (11.1-13)..................................................................... 115 2. A renovação do reinado em Gilgal (11.14-15)..................................................117 D. O discurso de despedida de Samuel (12.1-25)....... ...............................................118 1. As palavras de abertura de Samuel (12.1-5)....................................................... 118 2. Samuel dirige-se ao povo (12.6-25)...................................................... .............119 E. Os erros e a queda de Saul (13.1—15.35).............................................................121 1.A introdução de Saul (13.1).............................................................................. 122

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SUMÁRIO

2. Saul ataca os filisteus (13.2-7a)............................................................................123 3. Saul faz um sacrifício inadequado (13.7b-15a)................................................... 124 4. A batalha de Saul contra os filisteus continua (13.15b-23)................................. 126 5. Jônatas e os filisteus (14.1-23a)...........................................................................127 6. O voto imprudente de Saul (l4.23b-46)............................................................ 130 7. Diversos relatos sobre as batalhas e a família de Saul (14.47-52)........................ 133 8. Uma ordem divina (15.1-3)................................................................................ 134 9. A batalha contra Amaleque (15.4-9).................................................................. 135 10. Samuel confronta Saul (15.10-35)....................................................................136 III. A ascensão de Davi ao reinado (1 Samuel 16.1—2 Samuel 8.18)..............................141 A. A unção de Davi e sua presença no palácio de Saul (16.1-23)................................. 141 1. Samuel é instruído a ungir Davi (16.1-5)............................................................ 142 2. Davi é ungido (16.6-13)..................................................................................... 143 3. Davi é introduzido à corte de Saul (16.14-23).................................................... 145 B. Davi e Golias (17.1-58)...........................................................................................147 1. A introdução de Golias (17.1-11).......................................................................148 2. Davi e o rebanho (17.12-30)...............................................................................149 3. Davi e Saul (17.31-40)...... ................................................................................. 150 4. A batalha contra Golias (17.41-54).................................................................... 151 5. Saul encontra-se com Davi pela segunda vez (17.55-58).....................................153 C. A família de Davi e a família de Saul (18.1—20.42)............................................... 154 1. Davi, favorável a Jônatas e a Saul (18.1-9)...........................................................156 2. Saul tenta matar Davi (18.10-16)........................................................................158 3. Davi e Mical (18.17-29)......................................................................................160 4. Declaração de encerramento (18.30)...................................................................161 5. Jônatas intercede por Davi (19.1-7).................................................................... 161 6. Mical livra Davi das mãos de Saul (19.8-17).......................................................162 7. Davi foge para Ramá (19.18-24)........................................................................ 164 8. Jônatas e Davi novamente (20.1-42)................................................................... 165 D. Davi foge de Saul (21.1—23.29).............................................................................169 1. Davi escapa para Nobe (21.1 -9).......................................................................... 171 2. Davi foge para Gate (21.10-15).......................................................................... 173 3. Davi em Adulão (22.1-5).................................................................................... 174 4. Saul e os sacerdotes de Nobe (22.6-23)...............................................................176 5. Davi salva Queila (23.1-14)................................................................................ 178 6. Davi encontra Saul no deserto (23.15-29).......................................................... 180 E. Davi se encontra com Saul no deserto (24.1—26.25)............................................. 183 1. Davi em En-Gedi (24.1-22)................................................................................ 184 2. Davi e Nabal (25.1-44)....................................................................................... 187 3. Davi poupa a vida de Saul novamente (26.1-25).................................................192 F. Davi entre os filisteus (27.1—30.31)....................................................................... 195 1. Davi e Aquis (27.1-12)........................................................................................ 197 2. Saul consulta uma feiticeira (28.1-25).................................................................198

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SUMÁRIO

NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

3. Os filisteus rejeitam Davi (29.1-11)...................................................................202 4. Davi se vinga da destruição de Ziclague (30.1-31).............................................204 G. A morte do rei Saul e de Jônatas (31.1-13)............................................................210 O LIVRO DE 2 SAMUEL................................................................................................. 217 H. O segundo relato da morte de Saul e o lamento de Davi sobre a morte de Saul e Jônatas (2 Samuel 1.1-27).......................................................................................... 217 1. Um amalequita anuncia a morte de Saul (1.1-16)............................................. 218 2. A canção de lamento de Davi (1.17-27).............................................................221 I. Davi como governante de Judá (2.1—4.12)...........................................................224 1. Davi ungido rei de Judá (2.1-7)..........................................................................224 2. Is-Bosete estabelecido como rei de Israel (2.8-11).............................................227 3. A batalha de Gibeom (2.12-32).........................................................................228 4. Davi em Hebrom (3.1-5)................................................................................... 230 5. Abner deserta para Davi (3.6-39)...................................................................... 231 6. A morte de Is-Bosete (4.1-12)........................................................................... 235 J. Davi se torna rei sobre Israel (5.1-25)...................................................................... 239 1. As tribos israelitas fazem Davi rei (5.1-5)..........................................................239 2. Davi captura Jerusalém (5.6-16)........................................................................ 241 3. Davi e os filisteus (5.17-25)................................................................................244 K. Davi e a arca do concerto (6.1 -23).........................................................................248 L. Deus faz uma aliança com Davi (7.1-29)............................................................... 256 1. O oráculo de Natãpara Davi (7.1-17)............................................................... 257 2. A oração de Davi (7.18-29)................................................................................260 M. As guerras e a administração de Davi (8.1-8)....................................................... 262 1. Relatório das guerras de Davi (8.1-14).............................................................. 263 2. A administração de Davi (8.15-18)....................................................................265 IV. A sucessão do trono de Davi (9.1—20.26).............................................................. 269 A. O tratamento de Davi com a casa de Saul (9.1-13)................................................269 B. Davi e Hanum (10.1-19)........................................................................................273 C. Davi e Bate-Seba (11.1 — 12.31)............................................................................ 277 1. O adultério e o assassinato cometidos por Davi (11.1-13).................................278 2. Davi manda matar Urias (11.14-27)..................................................................282 3. Natã confronta Davi (12.1-15a)........................................................................284 4. A morte de um filho e o nascimento de outro (12.15b-25)..............................286 5. A guerra contra Amom (12.26-31)....................................................................288 D. O estupro de Tamar e o assassinato de Amnom (13.1—14.33).............................291 1. A cena de abertura (13.1-5)...............................................................................292 2. Amnom estupra Tamar (13.6-22)..................................................................... 293 3. A vingança de Absalão (13.23-39).................................................................... 296 4. Absalão retorna a Jerusalém (14.1-24).............................................................. 298

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SUMÁRIO

5. Davi perdoa Absalão (14.25-33)........................................................................ 299 E. A fuga de Davi de Jerusalém e o seu retorno (15.1—19.43)...................................302 1. Absalão usurpa o trono (15.1-37)............ .........................................................302 2. Os adversários de Davi (16.1-23)...................................................................... 306 3. O conselho de Husai (17.1-29)..........................................................................309 4. A morte de Absalão (18.1-33)........................................................................... 312 5. Davi retorna para Jerusalém (19.1 -43).............................................................. 316 F. A revolta de Seba (20.1-26).................................................................................... 323 V. Apêndices (21.1 - 24.25).......................................................................................... 329 1. Davi e os gibeonitas (21.1-14)............................................................................333 2. Os homens de Davi (21.15-22)..........................................................................336 3. O hino de ação de graças de Davi (22.1-51)...................................................... 337 4. As últimas palavras de Davi (23.1-7)................................................................. 339 5. Os valentes de Davi (23.8-39)............................................................................340 6. O censo de Davi, a praga, e o lagar (24.1-25).....................................................342

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PREFÁCIO DOS EDITORES GERAIS O propósito do Novo Comentário Bíblico Beacon é tornar disponível a pasto­ res e alunos um comentário bíblico do século 21 que reflita a melhor cultura da tradição teológica wesleyana. O projeto deste comentário visa tornar essa cultura acessível a um público mais amplo, a fim de auxiliá-lo na compreensão e na pro­ clamação das Escrituras como Palavra de Deus. Os escritores dos volumes desta série, além de serem eruditos na tradição teológica wesleyana e especialistas em suas áreas de atuação, têm também um in­ teresse especial nos livros designados a eles. A tarefa é comunicar claramente o consenso crítico e o amplo alcance de outras vozes confiáveis que já comentaram sobre as Escrituras. Embora a cultura e a contribuição eruditas para a compreen­ são das Escrituras sejam as principais preocupações desta série, esta não tem como objetivo ser um diálogo acadêmico entre a comunidade erudita. Os comentaris­ tas desta série, constantemente, visam demonstrar em seu trabalho a significância da Bíblia como o Livro da Igreja e, também, a relevância e a aplicação contempo­ rânea da mensagem bíblica. O objetivo geral deste projeto é tomar disponível à Igreja e ao seu serviço os fratos do trabalho dos eruditos que são comprometidos com a fé cristã. A Nova Versão Internacional (NVI) é a versão de referência da Bíblia usada nesta série; entretanto, o foco do estudo exegético e os comentários são o texto bíblico em sua linguagem original. Quando o comentário usa a NVI, ele é im­ presso em negrito. O texto impresso em negrito e itálico é a tradução do autor. Os comentaristas também se referem a outras traduções em que o texto possa ser difícil ou ambíguo. A estrutura e a organização dos comentários nesta série procuram facilitar o estudo do texto bíblico de uma forma sistemática e metodológica. O estudo de cada livro bíblico começa com uma Introdução, que fornece uma visão panorâ­ mica de autoria, data, proveniência, público-alvo, ocasião, propósito, questões sociológicas e culturais, história textual, características literárias, questões herme­ nêuticas e temas teológicos necessários para entender-se o livro. Essa seção tam­ bém inclui um breve esboço do livro e uma lista de obras gerais e comentários padrões. A seção de comentários para cada üvro bíblico segue o esboço do livro apresentado na introdução. Em alguns volumes, os leitores encontrarão súmu­ las seccionais de grandes porções da Bíblia, com comentários gerais sobre sua


PREFÁCIO DOS EDITORES GERAIS

NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

estrutura literária global e outras características literárias. Uma característica consistente do comentário é o estudo de parágrafo por parágrafo dos textos bíblicos. Essa seção possui três partes: Por trds do texto, No texto e A partir do texto. O objetivo da seção Por trás do texto é fornecer ao leitor todas as informa­ ções relevantes necessárias para a compreensão do texto. Isso inclui situações his­ tóricas específicas refletidas no texto, no contexto literário do texto, nas questões sociológicas e culturais e nas características literárias do texto. No texto explora o que o texto diz, seguindo sua estrutura, versículo por ver­ sículo. Essa seção inclui uma discussão dos detalhes gramaticais, dos estudos de palavras e da ligação do texto com livros/passagens bíblicas ou outras partes do livro em estudo (o relacionamento canônico). Além disso, fornece transliterações de palavras-chaves em hebraico e grego e seus significados literais. O objetivo aqui é explicar o que o autor queria dizer e/ou o que o público-alvo teria entendido como o significado do texto. Essa é a seção mais ampla do comentário. A seção A partir do texto examina o texto em relação às seguintes áreas: significância teológica, intertextualidade, história da interpretação, uso das citações do Antigo Testamento no Novo Testamento, interpretação na história, na atuali­ zação e em aplicações posteriores da Igreja. O comentário fornece anotações complementares sobre tópicos de interes­ se que são importantes, mas não necessariamente fazem parte da explanação do texto bíblico. Esses tópicos são itens informativos e podem conter questões histó­ ricas, literárias, culturais e teológicas que sejam relevantes ao texto bíblico. Oca­ sionalmente, discussões mais detalhadas de tópicos especiais são incluídas como digressões. Oferecemos esta série com nossa esperança e oração, a fim de que os leitores a tenham como um recurso valioso para a compreensão da Palavra de Deus e como uma ferramenta indispensável para um engajamento crucial com os textos bíblicos. Roger Hahn, Editor-geral da Iniciativa Centenária Alex Varughese, Editor-geral (Antigo Testamento) George Lyons, Editor-geral (Novo Testamento)

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PREFÁCIO DO AUTOR Escrever um comentário é um tremendo empreendimento que não pode­ ria ser realizado sem a ajuda e o suporte de muitas pessoas maravilhosas. Em primeiro lugar, eu gostaria de agradecer ao meu amigo e colega, Dr. Robert Branson, por ter me convidado a participar do projeto do comentário e por ser o editor da minha seção. Ao Bob, que leu cuidadosa e incansavelmente vários rascunhos do comentário e ofereceu sugestões úteis e produtivas ao longo da jornada. O estilo paciente e atencioso de Bob fez com que fosse um prazer trabalhar com ele. Também devo minha gratidão ao Dr. Alex Varughese e às pessoas incríveis da editora Nazarene Publishing House. Eles concederam-me graciosamente uma extensão da redação quando a enfermidade e a morte de meu pai torna­ ram difícil trabalhar no comentário. Sempre serei grato a eles pela consideração e pela compreensão que tiveram comigo e com minha família quando passa­ mos por aquele momento difícil. Gostaria de agradecer também ao meu reitor na Olivet Nazarene University, Dr. Carl Leth, por ter ajustado meu horário de lecionar a fim de que eu pudesse ter um tempo extra para pesquisar e redigir. A disposição do Dr. Leth em oferecer uma carga de pesquisa provou ser inestimável, e eu sempre serei grato a ele pelo apoio pessoal e administrativo que me estendeu ao longo da caminhada. Eu gostaria de estimar meus alunos que participaram tanto da minha classe de História Deuteronomista como do curso de exegese hebraica de 1 Samuel. O entusiasmo deles para aprenderem o texto, suas cuidadosas obser­ vações da gramática e da sintaxe de 1 Samuel, e as interessantes conversações que eles provocaram sobre os livros de Samuel, em geral, têm sido renovadoras e inspiradoras. Eu aprendi muito com eles. Muitos dos comentários e dos dis­ cernimentos deles encontraram o caminho deste comentário. Finalmente, gostaria de agradecer à minha esposa, Jeanine, por sua paciên­ cia e compreensão enquanto trabalhei neste processo de redação. Houve mui­ tas ocasiões em que fiquei trabalhando até tarde, que fui ao escritório nos fins de semana ou trouxe o trabalho para casa comigo. Com tudo isso, ela nunca re­ clamou. Gostaria de prestar reconhecimento também aos meus filhos: Dakota, Delaney e Lacie, que tiveram de “compartilhar” o pai com minhas pesquisas e com minha redação. Agora que acabou, estou ansioso para dedicar minha completa atenção a eles novamente.


ABREVIAÇÕES Com algumas exceções, essas abreviações seguem as do The SBL Handbook o f Style [Manual de estilo SBL] (Alexander, 1999). a.C. A.E.C AT ca. cap. cf. d.C. E.C. esp. etc. ex.

vs.

antes de Cristo antes da Era Comum Antigo Testamento circa capítulo(s) compare depois de Cristo Era Comum especialmente et cetera, e o restante exempli gratia, por exemplo e os seguintes História Deuteronomista historiadores deuteronomistas id est, isto é literalmente Septuaginta manuscrito manuscritos nota notas Novo Testamento sine loco (sem lugar, sem editora, sub verbo, implícito e os seguintes Texto Massorético versículo(s) versus

Versões bíblicas GNT JPS KJV NASB

Good News Translation Jewish Publication Society King James Version New American Standard Bible

ff. H.D. h.d. i.e. lit. LX X MS MSS n. nn. NT s.l. s.v. ss. TM V.


NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

ABREVIAÇÕES

NIV NRSV RSV TM YLT NVI ARC ARA N T LH

New International Version New Revised Standard Version Revised Standard Version The Message Youngs Literal Translation Nova Versão Internacional Almeida Revista e Corrigida Almeida Revista e Atualizada Nova Tradução Linguagem de Hoje

Por trás do texto:

Informações históricas ou literárias preliminares que os leitores medianos podem não inferir apenas pela leitura do texto bíblico. Comentários sobre o texto bíblico, palavras, gramática, e assim por diante. O uso do texto por intérpretes posteriores, relevância contemporânea, implicações teológicas e éticas do texto, com ênfase especial nas questões wesleyanas.

No texto: A partir do texto:

Apócrifos 2 Mac.

2 Macabeus

Antigo Testamento Gênesis Êxodo Levítico Números Deuteronômio Josué Juizes Rute 1 Samuel 2 Samuel 1 Reis 2 Reis 1 Crônicas 2 Crônicas Esdras Neemias Ester

Jó Salmos Provérbios Eclesiastes Cantares Isaías Jeremias

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Gn Êx Lv Nm Dt

Js Jz Rt 1 Sm 2 Sm 1 Rs 2 Rs 1 Cr 2 Cr Ed Ne Et

Jó SI Pv Ec Ct Is

Jr


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Lamentações Ezequiel Daniel Oseias Joel Amós Obadias Jonas Miqueias Naum Habacuque Sofonias Ageu Zacarias Malaquias

ABREVIAÇÕES

Lm Ez Dn Os Jl Am Ob Jn Mq Na Hc Sf Ag Zc Ml

(Nota: A numeração de capítulo e versículo no TM e na L X X g paraçao com as Bíblias em inglês/português. Para evitar confusí blicas seguem a numeração de capítulo e versículo das traduções quando o texto TM e L X X está em discussão). Novo Testamento Mateus Marcos Lucas João Atos dos Apóstolos Romanos 1 Coríntios 2 Coríntios Gálatas Efésios Filipenses Colossenses 1 Tessalonicenses 2 Tessalonicenses 1 Timóteo 2 Timóteo Tito Filemom Hebreus Tiago 1 Pedro 2 Pedro 1 João 2 João

Mt Mc Lc Jo At Rm 1 Co 2 Co G1 Ef FP Cl lT s 2 Ts 1 Tm 2 Tm Tt Fm Hb Tg 1 Pe 2 Pe ljo 2Jo

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ABREVIAÇÕES

3 João Judas Apocalipse

NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO 1

3Jo Jd Ap

Pergaminhos do mar Morto 4QSama Samuel* 4QSamb Samuelb 4QSamc Samuelc Josefo Ant. Pais da Igreja Hist. Ecl. Literatura rabínica B. Bat. Transliteração do grego Grego a

Antiguidades Judaicas Eusébio, História Eclesiástica Baba Batra

0

Letra alfa beta gama gam a nasal delta epsílon zeta eta teta iota capa lambda mu/mi nu/ni csi omícron

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ABREVIAÇÕES

NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

Transliteração do hebraico Hebraico/Aramaico Letra N á lef 3 bêt y guímel 1 dálet n he 1 vav T zain n hêt ü tét ■* iode 3 caf b lâmed D mem 3 nun D sâmeq y áin 5 pê X tsade P cof n rêsh tP sin shin n tau

Transliteração ’ b; v (fricativa) g d h v ou w z h t y k l m n s ‘ p ; f (fricativa) s q r s s t

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INTRODUÇÃO

A. Disposição canônica Na Bíblia hebraica ou judaica, os livros de 1 e 2 Samuel pertencem à seção conhecida como Profetas antigos, e, no Antigo Testamento cristão, eles fazem parte da coleção conhecida como Livros Históricos. Os livros de Samuel também constituem parte importante de uma obra literária mais ampla que se estende de Josué a Reis, à qual os eruditos modernos referem-se como a História Deuteronomista (H.D). Baseado no relacionamento deles com os outros livros localizados no cânone do Antigo Testamento e do hebraico, os livros de Samuel fornecem uma vital ligação literária e histórica na apresentação geral do passado de Israel na bíblia. Por um lado, os eventos são preditos sobre o êxodo de Israel do Egito e sobre o estabelecimento do pacto mosaico no monte Sinai (Êxodo e Deuteronômio), a conquista e o estabelecimento na terra de Canaã/Palestina (Josué), e a era dos juizes (Juizes). Por outro lado, os livros de Samuel representam um final formal ou uma quebra com a era dos juizes (1 Samuel), e eles relatam o surgimento do profeta/sacerdote Samuel como o início da monarquia israelita sob o reinado de Saul. Além do mais, os livros de Samuel avistam além da monarquia de Saul para o estabelecimento do trono de Davi e de sua dinastia (1 Sm 16—2 Sm 7), a expansão do reino de Israel sob a liderança de Davi (2 Sm 8), e, finalmente, antecipa a luta entre os


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filhos de Davi pelo trono após a morte do rei (1 Rs 1—2). Assim, se for levado em consideração a estrutura canônica mais ampla da bíblia hebraica/Antigo Testamento, os livros de Samuel estão intimamente conectados com a história primitiva do povo de Israel e com a formação do reino israelita. Eles ainda servem como um prefácio apropriado para o relato sobre o reino de Salomão (1 Rs 1—11), sobre a história do reino dividido após sua morte (1 Rs 12—2 Rs 16), e sobre a destruição e o exílio dos reinos de Israel, em 721 a.C., e de Judá, em 586 a.C. (2 Rs 17—25).

B. História textual Nos tempos antigos, os livros de Samuel eram originalmente um só livro. Os primeiros manuscritos hebraicos indicam que 1 e 2 Samuel não eram di­ vididos em partes separadas. O pergaminho de Samuel do Qumrã (4QSama), por exemplo, inclui ambos os livros sob o título de Samuel. O Talmude regu­ larmente faz referência ao “Livro de Samuel”, e as notas massoréticas, no final de 2 Samuel, relatam que Samuel contém um total de 1506 versículos; 1 Sa­ muel 28.24 marca o versículo central do livro todo. Os pais da Igreja primitiva, como Jerônimo, e o historiador da igreja, Josefo, também estavam cientes do Livro de Samuel em sua forma original (Hist. Ecl. 7.25.2). A decisão de dividir o Livro de Samuel em duas seções estende-se à anti­ guidade clássica, quando os livros eram escritos em pergaminhos de um com­ primento fixo. O Livro de Samuel, que é levemente mais longo do que Reis e Crônicas, tornou-se muito desajeitado para ser manuseado em um só perga­ minho, então foi dividido (juntamente com Reis e Crônicas) em duas partes principais nos primeiros manuscritos da Septuaginta (LXX) ou da Bíblia gre­ ga. Os tradutores da Septuaginta intitularam os livros de Samuel de Basileion A e B (1 e 2 Reinos ou 1 e 2 Reinados). Esses tradutores subsequentemente agruparam os livros de Samuel baseados em temas e interesses comuns com os dois livros de Reis (Basileion C e D) e referiam-se a eles como Bibloi Basileion (Livros dos Reinos). Mais tarde, Jerônimo, um dos pais da igreja, modificou levemente esse título paraLibri Regum (Livros dos Reis). Assim, Samuel e Reis tornaram-se conhecidos como 1,2,3, e 4 Reis, respectivamente. Hoje, os erudi­ tos e os comentaristas católicos ainda se referem aos livros de Samuel segundo os títulos gregos dos mesmos (l e 2 Reis), mas as comunidades judaicas e as protestantes referem-se aos livros por seus antigos nomes hebraicos. De acordo com os eruditos bíblicos modernos, a razão para a divisão dos livros de Samuel em sua presente conjuntura conformava-se ao antigo costume

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de concluir um livro bíblico com a morte de uma figura importante (i.e., Jacó e José no final de Gênesis; Moisés na cena de encerramento de Deuteronômio; Josué na conclusão de seu discurso de despedida; e Saul no final de 1 Samuel) (McCarter, 1980b, p. 3). Outras traduções autoritativas como a Vulgata, a anti­ ga tradução latina do texto hebraico, continuou a tradição dos tradutores gregos, incluindo ambos os livros de Samuel em seu cânone e a prática de fazer referên­ cias aos dois livros de Samuel, algo que foi levado adiante até os tempos moder­ nos. A primeira referência aos livros de 1 e 2 Samuel no próprio texto hebraico está comprovada em um manuscrito de 1448, e a prática de listar os livros de Samuel independentemente se tornou mais oficial na Bíblia rabínica de 1516­ 1517 editada por Felix Pratensis (Klein, 1979, p. 313; Szikszai, 1962, p. 203). A divisão entre 1 e 2 Samuel recebeu uma sanção formal na comunidade judaica, isso fica adicionalmente evidenciado pelo fato de que a segunda Bíblia rabínica de 1524-1525 listava-os separadamente também (Flanagan, 1992, p. 957).

C. História da com posição

1. Visão tradicional da autoria Os livros de Samuel levam o nome do grande profeta que serve como a figura principal na seção inicial de 1 Samuel (cap. 3—8, 12, 15—16). Em relação ao título, os antigos comentaristas judeus afirmavam inicialmente que o próprio Samuel havia escrito Juizes e uma grande parte de Samuel. O Talmude babilônico afirma especificamente que “Samuel escreveu o livro que leva o seu nome” (B. Bat. 14b). Entretanto, o mesmo Talmude faz a explícita restrição de que Samuel fora responsável apenas pelos primeiros 24 capítulos (já que 1 Samuel 25.1 relata a sua morte) e o resto do corpus de Samuel foi atribuído aos profetas Natã e Gade (B. Bat. 15a). Os escritores do Talmude mantiveram essa posição porque grande parte de 1 e 2 Samuel é narrada de um ponto de vista decididamente profético. Além do mais, os escribas judeus levaram a sério a referência de 1 Crônicas 29.29, que afirma: “Os feitos do rei Davi, desde o início até o fim do seu reinado, estão escritos nos registros históricos do vidente Samuel, do profeta Natã e do vidente Gade”. No decorrer da história, outros candidatos à autoria foram apresentados, tais como os sacerdotes Aimaás (2 Sm 15.27,36; 17.17,20; 18.19,22,23,27-29) e Zabude (1 Rs 4.5). Apesar desses esforços para tentar comprovar a autoria de Samuel ao longo das linhas tradicionais, a falta de uma evidência firme para apoiar essas alegações falhou em convencer os eruditos modernos.

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2. Teorias modernas concernentes à autoria Os atuais eruditos do Antigo Testamento não aderem à visão tradicional de que os livros de Samuel foram compostos por profetas como Samuel, Gade e Natã, tampouco estão convencidos de que os sacerdotes Aimaás e Zabude tenham colocado a mão na redação dos mesmos. Ao contrário, os exegetas modernos postulam que a composição final dos livros de Samuel deve ser atribuída a autores anônimos ou a editores que compilaram uma série de tradições independentes (transmitidas de forma oral inicialmente, e de forma escrita posteriormente) sobre Samuel, a arca, Saul e Davi, por exemplo, em um texto holístico (Amold, 2005, p. 870). Baseado em méritos da erudição contemporânea e em questões críticas que a mesma tem levantado sobre o texto, os estudiosos modernos postulam que os livros de Samuel são melhores vistos como subprodutos de uma longa história de atividade editorial ou redacional. Por meio do emprego de diversas disciplinas críticas (como a análise literária, as investigações histórica e arqueológica, e o criticismo textual, < formal, redacional etc.), os eruditos descobriram evidências que emprestariam 1 um grande apoio a esta noção. Primeiro, uma observação crítica ou uma avaliação do texto de Samuel mostra claramente que esses livros “não estão entre os que foram nomeados mais adequadamente no Antigo Testamento” (Gordon, 1986, p. 19). Embora Samuel tenha precedência como a principal figura religiosa e política em diversos dos capítulos de abertura de 1 Samuel (1—3, 7—12, 13, 15—16), o seu aparecimento é extremamente limitado aos contextos narrativos que seguem a tradição concernente à unção de Davi (16.6-16). Uma breve referência a Samuel aparece em uma nota acerca de sua morte em 25.1, e ele também fala rapidamente acerca de uma falsa aparição póstuma ao rei Saul no final de 1 Samuel (28.12-19). Tomado como um todo, então, o número total de seções narrativas que cobrem a figura de Samuel é relativamente pequeno quando comparado com a quantidade de material dedicado às tradições da arca (cap. 4—6) e da monarquia de Saul (cap. 9—31), por exemplo. Além do mais, Samuel é completamente apagado pela figura de Davi, que recebe cerca de 40 capítulos de cobertura literária em ambos os livros (1 Sm 16—2 Sm 24). O fato de que esses dois livros tenham recebido o nome de Samuel, embora ele não seja o personagem dominante nos mesmos, simplesmente confirma o costume antigo dos intérpretes judeus que nomeavam os livros bíblicos segundo as figuras proeminentes da história de Israel.

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Segundo, relatos visivelmente paralelos, incongruências, e tensões dentro do texto fornecem uma sólida evidência de que os livros de Samuel sejam o resultado da compilação de tradições independentes ao longo de um extenso período de tempo (Harrison, 1969, p. 696). O erudito inglês R. H. PfeifFer, por exemplo, enumerou vários exemplos de discrepâncias textuais em seu texto introdutório (1941, p. 340): o anúncio concernente ao fim de Eli e de sua casa em duas ocasiões (1 Sm 2.13 ss.; 3.11 ss.); a unção sigilosa de Saul (9.26— 10.1), seguida de duas cerimônias públicas nas quais Saul é escolhido (10.21; 11.15); duas ocasiões nas quais Samuel rejeita Saul como rei (13.14; 15.23); duas apresentações de Davi a Saul (16.21; 17.58); duas fugas nas quais Davi escapou da corte de Saul (19.12; 20.42); duas ocasiões em que Davi poupou a vida de Saul (24.3; 26.5); três alianças diferentes entre Davi e Jônatas (18.3; 20.16,42; 23.18); duas fugas nas quais Davi foi para Gate (21.10; 27.1), e a perplexa tradição relativa à morte de Golias por Davi e posteriormente por um guerreiro chamado Elanã (1 Sm 17.51; 2 Sm 21.19). Além dos exemplos mencionados acima, marcantes diferenças na perspectiva religiosa podem ser detectadas em diversas partes de Samuel (Szikszai, 1962,204). Dentro de 1 Samuel 7—12, por exemplo, existem visões conflitantes ou inconstantes relacionadas ao desenvolvimento da monarquia na sociedade israelita. Por um lado, existem partes no texto em que a monarquia é condenada por Deus como uma apostasia (8.17,18), mas há outras ocasiões em que a monarquia é aceitável (12.13,14) e até recomendável (9.16,17). As mesmas afirmações podem ser feitas em relação às tradições de Saul e Davi. Há casos em que Saul é retratado sob lima visão positiva e Deus lhe é favorável (9.1 — 10.16; 11.1-13; 14.47,48), mas há outras vezes em que ele é apresentado como um fracasso sem fim, de quem Deus arrependeu-se ter feito rei (15.11). Davi, da mesma forma, é apresentado como a escolha de Deus para ser rei (16.6-13), uma pessoa de grande fé (cap. 17) e misericordiosa (cap. 24; 26), o que contrasta marcantemente com os textos que o revelam como um assassino brutal e calculista que Deus tem de castigar (2 Sm 11 —12), ou como um pai fraco e um comandante pouco sólido (cap. 14— 19). Terceiro, a análise textual tem convincentemente demonstrado que o Texto Massorético de Samuel, no qual as traduções inglesas modernas são baseadas, está praticamente em um “reparo precário” e tem sofrido mais na transmissão dos escribas do que qualquer outro livro do AT (McCarter, 1980b, p. 5). O TM de 1 e 2 Samuel está extensivamente assolado pela haplografia, isto é, pela omissão de palavras ou frases provocada por seqüências repetidas

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de letras (mais frequentemente no final das palavras) e assolado também por vários outros erros de cópia cometidos pelos escribas. Além disso, o texto hebraico desses livros é menor do que a tradução grega da Bíblia hebraica e de outras versões antigas como a Vulgata Latina, os Targuns Aramaicos, e a Peshitta (Birch, 1998, p. 950). Até recentemente, os eruditos acreditavam que os tradutores gregos tivessem simplesmente acrescentado tradições aos seus manuscritos e expandido o texto em geral assim. Essa é uma visão que tem sido modificada baseada na cuidadosa análise textual. A fim de dar um sentido às corrupções e aos defeitos do texto hebraico e no esforço de reconstruir uma edição mais confiável do texto hebraico, os eruditos foram forçados a comparar e contrastar sistematicamente o texto hebraico de Samuel com o material da fonte de Crônicas e de outras traduções antigas como a Septuaginta (LXX). Leituras atenciosas e avaliações cuidadosas de diversas testemunhas textuais antigas dos livros de Samuel feitas por críticos textuais como Thenius, Wellhausen e Driver, do século 19, revelaram que as diferenças entre o texto grego de Samuel e o texto hebraico estão relacionadas a mais do que simples tradições editoriais e pequenas interpolações. Os críticos textuais explicaram que os escritos gregos e hebraicos de Samuel divergem-se tanto porque os tradutores da Septuaginta basearam seu trabalho em um texto hebraico (um protótipo) que precedia o Texto Massorético, e não está mais disponível para nós. A pesquisa do texto hebraico de Samuel também tem se aperfeiçoado grandemente nos últimos 60 anos devido à descoberta dos Pergaminhos do Mar Morto. Na antiga biblioteca da seita Qumrã, três manuscritos foram descobertos (Ulrich, 1999). O mais importante deles, 4QSama, data de 50 a.C.—25 a.C. e contém grande parte de 1 e 2 Samuel em condições bem preservadas. O segundo, 4QSamb, que data de meados do terceiro século a.C., contém uma parte muito mal preservada de 1 Samuel. O terceiro, 4QSamc, é do início do primeiro século a.C. e contém fragmentos de 1 Sm 25 e 2 Sm 14— 15. Comparações do texto hebraico com a literatura Qumrã parecem confirmar a proximidade de uma primeira tradição hebraica com o protótipo da LXX. Os críticos textuais determinaram especificamente que os textos do Qumrã estão mais próximos dos manuscritos Luciânicos (LX X L) do que do Codex Vaticanus (LXXB) (Klein, 1979, p. 314). Isso sugere que a tradição Luciânica representa um deslocamento em direção à tradição do texto hebraico-palestino que é representado pela literatura Qumrã (Flanagan, 1992, p. 958).

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3. A História Deuteronomista Além do trabalho dos críticos textuais, o conhecimento sobre o desenvolvimento dos livros de Samuel foi grandemente aprimorado pela publicação da monografia de Martin Noth sobre a História Deuteronomista (Noth, 1991). Antes da publicação de Noth, os eruditos do final do século 19 e do início do século 20 tentavam explicar a composição dos livros que se estendem de Josué a Reis à luz da fonte do criticismo pentatêutico. Esse método de investigação provou ser malsucedido, já que eruditos críticos das origens não puderam concordar que fontes pentatêuticas realmente continuaram nos livros históricos, tampouco conseguiram concordar sobre o limite onde as fontes paravam e o material ou arquivo histórico começavam. A obra de Noth discutia essa questão, argumentando que os livros desde Josué até Reis não eram um produto das fontes que compunham o Pentateuco, mas surgiram de um processo de transmissão diferente (para um sumário, veja também Branson, 2009, p. 26-30). Noth afirmava basicamente que os livros de Josué a Reis eram um produto de um único autor/redator a quem ele rotulou de “Dtr”. Noth argumentava que esse autor/editor era um compilador/arranjador da antiga fonte de materiais e um autor criativo. Noth alegava que o Dtr havia composto discursos importan­ tes em conjunturas críticas da história de Israel (Js 1,23; 1 Sm 12; 1 Rs 8.14 ss.) e fornecia reflexões resumidoras (Js 12; Jz 2.11 ss.; 2 Rs 17.7 ss.) que ajudavam a trazer um senso de coesão aos discrepantes materiais de origem. Dessa forma, segundo Noth, a agenda teológica/ideológica do Dtr poderia ser averiguada não somente na maneira como ele organizou os documentos que tinha à sua disposição, mas também nos discursos e nas declarações sucintas que ele com­ pôs. Noth ainda postulou que o Dtr fornecia uma avaliação teológica e ideológica do passado de Israel. O Dtr recontava a história dessa nação e avaliava o povo israelita e seus líderes à luz das leis promulgadas em Deuteronômio. Assim, o termo História ‘‘Deuteronomista’’ foi cunhado. Noth sustentava que a H.D. explicava primariamente o porquê de os exílios de 721 a.C. e 586 a.C terem acontecido. De acordo com o Dtr, o povo de Israel foi para o exílio porque consistente e repetidamente desobedeceu à instrução de Deus que foi estabelecida nas leis de Deuteronômio. Dessa forma, a H.D. demonstrou que o exílio era apenas uma punição executada por Deus em razão dos pecados de Israel. Noth também afirmava que, porque as leis de Deuteronômio forneciam as lentes teológicas pelas quais o Dtr julgava o passado de Israel, as mesmas

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funcionaram como o prefácio de Josué a Reis e não deveriam ser incluídas como parte do Pentateuco. Desde a publicação da obra de Noth, tem havido muitas reações e objeções à sua tese inicial concernente à história composicional dos livros históri­ cos. Na América do Norte, Frank M. Cross, de Harvard, postulou que a H.D. era composta de duas fontes majoritárias, e não era trabalho de apenas um autor/editor. A primeira edição da H.D, à qual ele chamou de Dtr 1, era um documento pré-exílico que apontava para as reformas do rei Josias e as apoia­ va (2 Rs 22—23). A segunda edição, rotulada de Dtr 2, foi uma obra exílica que atualizou a última parte de Reis (2 Rs 24—25), transformou Dtr 1 em um sermão para a comunidade exílica e prometeu a esperança de restauração (1973, p. 274-289). Certo número de eruditos, principalmente da América do Norte, considera a visão das duas teorias redacionais de Cross persuasiva e as tem articulado de várias formas (Nelson, 1981; Friedman, 1981, p. 167­ 192). Os eruditos europeus providenciaram uma contrapartida para a principal tese de Cross concernente à composição da H.D. Os pesquisadores da Gottingen School, em particular, propuseram um modelo que sugere que a H.D. seja uma obra completamente exílica. Ao contrário de Noth, entretanto, que argumentava que a H.D. era o produto de um indivíduo, os membros da Gottingen School propuseram que a H.D. fosse composta de três camadas específicas de edição exílica (Dietrich, 1972; Smend, 1971, p. 494-509; Veijola, 1975). A primeira camada servia como a linha histórica básica ou registro histórico (o Grundschrift) do passado de Israel, a qual eles rotularam de DtrG (580 a.C.). Depois da DtrG, outra camada de edição foi incluída, a qual enfatizava a função dos profetas na H.D. (i.e., 1 Rs 14.7-11; 16.1-4; 21.20b-24; 22.38; 2 Rs 9.6-10, 36; 10.17; 21.10-16; 24.2), que foi rotulada de DtrP e atribuída aos círculos proféticos (561 a.C.). A camada redacional final foi incluída por um editor que demonstrava interesse pela Lei, ou Torá de Moisés, e enfatizava a obediência à mesma (i.e., 1 Rs 3.4-15; 9.1-9). Eles rotularam esse editor de DtrN (560 a.C.) ou editor nomista (nomista = lei). Nas últimas décadas, os eruditos têm proposto outros modelos teóricos para explicar o desenvolvimento da H.D. que incorporou elementos das te­ orias acima e também caminhou em outras direções. A seguir, há uma lista básica que resume as tendências metodológicas dentro da pesquisa da H.D. nos últimos 60 anos:

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a. A H.D. estava sendo revisada constantemente no decorrer da história de Israel, de forma que é composta de diversas edições pré-exílicas (pré-Ezequias, Ezequias, Josias) que incluíram atualizações exílicas (Friedman, 1981; Lemaire, 1986, p. 221-236; Provin, 1988; Weippert, 1972, p. 301­ 339; Sweeney, 2007, p. 1-32). b. A H.D. foi o produto de um registro “profético” que se estendeu desde 1 Samuel 1—2 Reis 10, também incluía uma edição de Josias e atualizações exílicas (Campbell, 1986; 0 ’Brien, 1989). c. A H.D. é o produto de um escritor criativo que viveu durante o período do exílio (Hoffman, 1980; Van Seters, 1983). d. A H.D. foi composta por escritores/editores da escola Deuteronomista. Essa escola era baseada na tradição da sabedoria do antigo Oriente Pró­ ximo (Weinfeld, 1972) ou fazia parte de um movimento de reforma que existiu no período exílico e pós-exílico (Person, 2002). Como o leitor pode ver, as teorias modernas da composição da H.D. são complexas e tomam muitas formas. E improvável que um consenso seja alcan­ çado no futuro próximo. A tendência mais recente na cultura bíblica inclui o estudo dos livros históricos dentro da estrutura geral de Gênesis a Reis. Os eruditos agora se referem aos livros de Gênesis a Reis como Eneateuco, porque acreditam que os livros históricos compartilham um relacionamento genético com os primeiros cinco livros do AT. Os eruditos também discordam de Noth quanto ao propósito de que a H.D. serviu na vida da comunidade israelita. Noth defendia que a H.D. primariamente explicava a razão pela qual o exílio ocorreu e não provia nenhuma palavra sobre o futuro ou sobre o que os israelitas deveriam fazer quando o exílio acontecesse. Então, em seu raciocínio, a H.D. permanecia fechada e um pouco pessimista. Outros eruditos, entretanto, defendiam que a H.D. fornecia uma medida de esperança para a comunidade exílica e posterior. Gerhard Von Rad, por exemplo, destacou a promessa de Deus a Davi para estabelecer uma dinastia eterna e analisou como Deus preservou a dinastia no decorrer da história de Israel. A nota no final de 2 Reis, sobre a libertação de Jeoaquim da prisão, permaneceu como uma prova positiva de que Deus havia cumprido a Sua palavra até mesmo no exílio. Dessa forma, para Von Rad, um tom de graça permeava as páginas da história, e a história de Israel permanecia com o final aberto (1953, p. 74-96). Além de Von Rad, H. W. Wolff estudou a H.D. e notou que um esquema de rebelião-punição-arrependimento restauração podia ser detectado na mesma. Wolff argumentou que a H.D.

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mostrava que, quando Israel “voltava” para Deus em arrependimento, Deus estendia o perdão e a cura à comunidade. Wolff acreditava, então, que a H.D. era verdadeiramente uma querigma ou uma mensagem ao povo que vivia exilado, no sentido de que a mesma apresentava um modelo daquilo que eles deveriam fazer quando enfrentassem o castigo. Os exilados precisavam entender que eles estavam no segundo estágio do ciclo, e, assim, precisavam “retornar” a Deus em arrependimento (Wolff, 1975, p. 83-100).

4. Os livros de Samuel Os eruditos do Antigo Testamento desenvolveram diversas teorias e ideias nas ultimas décadas para explicar os assuntos difíceis que aparecem no texto e para explicar as origens, e a composição dos livros de 1 e 2 Samuel também. Os livros de Samuel apresentam seus próprios desafios intrínsecos em relação à sua composição histórica. Os livros de Samuel mostram muito pouco da linguagem deuteronomista e das técnicas de edição que os livros de Reis de­ monstram, por exemplo. Esse fato tem levado os eruditos a argumentarem que os livros de Samuel são uma compilação em “blocos” de materiais/tradições que foram reunidos ao longo do tempo. Noth, por exemplo, permitiu alguma edição deuteronomista, a qual ele argumentava que poderia ser detectada nas seguintes passagens (Baldwin, 1988, p. 25): 1. 1 Sm 7.2b, a nota cronológica, “e tantos dias se passaram, que chegaram a vinte anos”. 2. 1 Sm 7.7-14, Noth fez conexão com Jz 13.1. 3. 1 Sm 13.1, a nota cronológica concernente ao reino de Saul. 4. 2 Sm 2.10,11, os reinados cronológicos de Is-Bosete e Davi. 5. 1 Sm 8 e 12, a desaprovação de Dtr do estabelecimento da monarquia. 6. 2 Sm 5.4,5, a cronologia do reino de Davi; e 5.6-12, a conquista de Jeru­ salém por Davi. 7. 2 Sm 7.7a, 22-24, notas editoriais concernentes à proibição do templo e a promessa relacionada à instituição da monarquia davídica. Noth, acima de tudo, considerava essas inserções editoriais e essas composições relativamente pequenas, considerando a extensão geral dos livros de Samuel. Grande parte do material original de Samuel derivava-se de tradições escritas mais antigas do que Dtr tinha à sua disposição. Dentro dos livros de Samuel, várias unidades independentes de tradição foram identificadas por Noth e por outros:

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a. A história de Samuel Os materiais relatados sobre a vida de Samuel estão concentrados nos capítulos 1—3, 7—8, 12, 15 em particular. Nesses textos, Samuel é apresentado como o fiel sacerdote/profeta/juiz que substitui Eli e sua casa corrupta no santuário de Silo. Samuel era o fruto de um voto nazireu que conduziu a comunidade da fé na adoração apropriada a Yahweh (YHWH), alguém que o povo reconheceu como um profeta “fidedigno”. Samuel também foi instrumental durante esse período de transição na sociedade de Israel, tornando-se o indivíduo responsável por ungir Saul, e, depois, Davi como reis de Israel. Sua função foi essencial para solidificar o pedido do povo por um rei (1 Rs 8; 12). Embora Samuel tivesse uma participação crucial na transição do período entre os juizes e a monarquia, sua importância na porção restante da história de Israel é limitada.

b. A narrativa da arca Nos livros de Samuel, a narrativa da arca está localizada em duas de se­ ções: 1 Sm 4.1b—7.1 e 2 Sm 6. Na primeira parte da narrativa da arca, ela foi capturada pelos filisteus, tirada da terra de Israel, e levada ao território filisteu. Os filisteus, entretanto, sofreram grandes e terríveis calamidades por causa da arca e perceberam que precisavam devolvê-la ao território israelita. A arca fica misteriosamente ausente ao longo do restante de 1 Samuel e reaparece somente em um breve episódio depois que Davi torna-se rei. Davi tomou a arca do terri­ tório de Quiriate-Jearim, onde a mesma havia permanecido por muitos anos, e transportou-a para Jerusalém, a capital recém-estabelecida. A arca permaneceu em Jerusalém e foi instalada no templo de Salomão mais tarde (1 Rs 8.3,4). As referências sobre a arca não aparecem depois de 1 Reis 8, mas a mesma prova­ velmente foi tomada ou destruída durante o exílio babilônico.

c. As tradições sobre Saul O surgimento de Saul como o primeiro rei sobre a nação de Israel e a rejeição ao seu reinado dominam os capítulos 9— 15. Várias tradições independentes sobre Saul e sobre como ele tornou-se rei foram compiladas pelo(s) editor(es) deuteronomista(s) (9.1 —10.16; 10.17-27; 11.14,15) e reunidas com o material relacionado às batalhas de Saul contra os amonitas (11.1-13), os filisteus (13.1 —14.46) e os amalequitas (15.1-34) para compor esta unidade.

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Além do mais, um breve relatório sumário concernente às façanhas e à família de Saul aparece no final de 1 Samuel 14 (v. 47-51). A maneira como essas tradições foram situadas pintam um retrato muito complicado e confuso de Saul. Elas resultam em uma perspectiva do rei Saul que é tanto positiva como negativa. Os eruditos têm sido rápidos para acusar que, do ponto de vista de seu arranjo canônico, os cap. 8— 12, especialmente, fornecem retratos contrastantes da monarquia de Saul (Childs, 1979, p. 277­ 278). Os capítulos 8 e 12 geralmente criticam o pedido do povo por um rei como uma rejeição da liderança de Yahweh, assim a instituição do reinado é entendida como menos do que ideal. Yahweh, entretanto, permitiu que o povo tivesse um rei, mas com certas estipulações. O material em 10.17-27 retrata Saul como um candidato tímido, quase relutante, para o reinado que parece improvável de inspirar esperança e coragem entre os israelitas. Isso se torna uma questão central no capítulo 13, em particular, quando Saul fracassou em liderar o povo durante o tempo de crise e deixou o temor aos filisteus influenciálo, assim ele desobedeceu à ordem de Samuel. Imprensados entre esses relatos desonrosos sobre Saul e o reinado existem relatos honrosos sobre o primeiro rei de Israel. 1 Samuel 9.1 — 10.16 oferece uma visão favorável de Saul no sentido de que Deus o selecionara para ser um vaso por intermédio do qual os israelitas seriam libertados da opressão filisteia (9.16). Nessa situação, Saul parece-se muito com os juizes da era anterior, aqueles que Deus levantava em tempos oportunos para livrar o Seu povo. Nesse mesmo ramo, o capítulo 11 apresenta Saul como um herói militar que livrou o povo de Jabes-Gileade da opressão amonita. Como é o caso de 9.16, onde Saul aparece como uma figura heróica que libertou o povo de Deus. Assim, dentro do contexto canônico dos capítulos 8—12, dois relatos favoráveis a Saul são unidos a três relatos desonrosos ao rei. Isso indica que os escritores bíblicos tiveram visões diversificadas sobre Saul e sobre o reinado em geral, prevalecendo a visão negativa. As narrativas restantes sobre Saul nos capítulos 13— 15 destacam os defeitos de sua monarquia. Saul era um líder tímido que desobedeceu à palavra de Samuel quanto ao sacrifício (cap. 13). Saul também fracassou em sua missão como comandante militar, sendo incapaz de derrotar os filisteus. O texto faz questão de mostrar que ele era verdadeiramente uma barreira para o sucesso das guerras de Israel contra aquela nação (cap. 13— 14). Saul também fracassou em obedecer à ordem de Deus em relação à guerra contra os amalequitas, quando ele poupou alguns dos despojos da batalha (cap. 15). No capítulo 15, Deus já estava arrependido de ter escolhido Saul como rei e enviou Samuel para levar a palavra da morte de Saul (v. 26-28). A porção restante de 1 Samuel (16-31) é dedicada à queda do rei.

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d. A história da ascensão de Davi Leonard Rost foi um dos primeiros eruditos que dividiu a história de Davi em duas partes distintas nos livros de Samuel: a história da ascensão de Davi (1 Sm 16—2 Sm 5) e a narrativa da sucessão (2 Sm 9—20; 1 Rs 1—2) (1982). A história da ascensão de Davi segue sua meteórica ascensão ao trono, começando com sua unção pelas mãos de Samuel (1 Sm 16) e concluindo com o estabe­ lecimento de Davi como rei sobre todas as tribos de Israel (2 Sm 5). Dentro do material relacionado à ascensão de Davi ao trono, o texto retrata-o em ter­ mos muito favoráveis, quase idealísticos. Deus era com ele (1 Sm 16.18; 17.37; 18.12, 28,29; 2 Sm 5.10) e concedeu-lhe sucesso em tudo o que se propôs a fa­ zer. Deus também deu graça a Davi diante do povo (1 Sm 18.16) de forma que os israelitas quiseram vê-lo rei e confessaram que a legítima ocupação do trono seria apenas uma uma questão de tempo (2 Sm 5.2). No decorrer da história da ascensão de Davi, diversos elementos importantes sobre ele são destacados: 1. Davi foi escolhido por Deus para substituir Saul: Deus enviou Sa­ muel para ungir Davi como o rei nomeado depois que Saul foi rejeitado pelo Senhor (1 Sm 16). Quando Samuel chegou à casa de Jessé, em Belém de Judá, sete dos filhos de Jessé tiveram de passar diante do profeta antes que Davi fos­ se selecionado. Deus lembrou a Samuel: “Não considere sua aparência nem sua altura, pois eu o rejeitei. O Senhor não vê como o homem: o homem vê a aparência, mas o Senhor vê o coração” (v. 7). A preocupação de não colocar a ênfase na aparência nem na altura do indivíduo diferenciou Davi de Saul, que ficou conhecido por ser elegante e alto (9.1-2). O texto indica que a força da liderança de Davi seria a sua obediência a Deus, e não os seus atributos físicos. 2. Davi era um jovem caracterizado por sua coragem e sua fé: No caminho de Davi ao trono, ele demonstrou ser um indivíduo com muita fé e muita coragem. Em nenhum lugar isso é mais exemplificado do que na narrativa de Golias (1 Sm 17). Enquanto Saul e seus homens acovardavam-se com medo diante do guerreiro filisteu, Davi ofereceu-se para enfrentar Golias, que havia desafiado os exércitos do Senhor. Saul concordou em deixar Davi desafiar Golias, e Davi saiu ao encontro do guerreiro com uma funda, algumas pedras, e “em nome do Senhor dos Exércitos, o Deus dos exércitos de Israel” (v. 45). A vitória de Davi sobre Golias demonstrou sua grande confiança em Yahweh, que o havia livrado "das garras do leão e das garras do urso” (v. 37). 3. Davi era popular entre o povo: Em seu percurso ao trono, Deus deu graça a Davi diante dos olhos do povo de Israel. Davi tornou-se tão popular entre os israelitas que, quando chegou o momento de assumir o trono, o povo já havia antecipado que isso aconteceria (2 Sm 5.2). Davi provou ser um grande

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líder na batalha e Deus lhe deu sucesso contra os filisteus, os rivais de Israel. Como resultado, as mulheres cantaram louvores a ele (1 Sm 18.6,7) e o povo de Israel e de Judá amava-o (v. 16). Em uma irônica virada, o texto menciona que os próprios filhos de Saul “amavam” Davi, embora Saul tivesse suspeitas dele, tentando aniquilá-lo em diversas ocasiões. O amor que os filhos de Saul demonstravam a Davi é evidenciado de várias maneiras importantes. Primeiro, o filho de Saul, Jônatas, de modo bastante óbvio, entregou os símbolos do poderio real a Davi: sua capa, sua armadura e sua espada, juntamente com seu àrco e seu cinto. O gesto de Jônatas indicava que ele sabia que Davi seria o próximo rei de Israel (v 4), o que era particularmente significativo à luz do fato de que Jônatas era o herdeiro legítimo do trono de Saul. Jônatas voluntariamente se afastou e renunciou seus direitos de herdeiro para que Davi pudesse ocupar o seu lugar como o próximo rei de Israel. Segundo, os filhos de Saul demonstraram seu amor por Davi ao colocarem suas vidas em risco a fim de salvá-lo. Jônatas intercedeu pelo jovem filho de Jessé na corte de Saul e deu-lhe sinal de que não era seguro para seu amigo retornar à sua família (1 Sm 19.1-7; 20.1-42). Mical, filha de Saul, casou-se com Davi e salvou a vida dele, ajudando-o a escapar dos servos de seu pai (19.8-17). Os esforços de Jônatas e Mical, que defenderam Davi, apresentam um tremendo contraste com os esforços do pai deles, que estava determinado em matá-lo. 4. Diante de Saul, Davi agiu com nobreza e com justiça: No decorrer da história da ascensão de Davi, a obsessão de Saul em matá-lo é repetidamente contrastada com o tratamento misericordioso e respeitoso de Davi para com o rei. Em duas ocasiões, Davi foi apresentado com a oportunidade de exercer vingança contra Saul pelo sofrimento que o rei havia lhe causado. Em ambas as situações (1 Sm 24; 26), Davi recusou-se a matar Saul, que representava o “ungido do Senhor”. A magnanimidade de Davi para com Saul diante da persistente provocação apresenta-o como mais virtuoso e mais justo do que Saul. As palavras de Saul para Davi: “Você é mais justo do que eu”, disse a Davi. “Você me tratou bem, mas eu o tratei mal” (1 Sm 24.17) servem para enfatizar o caráter de Davi e apresentá-lo como uma opção mais favorável ao reinado do que Saul. O generoso tratamento de Davi para com Saul fez o rei proclamar: “Agora tenho certeza de que você será rei e de que o reino de Israel será firmado em suas mãos” (1 Sm 24.20). 5. Davi, o político bem-sucedido: A história da ascensão de Davi apresenta-o como um político perspicaz e bem-sucedido. Davi fortaleceu sua reputação política entre o povo de maneira lenta e metódica, permitindo-o

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construir uma base de poder que, mais tarde, tornou-se rival do reino de Saul. A primeira fase da ascensão política de Davi começou durante sua fuga no deserto, na qual um grupo de 400 homens procurou-o como líder (22.2). Davi também se tornou um vassalo do rei filisteu Aquis durante esse período e recebeu a cidade de Ziclague para governar (cap. 27). Enquanto esteve em Ziclague, ele e seus homens saqueavam vários povos e apresentavam os despojos capturados às famílias e aos clãs que, mais tarde, comporiam a tribo de Judá (30.26-30). A carreira política de Davi continuava a crescer enquanto as famílias e os clãs do sul ungiam Davi como o rei de Judá (2 Sm 2.1-4). Davi reinou sobre a tribo de Judá em Hebrom, onde ele permaneceu por sete anos e meio. A última fase da ascensão política de Davi ocorreu após a morte de Is-Bosete, filho de Saul (4.5-7). Quando Is-Bosete foi assassinado, a última barreira para o trono de Saul foi removida e as tribos do norte endossaram a Davi seu reino (5.2-5). Davi reinou sobre Israel por 33 anos e meio e conseguiu estabelecer uma dinastia que continuou existindo por mais de 400 anos. Como novo rei de Israel, Davi e seus homens capturaram a cidade dos jebuseus (Jerusalém), que se tornou conhecida como “a cidade de Davi” (v. 7). Ele também recuperou a arca do concerto e levou-a para sua recém-estabelecida capital da monarquia unificada (cap. 6). Essa foi uma habilidosa mudança de Davi, pois ele era proveniente do território de Judá, e não das tribos do norte que Saul governara outrora. Já que a arca representava um importante símbolo religioso para o povo do norte, essa foi uma maneira engenhosa de Davi tornar­ -se favorável ao povo que era leal a Saul. Além disso, Davi desfrutou de sucesso militar contra as nações ao seu redor e foi capaz de estender a influência de Israel para muito além das fronteiras da nação; assim ele conseguiu construir um império respeitável (8.1-14). Os eruditos que estudaram a história da ascensão de Davi têm mencio­ nado que a mesma apresenta as características de uma “apologia” e funciona como uma “defesa de Davi” (McCarter, 1980a, p. 489-506; Weiser, 1966, p. 325-354). Uma leitura cuidadosa do material relacionado à ascensão dele indi­ ca várias características perturbadoras quanto ao modo pelo qual Davi subiu ao trono. A informação do texto poderia sugerir que Davi não foi simplesmente um personagem passivo do drama que se desenrolou entre ele e Saul, mas que Davi teve uma função ativa na aquisição da monarquia. Primeiro, ele associou­ -se com homens rudes que representavam os marginais da sociedade e agiam como mercenários. Davi dependeu da ajuda deles durante sua fuga de Saul, e eles ajudavam-no quando ele fazia ataques brutais a várias comunidades na

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parte sul de Israel (1 Sm 27.8-11). Esses homens também forneciam “proteção” para o povo no território da tribo de Judá e esperavam receber algum pagamen­ to em retorno (25.1-17). Segundo, Davi entendia a importância de fazer conexões pessoais com quem poderia ajudá-lo a avançar em sua carreira política. Isso era especialmente verdadeiro quanto às mulheres com quem Davi aliou-se. Ele casou-se com Mical, a filha de Saul, e, assim, tornou-se genro do rei e membro da família real. Davi também se casou com Ainoã (v. 43), a qual é ironicamente mencionada como esposa de Saul também (14.50). Alguns estudiosos argumentam que Davi tomou a esposa de Saul para si em sua jornada rumo ao trono (Levenson e Halpern, 1980, p. 507-518). Se for verdade, então Davi pôde fortalecer sua posição política com esse ato. Davi também se casou com Abigail, a viúva de Nabal (25.42). Nabal era um homem rico que tinha grande influência entre os clãs e as famílias da parte sul de Judá. Por meio de seu casamento com Abigail, Davi adquiriu a riqueza de Nabal e solidificou sua posição entre as tribos que iriam, mais tarde, coroá-lo rei de Judá. Davi também teve uma esposa chamada Maaca, que era filha do rei Talmai, de Gesur (2 Sm 3.3). O território de Gesur ficava fora da terra de Israel, na fronteira nordeste. Por intermédio de Maaca, Davi conseguiu solidificar um aliado político que estava localizado bem à margem do reino de Saul. Dessa forma, parece que Davi beneficiou-se consideravelmente com as mulheres com quem se casou. Terceiro, Davi beneficiou-se grandemente com a morte das pessoas associadas à casa de Saul. Gradualmente, os “competidores” ao trono de Saul foram sendo eliminados e o caminho de Davi rumo ao trono ficou amplamente aberto. Saul e Jônatas morreram quando lutavam contra os filisteus (1 Sm 31); o general de Saul, Abner, morreu quando negociava a transferência das tribos do norte para o lado de Davi (2 Sm 3.27); Is-Bosete, o filho que sobrou de Saul, foi assassinado por dois renegados (4.7); e os gibeonitas mataram os homens restantes da família de Saul (21.7-9). Em cada um desses casos, as pessoas responsáveis pelo assassinato tinham conexões com Davi, de uma forma ou de outra. O amalequita que disse ter matado Saul foi a Davi com a coroa e o bracelete do rei em suas mãos (1.10,11); o general de Davi, Joabe, assassinou Abner depois que o mesmo havia concordado em ajudar a trazer as tribos do norte para o lado de Davi (3.27); Recabe e Baaná retornaram a Davi em Hebrom, trazendo a cabeça de Is-Bosete nas mãos após seu assassinato (4.8); e Davi pessoalmente deu permissão aos gibeonitas para aniquilarem os descendentes de Saul. Isso garantiu que nenhum descendente de Saul fosse capaz de desafiá-lo ao longo do tempo (21.6,9).

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O propósito essencial da história da ascensão de Davi, os eruditos argumentam, foi intencionado a abordar essas questões e demonstrar que Davi não era alguém de fora, que cuidadosa e cruelmente arquitetou seu caminho até o trono, mas tornou-se o rei de Israel por meios legítimos. Em primeiro lugar, embora Davi fosse natural do território de Judá e também fosse figura desconhecida de Saul e das tribos do norte, ele não era um intruso porque se tornou um membro da família de Saul, então, ele tinha algum direito legal sobre o trono. No decorrer da narrativa, Saul chamou Davi de “meu filho” (1 Sm 24.16; 26.17,25) e ele tornou-se o genro do rei (18.18, 21-23, 26,27). Além disso, Jônatas, o filho do rei e seu herdeiro legítimo, essencialmente transferiu a Davi seu direito ao trono (v. 4) e reconheceu que Davi seria rei um dia (23.17). Ademais, Saul ainda alegou que Davi ascenderia ao trono, “legitimando” o jovem aos olhos do povo. Em segundo lugar, a história da ascensão de Davi também tenta distanciálo dos assassinatos de importantes pessoas ligadas a Saul. Em quase todas as ocasiões em que pessoas associadas a assassinatos aproximaram-se de Davi, ele proclamou sua inocência e denunciou aqueles que haviam cometido o ato (2 Sm 1.14-16; 3.28; 4.10-12). Além disso, no caso da morte de Jônatas e Saul, o texto coloca Davi longe do monte Gilboa (o local onde Saul e seus filhos foram mortos), provando que Davi não poderia estar envolvido na morte deles. Dessa forma, Davi “fica livre” de ter feito o mal, embora outros trouxessem acusações contra ele (16.7-8). A apologia de Hattusilis Esse texto hitita do final do século 13 a.C. representa um dos primeiros exemplos de apologia política do mundo antigo. O texto procura justificar a ascendência política de Hattusilis, alegando que ele chegara ao trono por meios legítimos. Dentro da apologia, certos temas são enfatizados: 1. A genealogia que indicava que ele viera de uma linhagem real: ou por nascimento ou por casamento. 2. Referências aofracassoeàdesgraçadosreisanteriores,enfatizando, assim, a necessidade de um novo líder. 3. O novo rei desfrutava de patrocínio divino e demonstrava ser mais piedoso do que o monarca anterior. 4. O novo monarca era um rei misericordioso, especialmente com aqueles que se opuseram a ele anteriormente. 5. Uma linha de sucessão fora estabelecida a fim de evitar o conflito diante da morte do rei. Estudiosos do Antigo Testamento há muito têm notado os paralelos entre a ascensão de Davi (1 Sm 16— 2 Sm 5) e a literatura apologética hitita. Igualmente à narrativa de Hattusilis, a história da ascensão de Davi tinha a intenção de justificar sua reivindicação ao trono e de defender seu caráter contra vários criticismos e alegações (Hoffner, 1975, p. 49-62).

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e. A narrativa da sucessão Rost também identificou uma segunda parte importante na vida de Davi, a qual ele intitulou de narrativa da sucessão. Diferentemente da histó­ ria da ascensão de Davi, a narrativa da sucessão é muito menos idealística e apresenta um Davi que estava propenso a fracassos morais, ele era uma frus­ tração como pai, e alguém que era assolado por todos os tipos de disfunções familiares e políticas. Rost rotulou o material de 2 Sm 9—20 e 1 Rs 1—2 de narrativa da sucessão porque o mesmo concentra-se na questão central: “qual dos filhos de Davi o sucederá como rei de Israel?” No decorrer do complexo narrativo, diversos “concorrentes” ao trono apareceram e diferentes facções lutaram pelo controle do reino. Já que Mical, a mulher de Davi, falhou em reproduzir um herdeiro para o rei (2 Sm 6.23), o sucessor veio de outra das mulheres de Davi. Assim, uma contenciosa e sangrenta disputa entre os fi­ lhos de Davi teve lugar. Absalão matou seu meio-irmão, Amnom, por este ter estuprado Tamar. Mais tarde, Absalão fomentou uma revolta contra Davi e estabeleceu-se como rei por um curto período até ser eliminado por Joabe (2 Sm 14—19). Adonias, o filho de Davi que tinha respaldo de pessoas in­ fluentes, como Joabe, proclamou-se rei no final da vida de Davi (1 Rs 1). A tentativa de Adonias para conquistar o trono foi frustrada por uma facção que, com êxito, persuadiu Davi a proclamar Salomão rei (cap. 1—2). O trono de Salomão somente foi solidificado depois que ele removeu, com sucesso, as pessoas que se opuseram a ele anteriormente (cap. 2). Dessa forma, no final da narrativa de sucessão, Salomão surgiu como o herdeiro de Davi, mas não sem muitos conflitos e bastante derramamento de sangue. Os acontecimentos amargos que levaram Salomão à coroação estão dis­ postos dentro de um quadro teológico. A razão pela qual Davi enfrentou con­ tenda em sua família e sofreu retrocessos políticos é decorrente do seu caso com Bate-Seba e do assassinato de Urias, marido de Bate-Seba (2 Sm 11). O profeta Natã usou uma parábola para censurar o comportamento de Davi, que selou sua própria sorte ao condenar o homem rico da história que roubou a ovelha do homem pobre: Juro pelo nome do Senhor que o homem quefez isso merece a morte! Deverá pagar quatro vezes o preço da cordeira, porquanto agiu sem misericórdia (2 Sm 12.5,6). Ao pronunciar esse veredito, Davi requereu o as­ sassinato de Urias para si mesmo e aplicou uma sentença jurídica sobre a sua própria cabeça. Um exame dos eventos que seguiram a entrevista de Davi re­ vela que suas palavras foram proféticas, no sentido de que ele realmente pagou quadruplicado por suas transgressões: o primeiro filho gerado por Bate-Seba

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morreu, Amnom foi morto por Absalão, este pereceu na revolta contra Davi, e, finalmente, Adonias morreu pelo legado de Salomão. Os acontecimentos que transcorreram na vida de Davi e em sua família também foram o cumprimento do oráculo de Natã contra o rei: Por isso, a espada nunca se afastara de sua fam ília, pois você me desprezou e tomou a mulher de Urias, o hitita, para ser sua mulher (2 Sm 12.10). Na narrativa da sucessão, então, uma importante lição é transmitida ao público: nem mesmo Davi, o ungido de Deus, conseguiu ostentar ou menosprezar a lei de Deus sem sujeitar-se à correção divina. Davi pagou um alto preço por suas transgressões, tanto pessoal como politicamente. Ao examinar a vida de Davi no livro de Samuel, torna-se aparente que o(s) editor(es) deuteronomista(s) havia(m) dividido a sua vida sob duas manchetes distintas: “Davi debaixo da bênção” e “Davi debaixo da maldição” (Carlson, 1964).

f. Os apêndices Os últimos quatro capítulos de Samuel (21.1—24.25) são compostos de uma diversidade de materiais. Esses materiais incluem: uma narrativa acerca da expiação da culpa de Saul (21.1-14), duas listas de heróis e seus feitos (21.15­ 22; 23.8-39), duas canções de gratidão (22.1-51; 23.1-7), e uma narrativa so­ bre a expiação da culpa de Davi (24.1-25). Embora pareçam estar dispostos de modo casual, os estudiosos entendem que esses capítulos estão cuidadosamen­ te organizados em um padrão de estrutura quiástica (Por trás do texto em 2 Sm 21.1—24.25). Essa estrutura destaca temas importantes, como o abuso de poder do rei e a onipotência e a misericórdia de Deus.

D. Temas teológicos Ao longo dos livros de Samuel, dois temas teológicos e ideias relevantes são destacados:

1. Liderança No decorrer da H.D. e nos livros de Samuel, especificamente, a liderança fiel é uma preocupação teológica importante que é continuamente evidenciada. Os livros de Samuel concentram-se na liderança de três principais indivíduos: Samuel, Saul e Davi. Em Samuel, e em toda a H.D., a saúde e o bem-estar da

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comunidade de Israel é diretamente dependente da qualidade de seus líderes. O sucesso de um líder não é julgado por fatores externos que os seres humanos usariam para avaliar a eficiência de um líder: sucesso político, vitória militar, aparência física, idade, recursos humanos ou posição social. Nos livros de Samuel, assim como em toda H.D., a verdadeira medida da eficiência de um líder está baseada em um só critério: sua fidelidade e sua obediência a Deus. Em Samuel e na H.D., o Altíssimo fez os Israelitas florescerem e prosperarem quando os seus líderes temiam-no, mas a comunidade sofria quando eles menosprezavam as Suas instruções. Em Samuel, assim como em toda a H.D., o sucesso político e militar aparecia como resultado da fiel observação do líder à instrução de Deus, mas a derrota e a instabilidade ocorriam quando o líder desvanecia-se em seu compromisso com o Senhor. Em Samuel, vários tipos de lideranças são evidenciados:

a,A monarquia Os livros de Samuel estão localizados em uma época de importante transição na história de Israel. O período dos juizes termina e surge a monarquia. O pedido do povo por um rei era equivalente à apostasia, e assim as origens do reinado recebem uma avaliação teológica negativa. Antes da época de Samuel, Deus havia agido como o rei de Israel verdadeiramente, mas o estabelecimento do reinado humano representava a rejeição israelita à liderança do Senhor sobre a comunidade. O Altíssimo, não obstante, permitiu que os israelitas tivessem um rei, embora a ambição deles lhe fosse desagradável. O rei de Israel foi escolhido por Deus e ungido por intermédio do ministério dos profetas. Além do mais, Ele sujeitou o rei e o povo a certas estipulações, a saber: Se vocês temerem servirem e obedecerem ao Senhor, e não se rebelarem contra suas ordens, e, se vocês e o rei que reinar sobre vocês seguirem o Senhor, o seu Deus (1 Sm 12.14). O texto deixa claro que o povo e o rei deveriam permanecer sob a autoridade de Deus e ambos foram exortados a permanecerem fiéis a Ele. O destino de Israel estava intrinsecamente ligado à liderança do rei, e os prospectos de uma bênçãò futura foram pressupostos na obediência dele. A medida em que a história de Israel desenvolve-se em Samuel e em Reis, a narrativa mostra que foi o fracasso dos líderes israelitas que finalmente levou à dizimação do reino do norte em 721 a.C. e do reino do sul em 586 a.C. Assim, a história condena, pelo exílio, tanto o povo de Israel, que exigiu um rei em primeiro lugar (1 Sm 8; 12), como seus líderes.

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b. 0 fracasso da liderança de Saul Embora Deus tenha escolhido Saul para ser o primeiro rei de Israel (1 Sm 9.1— 10.16), o texto de Samuel consistentemente relembra os leitores de que o seu mandato como rei resultou em um grande desastre. Teologicamente fa­ lando, o reinado de Saul é caracterizado por uma série de ironias pungentes. Por um lado, Saul parece possuir as ferramentas físicas e as qualidades que a maioria das pessoas deseja em um grande líder: ele era alto, de boa aparência e vinha de uma família influente, e ele provou ser um líder militar capaz em certos momentos. Por outro lado, porém, o texto sugere fortemente que a apa­ rência pode ser enganosa. Ao longo das narrativas de Samuel, Saul demonstra que lhe faltava fé quando a comunidade enfrentava oposição, ele ofendeu a Deus (e a Samuel) ao oferecer sacrifícios que não estava autorizado, e ele falhou em seguir as diretrizes de Deus acerca da destruição dos amalequitas. Além do mais, Saul nunca cumpriu os propósitos para os quais Deus o escolheu origi­ nalmente, no sentido de que ele nunca derrotou os filisteus. O triste retrato da fracassada monarquia de Saul foi resultado de suas próprias ações e de seus próprios erros. No final, a monarquia de Saul foi “rejeitada”, terminando em uma amarga ironia: ele morreu pelas mãos dos inimigos de Israel e o seu corpo foi pendurado de forma escarnecedora (cap. 31). Além disso, os prospectos e as esperanças de uma linha de sucessão de Saul foram para sempre prejudicados por causa das ações dele (13.8-15).

c. 0 sucesso da liderança davídica A rejeição de Deus por Saul preparou o caminho para a chegada do rei preferido do Senhor: Davi. No decorrer de 1 Samuel 16—2 Samuel 8, a bênção divina sobre o jovem filho de Jessé e o sucesso que ele desfrutou, tanto pessoal como politicamente, ficam em completo contraste com o reinado mal fadado de Saul. Diferentemente deste, Davi não é conhecido por suas características físicas, mas por sua devoção ao Altíssimo. Enquanto Saul não possuía fé no Senhor durante os pontos críticos da narrativa, a vida de Davi foi pontuada de momentos em ele dependeu do auxílio e da força de Deus: quando estava lutando contra Golias, por exemplo, e quando Saul perseguiu-o no deserto. A justiça de Davi também superou a de Saul, e a narrativa deixa claro que os prospectos da liderança davídica eram melhor recebidos do que Saul ou alguém de sua linhagem. Durante a narrativa, o texto também destaca que Davi foi capaz de realizar aquilo que Saul não conseguiu.

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O favor de Deus para com Davi é evidente na aliança especial que Ele estabeleceu com Seu servo e com a sua casa. No texto da aliança em 2 Samuel 7, Deus prometeu a Davi que a sua linhagem nunca teria fim, e que o seu reino estaria seguro para sempre. Essa promessa, que foi severamente ameaçada no final do período monárquico e no exílio, forneceu esperança para a comunida­ de judaica durante o período pós-exílico. A promessa foi finalmente cumprida em Jesus, que descendeu da casa de Davi, por intermédio do qual o Senhor conseguiu estabelecer Seu Reino eterno.

d. A ascensão dos profetas O surgimento dos profetas coincidiu com o desenvolvimento da monarquia na sociedade israelita. Enquanto o rei presidia sobre os assuntos políticos e militares do reino, os profetas serviam como a voz religiosa e moral da comunidade. Os profetas agiam como porta-vozes de Deus, fazendo os líderes religiosos, os reis e o povo prestarem contas a Ele. No decorrer de Samuel, os profetas têm uma função importante na sociedade de Israel. O profeta Samuel, por exemplo, convidou o povo para uma vida obediente (1 Sm 7.3,4), atuou como o nomeador dos primeiros reis, ungindo Saul e Davi por ordem de Deus, e entregou palavras de instrução ou juízo quando o rei (13.8­ 16; 15.17-23) ou os líderes religiosos não ouviram a voz do Senhor (3.1-18). Além disso, Samuel também proveu afirmações proféticas que declaravam as intenções de Deus concernentes ao destino do futuro de Saul (28.15-19), da dinastia de Saul (15.3-8) e da monarquia de Davi (v. 28). Em Samuel, o texto menciona diversos profetas que tiveram interações com Davi. Além de Samuel, os profetas Gade e Natã eram os canais principais pelos quais o Altíssimo comunicava-se com ele. Pela palavra do profeta, o Senhor estabeleceu esta aliança com a casa de Davi (2 Sm 7), mas Ele também proferiu fortes advertências e mensagens de juízo. O profeta Gade, por exemplo, ordenou que Davi voltasse para a terra de Judá (1 Sm 22.5). O profeta Natã repreendeu o rei depois do seu caso com Bate-Seba e do assassinato de Urias (2 Sm 12.7-15), e o profeta Gade anunciou a vinda de uma praga depois que Davi decretou o censo (2 Sm 24.10-14). Em favor de Davi, cada vez que Gade e Natã confrontavam-no por causa de seu pecado, o rei humilhava-se em contrição diante de Deus. Como porta-vozes divinos, então, os profetas tinham autoridade de manter o rei na linha e eram lembretes visíveis para que ele permanecesse sob a autoridade de Deus.

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2. A reversão da sorte A reversão da sorte “como um índice da soberania divina” é outro tema que permeia os livros de Samuel (Youngblood, 1992, p. 561). No decorrer das histórias de Ana, Samuel, Eli e seus filhos, Saul e Davi, o texto demonstra que Deus tem a capacidade de exaltar o humilde e de humilhar o arrogante. (Veja o hino de Ana em 1 Samuel 2.6-8) como resultado do trabalho de Deus nas questões da humanidade, uma mulher anteriormente estéril (1.5,6) foi capaz de dar à luz um dos maiores profetas/sacerdotes/juízes da história de Israel (2.19,20); dor e humilhação transformaram-se em alegria (1.18); um futuro sem filhos mudou drasticamente com o nascimento de seis (2.21). Homens privilegiados (v. 12.16), escolhidos para servir como sacerdotes da comunidade, morreram envergonhados (4.11,12). Dois indivíduos simples e insuspeitos, um deles procurou jumentos (9.3,4) e o outro cuidou de ovelhas (16.11), tornaram-se os dois primeiros reis de Israel (10.1; 16.13). Os líderes ungidos e exaltados por Deus foram humilhados (15.11, 28; 2 Sm 12.9,10). A divina capacidade de mudar as circunstâncias dos indivíduos nos livros de Samuel-não foi desconectada da reação humana para com a divina. A sorte dos indivíduos era afetada pela piedade e pela obediência deles à vontade de Deus e também pelo seu orgulho e pela sua infidelidade a Ele.

3. A teologia da recompensa-punição Os livros de Samuel explicam claramente a teologia deuteronomista da recompensa-punição. Basicamente, o(s) editor(es) Deuteronomista(s) defendia(m) a ideia de que Deus abençoaria aqueles que fossem obedientes e traria castigo sobre os que o desobedecessem. Essa visão teológica da vida nasceu do conhecimento que havia da aliança mosaica. Essa aliança segue os padrões e o formato dos antigos tratados do Oriente Próximo, que incluíam a lista de convenções que o vassalo era obrigado a seguir para receber as bênçãos do suserano e a ameaça de um severo castigo pela desobediência. A aliança mosaica, que era condicional em sua natureza, concebia o relacionamento de Israel com Deus de modo semelhante: bênçãos pela obediência (Dt 7.12-24; 28.1-14; Lv 26.1-13) e maldições pela desobediência (Dt 28.15-68; Lv 26.14­ 46). No transcorrer de Samuel e da H.D., o esquema de recompensa-punição funcionou de maneira individual, e também comunitária. Deus levou o juízo sobre aqueles que quebraram o mandamento, por exemplo: Eli e seus filhos,

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pelo comportamento perverso no santuário de Siló (1 Sm 2.27-35); Saul, por desobedecer à ordem de Deus (13.8-15); e Davi, por seu envolvimento no fracasso de Bate-Seba e Urias (2 Sm 12.7-14). Os israelitas também sofreram derrota e humilhação no uso impróprio da arca (1 Sm 4.1-22). Samuel também disse que os israelitas experimentariam dor e sofrimento por requisitarem um rei para governá-los (8.10-18). Deus também abençoou aqueles que demonstraram piedade e fé nele. O Senhor abençoou Ana com um filho apesar de sua condição estéril (1.11­ 19), Ele honrou Samuel entre o povo de Israel por seu serviço fiel (3.1-21), o Altíssimo deu a Davi graça entre o povo e a família de Saul (18.1-14), Deus estabeleceu uma aliança especial com Davi e sua família (2 Sm 7), e Israel teve vitória sobre os seus inimigos enquanto Davi permaneceu verdadeiro a Deus (5.17-25; 8.1-14). O(s) editor(es) Deuteronomista(s) fez(fizeram) o resto da H.D. ao redor deste esquema de recompensa-punição. Isso fornecia um raciocínio teológico sobre o porquê de o favor e de a misericórdia de Deus estenderem-se sobre aqueles que eram obedientes e explicava porque algumas catástrofes como aquelas de 721 a.C. e de 586 a.C. aconteceram. Com o passar do tempo, outros escritores bíblicos começaram a desafiar esse jeito Deuteronomista de perceber e interpretar a realidade como certos salmos (44.9-22; 73.4-12) e como o Livro de Jó (21.1-34; 31.1-40) atestam.

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COMENTÁRIO O LIVRO DE 1 SAMUEL

1.0 PERÍODO PRÉ-MONÁRQUICO EM ISRAEL: AS NARRATIVAS SOBRE SAMUEL E A ARCA

(1.1- 7.17) A. O nascimento de Samuel (1.1-28; 2.11) POR TRÁS DO TEXTO A unidade inicial de 1 Samuel abre com um registro da narrativa do nascimento de Samuel (1.1-28), inclui o hino de louvor e gratidão de Ana (2.1-10), e conclui com uma breve observação de que Samuel começou a servir o Senhor sob a direção do sacerdote E li (1 Sm 2.11b). As dicas sintáticas, literárias e temáticas dentro do texto indicam que as cenas de abertura do capítulo 1 naturalmente associam 1 e 2 Samuel com o Livro de Juizes; porém, elas também sugerem que uma importante mudança na linha da trama da narrativa de Israel esteja acontecendo. Por um lado, 1 Samuel vem logo depois de Juizes na Bíblia Hebraica, unindo, assim, este livro com o anterior


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em termos de arranjo canônico. Entretanto, uma evidência mais substancial indica uma conexão mais forte com Juizes. O cenário de 1.1—2.11 situa-se no santuário em Siló, o mesmo local onde os homens de benjamim tomaram mulheres para si no final de Juizes (21.15-24). Além disso, a frase: Havia certo homem (1 Sm 1.1a) mostra uma íntima afinidade literária com a apresentação de Manoá, o pai de Sansão (Jz 13.2), bem como com as histórias de Mica (Jz 17.1) e do levita (Jz 19.1b). Essa relação canônica é acentuada pelo fato de que a história de Elcana e sua família acontece na montanha de Efraim (1 Sm 1.1a), o mesmo território tribal que é mencionado em Juizes 17. Como resultado dessa evidência, o público leitor é levado a deduzir que os eventos da abertura de 1 Samuel seguem naturalmente a época dos Juizes. Outras considerações gramaticais e sintáticas, porém, indicam que a trama também está caminhando em uma nova direção. A sintaxe hebraica de 1.1a (Havia certo homem) indica o início de uma nova cena dentro da estrutura narrativa. Além disso, a introdução formal de um novo grupo de personagens no capítulo 1 (i.e., Elcana, Ana e Eli) assinala a abertura de uma seqüência narrativa distinta. O surgimento de Samuel, em particular, transporta o cenário da história da época dos juizes para o período da monarquia. Samuel é essencial para o desenvolvimento do reinado de Saul (especialmente nos cap. 8—12), e ele é responsável pelo estabelecimento da monarquia de Davi também (1 Sm 16—2 Sm 24). Já que Samuel é o homem a quem Israel deve a sua monarquia, ele torna-se uma figura central durante essa fase transitória da história de Israel. Embora o nascimento de Samuel funcione como o clímax do primeiro capítulo (1 Sm 1.19,20), a esterilidade de Ana (v. 2), o tratamento cruel de Penina para com Ana (v. 6,7), e a oração e o voto de Ana (v. 10,11) desenvolvem uma tensão palpável que precede o surgimento inicial de Samuel na história (v. 20). Além das duas esposas e do menino Samuel, essa unidade introduz ao leitor quatro homens que são cruciais ao enredo: Elcana, Hofni, Finéias e Eli. Enquanto Elcana basicamente desaparece da trama após o nascimento de Samuel, Eli e seus filhos desempenham um papel mais proeminente nos capítulos 1—3, pois servem como principais sacerdotes do santuário de Siló. Como sacerdotes de Siló, eles também agiam fundamentalmente como cuidadores da arca da aliança. O texto ainda indica que eles também contribuíram grandemente para a decadência moral e religiosa do sacerdócio nesse período.

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A história de Samuel nos capítulos 1—3 está intimamente ligada ao santuário de Siló. Juntamente com Siquém (Js 24) e Gilgal (Js 5), Silo servia como um dos principais centros religiosos do passado de Israel. De acordo com o Antigo Testamento, tanto a tenda do encontro como a arca da aliança permaneceram ali nos tempos pré-monárquicos (Js 18.1-10; 19.51; 21.2; 22.9; Jz 20.26-28). Siló fica cerca de 30Km ao norte de Jerusalém, nas montanhas de Efraim. Recentes escavações arqueológicas apontam para as ruínas de um local cultuai com extensivas características arquiteturais que podem ser datadas da primeira metade do século 11 a.C. (Halpern, 1992, p. 1214). Essa data o colocaria na época de Eli e Samuel aproximadamente (aproximadamente 1050 a.C.). Os filisteus destruíram o santuário posteriormente, um acontecimento ao qual Jeremias alude em seu livro (26.6,9). Elcana fazia peregrinações anuais a Siló a fim de apresentar ofertas e sacri­ fícios diante do Senhor. É possível que essas peregrinações estivessem ligadas ao festival do outono conhecido como Festa dos Tabernáculos ou Sucote (Dt 16.13-15), mas o texto não diz isso diretamente. O texto também nota que suas mulheres, Ana e Penina, e seus filhos acompanhavam-no ao local sagrado regu­ larmente. Embora seja ilegal na sociedade ocidental moderna, a bigamia era uma prática comum no antigo Oriente Próximo. Nas culturas antigas, se a primeira esposa do homem não pudesse gerar filhos, compromentendo, assim, a preser­ vação da linhagem da família e a geração de um herdeiro direto para os bens familiares, ele poderia tomar uma segunda esposa a fim de produzir um descen­ dente masculino. Embora fossem permitidos pela tradição mosaica (Dt 21.15), os arranjos polígamos frequentemente apresentavam uma ameaça política, eco­ nômica e social para a mulher estéril (Schneider, 2004, p. 46-61). Esses acordos matrimoniais também tinham o poder de inflamar fortes tensões dentro da uni­ dade da família. Esse parece ser o caso da família de Elcana. A amarga rivalidade que se desenvolveu entre Ana e Penina tornou-se particularmente difícil para a primeira. A dor e a frustração por causa da situação de Ana eventualmente a levou a pedir um filho em suas orações, o qual seria dedicado ao Senhor com um voto de nazireu. O Senhor respondeu à oração de Ana posteriormente, que cumpriu a sua parte do voto e entregou o menino a Ele. Assim, um dos princi­ pais propósitos dessa unidade introdutória é fornecer uma explicação acerca de como Samuel ficou associado ao santuário de Siló e, mais tarde, tomou o lugar de Eli e seus filhos como o principal sacerdote.

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NO TEXTO

1. Prólogo (1.1-3) I 1 O prólogo começa introduzindo a árvore genealógica de Samuel. Elcana, o pai de Samuel, é descrito como um homem de Ramataim-Zofim. Em hebraico, esta frase literalmente significa “as alturas duplas de Zofim” Já que este local não é mencionado em nenhum outro lugar do AT, muitas traduções modernas tentam emendar o texto a fim de dar sentido a esta leitura. Alguns traduziram o texto para que leia “Ramataim dos Zufitas” ( j p s ) . Outra manei­ ra, mais atraente, de traduzir esta frase é “certo homem de Ramataim, zufita” ou “um dos zufitas de Ramataim” (Tsumura, 2007, p. 107). As duas últimas opções preservam a linhagem zufita de Elcana (referida no v. 1b) e o coloca em Ramataim, que é a forma plural de Ramá. Ramá é designada como a cidade natal de Eli em 1.19e2.11,e tem sido associada à antiga cidade de Rentis, que está localizada a cerca de trinta quilômetros ao leste de Tel Aviv (também cha­ mada de Arimateia no N T). A forma plural de Ramá (Ramataim, que também pode ser interpretada como “duas montanhas”) é utilizada aqui porque prova­ velmente havia duas montanhas associadas ao local: uma na cidade e a outra utilizada como um “lugar alto” (9.25). Elcana é também identificado como filho de Jeroao, filho de Eliú, filho de Toá, filho de Zufe, efirateu (v. 1). O nome Elcana literalmente significa “Deus adquiriu (um filho?)”, e a inclusão da fórmula patronímica após o seu nome levanta algumas questões importantes. Primeiro, a inclusão de um registro tão longo de nomes pode indicar que Eli era um homem de alguma fortuna (Gordon, 1986, p. 72). A longa genealogia não só indica que ele veio de uma família abastada, mas o fato de que ele podia manter duas esposas também dá crédito a esta noção. É irônico, entretanto, que os homens/ enumerados em sua linhagem não sejam bem conhecidos e não desempenham um papel importante no AT. Apesar disto, a fórmula patronímica é uma concepção literária típica usada pelos escritores bíblicos para introduzir formalmente as figuras importantes como os profetas, sacerdotes, e/ou reis. O fato de que o texto inclui a árvore genealógica de Elcana como um prelúdio da chegada de Samuel é uma dica sutil de que Samuel seria especial; talvez até antecipando sua futura função como profeta e sacerdote (Mauchline, 1971, p. 42). Segundo, o ancestral de Elcana, Zufe, que é apenas identificado como um efrateu, não descendia de uma família de profetas ou sacerdotes. Esta questão

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apresentou dificuldades peculiares para os editores posteriores e intérpretes da história de Samuel. Já que o texto indica que Samuel realizou funções proféticas e sacerdotais em Siló, as tradições posteriores compensaram pela inexistência da linhagem sacerdotal de Samuel. Primeiro Crônicas 6.16-28, 33-38, em particular, lidou com esta questão modificando a linhagem histórica de Samuel colocando Zufe como descendente de Levi. Esta importante mudança genealógica, desta forma, atribuiu a Samuel a descendência levítica (sacerdotal). Além do mais, o autor de Crônicas colocou Elcana e Samuel entre o clã coatita, cuja maior responsabilidade era cuidar da arca do concerto (Nm 3.31). E compreensível que o autor de Crônicas tenha colocado Samuel neste clã, considerando que ele teve alguma associação com a arca (1 Sm 3.3). H 2 -3 Os versículos 2 e 3a fornecem mais informação sobre Elcana. Enquan­ to que o versículo 1 se refere à sua história ancestral, o versículo 2 fornece in­ formação sobre suas esposas. No versículo 2a Ana aparece primeiro, indicando assim sua importância pessoal para com Elcana e sua posição como a primeira esposa. O nome Ana significa “graciosa” e, portanto, explicaria porque ela era favorecida por Elcana (Klein, 1983, p. 6). Penina aparece em segundo lugar, provavelmente enfatizando seu papel de esposa secundária. A ordem do nome delas é invertida, entretanto, na segunda parte do versículo. No versículo 2b Penina é mencionada primeiro com o acréscimo da informação que Penina tinha filhos enquanto Ana não tinha filhos. O texto posiciona Ana depois de Penina na segunda parte do versículo para lembrar ao público da condição estéril da última, que é crucial para o desenvolvimento da trama (Alter, 1999, p. 3). O nome Penina pode significar algo como “prolífica”, portanto, é uma denominação adequada à luz do fato de que ela foi capaz de produzir múltiplos filhos para Elcana (Klein, 1983, p. 6). O nome Ana também é sugestivo à luz de suas circunstâncias especiais porque é etimologicamente similar à palavra hebraica para favor (h ên ). Uma vez que ela não podia ter filhos no começo da narrativa, o nome de Ana mais tarde ganhou um novo significado quando o Senhor demonstrou favor a ela, não só provendo Samuel, mas vários outros filhos também (2.21). O texto também menciona que Elcana viajava para Siló: Todos os anos esse homem subia de sua cidade a Siló para adorar e sacrificar ao Senhor dos Exército (1.3a). A construção gramatical do versículo 3a (miyyãmím yãmim = “de ano em ano”), acoplada aos dois infinitivos {adorar e sacrificar), é digna de menção porque indica uma ação contínua ou uma atividade consistente. A referência da peregrinação regular de Elcana a Siló sugere que ele era um homem piedoso que temia ao Senhor. O versículo 3b conclui a subunidade

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mencionando que, quando Elcana ia ao santuário, Lá, Hofitii e Finéias, os dois filhos de Eli, eram sacerdotes do Senhor. O fato de que o texto não diz “Eli e seus filhos” sugere a noção de que o adorador esperava encontrar Hofni e Finéias no recinto sagrado, mas não Eli (Frolov, 2002, p. 140). Isto indicaria que Eli permanecia nos bastidores enquanto que seus filhos desempenhavam o papel de liderança na ministração naquele local. A referência aos filhos de Eli neste versículo também prepara o leitor para o próximo capítulo, no qual eles serão o assunto do foco do editor/narrador.

2. A família de Elcana em Siló (1.4-8) I 4 - 7 a Esta seção reconta o que geralmente acontecia quando a família de Elcana visitava o santuário de Siló. A unidade se inicia no versículo 4a com a frase E sucedeu que, no dia em que Elcana sacrificava e prossegue nos versícu­ los 4b-7a para fornecer uma nota parentética descrevendo as ações habituais de Elcana na época do sacrifício. Esses versículos recontam que ele dava porções à sua mulher Penina e a todos osfilhos efilhas dela do animal sacrificado. En­ tretanto, ele dava uma porção dupla a Ana. O significado da última frase tem deixado os estudiosos perplexos durante gerações. A palavra hebraica que é empregada é a forma dupla Çapãyim) e literalmente significa “faces” Alguns a têm traduzido como uma porção dupla (Hertzberg, 1964, p. 24), “parte excelente” (ARC), ou “em seu rosto”, como frustração pela incapacidade de Ana de prover filhos para Elcana (Frolov, 2002, p. 143). À luz da frase seguinte que afirma que Elcana amava a Ana (JPS, “Ana era a sua favorita”), podemos provavelmente entender que Elcana apresentava a porção a Ana de tal maneira como lhe dando uma porção maior do que era o mérito, ou de uma maneira muito pessoal ou amável (portanto, “em sua face”), de forma que isto a honras­ se (uma “porção de honra” Caquot e de Robert, 1994, p. 33) acima de Penina. Segundo, o texto reconta que sua rival a provocava continuamente, a fim de irritá-la (v. 6). O tratamento duro de Penina para com Ana é capturado mais precisamente em hebraico. Ela não somente mostrou hostilidade para com Ana (portanto, sua rival), mas também o fez de propósito a fim de “irritá-la” ou “embravecê-la”. Na linguagem de hoje, esta frase poderia ter sido traduzida como “amedrontá-la” ou “intimidá-la” (Mauchline, 1971, p. 46). A LX X não contém uma declaração sobre a “esposa rival” e como ela provocava Ana no versículo 6. Em vez disso, a dor de Ana é causada pelo Senhor que a impediu de gerar filhos. O versículo 6 da LX X diz: “Pois o Senhor não lhe deu filhos em sua aflição, e segundo o abatimento de sua aflição; e ela estava desanimada

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por causa disto, porque o Senhor cerrara a sua madre para não lhe dar um fi­ lho” Na LXX, o abatimento de Ana é causado por sua esterilidade, e não pela provocação de Penina. A amarga rivalidade que o texto hebraico captura tão pungentemente exis­ tia porque Penina tinha ciúmes porque Ana continuava sendo a esposa favo­ rita de Elcana, embora Penina produzisse filhos para ele. A rivalidade entre as mulheres de Elcana relembra semelhantemente os encontros entre Sara e Hagar (Gn 16.4-6) e Lea e Raquel (v.3 Gn 30.1-3). O ecoar dessas tradições da história patriarcal tem uma função importante na interpretação da história. Na história bíblica, os filhos nascidos de uma mulher previamente estéril ge­ ralmente indicavam algo peculiar ou especial sobre a posição daquela criança (i.e., Isaque, Jacó, José). Já que o filho de Ana foi concebido com a assistência de Deus, o leitor fica na antecipação de que Samuel desempenharia um im­ portante papel na sociedade de Israel. Os capítulos seguintes (esp. 1 Sm 3—7) indicam que este é realmente o caso. O versículo 7a encerra a informação pa­ rentética mencionando que este cenário acontecia ano após ano, quando ela subia à Casa do Senhor. Assim, não só era a esterilidade de Ana uma fonte de sofrimento e humilhação, mas a repetida ridicularização que ela tinha de su­ portar, sem dúvida, provocava nela uma indescritível angústia e dor de cabeça. I 7 b -8 O versículo 7b se une ao versículo 4a mencionando que, em respos­ ta a esta situação, Ana chorava e não comia na hora da refeição, enfatizando, assim, a sua intensa amargura. Em certa ocasião, Elcana reagiu ao sofrimento de Ana perguntando: Por que você estâ chorando?Epor que você não comef Epor que seu coração estâ triste f Não sou eu melhor do que dezfilhos f Elcana, no versículo 8, basicamente “bombardeou” Ana com quatro breves perguntas para tentar amenizar os sentimentos dela (Fokkelman,.1993, p. 31). A reação de Elcana, embora bem intencionada, essencialmente não compreendia a si­ tuação pessoal de Ana e ignorava desajeitadamente a raiz do problema dela. Embora Elcana tentasse, ele não conseguiu prover as palavras curadoras que teriam trazido um conforto duradouro para ela. No mundo antigo, a posição social da mulher, a estabilidade financeira, e a realização na vida eram encon­ tradas na geração de filhos (Alter, 1999, p. 4). O amor e a atenção de Elcana, independentemente de quão significantes, nunca conseguiriam alcançar essas necessidades específicas da vida de Ana. Olhando esses versículos em conjunto, então, percebe-se que o sofrimento de Ana era extremamente frustrante e inimaginavelmente difícil; ela era estéril, sua rival repetida e propositalmente a antagonizava por causa de sua esterilida­ de, e o seu marido era completamente alheio às suas próprias necessidades e à fonte de sua frustração, dor, e tristeza.

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3. O voto de Ana a Yahweh (1.9-11) H 9 -1 1 Esses versículos recontam a reação de Ana às suas circunstâncias di­ fíceis. Em certa ocasião específica, Ana foi ao templo orar e apresentar sua an­ gústia diante do Senhor. Já que o Senhor havia fechado o seu ventre, somente o Senhor, o doador da vida, poderia abri-lo (Evans, 2003, p. 16). Enquanto estava ali, o texto menciona que Eli estava sentado próximo dos umbrais das portas do templo de Yahweh (v. 9). Embora Eli não viesse cumprimentar o povo quando eles vinham sacrificar, ele desempenhava alguma função (limita­ da?) no templo. Mais provavelmente, ele estava confinado à parte mais interna do santuário onde pessoas como Ana vinham orar. O texto do versículo 9 faz referência ao umbrais do templo, o que pode indicar que o santuário de Siló fosse uma estrutura mais permanente e não somente uma tenda religiosa como o tabernáculo das tradições do deserto (Klein, 1983, p. 8; veja SI 78.60, que pode indicar o oposto). Dentro do santuário, Ana orou ao Senhor e chorou abundantemente. A descrição do choro de Ana é significante. A sintaxe inclui o uso do infinitivo absoluto (bãkõh tibkeh) ao descrever a reação emocional de Ana. A gramática pretende demonstrar um choro intenso (i.e., ela “realmente chorou”) ou um pesado choro por parte de Ana. Assim, o leitor recebe um vislumbre da intensa amargura que ela estava enfrentando. , A intensa oração de Ana nos versículos 10,11 também incluía um voto. Ela orou: Se realmente atentares para a aflição da tua serva, e lembrares de mim, e não esqueceres da tua serva, e deres a semente dos homens à tua serva, eu o entregarei a Yahweh todos os dias da sua vida e nenhuma navalha passara sobre a sua cabeça. Duas questões importantes estão relacionadas com a oração de Ana. Primeiro, o pedido de Ana, para que o Senhor “atentasse” para a sua aflição e “lembrasse” dela, distintamente ecoa o sofrimento e o clamor dos is­ raelitas quando estavam na escravidão do Egito (Ex 2.23,24; 6.5). O narrador, então, cuidadosamente traça uma comparação entre o sofrimento de Ana e as dolorosas lembranças dos ancestrais de Israel no Egito. Segundo, o voto de Ana é significante porque não se dá no modo quid pro quo (i.e., se você fizer X, então farei Y). Ana basicamente disse, se você me der X, então eu lhe darei Y. O voto de Ana, portanto, indica que Samuel seria não somente um presente de Deus, mas o filho dela seria um presente para Deus (Hamilton, 2004, p. 215). Presume-se que Samuel seria um nazireu, pois ela prometeu que o cabelo dele não seria cortado (Nm 6.5; Jz 13.5; 16.17). A LX X e o 4QSama acrescentam ainda a menção de que ele não beberia vinho tam­ bém. Ao examinar essa linguagem, torna-se aparente que o narrador faz uma

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conexão com o livro de Juizes, particularmente na história de Sansão. Diferen­ temente de Sansão, que fracassou em ser um nazireu e quebrava os seus votos em cada esquina, Samuel seria um nazireu exemplar, demonstrando grande fidelidade a Deus tanto como profeta e sacerdote. Esta reflexão “retrovisora” sobre a história de Sansão indica, portanto, que um novo capítulo e um novo futuro emergirão entre a liderança religiosa de Israel com o advento de Samuel.

Nazireu O termo Nazireu deriva da palavra hebraica (nãzar) que significa "consagrar" ou "apartar". Os nazireus demonstravam sua devoção a Deus por meio de comportamentos distintos como a observação de proibi­ ções contra cortar o cabelo, beber vinho ou bebidas fermentadas, e tocar em mortos. Os nazireus, ou eram chamados por Deus, ou dedicados por seus pais desde uma tenra idade. Além de Sansão (Jz 13—16) e Samuel, homens e mulheres poderiam fazer o voto e tornarem-se nazireus tempo­ rários por um tempo designado. O livro de Números fornece a legislação pertinente aos termos e obrigações do voto nazireu (6.1-21).

4. Eli e Ana no santuário (1.12-18) I 1 2 -1 8 Esta seção do texto registra o intercâmbio um tanto longo entre Ana e o sacerdote Eli no santuário de Siló. Enquanto Ana orava, Eli observava atentamente o comportamento e a linguagem corporal de Ana. A gramática hebraica, no versículo 12, concentra-se na acentuação do fervor com que Ana orava: Ana perseverava em orar diante de Yahweh. O significado do verbo ( hirbetâ) nesta frase pode ser traduzido como “ser grande ou muitos”. Portan­ to, Ana “multiplicou” suas orações, ou ela orava “sem cessar”. Eli não conseguia ouvir o que ela dizia e percebeu apenas que os lábios dela estavam movendo-se, considerando-a uma mulher embriagada, e ordenou­ -lhe que se apartasse do vinho (v. 13,14). Ana prontamente replicou à resposta rude e à acusação mal concebida de Eli, declarando que não era uma mulher bêbada que se entregara ao vinho ou à bebidaforte (cobrindo assim a gama de bebidas intoxicantes), mas, ao contrário, em sua angústia, ela derramava a sua alma diante de Yahweh (v. 15).

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A ironia desse intercâmbio não pode deixar de ser observada. Primeiro, a ineficiência de Eli como sacerdote fica óbvia. Como um sacerdote, ele deveria estar sintonizado com uma suplicante de coração angustiado. Ao contrário, ele foi incapaz de interpretar eficientemente as ações de Ana e falsamente a acusou de cometer um erro. Este é apenas um sinal que aponta para a infeliz condição da liderança religiosa e do estado geral das coisas no santuário de Siló. Segundo, na resposta de Ana a Eli, o texto usa um verbo que é geralmen­ te usado para derramar um líquido como descrição de sua oração (sãpak). O mesmo termo é o termo técnico que pode ser usado em conjunto com um sa­ crifício ou oferta que é derramada (Dt 12.27) ou como sinal de profunda con­ trição (Am 5.8; 9.6) e tristeza (Lm 2.19). Assim, Ana não estava embebida em vinho ou bebida forte, mas estava derramando a sua alma - o tipo de oferta e derramamento que provinha de um coração amargurado e um espírito perturbado. Enquanto que os sacrifícios de Elcana eram do tipo tradicional, o sacrifício e a oferta de Ana incluíam um tipo de lamento. Além do mais, Eli erroneamente acusou a futura mãe de um nazireu (que seria obrigado a ficar longe do vinho e dos intoxicantes, Nm 6.3) de estar bêbada! A ironia é imensa, para dizer o mínimo. Quando Eli percebeu seu grave erro, ele rapidamente começou a pronun­ ciar a seguinte bênção sobre Ana: que o Deus de Israel lhe conceda o que você pediu (v. 17b). A construção desta frase em hebraico pode também ser tomada como uma promessa de que Deus iria verdadeiramente agir em favor dela: o Deus de Israel te concederá aquilo que thepediste. É significante notar também aqui que entre os versículos 16-28 (inclusive o 2.20), palavras associadas ao verbo pedir (sã°at) ocorrem nada menos do que nove vezes. Isto pode ser visto no seguinte esboço (Hamilton, 2004, p. 215): Versículo 17: Eli respondeu: “Vá em paz, e que o Deus de Israel lhe conce­ da o que você pediu”. Versículo 20: E deu-lhe o nome de Samuel dizendo: “Eu o pedi ao Senhor” Versículo 27: Era este menino que eu pedia, e o Senhor concedeu-me o pedido. Versículo 28: Por isso, agora, eu o dedico ao Senhor. Por toda a sua vida será dedicado ao Senhor”. E ali adorou o Senhor. 2.20: Eli abençoava Elcana e sua mulher, dizendo: “O Senhor dê a você filhos desta mulher no lugar daquele por quem ela pediu e dedicou ao Senhor”. A constante referência do “pedido” ou da “petição” de Ana tem feito alguns eruditos enxergarem referências oblíquas ao rei Saul, e assim concluir que esta narrativa de abertura originalmente pertencesse ao seu nascimento (Stolz, 1981, p. 16).

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Embora o nome de Saul seja derivado da forma passiva do mesmo verbo (sãul), não há evidência substancial fora desta narrativa para manter esta posi­ ção. Em hebraico, o narrador/escritor está usando uma construção gramatical chamada etimologia aliterante, onde ambas as palavras começam e terminam com as mesmas consoantes. O narrador/escritor deste texto usa deliberada­ mente palavras similares para criar uma profunda dicotomia entre Samuel, por quem Ana pediu, e Saul, por quem o povo pedirá nos capítulos 8 e 12. O prenúncio é ainda mais patente: uma Ana estéril pede um filho que ela não tinha; mais tarde, um Israel estéril pede um rei que eles não tinham (Polzin, 1989, 24,25). Imediatamente depois que Eli pronunciou esta bênção/promessa para Ana, o texto menciona que ela seguiu seu caminho, comeu, e seu rosto já não estava mais abatido (v. 18). A bênção/promessa que Ana recebeu parece ter revivido os seus ânimos. Ela não somente participou da refeição que outro ra rejeitava, mas a frase seu rosto já não estava mais abatido emprega um inte­ ressante jogo de palavras. O termo seu rosto {pãneyhã) soa bem parecido com 0 nome Penina, portanto, um trocadilho com o nome de sua rival indicando que ela não mais seria um problema ou preocupação para Ana.

5. Samuel é apresentado a Yahweh (1.19-28; 2.11) 1 1 9 -2 8 O texto se desloca rapidamente da oração de Ana e da bênção/ promessa de Eli para o nascimento de Samuel; a resposta da oração de Ana. Quando o casal voltou de Siló, o texto imediatamente menciona que “Elcana conheceu a Ana, sua mulher, e o Senhor se lembrou dela” (1.19b ARC). O ter­ mo “conhecer” (y ãda c) é usado no AT como um eufemismo sexual (Gn 4.1). Entretanto, enquanto que Elcana conheceu a Ana, em um breve encontro se­ xual, o Yahweh realmente se lembrou dela. Que o Senhor “se lembrou” de Ana é uma referência direta à sua súplica no versículo 11, demonstrando, assim, que Yahweh “observou” o sofrimento de Ana e nunca se “esqueceu” de seu pedido. Uma alusão, mais uma vez, à tradição do Êxodo, onde Yahweh “viu” a aflição do povo, “ouviu” o clamor do povo, e “lembrou-se” de que a aliança que fizera com seus ancestrais não poderia ser ignorada. As semelhanças dessas duas tra­ dições lembram ao público leitor que Deus cuida profundamente daqueles que estão vulneráveis e passando por sofrimentos. Quando o filho de Ana nasceu, ela lhe deu o nome de Samuel, pois Eu o pedi ao Senhor (v. 20). O nome Samuel {semü° êl), entretanto,

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não é etimologicamente relacionado ao verbo “pedir”. Embora diversos estudiosos tenham tentado explicar o significado de seu nome, Samuel pode provavelmente ser mais bem interpretado como “Deus ouviu” (i.e., a oração de Ana). Ana cuidou de Samuel e o desmamou (provavelmente por volta da idade de três ou quatro anos; veja 2 Mac. 7.27) antes que o devolvesse a Yahweh. Uma vez que o menino alcançou uma idade suficiente, Ana foi ao santuário de Siló e apresentou os materiais para dois sacrifícios. O primeiro consistia de “três bezerros e um efa de farinha e um odre de vinho” (1 Sm 1.24 ARC). Baseado na informação da LX X, 4QSama, e da Peshita, pode-se melhor traduzir isto como “um novilho de três anos e pão” Esses elementos eram provavelmente designados a uma oferta pelo voto, tendo em vista o voto que ela fizera anteriormente (Nm 15.8-10). A segunda oferta era muito mais valiosa e preciosa: o próprio menino Sa­ muel. Ana trouxe (v 24a, b) Samuel ao santuário e o ofereceu ao Senhor, entre­ gando-o aos cuidados de Eli. Embora dois verbos diferentes sejam usados no versículo 24 para referir que Ana “trouxe” Samuel (v ãtã1ãlêhü e vãtbi êhu)y ambos são verbos causativos, enfatizando, assim, o papel dela em entregar o menino a Deus. Ao apresentar Samuel a Eli, ela realmente cumpriu a sua parte do voto (v. 28). Samuel, essencialmente, tornou-se um “sacrifício vivo” ao Se­ nhor como resultado do gesto de Ana. O texto não revela como o fato de deixar Samuel em Siló a afetou pessoal­ mente, mas pode-se imaginar o alto preço emocional que ela pagou por deixar o seu único filho com Eli. O texto menciona que ela visitava Samuel uma vez por ano (2.19); é difícil crer, entretanto, que isto fosse proporcionar a Ana tempo suficiente para desenvolver um relacionamento íntimo com seu filho. O tipo de sacrifício e fidelidade demonstrada por parte de Ana se compara com o de Abraão que também demonstrou a disposição de sacrificar o seu próprio filho (Gn 21). ■ 2 .1 1 Quando a unidade inicial se encerra, o texto relembra o público leitor que Samuel permaneceu em Siló onde ficou “servindo ao Senhor, perante o sa­ cerdote Eli” (ARC). O verbo em 2.1 lb (mésãrêt) denota que Samuel contínua e fielmente servia ao Senhor diante de Eli no santuário. Fiel ao voto e às intenções de sua mãe, Samuel se tornou um sacrifício vivo na obra de Deus. Esta declaração não somente informa ao leitor sobre a integridade moral e devoção religiosa do rapaz, mas também demonstra como a oração e a dedicação de uma mulher pie­ dosa produziu um dos maiores líderes de Israel.

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A PARTIR DO TEXTO 1. Uma das coisas que aprendemos ao examinarmos a vida de Ana é que avida nem sempre é justa. Deus nem sempre nos isenta de situações ou circunstâncias lamentáveis. Há momentos ou períodos na vida nos quais experimentamos difi­ culdades ou enfrentamos oposições que nos trazem sofrimentos ou dores de ca­ beça. Ao longo da jornada podemos até encontrar pessoas que pioram a nossa dor (como no caso de Penina) ou encontramos aqueles que tentam nos ajudar, mas estão alheios à nossa situação e necessidades pessoais (como no caso de Elcana). Durante esses momentos da vida, aprendemos algumas lições impor­ tantes por meio da história de Ana. Primeiro, estar intensamente atento àque­ les que estão sofrendo. O AT consistentemente testemunha o fato de que Deus está do lado dos humildes, sofredores, fracos e oprimidos. Como os israelitas no cativeiro egípcio, Deus vê a dor de Seus filhos e ouve os clamores daqueles que estão sofrendo. Deus também está em ação no meio dessas situações para cumprir o Seu plano, mesmo quando podemos não estar cientes das intenções dele. Assim como Ana, Deus lembra-se daqueles que clamam o Seu nome no momento da angústia e pode até extrair algo maravilhoso do nosso infortúnio. Como está testemunhado no hino de louvor e gratidão de Ana (veja comentá­ rio em 2.1-10), Deus exalta o humilde e dá honra ao fraco. Samuel representa um dos maiores líderes de Deus na história de Israel, no entanto, como os fi­ lhos de Sara e Rebeca, ele surgiu como uma bênção em tempos de incertezas. Segundo, as próprias ações de Ana são instrutivas. Em um momento em que ela tinha poucas escolhas ou opções, Ana não perdeu a fé em Deus e levou as suas reclamações a Ele em oração e lágrimas. O texto indica que Ana teve de enfrentar o sofrimento por um período de tempo, todavia, ela levou sua petição diante de Deus, Aquele que poderia verdadeiramente ajudá-la. Foi em sua grande angústia que ela clamou a Deus, e Deus olhou para a situação dela. Deus não somente atendeu a Ana provendo-lhe um filho, mas deu-lhe vários outros filhos também. 2. A fé e a piedade de Ana também emergem no texto. Ao pedir um filho a Deus, Ana não apresentou sua petição como uma tática de permuta a fim de chantagear a Deus: se você fizer isto, eu farei aquilo. Ana não foi presunçosa dessa forma, mas percebeu que se Deus lhe desse um filho, o filho seria devol­ vido a Deus como um presente/oferta. Há momentos em que as pessoas fazem

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transações com Deus a fim de garantirem que seus pedidos sejam realizados. Essa atitude indica que os suplicantes não estão verdadeiramente preocupados em buscar a vontade de Deus, mas estão mais preocupados em obter ou adqui­ rir o que é desejado. Além do mais, eles mascaram suas verdadeiras intenções com linguagem piedosa. Ana provou que o seu coração e a sua oração eram genuínos porque quando Samuel foi dado a Ana, ela o devolveu ao santuário como uma oferta viva de gratidão a Deus. 3. Aprendemos também uma importante lição sobre a conexão entre a adoração e o serviço. Samuel era um presente de Deus, e a sua vida foi caracte­ rizada pelo contínuo serviço a Deus. Mesmo quando Samuel era um menino, o texto afirma em 2.11 que ele servia a Deus na presença de Eli. Outro modo de entender este texto é dizer que Samuel servia a Deus ao servir a Eli. Mui­ tas vezes a nossa compreensão de adoração é muito restrita, pensando que a adoração apenas acontece em um santuário ou igreja. O exemplo de Samuel nos lembra de que a nossa adoração também está ligada em cumprirmos nos­ sas funções na família, no trabalho e na vida cotidiana. Esta compreensão de adoração não se aplica somente aos adultos, mas às crianças e aos jovens também. Frequentemente os nossos filhos têm o pensamento de que eles não podem fazer nada significante para Deus até que fiquem mais velhos. Toda­ via, é importante que eles entendam que eles adoram a Deus ao obedecerem e ajudarem a seus pais, ao se esforçarem para irem bem nos trabalhos escolares, e ao tratarem seus irmãos e amigos com respeito e carinho. Desta forma, a adoração está ligada às coisas que eles fazem diariamente. O mesmo é verda­ deiro para os adultos. Os adultos também adoram a Deus cumprindo suas funções como cônjuges, pais, empregados, e vizinhos nas melhores de suas habilidades. Geralmente as pessoas sentem que sua vida é apenas comum e que não estão fazendo um trabalho importante para o Reino de Deus. Elas podem acreditar que se não servirem a Deus em um país estrangeiro como missionários ou em uma função ministerial integral na igreja, a vida delas tem pouca relevância ou impacto no mundo. O texto nos lembra de que nós honramos e adoramos a Deus quando cumprimos as funções nas quais nos encontramos fielmente e de todo o coração, independentemente de quão co­ muns ou banais elas possam parecer. Lembre-se: Tudo o que fizerem, seja em palavra ou em ação, façam-no em nome do Senhor Jesus, dando por meio dele graças a Deus Pai (Cl 3.17).

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B. O hino de gratidão de Ana (2.1-10) POR TRÁS DO TEXTO Os eruditos concordariam que a canção de ações de graça de Ana deve ser proveniente de um quadro literário diferente antes de ser atribuída a Ana e in­ serido aqui. Primeiro Samuel diz que Ana tinha seis filhos (Samuel mais cinco outros [2.21]), mas o poema fala de uma mulher estéril que teve sete filhos (v. 5). O teor do poema é nacional, falando de inimigos masculinos e metáforas militares (v. 4). A oração pelo rei (v. 10) não se encaixa na história de Ana, já que Samuel nunca funcionou como rei e até discursou contra a instituição do reinado. Também, o versículo 11 une-se ao 1.28 sem dificuldades, indicando assim, que 0 hino havia sido inserido no texto pelo editor/redator dos livros de Samuel. Os eruditos têm notado similaridades de linguagem e estilo com o Salmo 113 e outros hinos de louvor dos Salmos (Birch, 1998, p. 980). Outros até comenta­ ram nas semelhanças deste Salmo com 2 Samuel 22 e Salmo 18 (Carlson, 1964, p. 45,46). Embora este poema de gratidão possa estar originalmente situado em um cenário literário e cultuai diferente, ele é, todavia, apropriado ao con­ texto da história de Ana porque se centraliza no tema da capacidade de Deus de interferir nas questões humanas e provocar uma reversão da sorte. Esta men­ sagem claramente ressoou na vida de Ana, que sofreu com a dor da esterilidade, e, contudo, experimentou a maternidade também. As palavras deste salmo de gratidão louvam ao Deus de Israel que é capaz de fazer milagres na vida dos humildes e exaltar o humilde à posição de grandeza. NO TEXTO 1 1-3 A frase de abertura identifica a canção inicialmente como a oração de Ana: Ana orou assim. Como uma oração particular de Ana, a mesma é intensamente pessoal e, portanto, demonstra uma perspectiva em primeira pessoa, especialmente no v. 1. As frases como: Meu coração exulta, minha força é exaltada, minha boca se exalta sobre os meus inimigos, pois me alegro em tua libertação, demonstram a qualidade pessoal desta canção. A suplicante nesta canção pode se regozijar na incomparabilidade de Deus. Não há ninguém santo como o Senhor; não há outro além de ti; não há rocha alguma como o nosso Deu (v. 2). Os termos usados aqui para descrever Deus centralizam-se no Seu caráter santo e no Seu poder, a base da Sua grandeza.

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Como resultado da soberania e pureza de Deus, uma advertência é dada para aqueles que são arrogantes e orgulhosos, já que Deus é um Deus de conheci­ mento que pesa as ações humanas. Inerente a esses versículos está a ideia de que ninguém tem o direito de ostentar ou ser arrogante, já que Deus presta atenção às circunstâncias humanas, julga-as, e coloca-as em equilíbrio quando necessário. Embora a canção não identifique Penina por si só, sua provocação e ridicularização em relação à Ana vêm à mente nesses versículos (veja 1.6). I 4 -8 Esses versículos logicamente fluem da declaração anterior sobre a ca­ pacidade de Deus de transformar a sorte dos poderosos e dos humildes. Eles fornecem um catálogo específico de reveses trazidos pelo próprio poder de Deus. O versículo 4a concentra-se no poderoso que foi humilhado (“O arco dos fortes foi quebrado” ARC), e depois (v. 4b) volta-se para os fracos que foram fortalecidos (“os que tropeçavam foram cingidos de força” ARC). O versículo 5a continua esta série de comparações referindo-se àqueles que “antes eram fartos” (ARC) e depois “se alugaram por pão, mas agora cessaram os que eram famintos” (ARC). O versículo 5b inverte a ordem referindo-se ao fraco primeiro e depois ao poderoso. Nesse exemplo, a mulher que “estéril teve sete filhos”, e “a que tinha muitos filhos enfraqueceu” (ARC). Os versículos 4-5 ecoam especialmente a intervenção de Deus na vida de Ana que era estéril, mas depois teve vários filhos. Os versículos 6-8 relembram que Deus é o poder por trás dessas reversões da sorte. O foco muda da esperança daqueles que necessitam da ajuda de Deus para a doxologia de louvor a Deus (Birch, 1998, p. 981). Diferentemente do versículo 1, que destaca a função da suplicante, os versículos 6-8 magnificam o poder e a atividade de Deus. Esses versículos confirmam que é Deus que “tira a vida e a dá; faz descer à sepultura e faz tornar a subir dela”... “empobrece e enriquece; abaixa e também exalta. Levanta o pobre”... “exalta o necessitado, para o fazer assentar entre os príncipes, para o fazer herdar o trono de glória” (ARC). O autor pode afirmar esta crença teológica porque “do Senhor são os, alicerces da terra, e assentou sobre eles o mundo” (v.8). Em essência, a voz deste salmo destaca a noção de Deus como o Criador, aquele que estabeleceu a terra e a colocou no lugar. Já que Deus demonstrou tanto a capacidade e o poder de realizar este maravilhoso feito na criação, o escritor tem garantia de que Deus também tem o poder de intervir na hora da necessidade. H 9 -1 0 Os dois últimos versículos desta canção fluem da seção precedente. O Deus que é capaz de mudar a sorte do poderoso e do fraco (v. 9) é também o Deus que distingue entre o fiel e o perverso e julga até os confins da terra (v. 10). Deus guardará os pés dos seus santos enquanto que os ímpios serão

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silenciados nas trevas (v.9). O poema acentua a noção de que não é por sua própria força ou poder que o indivíduo prevalece, mas é o poder de Deus que transforma as realidades sociais nas quais a pessoa vive. Assim, os fiéis são aque­ les que colocam sua fé no poder de Deus e permitem que Ele trabalhe em suas situações pessoais. Por causa desta certeza, o escritor desta canção pode proclamar confian­ temente que Deus destruirá os seus inimigos e dará vitória ao Seu povo. No contexto deste salmo, o escritor, no versículo 10 especificamente, identifica o seu rei como aquele que receberá este poder, e que também é chamado de seu ungido. Interessantemente, o poema, que começa como uma oração pessoal de Ana, termina com uma declaração sobre o rei de Israel. O poema essencial­ mente antecipa a eventual chegada de um rei, e o filho de Ana desempenharia um papel integral na unção do primeiro rei de Israel e no estabelecimento do ministério político da monarquia na sociedade de Israel. A PARTIR DO TEXTO A canção de Ana é instrutiva para os crentes modernos em diversos níveis. Primeiro, a canção de Ana é uma reação de gratidão e louvor à luz do modo miraculoso no qual Deus trabalhou em favor dela. Ana foi conscien­ te em agradecer a Deus tanto em ações (ao apresentar Samuel como uma oferta a Deus) e em palavras em sua canção comemorativa. Como recebedora da graça de Deus, Ana não se esqueceu de mostrar sua gratidão em seu entusiasmo pelo nascimento de Samuel, mas ela se lembrou daquele a quem ela tanto devia. A reação de Ana é muito diferente da dos israelitas que pe­ regrinaram pelo deserto por tantos anos. A geração que testemunhou o po­ der maravilhoso de Deus e experimentou a libertação da escravidão egípcia se esqueceu daquilo que Deus havia feito por eles durante aqueles anos de intervenção entre o êxodo e o assentamento. Como resultado, aquela gera­ ção se tornou conhecida como os ingratos e murmuradores que rejeitaram as bênçãos da terra prometida por causa de sua ingratidão (SI 78). No NT, Lucas relembra ao público leitor sobre os dez leprosos que foram curados, mas somente um retornou para adorar e agradecer a Jesus pela cura que Ele providenciou (17.11-19). A bíblia reforça a noção de que a gratidão é uma nobre qualidade que deve ser evidente na vida de cada crente. Por meio da gratidão, nós proclamamos nosso reconhecimento a Deus pelo modo com que Ele tem trabalhado em nossas situações, e reconhecemos que tivemos de depender de Sua ajuda e força. A gratidão deve também ser estendida

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ao nível humano. É importante que demonstremos o nosso apreço pelos amigos, vizinhos, familiares, colegas de trabalho, membros da comunidade da fé, e até aos estranhos pela ajuda, a consideração e o cuidado que eles demonstram para conosco. Ao fazer isto, demonstramos que não tomamos os atos de bondade deles inconsideradamente, e afirmamos o impacto sig­ nificante que eles tiveram em nós. 2. A melodia de Ana ecoa no hino de Maria no N T (Lucas 1.46-55; veja também o comentário em 1 Sm 2.26). Como ambas canções confirmam, Deus foi capaz de operar nas circunstâncias aparentemente impossíveis para trazer o nascimento de um filho especial. Nos casos de Ana e Maria, o filho nascido dessas mães teria uma profunda missão de transformar as situações religiosas nas quais eles nasceram. Samuel se tornou um fiel profeta/sacerdote/juiz do povo de Israel por quem Deus purificou o santuário corrupto de Siló. Jesus, que encarnou o próprio ser de Deus, entrou humildemente no mundo para purifi­ car a raça humana do pecado e da desobediência. É significante que Deus não selecionou as mulheres mais notáveis para ser a mãe desses filhos significantes, mas as humildes e estéreis; o tipo de mulher que a maioria das pessoas despre­ zaria como insignificantes. Nos exemplos de Ana e Maria, somos poderosa­ mente lembrados de que, em termos de história da salvação, Deus geralmente trabalha em paradoxos. Deus nem sempre procura os indivíduos mais podero­ sos, ricos ou populares para efetuarem seus propósitos salvíficos no mundo. Ao contrário, Ele sempre trabalha nas circunstâncias improváveis e nos indivíduos insuspeitos para fazer fruir os Seus propósitos. 3. No hino de Ana somos lembrados de que a vida está sujeita a mudanças e Deus é capaz de reverter a sorte tanto do fraco quanto do forte. Como a vida de Ana ilustra, Deus pode exaltar o humilde e também trazer cura e felicidade àquele que está passando pela dor. Deus também pode humilhar o arrogante e abater o poderoso. A canção de Ana é instrutiva neste ponto: “o Senhor é o Deus da sabedoria, e por ele são as obras pesadas” (2.3 ARC). Deus está intei­ ramente cônscio das ações dos humanos na terra, e Ele dispensa a Sua justiça e misericórdia onde é apropriado. Como parte de Seu plano, Deus também do­ tou pessoas, instituições e nações para serem agentes da Sua justiça e misericór­ dia no mundo. Deus está trabalhando por uma variedade de meios para prover ajuda e conforto para o fraco, o angustiado, o desamparado, e o vulnerável. Deus também trabalha por intermédio de diversas organizações e instituições para garantir que aqueles que cometem injustiça e exploram a dor e o sofrimen­ to dos outros sejam punidos. À luz disto, é a nossa chamada e a nossa obrigação como representantes de Cristo, sermos instrumentos pelos quais Deus decreta mudança na vida de pessoas na sociedade.

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C. Eli e seus filhos (2.12—3.1a) POR TRÁS DO TEXTO Esta unidade se concentra na atividade de Eli e seus filhos no santuário de Siló. Está claro que a função primária deste texto é traçar um forte contraste entre os filhos corruptos de Eli e o fiel profeta/sacerdote Samuel. Na verdade, a unidade inteira chama a atenção para este fato referindo-se aos filhos de Eli comofilhos imprestáveis (v. 12a) bem no começo desta seção. A frase hebraica usada para descrever os filhos (benê bêliyã 1al) é muito semelhante à declara­ ção reiterada por Ana em 1.16a, na qual ela implorou a Eli para que não a to­ masse por uma mulher desprezível (bat beliyã 5al). O trocadilho nesses textos é intencional, e, portanto, o autor/narrador está deliberado em criar uma forte dicotomia entre a posteridade das duas famílias. O filho de Ana, Samuel, seria bom, e os filhos de Eli, Hofni e Finéias, eram maus. A falsidade do sacerdócio fica dolorosamente evidente nas ações de Hofni e Finéias e daqueles que ministravam as cerimônias religiosas com eles em Siló. Os filhos de Eli não só pervertiam e manipulavam processo sacrificial para o ganho próprio (v. 13-17), mas eles também se engajavam em atividades sexu­ ais dentro do recinto do santuário (v. 22-26). A informação sobre a atividade sexual desses filhos é perturbadora por algumas razões. Primeiro, a sintaxe em­ pregada no versículo 22 (o verbo sãkav + 'et) é semelhante a outras passagens do AT que se referem a estupro (Gn 34.2,7; 2 Sm 13.14) ou outras formas de abuso sexual. Segundo, o tipo de atividade sensual que acontecia no ambiente sagrado também sugere as práticas cananeias de fertilidade. Torna-se aparente nesta seção que na canaanização da sociedade israelita, começando no período dos juizes, havia permeado as esferas mais sagradas da vida. O narrador, ao mesmo tempo, estrategicamente alude à piedade de Samuel no meio desses registros desonrosos sobre os filhos de Eli (v. 18, 21b; 3.1), de forma que o leitor seja constantemente relembrado da bondade e fidelidade ao Senhor e o desprezí­ vel fracasso e negligência do sacerdócio da casa de Eli. As alusões favoráveis a Samuel, entretanto, relembram o leitor que uma mudança no status quo reli­ gioso seria iminente. Esses registros intermitentes funcionam para prover uma alternativa para a figura da destruição da casa de Eli. Assim, Samuel, em certo sentido, fica legitimado aos olhos do narrador, enquanto que a casa de Eli é completamente rejeitada.

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Os escândalos e impropriedades sexuais do sacerdócio de Siló se depara­ ram com uma dura palavra de denúncia por num anônimo homem de Deus (v. 27-36). O profeta anônimo entregou um fulminante julgamento sobre a casa de Eli, que culminou com o anúncio de que a linhagem de Eli chegaria a um final abrupto. Do ponto de vista literário e narrativo, a inclusão desta seção é designada a preparar o leitor para a eventual queda da linhagem sacerdotal de Eli. Isto não só fornece uma justificativa teológica para a erradicação do sacer­ dócio da casa de Eli, mas também prepara o caminho para Samuel surgir como o principal profeta/sacerdote da sociedade de Israel. NO TEXTO

1. Os filhos de Eli em ação (2.12-26) ■ 1 2 -2 1 Além de serem chamados de imprestáveis, o texto menciona que os filhos de Eli “não conheciam o Senhor” (v. 12). O termo hebraico usado aqui (yãda ') pode denotar um conhecimento íntimo de um indivíduo ou mesmo de Deus. Fica evidente pelas ações deles, que Hofni e Fineias não conheciam o Senhor e nem o reverenciavam. Os versículos 13-17 dão indícios reais disto, fornecendo uma declaração concisa concernente à atividade inapropriada deles no templo. Esta seção co­ meça com uma nota detalhando o costume aceitável e/ou normal daqueles sa­ cerdotes (v. 13) que ministravam naquele local. De acordo com o código de conduta sacerdotal, quando o adorador chegava ao santuário, a carne que era oferecida seria cozida primeiro, e depois o atendente dos sacerdotes pegava um garfo de três dentes e enfiava na panela, ou na travessa ou no caldeirão em que a carne estava sendo preparada. Nesse momento, tudo o que o garfo pe­ gasse seria considerado como a porção que o sacerdote consumiria. Esta rotina era considerada aceitável, porque enfatizava a função do divino em determinar qual porção caberia aos sacerdotes (“tudo quanto o garfo tirava”, v. 14 ARC), e isto garantia que a gordura ou as porções principais da carne seriam consumi: das como uma oferta a Yahweh primeiro. Os filhos de Eli violaram severamente os elementos sagrados deste proto­ colo, todavia. Em Siló, o atendente, cujo nome não foi mencionado no texto, operava em favor de Hofni e Fineias, literalmente ameaçavam os adoradores para que entregassem a carne. Se o adorador recusasse entregar a carne para o atendente, ele tomaria a carne das mãos do adorador à força.

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A defraudação da carne sacrificial, então, acontecia antes que a gordura e as partes principais do animal pudessem ser completamente cozidas. Além do mais, os sacerdotes escolhiam as melhores partes dos animais para si mesmos para serem assadas e não cozidas. Assim, o animal sacrificial se tornava o ali­ mento pessoal do sacerdote ao invés de um sacrifício reservado a Yahweh. Este comportamento não só era desprezível aos olhos do povo, mas negli­ genciava as práticas aceitáveis segundo a lei sacerdotal (Lv 7.23-25,31; 17.6). Esses atos também apontavam para a avareza fundamental dos sacerdotes, já que demonstravam desprezo pela oferta a Yahweh. Não é surpresa, então, que o narrador indique que as ações desses rapazes constituíam um pecado muito grande à vista do Senhor (v. 17). Em suma, eles estavam tratando com des­ prezo a oferta do Senhor. As ações escandalosas do sacerdócio são imediatamente justapostas com um relatório favorável sobre o jovem Samuel nos versículos 18-21. Enquanto os filhos de Eli desprezavam o sacrifício do Senhor, Samuel, que representava em si mesmo um sacrifício vivo, ministrava fielmente diante do Senhor (v. 18a). O verbo no v. 18a, assim como em 2.1 lb, (mésãrêt), o que indica um serviço contínuo ou ininterrupto ao Senhor. De acordo com o texto, Samuel ministrava vestido de um éfode de linho e uma túnica que sua mãe lhe trouxera (v. 19). O éfode representava uma parte importante do aparato sacerdotal. Este era provavelmente uma saia curta ou um avental em torno da cintura (Mauchline, 1971, p. 52). Embora Samuel não fosse o sacerdote principal de Siló e nós não ouvimos falar de nenhuma função sacerdotal que ele exercesse até este ponto da narrativa, sua função como sacerdote é antecipada pelo éfode que ele usava. Samuel serviria como sacerdote posteriormente, especialmente ao que se relacionava à sua responsabilidade de oferecer sacrifícios (7.9). A impressão favorável de Samuel é solidificada ainda mais com o argumen­ to de encerramento no v. 21b, que afirma que o menino Samuel crescia na presença do Senhor. O texto reforça a dicotomia entre Samuel e os filhos de Eli pelo uso de um trocadilho nesta declaração. O verbo usado para descrever o “crescimento” de Samuel e sua maturação (gãdal) diante de Deus (v.21,26) é semelhante ao adjetivo usado para identificar os pecados dos filhos de Eli no v.17 (gedõlâ ). Então, torna-se evidente que enquanto os filhos de Eli se distan­ ciavam mais de Deus, Samuel permanecia perto/fiel ao Senhor, e crescendo em Sua presença. Aqui o leitor é relembrado mais uma vez da piedade de Samuel diante da contínua decadência sacerdotal.

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I 2 2 - 2 6 A declaração favorável sobre Samuel no versículo 21 é imediata­ mente seguida por esta seção que destaca a prevaricação dos filhos de Eli. De acordo com o texto, Hofni e Finéias se deitavam com as mulheres que ser­ viam junto à entrada da Tenda do Encontro (v.22). Eli ouvia sobre as ações de seus filhos pelos relatórios de todo o Israel, e ele depois condenou a levian­ dade deles como más ações. Ele os advertiu de que os pecados contra outras pessoas poderiam ser mediados, mas se eles pecassem contra Deus, nenhuma outra autoridade maior poderia interceder por eles (Klein, 1983, p. 26). A referência às mulheres que serviam no local aparece para lembrar de Êxodo 38.8, que também alude a mulheres que realizavam funções servis no recinto sagrado (a Tenda do Encontro). Como foi mencionado acima (veja Por trás do texto), a linguagem e a sintaxe usadas para descrever as ações de Hofni e Finéias em relação às mulheres fala da natureza ilegítima desses encontros. A gramática do versículo 22 abre a possibilidade de algumas diferentes opções interpretativas. Primeiro, a linguagem pode indicar que os filhos de Eli forçavam as mulheres, como no caso de abuso sexual ou estupro. Se for este o significado, então isso enfatiza a perversidade dos filhos e sua inclinação para abusar de sua posição e de seu poder. Neste caso, as mulheres seriam vistas como vítimas, não só das intenções lascivas deles, mas da autoridade “eclesiás­ tica” deles também. Segundo, também é possível que a mencionada atividade sexual estivesse associada com as práticas de fertilidade, e, então, as mulheres funcionavam mais como prostitutas cultuais. Se este for o significado inten­ cionado, então, isso forneceria evidência de que a compleição religiosa de Siló adquirira uma aparência cananeia. Tal atividade é semelhante àquela da época de Abias (1 Rs 15.12) ou Josias, quando prostitutos cultuais estavam associa­ dos com os momentos de adoração (2 Rs 23.7). Embora Eli repreendesse seus próprios filhos, o fato permanecia de que ele era velho (noventa e oito anos, 1 Sm 4.15), sua saúde estava fracassando, e fica bem aparente que seus filhos tinham pouca consideração por sua autori­ dade ou suas advertências. É significante que os verbos que se referem às ações dos filhos em 2.12-26 sejam declarativos em aspecto, o que significa que eles denotam que os filhos de Eli repetidamente cometiam essas violações. Então, suas ações no santuário não representavam um acontecimento único, mas um comportamento estabelecido ou rotineiro. A denúncia de Eli quanto a Hofni e Finéias, portanto, teve pouca chance de reformar seus filhos. Mediante seus atos habituais e descarados, não era de surpreender que até o povo de Israel soubesse o que os filhos de Eli estavam fazendo. Esta conjuntura representava um infeliz comentário sobre a casa de Eli e também do clima religioso em Siló.

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Em meio a este tenebroso relatório sobre as condições religiosas da época de Eli e seus filhos, porém, o escritor/narrador inclui outra afirmação positiva sobre Samuel: continuava a crescer, sendo cada vez mais estimado pelo Se­ nhor e pelo povo (2.26). Enquanto os filhos de Eli estavam perdendo a graça de Deus e do povo, Samuel estava adquirindo o apoio de ambos. A nota sobre a piedade de Samuel também soa muito familiar à declaração que Lucas fez concernente a Jesus quando criança: Jesus ia crescendo em sabedoria, estatu­ ra e graça diante de Deus e dos homens. (2.52). A evidência para a conexão entre Samuel e Jesus é ainda mais fortalecida após cuidadosa consideração dos detalhes que envolveram o nascimento deles. Em ambos os casos, uma devo­ ta mulher judia concebeu um filho (especial) por intermédio da intervenção divina (1 Sm 1.19; Lc 1.26-37). Além do mais, ambas as mulheres cantaram um hino de louvor e gratidão exaltando o Deus de Israel que é capaz de exaltar os humildes e humilhar os soberbos (1 Sm 2.1-10; Lc 1.46-55). Tal evidência indica que um dos propósitos teológicos fundamentais de Lucas era enfatizar a função de Jesus como um profeta de Deus (Ehrman, 2008, p. 132). O fato de Lucas ter encontrado em Samuel um modelo com o qual comparar Jesus diz algo importante sobre a posição de Samuel e como ele era percebido na antiga comunidade judaica.

2. A condenação da casa de Eli (2.27-36; 3.1a) ■ 2 7 - 3 6 Logo depois das seções anteriores, um homem de Deus foi a Eli pessoalmente. O termo homem de Deus é essencialmente sinônimo de “pro­ feta” (2 Rs 1.9). Muitos estudiosos estão de acordo que este anúncio é obra dos editores deuteronomistas ou pode até ser uma inserção pós-deuteronomista no texto. Existem algumas razões para esta opinião. Primeiro, o anônimo homem de Deus é sempre entendido como sendo o porta-voz do historiador deutero­ nomista (Gordon, 1986, p. 84). Segundo, a mensagem do profeta fala de even­ tos que foram cumpridos consideravelmente mais tarde na história de Israel, particularmente na época da monarquia davídica. O conteúdo de seu discurso especificamente antecipa o estabelecimento do sacerdócio zadoquita durante a monarquia unida (veja a seguir). A mensagem do homem de Deus é expressa em um formato de discurso tipicamente profético. O discurso começa no versículo 27 com uma fórmula de mensagem padrão, Assim diz o Senhor, e prossegue relembrando a ação de Deus em selecionar a família ancestral de Eli para ser o meu sacerdote, subir

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ao meu altar, queimar incenso e usar um colete sacerdotal na minha pre­ sença (v.28). De acordo com este profeta, Deus havia escolhido uma família para realizar essas funções sacerdotais desde o período do êxodo/deserto. Iro­ nicamente, o texto não registra a ocasião em que Deus escolheu os ancestrais de Eli para esta tarefa. Provavelmente, a família referida no versículo 28 é a dos levitas (Dt 33.8-11) ou a do sacerdócio aarônico (Lv 8.12,30). A maneira como a família de Eli ficou associada à declaração do profeta permanece incerto. O homem de Deus prosseguiu o seu discurso fazendo acusações específi­ cas contra Eli e seus filhos: (1) eles olhavam, com olhos avarentos, os sacrifícios e as ofertas do Senhor, e (2) Eli honrava mais os seus filhos do que a Deus ao tomar as melhores porções das ofertas do povo de Israel. Diferentemente dos versículos 12-17, que apenas acusavam Hofni e Fineias por participarem em abusos sacrificiais, o v.29 estende a acusação, de forma que Eli seja incluído com seus filhos. Depois que o homem de Deus especificou as acusações contra Eli e seus filhos (v.27-29), ele então pronunciou um oráculo de julgamento (v.30-36) que detalhava a punição pelos seus pecados. Em termos do castigo deles, o homem de Deus enfatizou duas coisas: primeiro, a casa de Eli seria cortada (i.e., destruída) permitindo que apenas um membro da família sobre­ vivesse; e, segundo, Deus estabeleceria um sacerdote fiel e lhe edificaria uma casa firme (v.35). Este sacerdote substituiria a casa de Eli, e, de acordo com o homem de Deus, faria aquilo que está de acordo com o coração de Deus e a alma de Deus. Ele ministrará sempre perante o meu rei ungido. A princípio, é tentador acreditar que Samuel cumprira as palavras do profeta, especialmente o versículo 35. Samuel é chamado de profeta fiel {ne ’ êmãn) em 3.20, que é semelhante ao termo usado no versículo 35 para sacerdote fiel {ne' êmãn) e uma casa firme (ne ’ êmãn) foi prometida. Além do mais, Samuel também desempenhou um papel crucial na unção dos primeiros reis de Israel: Saul (9.16; 10.1) e Davi (16.13). Sedutora quanto possa parecer, a distinção entre sacerdote (2.35) e profeta (3.20) não pode ser ignorada. Além disso, o oráculo de julgamento do homem de Deus veio a ser concretizado em dois períodos distintos na história de Israel: primeiro durante a vida de Eli e depois nos dias de Davi e Salomão. A dizimação da casa de Eli ocorreu quando Hofni, Fineias e Eli morreram quando a arca foi capturada em batalha (4.17-18) e novamente quando Saul massacrou os sacerdotes de Nobe (1 Sm 22.11-23). O único sacerdote que sobreviveu ao massacre, Abiatar, tomou-se um dos principais sacerdotes de Davi. Salomão, entretanto, baniu Abiatar para a cidade de Anatote (1 Rs 2.26-27), o que permitiu o sacerdócio zadoquita se tomar a família sacerdotal dominante em Jerusalém. Assim, na época de Salomão, a linhagem zadoquita substituiu a

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linhagem de sacerdotes descendentes da casa de Eli. A anterior se tornou a casa fiel que ministrou diante do rei em Jerusalém, e os descendentes de Zadoque serviram como sacerdotes principais no templo de Jerusalém até a destruição da cidade em 586 a.C. ■ 3 . I a Assim como nas seções anteriores, um relatório desfavorável sobre a casa de Eli é seguido de uma declaração positiva concernente a Samuel: O menino Samuel ministrava perante o Senhor, sob a direção de Eli. O verbo, como em 2.11 e 18, denota um serviço contínuo e fiel ao Senhor no santuário. A constante comparação/contraste com os filhos de Eli e Samuel ajuda a organizar e a concatenar esta unidade do ponto de vista literário. Ao estruturar o material desta forma, a unidade contém um elemento de simetria de forma que três declarações negativas sobre os filhos de Eli são contrabalanceadas por três afirmações positivas concernentes a Samuel. Ia. Filhos de Eli: manipulavam o processo sacrificial (2.12-17) lb. Samuel: crescia na presença do Senhor (2.21b) 2a. Filhos de Eli: faziam sexo/estupravam as mulheres no santuário (2.22­ 25) 2b. Samuel: crescia em graça para com Deus e os homens (2.26) 3a. Filhos de Eli: morreriam pela espada (2.27-36) 3b. Samuel: ministrava diante do Senhor, na presença de Eli (3.1a) Um exame do texto indica que quando esta unidade textual chega ao en­ cerramento, o leitor ou público antecipa a chegada da função profética/sacer­ dotal de Samuel no santuário. Samuel, que tem sido consistentemente fiel a Deus e a Eli, também seria um fiel profeta/sacerdote do povo de Israel. A PARTIR DO TEXTO Nesta unidade vemos uma mensagem importante sobre o relacionamento direto entre a qualidade da liderança religiosa e a eficiência do ministério das instituições religiosas. Ao longo dos Cap. 1—3, o texto indica que a lideran­ ça religiosa de Siló deixou muito a desejar. As descrições de Eli como pai e sacerdote indicam que ele era ineficiente, e seus filhos não honravam a Deus. Contudo, essas eram as pessoas que estavam servindo como ministros de Deus para o povo. A história de Eli e seus filhos lembra-nos poderosamente que só porque uma pessoa trabalha no ministério, isto não garante que esse indivíduo ande bem perto de Deus ou seja sensível ao povo que vem adorar. Embora Eli, por exemplo, servisse como o sacerdote de Siló, ele não conseguia perceber as ações de uma pessoa angustiada que estava orando perante Deus.

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Na história de Eli e seus filhos, até os leigos pareciam ser mais piedosos do que a liderança. Quando a qualidade da liderança está em falta na comunidade da fé, o povo que está nos bancos consegue enxergar a deficiência. Além do mais, se uma liderança fiel está em falta, pode haver muitas atividades aconte­ cendo no recinto sagrado, todavia, Deus não está presente ali. No caso de Siló, todo tipo de atividade religiosa estava acontecendo; entretanto, a palavra de Deus era rara ali (3.1b). Na terminologia religiosa, isto é o mesmo que dizer que a igreja estava morta. Contudo, quando um líder genuíno e piedoso como Samuel entrou em cena, as condições do santuário mudaram dramaticamente. A palavra de Deus, que era rara no ministério de Eli, surgiu novamente para Samuel e para o povo. Além do mais, o povo sabia que Samuel era um verdadei­ ro profeta que os conduzia à verdadeira adoração a Deus. Assim, aprendemos que quando homens e mulheres de Deus estão nos lugares certos na liderança, a comunidade da fé tem o potencial de reviver e florescer.

D. A teofania no sonho de Samuel (3.1b—4.1a) POR TRÁS DO TEXTO Esta unidade geralmente é intitulada “o chamado de Samuel” por diversos comentaristas (Ackroyd, 1971, p. 41; Tsumura, 2007, 171,172). Porém, a tra­ dição concernente a Samuel neste texto não se encaixa nos critérios padrões de uma narrativa típica de chamada. Por exemplo, não há um comissionamento formal de Samuel para a obra, e falta uma expressão de desmerecimento co­ mum às outras chamadas para uma tarefa específica (i.e., Moisés [Êx 3—4], Jeremias [1], Isaías [6]). Certo comentarista sugeriu, todavia, que este texto tem menos a ver com a chamada de Samuel como profeta do que com empossá­ -lo como um profeta por intermédio de quem o Senhor mediaria a Sua palavrâ (Birch, 1998,992). É provavelmente mais apropriado rotular a experiência que Samuel teve em Siló como uma “teofania do sonho” (Gnuse, 1978, 379,380). O sonho que Samuel experimentou basicamente o legitimou como a única fonte da palavra de Deus em Siló. Era por intermédio de Samuel que Deus dirigia a Sua mensagem à casa de Eli e ao povo israelita. Embora o conteúdo da teofania em 1 Sm 3.11-14 pressuponha a mensa­ gem do homem de Deus do capítulo anterior (2.27-36) e reafirme o compro­ misso do Senhor em cumprir a Sua palavra (3.12-13), a mensagem de Deus a Samuel não menciona nada sobre um sobrevivente na casa de Eli, nem inclui

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informação sobre o profeta que substituiria Eli. Ela, entretanto, reitera que a casa de Eli chegaria a um final abrupto. Samuel foi escolhido por Deus para informar a Eli da palavra que lhe fora revelada. Nesse período transicional, todavia, Samuel não havia aprendido como distinguir a voz de Deus. Ironica­ mente, Samuel precisou da ajuda de Eli tanto para reconhecer a voz de Deus quanto para respondê-la. Assim, Samuel aprendeu a se comunicar com Deus com a pessoa que eventualmente ele iria substituir. Significantemente, seria por intermédio de Samuel, e não de Eli, que a palavra do Senhor retornaria ao povo de Israel (3.1b). NO TEXTO

1. A situação religiosa em Siló (3.1b-3) I l b - 3 A unidade anterior terminou com uma observação dizendo que Sa­ muel servia ao Senhor diante de Eli (3.1a). Esta seção abre com uma profunda declaração: naqueles dias raramente o Senhor falava, e as visões não eram freqüentes (v. lb). Como anteriormente, o narrador faz um distinto contraste entre o servo fiel, Samuel, e o sacerdócio e as condições deteriorantes de Siló. A noção de que a palavra do Senhor não estava sendo comunicada ou que as vi­ sões não estavam sendo vistas indica que embora todos os aparatos de adoração (i.e., sacerdotes, sacrifícios, santuário) existissem em Siló, a expressão visível da presença de Deus permanecia distante e infrequente. A palavra de Deus era rara ou precária naquele tempo, insinuando assim que Deus não estava se co­ municando com ou por intermédio do quadro de pessoal do santuário. Acrescentando a este relatório desfavorável sobre a situação religiosa de Siló está uma descrição física do próprio Eli: cujos olhos estavam ficando tão fracos que já não conseguia mais enxergar (v.2). A menção da debilitante saú­ de de Eli também funciona como uma crítica de sua ineficiência como sacerdo­ te. O relatório sobre a diminuta visão de Eli no versículo 2 funciona como uma metáfora indicando a sua capacidade de perceber a palavra de Deus porque ele vivia em trevas (Alter, 1999, p. 16). A referência à visão de Eli é especialmente pertinente ao contexto do “sonho teofânico” de Samuel, que aconteceu du­ rante a noite. Eli não conseguia enxergar na escuridão embora a lâmpada de Deus ainda estivesse acesa (Ex 27.20,21). Semelhantemente, ele não conseguia ver ou reconhecer, a princípio, que Deus estava se comunicando com Samuel durante a noite. Eli somente percebeu que Deus estava se comunicando com Samuel depois que o menino repetidamente interrompeu o cansado sacerdote.

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O local onde Eli e Samuel dormiam no momento da teofanía também é simbólico. Eli estava em seu próprio quarto, e separado da arca. Samuel estava deitado no santuário do Senhor, onde se encontrava a arca de Deus (v.3). Baseado nesta descrição, Samuel deve ter dormido no santo dos santos onde ficava a arca. É digno de nota que Samuel, o profeta/sacerdote designado, permanecia perto da presença de Deus, que era simbolizada pela arca da alian­ ça. Eli, o sacerdote prestes a ser deposto, dormia distante da mesma. A imagem é condizente, considerando que a presença do Senhor não mais habitava em Eli o quanto estava com Samuel. Esta é também a primeira, embora sucinta, referência à arca em Samuel. Fora do versículo 3 e da narrativa da arca (cap. 4—6), a arca não desempenha uma função significante ao longo do restante de 1 Samuel. Embora o texto faça questão de ligar Samuel à arca no versículo 3, ele nunca mais aparece com ela. O escritor/narrador provavelmente fez questão de incluir a arca neste capítulo porque a mesma tinha importantes implicações no sonho teofânico de Samuel.

2. A palavra de Yahweh a Samuel (3.4-9) I 4 -9 O sonho teofânico nos v. 4-9 está construído em torno das repetidas chamadas do Senhor a Samuel. O versículo 4 nota que o Senhor chamou a Samuel e Samuel reagiu correndo para Eli com a resposta: Estou aqui; o se­ nhor me chamou?(v.5). Embora Samuel não reconhecesse a voz de Deus e erroneamente fosse a Eli, a sua resposta (Estou aqui) é notável porque indicava o espírito de um servo disposto. A frase Estou aqui é típica de um servo res­ pondendo ao convite de Deus para uma obra ou teste no AT (Gn 22.1; Is 6.8). A resposta de Eli para Samuel, entretanto, “Não o chamei; volte e deite­ -se” (v.5), é composta de duas ordens e, portanto, sugere que Eli estivesse um pouco agitado porque Samuel o despertara do sono. Como um servo obedien­ te, porém, Samuel foi e se deitou. O Senhor chamou pela terceira vez e Samuel retornou a Eli com a reação típica de um servo. Nesta ocasião, todavia, Eli final­ mente percebeu (v.8) que era o Senhor que chamava a Samuel. O texto fornece uma explicação para a ignorância de Samuel: Samuel ainda não conhecia o Senhor (v.7a), A palavra do Senhor ainda não lhe havia sido revelada (v.7b). Essas declarações indicam que o escritor/narrador era simpatizante da ingenui­ dade de Samuel e assim ignorou sua falta de entendimento nesta questão. Eli, por outro lado, não tinha desculpas. O fato de que ele precisara de três oportu­ nidades para perceber que era Deus quem estava falando com Samuel insinu­

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ava que já havia muito tempo que ele não ouvia a voz de Deus (v.lb). Quando Eli finalmente reconheceu o seu erro, ele instruiu Samuel a dizer as seguintes palavras quando ouvisse a voz novamente: Fala, Senhor, pois o teu servo está ouvindo (v.9). Gastou um tempo, mas Eli finalmente forneceu a informação que colocaria Samuel na posição adequada para ouvir a mensagem de Deus.

3. A mensagem de Yahweh a Samuel (3.10-21; 4.1a) H 1 0 -1 8 Quando Deus chamou novamente (v. 10), Samuel respondeu do modo como Eli instruíra. As instruções de Eli provaram estar corretas, porque quando Samuel recitou as palavras que Eli forneceu (v.9), o Senhor começou a falar diretamente com Samuel. O Senhor especificamente entregou uma men­ sagem sobre a família de Eli. O Senhor reafirmou que o que havia sido dito sobre a casa de Eli anteriormente (2.27-36) seria cumprido e completamente, do início ao fim (3.12). Diferentemente da mensagem do homem de Deus em 2.27-36, o Senhor acusou Eli especificamente e o colocou pessoalmente res­ ponsável pelo fracasso da sua casa em cumprir as responsabilidades sacerdotais. Deus declarou (3.13) que Eli sabia que os seus filhos blasfemavam contra Ele, contudo ele não os repreendia. Por esta falha em reprovar Hofni e Fineias, a casa de Eli seria punida para sempre. O fatalismo desta mensagem é capturado pela menção de que nenhum sacrifício ou nenhuma oferta seria capaz de expiar o pecado deles. A sorte deles havia sido selada, e as advertências de Eli aos seus filhos anteriormente (2.25) se tornaram proféticas. Depois da conclusão da mensagem de Deus, Samuel teve medo de contar a Eli o que havia ouvido, portanto, ele ficou deitado até de manhã (3.15). Eli, todavia, queria saber o que Deus havia dito a Samuel e basicamente o amea­ çou (Deus o castigue, e o faça com muita severidade) se ele omitisse a in­ formação. Samuel obedientemente lhe relatou tudo quanto Deus lhe dissera; ele nada lhe encobriu. Quando Samuel transmitiu a Eli o que Deus havia dito, Eli respondeu com as seguintes palavras: Ele é o Senhor; que faça o que lhe parecer melhor (v. 18). O que mais Eli poderia dizer em resposta à mensagem de Samuel? O Senhor havia falado e o velho sacerdote resignou-se ao fato de que a palavra de Deus seria cumprida, mesmo que isto significasse a destruição de sua própria família. A resposta de Eli à mensagem de Samuel é significante, entretanto, porque ele essencialmente reconheceu a posição de Samuel como profeta. Samuel já não era mais um profeta em treinamento, pois, Deus agora havia falado diretamente com ele.

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Este capítulo marca uma importante etapa na vida e no desenvolvimento de Samuel. Não somente Samuel havia se encontrado com Deus na teofania de um sonho, mas Deus também designou a Samuel a sua primeira tarefa (teste ?) como um profeta recém-nomeado. Segundo todos os relatos, Samuel passou em seu primeiro teste com sucesso. Primeiro, ele não distorceu nem alterou a mensagem que recebeu de Deus. Ele mediou cuidadosamente e precisamen­ te a palavra de Deus a Eli. Segundo, ele entregou fielmente o julgamento do oráculo a Eli, aquele que estaria do lado receptor daquela palavra. Samuel não correu da responsabilidade, embora isso significasse que ele teria de confrontar 0 homem que o criara. Esta não pode ter sido uma tarefa fácil, já que Eli era como uma figura paterna para ele. Terceiro, Samuel também obedeceu a Eli e às suas ordens revelando-o tudo o que Deus havia falado. Desta forma, Samuel provou sua fidelidade em duas frentes: uma, em ouvir e transmitir a mensagem de Deus a Eli, e outra, em continuar a respeitar e a obedecer a Eli. 1 3 . 1 9 —4 . 1 a Esta unidade se encerra com outra declaração favorável concernente a Samuel: o Senhor estava com ele... Todo o Israel, desde Da até Berseba, reconhecia que Samuel estava confirmado como profeta do Senhor (v. 19-20). Aqui novamente, Samuel, o fiel profeta/sacerdote, é com­ parado/contrastado com os filhos de Eli. Enquanto todo o povo de Israel sabia dos atos perversos de Hofni e Finéias (2.22), todo o Israel, desde D ã até Ber­ seba (i.e., o país inteiro), sabia que Samuel era o verdadeiro profeta do Senhor (3.20). A evidência da fiel devoção de Samuel a Deus é também testemunhada nas mudanças nas condições de Siló: O Senhor continuou aparecendo em Siló, onde havia se revelado a Samuel por meio de sua palavra (v.21). Com Samuel como o líder religioso do santuário, a palavra de Deus retornou ao povo. A sintaxe implica que desde que Samuel permanecesse como o principal profeta/sacerdote, Deus continuaria (v a y õ se p h ) a fazer-se conhecido ali. Isto marca uma mudança dramática da condição religiosa que era antes quando Eli e seus filhos comandavam as coisas em Siló. O texto implica que com Samuel na direção, o santuário de Siló estava em boas mãos. A PARTIR DO TEXTO A narrativa sobre Samuel nesta seção destaca as qualidades essenciais de um líder piedoso. Samuel não só desfrutava de um relacionamento íntimo com Deus, pelo qual ele podia ouvir e discernir a Sua voz, mas ele também transmi­ tia fielmente a mensagem que Deus lhe entregava. Samuel desenvolveu a tarefa que lhe fora designada, embora a mesma fosse difícil para ele pessoalmente.

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Não era uma tarefa fácil dizer ao homem que foi o seu mentor, e a sua fi­ gura paterna, que Deus estava para trazer uma destruição sobre a família dele. Deve ter sido especialmente doloroso para Samuel trazer esta dura mensagem ao homem que o criara desde novo. Contudo, Samuel obedeceu à voz de Deus e de Eli, transmitindo-lhe a palavra de Deus. 0 exemplo de Samuel nos ajuda a perceber que um líder piedoso permane­ ce verdadeiro à missão que Deus o designou. O profeta Jeremias, por exemplo, teve de pregar uma mensagem nada popular ao povo de Judá durante os dias de declínio do reino. Embora ele sofresse perseguição e severa resistência, e experimentasse uma dor de cabeça e uma frustração pessoal como resultado, ele, não obstante, cumpriu a chamada de Deus como profeta do povo de Judá. Nós somos relembrados de que como líder, quer seja na igreja ou na indús­ tria, haverá ocasiões em que o desejo de ser popular e benquisto nos tentará a evitarmos confrontos ou a permanecermos firmes face ao antagonismo. Ser um líder significa que o indivíduo precisa tomar decisões difíceis, confrontar o erro, escolher um curso de ação com o qual nem todos concordam, enfrentar ridicularização ou calúnia, experimentar a solidão ou o abandono, encontrar momentos de dúvidas ou insegurança, transmitir uma palavra dura, e até ser mal-entendido. E em momentos como esses que o nosso compromisso com a posição na qual Deus nos colocou ou a causa a qual Deus nos confiou podem ser duramente testadas. O líder bom e fiel, não obstante, busca, acima de tudo, agradar a Deus e adquirir a Sua aprovação, sendo verdadeiro em sua missão, ao invés de buscar conveniência e aprovação dos outros.

E. A captura da arca da aliança (4.1b—7.1) POR TRÁS DO TEXTO 1 Samuel 4.1b—7.1 é inteiramente dedicado ao assunto da arca da aliança. O capítulo quatro reconta a história de como os filisteus capturaram a arca em batalha e a levaram para o território deles. O capítulo cinco registra o sofri­ mento dos filisteus enquanto a arca permanecia na comunidade deles. O capí­ tulo seis cobre o retorno da arca ao território israelense. De acordo com o arranjo canônico do texto, esta unidade logo segue 4.1a e termina em 7.1. Este arranjo, entretanto, levanta questões interessantes e importantes sobre a história composicional deste material. Depois da declaração em 4.1a: E a palavra de Samuel espalhou-se por todo o

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Israel, Samuel, que figurava tão proeminentemente nos capítulos 1—3, essencialmente desaparece da narrativa e não retorna até 7.3 com a frase: Samuel disse a toda a nação de Israel. A notória ausência de Samuel entre esses dois pontos de referência tem provocado muitos estudiosos a concluírem que este material constituía uma tradição independente que foi mais tarde agrupada às tradições de Samuel durante o processo editorial do livro (Miller e Roberts,1977). Há muitas referências sobre a arca nesta unidade, por isso se tornou co­ mum nos círculos escolásticos referir a este material como a narrativa da arca. As tradições da arca, que estão primariamente localizadas nos capítulos 4—6, também aparecem em 2 Samuel 6. Os eruditos têm colocado a composição desta tradição na época de Davi e Salomão a fim de legitimar a monarquia Davídica (veja também a Introdução e o Por trás do texto de 2 Samuel 6.1-23). Enquanto muitos estudiosos têm postulado que a narrativa da arca origi­ nalmente existisse como uma tradição independente, inúmeros outros comen­ taristas têm tentado ver a unidade desses textos baseados em seu relacionamen­ to literário e contextual dentro da estrutura geral de 1 Samuel 1—8. Hamilton, por exemplo, questiona se a ausência de Samuel nas tradições da arca tenha mais significação teológica do que composicional. Ele menciona que “A ausên­ cia e o silêncio de Samuel apontam para a negligência do ministério profético de Israel nesse ponto crítico de sua história tanto por causa do sacerdócio que se corrompia quanto dos filisteus que ameaçavam se tornar os governantes per­ manentes da Palestina” (2004, p. 224). Ele acrescenta que quando os israelitas são pressionados pelos filisteus, eles mandam buscar a arca, mas não Samuel. De modo semelhante, Willis também mostrou que os capítulos 1—7 pos­ suem um fluxo natural: (1) Yahweh prepara um homem para liderar Israel na crise (1 Sm 1.1-4a); (2) a crise é descrita com os filisteus em detalhe (1 Sm 4.1b—7.1); e (3) a maneira bem-sucedida na qual esse homem conduz Israel na crise (1 Sm 7.2-17) (1971, p. 298). Um exame da forma final do texto (o que os eruditos se referem como aná­ lise sincrônica) também indica que as tradições da arca se conectam bem com as tradições de Samuel em uma base temática. Nos capítulos 2—3, o Senhor pronunciou por intermédio do homem de Deus e da teofania de Samuel que os filhos de Eli morreriam e que a sua casa sacerdotal chegaria ao fim. As nar­ rativas da arca cumprem esta função no sentido de que fornecem a informação sobre como Hofni e Fineias, juntamente com Eli, encontraram sua destruição final. É somente depois da narrativa da arca que Samuel emerge como a figura religiosa principal na sociedade israelita e aquele que ungirá o primeiro rei.

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Assim, as tradições da arca servem como um elo adequado entre os capítulos 1—3 e 7 em diante.

1. O cenário da captura da arca (4.1b-4) ■ l b - 4 O texto caminha abruptamente após 4.1 a para relatar que os israe­ litas haviam se reunido para enfrentar os filisteus em batalha (v. lb). Embora nenhuma razão oficial seja citada como a causa desse conflito, pesquisas his­ tóricas e arqueológicas sugerem que os filisteus apresentavam uma crescente ameaça política e militar aos israelitas, começando no século treze a.C., e con­ tinuando até o período dos juizes (Mazar, 1992, 308-328; veja esp. Jz 13— 16). Ao se prepararem para a batalha, os exércitos israelitas se acamparam em um lugar chamado Ebenézer, que é literalmente traduzido como “a rocha da aju­ da”. Este local fica cerca de três quilômetros ao leste de Afeque, onde os filisteus haviam situado suas tropas. Ambos os locais ficavam na parte sul da planície de Saron, a oeste das montanhas de Efraim. Afeque tinha um valor estratégico porque guardava uma importante rota comercial da planície costeira para a região das montanhas. Enquanto a batalha entre os filisteus e israelitas prosseguia, o exército is­ raelita sofreu um terrível retrocesso. O texto registra que quatro mil israelitas foram abatidos na batalha. Quando os exércitos derrotados voltaram para o campo em Ebenézer, os líderes da comunidade perguntaram sobre a derrota (v. 3): Por que o Senhor deixou que os filisteus nos derrotassem? Ironica­ mente, embora os israelitas acampassem num lugar chamado “rocha da aju­ da”, o Senhor proveu pouca assistência na batalha deles contra os filisteus. O questionamento dos anciãos à luz daquela derrota também é significante por­ que pressupõe um envolvimento ativo do Senhor na humilhação das tropas de Israel. Embora nenhuma resposta seja fornecida para a pergunta deles nesses versículos, a dedução lógica a partir desta pergunta retórica é que Israel perdeu por causa da ausência da arca no campo de batalha (Klein, 1983, p. 41). A solução óbvia para o problema, portanto, poderia ser encontrada em pegar a arca e trazê-la para a batalha com eles. Os anciãos prescreveram exata­ mente este curso de ação: Vamos a Siló buscar a arca da aliança do Senhor, para que ele vá conosco e nos salve das mãos de nossos inimigos (v.3). A solicitação de buscar a arca a fim de trazer um sucesso militar, contudo, revela algo da atitude do povo em relação a mesma: ela era vista como garantia de

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sobrevivência e vitória. Em essência, os israelitas tornaram aquilo que Deus havia intencionado como símbolo, em um ídolo (Hamilton, 2004, p. 224). A gramática do versículo 3b (lit., ela nos salvara) mostra que os israelitas coloca­ ram sua confiança no objeto, em vez de pô-la em Deus.

2. A captura da arca (4.5-11) I 5 -1 1 Quando a arca foi trazida para o acampamento, os israelitas respon­ deram com um grande alarido ou grito de guerra, que era típico das guerras santas (Js 6.5; Jz 7.20; 1 Sm 17.20,52; 2 Cr 20.21,22). Este grito foi tão alto que o texto menciona (com hipérbole) que “o chão estremeceu” (v.5). O termo posterior (hüm) denota “entusiasmo”. O mesmo pode ser usado como uma re­ ferência pessoal (1 Rs 1.45; Rt 1.19) ou para a terra de Israel (i.e., “a terra estava ansiosa de entusiasmo”, Mauchline, 1971, p. 70). A figura da terra levada ao estado de comoção é usada em Salmos, por exemplo para expressar a admiração criada pelo advento de Deus (97.3-5; Ackroyd, 1971,49). Como resultado do estrondoso rugido dos israelitas, os filisteus percebe­ ram que a arca de Deus havia chegado ao acampamento. A presença da arca também despertou temor no coração dos filisteus porque eles perceberam que Deus estava no meio dos israelitas. Os filisteus ficaram apreensivos porque ti­ nham ouvido os relatos sobre como Deus havia ferido os egípcios com pragas e pestilências (Ex 7— 12). Quando os filisteus faziam referência às tradições egípcias, eles falavam sobre Deus no plural: Quem nos livrará das mãos des­ ses deuses poderosos ? São os deuses que feriram os egípcios com toda es­ pécie de pragas (v.8). Duas questões importantes surgem em resposta à declaração dos filisteus/ Uma, como os filisteus chegaram a ouvir sobre as tradições das pragas do Egi­ to ? Será que o relato do tratamento de Deus para com os egípcios e os inimi­ gos de Israel no deserto era um conhecimento comum entre o povo que vivia naquela região do mundo? É possível que a reputação de Deus o houvesse precedido do mesmo modo que Raabe sabia do grande poder de Deus quando os espias entraram em Canaã (Js 2.10). Segundo, por que os filisteus se refe­ rem ao Deus de Israel como “deuses”? Os filisteus erroneamente tomaram os israelitas como politeístas. Será que o exemplo dos israelitas em adorarem as deidades da fertilidade cananeia os teria levado a chegar a esta conclusão? Será que a demonstração do poder de Deus no Egito tão aterrorizante que parecia que muitas deidades lutavam em favor dos israelitas ? Embora o texto levante

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questões interessantes nesses pontos, as respostas estão longe de aparecer. A reação inicial dos filisteus quanto à chegada da arca foi de derrota: Ai de nós! A reação deles indicava que eles acreditavam que estavam em perigo. Embora os filisteus exibissem temor quanto ao prospecto de enfrentar os israe­ litas e os seus deuses, a ordem de Sejam fortes (v.9) e lutem como homens foi dada. Os filisteus se prepararam para a batalha porque não queriam se tornar servos dos hebreus. O uso do termo hebreus pelos filisteus é o primeiro caso que ocorre em Samuel. O termo geralmente é pejorativo. Muitos eruditos entendem que o ' mesmo se refira a uma classe de pessoas fora da lei, chamadas hapiru conhe­ cidas por todo Egito e Canaã antigos. Eles eram conhecidos por serem povos nômades que viviam perto das cidades e que às vezes tentavam tomar as terras. Eles eram indivíduos banidos que formavam grupos sociais com pessoas que haviam abandonado a vida urbana, incluindo: escravos, devedores, fugitivos da lei, os desafeiçoados em geral, e mercenários partidários militares (Mendenhall, 1973; Tsumura, 2007, p. 193). O medo dos filisteus de servir aos hebreus sobrepujou o medo que tinham do Deus que eles adoravam. Então, a ordem de ir à batalha foi cumprida e os fi­ listeus novamente feriram com tão grande estrago os israelitas, matando trinta mil homens nessa ocasião e enviando outros para suas tendas (v. 10). Embora a arca acompanhasse os israelitas na batalha, a matança acabou sendo maior no segundo assalto da batalha. Não só os filisteus derrotaram os israelitas, mas eles capturaram a arca e mataram Hofni e Fineias, aos filhos de Eli, nesse processo (v. 11). A palavra do Senhor concernente aos filhos de Eli foi cumprida na bata­ lha contra os filisteus, mas a honra e a reputação do Senhor também sofreram um grande retrocesso com a captura da arca.

3. O relato da captura da arca (4.12-18) I 1 2 -1 7 Logo depois da batalha, um mensageiro da tribo de Benjamim, com as roupas rasgadas e terra sobre a cabeça, veio a Siló a fim de relatar os re­ sultados da batalha. Embora alguns estudiosos tenham identificado esse men­ sageiro como sendo Saul (que também era benjamita), nenhuma evidência conclusiva respalda esta noção. Eli estava ansiosamente sentado em sua cadeira

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à beira da estrada que chegava à cidade porque estava preocupado (lit., “seu coração tremia”, hãrêd) com a situação da arca da aliança (v. 13). É interessante que Eli estava mais preocupado com a arca do que com o bem-estar de seus próprios filhos. Talvez seus filhos já estivessem mortos para ele pessoalmente. Porque Eli era velho, ele não pôde ver o mensageiro chegar à cidade. Eli conseguia ouvir, entretanto, o grande clamor do povo quando descobriram que a arca havia sido perdida na batalha. Perder a arca foi uma pancada terrível, e a palavra que é usada aqui para descrever o lamento do povo no v.13 (zã aq) é uma reação típica daqueles que estão passando por uma ago­ nia severa ou opressão. Esta linguagem é particularmente alusiva à época dos juizes (Jz 3.9, 15; 4.3; 6.7; 10.10) e do período da escravidão no Egito quando Israel sofria maus tratos nas mãos dos estrangeiros (Ex 3.7). Quan­ do Eli ouviu a comoção, ele inquiriu sobre a causa do clamor. O mensageiro lhe contou sobre a derrota de Israel, da morte de seus filhos, e da captura da arca. Quando Eli ouviu sobre a captura da arca, e não da morte de seus filhos, ele caiu de sua cadeira para trás, quebrou o pescoço e morreu. A pa­ lavra de Deus contra Eli e seus filhos se cumpriu com a derrota dos exércitos israelitas e a captura da arca. Deve-se ponderar, entretanto, se o Senhor tinha um propósito maior em mente do que o sucesso militar de Israel ou a proteção de Sua própria reputa­ ção. Será que Deus estava mais preocupado em purificar o sacerdócio e prepa­ rar o caminho para Samuel se tornar o sacerdote principal de Siló do que com a segurança de Israel ? Embora esta pergunta ainda não seja respondida, à medida que a narrativa continua avançando, a resposta parece ser afirmativa. H 18 Com a morte de Eli, o narrador faz dois comentários sobre o sacerdote: era velho e pesado e Ele liderou Israel durante quarenta anos. Nas conside­ rações finais desta unidade, não podemos deixar de perceber o fato de que o escritor/narrador dá uma última espetada em Eli antes de prosseguir. A palavra usada para descrever o peso de Eli (kãbêcf) também está relacionada com a palavra traduzida como “honra” ou “glória”. O uso desta palavra recorda direta­ mente a acusação do homem de Deus em 2.29, que acusou Eli de “honrar” seus filhos mais do que a Deus ao tomar as melhores partes do sacrifício. O escritor/ narrador então liga o peso de Eli com os seus próprios erros, indicando que ele engordou com as porções das ofertas que deveriam ser reservadas ao Senhor (2.29). Não se sabe porque o escritor/narrador deste texto incorpora Eli na su­

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cessão de juizes que julgaram israel entre Josué e Saul (Jz 10.2-3; 12.7,9,11,14; 16.31; 1 Sm 7.6). Eli basicamente agia como um sacerdote, e fica bem óbvio no texto que ele não “resgatou” os israelitas da agressão dos filisteus. Pode ser que 0 escritor/narrador incluísse o elemento do tempo para apoiar a base cronoló­ gica que ele usou para organizar e estruturar a história de Israel (Noth, 1991, p. 39,40).

4. O relato do nascimento de uma criança (4.19-22) , I 1 9 -2 2 Na seqüência da morte de Eli, o capítulo 4 termina com o relato do nascimento do neto de Eli. A chocante notícia da captura da arca e o relato da morte de seu marido e do sogro fez com que a mulher de Fineias, que esta­ va grávida, entrasse em trabalho de parto. A mulher, que apenas é conhecida como a nora de Eli e esposa de Fineias, agachou-se ao dar à luz a criança, uma cena reminiscente das mulheres israelitas dando à luz sentadas em banquinhos no Egito (Êx 1.16). Em meio a sua agonia, um filho nasceu, mas quando rece­ beu a notícia do nascimento dele, ela permaneceu em silêncio. As únicas pa­ lavras que ela pôde pronunciar ao dar nome ao menino foi Icabode (v.21), que em hebraico é traduzido como “a glória se foi de Israel?” Este relato de nascimento é semelhante ao nascimento de Benoni, mais tarde chamado de Benjamim, cujo nome significava o sofrimento de Rebeca durante o parto (Gn 35.17,18). O nome do menino é apropriado, pois simboliza o fato de que a glória do Senhor desaparecera de Israel quando os filisteus tomaram a arca na batalha (1 Sm 4.22). A glória de Deus não se afastou de Israel quando Eli ou seus filhos morreram. A perda da arca também insinuava a derrota (temporá­ ria) dos israelitas pelas mãos dos filisteus.

5. A arca é levada ao cativeiro pelos filisteus (5.1-12) 1 1-5 Após a derrota dos exércitos israelitas, os filisteus transportaram a arca para o território natal deles. Os filisteus primeiro levaram a arca para a antiga cidade de Asdode e a colocaram no templo deles, perto da imagem de seu deus principal, Dagom (v.2). Dagom era uma antiga deidade da fertilidade confir­ mada nas cidades de Ebla, Mari, e Ugarite. Na literatura ugarítica, Dagom era conhecido como o pai de Baal, e seu nome está ligado linguisticamente às pala­ vras semíticas nordestinas relativas a grão, nuvem, ou chuva. Além de Asdode, os filisteus haviam construído um templo para Dagom em Gaza (Jz 16.23)

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enquanto que outras cidades israelitas parecem ter tido algumas afiliações com este deus também (Js 15.41; 19.27). Ao colocarem a arca próximo à imagem de Dagom, os filisteus parecem ter feito algumas declarações importantes: um, eles honraram ao Senhor por ter abandonado o Seu povo; dois, eles reconheceram o poder e a superioridade do próprio deus deles (Miller e Roberts, 1977). Contudo, quando os asdoditas retornaram ao templo pela manhã, eles perceberam que Dagom estava pros­ trado diante da arca, Dagom, essencialmente, estava honrando ao Senhor, o Deus de Israel, e reconhecia a superioridade do poder do Senhor sobre o seu próprio. A linguagem empregada no v. 4a (lá estava Dagom caído, rosto em terra, diante da arca do Senhor!) indica subserviência perante uma presença superior. Em essência, a prostração de Dagom diante da arca demonstrava um ato de adoração. Os filisteus voltaram a imagem para o seu lugar de origem, aparentemente pensando que o ídolo, de alguma forma, havia caído por engano. A grande sur­ presa deles veio, entretanto, na manhã seguinte quando retornaram ao templo e viram que o ídolo jazia com o rosto prostrado diante da arca pela segunda vez. Além disso, a cabeça de Dagom e as palmas de suas duas mãos haviam sido cortadas e jaziam na soleira da porta do templo (v.4). A única coisa que permanecia intacta era o “torso” ou “tronco” de Dagom (baseado na leitura da LXX). O fato de que este acontecimento se repetisse em duas ocasiões indica­ va que aquilo não era um mero acidente. Em vez disso, a arca, que representava a presença do Senhor, continha um poder divino superior ao deus Dagom dos filisteus. A cena de Dagom prostrado diante do Senhor, sem a cabeça e as mãos, continuou a ser lembrada pela tradição como uma etiologia. Isto forneceu o raciocínio de que os sacerdotes de Dagom ou qualquer pessoa que entrasse no, templo não pisaria na soleira da porta (v.5). ■ 6 -1 2 A mão do Senhor também foi pesada sobre o povo de Asdode e os devastou. Segundo o vesículo 6, o Senhor feriu Asdode e seus arredores com tumores. A palavra “tumores” em hebraico {ba 'epõlím) é difícil de ser tra­ duzida. Alguns eruditos entendem que ela se refira ao inchaço das glândulas linfáticas, especialmente no sovaco e nas virilhas, que era característico da pes­ te bubônica. Outros entendem que esta palavra signifique bolhas ou abcessos no ânus. Os escribas massoréticos responsáveis pelo texto hebraico têm manti­ do uma leitura que pode também ser traduzida como “hemorroidas”. Quer seja como definamos a calamidade da experiência filisteia, a mesma foi terrivelmente desagradável e humilhante (embora se fossem hemorroidas, isso seria cômico

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para a platéia israelita), e os homens da cidade ficaram com medo da terrível manifestação do poder do Senhor. Os homens da cidade também disseram que a arca do Senhor não poderia ficar com eles. Reunindo os outros líderes filis­ teus, eles inquiriram sobre o que deveriam fazer com a arca. Os líderes de Gate, outra cidade filisteia importante, sugeriram que a arca fosse levada para a cidade deles (v.8). No entanto, quando a arca foi transpor­ tada para Gate, a mão do Senhor foi pesada sobre o povo ali, e os cidadãos de Gate foram afligidos com os mesmos tumores/pragas. A arca foi então enviada para a cidade filisteia de Ecrom, e quando a mesma foi levada à cidade, os de Ecrom (v. 10) clamaram e dizendo: Eles trouxeram a arca do deus de Israel para cá a fim de matar a nós e a nosso povo. A reação do povo de Ecrom in­ dica que eles não requisitaram o objeto sagrado, pois estavam cônscios de seu poder devastador. Como resultado, os líderes filisteus se reuniram com a ins­ trução de enviar a arca de volta ao seu local original, porque ela havia causado um pânico mortal entre o povo. Como as outras cidades filisteias onde a mão de Deus havia pesado sobre o povo, os cidadãos de Ecrom foram feridos com a praga/tumores. O texto nota que o clamor (sav *at) da cidade chegou até ao céu (v. 12). Torna-se evidente na leitura deste capítulo que o Senhor feriu os filisteus e as suas cidades em três ocasiões diferentes. Como resultado, os filisteus, e não os israelitas, clamaram porque estavam debaixo do controle de um poder estranho. Este cenário representa uma dramática reversão no ciclo de opressão em Juizes, por exemplo, onde os israelitas clamavam a Deus porque haviam sido derrotados pelos seus inimigos. Os filisteus podem ter capturado a arca, mas eles não capturaram o Senhor. O Senhor demonstrou o seu domínio sobre o deus filisteu Dagom, um tanto do mesmo modo em que o Senhor mostrou sua superioridade sobre os deuses/deusas do Egito nas narrativas das pragas de Êxodo (cap. 7— 12). A capacidade do Senhor de humilhar os filisteus (bem como os outros inimigos de Israel) também seria uma importante razão para criticar o pedido do povo por um rei posteriormente. A capacidade de Deus livrar Israel repetidamente de seus inimigos no passado tornou a requisição do povo por um rei muito mais censurável (12.1-19).

6. Os filisteus preparam-se para transportar a arca (6.1-9) H 1 Sem muita certeza sobre o que fazer com o objeto de culto dos israelitas, a arca basicamente permaneceu em um campo, longe de qualquer centro popula­ cional por sete meses. O número sete é significante porque implica que o sofri­ mento dos filisteus havia alcançado o limite máximo (Tsumura, 2007, p. 213).

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H 2 Durante esse ínterim, os filisteus reuniram os seus sacerdotes e advinhos buscando soluções sobre como deveriam enviá-la de volta ao seu lugar. A re­ ferência ao seu lugar é incerta. Será que isto se refere a Israel em geral ou ao santuário de Siló especificamente ? Já que a arca eventualmente retornou para Bete-Semes (v. 12), sugere-se a referência anterior. H 3 Os sacerdotes e adivinhos filisteus forneceram uma solução na qual ad­ vertiram o povo a não enviá-la de volta vazia. Ao contrário, eles instruíram os filisteus a devolverem a arca de modo a reconhecerem sua própria culpa em cap­ turá-la em primeiro lugar. Assim, o retorno da arca neste caso funcionaria como um tipo de oferta pelo erro. Os filisteus acreditavam que ao enviarem a arca de volta para casa, eles seriam curados e receberiam o perdão pelas suas ações. A terminologia para retorno (shüv) nos versículos 3,4,8 e 17 está no ramo causativo em hebraico, onde ele também é usado em conjunção com o termo referente a oferta pelo erro (*ãshãm ). Por causada construção sintática, o texto poderia ser lido como: “retornar, restaurar, ou fazer uma restituição” (como em Nm 5.7-8; 18.9). A gramática indica, portanto, que os filisteus tinham a inten­ ção de fazer uma restituição por terem tomado a arca dos israelitas. I 4 - 6 A oferta pelo erro, em si, consistia em Cinco tumores de ouro e cinco ratos de ouro (v.4). O número cinco é significante porque havia cinco líderes filisteus que governavam as cinco maiores cidades filisteias (também conhe­ cidas como Pentápolis). Os tumores de ouro, representando a praga, tinham a intenção de livrar a terra da contaminação, e os cinco ratos representavam os transmissores da praga que perseguiam o povo. Este gesto seria entendido como dando glória ao Deus de Israel (v.5) e os sacerdotes os advertiram para que não endurecessem o coração recusando reconhecer o Senhor como os egíp­ cios haviam feito no passado (v.6). Nos versículos 5 e 6 um trocadilho é utiliza­ do para enfatizar esta instrução indicando que o perdão surgiria ao darem “gló­ ria” (kãbõd) a Deus e não “endurecendo” (tekabdõ) o coração. Esta linguagem relembra diretamente a teimosia do coração de faraó quando ele se recusou a deixar os israelitas saírem do Egito (Êx 7.3,13; 8.15,32). Como resultado dé sua obstinação, os egípcios enfrentaram terríveis conseqüências nas mãos de Deus. O mesmo destino aguardava os filisteus se eles seguissem este exemplo. Os versículos 5 e 6 também se ligam às declarações em 5.6 onde a mão do Senhor foi “pesada” (vatikbad ), e 5.11 onde a mão de Deus foi “muito pesada” {kabdâ m êõd). O peso da mão de Deus sobre os filisteus os levou à posição em que estavam prontos em 6.5 para dar “glória” {kãbõd) a Deus.

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I 7 -9 Esses versículos suplementam a pergunta dos filisteus (v. 2) sobre como eles deveriam enviar a arca de volta à Israel. Além das hemorroidas e ratos de ouro, os oficiais ordenaram ao povo que pegasse uma carroça nova, com duas vacas que deram cria, que não tivessem usado o jugo (v. 7). O fato de que o carro e as vacas não tivessem sido dedicados ao uso secular indicavam que os mesmos se qualificavam para aquele ritual. Segundo as instruções dadas, as vacas de cria puxariam o carro que continha a arca, e os itens de ouro seriam colocados em uma caixa ou sacola separada perto da arca. Os filisteus fizeram um grande esforço para não ofenderem ao Senhor. Os filisteus então enviaram a arca e a deixaram seguir o seu caminho (v. 8). O propósito deste ritual, que foi baseado em uma adivinhação, era deter­ minar se as pragas tinham vindo pela mão do Senhor ou se haviam acontecido por coincidência. Na mente dos líderes, se as vacas levassem a arca diretamente para o território de Israel (i.e. Betes-Semes), então os filisteus saberiam que o Senhor havia trazido as pragas sobre o seu povo e sua terra. Os filisteus garan­ tiram a precisão desse teste tornando a tentativa mais severa ao usar animais que não estavam acostumados a puxar um carro. Além disso, eles enviaram os filhotes das vacas de cria para longe delas, para que não as distraíssem (v. 7). Todas esses cuidadosos preparativos garantiam que a adivinhação na qual se engajaram fosse determinar precisamente a origem das pragas.

7. A arca retorna a Bete-Semes (6.10—7.1) H 1 0 -1 8 Os filisteus fizeram como foram ordenados. Eles acoplaram as duas vacas de cria ao carro, colocaram a arca e a caixa/sacola de itens perto dela, e a enviaram ao seu caminho. Segundo o texto, os animais foram direto na estrada em direção a Bete-Semes, sem se virarem para nem para a direita nem para a esquerda (v. 12). Esta frase é significante na H.D. porque implica uma total obediência à vontade do Senhor (Js 1.7; 23.6). Desta forma, até as vacas de cria pareciam estar sob o controle da mão do Senhor. Os filisteus seguiram atrás do carro até a fronteira da cidade de Bete-Semes a fim de ver o que aconteceria. Compreensivelmente, os filisteus ficaram felizes de ver que a arca chegara à cidade, revelando assim a origem da praga. Os filisteus também ficaram aliviados de saber que a praga não visitaria a cidade deles novamente. Quando o carro se aproximou da cidade, os cidadãos de Bete-Semes estavam colhendo o trigo quando olharam e viram a arca se aproximando (v. 13). Tradicionalmente, a época da colheita de trigo ocorria

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durante os meses de maio e junho, e o momento daquele evento garantiria que um grande número de pessoas testemunharia a sua chegada. Os cidadãos de Bete-Semes se alegraram quando viram a arca, semelhante a uma comemoração do retorno ao lar (v. 13). A arca finalmente veio repousar em um campo chamado Josué (v. 14). Em uma virada irônica, a arca que havia ficado em um campo filisteu por sete meses chegou em casa e veio repousar em um campo israelita. A volta da arca para este campo em particular foi sugestiva por duas razões. Primeiro, ali estava outro Josué que está conectado a alguém ou algo que chegava à terra de Canaã após uma extensa ausência (Js 6— 12). Segundo, a jornada da arca desde as terras filisteias de volta à Israel significava a plenitude de seu retorno. O retorno da arca indicava que a presença do Senhor residia em Israel novamente, revertendo, assim, a observação da nora de Eli quando a arca fora levada sob custódia dos filisteus (1 Sm 4.21). Alegrando-se pela chegada da arca, os moradores de Bete-Semes utiliza­ ram uma rocha gigantesca do campo como um altar improvisado. Sobre aquela rocha, os moradores cortaram a madeira do carro e ofereceram as vacas como uma oferta queimada ( c olâ) ao Senhor (v. 15). Interessantemente, os filisteus enviaram as vacas, a arca, e os tumores e ratos como uma oferta de restituição/ reparo. Na terra de Israel, entretanto, o povo de Bete-Semes a transformou em uma oferta queimada. O sacrifício era bem provavelmente voltado a uma ofer­ ta de gratidão comemorando o retorno da arca e da presença do Senhor ao ter­ ritório. Os levitas são brevemente mencionados no v. 15a como participantes deste sacrifício, mas este versículo interrompe o fluxo da riarrativa entre o v. 14 e v.l5b. Uma leitura crítica sugere que a nota sobre os levitas seja uma inserção posterior ao texto. Isto é compreensível considerando-se que a ministração de sacrifícios se tornou a maior ou única responsabilidade do sacerdócio na his­ tória subsequente. H 6 .1 9 —7 .1 Embora o povo de Bete-Semes celebrasse a chegada da arca, o texto hebraico reconta que “os homens... olharam para dentro da arca do Senhor, até ferir do povo cinqüenta mil e setenta homens” (1 Sm 6.19 ARC). A linguagem aqui é confusa em relação ao número de pessoas mortas. A razão pela qual o número 50 mil foi incluído permanece inexplicável. A NVI, por exemplo, simplesmente diz setenta deles. Isto representa uma melhor leitura à luz do fato de que 50 mil parece ser um número irrealisticamente grande. Além disso, a versão da LXX afirma que osfilhos de Jeconias (em vez de os bomensy no TM) foram mortos porque não se alegraram com o povo de Bete-Semes na chegada da arca. Esta é uma leitura que é conservada em algumas traduções mo­ dernas (NRSV), enquanto que outras são fiéis ao texto hebraico (NIV; JPS).

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Então, de acordo com o texto hebraico, alguns homens foram mortos porque chegaram muito perto da arca, enquanto que na LX X os filhos de Jeconias foram mortos porque não se alegraram com o retorno da mesma. Em qualquer dos dois casos, a ação punitiva do Senhor em relação a esses indivíduos levou o povo de Bete-Semes a requisitar que o povo de Quiriate-Jearim levasse a arca para si (v.21). Quiriate-Jearim estava localizada perto de Bete-Semes (Js 15.9 seguintes) em território cananeu. A cidade parecia ter alguma associação com a adoração a Baal, já que também era conhecida como Baalá (Js 15.9), Quiriate-Baal (Js 15.60), e Baalá de Judá (2 Sm 6.2). Este fato torna o pedido do povo de Bete-Semes de transportarem a arca para lá muito curioso. Era ali que a arca ^permaneceria, entretanto, até que Davi retornasse a arca a Jerusalém (2 Sm 6). A PARTIR DO TEXTO 1. Uma das lições que aprendemos ao estudarmos a narrativa da arca se relaciona à interação entre os acontecimentos humanos e a providência de Deus. Embora os israelitas possam não ter entendido como a captura da arca da aliança fosse beneficiá-los, Deus, não obstante, estava realizando algo muito importante no meio de Israel. A providência de Deus está por trás deste texto, de forma que todos os eventos acontecem estejam debaixo do Seu controle. Foi por meio da captura da arca da aliança que Deus conseguiu cumprir a pa­ lavra contra os filhos de Eli, purificando assim a cultura religiosa da influência corrupta do sacerdócio. Essas mudanças de eventos finalmente abriram a porta para que Samuel se tornasse o fiel profeta/sacerdote de Deus para o Seu povo. Para os israelitas, entretanto, pode ter parecido que Deus estivesse ativa­ mente trabalhando contra eles, já que permaneceu silencioso quando Israel foi derrotado pelos filisteus e o maior símbolo religioso deles foi tomado cativo. Nesse processo, Deus pode ter parecido não somente distante dos israelitas, mas até impotente contra os deuses dos filisteus. Isto levanta uma interessante questão teológica sobre a natureza de Deus: será que Deus permite que o Seu caráter ou sua reputação sejam supostamente humilhados por causa de um propósito teológico maior? Se revisarmos o con­ teúdo da história de Israel e a vida de Jesus, a resposta é sim. No exílio babilônico, a maior de todas as catástrofes do passado de Israel, as mesmas questões foram levantadas pela comunidade da fé. Ao ler a literatura dos Salmos, por exemplo, vemos que surgiam reclamações de que Deus estava sendo negligen­ te, ou dormindo, e que Deus tinha sido zombado pelos exércitos babilônios e deuses estrangeiros. Porém, por meio do exílio, Deus estava purificando a

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comunidade da fé, propiciando os pecados da comunidade de Israel, e prepa­ rando a comunidade para ser restaurada para um novo e mais íntimo tipo de relacionamento. Quando Jesus estava pendurado na cruz e sofrendo a ignomínia da per­ seguição, humilhação e do abandono, Deus pode também ter parecido der­ rotado. Não obstante, era por meio da humilhação da cruz que Deus estava preparando o caminho para o mundo receber a salvação por meio da obra de Cristo. Assim, Deus tem permitido a si mesmo ser aparentemente humilhado quando existe um maior propósito salvífico em jogo. 2. A narrativa da arca também testifica da grandeza de Deus. Enquanto a arca viajava pelo país filisteu, o poder de Deus estava sendo mostrado em cada território onde a arca aparecia. Deus demonstrou o Seu poder e autoridade ao humilhar Dagom, o deus dos filisteus, e ao ferir o povo filisteu com pragas. Como resultado desses acontecimentos, até os filisteus vieram a reconhecer e a respeitar o maravilhoso poder do Deus de Israel. Isto é também alusivo às tradições do Êxodo, nas quais o poder dele esteve em completa manifestação para que os egípcios e israelitas vissem. As tradições do êxodo não somente serviram como uma crença fundamental para a tradição da aliança de Israel, mas até os egípcios reconheceram a maravilhosa mão de Deus naqueles acon­ tecimentos. A narrativa da arca nos ensina que quando Ele está trabalhando em nosso mundo e realizando grandes feitos na sociedade e na cultura, Ele também está revelando o Seu caráter de uma maneira que até aqueles que não o conhecem, ou até se opõem a Ele, podem aprender algo sobre a Sua natureza e vir a reverenciá-lo. E, finalmente, Deus está trabalhando nos acontecimentos da história humana embora nem sempre possamos detectar, e Ele é glorificado nos eventos que acontecem sob o Seu cuidado providencial. , 3. As tradições da arca também falam da atitude de Israel para com Deus. A narrativa da arca sugere que os israelitas começaram a deixar de dar valor à presença de Deus ou a tratar a arca como um talismã. Basicamente, os israelitas criam que Deus estivesse à disposição deles e a toda hora que desejassem uma ajuda ou uma vitória, tudo o que tinham de fazer era carregar a arca para a bata­ lha com eles. Os israelitas basicamente tratavam a arca como a um amuleto de sorte, garantindo que Deus os abençoaria em seus empreendimentos. Quando os israelitas foram derrotados pelos filisteus, eles falsamente creram que a der­ rota viera porque eles não trouxeram a arca à batalha. Por meio da derrota de Israel, Deus mostrou ao povo que estava no controle da história e que Ele não seria manipulado por este tipo de pensamento.

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Esta atitude pode infiltrar-se na mente dos crentes modernos também. Frequentemente deixamos de dar valor a Deus quando as coisas estão indo bem em nossa vida, e somente buscamos a presença dele na hora da catástrofe ou quando queremos uma bênção. Esta atitude indica que o nosso relaciona­ mento com Deus não está baseado no amor ou na reverência a Ele, mas é de natureza utilitária. Nós queremos Deus quando é conveniente para nós. Desta forma distorcemos e pervertemos a ordem apropriada ou a natureza do relacio­ namento entre Deus e nós. Em vez de estarmos no papel de servos diante dele, basicamente nós queremos que Deus sirva aos nossos propósitos. Para muitas pessoas, portanto, a fé é para servir a si mesmas e, por fim, é narcisista por hatureza. Este tipo de relacionamento não está baseado no amor ou respeito genuíno, mas somente na ambição egoísta.

F. Samuel como juiz (7.2-17) POR TRÁS DO TEXTO O livro de 1 Samuel 7.2 segue diretamente o final da tradição da arca em 7.1. Em 7.2-17, Samuel reaparece como a figura central da história de Israel. Com Eli e seus filhos mortos, Samuel se destaca como o indisputável líder re­ ligioso da comunidade. Como já foi mencionado na seção anterior, Samuel pode ter estado ausente das tradições da arca porque elas já eram uma unidade autocontida quando foram incorporadas na H.D. Contudo, uma leitura sincrônica do texto pode também levantar algumas outras questões concernentes a ausência de Samuel. Por exemplo, será que o povo não acreditava que Samuel era um líder militar, e, portanto, não era capaz de conduzi-los em batalha? Será que eles não o enxergariam como o principal líder religioso desde que Eli e seus filhos estivessem vivos, e, portanto, não o convidaram para acompanhar a arca? É adequado também perguntar, será que os filisteus derrotaram os israe­ litas porque Samuel não os estava conduzindo em batalha? Essas questões são interessantes e podem prover dicas alternativas quanto ao porquê Samuel não esteve presente em 4.1a—7.1. A realidade é, entretanto, que nós não temos informações suficientes para responder essas perguntas com certo senso de autoridade. Em 7.2-17, não fica claro se Samuel representava um líder legítimo que o povo procurava depois que foi derrotado pelos filisteus e o povo de Bete-Semes foi ferido pela praga.

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Em 6.20, o povo de Bete-Semes fez esta importante indagação: Quem pode­ ria estar em pé perante o Senhor? Esta pergunta, basicamente, é respondida no capítulo 7: Samuel é digno de estar perante o Senhor. Samuel não só surge como o líder de Deus aprovado pelo povo, mas também surge como um media­ dor eficiente da aliança do Senhor e líder da guerra santa (v.8). NO TEXTO

1. Samuel preside sobre o arrependimento de Israel (7.2-4) ■ 2 - 4 Esta seção inicia com a declaração (v.2) A arca permaneceu em Quiriate-Jearim muito tempo; foram vinte anos. O número de anos relatados aqui é difícil de correlacionar com os 480 anos dados para o tempo do êxodo até que Salomão começasse a construir o templo (1 Rs 6.1). Klein nota que, segundo esse esquema, 45 anos se passaram entre o êxodo e a conquista, 253 anos são alocados para a opressão e os salvadores do Israel pré-monárquico, 136 anos são alocados para os juizes menores, e 46 anos para os reis até o quar­ to ano de Salomão (1983, 65). A afirmação no versículo 1 mais provavelmente se refere ao tempo decorrido do retorno da arca da Filístia até a batalha que é relatada em 7.7-11 (Caird, 1953, p. 914). Os vinte anos, então, devem indicar um período de tempo em que os filisteus continuaram a oprimir os israelitas. O tema da opressão estrangeira é muito característico do ciclo encontrado na H.D.: pecado-opressão-clamor ao Senhor-livramento (Klein, 1983, p. 66). Neste contexto, entretanto, Israel não clamou como nas vezes anteriores, mas o versículo 2b nota que ela buscava o Senhor com súplicas. A linguagem aqui é difícil de se traduzir e alguns intérpretes têm lhe dado o significado de “sus­ piraram pelo Senhor” (JPS) ou “lamentaram após o Senhor” (NRSV). Ser,á que isto significa que eles ficaram de luto pelo Senhor porque a arca estava em Quiriate-Jearim e eles pensaram que o Senhor estava morto (Eslinger, 1985, p. 230)? Será que eles ficaram de luto porque sofreram debaixo da opressão filisteia? Ou será que isto simplesmente significa que os israelitas demonstra­ ram um senso de contrição e desejo de serem reconciliados com o Senhor? O contexto ao redor parece indicar que o povo demonstrou um sentimento de remorso por suas ações - um desejo de arrependimento. A exortação de Samuel ao povo no versículo seguinte também aponta nesta direção. No versículo 3, Samuel usa uma frase que ocorre com frequência ao longo da H.D. como uma pré-condição para a restauração: Se vocês querem voltar-se para o Senhor de todo o coração. A frase “voltar-se para o

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Senhor de todo o coração” é um princípio fundamental do querigma da H.D. (2 Rs 23.25) e é encontrado nos profetas como Jeremias (3.10; 24.7; 29.13). A chamada de Samuel ao arrependimento continha alguns requerimentos específicos: livrem-se então dos deuses estrangeiros e das imagens de Astarote, consagrem-se ao Senhor e prestem culto somente a ele (v. 3). O teor da mensagem de Samuel exigia uma adoração exclusiva ao Senhor como parte essencial do arrependimento. Esta mensagem figurou proeminentemente no decorrer da história (Js 24.23; Jz 10.16) e insinuava um retorno à completa obediência e fidelidade ao Senhor. O nome Astarote é o plural de Astarte, uma deusa cananeia do amor e da guerra que estava intimamente associada a Baal. O nome dela é geralmente vocalizado no AT de forma que soe como a palavra “vergonha” (bosheth) em hebraico (i.e., Is-Bosete). A mensagem de Samuel era também condicional em natureza; se os isra­ elitas retornassem ao Senhor, então o Senhor livraria os israelitas das mãos dos filisteus (l Sm 7.3). Aqui o arrependimento e a vitória militar estavam de mãos dadas. A palavra de instrução de Samuel dizia que a razão pela qual Israel havia sido derrotado pelos filisteus, e continuava sendo atormentado por eles, era porque não estavam completamente dedicados ao Senhor. Até mesmo o transporte da arca para a batalha não garantiria a vitória desde que eles fossem desobedientes. Os eventos de 4.1-10 destacavam esta importante lição. Samuel enfatizou que era o relacionamento dos israelitas com Deus que mais tinha importância. Quando o povo ouviu essas palavras, eles “tiraram dentre si os baalins e os astarotes e serviram só ao Senhor” (1 Sm 7.4 ARC). Baal, como Astarote, está na forma plural aqui. Baal era a principal deidade da fertilidade da reli­ gião cananeia. Geralmente ilustrado com um raio na mão, Baal era responsável por fazer a chuva e trazer a fertilidade sobre a terra. Uma fonte significativa de tentação para os israelitas, o povo frequentemente se voltava para os deuses/ deusas cananeus para garantir a fertilidade de lavouras, rebanhos e família.

2. A assembleia de Mispá e a derrota dos filisteus (7.5-14) H 5 - 6 Samuel direcionou o povo a reunir-se na cidade de Mispá (v.5). Este é o local onde outras cerimônias religiosas haviam acontecido anteriormente (Jz 20.1,3; 21.1,5,8), e seria o local onde o povo escolheria Saul como rei (1 Sm 10.17). Siló não é mencionada como o ponto de encontro porque provavelmente já teria sido destruída pelos filisteus. Embora Mispá possa ser traduzido como “a sentinela”, a real identificação da cidade permanece

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um mistério. Ela é geralmente identificada com Tell en-Nasbeh a 12 Km ao norte de Jerusalém no território tribal de Benjamim (Gordon, 1986, p. 106). Outros têm sugerido que Mispá deve ser identificada com Nebi Samwil, que está localizada a sete quilômetros de Jerusalém (Klein, 1983, p. 66). Mais importante que sua localização exata, porém, Mispá se tornou associada ao local de arrependimento onde Samuel intercedeu em favor do povo. Parte da cerimônia que aconteceu em Mispá incluía um ritual de água, no qual tiraram água e a derramaram perante o Senhor (v.6). O AT não registra um ritual de água como este, mas alguns sugerem que isto pode estar relacionado com a Festa dos Tabernáculos do outono. Esta interpretação per­ manece especulativa. Tanto o derramamento de água quanto o jejum parece indicar tristeza e arrependimento, entretanto. O ato de contrição dos israelitas foi também seguido de uma confissão na qual eles reconheceram que haviam pecado perante o Senhor (Temos pecado contra o Senhor). Assim como no livro de Juizes, a confissão de Israel serviu como um prelúdio para o livramento. Aqui, o ato de intercessão de Samuel é também interpretado como uma de suas funções como juiz de Israel (v.6). I 7 - 1 1 0 retorno de Israel ao Senhor tinha implicações para a situação po­ lítica, especialmente em relação à guerra santa. Como anteriormente, os go­ vernantes filisteus marcharam para se encontrar com os israelitas para uma batalha quando ouviram dizer que os israelitas estavam reunidos em Mispá. Nesta ocasião, eles imploraram a Samuel que intercedesse por eles e clamasse ao Senhor para que os livrasse da mão dos filisteus (v.8). Neste contexto, a fa­ miliar expressão “clamar” é utilizada. Como no livro de Juizes, o livramento do Senhor foi precedido pelo clamor de Israel a Deus. Embora Samuel seja chamado de juiz aqui, a sua função se assemelha a de um mediador da guerra santa. Foi o Senhor que lutou contra os inimigos de Israel, e a vitória seria de Deus somente. Samuel também ofereceu um cordeiro como oferta completamente quei­ mada, o que indicava que nenhuma porção foi reservada para o consumo pelos adoradores. Samuel, então, clamou ao Senhor em favor do povo (v.9). Diferen­ temente do capítulo 4 onde o Senhor permanecera silencioso na batalha contra os filisteus, a súplica de Samuel recebeu uma resposta imediata (v. 9b). O texto menciona que o Senhor trovejou (rãyam ) contra os filisteus. O trovão servia como uma arma da guerra santa (1 Sm 2.10; 2 Sm 22.14) assim como outros elementos da natureza, como o relâmpago (2 Sm 22.15; SI 18.14; 77.18,19), a saraiva (Js 10.11,14), as trevas (Js 24.7), os corpos celestiais (Jz 5.20), e até as enfermidades (1 Sm 5.6).

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O texto indica que as condições adequadas foram alcançadas com suces­ so nesta ocasião, as quais estavam em falta previamente. Segundo o texto, o Senhor trovejou com fortíssimo estrondo contra os filisteus e os colocou em pânico, e foram derrotados por Israel (v. 10). Mesmo que os israelitas conseguissem derrotar seu inimigo, foi realmente o Senhor que lutou por eles. Os homens israelitas conseguiram colocar os filisteus para fugir e os feriram até abaixo de Bete-Car. A localização geográfica precisa de Bete-Car não é conhe­ cida, embora alguns sugiram que esteja relacionada com Bete-Horom baixa, cerca de doze quilômetros de Mispá (Klein, 1983, 68). H 1 2 -1 4 A derrota dos filisteus forneceu uma ocasião para erguerem um memorial comemorando a vitória do Senhor. No versículo 12, Samuel pegou uma pedra e a colocou entre Mispá e Sem. A exata localização de Sem é incerta, mas a etiologia da instalação da pedra fornece um ponto teológico. O nome da pedra é Ebenézer, que traduzido significa “pedra da ajuda”. Embora outras pes­ soas como Jacó erigissem um pilar para marcar o local da teofania do Senhor, o uso da pedra aqui reflete a tentativa do editor para evitar a polêmica contra os pilares na H.D. (Dt 16.22; Js 24.26-27). A pedra simbolizava e comemorava a assistência que o Senhor providenciou aos israelitas na derrota dos filisteus naquela ocasião. O texto menciona no versículo 13 que os filisteus foram dominados e a mão do Senhor esteve contra os filisteus durante toda a vida de Samuel. A mão do Senhor estivera contra os filisteus enquanto a arca esteve em território filisteu, agora o poder do Senhor sobre os filisteus foi mediado por Samuel. Além do mais, os israelitas recuperaram a terra que os filisteus haviam tomado anteriormente, e fizeram as pazes com os amorreus (i.e., os cananeus da terra). É importante notar que a derrota dos inimigos de Israel e a restauração da terra vieram como resultado de uma obediência religiosa, e não do poder militar. Este é o tema que permeia a narrativa da batalha de Jericó (Js 6), na qual a fé e obediência dos israelitas resultou no sucesso militar e na apropriação da terra. Além disso, os israelitas experimentavam vitória militar quando Samuel presidia sobre a assembleia, não como um rei. Samuel não era um herói militar em si, mas um fiel profeta/sacerdote/juiz de Deus que conduziu o povo em arrependimento e sacrifício. Foi Samuel que clamou em favor do povo e como resultado o Senhor respondeu com ressoante vitória. Este capítulo, portanto, endossa Samuel (juntamente com os profetas em geral) como o legítimo líder do povo.

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3. Samuel como juiz (7.15-17) H 1 5 - 1 7 Este capítulo encerra com uma breve menção sobre o ministério de Samuel nos v. 15-17. Segundo esses versículos, Samuel serviu como um juiz que fazia um circuito com a rota de Betei, para Gilgal e depois Mispá. Todas essas cidades representavam importantes centros religiosos em Israel, e estavam localizadas numa área relativamente pequena da Palestina. Além de profeta e sacerdote, a responsabilidade de Samuel incluía atividades geralmente associa­ das com juizes; a saber, várias funções administrativas e civis, incluindo a admi­ nistração da justiça. Quando Samuel terminava esse circuito, o texto menciona que ele voltava para casa, em sua cidade de Ramá. A PARTIR DO TEXTO A história de Samuel que surge após a narrativa da arca nos lembra que uma liderança piedosa é necessária a fim de conduzir o povo ao arrependimen­ to e a um genuíno relacionamento com Deus. No caso de Samuel, foi somente depois que ele inflexivelmente confrontou os pecados do povo que eles vol­ taram o coração novamente para Deus. Como resultado, Israel foi renovado como povo e Deus lutou contra os inimigos de Israel. Deus não só derrotou os filisteus, mas a terra que Israel havia perdido anteriormente foi restaurada a eles também. No decorrer do AT, o arrependimento e a obediência sempre prece­ dem a restauração. Deus só pode restaurar os indivíduos e a comunidade da fé espiritualmente se o pecado, tanto escondido como disfarçado, for confessado. O arrependimento é também acompanhado pelo ouvir uma palavra autên­ tica de Deus por um líder ou indivíduo que está disposto a confrontar o erro. Deus, ao longo da história de Israel, consistentemente preparou e introduziu fiéis porta-vozes para confrontar a desobediência do povo a fim de extrair a confissão. Na história de Samuel, nós vemos que a oração de Ana resultou no surgimento de um fiel profeta/sacerdote de Deus que convidou Israel a aban­ donar os deuses estranhos e orou em favor do povo. Hoje, Deus continua a levantar líderes fiéis que convocam o povo de Deus a andar em obediência. A questão passa a ser: Será que o povo o seguirá?

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II. 0 SURGIMENTO DA MONARQUIA EM ISRAEL: SAUL, O PRIMEIRO REI DE ISRAEL (8 .1 -1 5 .3 5 )

A. Israel pede um Rei (8.1-22) POR TRÁS DO TEXTO Os eventos que sucederam a narrativa da arca nos capítulos 4—6 e a assembleia do capítulo 7 preparam o leitor para a próxima fase de 1 Samuel: o estabelecimento da monarquia na sociedade de Israel. Os eruditos geralmente veem os capítulos 8—12 como uma unilade literária que se concentra na as­ censão da monarquia de Saul em particular. Dentro desta unidade, os capítu­ los 8 e 12 são centrais para a estrutura geral e enredo de Samuel e da H.D. no sentido de que relembram a requisição do povo ou o pedido deles por um rei. Os capítulos 9—11, então, apresentam Saul ao público como “alguém que foi requisitado” pelo povo. O pedido do povo por um rei em ambos os capítulos oito e doze fica em vivido contraste com o pedido de Ana por um filho no capítulo um. A petição de Ana foi considerada como uma piedosa súplica, a petição do povo por um rei, porém, foi considerada uma apostasia. Ao pedir um rei, os israelitas não só rejeitaram Samuel, mas, mais significantemente, eles rejeitaram ao Senhor


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como rei sobre a comunidade. No final desta unidade (cap. 12) o povo perce­ beu que a petição deles eqüivalia ao pecado (v. 17-19). Esta compreensão da origem do reinado então lança a ideia de monarquia na H.D. em uma luz questionável. Deus, entretanto, eventualmente permitiu a instituição da monarquia, mas o rei deveria ser subserviente às instruções de Deus mediadas pelas vozes proféticas (12.14-15). O desenvolvimento do reinado, sem dúvida, teve tremendas implicações religiosas e políticas na socie­ dade de Israel. Desta maneira, os capítulos 8 e os seguintes são semelhantes ao esquema do livro de Juizes em que a exigência por um rei iniciou novamente um ciclo de rebelião. O ciclo começa no capítulo 8 e continua até o livro de Reis e finalmente termina com a destruição de Jerusalém (2 Rs 25.1-21). Em relação ao modo como Saul é apresentado nos capítulos 8— 12, estu­ diosos cruciais têm mencionado que imagens alternativas têm emergido. Ao examinar este material, torna-se evidente que duas imagens distintas do reina­ do de Saul aparecem: uma é positiva e a outra é negativa. O esboço seguinte distingue entre três imagens negativas da monarquia e duas imagens positivas: Negativa: 8.1-22 (A petição por um rei) Positiva: 9.1—10.16 (A unção de Saul por Samuel) Negativa: 10.17-27 (A monarquia relutante de Saul) Positiva: 11.1-15 (Saul salva os israelitas) Negativa: 12.1-25 (A denúncia de Samuel contra o reinado)

Os eruditos têm notado que as imagens mescladas de Saul podem dizer algo sobre a disparidade de como o povo percebia a instituição da monarquia na sociedade de Israel: Basicamente, alguns gostavam e pensavam que era uma coisa positiva, enquanto que outros não gostavam e consideravam isto uma forma de apostasia. Ao olhar para o esboço acima, a avaliação geral da monar­ quia, e Saul, são inexpressivos. Duas imagens positivas de Saul estão envoltas por três negativas. Embora Saul possa ter tido algumas qualidades e caracte­ rísticas positivas, a monarquia em geral estava fadada ao fracasso. O fracasso do reinado de Saul também serviu para destacar as glórias do reinado de Davi.

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NO TEXTO

1. O cenário (8.1-3) ■ 1 -3 A sintaxe do texto de 8.1a indica que uma nova seção literária está co­ meçando. As palavras Quando envelheceu, Samuel sugerem que uma quan­ tidade indeterminada de tempo havia se passado desde o encerramento do ca­ pítulo 7. O texto menciona que Samuel nomeou seus filhos como líderes de Israel. Nós não sabemos com que autoridade Samuel tomou esta atitude. Os filhos de Eli haviam assumido o comando no lugar do pai, agora os filhos de Samuel, Joel e Abias, são estabelecidos como herdeiros do pai. Embora os nomes Joel (o Senhor é Deus) e Abias (meu pai é o Senhor) tenham uma signi­ ficação especial, eles não foram nada melhores do que os filhos de Eli. Os filhos de Samuel não andaram em seus caminhos. Eles se tornaram gananciosos, aceitavam suborno e pervertiam a justiça (v. 3). A comparação entre Eli e seus filhos e Samuel e seus filhos pode levantar sobrancelhas sobre a sucessão hereditária segundo o texto. Samuel foi um sacerdote/profeta exemplar do Se­ nhor; porém, isto não garantiu que seus filhos seguiriam o exemplo do pai. Po­ demos também ponderar se de alguma forma essas menções possam implicar Eli e Samuel como pais. O mesmo fenômeno se prova verdadeiro no período da monarquia; os bons reis produziam filhos maus, e vice-versa (1 Rs 15.1-15; 2 Rs 21.19-26).

2. A requisição de um rei (8.4-22) I 4 - 1 0 Assim como no caso dos filhos de Eli, o povo sabia da reputação de Joel e Abias. Os anciãos de Israel foram à cidade de Samuel, Ramá, para se en­ contrar com ele ali. Quando os anciãos se reuniram com Samuel, eles o lembra­ ram que primeiro, Samuel era velho, e segundo, Joel e Abias não andavam em seus caminhos. Como resultado, o povo queria um rei como as outras nações para conduzi-los (v. 5). Alguns pontos são dignos de nota aqui sobre a decla­ ração dos anciãos a Samuel. Primeiro, a frase à semelhança das outras nações pode ter uma conotação negativa que sugira que o povo também agiria como as outras nações. Samuel pode não ter sido desfavorável ao reinado; ele talvez estivesse contrário ao desejo do povo de ser como as outras nações ao seu redor. Segundo, no mundo antigo, o rei deveria ser o garantidor da justiça e equidade na sociedade. O fato de os filhos de Samuel perverterem a justiça, e assim, não

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poderem estabelecer a equidade dentro da comunidade, pode indicar a razão pela qual o povo requisitou um rei ao invés disso. Seja qual for a razão da re­ quisição, Samuel ficou desalentado por eles pedirem um rei. O verbo em 6a (rã a *) indica algo de mal ou perverso na petição. Assim, a tradução deveria provavelmente dizer: essa palavra pareceu m al aos olhos de Samuel. Quando Samuel ouviu a petição dos anciãos, isto lhe trouxe descontenta­ mento e consternação. Como sua mãe antes de si, ele apresentou esta reclama­ ção diretamente ao Senhor durante o momento de coação (v.6). Embora Sa­ muel levasse aquilo para o lado pessoal, o Senhor despertou Samuel a enxergar isto como uma ilustração da rejeição deles ao Senhor. Ao rejeitarem Samuel, eles rejeitavam a Deus que nomeou Samuel para guiar o povo de Deus. O Se­ nhor, portanto, disse a Samuel: Atenda a tudo o que o povo está lhe pedin­ do; não foi a você que rejeitaram; foi a mim que rejeitaram como rei (v. 7). 0 Senhor notou que o povo, fundamentalmente, rejeitou a Ele e não a Samuel, que é um tema que aparece em outras partes da H.D. (1 Sm 10.9; 12.12). Gideão, por exemplo, também havia advertido que pedir um rei era equivalente à rejeição da liderança do Senhor (Jz 8.22,23). O termo rejeitar (mã as) é um termo técnico para pecado (2 Rs 17.5), ligando assim o pedido deles à desobe­ diência. Como no período dos juizes antes deste, a rejeição do povo ao Senhor está ligada à confiança em alguém ou em alguma coisa que não o Senhor. Nesse respeito, o ciclo que começara em Juizes (pecado-punição-clamor por ajuda-restauração) continua novamente em 1 Sm 8. 1 1 1 - 1 8 Ao longo dos versículos 11-18 Samuel explica o que o povo poderia esperar de um rei. Às vezes chamados de “a lei” ou “a moda” do rei, esses ver­ sículos fornecem uma ideia de como a vida seria para os israelitas. De acordb com Samuel, o povo poderia esperar o seguinte de seu rei: Versículo 11: O rei tomará os filhos de vocês. Versículo 13: O rei tomará as filhas de vocês. Versículo 14: O rei tomará de vocês o melhor das plantações, das vinhas e dos olivais. Versículo 15: O rei tomará um décimo dos cereais e da colheita das uvas. Versículo 16: O rei tomará de vocês... os servos e as servas, e o melhor do gado e dos jumentos. Versículo 17: O rei tomará de vocês um décimo dos rebanhos.

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Uma observação dos verbos repetidos nos versículos 11-17 revela que o rei basicamente tomaria (lãqah ) do povo, ou em forma de serviço ao rei ou em forma de impostos, com uma parte de suas lavouras e animais separada para o rei e sua administração. Em essência, o reinado seria uma instituição invasiva e constituiria uma carga pesada sobre o povo. Samuel também os informou no versículo 18 que o povo clamaria ao Se­ nhor por causa do rei que havia pedido. A linguagem aqui novamente se asse­ melha aos momentos dolorosos de Israel no passado. O povo clamou debaixo dos maus tratos do Egito, e também clamou quando foi ameaçado pelos inimi­ gos na época dos juizes. Assim, o texto bíblico ilustra a instituição da monar­ quia sob a mesma luz. Seria uma experiência pesada e cheia de impostos viver sob o controle de um rei. Essas palavras viriam a se cumprir durante os dias de Salomão, em particular, cujas regras opressivas seriam a fonte da ira das tribos do norte e serviriam como um catalizador para a cisão do reino de Davi (1 Rs 12. 1- 16).

■ 1 9 - 2 2 Ap esar das advertências de Samuel, o povo recusou-se a ouvir Samuel (v. 19) e ainda demandou um rei. No versículo 20, o povo alegou que essencialmente necessitava de um rei que os conduzisse na batalha. Este é um raciocínio diferente do que foi apresentado anteriormente (v. 4-5). O povo buscava a proteção militar e a segurança política, mesmo que isto significasse que eles se tornariam escravos/vassalos do rei. A petição do povo é curiosa à luz do fato de que Deus havia humilhado os filisteus anteriormente nas narra­ tivas da arca (4.1a -7.1) e quando Samuel presidia sobre a assembleia de Mispá (7.10-11). Não obstante, Deus permitiu que eles nomeassem um rei, a própria instituição que iria mais tarde levá-los à sua queda. A PARTIR DO TEXTO No decorrer desta seção, o povo de Israel eventualmente pediu um rei. Deus havia providenciado Samuel para ser o líder religioso e jurídico da so­ ciedade de Israel, mas o povo queria algo mais. E interessante ver a dicotomia entre a petição que Ana fez na primeira parte de Samuel e a petição do povo no capítulo 8. No primeiro caso, a oração/petição de uma mulher piedosa produ­ ziu um filho piedoso que trouxe as bênçãos de Deus para o povo, mas o pedido de um povo teimoso e ingrato resultou no desenvolvimento do reinado. Sa­ muel preveniu o povo de como seria viver debaixo do governo de um rei, mas o povo se recusou a ouvi-lo.

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Quando Deus permitiu que o povo tivesse um rei, Ele disse a Samuel que eles não estavam rejeitando a Samuel, mas ao próprio Deus. O rei que o povo pedia, porém, teria sérias conseqüências para o povo e para o futuro de Israel. A própria coisa que eles pediram os levaria a clamar, assim como fizeram de­ baixo da escravidão do Egito e dos opressores estrangeiros na época dos juizes. Finalmente, seria a monarquia a responsável pela queda do reino. Esta narra­ tiva nos lembra que às vezes os indivíduos e comunidades da fé querem o seu próprio caminho ao invés de buscarem a vontade de Deus sobre uma questão ou assunto específico. Quer seja por falta de paciência, ansiedade, ou ciúmes, podemos querer algo com tanta intensidade que não consideramos os sinais de advertência nem levamos em consideração as conseqüências daquilo que estamos exigindo. Há momentos na vida em que podemos pedir a Deus algo e Deus nos permite ter o que desejamos. Entretanto, a coisa pela qual pedimos, pode, ao longo do tempo, tornar-se exatamente uma fonte de dor ou preocupação para nós. Deus pode usar essas ocasiões, entretanto, para nos despertar e nos guiar de volta a Ele em arrependimento. Elas também servem para nos lembrar de que pode­ mos evitar os resultados desesperadores, às vezes catastróficos, simplesmente ouvindo a voz de Deus e buscando a vontade de Deus em primeiro lugar.

B. Saul é escolhido como rei (9.1—10.27) POR TRÁS DO TEXTO Os capítulos 9-10 servem como o cerne dentro de uma unidade maior que se estende dos capítulos oito a doze. Enquanto que os capítulos 8 e 12 se con­ centram no pedido de um rei e funcionam como a estrutura da unidade, os capítulos 9-10 se concentram na escolha de Saul como o rei de Israel. Os eru­ ditos têm notado que os capítulos 9— 10 são compostos de relatos separados pertinentes à escolha de Saul. Em 9.1—10.16, Deus escolhe Saul para livrar os israelitas da opressão filisteia (9.16) e depois Saul foi ungido por Samuel em uma reunião particular (10.1). Esta tradição é favorável a Saul no sentido de que ele é retratado como um dos juizes da era anterior. No segundo relato, Saul foi escolhido entre a população (v. 17-27) por meios divinos (v. 20-22). Di­ cas sobre a monarquia problemática de Saul são cuidadosamente inseridas na narrativa, entretanto. O fato de que ele foi separado da comunidade pelo lan­ çamento de sortes (v. 20-21) levanta uma preocupação sobre ele pessoalmente

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e sua iminente monarquia (veja abaixo), e ele surge como um líder relutante (v.22) também. Além das narrativas no capítulo 10, um terceiro relato asso­ cia o estabelecimento da monarquia de Saul com a cerimônia de renovação da aliança em Gilgal (11.14-15). Essas observações indicam que múltiplas tradi­ ções sobre a inauguração do reinado de Saul existiam originalmente, e elas dão testemunho da complicada história de transmissão dos livros de Samuel como um todo. Os editores deuteronomistas mais tarde adotaram e arranjaram esses diversos materiais para lhes dar o seu formato atual. NO TEXTO

1. A introdução de Saul (9.1-2) ■ 1 -2 A introdução de Saul começa com um registro de sua linhagem fami­ liar. Existe um total de seis genealogias enumeradas no versículo, sete se con­ tarmos Saul. O texto dá início com a afirmação de que havia um homem de Benjamim, rico e influente, chamado Quis, íilho de Abiel, neto de Zeror, bisneto de Becorate e trineto de Afia. Uma série de importantes observações se destaca sobre a árvore genealó­ gica de Saul. Primeiro, os homens da lista são procedentes da tribo de Benja­ mim, um detalhe que o escritor deste texto faz questão de mencionar. Isto, por conseguinte, faz de Saul um benjamita que viera da cidade de Gibeá. Gibeá, em Benjamim, foi o local onde um estupro e desmembramento da concubina de um levita aconteceu em Juizes (cap. 19). Alguém poderia se perguntar se alguém da família de Saul (i.e., pai ou avô) participara daquele crime terrível. Cronologicamente falando, a linhagem retrocede a várias gerações, o que sig­ nifica que Saul tinha membros da família vivos quando o estupro acontece­ ra. No mínimo, Saul tinha membros da família envolvidos naquela sangrenta guerra civil, já que apenas 600 homens sobreviveram. Segundo, o pai de Saul, Quis, é chamado de “um homem de bens” (NRSV). O termo usado para descrever seu pai (gibõr hãyií) pode também ser traduzi­ do como um homem de valor ou “um guerreiro”. Esta tradução seria bem apro­ priada se Quis estivesse envolvido na guerra civil de Juizes 20. Terceiro, nós não temos nenhuma informação sobre a mãe de Saul. Embo­ ra nada seja relatado sobre ela no texto, Juizes 20 indica que 600 homens sobre­ viventes da tribo de Benjamim adquiriram esposas da cidade de Jabes Gileade ou as raptaram dentre as mulheres de Silo. Se a mãe de Saul for uma mulher raptada de Jabes Gileade, então, isto não só liga Saul às terríveis cenas de Juizes

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19—20, mas também explica porque Saul foi socorrer o povo daquela cidade quando a mesma foi ameaçada pelos amonitas (1 Sm 11). Os acontecimentos de Juizes 19—20, então, servem como pano de fundo para a introdução da família de Saul em 1 Samuel 9.1. Embora Saul oficial­ mente ainda não tenha surgido na tradição textual, ele já chega com esta infor­ mação pairando sobre ele como uma nuvem. O impacto retórico que isto tem sobre como Saul é apresentado aos leitores e o efeito que isso tem em como eles o percebem não pode ser ignorado ou subestimado. Saul é apresentado ao leitor pela primeira vez no versículo 2. O texto reconta, Ele tinha um filho chamado Saul. O nome Saul (sã ül) é a forma pas­ siva do verbo “pedir” (sã a/). Assim, o seu nome é adequadamente traduzido como “aquele que foi pedido”. Este nome é apropriado considerando que Israel “requisitou” ou “pediu” um rei anteriormente. O desejo do povo foi concedi­ do em forma do filho de Quis. O texto também inclui uma declaração sobre suas qualidades físicas: jovem de boa aparência, sem igual entre os israelitas; os mais altos batiam nos seus ombros. É interessante que o texto primeiro chame a atenção para sua aparência e sua altura, e não sua reverência ao Se­ nhor. Este foi também o caso quando ele foi escolhido para ser rei entre o povo (10.23). Os sinais de advertência sobre Saul são levantados novamente. Primeiro, as observações sobre os atributos físicos de Saul são alusivos à Absalão, que também era conhecido por suas belas características (2 Sm 14.25,26). As ca­ racterísticas exteriores, entretanto, não garantem um líder bem-sucedido; aliás, elas podem prefigurar exatamente o oposto. O reinado de Absalão terminou em humilhação e desgraça, e o mesmo seria verdadeiro para Saul. O ponto de vista está sendo estabelecido: as aparências podem ser enganosas. Embora Saul possuísse todas as características (superficiais?) externas que o povo procurava em um líder (i.e., família rica, alto, bonito), a dedicação de um líder a Deus era a verdadeira medida de seu sucesso. Segundo, quando o texto se refere à altura de Saul, ele emprega a palavra (gãbõah) que soa quase que idêntico à cidade natal de Saul (gib ‘â ). Ao fa­ zer isto, o escritor do texto não deixa o público leitor se esquecer dos terríveis acontecimentos de Juizes 19—20. A nuvem daquele caso ignóbil e desprezível continua a assombrar a Saul embora ele não estivesse lá.

2. Saul é escolhido e ungido (9.3—10.16) H 3-10 A história na qual Saul é formalmente introduzido é bem curiosa. O texto menciona que as jumentas de Quis, pai de Saul, extraviaram-se (v. 3).

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Aqui temos outro presságio que pode indicar algo suspeito sobre a indecisa monarquia de Saul. Embora os jumentos pudessem ser vistos como animais de nobreza, no AT, os maiores líderes de Deus foram pastores de ovelhas antes de assumirem uma função relevante de liderança (i.e., Moisés e Davi). O fato de que Saul estivesse procurando os jumentos de seu pai é um prenuncio de que ele e sua monarquia seriam uma decepção. Saul e o servo de seu pai atravessaram todo o território de Efraim e Ben­ jamim para encontrar os animais. Os esforços deles tiveram pouco sucesso. Quando eles chegaram à terra de Zufe, Saul já estava pronto para voltar. O ser­ vo persistiu que deveriam se apressar para encontrarem o homem de Deus que poderia ajudá-los no caso dos jumentos perdidos (v. 6). É peculiar que embora Samuel fosse conhecido como um verdadeiro profeta por toda a terra de Israel (desde Dã até Berseba), Saul parecia não saber quem ele era. Nos versículos seis e oito, Samuel é chamado de homem de Deus, que é sinônimo de profeta. Os dois homens finalmente chegaram à terra de Zufe. Zufe estava localiza­ da no território de Efraim, perto da cidade de Ramá, que é também menciona­ da em conjunção com a linhagem de Samuel (1.1). Embora a cidade e o profeta não sejam citados no versículo 8, o contexto subsequente insinua que a cidade era Ramá, terra do profeta Samuel. Quando os jovens consideraram esta op­ ção, Saul ficou preocupado porque não tinham nada para oferecer ao profeta. Como um meio de se sustentarem, os profetas geralmente recebiam dinheiro quando as pessoas vinham pedir conselho/ajuda. Os profetas precisavam ter cuidado, entretanto, para não dizer às pessoas o que elas queriam ouvir só por causa do dinheiro. Saul não tinha nenhum dinheiro consigo. Embora o pai dele fosse um homem rico, Saul estava sem dinheiro. Ironicamente, o servo, e não o filho, tinha dinheiro consigo e se dispôs apagar um quarto de um siclo de prata ao profeta. Nos tempos bíblicos isto seria o equivalente a aproximadamente 11 gramas, que não é muito segundo nenhum padrão. Saul concordou com a pro­ posta do servo e eles foram à cidade onde o homem de Deus habitava. O versículo 9 conclui esta seção com uma interessante declaração que deve ser tomada como uma inserção parentética. Ela fornece esclarecimento sobre o relacionamento entre profetas (nãbi) e videntes (ro 1eh) em Israel. Esta nota indica que os termos eram basicamente sinônimos, com ambos os grupos rea­ lizando funções semelhantes na sociedade israelita. 11-16 Quando Saul e o servo chegaram à cidade não identificada, eles descobriram onde Samuel estava por intermédio das mulheres que saíam para tirar água. As fontes de água serviam como locais convenientes para se encon­ trar com as pessoas e para descobrir informações importantes (Gn 24.15-20; 29.2-12; Êx 2.15-19). O texto reconta, porém, que antes que Saul chegasse a

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Samuel, Deus já havia preparado Seu servo para a chegada de Saul. No contexto da mensagem divina a Samuel (1 Sm 9.16), o Senhor revelou ao profeta que ele ungiria Saul como líder (nãgid) do povo. O termo usado aqui é diferente do que é usado para rei (melek) no AT. O termo “rei”, às vezes, podia ser visto ne­ gativamente porque se tornou associado à posição política ou à instituição que poderia abusar desse poder ou privilégio. Tais tonalidades teológicas não estavam associadas com o termo nãgíd. Deus também disse que o líder designado livraria o povo da opressão dos filisteus. Desta maneira, Saul parecia como um dos juizes da era anterior (Jz 3.9,15; 4.3; 6.6; 10.12-14; 1 Sm 12.8,10). H 1 7 - 2 6 Quando Saul e o servo se encontraram com Samuel, o profeta ga­ rantiu a Saul que ele era o homem a quem estavam procurando. Após convidá­ -lo à sua casa, Samuel disse a Saul que os jumentos perdidos que ele estava pro­ curando haviam sido encontrados. Acrescentando, Samuel informou a Saul de sua futura função de liderança. Quando Saul ouviu as palavras de Samuel, ele respondeu como alguém que era indigno para a posição, bem parecido com o que Gideão fez quando foi chamado para a sua missão (Jz 6.15): ele era da me­ nor tribo de Israel e de uma família humilde (1 Sm 9.21). Samuel, entretanto, não comentou sobre a resposta de Saul; em vez disto, ele trouxe Saul e o servo para local onde a refeição estava sendo servida. A refeição pode ter representado um banquete de coroação antecipado à luz da palavra de Deus a Samuel sobre Saul anteriormente. Saul deveria se sen­ tar à cabeceira daqueles que foram convidados (v.22). De forma semelhante, dois dos filhos de Davi, Absalão e Adonias, fizeram banquetes de sacrifícios com convidados quando buscavam suceder Davi (2 Sm 15.10-12; 1 Rs 1.9,10). Embora a refeição tivesse sido uma preliminar para a coroação de Saul, Samuel não revelou qualquer informação sobre a iminente unção de Saul naquele mo­ mento. H 9 . 2 7 — 1 0 .8 Quando Saul se levantou de manhã, Samuel enviou o servo adiante para que pudesse entregar a mensagem que Deus lhe havia falado em particular. Samuel começou tirando o frasco de azeite e derramando um pouco sobre a sua cabeça. Samuel também beijou Saul e dirigiu-se a ele dizendo: O Senhor o ungiu como líder da herança dele (1 Sm 10.1). Samuel também rei­ terou as palavras que havia dito anteriormente concernente a Saul (9.6); Saul salvaria os israelitas das mãos de seus inimigos. A fim de garantir Saul desta mensagem, Samuel forneceu três sinais para verificar que esta palavra era de Deus. Primeiro, dois homens perto do túmulo

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de Raquel encontrariam os jumentos. Segundo, Saul encontraria três homens perto do carvalho de Tabor no qual dariam pão a Saul. Terceiro, quando Saul viajasse ao lugar chamado Gibeá de Deus (lit., o monte de Deus), ele encon­ traria uma turma de profetas vindo do templo e que estariam em estado de arrebatamento profético. Não somente ele encontraria esse bando de profetas, mas o Espírito de Deus possuiria Saul e ele seria transformado em uma pessoa diferente. H 9-16 Nos versículos 9-13 a palavra que Samuel proclamou concernente ao grupo de profetas foi cumprida, confirmando assim que Saul era a opção de Deus como o líder dos israelitas. O Espírito de Deus possuiu Saul, e ele começou a profetizar como os outros profetas. O comportamento de Saul fez com que um dos homens perguntasse: Saul também está entre os profetas? (v. 11). Este dito proverbial, em seu âmago, questionava se Saul seria um rei como Davi e Salomão futuramente, ou se ele seria um juiz/profeta carismático como Samuel e os juizes antes dele. O Espírito impulsionou Gideão (Jz 6.34), Jefté (11.29), e Sansão (14.6,19; 15.14) quando Deus os escolheu, e o Espírito também desceu sobre Davi no momento de sua unção (1 Sm 16.13). Parado­ xalmente, o Espírito de Deus que se apossara de Saul de maneira tão poderosa iria também se apartar dele mais tarde em um instante (16.14,23) e ser substi­ tuído por um espírito maligno (16.15-16,23; 18.10; 19.9).

A narrativa da chamada Os eruditos têm notado que a chamada de Saul compartilha diversas similaridades com as de Moisés, Gideão, e vários dos profetas clássicos. As narrativas das chamadas incluem os seguintes elementos (Birch, 1971, p. 55-68): 1. Acontecia um confronto divino. Este confronto era iniciado por Deus ou poderia ser mediado por um profeta (1 Sm 9.15). 2. A palavra introdutória na qual estava a base ou fundamento específi­ co para o comissionamento (v. 16-17). 3. A objeção levantada por quem está sendo chamado (v.21). 4. A comissão que foi revelada pela palavra de Deus e acompanhada por uma unção (10.1). 5. A comissão era acompanhada por um sinal que servia para confirmar a escolha de Deus quanto ao indivíduo (v. l,5-7a). 6. A garantia que Deus estava com o indivíduo que fora chamado (v.7b).

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Quando Saul voltou para casa, ele foi questionado por seu tio, e não por seu pai, sobre o seu paradeiro. E confuso que o nome do tio não apareça aqui. Tem-se proposto que esse tio seja Ner, o pai de Abner, mas isto permanece especulativo (Alter, 1999, p. 57). Embora Saul divulgasse a informação sobre os jumentos, ele não disse nada sobre o assunto do reinado. O silêncio de Saul sobre o assunto, entretanto, prepara os leitores do texto para a cerimônia pú­ blica da escolha em 10.17-27.

3. O povo escolhe Saul (10.17-27) H 1 7 -2 7 Os eventos de 9.1—10.16 ficam nos bastidores em 10.17-27. Em­ bora Samuel ungisse a Saul para o reinado anteriormente, o povo não havia desempenhado um papel no processo seletivo. A seção anterior, em muitos as­ pectos, retratou a escolha de Saul em uma luz um tanto positiva. Deus iniciou o processo mandando Samuel ungi-lo, e Deus escolheu Saul para derrotar os inimigos de Israel (9.16; 10.1). Nesta unidade, porém, o texto pega uma visão mais obscura do reinado no sentido de que o mesmo é visto como uma rejei­ ção/rebelião contra Deus. Esta unidade começa com a menção de que Samuel convocou o povo de Israel ao Senhor, em Mispá (v. 17). Mispá era o lugar onde o povo pediu a Samuel um rei inicialmente, e era em Mispá que o rei seria selecionado dentre o povo. No início da assembleia, Samuel prefaciou o processo seletivo entre­ gando uma palavra profética do Senhor. O discurso de Samuel para a assem­ bleia no versículo 18 começa com a familiar fórmula do mensageiro: Assim diz o Senhor, o Deus de Israel: ‘Eu tirei Israel do Egito, e libertei vocês do poder do Egito e de todos os reinos que os oprimiam’. A recapitulação de Samuel sobre os feitos maravilhosos do Senhor em favor de Israel seria geral­ mente colocada no prólogo histórico da aliança na antiga tradição do tratado do Oriente Próximo. A redenção de Israel do Egito serviu como a base para a aliança mosaica (Ex 20). Neste contexto, entretanto, ela se tornou o meio pelo qual justapor a petição de Israel por um rei com a liderança de Deus sobre a comunidade. O pedido de Israel por um rei não serviu como uma entrada à aliança com o Senhor, mas demonstrou como os israelitas rejeitaram a bondo­ sa liderança do Senhor no passado por um líder humano que eles desejavam. O texto reitera esse ponto no versículo 19 quando nota: Mas vocês agora rejeitaram o Deus que os salva de todas as suas desgraças e angústias. E disseram: ‘Não! Escolhe um rei para nós. Deus havia salvo os israelitas antes, por que eles precisariam de um rei agora? O termo para rejeição (m â’as) é

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usado aqui como o é em 1 Samuel 8.7. Israel rejeitou a Deus ao pedir um rei; mais tarde, porém, Deus rejeitaria o rei que eles pediram (16.1). Samuel então reuniu as tribos para determinar de que tribo o líder emergi­ ria (10.20). O processo para determinar a seleção do rei também levanta ques­ tões e suspeitas interessantes sobre Saul já que o mesmo evocava imagens de uma época desastrosa do passado de Israel; a saber, a seleção de Acã como o culpado que quebrou as regras da guerra santa (Js 7). Os seguintes elementos de Josué 7 e 1 Samuel 10.17-27 são destacados: 1. A ordem do processo seletivo (indo de tribo-clã-família-indivíduo) é qua­ se idêntica em ambos os contextos (Js 7.16-18; 1 Sm 10.20-21). 2. A linguagem usada para descrever a pessoa sendo escolhida por sorte ( vayilãkêd) é idêntica em ambos os relatos (Js 7.14,17; 1 Sm 10.20-21). 3. Tanto Acã quanto Saul seriam acusados de esconderem os despojos da ba­ talha que deveriam ser dedicados à destruição (Js 7.11,20-21; 1 Sm 15.13­ 15,20-21). O impacto retórico dos paralelos entre Saul e Acã sobre o público leitor/ ouvinte não pode ser ignorado. Sérias questões são levantadas sobre Saul e sua iminente monarquia à luz do fato de que exemplos de lançamento de sortes no AT estão localizados em contextos de ações ilícitas (veja também Jonas 1.7). O atento leitor/ouvinte desta tradição teria reconhecido as similaridades com o fiasco de Acã e sentido que havia algo de curioso e até de errado sobre Saul ser destacado da comunidade desta maneira. Além do mais, Saul estava associado com duas das mais perturbadoras memórias da história de Israel até aquele ponto: o estupro da concubina do levita (Jz 19—20) e a tragédia de Acã (Js 7). O ecoar desses episódios sombrios na introdução de Saul em 1 Sm 9— 10 assinala que ele está basicamente condenado desde o início e que o seu reinado será outro capítulo fracassado da história de Israel. Quando Saul foi escolhido para ser o rei, o povo procurou Saul, mas não o conseguiam encontrar. O povo perguntou a Deus pelo paradeiro dele, e Deus disse que ele havia se escondido entre a bagagem (10.22). O fato de Saul se esconder insinua que ele estava tímido e relutante em assumir a sua nova fun­ ção (ele está escondido no meio da bagagem), uma reação semelhante à sua reação inicial às palavras de Samuel anteriormente (9.21). Saul talvez fosse atormentado por algum senso de inferioridade ou insegurança. A propósito, o homem que possuía refinadas qualidades físicas, tinha falta de coragem inte­ rior. Uma interpretação judaica posterior tentou compensar as inadequações de Saul mencionando que ele se retirou para uma calma oração e estudo bíblico

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(Gordon, 1986, p. 121). A luta de Saul com a insegurança reaparecerá quando ele se encontra em uma situação difícil e estressante com os filisteus (13.8-12). Samuel, então, apresentou Saul ao povo e o instruiu a olhar para aquele que o Senhor escolheu( 10.24). Quando o povo observou Saul (e sua aparên­ cia física [v.23]), ele gritou: Viva o rei! O pedido do povo por um rei havia sido realizado. Nem todos estavam satisfeitos com a escolha de Saul (v. 27 ARC). Havia alguns “filhos de Belial” (bênê bêliya al ) que duvidaram da capacidade de Saul de salvar os israelitas. Tal descrença na capacidade do líder de ser bem-sucedido também atormentou Moisés (Ex 14.11). Esses indivíduos desprezaram-no e não lhe trouxeram o tributo devido ao rei recém-nomeado. Esses homens não são identificados, mas Gibeá, para onde Saul retornou (1 Sm 10.26), era a terra dos “homens desprezíveis” (bênê bêliya 'al) ou do “bando perverso” responsá­ vel pelo estupro da concubina do levita (Jz 19.22). A PARTIR DO TEXTO Nesta seção, Deus escolheu Saul para ser rei sobre o povo de Israel. Saul, como seu nome sugere, era a resposta à oração de Israel. Quando o texto intro­ duz Saul, o texto imediatamente chama atenção para suas características físicas e qualificações. O texto insinua que as aparências externas se equacionam com uma liderança eficaz. Na sociedade moderna, quando o povo considera a es­ colha de um líder, eles geralmente levam em consideração primariamente as qualidades físicas do indivíduo. Uma pesquisa social moderna até confirmou este fato. O povo de Israel não era exceção, de forma que também prestaram atenção na aparência externa de Saul como o critério para a liderança. A história de Saul, entretanto, lembra-nos poderosamente de que no Rei­ no de Deus não são as pessoas mais bonitas, mais altas, mais fortes que se tor­ nam os servos mais eficientes de Deus. Pode-se olhar para a vida de Madre Teresa para entender esse ponto. Madre Teresa não era necessariamente alta nem a pessoa fisicamente mais atraente. Entretanto, para o povo de Calcutá, na índia, de quem ela humildemente cuidou por muitos anos, ela era um gigante e uma linda pessoa. Nós vemos esta ironia o tempo todo ao longo das Escrituras. Deus sempre usa o fraco, o pequeno, o humilde, o pobre, e os candidatos me­ nos indicados a fim de cumpri a missão dele na terra. O que mais importa é a condição do coração de alguém. Aqueles que respondem à chamada de Deus e seguem na simples confiança e obediência geralmente fazem grandiosas coisas para o avanço do reino. Deus é capaz de usar essas pessoas porque elas não são

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capazes de ter orgulho ou depender de suas habilidades naturais somente, mas dependem de Deus pela Sua força e direção. Quando Deus usa uma pessoa improvável para prosperar as questões do Reino de Deus, entretanto, é Ele que por fim recebe a glória e a honra pelos resultados que acontecem.

C. Saul derrota os amonitas (11.1-15) POR TRÁS DO TEXTO O trecho 9.1-10.16eo capítulo 11 são semelhantes porque retratam Saul em uma luz mais positiva. No capítulo 11, o texto destaca as habilidades mili­ tares de Saul e sua capacidade de liderar os israelitas em batalha. Neste capítulo, os moradores de Jabes Gileade foram ameaçados pelo povo da Transjordânia conhecidos como os amonitas, e no meio de sua opressão, eles clamaram a Deus para que os resgatasse. De modo semelhante ao livro de Juizes, o Espírito de Deus se apossou de Saul e ele derrotou a ameaça amonita. Ao convocar as tropas para a batalha, Saul tomou dois bois e os cortou em pedaços e os enviou por todas as partes de Israel - uma estranha seme­ lhança com o estupro e desmembramento da concubina do levita em Juizes 19. Enquanto 1 Sm 9.1 — 10.16 indica que Saul fora escolhido para derrotar os filisteus, Saul em vez disso, venceu o povo da região da Transjordânia. Saul poderia estar preocupado com o povo de Jabes Gileade porque sua mãe teria se originado naquela região. Embora ele derrotasse as forças amonitas, outros textos das tradições de Saul indicam que ele não derrotou o maior rival de Is­ rael, os filisteus. NO TEXTO

1. Saul contra os amonitas (11.1-13) H 1 - 1 3 Depois que Saul foi escolhido como rei entre o povo, o texto descreve uma situação na qual Saul exibiu sua proeza militar. O rei amonita Naás cercou a cidade transjordânica de Jabes Gileade (v.l). O TM não fornece uma razão pela qual Naás atacou a cidade. Contudo, outras tradições textuais como o texto DSS da 4QSama e Josefo (Ant. 6.5.1) fornecem informação que prepara o contexto para os eventos dos versículos 1-4. De acordo com as reconstruções

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baseadas nessas outras tradições textuais, Naás oprimiu os gaditas e rubenitas e ele arrancou o olho direito de todos os israelitas que viviam do outro lado do Jordão. Porém, sete mil homens escaparam dos amonitas e fugiram para a cidade de Jabes Gileade. É aí que o texto hebraico começa no versículo 1. Baseado nessa reconstrução, o leitor entende porque Naás queria atacar a cidade, já que os prisioneiros de batalhas anteriores haviam fugido para a cidade e estavam refugiados ali. Os homens de Jabes Gileade declararam que queriam fazer uma aliança com Naás (v. 2). Naás respondeu dizendo que con­ cordaria com a condição de que o olho direito de cada um fosse arrancado. O ato de arrancar os olhos é conhecido como sendo praticado pelos assírios e babilônios (2 Rs 25.7). Isto era um gesto político designado a trazer afron­ ta sobre os israelitas. Os versículos seguintes indicam (1 Sm 11.5-11), porém, que seria um homem de Benjamim (lit., “filho da direita”) que salvaria o olho direito deles. O povo de Jabes Gileade pediram uma trégua de sete dias para que pudessem encontrar uma figura salvadora para os livrar (v. 3). Já que Naás permitiu a trégua, ele deveria estar confiante de que nenhum indivíduo des­ ses seria encontrado. Quando os mensageiros chegaram em Gibeá, a cidade de Saul, eles entregaram um relatório ao povo de Gibeá concernente à situação deles. O povo de Gibeá chorou por causa desta notícia (v. 4). Considerando as relações íntimas entre Gibeá e Jabes Gileade (Jz 20.12-14), a reação do povo não é de surpreender. Quando Saul se aproximou da cidade, após levar o gado para o pasto, ele perguntou por que o povo estava chorando (1 Sm 11.5). Quando ele ouviu o relatório sobre a situação de Jabes Gileade, o Espírito de Deus apoderou-se dele, e ele ficou furioso (v. 6). Como foi mencionado acima, a notícia sobre o Espírito se apoderando de Saul relembra o período dos juizes quando Deus levantava líderes carismáticos para confrontarem um inimigo. A ira de Saul pelo sofrimento do povo de Jabes Gileade também reflete Sansão, quando o Espírito de Deus o conduziu a matar trinta homens em Asquelom (Jz 14.19). Em resposta a essa notícia, Saul pegou o jugo de bois, cortou-o em pedaços, e os enviou por todo o Israel (1 Sm 11.7) - uma cena assombrosamente similar a Juizes 19.29. Como a narrativa dos juizes, esta foi feita a fim de convocar as tropas em tempo de crise. O terror caiu sobre o povo depois que Saul ameaçou aqueles que não aderissem à batalha contra os amonitas. Saul reuniu as tropas na cidade chamada Bezeque, e os homens de Jabes Gileade receberam a palavra de que eles seriam salvos. Saul dividiu as tropas em três colunas e pela manhã atacou as forças amonitas. Alguém pode ponderar

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por que Saul demonstrara lealdade aos cidadãos de Jabes Gileade e queria protegê-los. Se, como levantamos a questão anteriormente, sua mãe fosse uma das mulheres tomadas daquela região segundo Juizes 20.12-14, então, ele pode ter tido um sentimento familiar e uma responsabilidade social de ajudá-los.

2. A renovação do reinado em Gilgal (11.14-15) I 14-15 Depois da notícia da batalha, o texto relembra a tradição quan­ do a monarquia foi inaugurada em Gilgal. Em Gilgal, o povo proclamou Saul rei diante do Senhor. Sacrifícios acompanharam a coroação como um sinal de celebração. Ao observar as tradições concernentes a Saul, entretanto, o leitor cuidadoso percebe que há três ocorrências sobre Saul ser coroado rei: a primei­ ra, no momento da unção feita por Samuel (10.1); segundo, quando ele foi escolhido entra a comunidade em Mispá (10.24); e, terceira, na posse de Saul em Gilgal (11.15). Esses três diferentes relatos da posse de Saul indicam que houve três tradições separadas concernentes a como Saul se tornou rei. Duran­ te o processo editorial, essas tradições haviam sido reunidas pelo historiadores deuteronomistas. A PARTIR DO TEXTO Este capítulo oferece uma das avaliações positivas sobre Saul. É interessan­ te que isto se passa em um cenário quando ele ajudou, com êxito, os israelitas a conquistarem um inimigo que os intimidava e brutalizava fisicamente. Saul é apresentado como a figura salvadora que Deus apontou para livrar o Seu povo da opressão. O texto nota que Saul ficou “furioso” (v. 6) quando ouvir falar da opressão dos moradores de Jabes Gileade. Ao fazer isso, isto nos lembra de que há ocasiões quanto é aceitável possuir uma ira justa por causa de um estado de coisas inaceitáveis. Essa ira nos impulsiona a tomar uma atitude e a envolver­ -nos quando certas situações exigem. Jesus, por exemplo, tornou-se furioso quando observou como os mercadores corrompiam o templo e exploravam o povo que vinha adorar a Deus. Deus permite que indivíduos se levantem e defendam a si e a outros da tirania, da opressão, da brutalidade, e da exploração. Isto não só inclui o uso de força física como autodefesa ou engajamento militar, mas também engloba as muitas outras maneiras com as quais podemos lutar contra a injustiça/opressão. Isto inclui, mas não se limita a: mudança de leis, criação de novas regras públicas, engajamento em negociações pela paz, participação na desobediência civil,

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tornar-se um defensor dos incapazes, prover assistências financeira ou material, ser voluntário empregando nosso tempo e energia em caridade ou missões, utilizar várias formas de mídia para levar a consciência pública, ou encontrar uma organização onde a voz/preocupação de alguém possa ser ouvida. Ao engajarmos em atividades que se opõem às multifárias formas de injustiça, racismo, exploração, intimidação e desigualdades, nós entramos em uma parceria com Deus, pela qual trabalhamos para transformarmos a sociedade e criarmos um mundo onde a equidade e a justiça possam ser estabelecidas.

D. O discurso de despedida de Samuel (12.1-25) POR TRÁS DO TEXTO Este representa o último capítulo da unidade sobre o estabelecimento do reinado de Saul. A unidade encerra com um grande discurso final de Samuel. Este discurso, que é Deuteronomista em sua origem e linguagem, encerra o período de juizes e de Samuel, e faz uma transição para o período da monar­ quia inicial (Noth, 1991, p. 17-26). No discurso final de Samuel, o profeta falou contra o desejo e a petição de Israel por um rei. Ele reiterou que Deus foi um líder fiel no passado de Israel. Além disto, Samuel defendeu seu caráter garantindo que ele não havia roubado o povo ou tomado deles, como o rei que eles pediram faria. O descontentamento de Samuel concernente ao reinado é depois contrabalanceado pela contrição do profeta e pedido de perdão. De forma irônica, Samuel não descarta diretamente a possibilidade de ter um rei, mas torna-se claro que a obediência de Israel deveria ser dirigida a Deus em primeiro lugar. Se os israelitas e seu rei honrassem a Deus acima de tudo, Deus permaneceria fiel a eles. Se eles abandonassem a Deus, eles seriam varridos para longe da terra (v. 25). Este capítulo também encerra o livro quanto à figura de Samuel, cujo nome somente aparece em uma breve referência em 25.1. NO TEXTO

1. As palavras de abertura de Samuel (12.1-5) I 1 -5 Este texto tem sido frequentemente chamado de discurso de despedida de Samuel. Diferentemente de outros líderes do passado de Israel (Moisés: Dt 33.1-29; 34.5-8; Josué: Js 24), o discurso de despedida de Samuel está separado

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da notícia de sua morte (25.1). Ao retratar este texto como o discurso de despedida de Samuel, os escritores bíblicos colocam Samuel entre os grandes líderes da história de Israel. Nesta primeira parte do discurso, Samuel parece muito defensivo e autoprotetor em suas afirmações. Samuel defendeu seu caráter e taxou o pedido de um rei como algo negativo. Ele mencionou que “rei vai diante de vós” (v. 2 ARC) embora Samuel houvesse andado diante do povo desde a sua mocidade. Além do mais, Samuel, em defesa de seu caráter, também deu investidas de despedida contra a instituição do reinado. Nos versículos 3-4, especialmente, Samuel reiterou a palavra “tomar” que é tão prevalente em 8.11-17. Samuel perguntou ao povo: “a quem tomei o boi ? A quem tomei o jumento ?... A quem defraudei? A quem tenho oprimido e de cuja mão tenho tomado presente e com ele encobri os meus olhos?” (v. 3 ARC). Estas afirmações ficam em forte contraste com o rei que Samuel disse anteriormente que tomaria do povo. Essas perguntas também levaram o povo a refletir sobre a liderança de Sa­ muel, e eles responderam: ...nem tomaste coisa alguma da mão de ninguém (v.4). A resposta do povo, não só vindicava Samuel como o líder segundo Deus, mas também os tornou completamente responsáveis por rejeitarem a Samuel. Em essência, eles não tinham desculpas para pedirem um rei e teriam apenas a si mesmos como culpados quando sofressem sob a liderança do rei.

2. Samuel dirige-se ao povo (12.6-25) I 6-25 Esta seção se inicia com uma repetição da história de Israel e uma defesa do Senhor. Samuel cobriu a história de Israel desde Jacó até aquele perí­ odo (v. 6a), passando por Moisés e Arão (v. 8) até o presente momento quando Israel se encontrava com Naás (v. 12). Samuel reiterou ao longo desta seção que sempre que o povo era confrontado pelo inimigo, o Senhor consistentemente respondia ao clamor de Israel pedindo socorro; até mesmo quando Israel não era fiel ao Senhor. Basicamente, este discurso enfatizava a fidelidade do Senhor para com o povo, e que quando eles clamavam a Deus, Ele vinha ao seu socorro e os livrava. Samuel estava confuso, portanto, quanto ao porquê eles clamavam por um rei nesta conjuntura de sua história (v. 12). Samuel também preparou sua mensagem um tanto sabiamente, pois, em sua resposta, ele não mencionou os seus filhos, que eram corruptos como os filhos de Eli. Além do mais, ele não mencionou o fato de que Saul, o rei atual, tinha acabado de derrotar Naás e de livrar os israelitas de suas ameaças. De acordo com Samuel, não havia nada de errado com a magistratura da era antecedente,

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e a mesma não deveria dar lugar à monarquia. Ao exaltar a geração anterior, que vivia sob a liderança dos juizes, sobre um pedestal, Samuel efetivamente condenou a geração presente e sua demanda por um rei. As palavras de Samuel foram confirmadas por uma trovoada que se desen­ volveu na estação da seca (v. 17-18). Este evento climático sobrenatural (era início de verão e as trovoadas não eram comuns) provava que Samuel não era simplesmente um velho incoerente, mas que as suas palavras estavam carrega­ das de autoridade do próprio Deus. O povo reagiu ao trovão pedindo que Sa­ muel orasse em favor deles para que não fossem mortos. Além do mais, o povo admitiu (v. 19) que pedir um rei foi um pecado (hãtã*). Samuel reconheceu que o pedido de um rei foi uma coisa má, mas ele os aconselhou a continuarem seguindo o Senhor e a servirem ao Senhor de todo o coração (v. 20). Esta frase deuteronomista característica (7.36; 1 Rs 8.23; 14.8; 2 Rs 10.31; Jr 24.7; 29.12) relembrava os israelitas de que mesmo que ter um rei não representasse uma situação ideal, a segunda melhor opção era permanecer obedientes ao Se­ nhor enquanto debaixo do controle do monarca. Além disso, Samuel garantiu ao povo que ele continuaria a orar por eles, mas: Somente temam o Senhor e sirvam-no fielmente de todo o coração, então o Senhor os enviaria ao exílio (1 Sm 12.25). A história posterior provou que este foi o caso tanto para o reino do norte de Israel (2 Rs 17.7-18) como para o reino do sul, de Judá (2 Rs 25.1­ 21). A PARTIR DO TEXTO O registro do discurso de despedida de Samuel ao povo de Israel nos lembra da grande misericórdia de Deus e de Sua disposição para trabalhar em favor da humanidade apesar do pecado e da rebelião da mesma. Embora os israelitas rejeitassem a Deus ao exigirem um rei, o Senhor não os lançou fora e nem os repudiou. Ele continuou a agir redentoramente em direção ao Seu povo mesmo que isto significasse que alguns elementos do relacionamento da aliança tivessem de ser ajustados. Deus compadeceu-se e permitiu que os israelitas tivessem um rei, mas o rei e o povo foram exortados a colocá-lo em primeiro lugar e a servi-lo de todo o coração. A história de Deus e Israel em 1 Sm 12 é repetida ao longo das Escrituras. O Altíssimo teve de vencer continuamente os erros e falhas dos humanos e sua tendência de exigir que as coisas saiam do seu jeito. Isto foi verdade no Éden com o primeiro casal (Gn 11), na época do deserto quando os israelitas colocavam Deus à prova e reclamavam repetidamente (Ex 16—17; Nm 10—25), na época do assentamento quando os israelitas

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se comprometeram com os cananeus (Juizes—Reis), no período pós-exílico quando os israelitas se esforçavam para manter-se fiéis a Deus (Is 57—58; 64— 66), e no período intertestamentário e na época de Cristo. A Bíblia consistente e ousadamente reitera que, em cada geração, Deus tem bondosamente respondido aos problemas do pecado humano e provido recursos espirituais para reparar o dano que isso causa. Por meio da propiciação de Cristo, a graça salvadora e curadora de Deus continua trabalhando no mundo; lembrandonos de que Ele nunca abandonará os humanos por causa do pecado, mas, ao contrário, está sempre procurando ser reconciliado com eles e a restaurá-los.

E. Os erros e a queda de Saul (13.1—15.35) POR TRÁS DO TEXTO 1 Samuel 7— 12 essencialmente representa o fim da magistratura de Sa­ muel e o início do período monárquico de Israel. O reinado era baseado basi­ camente na rejeição da liderança do Senhor, e não de Samuel, como ele alega, pela comunidade de Israel. O Senhor concedeu a Israel um rei como resposta ao pedido do povo. Saul, cujo nome significa “aquele que foi requisitado”, pa­ rece à primeira vista ser um bom candidato: ele é alto e de boa aparência, e ele vem de uma família abastada. Saul também conduziu triunfantemente os isra­ elitas em combate contra os inimigos de Israel, particularmente os amonitas. Além do mais, a linguagem em torno da batalha de Saul contra os amonitas se assemelha à época dos juizes, quando Deus levantava libertador para salvar Is­ rael de seus inimigos. Saul também foi à batalha contra os filisteus, o principal rival de Israel, que parece ser a principal razão pela qual o Senhor escolheu a Saul em primeiro lugar. Assim, o texto, por um lado, retrata Saul em uma luz positiva. Os primeiros três capítulos de Samuel são vistos juntos porque estão liga­ dos por um tema comum: o fracasso de Saul como o novo monarca. Diferente­ mente da unidade anterior, que retratou os momentos favoráveis de Saul, esses capítulos todos apontam para um dos vários erros e/ou más escolhas de Saul. Já no final desta unidade, torna-se óbvio para o leitor que Saul acabou sendo uma péssima escolha como rei: ele presidiu sobre as oferendas que Samuel deveria ter ministrado, ele fez um voto/juramento precipitado que quase custou a vida de Jônatas, e ele desobedeceu às ordens de Deus na batalha contra os amalequitas. Ao chegar ao final desses três episódios, o Senhor está tão desapontado

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com Saul que ele é eventualmente rejeitado pelo Senhor como rei. O nível de insatisfação com Saul fez o Senhor alegar que havia se arrependido de ter fei­ to Saul rei (15.11). Os capítulos 13— 15 então servem como uma importante ligação entre o que havia acontecido na unidade anterior e a que se segue. A rejeição de Saul finalmente pavimentou a estrada para Davi surgir como o per­ sonagem central no restante dos livros de Samuel. Antes do capítulo 13, o povo confessou a Samuel que a petição deles por um rei se constituiu em um pecado; entretanto, Samuel os lembrou de que o reinado deveria ser aceito se o rei e o povo permanecessem fiéis ao Senhor. Esta unidade mostra que o rei não seguiu ao Senhor de todo o coração, e, portanto, pagou um tremendo preço por sua desobediência. NO TEXTO

1. A introdução de Saul (13.1) H 1 Primeiro Samuel 13.1 usa uma fórmula padrão para introduzir o reinado de um rei na H.D. (veja 1 Rs 14.21; 22.42). Esta fórmula geralmente declara a idade do rei na época da coroação e a quantidade de anos que ele reinou sobre Israel/Judá. No caso de Saul, entretanto, o texto em hebraico está deteriorado, e não é confiável. O texto do versículo 1 literalmente diz que Saul tinha um ano de idade quando se tornou rei e reinou sobre Israel por dois anos. Duas coisas estão imediatamente problemáticas com esta fórmula. A noção de que Saul tinha um ano de idade quando se tornou rei não pode se suster. Embora três tradições da LX X forneçam o número 30 (a NVT adota esses números), a realidade é que nós não sabemos a idade de Saul, e 30 anos pode ser um pou­ co demais para ele, considerando que Saul tinha um filho com idade para ser guerreiro (veja a seguir). Por esta razão, a NRSV e a JPS deixaram esta parte do texto em branco. A ideia de que Saul tenha reinado apenas dois anos é uma leitura improvável e talvez exija um número antes deste. Atos 13.21 usa o nú­ mero 40 arredondado para o reinado de Saul (a NVI também usa “40” aí), e Josefo também atribui o mesmo número para o reinado de Saul. O número 40, porém é geralmente entendido como um número arredondado para uma geração quando os números mais específicos são desconhecidos. Embora al­ guns tenham argumentado que o número “dois” seja preciso e deve permanecer

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assim, muitos eruditos modernos questionam esta pressuposição e optam por uma leitura diferente (Driver, 1966, p. 96,97).

2. Saul ataca os filisteus (13.2-7a) ■ 2 - 7 a Nesta subunidade, Saul parece cumprir a missão para a qual fora escolhido: lutar contra as forças filisteias. Logo após a introdução de Saul no v.l, o texto se inicia no v. 2 com a menção de que Saul escolheu três mil homens para o seu exército: dois mil estavam com ele em Micmás nas montanhas de Betei, e mil estavam com seu filho Jônatas em Gibeá de Benjamim. A dispo­ sição do exército não só faz alusão à perspicácia militar de Saul, mas também destaca que as hostilidades entre os israelitas e os filisteus haviam alcançado um alto nível neste ponto. A batalha que começa no capítulo 13 continua de diver­ sas formas até o capítulo 14. No início da batalha, o texto destaca que Jônatas iniciou as operações de combate contra os filisteus (como fará no cap. 14).

Os filisteus Os filisteus estavam entre os povos do mar que primeiro aparece­ ram no Mediterrâneo Oriental no fim do século 13 a.C.. Eles foram expul­ sos de sua terra natal no Egeu durante o tumultuoso período no fim da Idade do Bronze. Naquele tempo, os impérios egípcios e hititas estavam em estado de declínio, e os povos do mar exploravam este vácuo no poder invadindo territórios previamente sob controle egípcio e hitita. Em cerca de 1190 a.C., Ramsés III entrou em confronto com eles, derrotou­ -os, e assentou os invasores nas cidades costeiras de Gaza, Asquelom, e Asdode. Algum tempo depois de 1150 a.C., a destruição desses locais indicava que os filisteus expulsaram seus Senhores egípcios à força. Os filisteus, então, formaram uma coalizão de cinco cidades (Gaza, Asque­ lom, Asdode, Ecrom e Gate) conhecida como Pentápolis. Nos próximos 150 anos (até 1000 a.C.), a confederação filisteia era a entidade mais poderosa naquela parte do mundo. Os filisteus confrontaram os israeli­ tas durante o período de assentamento (Jz 13—16) e no início da monar­ quia (1 Sm 13—14;31). Davi conseguiu subjugar os filisteus e infligir uma esmagadora derrota sobre eles. Embora enfraquecidos, os filisteus ainda existiam no período da monarquia dividida, frequentemente formando alianças com outros países em suas lutas contra o território de Israel e Judá (Am 1.6-8; 2 Cr 21.16-17).

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O versículo 3a nota que Jônatas atacou os destacamentos dos filis­ teus em Gibeá. Dois pontos se destacam concernentes a esta informação. Primeiro, o hebraico indica que os filisteus estabeleceram uma guarnição/ fortaleza militar (nêsib ) na cidade natal de Saul, Gibeá (veja Miller, 1975, p. 145-166). Os filisteus estenderam sua presença profundamente dentro do território israelita. Em uma virada irônica, os filisteus armaram barraca na cidade natal de Saul, aquele a quem Deus escolhera para expulsar os filisteus de Israel. Segundo, Jônatas, e não Saul, levou a batalha aos filisteus e feriu (vayyak ) fortemente os filisteus. Ao ler estas declarações, a seguinte pergun­ ta vem à mente: “Será que o texto está começando a insinuar a fraqueza de Saul como líder?” Não só os filisteus acampam na terra de Saul, mas o filho dele conduz o ataque contra eles. Os detalhes da guerra de Israel contra os fi­ listeus pelo restante do capítulo 13 e no capítulo 14 fornece mais evidências de que este é o caso. Quando Saul percebe que Jônatas iniciara o ataque, ele toca a shopher ou trombeta (um costume normal para convocar as tropas para a batalha) e pro­ clamou: Que os hebreus fiquem sabendo disto! O uso do termo hebreus por Saul no versículo 3 é tanto estranho como problemático, porque os israelitas nunca referiam a si mesmos desta forma. A frase pode ter sido retificada basea­ da na LX X para que se leia: “Os hebreus se rebelaram”. Esta leitura se referiria à indignação dos filisteus pelo ataque de Jônatas à guarnição deles. Embora Jônatas tenha iniciado o ataque (v. 3a) contra os filisteus, o texto atribui a ação a Saul (v. 4a). Já que Saul era o rei, ele recebeu o crédito pela in­ cursão. À luz do fato de que os israelitas tinham ganhado uma força na batalha, o povo foi convocado para se unir a Saul em Gilgal. Os filisteus responderam a esses acontecimentos ajuntando uma impres­ sionante força: 30 mil carros, seis mil cavaleiros, e tantos soldados quanto a areia da praia (v. 5). A hipérbole da última afirmativa insinua que os israelitas estavam se sentindo dominados por aquela poderosa manifestação de força. Consequentemente, os israelitas se esconderam em cavernas e buracos, entre as rochas e em poços e cisternas (v. 6). O povo não só se escondeu, mas mui­ tos deles fugiram, deixando Saul, e atravessaram o Jordão para o território de Gade e Gileade (v. 7a).

3. Saul faz um sacrifício inadequado (13.7b-15a) ■ 7 b -1 5 a Este texto é considerado como uma subunidade baseado no fato de que o mesmo descreve uma das duas cenas (veja cap. 15) nas quais

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Saul foi repreendido por Samuel por não obedecer à ordem de Deus. Este texto também interrompe o fluxo da seção anterior (v. l-7a) e das seguintes unidades (v. 15b-23; 14.1-52). Mais provavelmente, este texto foi inserido por outra mão a fim de explicar a razão pela qual a dinastia de Saul nunca se materializou (McCarter, 1980b, p. 228). Esta seção se inicia no versículo 7b com a afirmação de que aqueles que se uniram à Saul em Gilgal foram a ele tremendo. A reação temerosa do povo devido à falta de confiança em Saul finalmente o levou a tomar uma decisão precipitada (v. 9). O cenário deste texto ecoa as tradições da guerra santa em que o sacrifício era exigido antes que os israelitas pudessem se engajar em ba­ talha. Samuel instruiu a Saul que esperasse por ele por sete dias (10.8), mas sete dias se passaram e Samuel ainda não havia chegado. A ausência de Samuel também desanimou as tropas de Saul e, como resultado, o estado de espírito deles se enfraqueceu. Sem a presença de Samuel, será que o Senhor os ajudaria na batalha contra os filisteus ? A situação continuou a se deteriorar para Saul e as tropas israelitas, Saul começou a pensar em como manter seus exércitos sem que abandonassem sua posição. O texto indica que o povo já havia começado a abandonar Saul (v.8b). Em resposta a esta situação difícil, Saul pediu: Tragam-me o holocausto e os sacrifícios de comunhão (v.9). Saul, essencialmente, tomou as questões sacer­ dotais em suas próprias mãos e ele mesmo apresentou as ofertas pacíficas. O texto hebraico indica que, assim que Saul terminou de oferecer os sacrifícios, Samuel apareceu em cena. O momento da chegada de Samuel pode levantar algumas suspeitas aqui. Será que é possível que Samuel estivesse armando uma cilada para o rei? Samuel parece estar brincando de “gato e rato” com Saul: ele não está absolutamente atrasado, mas esperou o momento mais tarde possível para chegar (Alter, 1999, p. 72). Se Samuel estivesse testando Saul para saber se ele permaneceria obediente, ele fez um teste muito difícil, considerando a pressão sob a qual Saul estava. Quando Samuel se encontrou com Saul no versículo 11, ele o apresentou a seguinte pergunta acusadora: O que você fez? Aqui, Samuel usa uma forma de discurso profético no qual as perguntas eram feitas pelo profeta para estabe­ lecer os fatos, assim como o procedimento de um processo judicial. Saul reagiu um tanto defensivamente: Quando vi que os soldados estavam se disper­ sando e que não tinhas chegado no prazo estabelecido (v. 11). Saul tentou colocar a culpa de seu erro em Samuel. Saul até usou uma forma enfática em referência a Samuel, enfatizando assim, a demora de Samuel em chegar a Gil­ gal. Além disso, ele relembrou que porque os filisteus estavam se reunindo em

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Micmás, ele sentiu-se obrigado a oferecer o holocausto (v. 12). Esta foi uma ação que ele não queria tomar, mas teve de fazê-la por causa da necessidade. Pode-se quase simpatizar por Saul e por sua situação e entender porque ele ofereceu os sacrifícios. Não obstante, a dura resposta de Samuel no versículo 13 traz o leitor de volta a por que Saul estava errado. Samuel disse: Você agiu como tolo, desobedecendo ao mandamento que o Senhor, o seu Deus, lhe deu; se você tivesse obedecido, ele teria estabelecido para sempre o seu reinado sobre Israel. Saul não só desobedeceu ao mandamento do Senhor segundo Samuel, mas Samuel também lhe disse que o Senhor o castigaria por seus atos. Até este ponto na história de Saul, nenhuma informação foi fornecida concernente à duração do reinado de Saul. Samuel indicou que Deus tinha a intenção de estabelecer um reino eterno para Saul (v. 13b). Por causa da deso­ bediência de Saul, este plano agora mudou, e o Senhor escolheria outro líder segundo o seu coração (v. 14). O fracasso da dinastia de Saul se materializar por causa de sua deslealdade também reflete a luta de Jeroboão I, cuja dinastia foi interrompida por causa de sua desobediência (1 Rs 11.37,38; 14.6-10). Embora não seja mencionado pelo nome, Davi é indiretamente introdu­ zido no texto antes que apareça oficialmente na narrativa (como o é em 1 Sm 15.28). Embora a sucessão da dinastia se torne um tema importante nos livros de Samuel e Reis, o texto indica que Jônatas não seria o sucessor de Saul; in­ dicando, assim, que o novo líder de Israel surgiria de outro lugar. O homem (Davi) que sucederia Saul é designado como o príncipe ou líder do povo de Deus (v. 14). Com a notícia de que a casa de Saul seria cortada, o caminho estava preparado para Davi surgir como o líder que ofuscaria Saul. Quando Samuel completou essas palavras fatais a Saul, ele se levantou e deixou Saul em Gibeá de Benjamim.

4. A batalha de Saul contra os filisteus continua (13.15b-23) ■ 1 5 b -2 3 O texto, nessas alturas, essencialmente recomeça de onde o ver­ sículo 7a havia parado. Saul é deixado com 600 homens que lutariam contra as forças filisteias (v. 15b). O número 600 é curioso, porque ecoa o número de homens que fugiram da guerra civil em Juizes 20. A conexão entre as duas narrativas é difícil de discernir; porém, a mesma não deve ser ignorada já que muitas outras dicas nas narrativas de Saul se ligam diretamente àquela cena horrível (veja a seguir). A única outra informação que está incluída no relatório

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desta batalha está relacionada com os movimentos das tropas filisteias: o corpo principal se dividiu em três pelotões para avançarem contra os homens de Saul (1 Sm 14.17). A tática que Saul usou contra os amonitas anteriormente agora estava sendo usada contra ele. Embora o relatório da batalha seja truncado aqui no final do versículo 13, a trama é retomada novamente no capítulo 14. Os versículos 19-22 encerram este capítulo informando aos leitores que Saul e seus homens estavam em desvantagem militar contra os filisteus. Os filis­ teus eram experientes no trabalho de ferreiro, mas os israelitas não. Quaisquer utensílios da fazenda ou armas de ferro tinham de ser feitos pelos filisteus. Os filisteus se recusavam a fazer armas para os hebreus porque eles os usariam con­ tra os filisteus (veja comentário em 4.9). Os filisteus amolavam as ferramentas rurais e cobravam dos israelitas um pim por seus serviços, que eqüivalia a dois terços de um ciclo de prata. Esta informação fornece uma explicação porque os homens de Saul e Jônatas não possuíam armas de metal, como espadas e lanças.

Pim O termo pim {pim) no AT é um hápax legomenon, significando que ocorre apenas uma vez no texto bíblico (traduzido do grego, lit., "leia-se uma vez"). O termo não é hebraico, e o peso pertence a uma metrolo­ gia não israelita. Diversos pesos pim foram descobertos em Israel, mas o lugar deles no antigo sistema metrológico é obscuro. Alguns eruditos alegam que seja uma medida de peso distintamente filisteia, que se en­ quadra no contexto de 1 Sm (Cook, 1988, p. 1053,1054).

5. Jônatas e os filisteus (14.1-23a) I 1 -5 Com o cenário básico do conflito entre os homens de Saul e os filis­ teus estabelecido no capítulo 13, esta subunidade detalha com descrições mais gráficas os heroicos esforços de Jônatas quando ele iniciou o ataque contra as forças filisteias. Ao fazer isto, o narrador é cuidadoso em distinguir entre a falta de ação de Saul contra os filisteus e a disposição de Jônatas em levar a batalha a eles. Como resultado, Jônatas é visto sob uma luz muito favorável, enquanto que Saul é retratado com uma abjeta desilusão. O versículo 1 inicia com uma fórmula padrão de uma unidade narrativa, um dia. O tempo transcorrido entre os acontecimentos no final do capítulo 13 e iní­

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cio do capítulo 14 é indeterminado, mas o versículo 1 se conecta com a notícia da batalha em 13.18. O versículo 1 reconta a ocasião em que Jônatas tomou a iniciativa de con­ frontar os rivais filisteus. Isto fica evidente quando Jônatas encorajou seu es­ cudeiro a ir até o destacamento filisteu. Enquanto Jônatas estava pronto para lutar, Saul permanecia sentado debaixo de uma romãzeira na fronteira de Gibeá, em Migrom (14.2). O texto hebraico destaca o abandono de Saul quando usa iyõsêb) para descrever que ele estava sentado. A sintaxe implica que Saul continuava sentado debaixo da árvore sem (nenhuma intenção de) se mover. Embora Saul estivesse acompanhado de seiscentos soldados, do profe­ ta Aías, e do éfode, Saul nem se moveu contra os filisteus. Ao contrário, foi Jô ­ natas que mais uma vez (13.3) decidiu agir contra o inimigo. Jônatas, além do mais, não anunciou suas intenções, mas manteve o assunto escondido de seu pai. É possível que Jônatas temesse que seu pai não o permitiria se aproximar da guarnição, ou pode ser que Jônatas tenha se cansado de esperar que seu pai agisse e estava ansioso para engajar-se contra eles. O caminho de Jônatas em direção aos filisteus era tanto sinuoso como pe­ rigoso. A fim de alcançar a guarnição, ele teve de descer um penhasco rochoso e escalar outro (v. 4-5). O próprio nome dos penhascos indicavam o perigo da missão: Bozes significa “pantanal” e Sené pode ser traduzido como “espinho­ so”. Embora tal missão possa parecer imprudente, o terreno árduo lhe forneceu a cobertura necessária para que prosseguisse contra os filisteus com discrição. H 6 -1 5 Embora Jônatas tivesse pouca chance nessa manobra, suas ações eram motivadas por sua própria fé no Senhor. Jônatas se engajou na guerra santa, e suas palavras e ações indicavam sua consciência de que a presença de Deus esta­ va com ele. Ele se referiu aos filisteus de forma depreciativa, aludindo-se a eles como incircuncisos, e ele colocou a batalha dentro da providência de Deus ao afirmar: Talvez o Senhor aja em nosso favor (v. 6). Jônatas também estava consciente de que, com Deus, os números não importam, já que nada pode impedir o Senhor de salvar, seja com muitos ou com poucos. O escudeiro também concordava com Jônatas, e respondeu dizendo: Faze tudo o que tive­ res em mente; eu irei contigo (v. 7). Circuncisão O ato de remover a pele do prepúcio dos homens não era um ritual exclusivamente praticado pelos israelitas. De acordo com Jeremias, o povo do Egito, Judá, Amom, e Moabe também circuncidavam os meninos

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(9.25-26). O historiador grego Heródoto, escrevendo no quinto século a.C., argumentava que a circuncisão se originou com os egípcios. Evidência arqueológica também sustenta a noção de que os egípcios praticavam a circuncisão tão primordialmente quanto no século 23 a.C., e os guerreiros sírios eram circuncidados em cerca do ano 3000 a.C.. Para os israelitas, a circuncisão desempenhava um importante papel na vida religiosa. Ela simbolizava a aliança especial de Deus com Abraão e seus descendentes (Gn 17.9-14). O termo também pode ser entendido metaforicamente quanto ao compromisso integral de alguém para com Deus (Dt 10.16; 30.36; Jr4.4). Nos livros de Juizes (14.3) e de Samuel (1 Sm 14.6; 17.36), os filisteus eram chamados de incircuncisos como um epíteto padrão de desprezo para com eles, e como uma evidência de que eles eram naturais do mundo semítico (Gordon, 1986, p. 137).

As ações de Jônatas também indicavam que ele estava dependendo da pre­ sença de Deus para dirigir o seu caminho. Não incomum em época de guerra santa (Jz 6), Jônatas armou um cenário pelo qual ele conheceria/discerniria as intenções de Deus e se o ataque contra os filisteus estava sendo apoiado por Deus. Se os filisteus os provocassem (lit., subi a nós)yentão, ele tomaria isto como um sinal de que Deus havia entregado os filisteus em suas mãos (1 Sm 14.10). Quando os filisteus reagiram da maneira mencionada anteriormente, Jônatas teve a garantia de que Deus os entregou em nossas mãos. Que não seja ignorado nesta frase o trocadilho com o próprio nome de Jônatas, pois, o mesmo literalmente significa “o Senhor entregou” Nos versículos 6-8, o texto também usa uma forma mais extensiva do nome Jônatas (yêhõnãtãn). A forma extensiva de seu nome também destacava a subserviência de Jônatas ao Senhor e o seu papel como um canal do Senhor. Considerando o contexto, o nome e as ações de Jônatas são significativos. Quando Jônatas feriu os filisteus, o Senhor lhe deu sucesso. Nesse ataque, Jônatas e seu escudeiro mataram cerca de 20 homens, e um terror se espalhou no acampamento. B 1 6 -2 3 Foi somente depois que as atalaias de Saul observaram a batalha indo e vindo que Saul finalmente resolveu agir e entrar na batalha. Antes de en­ trar na batalha, ele primeiro contou seu homens e ficou determinado que Jonas e seu escudeiro não estavam presentes. Saul então mandou que a arca de Deus fosse trazida diante dele (v. 18). O texto hebraico é impreciso ou deteriorado nesse ponto, já que a arca de Deus estava localizada em Quiriate Jearim (de

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acordo com 1 Sm 6). A LX X emprega a palavra “éfode” aqui, e esta é provavel­ mente uma melhor leitura. O éfode continha o Urim e o Tumim (Êx 28.30), dois objetos divinos que eram consultados para determinar a vontade de Deus sobre uma questão ou situação específica. Antes que o sacerdote pudesse consultar o Urim e Tumim, Saul deu ordem de “Retira a tua mão” (v. 19 ARC). O barulho e a confusão no acampamento filisteu podem ter fornecido evidência suficiente de que eles não necessitavam consultar a Deus mais sobre aquele assunto. Também é possível deduzir que Saul ficou impaciente com o protocolo relativo à guerra santa, assim como fi­ zera com a oferenda dos sacrifícios no lugar de Samuel (1 Sm 13.7b-l 5). Se for isto, então, esta pode ter sido a segunda ocasião em que a impaciência de Saul lhe causara problemas. O Senhor deu vitória militar aos israelitas naquele dia (14.23a). Os hebreus que foram para o lado dos filisteus voltaram para Saul e Jônatas, e os homens que estavam escondidos em Efraim também começaram a perseguir os filisteus. É importante notar que, não obstante, que foi a fé de Jônatas no Senhor e a ousadia de sua ação que facilitaram a vitória, e não algo que Saul tivesse feito.

6. O voto imprudente de Saul (14.23b-46) ■ 2 3 b -3 0 A batalha prosseguiu até Bete-Áven e entrou em um novo está­ gio. Como resultado desta batalha, as tropas ficaram exaustas. Embora a bata­ lha estivesse em favor de Israel, os homens de Saul estavam fatigados e famin­ tos (v. 28). No meio dessa situação, Saul colocou o povo sob uma maldição/ voto (v. 24). O voto de Saul essencialmente proibia os soldados de comerem qualquer alimento até a noite. Qualquer indivíduo que violasse esta proibição estaria sujeito à morte (v. 44). A decisão de Saul era tola, já que limitava a efici­ ência de suas tropas na batalha contra os filisteus. A prova de sua imprudência é encontrada na própria linguagem. Em hebraico, a forma da palavra para fazer um voto {vayõ el) soa semelhante ao verbo “ser tolo” (yã a/). O trocadilho é difícil de ser ignorado. Outras traduções referem a isto como “um ato mui­ to imprudente” (NRSV), “um grande erro” (Klein, 1983, 130), e uma “trans­ gressão de ignorância” (LXX). Permanece obscura a razão de Saul tomar uma atitude drástica dessa, mas deve-se destacar que, mais uma vez, Saul fez uma trágica tolice durante uma ocasião de guerra santa. Quando as tropas de Saul encontraram mel no campo, os homens não puderam comer porque tinham medo da maldição de Saul (v.26). Jônatas, por

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causa de sua posição no campo de batalha, não ouviu o voto proferido por seu pai. Sendo um soldado prático, entretanto, Jônatas molhou a ponta de seu cajado na fava de mel porque estava com fome. Assim que ele comeu o mel, seus olhos brilharam, significando que a sua força retornou e ele ficou reno­ vado (v.27). Quando os soldados contaram para Jônatas que ele havia violado a proibição que seu pai colocara sobre as tropas, ele condenou as ações de seu pai: Meu pai trouxe desgraça para nós (v. 29). Como Acã, que trouxe desgraça ( 'ãkar) à comunidade israelita quando roubou os despojos de guerra (Js 7.25), assim Saul desgraçou (*ãkar) a terra com suas ações. O alimento que havia rea­ vivado os ânimos de Jônatas também teria renovado a força das tropas de Saul. Jônatas até admitiu que, se as tropas tivessem permissão de comer dos despojos da batalha, o estrago infligido contra os filisteus teria sido maior (1 Sm 14.30). 0 voto imprudente e tolo de Saul, não obstante, inibiu, em vez de promover um sucesso maior. 1 3 1 - 3 5 Apesar das ações de Jônatas, a batalha continuou em Aijalom, cerca de 30 Km de Micmás (v. 31). Compreensivelmente, as tropas e o povo se torna­ ram extremamente cansados e famintos. A batalha continuou até ao anoitecer, e, ao cair da noite, os soldados tomaram dos despojos da guerra - inclusive ovelhas, bois e novilhos —e os mataram no chão. O texto indica que os homens devoraram (como urubus) os despojos, enfatizando a severidade da fome deles (v. 32). Porque estavam tão famintos, os homens nem pensaram em preparar adequadamente os animais para o consumo, assim, eles comeram com o sangue ainda neles. Nesse processo, os homens imprudentemente violaram um impor­ tante estatuto cultuai (Lv 19.26; Dt 12.23-27). Saul percebeu que seus homens agiram sem fé e violaram a injunção sacer­ dotal. Em resposta, ele exigiu que rolassem uma pedra grande, sobre a qual po­ deriam matar os animais que tinham em suas mãos. Saul, então, transformou a pedra em um altar improvisado sobre o qual os animais eram mortos. As ações de Saul aqui parecem hipócritas. Antes deste episódio, Saul pouco pensou em seguir o protocolo religioso (1 Sm 13.7b-15; 14.19). Neste contexto, ele teve cuidados especiais para não ofender ao Senhor. O texto pode estar ressaltando isto para demonstrar as inconsistências de Saul e, assim, destacar outra falha de caráter nele. H 3 6 - 4 6 Na conclusão do sacrifício, Saul instigou os homens a continuarem perseguindo os filisteus até o raiar do dia, sem deixar sobreviventes. As tro­ pas reagiram favoravelmente, mas o sacerdote que estava entre eles sugeriu que

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consultassem ao Senhor sobre este assunto primeiro. Quando Saul concordou em aceitar esse plano e consultou ao Senhor, ele não recebeu nenhuma resposta do Senhor (v. 37). A falta de uma resposta significava o mesmo que “não”. Saul averiguou que a razão pela qual Deus não respondeu favoravelmente era por­ que havia pecado no acampamento. Saul, portanto, reuniu os oficiais dos sol­ dados para determinar qual era o grupo culpado. Uma vez que o grupo culpado fosse identificado, ele puniria de morte, ainda que fosse o seu filho Jônatas. A fim de determinar o culpado, uma divisão binária foi proposta com Saul e Jônatas de um lado, e os oficiais (lit., “quinas”) do outro. A ironia deste cená­ rio é que os soldados sabiam que Jônatas havia comido do mel, contudo, eles deixaram que Saul chegasse a esta conclusão (v. 39). O primeiro teste incluía o uso do Urim e Tumim. Quando estes foram consultados, Jônatas e Saul foram escolhidos entre os soldados. A segunda fase incluía lançar sortes para identifi­ car o culpado. O método de lançar sortes ecoa a história de Acã na batalha de Ai (Js 7.16-18) e a escolha de Saul como rei (1 Sm 10.19-21). Nessas alturas, os soldados tentaram evitar que Saul continuasse a tomar novas medidas. Mas, Saul não os ouviu, e, quando a sorte foi lançada, Jônatas foi indicado como o culpado. Jônatas não negou ter comido do mel, e Saul estava disposto a tirar a vida do filho. A disposição de Saul em tirar a vida de Jônatas também invoca a cinzenta história de Jeftá, cujo voto ceifou a vida de sua filha (Jz 11.34-40). Jônatas não teve o mesmo destino, porém. Os soldados lembraram Saul de que a vitória de Jônatas era um sinal de que Deus estava com ele, e eles redimiram a vida dele. Em 1 Samuel 13—14, Saul é apresentado como um obstáculo para o suces­ so contra os filisteus. Saul “ficou sentado” enquanto os filisteus ocupavam uma guarnição em sua cidade natal; Jônatas, em vez de Saul, iniciou dois ataques contra os acampamentos dos filisteus; Saul declarou um voto que ocasionou os soldados a passarem fome em tempo de batalha e impediu Israel de experi­ mentar uma vitória maior sobre os filisteus; e ele contribuiu para a violação do protocolo religioso por parte dos soldados. Além do mais, Saul estava disposto a matar Jônatas, o próprio indivíduo que fora tão instrumental para o sucesso de Israel contra os filisteus. Ao longo dos capítulos 13—14, Jônatas parece ser o candidato que cumpriria a palavra de Deus a Samuel (9.16) e seria, portan­ to, um herdeiro adequado para o trono de Saul. A desobediência de Saul em 13.7b-15a, entretanto, impedia Jônatas de suceder a Saul no estabelecimento em longo prazo do reino de Saul.

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7. Diversos relatos sobre as batalhas e a família de Saul (14.47-52) I 47-48 Esses dois versículos recontam as gloriosas conquistas do reinado de Saul. Esta informação, mais provavelmente deriva de uma fonte diferente, uma fonte que seria muito pró-Saul em sua perspectiva, já que diverge tão dra­ maticamente das outras tradições relacionadas às batalhas de Saul. Saul recebe crédito por vitórias militares sobre os vizinhos de Israel: moabitas, amonitas, edomitas, os reis de Zobá (que era um reino arameu), os íilisteus. Em ne­ nhum outro lugar em Samuel está registrado que Saul lutou contra os reinos de Moabe ou de Edom, mas o capítulo 11 preserva esta batalha contra os amo­ nitas. Os capítulos 13— 14, especialmente, recontam as guerras de Saul contra os Íilisteus, mas o texto é claro que ele nunca os subjugou. O fracasso de Saul em dedicar os amalequitas à destruição (cap. 15), mais tarde levou o Senhor a rejeitá-lo. H 49-51 Um registro da família de Saul é fornecido após a notícia de que ele garantiu o seu reino no versículo 47. Isto não é surpreendente já que insinua uma possível sucessão dinástica, uma vez que a monarquia de Saul estivesse estabelecida. Três dos filhos de Saul são enumerados primeiro: Jônatas, Isvi e Malquisua. Dos três filhos, somente Jônatas tem um papel significante na narrativa bíblica. Isvi é mais provavelmente uma variante do nome Is-Bosete (2 Sm 2.8) e Esbaal (1 Cr 8.33). Malquisua é listado como um dos filhos que mor­ reram com Saul no monte Gilboa (1 Sm 31.2-3) juntamente com Abinadabe, que não é referido em 14.49. Além de seus filhos, o texto faz referência a Ainoã, sua esposa. Nada se sabe sobre ela, mas Davi, mais tarde, tomou uma Ainoã como esposa (e para a possí­ vel conexão com a esposa de Saul, veja o cDmentário em 27.43). A filha de Saul, Mical, casou-se com Davi (18.17-28) e mais tarde o salvou de Saul (19.11-17). 0 texto também lembra que Mical nunca reproduziu um potencial herdeiro para Davi (2 Sm 6.23). Abner era o comandante do exército de Saul. Ele é conhecido como filho de Ner. Tanto Ner como o pai de Saul, Quis, eram filhos de Abiel. O registro da família indica que Abner era parente sanguíneo de Saul. 1 52 O capítulo encerra com a menção de que houve guerra acirrada entre Saul e os íilisteus. Portanto, Saul mantinha seus olhos abertos para um homem forte e corajoso que pudesse lhe prestar serviço. Embora o texto não mencio­ ne Davi por nome, ele iria posteriormente servir no exército de Saul e lutar contra os íilisteus com grande sucesso.

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8. Uma ordem divina (15.1-3) ■ 1 -3 A batalha contra os filisteus nos capítulos 13— 14 fica na retaguarda no capítulo 15. Os filisteus, não obstante, ocuparão a atenção de Saul e de Israel nos capítulos seguintes. Neste capítulo, os amalequitas se tornam o principal oponente do exército de Israel. Esta subunidade abre com o relato de Samuel sobre uma ordem divina para Saul. Samuel relembra Saul de que o Senhor o enviara para ungir a Saul como rei de Israel. Com suas credenciais estabelecidas, Samuel, então, pros­ seguiu o formato profético padrão: escute agora a mensagem do Senhor diz o Senhor dos Exércitos (v. 1-2). Alguns pontos interessantes devem ser considerados neste contexto. Primeiro, o verbo hebraico (sãm a ') geralmente significa “escutar” ou “ouvir”, mas a sintaxe nesta frase (sem a' leqôl) indica que a mesma deve ser traduzida mais adequadamente como “obedecer”. Além do mais, Samuel se referiu ao Senhor como “o Senhor dos Exércitos”. O termo “exércitos” (sebã ôt) pode também ser traduzido como “hostes”. Consideran­ do o contexto seguinte, que está novamente preocupado com o tema da guerra santa, esta é uma designação adequada para Deus. Após a introdução, Samuel transmitiu a ordem do Senhor para Saul: Ago­ ra vão, ataquem os amalequitas e consagrem ao Senhor para destruição tudo o que lhes pertence. Não os poupem; matem homens, mulheres, crianças, recém-nascidos, bois, ovelhas, camelos e jumentos (v.3). Embora o hebraico escreva Amaleque como singular e usa um sufixo masculino singu­ lar neste versículo inteiro, o mesmo deve ser tomado como um nome coletivo e, assim, refere-se ao povo/nação amalequita. Samuel ordenou que Saul par­ ticipasse no banimento (hêrem ), que exigia que todas as pessoas, animais, e possessões tinham de ser destruídas. A gramática do versículo 3 ressalta esta noção dispondo os objetos a serem destruídos em uma longa linha de cadeias de objetos diretos, começando com os adultos e incluindo as crianças e os ani­ mais. A implicação sendo que nada deveria ser poupado. A prática da completa destruição estava associada com a guerra santa, na qual a batalha era vista como um ato de adoração e os despojos da batalha eram apresentados como uma oferta ao Senhor que lutou por Israel. Assim, isto era considerado um empreendimento religioso. Embora prescrita na lei deuteronômica (Dt 13.12-18; 20.1-20), esta era uma prática que não era consistentemente mantida no AT durante a história de Israel. Escolas recentes têm questionado se a prática era padronizada ou uniformemente aplicada. Alguns também têm questionado se este era um ideal vivo apenas entre os profetas.

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Cherem O termo se refere à categoria ou status de coisas e pessoas que eram consagradas irrevogavelmente à propriedade de Deus e indisponíveis para o uso secular. O cherem ou banimento aparece mais frequentemente no contexto da guerra santa (Js 6—8 ,1 0 —11), no qual os despojos captu­ rados seriam oferecidos a Deus. O banimento dilatado incluía possessões materiais assim como populações inimigas (Dt 20.16-17; 1 Sm 15.3). Hou­ ve ocasiões em que despojos materiais e gado não entravam no banimen­ to (Dt 2.34-35; 3.6-7; Js 8.2, 26-27; 11.14). A legislação em Deuteronômio utilizava o conceito do banimento para incluir a eliminação de elementos religiosos estrangeiros (7.2,26; 13.16,17,19). Os profetas também usa­ vam o termo como uma ameaça quando Deus levaria uma guerra santa contra o Seu povo (Is 43.28; Jr 25.9; Ml 4.6) ou no futuro contra os inimigos de Israel (Jr 50.21, 26; 51.3; Mq 4.13).

Por que Deus mandaria Samuel dar esta mensagem a Saul? Primeiro, Sa­ muel 15.2b indica que isto é o juízo de retribuição de Deus sobre os amalequi­ tas e suas ações para com os israelitas quando peregrinavam pelo território de­ les ao saírem do Egito. O texto relembra a tradição em Êxodo 17.8-16 quando os amalequitas atacaram os israelitas quando esses viviam no deserto. Debai­ xo da liderança de Moisés e Josué, os israelitas derrotaram os amalequitas em combate (veja Nm 14.26-45, que preserva um relato diferente). Em compensa­ ção por esta derrota, o Senhor também proferiu uma ameaça de que qualquer lembrança de Amaleque seria apagada sobre a face da terra. Embora o sumário das conquistas militares de Saul em 1 Samuel 14.48 afirme que Saul resgatara os israelitas das mãos de Amaleque, sua falha em destruí-los completamente neste contexto assinalou não só a sua decepção como o ungido de Deus, mas que Davi teria de confrontá-los e “limpar” a bagunça de Saul durante o seu reinado (27.8; 30.1-31; 2 Sm 8.12).

9. A batalha contra Amaleque (15.4-9) I 4 - 5 Saul iniciou a batalha contra os amalequitas convocando o exército num lugar chamado Telaim. Telaim, que é mencionado em Js 15.24, está listada como uma das cidades de Judá. Sua localização é em algum lugar no Neguebe, perto de Zife. Zife fica localizada a cerca de trinta e três quilômetros de Hebrom, assim, sua posição na parte sul de Judá é garantida. O número de solda­ dos que Saul convocou é bem grande: duzentos mil soldados de Israel e dez

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mil de Judá (v. 4). Esses números não correspondem com as afirmações ante­ riores sobre os soldados de Saul ou outros relatos de batalhas. Alguns eruditos já tentaram fazer sentido desses números dizendo que a palavra “mil” deve ser tomada como uma unidade militar e não como um número. De acordo com esta visão, havia 200 unidades militares de Israel e dez de Judá. Alguns tam­ bém já argumentaram que os altos números poderiam ter sido usados como um efeito retórico; a saber, que Saul tinha superioridade neste conflito e, desta forma, não havia desculpa para a sua falha em executar a ordem do Senhor. 6 Saul se aproximou da cidade chamada Amaleque, que é mencionada so­ mente aqui no AT. O barranco no qual ele esperou para fazer uma embosca­ da para os amalequitas também não é identificado. Antes do ataque principal, Saul ofereceu anistia às pessoas conhecidas como quenitas. Diferentemente dos amalequitas, os quenitas trataram Israel com lealdade/bondade em sua marcha saindo do Egito. Os quenitas também se estabeleceram em judá, perto de Arade (Jz 1.16), e Jael, a quenita, matou Sísera na batalha de Israel contra Jabim (4.11-22). Davi, mais tarde, lidou favoravelmente com os quenitas tam­ bém (1 Sm 27.10; 30.29). I 7 -9 Saul atacou os amalequitas (1 Sm 15.7) e os perseguiu desde Havilá até Sur, no caminho para o Egito. Os indicadores geográficos são novamente con­ fusos. O narrador pode ter sido influenciado por Gn 25.18, que considerava a região de Havilá a Sur como uma extensão do território israelita. O texto nota que Saul capturou Agague, rei dos amalequitas, vivo, mas ele dedicou todo o povo à destruição pela espada (1 Sm 15.8). Além do mais, o texto menciona que Saul e seus homens pouparam Agague, o melhor dos rebanhos, o primo­ gênito e o nascido em segundo lugar, as vinhas, e todas as coisas boas que eles não estavam dispostos a colocar na proibição (v.9). O termo hebraico que é usado no v.9 com respeito a Agague (vayahemõl) não só significa “poupar”, mas também pode significar “ter compaixão” de alguém ou de algo. Esta é a mesma linguagem que é usada quando a filha de faraó teve pena de Moisés (Êx 2.5-6). Somente as coisas que eram desprezíveis, entretanto, foram colocadas na proibição (1 Sm 15.9). Então, Saul poupou os despojos bons, mas deu as coisas indesejáveis para Deus. Os ecos dos filhos de Eli tomando as melhores porções para si encontram seu caminho para esta cena (2.12-14).

10.

Samuel confronta Saul (15.10-35)

I 1 0 -2 1 O fracasso de Saul em dedicar tudo para a destruição provocou uma reação do Senhor por intermédio de Samuel. No v. 10, a palavra do Senhor veio a Samuel com esta afirmação: Arrependo-me de ter posto Saul como rei A

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palavra arrepender aqui (nihametí) é significante porque é a mesma palavra usada em Gênesis 6.6 em relação à criação da raça humana. Embora possa ser traduzida como “arrepender”, neste contesto ela conota a ideia de “remorso” ou “desilusão”. Diferentemente da desilusão do Senhor para com Saul, Samuel respondeu com ira acerca da desobediência de Saul. Alguns argumentam que Samuel estava irado por causa da desilusão de Deus com Saul, e a tentativa do profeta em intervir em favor de Saul, mas o texto aqui permanece obscuro. Quando Samuel saiu no dia seguinte para entregar a palavra a Saul, dis­ seram a Samuel que Saul, na verdade, tinha ido ao Carmelo para erigir um monumento para si. Era costumeiro que o rei, nos tempos antigos, erguesse um pilar a fim de comemorar uma grande vitória (veja 2 Sm 8.3, onde Davi também estabeleceu um monumento de vitória). O ato autocongratulatório de Saul é bastante surpreendente à luz das acusações de Samuel nos versículos seguintes. Samuel finalmente se encontrou com Saul em Gilgal, o mesmo lugar onde o reinado de Saul foi confirmado (1 Sm 11.14-15) e onde Samuel incialmente confrontou a Saul (13.7b-15a). Quando Samuel se aproximou de Saul, o rei cumprimentou o profeta calorosamente, garantindo a Samuel de que ele havia cumprido a ordem do Senhor. Apesar da declaração de Saul, a resposta de Samuel desvendou o engano de Saul: que balido de ovelhas é esse que ouço com meus próprios ouvidos? Que mugido de bois é esse que estou ouvindo? (v. 14). O escritor/narrador incluiu um importante trocadilho aqui. Samuel inclui as palavras que foram previamente usadas para se referir à obedi­ ência {sãm a * léqôl) em 15.1. A palavra para “balido” {<qôt) mais a palavra para “ouvindo” (sõmê tf) então serve para apontar para a desobediência de Saul em vez de sua fidelidade ao Senhor. Além do mais, o verbo “ouvindo” {sõmê ã) indica que enquanto Samuel continuasse a ouvir o som das ovelhas/gado, Saul estava realmente desobedecendo a Deus. A reação de Saul a Samuel foi igualmente interessante porque ele basi­ camente lançou a culpa sobre o exército enquanto tentava se exonerar. Saul usou a terceira pessoal plural quando disse: Os soldados os trouxeram dos amalequitas; eles pouparam o melhor das ovelhas e dos bois para sacrifi­ carem ao Senhor, o teu Deus (v. 15). Ao frasear sua linguagem desta forma, Saul se desassociou do ato de desobediência. Na segunda parte do versículo, ele então afirmou: mas destruímos totalmente o restante. Nesta afirmação Saul se incluiu quando fez referência às coisas que foram dedicadas à destruição, tentando assim destacar sua obediência.

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I 2 2 - 2 3 Quando Samuel ouviu os comentários de Saul, ele foi imediata­ mente ao cerne da questão; a questão do ouvir/obedecer. A palavra hebrai­ ca {sã m a ) é repetida na famosa declaração de Samuel: Acaso tem o Senhor tanto prazer em holocaustos e em sacrifícios quanto em que se obedeça [sã m a ã b eq ô í] à sua palavra? A obediência [sã m a ] é melhor do que o sacrificar; e o atender melhor é do que a gordura de carneiros (v. 22). Nesta frase bem conhecida, na qual Samuel ressalta o componente essencial da lide­ rança fiel, o escritor/narrador do texto utilizou uma forma sintática que é rememorativa da seção anterior. Aqui a forma sã m a ã b e q ô l é usada, que é uma expressão idiomática para obediência. No primeiro caso e no segundo, ambas as formas verbais indicam uma ação presente, contínua ou ininterrupta. Esta formação literária então ressalta o ponto crucial deste texto: a obediência con­ tínua à voz de Deus é melhor do que qualquer sacrifício que os humanos pos­ sam oferecer. Samuel anunciou que rebelião (m e ri ) contra Deus é semelhante a outros grandes pecados: incluindo a adivinhação, impiedade, e idolatria. Como resultado das indiscrições de Saul, Deus teve uma palavra final para o rei por intermédio de Samuel: Deus o rejeitaria como rei sobre o Seu povo (v.23). A ironia desta última frase não pode ser ignorada, porque ao pedir um rei, o povo rejeitou a Deus (8.7). Deus agora, rejeita o rei que eles pediram. Em ambos os casos a mesma forma da palavra hebraica para rejeição (mã ’as) é usada, conectando assim essas duas cenas. H 2 4 - 3 1 Quando Saul ouviu as palavras condenáveis de Samuel, ele só pôde responder em contrição. Saul reconheceu não apenas que havia transgredido contra a palavra do Senhor e contra Samuel, mas também que temeu e obe­ deceu à voz do povo. Infelizmente, Saul obedeceu ao povo ao invés de Deus. Contudo, as palavras de contrição não mudaram o resultado; a rejeição do Se­ nhor significava que o reino seria entregue a outro. A polêmica contra Saul, mais provavelmente veio daqueles próximos a Davi. Embora o nome de Davi nunca seja mencionado neste contexto, o mesmo servia aos interesses daqueles que queriam exaltar a monarquia davídica. Aqui Davi é referido como o pró­ ximo de Saul que é melhor do que o rei (v. 28). Em uma cena digna do tempo de Aías e Jeroboão (1 Rs 11.30-33), Saul agarrou a vestimenta de Samuel e a rasgou ao meio. O acontecimento teve um grande simbolismo e forneceu a plataforma para a mensagem a Saul: O Senhor rasgou de você, hoje, o reino de Israel (v. 28). H 3 2 - 3 5 O capítulo encerra de uma maneira significante. Agague, o rei amalequita que tinha sido poupado por Saul, foi trazido diante o profeta Sa­ muel. Diferentemente de Saul, que foi exigido por Deus de aniquilar Aguage,

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o profeta despedaçou o rei amalequita sem pestanejar (v. 32). A ação de Samuel ressoou; foi o profeta, ao invés do rei, que obedeceu ao Senhor. Com o exter­ mínio realizado, Samuel e Saul se separaram pela última vez. Saul foi para casa, e Samuel logo iria ungir o próximo rei sobre Israel. A PARTIR DO TEXTO 1. Os capítulos sobre o reinado de Saul nos ensinam diversas lições impor­ tantes. Uma das coisas que aprendemos ao examinarmos a vida de Saul é que Saul teve a oportunidade de ser um bom e fiel servo de Deus ou ele poderia se tornar uma verdadeira desilusão. A escolha era dele. Ao olharmos as narrativas sobre Saul percebemos que Deus o nomeou para uma tarefa importante (der­ rotar os inimigos de Israel) e Saul possuía o potencial de realizar essas tarefas. O texto diz que algumas vezes Saul parcialmente cumpriu as responsabilidades para as quais ele foi escolhido. Entretanto, o tema geral da vida de Saul é que ele não viveu plenamente o seu potencial. O texto deixa claro que não foi culpa de Deus e nem mesmo de Samuel, mas foram nitidamente as próprias escolhas e ações de Saul que contribuíram para sua ficha decepcionante. Isto nos lembra de que como indivíduos podemos escolher cumprir nosso potencial em Deus, ou, por nossas próprias escolhas e ações, podemos perder as oportunidades que Deus tem planejado para nós. 2. Ao olharmos a questão da liderança no que se refere a Saul vemos que Saul falhou como líder de Deus por diversos motivos importantes: a. No capítulo 13, Saul saiu fora de suas funções como rei ao oferecer os sacrifícios que Samuel deveria oferecer. Saul não somente extrapolou sua au­ toridade ao se infiltrar na função de um profeta, mas um exame deste texto revela outra importante razão porque Saul cometera este ato de tolice. O tex­ to menciona que, quando os filisteus se congregaram para a batalha e Samuel atrasara para oferecer o sacrifício, o povo começou a ficar inquieto. Quando a coragem e o moral do povo começaram a fenecer, o povo começou a desertar Saul. Saul, porém, permitiu que a preocupação com as percepções do povo so­ bre ele e sobre a situação que estava rapidamente se deteriorando ditasse como ele reagiria. Como líder, Saul temia mais o que o povo poderia pensar dele, do que o que Deus, por intermédio de Samuel, ordenara que ele fizesse. Então, Saul fez uma má escolha por insinceridade e pressão, em vez de confiar em Deus e es­ perar por Samuel. Isto nos faz lembrar de que na posição de liderança, não po­ demos sempre preocupar-nos se as pessoas gostarão ou não de nós. Os maiores líderes na vida geralmente têm de tomar decisões difíceis, e até impopulares,

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para um bem maior. A medida de um grande líder é que ele ou ela tem a matu­ ridade, determinação, e fé em Deus para tomar decisões árduas, não importa se as mesmas agradam aos outros o tempo todo. Os grandes líderes mantêm a fé e compostura mesmo durante os momentos caóticos. Não é difícil tomar uma decisão apressada ou precipitada quando a situação parece estar deteriorando. Todavia, durante esses momentos, as chances de tomarmos uma decisão preci­ pitada que poderá ter efeitos desfavoráveis mais tarde aumentam. Saul permi­ tiu que uma situação decadente o pressionasse a precipitar um curso de ação que mais tarde seria denunciado como uma tolice pelo próprio Samuel. b. Saul também cometeu outro erro como líder do povo de Deus. Em tem­ po de batalha, Saul tomou a decisão precipitada de que qualquer que comesse antes do pôr do sol fosse dedicado à destruição. A decisão impetuosa de Saul, todavia, não era prática e não levava em consideração o bem-estar dos homens que estavam sob sua autoridade. Como resultado, os soldados sob o comando de Saul ficaram fracos e tiveram de diminuir o ataque porque estavam cansados e famintos. Além disso, a decisão que Saul tomou quase custou a vida de seu próprio filho, se não fosse pelos homens que intercederam em favor de Jôna­ tas. Esta narrativa da vida de Saul nos relembra que se tomarmos decisões sem completamente considerarmos como as mesmas impactarão os indivíduos que estão sob os nossos cuidados, então agimos nesciamente e colocamos o nosso pessoal em desvantagem. A liderança santa e bem-sucedida tenta antecipar se as nossas decisões terão conseqüências negativas de longo prazo ou se coloca­ rão as pessoas em posição de vencerem. c. A última questão concernente a Saul é a sua falta de obediência no capí­ tulo 15. Neste capítulo, Deus deu a Saul uma ordem específica, de dedicar os amalaquitas à destruição. Saul não cumpriu a ordem e somente entregou uma parte dos despojos como oferta a Deus. Quando Samuel confronta Saul, ele nos lembra do verdadeiro elemento de uma liderança fiel: obediência. Neste capítulo, Samuel relembrou Saul de que a obediência é o maior presente que alguém pode oferecer a Deus, e é o único com o qual Deus fica mais impressio­ nado. Samuel ressoa os sentimentos dos grandes profetas do AT de que Deus não fica impressionado com a nossa adoração ou nossas ofertas se o nosso co­ ração não estiver correto diante de Deus. Uma vida santa e piedosa fora do santuário acompanhará a adoração se a nossa fé for autêntica. Qualquer coisa menos do que isto não é bom o bastante. Saul percebeu isto em sua própria vida, e como resultado, ele perdeu a oportunidade de ter uma dinastia reinante em Israel. Deus escolheu outro para ser rei porque não pôde contar com Saul para cumprir a vontade de Deus.

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III. A ASCENSÃO DE DAVI AO REINADO (1 SAMUEL 1 6 .1 -2 SAMUEL 8.18)

A. A unção de Davi e sua presença no palácio de Saul (16.1-23) POR TRÁS DO TEXTO Este capítulo é tratado independentemente baseado nos méritos da análise literária/gramatical e por suas considerações temáticas. O capítulo 16 formal­ mente introduz Davi ao texto. Antes desta conjuntura em 1 Samuel, polêmicas escondidas e referências indiretas apenas sugeriam a antecipação da chegada de Davi. O capítulo 16, entretanto, representa a primeira vez que Davi realmente surge como a figura principal nos livros de Samuel. Como Saul, a caminhada de Davi até o trono começa com uma cena de unção. O capítulo 16 segue logo


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após a ignóbil afirmação sobre Saul em 15.35b: o Senhor arrependeu-se de ter estabelecido Saul como rei de Israel. Com esta afirmação feita, o cenário está armado para a subida de Davi ao trono e o controle do reino. Este capítulo basicamente serve como um prefácio para as narrativas restantes pertinentes à vida de Davi. As narrativas concernentes à ascensão de Davi ao trono em 1 Sm 1 6 - 2 Sm 5 são chamadas, nos círculos eruditos, de “A história da ascensão de Davi” (veja “A história da ascensão de Davi”, na Introdução). Este bloco de material demonstra como Davi subiu de um simples menino pastor a rei sobre todas as tribos de Israel. Na história da ascensão de Davi ao trono, Davi se depara com uma luz muito favorável. O leitor tem a impressão geral nesta seção que a mão de Deus está sobre Davi e lhe dá sucesso em tudo o que ele faz. Davi é retratado como um jovem diligente na corte de Saul (1 Sm 16), um homem de fé e cora­ gem (cap. 17), uma figura popular entre o povo de Israel e da própria família de Saul (cap. 18—20), um homem nobre que é generoso para com Saul (cap. 24; 26), e um político bem-sucedido que transformou Israel em uma respeitável nação estado (2 Sm 3—5). Este retrato, porém, fica em oposição à imagem que surge de Davi em 2 Sm 9 - 1 Rs 2 (veja “A narrativa da sucessão”, na Introdução). O capítulo 16 começa com a jornada de Davi ao trono, primeiro com a sua unção por Samuel, e, depois, com a sua introdução à corte de Saul. NO TEXTO

1. Samuel é instruído a ungir Davi (16.1-5) A história de Davi que começa no capítulo 16 se desdobra em duas partes principais. A primeira (v. 1-13) se refere a Davi como a escolha de Deus como rei. A segunda (v. 14-28) identifica Davi como a escolha de Saul. Ao arranjar o material desta forma, o escritor/narrador deste capítulo teve a intenção de en­ fatizar a prioridade da iniciativa de Deus em escolher Davi contra a iniciativa de Saul. Esta também ressalta as diferenças que levaram ao reinado de Saul e de Davi a princípio: o povo requisitou e escolheu Saul; Deus buscou e escolheu Davi. H 1 -5 A iniciativa de Deus em selecionar Davi é testemunhada na fala do Senhor a Samuel no versículo 1. Embora Samuel possa ter lamentado a rejeição de Saul, o Senhor já estava olhando para o futuro adiante. O Senhor rejeitou

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a Saul (assim como o povo rejeitou ao Senhor anteriormente quando pediram um rei [8.7]) e ele instruiu Samuel a encher o seu vaso de azeite e viajar até a casa de Jessé em Belém. Diferentemente do capítulo 15, que enfatizava a pala­ vra “ouvir” e/ou “obedecer” (sãm ‘a ), a palavra no capítulo 16 é “ver” (rã ’<z). O Senhor disse a Samuel que Ele tinha “visto” (i.e., provido, escolhido) um rei dentre os filhos de Jessé. Enquanto que a rejeição de Saul estava baseada no fato de ele “não ouvir” ou “obedecer” o Senhor, Davi era agora reconhecido como um exercício de “visão” reta (Birch, 1998, p. 1097). Samuel tinha medo de que viajar para Belém para ungir o sucessor de Saul pudesse ser visto como um sinal de traição. À vista disto, Samuel pensou: Saul saberá disto e me matará (v. 2) por viajar a Belém. Deus instruiu Samuel a tomar uma bezerra consigo para que Samuel pudesse dizer que estava fazendo um sacrifício ao Senhor, caso alguém perguntasse por que ele estava em Belém. A palavra do Senhor pode parecer ambígua à princípio, mas o sacrifício serviria como o pretexto pelo qual Samuel poderia se encontrar com Jessé e sua família. 0 sacrifício seria oferecido depois que a cerimônia da unção acontecesse. Samuel obedeceu à ordem do Senhor e viajou para Belém. Os anciãos da cidade estavam tremendo de medo porque não sabiam quais eram as inten­ ções de Samuel (v. 4). Além do mais, eles pensavam que a visita de Samuel fornecesse um pretexto pelo qual Saul poderia exercer vingança sobre eles por traição. A pergunta deles para Samuel: Vens em paz? indicava o desejo deles de discernir a razão para a visita de Samuel (v. 4). Quando Samuel lhes disse que viera para sacrificar, ele mandou que se “purificassem” ou “santificassem”, o que era uma preparação costumeira para um evento sagrado (v. 5). Enquanto que os anciãos fizeram suas próprias preparações sagradas, Samuel pessoalmente santificou Jessé e seus filhos para o sacrifício.

2. Davi é ungido (16.6-13) 1 6-13 Quando Samuel viajou para a casa de Jessé para ungir o novo lí­ der de Israel, os filhos de Jessé foram trazidos diante dele. Quando Samuel viu (wãyãre *) o filho mais velho, Eliabe, ele presumiu imediatamente que aquela era a escolha de Deus. O Senhor, porém, repreendeu Samuel muito abrupta­ mente, lembrando-o de não olhar para a sua altura ou sua aparência (em hebrai­ co essas declarações são ordens negativas). A palavra do Senhor no versículo 7 faz uma profunda dicotomia entre Saul e Davi, já que estas foram as mesmas palavras usadas para descrever Saul anteriormente (9.2; 10.23). Considerando que estas eram as mesmas qualidades físicas que Saul possuía, entendemos que

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Samuel, como o profeta de Israel, baseou as qualificações de liderança na possi­ bilidade do indivíduo passar em um simples exame visual (16.6). O Senhor disse a Samuel, entretanto, que Ele rejeitara (mê ’ ãstíhü), assim como o Senhor rejeitara Saul (v. 1) (e semelhantemente ao povo que rejeitou o Senhor quando requisitaram um rei [8.7]). O raciocínio do Senhor era sim­ ples: o Senhor não vê (yire 'eh) como os humanos veem; eles estão propensos a olharem para as aparências externas (como no caso de Saul), mas o Senhor olha o coração (v. 7). O “coração” no AT se refere à vontade e caráter da pessoa. Esta afirmação estabelece um dos critérios primários para uma liderança bem­ -sucedida de acordo com o ensinamento bíblico: a eficácia do líder/rei está associada com esta obediência ao Senhor. Quando o Senhor rejeitou Eliabe, os outros filhos foram trazidos diante de Jessé. Dois desses filhos são mencionados por nome, Abinadabe e Samá, mas os outros quatro não são mencionados (v. 9-10). Assim como a Eliabe, o Senhor rejeitou esses candidatos e Samuel teve de perguntar a Jessé se ele tinha algum outro filho. Jessé respondeu que seu filho mais novo estava cui­ dando das ovelhas. A imagem de Davi como um pastor de ovelhas é muito significante. No AT, os maiores líderes de Deus cuidaram de ovelhas antes de se tornarem líderes da comunidade de Israel (i.e., Moisés e Davi). Que Davi fosse um pastor calmamente prefigura e antecipa sua função como um dos maiores reis de Israel. O texto também chama a atenção para a sua função como pastor em pontos críticos na história de Davi (16.19; 17.15, 34-36). O termo para pastorear também é significante, no sentido de ser etimologicamente similar à palavra “ver” (rõ 'eh). Então, o narrador criativamente reforça a ideia de ver neste capítulo com a ocupação de Davi como pastor. E também significante que Davi seja o oitavo e mais novo filho de Jessé. Para a maioria das pessoas, isto tornaria Davi desqualificado para ser rei. Este fato simplesmente ressalta, porém, que o Senhor não vê como os humanos veem e escolhe pessoas que a maioria geralmente iria ignorar. Quando Davi oficialmente aparece no texto, ele o faz tão passivamente, de forma que é trazido diante de Samuel. Este fato insinua que Davi não fez campanha para esta função e nem estava ativamente procurando a posição de rei. Quando Davi foi trazido diante de Samuel, o texto menciona que Davi era ruivo, ele era de belos olhos, e tinha boa aparência (v. 12). Embora o texto reitere que a aparência não tenha importância para Deus, o texto parece deleitar na noção de que a escolha de Deus também poderia ter boa aparência. Quando Davi apareceu diante do profeta, o Senhor mandou Samuel ungi-lo imediatamente porque aquele era o escolhido. Embora ele não fosse a primeira

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opção de Samuel, Davi era a primeira escolha de Deus. Samuel então ungiu a Davi de modo semelhante a Saul. Assim como Saul, a partir daquele dia, o Espírito do Senhor apoderou-se de Davi (v. 13). Diferentemente de Saul, de quem o Espírito “se retirou” (v. 14), o texto indica que a presença de Deus estaria com Davi continuamente (v. 13, a partir daquele dia).

3. Davi é introduzido à corte de Saul (16.14-23) H 1 4 - 2 3 A palavra de ordem na segunda parte do capítulo 16 é o termo hebraico “fôlego” ou espírito (ruah ). O Espírito do Senhor que desceu sobre Davi se retirou de Saul(v. 14a). No lugar do Espírito do Senhor, o texto nota que o Senhor enviou um espírito maligno para aterrorizar Saul. A ideia de que o Senhor enviaria um espírito mau para atormentar Saul pode ser difícil ou estranho para um leitor moderno. Todavia, deve-se ter em mente que a história bíblica raramente atribui uma causa secundária a um fenômeno em particular. No antigo raciocínio hebraico, todas as coisas (tanto boas como más) emana­ vam de Deus no final. Todavia, isto não absolve Saul da responsabilidade pelo seu próprio comportamento, e foi a sua desobediência que causou um buraco em seu relacionamento com o Senhor. Ao mesmo tempo, o espírito maligno pode também ser entendido como uma doença ou enfermidade. No caso de Saul, isto pode até se relacionar com seus problemas emocionais e psicológicos. Saul é retratado no texto como es­ tando instável emocionalmente e frequentemente luta contra ataques de inse­ gurança, depressão, ira, e paranóia. Na linguagem moderna, o espírito maligno de Saul pode ser equacionado com suas disfunções psicológicas e emocionais. O espírito que atormentava Saul, todavia, providenciou uma ocasião para que Davi se associasse à corte de Saul. A presença de Davi no palácio de Saul tinha a intenção de ser um remédio para um espírito perturbado. Os servos de Saul sugeriram que um músico habilidoso na lira poderia aliviá-lo (v. 15-16). Até os servos de Saul tinham certeza de que a música aju­ daria a suavizar a sua alma. Não é surpresa que Saul até ordenasse seus servos: Encontrem alguém que toque bem (v. 17). Um dos servos respondeu dizen­ do: Conheço um filho de Jessé, de Belém, que sabe tocar harpa (v. 18). A percepção sobre os talentos musicais de Davi é mencionada em outro lugar em Samuel e no decorrer da história de Davi (2 Sm 23.1). Davi é descrito como compositor de salmos e patrono da música (6.5), e em várias inscrições ele é citado como o compositor de mais de 80 salmos. Os pergaminhos do Mar

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Morto do Qumrã alegam que Davi compôs 3.600 salmos e 450 canções. A tra­ dição rabínica afirma que Davi escreveu todo o livro de Salmos (B . Bat. 14-15). Davi também foi descrito pelo servo como sendo guerreiro valente, sabe falar bem, tem boa aparência (v. 18). Embora sejam qualidades importan­ tes de se possuir em seus próprios direitos, o servo, mais importantemente, testificou que o Senhor está com ele. A menção da presença do Senhor é um importante tema teológico nas histórias relacionadas com a ascensão de Davi ao poder (16.13; 18.14,28; 2 Sm 5.10). Ao desenvolver este tema, o texto cui­ dadosamente ressalta a presença do Senhor como a fonte do sucesso de Davi. Saul agiu segundo a sugestão do servo e mandou chamar Davi pessoal­ mente (1 Sm 16.19), pronunciando seu nome pela primeira vez. O texto tam­ bém é cuidadoso em mostrar que Davi entrou no palácio de Saul passivamente. Isto é, Davi simplesmente veio à corte de Saul a pedido do rei. Isto é um ponto importante a se considerar já que os oponentes de Davi podem tê-lo acusado de ter uma participação ativa em substituir a casa de Saul (veja a Introdução). Quando Davi chegava ao palácio de Saul, ele apanhava sua harpa e tocava (v. 23). Sempre que o espírito mau aterrorizava Saul, a música de Davi trazia alívio ao rei. Saul foi cativado por Davi, e o texto diz que ele “o amou muito” (v. 21 ARC). O amor de Saul por Davi também foi compartilhado com seus filhos (18.1,20) e com o povo de Israel (18.16). Como resultado do favor de Deus sobre ele, Davi foi amado por todos. Saul ficou tão impressionado com ele que até o transformou em um de seus escudeiros (16.21). A PARTIR DO TEXTO A história de Davi no capítulo 16 nos lembra de que Deus não vê os seres humanos ou seu potencial no Reino de Deus baseado nas aparências externas ou posições. Esta foi uma falácia que se comprovou ser verdadeira na história de Saul. O texto nos lembra que enquanto os homens olham a aparência exter­ na, Deus vê o coração (v. 7). Teria sido o coração de Davi que o fez um servo fiel a Deus, e foi a sua confiança em Deus que o permitiu realizar coisas extraor­ dinárias. Deus não discrimina baseado em nossas características ou idade, mas Deus olha para a nossa obediência e disposição para servi-lo como as melhores qualidades que podemos possuir. Embora Davi possa ter sido desqualificado pelos critérios dos outros, Deus selecionou Davi e pôde trazer bênçãos ao povo de Israel por intermédio dele. Do mesmo modo, Deus pode usar os talentos, habilidades, e energia dos indivíduos que outros ignoram para edificar o Reino de Deus.

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B. Davi e Golias (17.1-58) POR TRÁS DO TEXTO A história de Davi e Golias é um dos episódios mais famosos das tradições davídicas. Até as pessoas que possuem pouco ou nenhum antecedente religioso se familiarizam com ela. Eruditos modernos têm postulado que o capítulo 17 representa um caso clássico de narração de história épica. Ele é rico em detalhes claros, e contém um extenso uso do diálogo vivido, e há uma forte caracteriza­ ção e interação entre os personagens (Alter, 1999, p. 150,151). Este capítulo também representa a terceira ocasião em que Davi é intro­ duzido ao leitor. Davi primeiro emerge em 16.1-13 com a unção de Samuel, nos versículos 14-24 como o músico da corte de Saul, e aqui no capítulo 17 como o campeão militar de Israel. Interessantemente, entretanto, esta tradição não mostra nenhum conhecimento do material no capítulo 16. No capítulo 17, Saul precisa perguntar sobre a identidade de Davi, por exemplo, e a tradição so­ bre um guerreiro campeão chamado Golias é contada em 2 Samuel 21.19 tam­ bém (veja também 23.24). Em 2 Samuel 21.19, um homem chamado Elanã de Belém matou Golias, o geteu (outra palavra para alguém de Gate), que tinha uma lança cuja haste parecia uma lançadeira de tecelão; um detalhe seme­ lhante ao usado para descrever a armadura do oponente de Davi em 1 Samuel 17.7. Os eruditos têm usado esta evidência para sugerir que a história de Davi e Golias foi criada por indivíduos dos círculos davídicos baseados nas proezas de Elanã. Outros fragmentos de informação indicariam que este capítulo tem sido cuidadosamente trabalhado a fim de retratar Davi em termos ideais e dar suporte à monarquia davídica. O livro de 1 Samuel 17 também apresenta problemas textuais significantes que sugerem que a narrativa tenha uma complicada história de transmissão. A tradição preservada no antigo texto grego (LXX) é muito mais curta do que a que se encontra no texto hebraico (TM) das tradições manuscritas nas quais as traduções modernas se baseiam. Além disto, na LXX, particularmente LX X B, os versículos 12-31, 41, 48b, 50, e 55-58 estão faltando (assim como 18.1-6a, 10-11,12b, 17-19,21b, 29b-30). Esta evidência indica que duas versões do en­ contro entre Davi e Golias existiram: uma versão mais antiga, refletida na LX X e outra posterior, com um relato expandido encontrado no TM (Tov, 1985, p. 97-130). Por todos os meios, o texto menor parece ser o mais original, enquan­ to que o do TM e as outras versões da LX X são expansões da história anterior.

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Embora seja possível postular que a LX X e o TM sejam combinações de duas fontes completamente independentes, o fato de que elas não representem um relato completo ou coerente em si mesmo pesa contra esta visão. Não obstante, no capítulo 17, Davi se apresenta como um jovem de grande fé e coragem. Em ambas as tradições textuais, Davi luta contra o campeão filisteu e vence. Esta não seria a primeira vez que Davi teria sucesso contra o principal inimigo de Israel - uma missão que foi originalmente destinada a Saul. NO TEXTO

1. A introdução de Golias (17.1-11) H 1 -1 1 Estes versículos basicamente armam o cenário para a batalha entre Davi e Golias. Nos v. 1-3 o texto menciona que os filisteus voltaram a lutar con­ tra os israelitas. Embora Saul fosse ungido e comissionado para enfrentar esta ameaça (9.16; 10.1), os capítulos 13-14, juntamente com este, indicam que a ameaça filisteia nunca havia sido satisfatoriamente resolvida. O texto continua a mencionar que ambos os exércitos se acamparam ao longo de montes opos­ tos, com um vale entre eles. Os exércitos estavam acampados na parte sudeste de Judá, perto da fronteira filisteia e as cidades de Ecrom e Gates especifica­ mente. No meio deste cenário geográfico, Golias é introduzido pela primeira vez no texto (v.4). O nome Golias é de origem filisteia e ele é chamado de campeão (lit., um homem entre os dois) da cidade de Gate. Quando o texto introduz Golias, entretanto, o leitor percebe que o escritor/narrador deste texto se con­ centra imediatamente nas atribuições físicas e aparência de Golias. Em termos de sua altura, o texto hebraico classifica Golias como tendo dois metros e no­ venta centímetros. Esta informação corre contrária à tradição da LXX, que diz “quatro côvados e um palmo”. Se tomarmos o texto hebraico como está, Golias media quase três metros de altura. Estas dimensões indicariam que Go­ lias era mais alto do que qualquer ossada humana descoberta pelos arqueólogos até hoje. Se a tradição da LX X for preferida, então Golias tinha dois metros de altura. À luz da evidência textual e arqueológica, a LX X representa uma leitura mais precisa. Entretanto, mesmo de acordo com os padrões antigos, a altura de Golias continua sendo muito impressionante. A descrição da armadura de Golias caminha progressivamente da cabeça aos pés; de cima para baixo. O escritor/narrador deste texto estava especificamente

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fascinado com o equipamento de Golias porque três versículos são dedicados para a descrição do mesmo (v. 5-7). Segundo o texto, sua cabeça estava coberta por um capacete de bronze, seu peito era protegido por uma couraça de escamas que pesava sessenta quilos. £ nas pernas usava caneleiras de bronze e tinha um dardo de bronze pendurado nas costas. £ sua ponta de ferro pesava sete quilos e duzentos gramas (v. 5-7). Além desta impressionante demonstração de armadura, Golias também tinha um escudeiro que ia diante dele. Somando tudo, Golias é retratado como uma fortaleza impenetrável. 0 escritor/narrador prestou uma cuidadosa atenção em sua armadura a fim de enfatizar o tamanho desafio que se colocava diante de Davi, e também os armamentos nos quais Golias depositava a sua fé. Diferentemente de Golias, a vitória de Davi aconteceu como resultado da ajuda do Senhor, e não porque ele confiasse em armamentos. O campeão filisteu não somente ficava em frente ao exército dos israeli­ tas vestido de um impressionante aparato militar, mas também apresentava um desafio pessoal a eles. Golias, de modo bombástico, desafiou os israelitas a escolherem um homem que fosse lutar contra ele (v. 8). Se o homem de Is­ rael conseguisse derrotar Golias, os filisteus se tornariam servos de Israel. Se Golias vencesse o campeão israelita, então Israel serviria aos filisteus. Dispu­ tas entre soldados individuais que representavam exércitos maiores não eram incomuns na antiguidade, como os textos do Egito, Grécia, e Pérsia compro­ vam (Ackroyd, 1971, p. 138; Mauchline, 1971, p. 132; Gordon, 1986, p. 155). Apesar do desafio, as tropas de Israel espantaram-se e temeram muito (v. 11).

2. Davi e o rebanho (17.12-30) 1 1 2 - 3 0 Enquanto o texto descreve Golias com detalhes impressionantes nos versículos 4-11, o escritor/narrador criativamente muda o seu foco para Davi nos versículos 12-30. Como foi mencionado anteriormente, toda esta seção está faltando na LX X Be a história continua no versículo 31. O texto massorético, porém, introduz Davi de uma forma que contrasta imensamen­ te com o pomposo Golias. Davi chega de forma humilde e sem fanfarra. Ele é simplesmente descrito como o menor dos filhos de Jessé (um detalhe que já estava registrado no capítulo 16) e como pastor dos rebanhos de seu pai (17.14-15). Diferentemente do capítulo 16, todavia, o texto menciona que três de seus irmãos mais velhos já haviam se alistado no exército de Saul e que Davi ficava indo e voltando entre os rebanhos de Jessé e à frente de batalha para levar provisões e mensagens (17.15, 17-18).

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O desafio de Golias ficou sem resposta por 40 dias, enfatizando assim tan­ to a inatividade de Saul como de Israel (v. 16). A vista disto, Davi foi enviado pelo pai à frente de batalha com grãos e pães para os seus irmãos, e também com queijo como presente para o comandante deles (v. 17-18). Assim como José (Gn 17.14), Davi era enviado para saber como seus irmãos e também as tropas de Israel estavam se saindo. Quando Davi chegou ao acampamento de Saul, os exércitos haviam tomado lados opostos no vale, e os gritos de guerra ecoavam no ar. Quando Davi ouviu esses berros, ele deixou a bagagem e encon­ trou seus irmãos para saber o que estava acontecendo nas linhas de frente (1 Sm 17.22). Quando Davi chegou à linha de frente, Golias fez outro desafio ao exército de Israel. A reação dos soldados de Israel era de medo e fuga (v. 24), e os homens falavam espantosamente sobre ele. Embora os guerreiros de Saul in­ terpretassem o arrogante desafio de Golias como uma afronta a Israel, nenhum deles se dispôs (v. 25). A promessa de liberdade e a mão da filha de Saul não conseguiu animar ninguém a confrontar o guerreiro filisteu. Davi, que tinha ouvido as zombarias de Golias, via a intimidação e ridi­ cularização de Golias como um ataque deliberado contra o exército de Israel e contra o Deus de Israel (v. 26). Embora Davi interpretasse as ações de Golias teologicamente, Eliabe ficou incomodado com a investigação de Davi concer­ nente às recompensas reais (v. 28). Ele também acusou Davi de abandonar suas responsabilidades em casa ao se aventurar nas linhas de frente. O diálogo entre Davi e seu irmão mais velho nos versículos 28-29 aumentam o contraste entre Davi, seu irmão, e o general do exército israelita. Davi estava pronto para se levantar e lutar por Israel e defender a reputação do Deus de Israel, enquanto que os outros homens, incluindo seu irmão, não estavam.

3. Davi e Saul (17.31-40) H 3 1 - 4 0 Nesta subunidade, a coragem de Davi é contrastada fortemente contra a covardia de Saul e do exército israelita. Davi aceitou o desafio de con­ frontar Golias, enquanto que o exército israelita se acovardou com medo. Davi foi levado diante de Saul e entregou sua mensagem ao rei: Ninguém deve ficar com o coração abatido por causa desse filisteu (v. 32). Davi se apresentou para lutar contra o campeão, mas Saul ouviu a sugestão e lembrou a Davi que ele era apenas um jovem e Golias era um guerreiro desde a juventude. A con­ fiança de Davi, porém, havia se originado de suas experiências prévias como pastor. Quando Davi cuidava do rebanho, ele tinha de matar tanto leões como ursos. Davi usou essas experiências para lembrar a Saul de que foi o Senhor que

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deu a Davi a vitória sobre esses predadores, e como resultado, o Senhor também livraria Davi daquele filisteu (v. 37). A experiência de Davi não foi diferente de outras no AT, nas quais Deus frequentemente usava os acontecimentos do passado para preparar um indivíduo para uma nova missão (i.e., Moisés). Quando Saul ouviu a resposta de Davi, ele colocou sua armadura em Davi em preparação para a batalha. A ironia de Davi, o futuro rei, vestindo a ar­ madura de Saul, não pode ser ignorada. Seria apenas uma questão de tempo até que Davi substituísse Saul. Além do mais, o texto parece estar criticando Saul novamente no sentido de que ele estava negligenciando conduzir os sol­ dados para a batalha e resgatar os israelitas das mãos dos filisteus. Esta era a missão original para a qual Deus escolheu Saul (9.16), agora Davi estava indo ao seu socorro. Ao longo do restante de Samuel, torna-se aparente que Davi será aquele que cumprirá a palavra de Deus a Samuel em 9.16, na medida em que ele desfrutava de sucesso contra os filisteus em múltiplas ocasiões. A distinção entre Davi e Saul é também afirmada no modo como ambos os personagens enxergavam a batalha. Até este ponto, Davi envolvia sua visão da batalha em termos teológicos na forma como percebia as ameaças de Golias como um desafio contra o exército de Deus e relembrava a proteção do Senhor quando estava pastoreando os rebanhos. Saul, porém, via a batalha em termos puramente humanos, um jovem rapaz contra um guerreiro campeão. Então, não é nenhuma surpresa que Saul tenha pensado que a armadura de batalha protegeria Davi. Davi experimentou a armadura de Saul, mas não conseguiu caminhar usando aquele equipamento desengonçado (17.39). Davi removeu o equipamento e pegou as armas simples que ele estava acostumado a usar quan­ do cuidava das ovelhas: um cajado, algumas pedras, e uma funda. O texto suge­ re que a confiança de Davi estava em Deus, porque ele não poderia sobrepujar Golias com armaduras e armamentos superiores.

4. A batalha contra Golias (17.41-54) I 4 1 - 5 4 Quando Golias veio para se encontrar com Davi, seu escudeiro foi à sua frente. Quando Golias olhou para Davi, ele também o subestimou por­ que ele era simplesmente um rapaz, ruivo e de boa aparência (v. 42). Golias desprezou Davi porque ele pensava que os israelitas estivessem zombando dele ao enviarem um rapaz para lutar contra ele com estilingue e pedras. A pergunta dele: Por acaso sou um cão, para que você venha contra mim com pedaços de pau?(v.43), é evidência da ofensa que ele sentiu com esta noção. Além disso, Golias amaldiçoou Davi pelos seus deuses (v.43). Enquanto Golias invocava os seus deuses, Davi foi ao filisteu no poder do Deus de Israel (v. 45). Davi se ofendeu com as palavras de Golias e retaliou dizendo que Golias confiava na espada e na lança, mas Davi vinha em nome do Senhor dos

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Exércitos (v. 45). O nome, na mente dos hebreus, englobava o poder da pessoa que levava aquele nome. Então, o nome do Senhor representava a onipotência de Deus e Sua reputação como guerreiro. Confiante no nome/reputação de Deus, Davi proclamou que o Senhor lhe daria a vitória e a cabeça de Golias seria dada às aves do céu e aos animais selvagens (v. 46). De acordo com Davi, a batalha não seria vencida com espadas e lanças, mas pelo Senhor que entregaria Golias nas mãos dos israelitas. Diferentemente do diálogo que imediatamente precede esta cena, a bata­ lha atual é contada em um breve detalhe (v. 48-49). Para o narrador, a essência da batalha não era a descrição física do combate, mas o diálogo teológico que aconteceu entre Davi e Golias. Em um curto detalhe, o texto nota que Davi pegou uma pedra de seu alforje, arremessou... na testa, de tal modo que ela ficou encravada, e ele caiu, dando com o rosto no chão (v. 49). Davi também tirou a espada de Golias e cortou a cabeça de seu adversário, assim como havia previsto. A derrota de Golias serviu de testemunho que Deus havia providen­ ciado a vitória para Davi e para os israelitas. Consequentemente, quando os filisteus viram seu campeão morto, eles fugiram. Os israelitas os perseguiram até Gate e Ecrom com os filisteus feridos caindo pelo caminho.

A funda como uma arma O uso de uma funda e pedras por Davi para matar Golias (1 Sm 17.40­ 50) ilustra a eficácia deste projétil primitivo em combate. As pedras po­ diam ser usadas como armas de choque, como atingir o inimigo na ca­ beça, mas quando lançadas de uma funda, elas se tornavam um projétil letal. Nas mãos de um guerreiro habilidoso, as fundas eram tidas como mortalmente precisas (Jz 20.16).

Esta seção encerra no versículo 54 com a curiosa declaração de que Davi levou a cabeça de Golias para Jerusalém. Esta é uma dica do texto de que a tradição concernente a Davi e Golias passou para a forma escrita depois que a monarquia davídica estava firmemente estabelecida na cidade-capital. Jerusa­ lém não cairia nas mãos dos israelitas até que Davi fosse rei sobre todo o Israel (2 Sm 5).

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5. Saul encontra-se com Davi pela segunda vez (17.55­ 58) H 5 5 -5 8 Esta seção, mais uma vez, fornece evidência de que a narrativa de Davi e Golias foi desenvolvida mais tarde. Estes versículos não indicam ne­ nhuma conscientização da tradição em 16.14-23, tampouco pressupõem ne­ nhuma consulta anterior com Saul sobre ir à batalha nos versículos 31-40. Nos versículos 55-58, Saul tentou adquirir conhecimento sobre Davi perguntando pela identidade do pai dele. Davi, entretanto, foi trazido diante de Saul somen­ te depois de ter matado Golias; claramente um relato diferente daquele em 16.14-23. Além do mais, quando Davi se encontrou com Saul, ele ainda estava segurando a cabeça do filisteu, que já havia sido levada para Jerusalém no ver­ sículo 54. Nesta seção, então, Davi é introduzido a Saul depois da batalha e é identificado somente como Sou filho de teu servo Jessé, de Belém. A PARTIR DO TEXTO 1. Nós aprendemos na história de Davi que Deus pode usar as nossas ex­ periências passadas para nos preparar para as missões futuras. Na vida de Davi, Deus pôde usar seu talento musical e suas habilidades como pastor para um propósito maior em sua vida mais tarde. Davi não só teve de buscar essas ha­ bilidades quando uma nova situação demandou, mas elas foram inestimáveis para o cumprimento de um propósito maior. A habilidade musical de Davi desempenhou um papel instrumental para trazer a cura ao espírito perturbado de Saul, e as habilidades de Davi como pastor foi inestimável para ele quando confrontou Golias. Em ambos os casos, outras pessoas se beneficiaram dessas experiências. Deus geralmente usa as nossas situações, educação, ou experiên­ cias prévias para nos preparar para novas funções que serão uma bênção para os outros. É imperativo que como indivíduos estejamos procurando caminhos para aumentar nossos horizontes pela educação, novas experiências, novos de­ safios, e treinamento. Nunca sabemos quando Deus poderá colocar essas habi­ lidades em uso a fim de prosperar o Reino de Deus. 2. A história de Davi também serve de lição sobre o relacionamento entre fé e ação. No capítulo 17, Davi estava disposto a confrontar Golias, enquanto que outros soldados de Saul estavam com medo de se engajarem na batalha. Ao examinar esta história, passamos a entender que Davi tinha tanta fé em Deus porque ele podia se lembrar de momentos em sua vida quando Deus o salvou dos leões e dos ursos, e ele teve fé que Deus o ajudaria contra Golias. A atividade

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de Deus na vida de Davi no passado serviu como fundamento para uma fé maior no futuro. Porque Davi se lembrou de que Deus o salvara antes, ele tinha confiança de que Deus o ajudaria novamente. Esquecer-se do que Deus fez por nós no passado se torna uma barreira para uma fé mais forte amanhã. No AT, os filhos de Israel experimentaram o poder de Deus no aconteci­ mento do êxodo. No entanto, quando estavam no deserto e enfrentaram muitos desafios, eles perderam a fé no Deus que os redimiu da escravidão. O salmista nos lembra de que uma das razões porque o povo perdeu a fé em Deus é que eles se esqueceram daquilo que Deus havia feito por eles (78.11). Os israelitas se esqueceram do que Deus havia feito por eles no passado, e como resultado, eles se tornaram ingratos e rebeldes. Em vez de experimentarem as bênçãos encon­ tradas na terra prometida, eles recusaram todas aquelas coisas boas por causa da desconfiança e ingratidão. Como crentes, é importante que estejamos sempre conscientes das coisas que Deus fez por nós no passado. Quando paramos e refletimos sobre as muitas maneiras com que Deus tem respondido às nossas orações, trabalhado a nosso favor e nos apoiado nas situações difíceis, isso nos dá confiança para as novas situações que requerem (maior) confiança em Deus. 3. A vida de Davi também nos faz lembrar de que quando andamos com Deus, todas as coisas são possíveis. Mesmo quando estamos em situações nas quais nossos recursos parecem pequenos em comparação com a tarefa ou os desafios que estamos enfrentando, o texto nos lembra de que Deus pode pegar as coisas pequenas que possuímos e realizar grandes coisas. Davi confrontou Golias com uma funda e algumas pedras, entretanto, com a ajuda de Deus, isto foi o suficiente para realizar aquela tarefa. A história de Davi e Golias nos lembra de que a vitória não surge pelo poder humano, mas pelo poder de Deus. Desta forma, a história de Davi se alinha com muitas outras onde Deus pegou algo pequeno e realizou grandes feitos com aquilo. A única precondição para o sucesso é que permaneçamos dispostos a permitir que Deus use aquilo que temos para oferecê-lo para os Seus propósitos e glória.

C. A família de Davi e a família de Saul (18.1—20.42) POR TRÁS DO TEXTO Os capítulos 18—20 representam outro estágio na grande história da ascensão de Davi ao trono. Davi já foi introduzido ao público leitor como pastor (16.1-13), como músico da corte de Saul (v. 14-23), e como matador de gigantes (17.1-55). Esses três capítulos, porém, concentram-se no

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relacionamento emergente de Davi com várias pessoas: Saul, a família de Saul, e a grande população israelita. Além disso, eles irão também ressaltar o sucesso de Davi como um dos comandantes do exército de Saul. O sucesso de Davi, contudo, faz Saul se tornar incrivelmente ciumento e ter suspeitas dele. O ceticismo de Saul para com Davi cresce em uma inclinação tão má que ele tenta eliminá-lo em várias ocasiões usando diversas táticas para realizar esta tarefa (18.11,25; 19.10-11,20; 20.33). No decorrer desses capítulos, todavia, uma irônica mudança de eventos começa a se desenvolver. Enquanto Saul se torna cada vez mais desconfiante e invejoso de Davi, os filhos de Saul e a grande população israelita passam a respeitá-lo e amá-lo (18.1,3,16,20,22,28). O tema do amor do povo por Davi é tão proeminente que ajuda a concatenar este material nos capítulos 18—20 numa base literária e temática. O amor do povo por Davi também representa um dos maiores temas e funções teológicas da ascensão de Davi: Deus deu gra­ ça a Davi diante do povo de tal forma que até os filhos de Saul passaram a amá­ -lo. Este paradoxo é desenvolvido ao ponto de que os filhos de Saul estavam dispostos a desobedecer ao pai e entregar a própria vida a fim de proteger Davi. O contraste entre a inveja e o desejo de Saul de eliminar Davi, por um lado, e o amor de Jônatas e Mical, por outro lado, é igualmente assustador e poderoso. A tensão que se desenvolve entre os vários personagens (Davi x Saul, Saul x Jôna­ tas e Mical, o povo x Saul) mantém o leitor colado ao drama que se desenvolve. Enquanto Davi desfrutava de sucesso entre o povo e no campo de bata­ lha, a vida pessoal de Saul continuava a se desfiar. A vida de Davi seguiu uma trajetória para cima, enquanto a vida de Saul se desmoronava. Saul estava paranoico com Davi, e a obsessão de Saul em matar Davi foi um dos fatores que o levaram à sua queda. O leitou cuidadoso na leitura do relato de Davi e Saul terá de perguntar se Saul, em algum nível, estava justificado em seu ceticismo para com Davi. Quando se estuda cuidadosamente a vida de Davi, torna-se óbvio que o caminho de Davi foi pavimentado de eventos importantes que ajudaram lançá-lo ao trono: ele desfrutava de importantes conexões sociais e políticas que o beneficiariam mais tarde em sua vida, ele se casou com mulheres significantes que expandiram sua carreira política, e diversos candidatos ao trono de Saul morreram pelas mãos de pessoas associadas a Davi. Em um texto bem revelador (20.31), Saul raivosamente reprova a aliança de Jônatas com Davi, lembrando-o de que Enquanto o filho de Jessé viver, nem você nem seu reino serão estabelecidos. Será que Saul sabia algo sobre Davi que o leitor não saiba? Será que ele percebia que Davi tinha ambições que

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excediam ser um comandante do exército de Saul? Será que Saul tinha o direito de vigiar Davi ? Na medida em que a história de Davi se desenrola, o leitor pode entender os sentimentos de Saul sobre Davi e até chegar a simpatizar com a situação dele. As dúvidas de Saul quanto a Davi eram óbvias, e sua tentativa de aniquilá­ -lo fez com que Davi fugisse permanentemente da casa de Saul (20.42). Embo­ ra Saul e Davi se encontrassem em várias ocasiões no decorrer do restante de 1 Samuel, Davi nunca participou da corte de Saul novamente. Nas narrativas seguintes (cap. 21—30) o abismo entre o rei e o futuro rei foi ampliado quan­ do o caminho de Davi ao trono se materializou fora da corte de Saul na região rústica do deserto. NO TEXTO

1. Davi, favorável a Jônatas e a Saul (18.1-9) H 1 -5 A unidade se inicia com a frase: Depois dessa conversa de Davi com Saul (v. 1). O leitor deve presumir que esta declaração se refere à conversa de Davi com Saul em 17.58. Isto ainda continua obscuro, todavia, já que o versí­ culo 1 simplesmente diz “ele”. Muitas traduções modernas inserem Davi como o sujeito (NRSV, JPS, NIV) para evitar confusão. O texto também interpõe uma importante afirmação sobre o filho de Saul: “a alma de Jônatas se ligou com a alma de Davi; e Jônatas o amou como à sua própria alma” (1 Sm 18.1 ARC). A declaração concernente o relacionamento de Jônatas com Davi é significante por algumas razões. Primeiro, esta é a primeira vez que o leitor recebe uma dica sobre o afeto de Jônatas por Davi. Será que Jônatas tinha consciência de Davi antes disto? Davi havia, afinal, servido no palácio de Saul (16.14-23), então, por que nós somente ouvimos falar do relacionamento deles agora? Se­ gundo, a linguagem concernente o respeito de Jônatas por Davi é significante à luz do resto da história de Davi. A alma de Jônatas se ligou (niqsêrâ) a Davi, implicando uma devoção inseparável a ele (veja Gn 44.30-31). Jônatas também o amou [vaye7êhãbêü ] como à sua própria alma. O termo para “amor” é ge­ ralmente usado na formação de tratados no mundo antigo e, portanto, carrega consigo tonalidades políticas (Ackroyd, 1975, p. 213,214). O termo, então, indica a lealdade política de Jônatas a Davi em acréscimo à sua afeição pessoal por ele. A leal dedicação de Jônatas beneficiava Davi no sentido de que ele aju­ dou a salvar a vida de Davi em diversas ocasiões, e ajudou a abrir a porta para o sucesso político de Davi (veja a seguir).

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Saul, assim como Jônatas, estimava muito a Davi, tanto que Daquele dia em diante, Saul manteve Davi consigo e não o deixou voltar à casa de seu pai (v. 2). O texto entra em um interessante jogo de palavras aqui. Em vez de dizer não o deixou voltar, o texto pode literalmente ser lido como não o dei­ xou o verbo (nêtãnü) deriva da mesma palavra (nãtan ) que forma a base para o nome de Jônatas. Então, ao “não devolver” Davi de volta ao pai, Saul “adotou” Davi como o segundo filho em sua casa. Não só a vida de Jônatas estava ligada a Davi, mas o texto ludicamente liga Jônatas a Davi por meio de um instrumento literário também (veja a seguir). Jônatas tirou o manto que estava vestindo e o deu a Davi, com sua túnica, e até sua espada, seu arco e seu cinturão. A descrição das ações de Jônatas no versículo 4 é muito significativa. Primeiro, os itens que Jônatas legou a Davi simbolizavam os atavios do poder real. Em essência, Jônatas simbolicamente renunciou sua posição como legítimo herdeiro do reino de Saul em favor de Davi. Este ato concorda bem com o tema geral e com a trajetória da ascensão de Davi ao trono em que Deus deu a Davi uma graça tal diante dos olhos do povo que até o filho de Saul voluntariamente abdicou seu lugar de direito como fu­ turo rei. Isto não só prepara o caminho para a ascensão de Davi ao poder, mas também tenta demonstrar que Davi não buscou a posição nem tampouco a coagiu de algum membro da casa de Saul. Segundo, o verbo dar {nãtan) é utilizado mais uma vez. Ele foi usado em referência a Saul e Davi anteriormente, agora Jônatas dá algo a Davi. Davi não só ganhou acesso à família de Saul quando Saul se recusou a devolvê-lo ao seu pai, mas também se tornou um potencial herdeiro do trono de Saul quando Jônatas lhe deu suas regalias reais. Do ponto de vista do leitor, não se pode ignorar a conexão íntima entre Davi e a família/trono de Saul em relação à pessoa e ao nome de Jônatas. Além da família de Saul, Davi prosperou no serviço a Saul. Em uma pe­ quena nota no final desta seção (v. 5), o texto indica que Davi obtinha sucesso Tudo o que Saul lhe ordenava fazer. Saul colocou Davi como comandante de seu exército, o que era bom, Isso agradou a todo o povo, bem como aos conselheiros de Saul. H 6 - 9 Estes versículos fornecem um vislumbre das realizações militares de Davi. A observação no versículo 6a é um tanto problemática. Ela afirma: Quando os soldados voltavam para casa, depois que Davi matou o filis­ teu. Alguns argumentam que existem duas orações separadas nesta afirmação: Quando os soldados voltavam para casa e Davi matou o filisteu. A primeira frase pode ter sido introduzida a fim de “amenizar” a interpolação de 17.55—

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18.5 (McCarter, 1980b, p. 310). Se este for o caso, então a referência quando Davi matou o filisteu, originalmente, seguia 17.54. Isto parece ser uma leitura plausível já que o filisteu está no singular, mais provavelmente se referindo à narrativa de Golias. Assim, 17.55— 18.5 foi inserido na perícope mais ampla de Davi-Golias. O sucesso de Davi contra Golias também preparou Saul para uma grande desilusão. Embora Davi tenha ferido o filisteu, as mulheres saíram de todas as cidades de Israel ao encontro do rei Saul, com canções e danças pelo retorno deles (v. 6). O texto indica que Saul esperava receber adoração e louvores pela vitória militar, mesmo que a vitória tenha vindo pelas mãos de outro. Será que Saul era culpado de tentar ganhar crédito pelo sucesso de Davi ? A resposta pa­ rece ser afirmativa. As mulheres realmente favoreceram a Saul e lhe prestaram homenagens quando cantaram: Saul matou milhares (v. 7b). As mulheres, porém, não se esqueceram que as realizações de Davi ultrapassaram em muito as do rei quando cantaram o segundo verso desta declaração poética: e Davi, dezenas de milhares (v. 7c). A famosa frase cantada pelas mulheres indicava que o povo percebia Davi como um líder mais eficiente na batalha. Isto, é claro, fez Saul ficar muito irritado porque entendia que ao magnificar os feitos de Davi, o povo reconhecia o sucesso de Davi acima do seu (v. 8). Saul também imaginava que se isto estava evidente para o povo que ele governava, seria ape­ nas uma questão de tempo até que Davi substituísse Saul e adquirisse o seu reino. Tudo isso fez Saul ficar com suspeitas de Davi, como o texto nota que Daí em diante Saul olhava com inveja para Davi (v. 9). O verbo aqui ( 'õvên) indica que Saul continuamente olhava Davi com suspeita e inveja. Os capítulos seguintes (esp. 21 —26) confirmam isto quando Saul não só mantinha os olhos em Davi, mas procurava eliminá-lo como ameaça política. É importante notar também que outros tiveram sucesso contra os filisteus (Deus, Samuel, Jônatas e Davi), mas nunca Saul. Novamente, o texto insinua que Saul fracassou em realizar a missão para a qual Deus originalmente o es­ colhera (9.16). Até o povo percebia que era Davi, e não Saul, que conduzia os soldados à vitória.

2. Saul tenta matar Davi (18.10-16) I 1 0 - 1 1 A observação no final da primeira subunidade concernente as sus­ peitas (inveja?) de Saul para com Davi se torna a base das ações de Saul nos v. 10-16. Esta seção registra duas diferentes ocasiões em que Saul tentou matar Davi. A primeira tentativa é encontrada nos versículos 10-11. No versículo 10,

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o texto menciona que o espírito maligno, da parte de Deus, se apoderou de Saul, e profetizava no meio da casa. Isto representa a terceira ocasião em que o Espírito de Deus se apoderou (sãlah ) de Saul. As duas primeiras produziram resultados mais positivos em que Saul se tornou como um dos profetas (10.6) e depois congregou os israelitas contra os amonitas (11.6). Nesta ocasião, um espírito mau desceu sobre ele. A observação sobre o espírito mau é muito semelhante à referência em 16.14, onde um espírito mau atormentava o rei. Além disto, 18.10-11 é basicamente uma duplicata da informação fornecida em 19.1-10. Interessantemente, a LX X não contém 18.10-11 em sua tradição manuscrita. Portanto, parece que estes versículos foram acrescentados aqui em antecipação a 19.9-10. Além do mais, esta informação pode fornecer uma des­ crição mais autêntica de como Davi veio a estar no palácio de Saul; isto é, ao tocar música para o rei. Estes dados indicariam, portanto, que elementos do Cap. 17 (veja Por trás do texto) foram elaborados e inseridos pelos escritores/ editores simpatizantes de Davi e incorporados como parte da história geral da ascensão de Davi. O espírito que veio sobre Saul o aborreceu, e a linguagem que é usada para descrever o comportamento de Saul (vayitnabe ’ = ele ficou delirando) indi­ ca que ele ficou extremamente agitado. Este verbo geralmente é usado para se referir à atividade profética, especialmente quando um profeta se engajava em tipos de comportamentos extáticos (Nm 11.25-27; 1 Sm 10.5-6, 10, 13). Foi quando Saul estava nesta condição emotiva que ele atirou uma lança em Davi. O texto deixa claro que Saul atirou a lança com a intenção de matar Davi: Ele pensou: Encravarei a Davi na parede (v. 11). A determinação de Saul em matar Davi é enfatizada pelo fato de que Davi teve de se desviar dele duas vezes. H 1 2 -1 6 Impossibilitado de matá-lo em suas tentativas prévias (v. 10-11), Saul tinha medo de Davi porque o Senhor o havia abandonado e ago­ ra estava com Davi (v. 12). Saul tentou outra tática a fim de se livrar dele. Ele afastou Davi de sua presença e o pôs por chefe de mil (v. 13). O verbo afastou vaysirêhü é um causativo que indica que Saul ativamente procurou tirar Davi de sua vista. O plano de Saul incluía tornar Davi um comandante militar, removendo-o, então, com uma promoção (Fokkelman, 1986, p. 222). Davi recebeu o comando de um grande contingente de homens e essencial­ mente teve a designação de liderar as tropas em batalha (e saía e entrava diante do povo). Já que Davi era um alvo tão visível (vulnerável) em uma campanha militar, Saul tinha a intenção de que Davi morresse em batalha. Ironicamen­ te, Davi viria a empregar uma tática semelhante quando quis que Urias fosse morto (2 Sm 11). O plano de Saul saiu pela culatra, todavia, e simplesmente

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forneceu a Davi a oportunidade de experimentar mais sucessos a serviço de Saul. Porque o Senhor estava com ele, Davi se conduzia com prudência em todos os seus caminhos (v. 14), um tema que ressoa ao longo da história da ascensão de Davi (veja a Introdução). Quando Saul viu o sucesso de Davi, teve receio dele (v. 15). Enquanto Saul temia a Davi (v. 12) e tinha receio dele (v. 15), o povo amava Davi (v. 16).

3. Davi e Mical (18.17-29) I 17-19 Saul concebeu outra estratégia com a qual tentar eliminar Davi. Compreendendo a queda política se ele mesmo matasse Davi, Saul esperava que os filisteus o matassem. As maquinações de Saul estavam ligadas à sua filha mais velha chamada Merabe. O texto não diz muito sobre ela, ela só é mencio­ nada como um prêmio que Davi receberia pelo seu compromisso de continuar lutando contra os filisteus. Davi, porém, em um ato de humildade, questionou a atitude e ponderou como um servo humilde como ele poderia se tornar o genro do rei (v. 18). Embora Davi não tenha tomado Merabe como sua mu­ lher, o caminho para a família de Saul não permaneceu fechado. H 20-29 Embora a tentativa de Saul de casar Merabe terminasse em fracas­ so, Saul tinha uma filha mais nova chamada Mical. Ela era outra filha de Saul que “amava a Davi” (v. 20 ARC). Então, não só Jônatas amava Davi, e o povo de Israel e Judá amava Davi, mas a filha mais nova de Saul também o amava. E significativo também que o texto nunca diz que Davi os amava, somente que eles amavam Davi. Saul percebeu o amor de Mical por Davi como uma oportu­ nidade para se livrar dele; ela poderia servir de “laço” para ele (v. 21 ARC). Saul garantiu que seu plano funcionaria ao mandar seus servos encorajarem Davi a se casar com sua filha. O objetivo era convencer Davi de que aquilo era algo que o rei queria. Por isto a mensagem “Eis que o rei te está mui afeiçoado, e todos os seus servos te amam”, tinha a intenção de suavizar Davi e adoçar o negócio (v. 22 ARC). Quando os servos entregaram a mensagem a Davi, ele, mais uma vez, mencionou sua humilde antecedência: “Parece-vos pouco aos vossos olhos ser genro do rei O convite para se casar com Mical, porém, estava ligado a uma missão, e, assim, o privilégio de se casar com a filha do rei seria conquistado. O preço que Saul requeria era alto: cem prepúcios de filisteus (v. 25). Os filisteus eram conhecidos no texto bíblico como sendo um povo incircunciso (veja 14.6; 17.36), ressaltando assim a condição deles como estrangeiros e pessoas que não

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eram membros da aliança com Deus. Davi teria de matar os filisteus antes de poder cumprir o requerimento de Saul. A missão era tão perigosa que até Saul imaginava que Davi iria cair na tentativa (v. 25). O presente de casamento foi aceitável a Davi, e ele, juntamente com seus homens, atacaram os filisteus, trazendo todos os prepúcios ao rei. Após cum­ prir sua parte da obrigação, Saul cumpriu a sua parte e lhe deu em casamento sua filha Mical (v. 27). Com este ato, Davi se tornou o genro do rei. Isto teve um tremendo significado político porque Davi se tornou um membro oficial da família de Saul, ficando, assim, em posição de se tornar um herdeiro do tro­ no de Saul legitimamente. Saul continuou a temer a Davi porque notou que o Senhor era com ele (sobre esta frase, veja 16.18). Nessas alturas do relacionamento entre Davi e Saul, o texto introduz a ideia de que Saul se tornou inimigo de Davi todos os seus dias (v. 29). O verbo ( ’õyêb) indica que a hostilidade de Saul em relação a Davi continuou ininterrupta.

4. Declaração de encerramento (18.30) ■ 3 0 0 capítulo encerra de modo semelhante à sua abertura, com uma decla­ ração sobre o sucesso de Davi sobre os filisteus. Embora os filisteus (lit., “os co­ mandantes dos filisteus”) viessem contra Israel, Davi teve mais sucessos contra eles do que todos os servos de Saul. Além do mais, o nome de Davi se tornou ainda mais famoso.

5. Jônatas intercede por Davi (19.1-7) I 1 -3 Os filhos de Saul não só amavam Davi, mas este capítulo fornece evi­ dência de que eles até o protegiam contra o plano de seu pai de aniquilá-lo. O primeiro exemplo em que um dos filhos de Saul protege Davi ocorre nos versículos 1-7. Neste contexto, Jônatas tentou salvar Davi ao comunicar-lhe as intenções de Saul. Saul tornou conhecidos seus sentimentos maliciosos contra Davi contando a seu filho Jônatas e a todos os seus conselheiros sobre seu plano para matar Davi (v. 1). Estando ciente das intenções de seu pai, Jônatas contou a Davi que seu pai procurava matá-lo e o aconselhou a ir para um es­ conderijo (v. 2). Enquanto Davi estivesse escondido, Jônatas tentaria adquirir informações de Saul e transmiti-las a Davi. A antipatia de Saul para com Davi ficava em vivido contraste com os sentimentos de Jônatas para com ele, já que

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Jônatas estava “mui afeiçoado a Davi”. O amor de Jônatas por Davi era evidente na forma como ele trabalhava em favor de Davi. ■ 4 - 7 O plano de Jônatas incluía dar uma boa palavra em favor de Davi. Jô ­ natas falou bem de Davi a Saul, seu pai, e o exortou a não pecar “contra seu servo” (v.4). O uso do termo “pecado” (hata *) é geralmente reservado para o campo religioso para se referir ao pecado contra Deus. O mesmo pode ser em­ pregado nas relações humanas quando alguém perdeu a meta da conduta cor­ reta para com a outra pessoa. A luz disto, Jônatas lembrou Saul que o Senhor trouxera uma grande vitória a Israel quando Davi matou o filisteu (Golias?). Como no caso de Jônatas (14.44), Saul estava pronto para matar a pessoa que trouxera a vitória contra os inimigos de Israel. Jônatas também exortou Saul a não pecar contra sangue inocente, matando Davi sem causa (19.5). O uso repetitivo da palavra “pecado” (hãtã ) e a descri­ ção de Davi como inocente (nãqí) desempenham uma significante função na história da ascensão de Davi. O texto, no decorrer de 1 Samuel 1 6 - 2 Samuel 5 relembra continuamente o público leitor de que Davi não teve más intenções ou malícia contra Saul ou sua casa. Aliás, quaisquer ações contra Davi por parte de Saul seriam interpretadas como um ataque não provocado e injustificado a Davi. Saul respondeu ao comovente apelo de Jônatas garantindo-o de que Davi não morreria (v. 6). Embora Saul tenha feito este juramento a Jônatas (Vive o Senhor, que não morrerá), isto não o impediu de, mais tarde, caçar Davi com a intenção de eliminá-lo. Uma vez que Saul deu a sua palavra, Jônatas levou Davi de volta a Saul. A linguagem que é utilizada no versículo 7 (vayãbê *) indica que Jônatas conduziu ou acompanhou Davi à presença de Saul.

6. Mical livra Davi das mãos de Saul (19.8-17) I 8 - 1 0 Estes versículos mais uma vez fazem referência ao sucesso de Davi contra as forças filisteias quando ele lhes impôs uma grande derrota (v. 8). Contudo, o sucesso de Davi também providenciou um ímpeto para a insatis­ fação e inveja de Saul para com Davi. Enquanto Davi estava ganhando dos inimigos de Israel, o Senhor continuava a lutar contra Saul. Como em 18.10­ 11, um espírito mau da parte do Senhor apoderou-se de Saul enquanto Davi tocava música diante dele. Os versículos 9-10 do capítulo 19 são basicamente idênticos aos 18.10-11; Saul segurava uma lança, ele desejava cravar Davi na parede, e Davi escapou. Como foi mencionado no comentário de 18.10-11, 19.9-10 pode ter sido o original, com 18.10-11 inserido na narrativa em um

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momento posterior. Neste contexto, o atentado contra a vida de Davi forneceu o contexto para os atos heroicos de Mical em 19.11-17. 11-17 Nesta seção, Mical protegeu Davi e ajudou a salvar a sua vida. Antes destes versículos, o texto ressalta a missão de Jônatas em preservar a vida de Davi. Neste contexto, a filha de Saul veio ao auxílio de Davi. Ao progredir a narrativa, torna-se óbvio que Saul se tornou mais enérgico e deliberado em suas tentativas para matar Davi. No versículo 11, Saul envia mensageiros dire­ tamente à casa de Davi a fim de matá-lo de manhã. Mical intercedeu por Davi e o avisou do iminente perigo. O pedido urgente dela: Se você não fugir esta noite para salvar sua vida, amanha estará morto, demonstra o amor e a pre­ ocupação de Mical por Davi. Mical não só instou para que Davi fugisse, mas também salvou Davi com suas ações: Mical fez Davi descer por uma janela (v. 12). O verbo usado para descrever as ações de Mical é causativo (vatõred ), que indica que ela tomou a iniciativa em ajudar Davi a sair sair pela janela. Aqui, nós encontramos outra mulher que heroicamente assessorou no escape de um indivíduo descendo-o pela janela (Js 2.15). Como a casa de Raabe, é possível que a de Mical fosse construída sobre o muro da cidade, de modo que era possível que Davi fugisse sem passar pela porta da cidade. Com a ajuda de Mical, Davi conseguiu fugir e escapar do perigo que o aguardava (1 Sm 19.12). Mical também acobertou a Davi depois que ele saiu. Mical pegou o deus da família (hatrãpim ), cobriu-o com peles de carneiro, e depois o colocou na cama de Davi. Quando os mensageiros chegaram à casa de Davi para pegá-lo, Mical simplesmente disse: Ele está doente (v. 14). O estratagema não satisfez os homens de Saul, e eles ordenaram que Davi fosse apresentado a Saul na cama para que ele pudesse matá-lo. Foi somente quando os homens foram buscar Davi que descobriram o ídolo com os pelos de cabra e descobriram a cilada de Mical. Sentindo-se traído pela filha, Saul inquiriu: Por que você me enganou desse modo? Mical, a fim de salvar a própria vida, insinuou que Davi a feriria se ela não o deixasse ir.

Deuses da Família A aparência e função exatas dos deuses da família (têrãpim) são des­ conhecidas. O AT, entretanto, afirma que Raquel roubou os ídolos de Labão (Gn 31.19) quando saiu de Arã, e Mical colocou uma imagem na cama de Davi para enganar os soldados de Saul (1 Sm 19.13,16). Os deuses da família variavam de tamanho; eles podiam ser pequenos o suficiente para caberem debaixo da sela (Gn 31.34), ou podiam ser de tamanho natural (como no caso de Mical). Alguns textos (Zc 10.2) associam os deuses da

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família com a adivinhação (Ez 21.21), e eles eram frequentemente usados em conjunto com o éfode (Jz 17.5; 18.14, 17-20; Os 3.4), que também era usado para funções de adivinhação. Embora eles possam estar associa­ dos a deuses que julgavam a lei familiar (Êx 21.6; 22.8 ff.), o uso deles foi condenado em outros lugares (1 Sm 15.23), como a tentativa de josias em erradicá-los (2 Rs 23.24) indica (McCarter, 1988, p. 793).

7. Davi foge para Ramá (19.18-24) I 1 8 - 2 4 Nesta última seção do capítulo 19, Davi se abrigou com o profe­ ta Samuel quando fugiu dos homens de Saul. Davi escapou para a cidade de Ramá. Já que esta cidade estava localizada no território de Benjamim, a mesma não deve ser confundida com a cidade natal de Samuel em Efraim. Davi e Sa­ muel eventualmente chegaram a Naiote, que traduzido significa “acampamen­ tos”, e, então, pode se referir aos campos onde os grupos de profetas viviam (v. 18). Davi esperava encontrar segurança em companhia de Samuel, mas Saul demonstrou que iria a qualquer distância para destruir o seu rival. Saul, assim como fez com Mical, enviou mensageiros para que pegassem Davi, todavia, quando eles chegaram e viram os profetas profetizando, Espírito de Deus apoderou-se deles, e eles também começaram a profetizar. O termo hebraico usado para descrever as ações dos profetas (vayitnab w) é geralmente associa­ do com um comportamento extático e frenético. O frenesi profético que des­ ceu sobre os homens de Saul se equipara ao comportamento de Saul depois que Samuel o ungiu (10.10-12). Inabalável em suas tentativas de capturar Davi, Saul enviou mais mensagei­ ros embora ele soubesse o que havia acontecido com o primeiro grupo. Quan­ do a mesma coisa aconteceu com eles, ele enviou um terceiro contingente, que produziu o mesmo resultado. O próprio Saul finalmente foi a Ramá, e quando ele se aproximou da cidade de Naiote onde Davi e Samuel estavam, o Espírito de Deus veio sobre ele e ele ficou sob a influência de um frenesi profético. Di­ ferentemente dos mensageiros antes deles, os efeitos do Espírito em Saul pare­ ciam mais dramáticos, já que ele também despiu as suas vestes,... na presença de Samuel,... todo aquele dia e toda aquela noite (19.24). O transe profético sob o qual Saul caiu assemelhava-se às suas ações anteriores (10.9-13). Já que Saul parecia propenso a essas explosões proféticas, as pessoas per­ guntavam abertamente: Está Saul também entre os profetas? Embora o texto

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nunca associe Saul como tendo uma linhagem profética, ele, todavia, envolveu­ -se em atividade profética em duas ocasiões pelo menos.

8. Jônatas e Davi novamente (20.1-42) I 1 - 1 1 Davi escapou dos avanços de Saul em Naiote e retornou a Jônatas. A exasperação e frustração de Davi com a implacável perseguição de Saul contra ele é evidenciada em sua pergunta a Jônatas no versículo 1: “qual é o meu peca­ do diante de teu pai, que procura tirar-me a vida?” (ARC). O verbo “procurar” (mêbaqês) conota a pressão incessante que Saul estava aplicando para a captu­ ra de Davi. Jônatas respondeu com uma nota de incredulidade à acusação de Davi, já que ele acreditava que Saul lhe diria tudo, “grande ou pequeno”, que propusesse fazer. Saul, todavia, sabia da afeição de Jônatas por Davi, e, portan­ to, tentava esconder a informação sobre suas tentativas de erradicar Davi de sua presença. Davi até entendeu que este seria o caso (v. 3), já que Jônatas ficaria magoado em saber do plano de Saul. Embora Jônatas não tivesse toda a informação, ele, todavia, exibiu sua le­ aldade a Davi afirmando: Eu farei o que você achar necessário (v. 4). Os dois propuseram um teste para determinar as verdadeiras intenções de Saul para com Davi. O tempo estava próximo para a festa da lua nova. Esta era uma oca­ sião celebrada com ofertas especiais (Nm 28.11-15)e podia durar três dias ou mais. Davi propositalmente se dispensou da festa e escondeu-se por três dias. Se o rei perguntasse pelo paradeiro de Davi, Jonas cobriria para ele dizendo que ele foi para casa em Belém para o sacrifício anual. Se o rei respondesse fa­ voravelmente quanto à ausência de Davi, então Jônatas saberia que tudo estava bem. Se Saul ficasse irado, então ele saberia que Saul queria prejudicá-lo. Além disto, Davi também apelou pela aliança cue os dois desenvolveram e pediu que Jônatas o tratasse com a lealdade da aliança. A profundidade deste relaciona­ mento de aliança é encontrada no pedido de Davi que Jônatas deveria matá-lo se ele fosse culpado (v. 8) e a disposição de Jônatas de contar para Davi qual­ quer mal que Saul intentasse contra ele.

A festa da lua cheia Já que o calendário israelita era lunar, não é de surpreender que o primeiro dia de cada mês lunar, como o Sábado, fosse separado para adoração a Deus. A festa da lua cheia e o Sábado são frequentemente mencionados juntos no AT (Is 1.13; 66.23; Ez 45.17; 46.1), com a lua nova

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do sétimo mês tendo um significado especial (Lv 23.24 ff.; Nm 29.1-6; 2 Cr 5.3; Ed 3.6; Ne 8.2). Como uma festa proeminente, não havia luto nem jejum neste dia, e era um dia de descanso do trabalho comum (Amós 8.5). A lua nova podia ser um tempo escolhido para se fazer um sacrifício fami­ liar anual (1 Sm 20.5 ff.), assim como uma festa reservada para a família e para a corte real (1 Sm 20.5,18,24-27,34). As ofertas prescritas para a lua nova eram maiores em qualidade e quantidade do que as exigidas para oSábado (Nm 28.9 ff.). Este dia era considerado um momento oportuno para ofertas de paz ao Senhor (Nm 10.10) e um tempo para buscar a di­ reção especial de Deus, particularmente por intermédio do profeta (2 Rs 4.23) (Hartley, 1988, p. 527,528).

I 1 2 - 1 7 O plano que foi proposto pareceu aceitável para ambas as partes. Jônatas garantiu a Davi que se Saul estivesse bem disposto com ele, ele faria Davi saber disto; se, entretanto, Saul quisesse fazer mal a Davi, Jônatas não só informaria a Davi sobre suas ações, mas também o enviaria para longe em paz/segurança. Jônatas também reiterou seu desejo de que o Senhor estivesse com ele, um tema que ressoara por toda a história da ascensão de Davi até a este ponto (veja comentário em 1 Sm 16.18). Jônatas, porém, também pediu algo em retorno. Jônatas antecipava a futura monarquia de Davi porque ele fez questão de que Davi estendesse a aliança de lealdade (hesed) a ele se perma­ necesse vivo (v. 14). Se Jônatas morresse, ele pediu que Davi mostrasse eterna bondade à sua casa (i.e., aos seus familiares). Jônatas fez até que Davi reiterasse as estipulações desta aliança pela segunda vez (v. 17). A aliança que Davi fez com Jônatas e sua posteridade se tornou importante durante a monarquia de Davi porque Davi cumpriu sua parte na aliança provendo para o filho de Jôna­ tas, Mefibosete (2 Sm 9). H 1 8 - 2 3 A festa da lua nova forneceu uma ocasião para testar o plano. Davi não participou da refeição da festa e, então, o seu lugar ficou vazio (v. 18). Jô ­ natas instruiu a Davi que se refugiasse depois de amanhã naquele lugar onde você se escondeu quando tudo isto começou (v. 19). As duas frases são um pouco difíceis de ler em hebraico. A primeira, literalmente diz “pela terceira vez”, o que provavelmente indica dois dias depois que Jônatas e Davi concorda­ ram com o plano; daí: “no terceiro dia” A segunda frase diz quando tudo isto começou, o que indica os aconte­ cimentos de 19.1-7, quando Davi se escondeu e Jônatas falou com seu pai em favor de seu amigo. Davi deveria ficar perto da pedra de Ezel. Embora este local não seja mencionado em nenhum outro lugar do AT, ele representava um

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lugar natural onde Davi poderia permanecer escondido. Ali, ele se abrigaria até que Jônatas discernisse as intenções de Saul em relação a Davi. Jônatas atiraria três flechas para revelar a Davi o iminente perigo ou segu­ rança. Embora as flechas pudessem ser usadas em certas práticas de adivinha­ ção (Ez 21.21), as flechas de Jônatas não seriam lançadas aletoriamente ao ar. Se as flechas caíssem mais para cá (isto é, antes da pedra), Davi estava à salvo; se as flechas caíssem mais para lá, Davi deveria ir embora porque o Senhor o manda ir (1 Sm 20.22). O verbo aqui também poderia ser traduzido como “o tem libertado” (i.e., o Senhor o livrou do perigo). O emprego de um menino por Jônatas pode ter fornecido uma testemunha que pudesse garantir a Saul que Jônatas não se encontrara com Davi enquanto esteve caçando. ■ 2 4 - 3 4 Enquanto Davi se escondia no campo, Jônatas voltou ao seu pai. No momento da ceia, o rei sentou-se à mesa,... e Abner sentou-se ao lado de Saul. O texto diz que Jônatas se levantou, o que pode indicar sua posição humilde diante do rei e do general (v. 25). O texto poderia ser complementado, porém, para dizer que ele se assentou no lado oposto a seu pai. Davi também tinha um lugar à mesa, mas o seu assento estava vazio. Já que Davi era o genro do rei e um membro de sua família, não é de surpreender que fosse esperado que Davi participasse da festa. Saul, contudo, não pensou nada da ausência de Davi, imaginando que ele estivesse impuro e, portanto, desqua­ lificado para participar daquela cerimônia religiosa (v. 26). Qualquer infração cultuai (veja Lv 11— 15) desqualificaria o indivíduo de participar de um even­ to sagrado até que ele se purificasse primeiro. O contato com um corpo morto, por exemplo, tornaria o indivíduo impuro. Já que Davi era um dos guerreiros de Saul, não seria estranho que ele tivesse se contaminado como resultado de uma batalha. Quando Davi não apareceu no segundo dia, Saul começou a questionar a ausência de Davi. A descrição de Davi como o filho de Jessé, usada por Saul pode ser uma indicação do desprezo de Saul por Davi. Jônatas tentou acober­ tar Davi, dizendo que ele havia pedido permissão para ir, a fim de celebrar um sacrifício com seus familiares. Uma família podia escolher uma lua nova em particular como o dia do sacrifício familiar anual. Contudo, Jônatas pode ter entregado o ouro a Saul quando deu a desculpa para a ausência de Davi: deixe -me ir ver meus irmãos (v. 29). A palavra usada aqui (m alãt) sugere alguém que está fugindo de um problema ou tentando se escapar do mesmo. Saul rapidamente percebeu o que estava por trás da defesa de Jônatas quan­ to a Davi, e a ira de Saul se acendeu contra Jônatas (v. 30). Saul percebeu que ele estava acobertando Davi e tomou isto como um sinal de deslealdade contra

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si. Para Saul, era óbvio que Jônatas havia se aliado a Davi (v. 30). A palavra que é usada aqui (bõhêr) indica uma escolha deliberada, espontânea, de se aliar a Davi. Em resposta, Saul também chamou Jônatas de Filho de uma mulher perversa e rebelde. A LX X diz “mulher da rua” no lugar de perversa, insinu­ ando, assim, que ele era “filho de uma prostituta sem lei” (Mauchline, 1971, p. 148). A resposta dura de Saul é fortalecida quando ele invoca a “vergonha da nudez de tua mãe” (ARC). “Nudez” aqui é um eufemismo para as genitais. A frase indicava que as genitais dela foram envergonhadas após ter dado à luz a Jônatas. Saul percebeu que, enquanto Davi permanecesse vivo, o trono de Jôna­ tas (e, portanto, a dinastia de Saul) estaria ameaçado. Esta era uma conclusão que Jônatas já havia alcançado, todavia (18.1-4; 20.14 ff.). Para Saul, o único verdadeiro caminho para garantir que sua dinastia permaneceria intacta seria eliminando Davi. Embora Jônatas questionasse o direito e a legitimidade de Saul matar Davi (Por que ele deve morrer? O que ele fez?), ele percebeu que quaisquer tentativas de persuadir seu pai falhariam, evidenciado pela lança que seu pai atirara contra ele (v. 33). Ironicamente, enquanto Saul ficou irado com Jônatas no versículo 30, Jônatas ficou com raiva no versículo 34 por causa da tristeza em relação a Davi e porque seu pai o humilhara. H 3 5 - 4 2 Com as intenções de Saul confirmadas, Jônatas saiu pela manhã (v. 35) para informar Davi sobre a situação. Quando Jônatas atirou as flechas para lá de Davi, isto continha a mensagem de que Davi não estava a salvo na corte de Saul. Enviando o moço de volta à cidade, Jônatas se encontrou com Davi, que inclinou-se três vezes perante Jônatas, rosto em terra diante de Jônatas, indicando seu amor e reverência pelo filho do rei (v. 41). Os dois homens des­ pediram-se beijando um ao outro e chorando, sabendo que seus caminhos provavelmente não se cruzariam novamente (veja 23.16-18). A PARTIR DO TEXTO Um dos proeminentes temas teológicos apresentados a nós nesta seção se encontra na afirmação: o Senhor está com ele. Esta declaração já havia sido aplicada a Davi nos contextos anteriores (16.18; 17.37), mas é ressaltada repe­ tidamente ao longo destes capítulos (18.12,14,28; 20.13). O texto nos lembra de que como filhos de Deus, nós não andamos sozinhos, mas a presença de Deus habita em nós continuamente em todas as situações. Isto é verdade não só quando a vida está indo particularmente bem para nós, mas também naquelas situações em que enfrentamos oposição e incerteza. Nestes capítulos, somos

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relembrados de que Deus não falha para conosco e não nos abandona, espe­ cialmente nos momentos de necessidade. O texto destaca o fato de que Deus é fiel, embora as pessoas e a vida nem sempre o sejam. No caso de Davi, a presença de Deus o ajudou a adquirir graça aos olhos da família de Saul e do povo de Israel, protegeu Davi quando Saul tentou tirar sua vida em diferentes ocasiões, e lhe deu sucesso no campo de batalha. A presença de Deus não só deu a Davi a força para vencer essas dificuldades, mas também o conhecimento de que Deus estava trabalhando nas circunstâncias de Davi para operar um bem maior. Nesta seção, Davi se casa com Mical, a filha de Saul, o que o tornou o genro de Saul e potencial herdeiro do trono. Além do mais, Jônatas amava a Davi a ponto de espontaneamente abdicar seu direito ao trono para que Davi tomasse o seu lugar. O sucesso de Davi como comandante mili­ tar também tornou Davi popular com o povo de Israel, o povo que ele, um dia, haveria de governar. Então, até nesses momentos de tribulação, Deus já estava preparando o caminho de Davi ao trono. Embora Davi possa não ter avistado tudo o que Deus tinha planejado para ele, as peças daquele plano estavam sen­ do encaixadas passo a passo. Isto nos lembra de que a nossa missão como filhos de Deus é descansar no cuidado e na providência de Deus. Pode ser que nem sempre percebamos ou entendamos como as circunstâncias nas quais nos encontramos estão nos preparando para um propósito futuro. A nossa missão é permanecer pacientes e obedientes enquanto Deus está ativamente trabalhando em nossa situação. Muitas vezes, nós não compreendemos plenamente como Deus tem nos guia­ do em nossos casos pessoais até que Deus nos faça passar por eles e temos a oportunidade de refletir e meditar em nossas experiências passadas. E aí, então, que passamos a entender e apreciar a maneira como Deus estava fielmente di­ rigindo os nossos passos enquanto os diversos elementos da nossa situação se encaixavam no lugar correto.

D. Davi foge de Saul (21.1—23.29) POR TRÁS DO TEXTO Estes capítulos recontam os eventos iniciais da vida de Davi enquanto ele fugia de Saul no deserto. Em 21.1, Jônatas e Davi seguiram rumos diferentes, representando, assim, a separação oficial de Davi da casa de Saul. Enquanto Davi se escondia no deserto, ele entrou em contato com pessoas que não só o

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protegiam de Saul, mas também foram instrumentais em ajudar Davi em sua caminhada rumo ao trono. No capítulo 21, Davi conseguiu a assistência do sacerdote Aimeleque quando fugia de Saul (v. 1-9). Davi também entrou em contato com o rei filisteu Aquis, a quem Davi mais tarde serviria como vassalo filisteu (v. 10-15). No capítulo 22, Davi se tornou líder de quatrocentos ho­ mens (v.2) que formariam a estrutura da força militar de Davi enquanto ele permanecia no deserto. Davi também buscou a ajuda do rei de Moabe, que providenciou refugio para ele e sua família quando Saul perseguiu a Davi (v. 3-5). Em meio a essas narrativas, o relato da execução dos sacerdotes de Nobe está incluído entre o relatório sobre a fuga de Davi para Moabe e o resgate que Davi fez à cidade de Queila (22.6-19). Este material não só explica como o sacerdócio de Eliabe em Nobe foi exterminado, e assim cumpriu a profecia do homem de Deus em 2.27-36, mas também serve para ligar Davi ao único sa­ cerdote sobrevivente, Abiatar (22.20-23). Abiatar provou ser inestimável para Davi quando serviu como sacerdote de Davi e ajudou a discernir a vontade de Deus na batalha de Davi contra os filisteus (23.1-14). Abiatar continuou a funcionar como o principal sacerdote de Davi durante o período do deserto, e serviu a Davi quando ele foi escolhido como rei de Judá e, depois, de Israel. O material desta seção foi arranjado em um tipo de vai e vem, alternan­ do entre informações sobre as viagens de Davi e a perseguição de Saul a Davi. Ao organizar as narrativas desta forma, o texto destaca o ritmo frenético no qual esses eventos ocorreram. Ao mesmo tempo, a natureza composta dessas tradições se torna aparente. Uma narrativa mais ampla sobre o sacerdócio em Nobe (21.1-10; 22.6-19) é interrompida pela notícia da fuga de Davi para Gate (21.10-15), e os relatos sobre sua estadia em Adulão (22.1-2), e sua fuga para Moabe (22.3-4). Além do mais, o relacionamento entre as interações de Davi com Aquis em 21.10-15eo serviço de Davi a Aquis em 27.1-12 perma­ necem obscuros. Embora Davi já tivesse sido introduzido a Aquis no capítulo 21, a narrativa no capítulo 27 parece não ter nenhuma lembrança disto. Será que isto é um sinal de que temos múltiplas tradições independentes sobre a associação de Davi com Aquis? O capítulo 23 apresenta suas próprias questões. Davi estava no deserto de Zife em Hores, segundo 23.15, e nas montanhas de Haquilá (v. 19). Esta men­ ção geográfica parece conectar-se mais diretamente com o material em 26.1 íF., no qual os zifeus descobrem o paradeiro de Davi e contam para Saul. Esta análise indica que parte da narrativa aparentemente foi interrompida pelos ca­ pítulos 24 e 25. Além disto, em 23.1-5 Davi perguntou ao Senhor se deveria ir

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lutar contra os filisteus. Presume-se que Davi consultou ao Senhor com a ajuda do sacerdote Abiatar, já que ele se uniu a Davi em 22.20-23. Contudo, Abiatar nunca é diretamente mencionado nesses versículos. Abiatar é mencionado em 23.6: Abiatar... fugiu para se juntar a Davi, em Queila. Qual é a nature­ za do relacionamento entre 22.20-23 e 23.6 neste ponto? Parece que temos múltiplas tradições sobre como Abiatar passou a servir a Davi. Assim, temos a evidência de que o material desses capítulos é de natureza composta e que os editores/narradores da vida de Davi tiveram várias fontes à disposição, para com elas trabalhar. Essas fontes foram agregadas não só literariamente, mas por razões ideológicas e teológicas também. NO TEXTO

1. Davi escapa para Nobe (21.1-9) H 1 -6 A declaração de abertura: Davi foi, do versículo 1, não só separa esta unidade da anterior no campo lingüístico, mas também representa a separação formal e final entre Davi e a casa de Saul. Após esta conjuntura do texto, Davi nunca mais serviu na corte de Saul. A fuga de Davi por causa de Saul o levou para a cidade de Nobe, que ficava perto da parte norte de Jerusalém. Nobe era conhecida como uma cidade de sacerdotes (22.19), e então, representava um lugar de importância cultuai. Davi foi recebido pelo sacerdote principal, Aimeleque, quando chegou ali. O nome de Aimeleque é interessante porque pode literalmente ser traduzido como “meu irmão é rei”. Aimeleque, porém, era conhecido como neto de Aitube (v. 20) e era neto de Eli, portanto, seu irmão nunca fora rei. Será que o nome dele está de alguma forma relacionado com o Senhor (i.e., o Senhor é rei)? A resposta simples é: nós não sabemos. É significante notar, contudo, que como neto de Eli, Aimeleque representava o remanescente sobrevivente da casa de Eli. Logo, sua presença no contexto in­ voca as palavras do homem de Deus em Gênesis 2.27-36. O texto nota que Aimeleque tremia de medo quando se encontrou com Davi e percebe que ele estava sozinho (21.1). Já que Davi era o genro do rei, um herói militar, e um líder importante no exército de Saul, Aimeleque provavel­ mente presumia que Davi tivesse um destacamento militar consigo. Nenhum texto antes desse fornece nenhuma informação quanto a por que Aimeleque temeria o rei, mas a narrativa posterior dá evidência do tratamento áspero de Saul para com os profetas dali (22.18). Davi veio a Aimeleque alegando que O rei o encomendara um negócio que ninguém mais sabia e que ele deveria

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se encontrar com um contingente militar de jovens ali. Davi usou esta descul­ pa como pretexto para conseguir mantimento para a sua jornada. Aimeleque era irmão de Aías, que havia se aliado a Saul como seu conselheiro espiritual (14.3; 22.9). Por causa de suas ligações com Saul, Davi talvez estivesse incerto se poderia confiar ou não em Aimeleque e, portanto, teve de camuflar suas intenções. A urgência do pedido de Davi é evidenciada na linguagem de sua ordem: Dê-me cinco pães ou algo que tiver (21.3). Aimeleque não podia dar pão comum para Davi, já que apenas tinha à mão pão consagrado (v. 4; também chamado de pão da Presença). Os pães referidos aqui eram colocados diante do Senhor, em Sua presença no lugar santo do santuário todos os Sábados. De acordo com Levítico 24.5-9 o “pão da proposição”, como também é conhecido, consistia de 12 pães dispostos em duas fileiras sobre uma mesa diante do Se­ nhor. Cada pão representava uma das tribos de Israel. Por causa de sua natureza sagrada, o pão só podia ser consumido pelos sacerdotes (Lv 24.9). Aimeleque fez uma exceção, todavia, e ofereceu a Davi o pão especial se os soldados não tiveram relações com mulheres recentemente, podem comê­ -lo (1 Sm 21.4). Davi garantiu a Aimeleque que os vasos dos jovens estavam santos e, portanto, eles eram dignos de participarem do pão. A resposta de Davi indica que até a guerra era considerada um empreendimento santo, e qualquer guerreiro participante da batalha santa tinha de estar ritualmente limpo. Estar limpo provavelmente significava que os soldados tinham de se abster de rela­ ções sexuais antes de uma batalha (Êx 19.15), e a referência ao vaso dos homens pode ser um eufemismo para suas genitais. Jesus, mais tarde, invocaria a tradi­ ção sobre Davi comendo o pão sagrado para salientar a necessidade humana acima da observação sabática (Mt 12.3-4; Mc 2.25-26; Lc 6.3-4). ■ 7-9 Quando Davi estava correndo de Saul, um dos servos de Saul... o edomita Doegue, já estava em Nobe (1 Sm 21.7). Doegue é chamado de edomita, que representava o território ao sul e leste de Israel. A tradição bíblica diz que os edomitas descendem de Esaú (Gn 25.24-34; 36.1-43), e eles desfruta­ vam de ligações ancestrais e culturais com os israelitas. Segundo Deuteronômio 23.7, os edomitas poderiam entrar na “assembleia do Senhor” e pode ter havido indícios de ligações religiosas entre Israel e Edom também (Gordon, 1986, p. 170). Saul pode ter trazido Doegue a seu serviço após realizar batalhas com os edomitas (1 Sm 14.47). Doegue é também descrito como chefe dos pastores de Saul, indicando que ele era o líder dos rebanhos de Saul. A frase que é usada aqui para descrever doeque ( abir hãrõ *im), entretanto, pode também significar “poderoso líder”

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ou “grande líder”. Duvida-se que o texto quis se referir a pastores aqui, e isto pode ser mais bem traduzido como “chefe da guarda de Saul” baseado na in­ formação de 22.17. Se tomarmos esta segunda leitura como a mais apropriada, isto significa que ele cumpria uma missão mais violenta, como de mercenário, a serviço de Saul. Considerando sua função como o executor dos sacerdotes de Nobe mais adiante na narrativa (22.18-19), este título parece adequado. Ele pode ter ficado detido no local sagrado porque estava impuro. Além de alimento, Davi também pediu armas a Aimeleque, alegando que o rei exigiu urgência (v. 8). Até este ponto, a história de Davi faltava credibili­ dade. Ele alegava estar em uma missão secreta, não obstante, ele não carregava nenhuma provisão e nem armas consigo. Aimeleque não suspeitou de nenhu­ ma trapaça de Davi, e até lhe ofereceu a espada de Golias, que estava enrolada num pano atrás do colete sacerdotal (v. 9). A referência à espada de Golias aqui levanta a questão de como a mesma viera ficar em possessão dos sacerdotes de Nobe. O texto menciona que Davi carregou a cabeça de Davi (presumivelmente; o texto simplesmente diz a ca­ beça do filisteu) para Jerusalém, juntamente com a menção de que guardou as armas do filisteu em sua própria tenda (17.54). A menção em 17.54 é uma tradição de Jerusalém e, portanto, anacrônica (veja comentário em 17.54); portanto, o texto poderia ser emendado para que o relicário não se referisse à tenda de Davi, mas à tenda/santuário do Senhor, presumivelmente em Nobe. Somente com o decurso do tempo esta tradição se tornou associada ao santuá­ rio de Jerusalém (Ackroyd, 1971, p. 146). E também possível que duas versões diferentes sobre o destino da espada de Golias existissem nos capítulos 17 e 21 (Klein, 1983, 214). A espada parece ter tido pouco uso prático para os sacer­ dotes, já que estava envolta em panos e colocada atrás do éfode. Isto indicaria que a espada estava apenas sendo guardada ali, e não venerada como um impor­ tante troféu de guerra. Embora de pouco uso pelos sacerdotes, Davi viu valor na espada e a tomou antes de sair de Nobe. O texto não registra o que aconteceu com ela depois.

2. Davi foge para Gate (21.10-15) H 10-15 Davi, mais uma vez, Davi fugiu de Saul (v. 10). O texto indica que Davi continuou a sua fuga de Saul embora Saul ou seus homens não chegassem a Nobe senão até 22.6. Como resultado, alguns eruditos argumentam que esses versículos podem ser uma interpolação posterior em antecipação ao serviço de

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Davi a Aquis (7.1). Embora esses versículos possam interromper o fluxo do epi­ sódio de Nobe, eles, não obstante, continuam o tema da fuga de Davi por causa de Saul. Enquanto Davi continuava a viajar no sentido sul, o texto menciona que ele foi procurar Aquis, rei de Gate.(21.10). Aquis era um rei filisteu que reinava na cidade natal de Golias. Porque Davi buscaria refugio na cidade do homem a quem ele declaradamente derrotou é incerto. Embora os reis aceitas­ sem guerreiros extraordinários como mercenários, esta explicação não resolve todos os problemas inerentes ao texto. Esta nota, então, fornece mais evidência da complicada história de transmissão da ampla tradição de Davi-Golias tam­ bém, como aquelas que se concentram em Davi e Aquis. Deve-se notar que foi a perseguição implacável de Saul a Davi que o em­ purrou para a companhia do inimigo mais ameaçador de Israel. Assim, na his­ tória da ascensão de Davi, a perseguição de Saul não só levou Davi à presença dos filisteus, mas Davi utilizou sua posição como vassalo filisteu para ampliar suas próprias ambições políticas (veja especialmente os capítulos 27—30). Logo, Saul se prejudicou dos dois lados. A reputação e atos heroicos de Davi o precederam, já que os servos de Aquis tinham ouvido falar das conquistas de Davi (21.11). Pensando que Aquis e seus homens enxergariam-no como uma ameaça, Davi na presença deles fingiu que estava louco (v. 13). Davi estava, mais uma vez, numa posição onde tinha de pensar extemporaneamente. Não encontrando nenhuma outra alternativa ou caminho para sair daquela situação, Davi simulou sua própria insanidade a fim de acalmar os filisteus e garanti-los de que ele lhes era ino­ fensivo. Davi desempenhou seu papel de ator convincentemente; riscando as portas da cidade e deixando escorrer saliva pela barba. As ações de Davi enganaram até a Aquis, que quis saber porque seus homens trouxeram Davi à sua casa. Neste texto e em outros, vemos que Davi era um homem muito ardi­ loso, ele sabia pensar rapidamente e era muito engenhoso. Estas qualidades lhe serviram bem enquanto solidificava sua emergente posição política e quando se tornou rei de Israel.

3. Davi em Adulão (22.1-5) I 1 -2 A fuga de Saul continuava para Davi. Ele viajou de Gate no território filisteu para a caverna de Adulão (v. 1). Adulão estava nas montanhas ociden­ tais de Judá (Js 12.15; 15.35; Mq 1.15), cerca de 18 Km a nordeste de Gate e aproximadamente 23 Km ao sudoeste de Jerusalém. Adulão servia como um

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ponto de encontro para Davi, seus irmãos e a família de seu pai souberam disso, foram até lá para encontrá-lo. Não se sabe ao certo se a família de Davi se juntou a ele na caverna de Adulão para lhe dar suporte moral naquele perío­ do estressante de sua vida, ou se estava sendo ameaçada pelos avanços de Saul e, então, procurava sua própria segurança também. Ambas as respostas podem ser válidas, e a última pode ser especialmente verdadeira à luz de 1 Samuel 22.35. Davi também serviu de um ímã social e político para alguns tipos grossei­ ros e indesejáveis. O texto menciona que Também juntaram-se a ele todos os que estavam em dificuldades, os endividados e os descontentes uniram-se a Davi na caverna (v. 2). A forma como o texto se expressa indica que isto pode ter sido também um movimento político contra a autoridade de Saul. O texto usa a forma reflexiva do verbo (qãbat)yque sugere que eles juntaram-se a Davi e olhavam para ele como um líder Çsãr). O termo líder (sãr) é frequentemente usado em contextos políticos para se referir a um indivíduo que detém con­ siderável poder ou controle. Geralmente, um sã r é alguém que é o segundo em comando do comandante geral ou do rei. O fato de que a mesma palavra se aplique a Davi em relação a esses homens indica que ele exercia autoridade sobre eles. Este não era um pequeno bando de indivíduos, considerando que o grupo chegava a quase 400 pessoas (v. 2). Esses homens representavam o cerne dos guarda-costas de Davi que permaneceram fiéis a ele durante seu período no deserto e quando ele se tornou rei. O número deste grupo central depois se expandiu para 600 homens (23.13). I 3 - 4 Esses versículos retratam Davi agindo como um defensor de sua pró­ pria família. Sem dúvida, preocupado com a segurança e o bem-estar da famí­ lia, Davi viajou pela região do mar Morto para o território de Moabe a fim de buscar ajuda do rei. Embora Mispá seja mencionada em outras partes do AT, ela nunca é associada à região de Moabe. Até este ponto no texto, Davi não tinha nenhuma ligação com o território de Moabe. Seu pedido de deixar meu pai e minha mãe virem para cá é realmente uma forma de súplica, demons­ trando assim que Davi estava lhe pedindo um favor (v. 3). Sem dúvida, Davi se sentiu confortável em se aproximar do rei, considerando que ele possuía sangue moabita em sua linhagem (i.e., Rute). O favor de deixarem seus pais encontra­ rem refugio não tinha a intenção de ser permanente, apenas o suficiente para que Davi soubesse o que Deus fará comigo. O texto menciona a função ati­ va de Davi no processo: os deixou com o rei de Moabe (v. 4). O verbo aqui (vayanhêm) é causativo, enfatizando assim a iniciativa de Davi em trazer sua família para Moabe. Davi sabia que seus familiares estariam protegidos ali, e o texto ressalta a preocupação de Davi com a segurança deles. O texto indica que

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Davi se abrigou em Moabe também, pois seus pais ficaram lá enquanto Davi na fortaleza. O texto ressalta a noção de que eles não buscaram refugio em locais humildes, mas em uma fortaleza. I 5 A unidade sobre Adulão e Moabe se encerra com uma menção sobre o aparecimento do profeta Gade. Sem qualquer aviso prévio, o profeta Gade é intercalado na história de Davi. Como resultado, este versículo pode ter sido intercalado em um momento subsequente no processo editorial. O profeta Gade aparece somente mais outra vez na história de Davi (2 Sm 24). Em ambas as ocasiões ele entregou palavras de instrução e exortação. O aparecimento de Gade aqui é crítico para a linha histórica, entretanto. O profeta mandou Davi Nãofiques naquele lugarforte; vai e entra na terra deJudá. A forçosa afirmação inicia o retorno de Davi ao território de Judá, para onde ele foi para afloresta de Herete. Assim, a história de Davi se desenvolveu na terra de Judá, e não em solo estrangeiro. O local exato da floresta é obscuro, mas alguns têm sugerido que estava a pouca distância ao sudeste de Adulão no território de Judá (Mauchline 1971,1-10).

4. Saul e os sacerdotes de Nobe (22.6-23) M 6-8 Começando no versículo 6, o enredo retorna à cidade de Nobe, que foi o foco de 21.1-10. Do modo como o texto chega a nós em sua presente forma, parece que a narrativa foi emendada por 21.11-15 e 22.1-5. A maneira como esses materiais foram arranjados, todavia, implica que esses eventos estão acon­ tecendo em um passo frenético. O texto continua a se deslocar para diante e para trás entre Davi e Saul enquanto rastreia seus movimentos, fornecendo as­ sim uma sensação de ação em desenvolvimento. Davi não havia parado de fugir de Saul desde o momento em que saiu de Nobe, e Saul continuava a pressionar seu ataque pesadamente contra Davi. Nos versículos de abertura desta unidade, Saul descobriu o paradeiro de Davi e seus homens. Contudo, quando Saul adquiriu esta informação, ele esta­ va sentado, com a lança na mão, debaixo da tamargueira, na colina de Gibeá (v. 6). A menção de Saul parado é uma alusão à linguagem de 14.2 quan­ do Jônatas perseguia os filisteus. Saul novamente aparece em uma luz nada encantadora. Enquanto o arquirrival de Saul estava ganhando terreno contra ele, Saul estava imóvel, sem fazer nada. A incapacidade de capturar Davi frus­ trava o rei, que essencialmente acusava seus homens de conspirarem contra ele (v. 8). Basicamente, colocou a culpa em seus homens por não informá-lo da aliança de Davi com Jônatas, a quem culpou por incitar Davi contra ele como se vê neste dia.

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B 9-13 Entre os servos de Saul, Doegue, o edomita, apresentou-se com in­ formação sobre Davi. Doegue transmitiu a Saul que Davi veio a Aimeleque, o sacerdote consultou o Senhor em favor dele; também lhe deu provisões e a espada de Golias, o filisteu (v. 10). A afirmação de Doegue sobre consultar ao Senhor é um detalhe que não é mencionado em 20.1-9, embora isto seja admitido por Aimeleque em 22.15. A consulta de Aimeleque (sã al) consistia em pedir direção ao Senhor para a urgente missão de Davi. O filho de Aimele­ que, Abiatar, mais tarde buscou oráculos para Davi por meio do éfode (23.6,9; 30.7-8). Crendo que Aimeleque havia ajudado seu arquirrival Davi, Saul ordenou que Aimeleque e a casa de seu pai comparecessem diante dele. Saul essencial­ mente acusou Aimeleque de conspirar contra ele com a assistência que provera a Davi. A suspeita de Saul sobre Davi também o levou a presumir que todos estavam conspirando contra ele: seu filho, seus servos, e agora Aimeleque, o sacerdote. I 14-19 Aimeleque rapidamente respondeu à acusação de Saul. Ao invés de se defender, todavia, ele endossou o caráter de Davi e proclamou sua ino­ cência. Assim como Jônatas, aqui está outro indivíduo defendendo a virtude de Davi. Aimeleque levantou a questão da inocência de Davi perguntando a Saul no versículo 14: E quem, entre todos os teus criados, há tãofiel como D avi? Além disso, ele lembrou a Saul que Davi era o genro do rei e que era honrado na casa de Saul. Aimeleque então, terminando de defender a Davi, passou a defender a si mesmo. Aimeleque não negou que houvesse consultado a Deus em favor dele, mas ele não sabia da situação que se desenvolvera entre Davi e Saul. Saul não ficou persuadido com a defesa de Aimeleque, todavia. A ameaça de Saul: Com certeza você será morto, Aimeleque, você e toda a família de seu pai, indicava a seriedade das intenções de Saul (v. 16). A inveja de Saul havia alcançado uma profundidade tal que qualquer que ele considerasse ter ajudado a Davi, certo, ou errado, seria aniquilado, até mesmo um sacerdo­ te do Senhor. Quando Saul se voltou para os seus servos e deu a ordem de matar os sacerdotes, oficiais do rei recusaram erguer as mãos para matar os sacerdotes do Senhor (v. 17). Talvez por puro respeito ao ministério ou possivelmente pela retribuição divina por causa de um ato daqueles, os servos de Saul deliberadamente desobedeceram a sua ordem. Quando Saul se virou e deu o mesmo comando ao seu servo Doegue, ele satisfez a Saul e naquele dia, matou oitenta e cinco homens que vestiam túnica de linho (v. 18).

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Já que doegue era edomita, e não um israelita de nascença, ele estava dis­ posto a cumprir a tarefa que os outros servos israelitas recusaram. Doegue não parou só nos sacerdotes, não, ele submeteu toda a cidade ao fio da espada também: homens, mulheres, crianças, recém-nascidos, bois, jumentos e ovelhas. O processo de arrasar uma cidade e destruir seus habitantes relem­ bra a noção de cherem na guerra santa. Saul desobedeceu o cherem no capí­ tulo 15 contra os amalequitas, mas, contra os sacerdotes, ele o observou. De uma maneira sarcástica, a história de Saul fica tão retorcida que as ações que deveriam ser aplicadas aos amalequitas foram realizadas contra os sacerdotes do Senhor em Nobe. ■ 2 0 - 2 3 Ap enas um indivíduo sobreviveu à matança em Nobe. O filho de Aimeleque, Abiatar, escapou e fugiu para Davi. Abiatar representava a única figura do sacerdócio silonita (veja 2.31-33). Quando Abiatar relatou para Davi sobre o massacre, Davi aceitou completa responsabilidade pelo que acontece­ ra. Porque Davi não foi objetivo com Aimeleque e ocultou informação sobre 0 devastador conflito com Saul, Aimeleque pagou o preço por ajudar a Davi. Davi confessou: Sou responsável pela morte de toda a família de seu pai (v. 22). Davi, como resultado, ofereceu a Abiatar amparo e proteção. Abiatar foi instrumental na ascensão de Davi ao trono, servindo-o como principal sacer­ dote enquanto ele esteve em Hebrom e, mais tarde, haveria de compartilhar o sacerdócio com Zadoque, quando Davi se tornasse rei sobre todo o Israel.

5. Davi salva Queila (23.1-14) 1 1 -5 O capítulo 23 relata o incidente que aconteceu quando Davi fugia de Saul na região deserta. Nesta ocasião, os filisteus atacaram a cidade de Queila. O texto nota que disseram a Davi que os filisteus estavam atacando a cidade (v. 1). Não está claro quem deu esta informação a Davi, mas isto possivelmente pode se referir aos homens que estavam com ele. Queila ficava cerca de seis quilômetros ao sul de Adulão no território filisteu. Logo, não era nenhuma surpresa que Davi soubesse do paradeiro dos filisteus. Os filisteus estavam sa­ queando as eiras da cidade. As eiras continham o grão que era ajuntado na época da colheita. Isto apresentava uma ocasião oportuna para os filisteus faze­ rem uma invasão no povoado dali. Antes de Davi reagir a esses desenvolvimentos, ele perguntou ao Senhor se deveria ou não perseguir os filisteus (v. 2). O texto aqui entra em um jogo de palavras e faz algumas afirmações importantes com isto. Primeiro, o termo usa­ do para perguntar (vayis al) está baseado na mesma raiz verbal da palavra Saul

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(sãül). O texto desenha uma marcante dicotomia entre os dois personagens baseado no nome de Saul. Davi perguntou ao Senhor mais provavelmente pela mediação de Abiatar (v. 2). Embora o texto não o mencione especificamente nos v. 1-5, Abiatar já estava associado a Davi antes da abertura do capítulo 23 (22.22-23). Abiatar só veio a Davi, todavia, depois que Saul mandou assassinar os sacerdotes de Nobe. A ironia é que Saul, como resultado de suas próprias ações, inconscientemente forneceu a Davi o sacerdote com o qual poderia con­ sultar ao Senhor. Isto não só ampliou o abismo entre Saul e Davi, mas conti­ nuou a martelar a cunha entre Saul e Deus. Segundo, Davi recebeu uma resposta do Senhor como resultado de sua pergunta: Irei eu? em 23.2a. A linguagem aqui é significante porque Davi fará a mesma pergunta em relação aos filisteus em 2 Samuel 5.19a. Em ambos os ca­ sos, Davi recebe uma resposta afirmativa. Em 1 Samuel 23.2b, o Senhor afirma: Vá, ataque os filisteus e liberte Queila. Em 2 Samuel 5.19b, o Senhor afirma: Vá, eu os entregarei nas suas mãos. As declarações em 1 Samuel 23.2 e 2 Sa­ muel 5.19 contrastam fortemente com as de Saul quando também consultou a Deus para saber a Sua vontade na batalha contra os filisteus (1 Sm 14.37 = Devo perseguir os filisteus ?). Contrário a Davi, porém, Saul não recebeu uma resposta do Senhor quanto à sua pergunta. Como resultado, os dois persona­ gens não poderiam ser retratados mais diferentemente. Saul não recebeu uma resposta do Senhor e sofreu uma derrota dos filisteus. Davi, por outro lado, ouviu do Senhor e desfrutou de sucesso contra eles. As implicações são claras; Davi realizaria aquilo que Saul não conseguiu fazer. O reino davídico seria su­ perior à monarquia de Saul. Embora Davi recebesse a permissão de Deus para iniciar ataque contra os filisteus, os homens de Davi responderam com hesitação e trepidação. Perce­ bendo a relutância deles, Davi consultou pela segunda vez, e o Senhor respon­ deu: vá à cidade de Queila, pois estou entregando os filisteus em suas mãos (v. 4). Interessante, Davi recebeu instruções para descer para a sua pergunta se deveria subir. Davi teve um tremendo sucesso contra os filisteus quando lhes fez grande estrago e trouxe de volta seus rebanhos depois da batalha. 1 6 - 1 4 Abiatar foi a Davi, e tinha levado o colete sacerdotal quando fugiu. O texto realmente diz fugiu para Davi, mas de onde ? Será que esta é uma con­ tinuação da história do capítulo 22? Se for, como explicamos o fato de Abiatar ter se juntado a Davi depois que ele libertou Queila? É possível que uma tradi­ ção diferente sobre Abiatar e Davi tenha sido incorporada ao texto durante o processo editorial. O éfode que Abiatar trazia consigo era geralmente uma peça

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da veste sacerdotal que cobria a capa do sacerdote. Contudo, neste contexto parece que o mesmo também era usado como instrumento de adivinhação que poderia conter o Urim e Tumim (veja 14.3; 21.9). Quando Davi descobriu que Saul convocara o povo para a guerra e estava indo em direção à Queila, Davi disse a Abiatar: Traga o colete sacerdotal (v. 9). Davi basicamente consultou ao éfode para saber se Saul planejava vir à Queila e destruir a cidade por sua causa. O Senhor respondeu a Davi na afirmativa: Ele virá (v. 11). Sabendo de seu destino pela consulta divina, Davi e seus homens saíram de Queila e ficaram andando sem direção definida (v. 13). Embora Saul desistisse de sua expedição, Davi se refugiou nas fortalezas do deserto e nas colinas do deser­ to de Zife (v. 14). Os montes de Zife faziam parte das montanhas de Judá que ficavam a vários quilômetros ao sudeste de Queila. Isto contrasta com a cidade de Zife, que estava situada no topo da montanha a aproximadamente sete qui­ lômetros sul-sudeste de Hebrom.

6. Davi encontra Saul no deserto (23.15-29) ■ 1 5 - 1 8 Davi continuava a se esconder no deserto de Zife em Horesa. A palavra Horesa simplesmente significa “florestas” e logo, refere-se ao tipo de terreno acidentado no qual Davi se refugiava. Enquanto Davi esteve em Zife, Jônatas o visitou pela última vez (v. 16). Como Jônatas sabia onde encontrar Davi ? Como eles conseguiam se comunicar enquanto Davi permanecia separa­ do da casa de Saul? O texto não oferece qualquer explicação para essas pergun­ tas. E interessante, porém, que Jônatas conseguia encontrar Davi no deserto e Saul nunca conseguia alcançá-lo. Em uma cena emocionante entre esses dois amigos, Jônatas veio para en­ corajar Davi e garantir que Saul não o encontraria. Além disto, Jônatas afirmou que Davi seria o próximo rei de Israel e Jônatas seria o seu braço direito. A afirmação de Jônatas para Davi e sua confissão concernente à sua impendente monarquia são importantes porque isto simbolizava que ele não seria uma pe­ dra de tropeço para Davi (embora ele fosse o legítimo herdeiro do trono), e ele até apoiaria Davi como um subordinado do futuro rei. Este entendimento foi reforçado quando os dois fizeram um acordo um com o outro (v. 18). Como esta aliança se relaciona com a outra que eles fizeram em 18.3 (veja também 20.8, que tem 18.3 em mente)? Será que esta é uma reafirmação do acordo anterior ou será esta uma nova aliança? Ou será que esta é uma versão diferente da mesma história? Nenhuma resposta decisiva tem surgido.

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H 1 9 - 2 4 a Esta seção representa outra ocasião em que Davi foi traído por alguém ligado a Saul. Primeiro, Doegue, o edomita, entregou a localização de Davi quando ele se escondia de Saul em Nobe. Agora os habitantes de Zife foram a Saul em sua cidade natal de Gibeá e revelaram-no o paradeiro de Davi. Embora Davi desfrutasse do amor da família de Saul e de muitos da população, nem todo mundo procurava ajudar Davi em seu caminho para o trono. Os zifeus desejavam alcançar o favor de Saul na esperança de que ele os recom­ pensasse pela lealdade a ele. Não só o povo de Zife entregou a posição de Davi a Saul, mas eles também se dispuseram a tomar parte ativa na apreensão dele também: seremos responsáveis por entregá-lo em tuas mãos (v. 20). O verbo usado aqui (h a sg irõ ) é causativo, o que indica que eles tomariam a iniciativa de capturá-lo para o rei. Saul demonstrou alegria e apreço ao povo que permanecia fiel a ele, e pe­ diu que voltassem a Hores para verificar se Davi ainda estava lá. Saul sabia que Davi era muito astuto e, logo, poderia escapar a qualquer momento (v. 22). A palavra astuto ( ãrôm) usada aqui para descrever Davi é interessante. Ela pode se referir à perspicácia e inteligência e, assim, ressaltar a engenhosidade de Davi como um alvo de caça. Esta é também a palavra usada para descrever a serpente do jardim do Éden (Gn 3.1). Enquanto a astúcia da serpente trouxe dor e sofrimento para o casal no jardim, Davi conseguiu preservar sua vida por sua sabedoria. Quando os zifeus conseguissem informação segura concernente aos esconderijos de Davi, eles deveriam transmitir isto a Saul e ele iria com eles para capturarem Davi. H 2 4 b -2 9 Embora Saul gozasse da lealdade e do auxílio dos zifeus, Davi per­ manecia um passo à frente daqueles que o perseguiam. Davi tinha se deslocado para o sul, para o deserto de Maom (v. 24). Maom estava no topo da monta­ nha a uns 12 Km de Hebrom, e o acampamento de Davi estava na abertura do vale, no lado leste da cidade. Quando Saul soube que Davi tinha se deslocado para esse território, ele apressou a perseguição para lá. A PARTIR DO TEXTO Uma das coisas das quais somos lembrados nesta seção é que como filhos de Deus existem momentos na vida em que as pessoas irão ativamente se opor a nós e tentar nos impedir de alcançar o nosso objetivo ou potencial. Embora a presença de Deus vá diante de nós e a graça de Deus repouse sobre nós, outros ainda têm a liberdade de escolha para nos resistir e até para tentar nos perse­ guir. Deus havia escolhido Davi para ser o próximo rei de Israel, mas isto não

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impediu Saul de persegui-lo incansavelmente e implacavelmente. Apesar desta perseguição, contudo, Deus estava trabalhando continuamente nas circuns­ tâncias pessoais de Davi para poder realizar um propósito maior. Enquanto Davi corria de Saul, mais peças do caminho de Davi ao trono eram colocadas no lugar. Davi veio a se encontrar com o sacerdote Abiatar durante este período de sua vida. Abiatar se tornou o sacerdote de Davi e o ser­ viria durante os dias de Davi no deserto e quando ele se tornasse rei sobre Judá e depois sobre todo o Israel. Davi também veio a se encontrar com 400 homens que formariam a coluna vertebral de seu exército e provariam ser inestimáveis para ele em seu caminho rumo ao trono. Davi encontrou auxílio até no rei de Moabe, que proveu abrigo para a sua família quando Saul caçava Davi. Deus estava em todas essas circunstâncias para preservar a vida de Davi e prepará-lo para o próximo estágio de sua vida. Frequentemente se gasta tempo para o plano de Deus se desenvolver em nossa vida. Deus geralmente trabalha por etapas e não por hora. Esta é uma dura lição para o público moderno entender. Na cultura moderna tudo acon­ tece rapidamente e sem dor. Nós podemos voar longas distâncias em questão de minutos. Nós desfrutamos de alimentos que o forno de micro-ondas cozi­ nhou em poucos segundos. Nós podemos enviar e-mails e outras formas de co­ municações num piscar de olhos. Nós assistimos aos nossos shows televisivos favoritos em que as situações são resolvidas em episódios de trinta minutos. A medicina moderna pode curar enfermidades em questão de horas. Todas essas facetas da vida moderna nos condicionou a pensar que toda questão ou pro­ blema que encontramos pode ser solucionado imediatamente sem qualquer desconforto. Entretanto, o desenvolvimento do nosso caráter, maturidade espiritual, e o nosso crescimento emocional/psicológico leva tempo para progredir de for­ ma que sejam saudáveis e benéficos para nós. Precisamos exibir paciência, por exemplo, enquanto malhamos ou suportamos as situações problemáticas no trabalho ou em casa. Desenvolver habilidades e educação que beneficiarão a nossa vida e nos darão melhores oportunidades no futuro ocorre gradualmente. com o passar do tempo e por um processo meticuloso. Muitas vezes na vida, as mudanças mais positivas e mais duradouras ocorrem depois que enfrentamos um período de provações árduas ou desconfortáveis, e até dolorosas. Se não tivermos cuidado, podemos ficar impacientes durante esses momentos e tentar tomar atalhos que irão finalmente provocar um curto-circuito, ou empecilho em nosso crescimento na jornada adiante. Confiar em Deus e depender da Sua graça e provisão para nos ajudar a passar por esses tipos de situações não só nos

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aproximam dele, mas também nos fortalecem para perseverarmos enquanto os propósitos de Deus estão sendo realizados em nós.

E. Davi se encontra com Saul no deserto (24.1— 26.25) POR TRÁS DO TEXTO Estes capítulos formam uma unidade baseada em considerações literárias ou temáticas. Os capítulos 24 e 26, em particular, ajudam a estruturar este ma­ terial com o capítulo 25 ocupando a seção central. Nesta unidade, Davi entra em contato direto com Saul em duas ocasiões, e cada vez lhe é apresentada uma oportunidade conveniente para matá-lo (cap. 24 e 26). Davi também veio a ter contato com Nabal e sua esposa, Abigail, enquanto se refugiava de Saul (cap. 25). Em todos os três capítulos, Davi enfrentou indivíduos que o queriam morto ou o desrespeitavam: Saul e Nabal. Nos casos de Saul e Nabal, a ques­ tão da vingança também vem à tona. Interessantemente, somente uma mulher, Abigail, demonstrou respeito por Davi e defendeu a sua inocência. É interes­ sante que os dois homens que tinham desprezo por Davi enfrentaram a visão da morte logo depois. Abigail, por outro lado, continuou a viver e mais tarde se tornou mulher de Davi. Os eruditos há muito têm notado semelhanças entre os capítulos 24 e 26, respectivamente (Koch, 1969, p. 142,143; Klein, 1983, p. 234,235). Alguns paralelos incluem o seguinte: 1. Davi estava no deserto fugindo de Saul (24.2; 26.1). 2. Davi teve ampla oportunidade de matar Saul (24.3; 26.7). 3. Um indivíduo sugeriu que estas oportunidades haviam sido ordenadas por Deus (24.4; 26.8). 4. Davi resistiu o impulso de obter vingança contra Saul (24.6; 26.9-11). 5- Davi obteve prova material a fim de demonstrar que poderia ter tirado a vida de Saul (24.4; 26.12). 6. Saul reconheceu a inocência e superioridade moral de Davi no assunto (24.17-20; 26.21,25). Com base nas qualidades compartilhadas dessas narrativas, diferentes opiniões sobre a transmissão histórica dos capítulos 24 e 26 são abundantes. Primeiro, existe um campo que argumenta a dependência literária de um

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capítulo sobre o outro. Existem aqueles que defendem que o capítulo 24 é realmente a mais antiga das duas tradições e, portanto, o capítulo 26 representa uma versão modificada do mesmo (Koch, 1969, p. 143,144). Outros argumentam que o capítulo 26 é o relato mais antigo e que o capítulo 24 dependeu dele para sua existência (Smith, 1929, p. 229,230; Driver, 1966, p. 204; McCarter, 1980b, p. 409,410). Segundo, outro grupo de eruditos defende uma posição intermediária em que ambos os capítulos são simplesmente memórias alternadas de um evento (Klein, 1983, p. 236). Terceiro, outros notam as semelhanças entre os dois capítulos, mas reconhecem que há significantes diferenças entre eles (Mauchline, 1971, p. 173). Como resultado, esta informação sugeriria que houve duas diferentes ocasiões em que Davi teve contato com Saul no deserto (Ackroyd, 1971, p. 202; Keil e Delitzch, 1973, p. 247). Embora nenhum consenso claro tenha sido alcançado na comunidade erudita, existe evidência de que o capítulo 24 tem características de ser um texto reconstruído (Mellish, 2006, p. 79,80). Logo, se qualquer empréstimo literário existe, parece que o capítulo 24 seria a mais nova das duas tradições. O capítulo 25 compartilha um relacionamento com 23.24-26 em que ambos os episódios acontecem na região de Maom. Esta tradição pode ser uma narrativa antiga e representa a continuação de 23.14 (Mauchline, 1971, p. 167). Se este for o caso, então esta narrativa foi inserida neste contexto baseada no assunto central da recusa de Davi em se vingar do indivíduo que se opunha a ele. Além do mais, o casamento de Davi com Mical não é relevante para o capítulo 26, mas é pressuposto em 27.3. Esta informação fornece boa evidência de que esses capítulos não estão arranjados em uma base estritamente cronológica. NO TEXTO

1. Davi em En-Gedi (24.1-22) 1 -7 Até este ponto no texto, Saul iniciou a perseguição a Davi a fim de eli­ miná-lo. Embora Davi fosse capaz de se esquivar dele, Saul parecia ter todas as vantagens. A situação, porém, mudou quando Davi se refugiou nas fortalezas de En-Gedi (v. 1). En-Gedi ficava do lado oeste do mar Morto, e era uma área pontilhada de despenhadeiros e cavernas —um cenário perfeito para alguém que estava procurando refúgio de um perseguidor.

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Saul convocou um grande contingente de três mil de seus melhores sol­ dados com a missão de perseguir Davi, e eles se deslocaram em direção dos Bodes Selvagens (v. 2). A intenção de Saul de matar Davi é evidente pelo simples tamanho do seu exército que reuniu e pelo fato de que eles não eram soldados israelitas comuns, mas homens escolhidos para atravessar o deserto e caçar Davi. A verdadeira localização das Bodes Selvagens permanece indeterminada; todavia, é fato bem estabelecido que as cabras dos alpes permanecem abun­ dantes neste local até nos tempos modernos. Portanto, o nome desta região montanhosa pode ter sido derivado dos animais que viviam ali. Quando Saul deu um descanso em sua perseguição a Davi, ele entrou em uma caverna “a cobrir seus pés” (v. 3). Esta terminologia é um eufemismo do AT significando “evacuar o intestino”. No processo de se aliviar, entretanto, ele se tornou vulnerável a Davi e seus homens que estavam escondidos na caverna. Saul estaria de costas para Davi, portanto, fazendo-o inconsciente de sua sus­ ceptibilidade para com Davi. Enquanto Saul estava exposto, os homens de Davi fizerem esta declaração: Este é o dia sobre o qual o Senhor lhe falou: ‘Entregarei nas suas mãos o seu inimigo para que você faça com ele o que quiser’ (v. 4). O convite dos homens de Davi para matar Saul contém uma linguagem interessante. Até este ponto da narrativa o Senhor não havia prometido entregar os inimigos de Davi (i.e., Saul) em suas mãos. Será que estas palavras, então, derivam de outra tra­ dição que não chegaram a fazer parte do nosso texto? Ou, elas simplesmente representam o desejo dos homens de Davi camuflado como a linguagem do Se­ nhor? O contexto indica que o último é o verdadeiro. Além do mais, o leitor do texto pode simpatizar com as palavras dos homens de Davi. Será que alguém honestamente acusaria Davi se ele planejasse uma vingança contra Saul por todos os problemas e angústias que ele lhe havia causado ? Uma das grandes ideias que emergem da história da ascensão de Davi, en­ tretanto, é que Davi não cedeu ao impulso da vingança, mas se levantou acima da tentação de se vingar. Ao retratar Davi desta maneira, o texto apresenta Davi como um indivíduo justo, alguém que era mais nobre do que seus companhei­ ros e de que Saul. Davi não matou Saul, mas apenas cortou uma ponta do manto de Saul (v. 4). Embora Davi tenha poupado Saul, Davi sentiu bater-lhe o coração de remorso por causa de suas ações (v. 5). O texto deixa claro que Davi não executou vingança contra Saul e que até o menor gesto de retaliação contra o rei provocou culpa. A reação de Davi relembra o público leitor de que Davi era

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incapaz de ferir a Saul e, portanto, não poderia ter nada com a morte de Saul. Esta foi uma acusação que alguns em Israel levantaram contra Davi depois que ele se tornou rei (2 Sm 16; 20). I 8 -1 5 Davi não matou Saul, contudo, ele queria uma explicação sobre o por que o rei o perseguia implacavelmente. Após sair da caverna, Davi gritou a Saul: Ó rei, meu senhor! (v. 8). Demonstrando respeito e submissão diante de Saul, ele se prostrou com o rosto no chão em reverência. As ações de Davi para com Saul indicavam que ele não estava buscando o trono de Saul, e o rei o perseguia pelas razões erradas. Davi indicou que Saul estava ouvindo os falsos rumores de que Davi disse: eu pretendo fazer-lhe mal? (v. 9). Todavia, o oposto era verdadeiro. Davi até apresentou o pedaço do manto de Saul como evidência tangível de que pode­ ria ter matado Saul se assim desejasse. Davi garantiu a Saul de que não queria fazer-te mal ou de rebelar-me (o termo para revolta política) e que ele não tinha pecado contra ele (v. 11). Davi finalmente entregou seu caso a Deus que julgaria entre mim e ti (v. 12) e que defenderia Davi de Saul. Davi também não acreditava porque Saul se importaria com alguém da estatura de Davi quando se referiu a si mesmo como a um cão e uma pulga (v. 14). O texto, por meio da linguagem de autocensura de Davi, toma medidas cuidadosas para salvaguardar a inocência de Davi e proteger sua reputação. H 1 6 - 2 2 Foi depois que Davi terminou de falar que Saul perguntou: É esta a tua voz, meu filho Davi ? (v. 16). A reação de Saul no versículo 16 parece não se encaixar na lógica seqüencial do contexto anterior. Saul já havia se encontrado com Davi (v. 8); por que ele faz esta pergunta aqui? O versículo 16 não mostra nenhuma consciência da seção anterior, o que indica que a conversa deles nos v. 16-22 foi inserida. Esses versículos, entretanto, cumprem uma função ideológica muito im­ portante. Primeiro, Saul chamou Davi de filho. Esta é a primeira vez na tra­ dição davídica em que ele foi chamado de filho do rei. Não se pode ignorar a importância desta terminologia, já que isto implica que Davi fazia parte da família de Saul. Isto serviu aos interesses de Davi muito bem porque Davi, mais tarde, tornou-se rei de Israel e assumiu o controle do reino de Saul. Davi reali­ zou isto como membro da família de Saul, e não como alguém de fora. Segundo, Saul admitiu que Davi era mais justo do que ele mesmo. A própria admissão de Saul ajuda a esclarecer que Davi não havia agido maliciosamente para com o rei, pois, Saul afirmou que Você me tratou bem, mas eu o tratei mal (v. 17). A afirmação de Saul teria tido um efeito retórico significante no público leitor no sentido de que inocentava Davi de quaisquer erros, e, assim,

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colocava todo o fracasso moral sobre Saul. Logo, Davi parecia ser mais nobre do que o rei. Terceiro, Saul basicamente admitiu que Davi se tornaria o rei e que o reino de Israel seria estabelecido nas mãos de Davi (v. 20). As palavras de Saul então preparavam o caminho para o reino de Davi se desenvolver. Além do mais, ele poderia se desenvolver de maneira que ajudasse a desviar e esmagar quaisquer criticismos ou desconfianças que alguém pudesse ter concernente às circuns­ tâncias pelas quais Davi chegou ao trono. Isto seria verdadeiro entre o povo próximo de Saul, especialmente aqueles que vieram da tribo de Benjamim. As declarações de Saul nos versículos 16-22, então, fornecem um tipo de apologia que não só antecipava a ascensão de Davi ao trono, mas inocentava Davi de qualquer erro durante este processo. A importância das declarações de Saul do ponto de vista da propaganda política não há como ser superestimada.

2. Davi e Nabal (25.1-44) ■ 1 Este versículo interrompe o fluxo da narrativa do final do capítulo 24. A primeira parte do versículo (la) fornece uma declaração sobre a morte de Samuel. Embora Samuel tenha sido inexistente neste texto desde o capítulo 16 na unção de Davi, o escritor/narrador do texto incluiu seu obituário neste ponto. A notícia da morte preparou o leitor para uma evocação do espírito do pseudoprofeta em 28.3-5, entretanto. A notícia também indicou como Samuel era amado pelo povo de Israel. O texto utiliza o verbo (vayispêdü) que indica um profundo pesar ou lamento em favor do povo. O povo também sepultou Samuel em sua cidade natal de Ramá (1.1,19). A segunda metade do versículo (25.1b ARC) nota que Davi saiu e foi para "o deserto de Parã”. Parã estava si­ tuada ao sul de Canaã na parte noroeste da península do Sinai. A Septuaginta diz que este era “o deserto de MaorrT (23.24; 25.2), que estava logo ao sul de Hebrom e, então, não tão longe geograficamente. I 2 -8 Esses versículos introduzem o leitor a novos personagens com quem Davi terá interações. A narrativa começa no versículo 2 com a declaração Cer­ to homem, que é semelhante à introdução de outros personagens no texto do AT (Jz 13.2; 1 Sm 1.1). A declaração é também significante porque indica uma quebra ou juntura literária no texto. O texto menciona que este homem vivia em Maom, e sua propriedade estava situada no Carmelo, que fica a cerca de doze a dezesseis quilômetros ao sul de Hebrom (15.12). Além do mais, o ho­ mem é descrito como sendo muito rico. Possuía mil cabras e três mil ovelhas

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(25.2). Baseado na descrição de suas possessões, poderia ter sido melhor dizer “mui poderoso”. Além de ser muito rico, seu nome Nabal diz algo sobre o seu caráter. Nabal é geralmente traduzido como “tolo, tolice” e, assim, refere-se a alguém cujo comportamento violava as normas sociais, a etiqueta ou a lei. Considerando o modo como ele agiu para com os homens de Davi mais tarde na narrativa (v. 9-13), o leitor pode entender como ele fazia jus ao seu nome. Nabal tinha uma esposa chamada Abigail (v. 3). O texto destaca suas qua­ lidades positivas: ela era inteligente e bonita. Esta descrição fica em profundo contraste com as qualidades de seu marido: rude e mau. Além do mais, Nabal traçava sua ascendência até Calebe, um dos heróis da era do deserto (Nm 13 14). Calebe e sua família eventualmente se estabeleceram nos arredores de Hebrom depois que os israelitas entraram na terra de Canaã (Js 14.13-15). Então, Nabal tinha impressionantes conexões familiares e riquezas, e ele desfrutava de uma medida de prestígio na região sul de Canaã. Esses bens provariam ser de um tremendo benefício para Davi, e sua carreira política depois que se casou com Abigail (1 Sm 25.42). Os acontecimentos se dão na época da tosquia das ovelhas. Isto representa uma ocasião não só para uma época de trabalho, mas de júbilos e festas também (2 Sm 13.23-29). Foi durante este tempo que Davi enviou dezjovens para falar com Nabal em favor de Davi (1 Sm 25.5). Davi enviou os jovens para requisitar alimento e outras provisões de Nabal. Davi instruiu seus homens a lembrarem Nabal de que os pastores dele não tiveram nenhum problema nem perderam nada enquanto os homens de Davi estiveram com eles. Os comentários de Davi soam como uma recompensa, e seu pedido significava uma demanda por di­ nheiro de proteção. Na realidade, entretanto, esta era uma maneira de Davi e seus homens so­ breviverem enquanto forneciam proteção para aqueles que viviam e trabalha­ vam naquela área. Isto também fornecia a Davi a oportunidade de obter favor e outros recursos materiais como forma de gratidão. O pedido de Davi, então, parecia um preço adequado para policiar a áreas e prover proteção contra os predadores. Davi até instruiu seus homens a fazerem o pedido educadamente, usando a linguagem seus servos, e a seu filho (v. 8). I 9 -1 2 Os homens de Davi fizeram a solicitação como foram instruídos. Em vez de receber as novas calorosamente, Nabal respondeu com ira e grosseria às palavras deles. Nabal simplesmente respondeu com uma pergunta: Quem é Davi? Quem é esse filho de Jessé? (v. 10). A indagação de Nabal não era uma tentativa de descobrir a verdadeira identidade de Davi, mas uma declaração

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que indicava que Davi agia presunçosamente ao pedir mantimentos. Nabal, que ficou ofendido com a proposta de Davi, enxergava Davi como um arrivista político e tomou sua solicitação como uma ameaça pessoal. Nabal não tomaria da carne que ele havia matado ou da água (a LX X diz vinho) que ele tinha para dá-los a Davi. Nabal até admitiu que não sabia de onde Davi era origi­ nalmente. No que lhe dizia respeito, Davi era um renegado político que havia se apartado de seu senhor. Após serem rejeitados, os homens voltaram a Davi. H 1 3 - 3 5 Quando Davi soube da resposta de Nabal, sua reação imediata incluía executar uma ação militar contra ele. Davi deu uma ordem firme aos seus homens: Ponham suas espadas na cintura! O texto menciona que qua­ trocentos homens subiram para pelejar contra Nabal (v. 13). O grupo era pro­ vavelmente composto de homens que se congregaram a ele em Adulão (22.2). Enquanto Davi e seus homens se preparavam para a batalha, um dos jovens de Nabal relatou para Abigail o que havia acontecido entre o marido dela e os homens de Davi. Ele mencionou que quando os mensageiros de Davi vieram abençoar Nabal, ele retribuiu o favor gritando insultos contra eles. O jovem entendia que as ações de Nabal tinham sérias conseqüências para todos que estavam associados com Nabal; a destruição paira sobre o nosso senhor e sobre toda a sua família (25.17b). Considerando a atitude de Nabal para com Davi e seus homens, o jovem apelou para a ajuda de Abigail; Agora, leve isso em consideração e veja o que a senhora pode fazer (v. 17a). Já que a obsti­ nação de Nabal impedia que ele mudasse de ideia, estava nas mãos de Abigail neutralizar a situação. Abigail entrou em ação a fim de evitar um confronto mortal entre seu ma­ rido e os homens de Davi. O texto menciona que ela imediatamente ajuntou uma impressionante gama de provisões para Davi e seus homens: duzentos pães, duas vasilhas de couro cheias de vinho, cinco ovelhas preparadas, cinco medidas de grãos torrados, cem bolos de uvas passas e duzentos bo­ los de figos prensados (v. 18). Além do mais, ela colocou os alimentos sobre jumentos e enviou tudo adiante dela como um tipo de oferta de paz. Abigail entendeu que enviar os presentes adiantados apaziguaria Davi e amenizaria as coisas para o seu encontro pessoal com ele. A cena é alusiva à ocasião em que Jacó enviou mensageiros e presentes a Esaú antes que os dois se encontrassem (Gn 32.3-21). A estratégia de Abigail funcionou, e ela conse­ guiu se aproximar de Davi e de seus homens em segurança. O encontro de Abigail com Davi (1 Sm 25.23-36) continha diversos ele­ mentos importantes. Primeiro, ela desceu do jumento e prostrou-se com o ros­ to em terra diante de Davi em sinal de respeito e submissão. Ela prontamente

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pediu a Davi que lhe desse permissão para falar com ele. A frase Meu senhor, a culpa é toda minha era um modo estereotipado de gentilmente pedir uma audiência com Davi (v. 24). Além do mais, isto indica que se algum dano fosse resultar da conversa deles, ela seria quem deveria levar a culpa. Abigail disse a Davi que seu marido agira de acordo com seu próprio nome (Nabal = tolo) e que Ele é insensato (v. 25). Ela não deveria ser responsável pelos erros de seu marido, já que ela não viu os homens de Davi quando visitaram Nabal mais cedo. A segunda parte da conversa dela (v. 26-31) era de natureza confessional. Em seus comentários, ela enfatizou diversas ideias originais: 1.0 Senhor impediu Davi de fazer vingança contra Nabal (v. 26). Como resultado, Davi não teria culpa de sangue em suas mãos pelo assassinato irrefletido de seu marido. As declarações dela relembram o público lei­ tor que a morte de Nabal não aconteceria como resultado da vingança de Davi, mas da retribuição do Senhor a Nabal pelo modo como ele tratou Davi, o ungido do Senhor. 2.Ela pediu que Davi perdoasse à sua serva esta transgressão (v. 28). Embora Abigail defendesse a sua inocência anteriormente, aqui ela pediu a Davi que ignorasse o pecado dela contra Davi. A petição dela a Davi garantiria que Davi não tiraria a vida dela uma vez que ele alcançasse uma posição de maior autoridade. 3.

Abigail também falou no versículo 30, do futuro reinado de Davi (Quan­ do o Senhor tiver feito a meu senhor todo o bem que prometeu e te ti­ ver nomeado líder sobre Israel). O discurso dela aqui antecipa 2 Samuel 7.16 e a promessa de Deus de firmar a casa de Davi. Como resultado, os comentaristas geralmente atribuem 1 Samuel 25.28-30, em particular, à mão dos editores deuteronomistas. E também digno de nota que o discur­ so de Abigail é a terceira vez que alguém faz alusão ao iminente reino de Davi. Primeiro, Jônatas admitiu isso, dando a Davi os símbolos da auto­ ridade real (18.4) e em suas palavras a Davi no deserto (23.17). Segundo, Saul fez uma proclamação de que Davi seria rei quando estava em En-Gedi (24.20). Aqui, Abigail reiterou a mesma mensagem. Estas declarações são importantes porque preparam o leitor para a even­ tual ascensão de Davi ao trono. Quando Davi se tornou rei sobre todo o Israel, não foi nenhuma surpresa para o público porque os personagens da história da ascensão de Davi haviam afirmado repetidamente que isto aconteceria. Além do mais, isto também ressaltava a ideia de que o povo não tinha nenhuma obje­ ção ao reino davídico. Aliás, o povo estava bem solidário a esta noção.

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4.Abigail lembrou a Davi que quando o Senhor tiver abençoado a ti, lembra-te de tua serva (v. 31). As declarações finais de Abigail (v. 31) antecipavam a ascendência política de Davi. Quando Davi alcançasse a proeminência política, ela pediu que ele se lembrasse dela e do que ela havia feito por ele. Davi não se esqueceria da generosidade de Abigail para com ele porque após a morte de Nabal, ele tomou Abigail como sua esposa. O casamento de Davi com Abigail também o ajudaria politicamente já que a fortuna e reputação de Nabal entre os clãs da parte sul de Israel caíram nas mãos de Davi. Davi respondeu favoravelmente ao generoso gesto e conversa de Abigail. Davi disse a Abigail que, por causa das ações dela, Nabal e os que estavam asso­ ciados com ele tinham sido poupados. Davi recebeu os presentes que ela trouxe para ele e mandou-a ir embora em paz (v. 35). I 3 6 - 3 8 Abigail voltou para casa e encontrou Nabal dando uma festa, como banquete de rei (v. 36). O coração de Nabal estava alegre [insensato] nele porque estava extremamente inebriado. O texto faz um trocadilho de palavras aqui. O termo insensato (nãbãí) é sinônimo do nome Nabal. Assim, Nabal não só foi tolo na forma como tratou Davi, mas era também insensato em sua conduta pessoal. Abigail esperou até de manhã para lhe contar sobre seu en­ contro com Davi. Quando ele ouviu aquelas palavras, sofreu um ataque e fi­ cou paralisado como uma pedra (v. 37). É difícil determinar o que o texto quer dizer com esta frase, já que Nabal morreu dez dias depois. O texto pode indicar que ele teve um infarto ou alguma outra disfunção cardíaca. De qual­ quer modo, o texto faz questão de dizer que o Senhor feriu Nabal (v. 38). Davi não o matou, logo, estava inocente diante dos homens e de Deus. H 3 9 - 4 2 Davi ficou sabendo da morte de Nabal. Como ele descobriu, o leitor nunca foi informado. O texto faz um esforço especial aqui para informar ao leitor que Nabal morreu antes que Davi procurasse Abigail. Davi propôs casamento à Abigail, mas ele o fez enviando seus servos para tomá-la; Davi os enviou para tomá-la por sua mulher (v. 40). A linguagem aqui indica que Abi­ gail não tinha muita opinião ou controle sobre a situação. As ações de Davi se assemelham às circunstâncias da época do caso de Bate-Seba: Davi enviou seus servos à mulher em questão e eles a trouxeram a ele (2 Sm 11.3-4). É provável que aquele relacionamento estivesse baseado não em romance, mas numa necessidade política. Davi sabia que sua própria posição pessoal e política seria grandemente aprimorada se ele se casasse com ela. Abigail reagiu à proposta de casamento de Davi levantando-se (juntamente com suas cria­

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das), montando no jumento, e seguindo os servos de Davi. Em um tom lacô­ nico, quase antisséptico, o versículo 42b nota simplesmente que ela tornou-se sua mulher. ■ 43-44 O capítulo encerra fazendo uma referência às outras mulheres de Davi. O texto nota que Davi se casou com Ainoã, de Jezreel (v. 43). Jezreel mais provavelmente se refere à pequena cidade de Judá perto de Moam, Zife e Carmelo (Js 15.55-56). Ainoã se tornou a mãe de Amnom, seu primogênito (2 Sm 3), que depois estuprou sua meia-irmã Tamar (cap. 13). O nome Ainoã é mencionado apenas uma vez antes desta, como sendo mulher de Saul (1 Sm 14.50). Os eruditos têm especulado que, além de Mical, Davi, em algum momen­ to, também tomou a mulher de Saul para si (Levenson e Halpern, 1980, p. 507-518). A declaração de Saul em 20.30 pode muito bem se referir a esta questão. Mesmo assim, então Davi teria conexão com a família de Saul não só por intermédio de sua filha, mas também de sua ex-mulher. A afirmação do ver­ sículo 44 de que Saul, porém, tinha dado sua filha Mical, mulher de Davi, a Paltiel filho de Laís é também sugestiva e pode corroborar com esta teoria. Já que Davi perdeu Mical, Abinoã seria a ligação de Davi com a família de Saul. Não é de surpreender que Davi requereria Mical de volta quando estivesse posicionado para se tornar o rei sobre as tribos do norte (2 Sm 3.13). O leitor ganha uma sensação da relevância política desses casamentos. Davi solidificou sua presença no sul por meio de seu casamento com Abigail e sua futura reivin­ dicação ao reino de Saul por intermédio de Ainoã e Mical.

3. Davi poupa a vida de Saul novamente (26.1-25) I 1-8 Este capítulo se inicia com a menção de que os zifeus mais uma vez relataram o paradeiro de Davi a Saul. Já que os zifeus são mencionados apenas aqui e no capítulo 23 e o versículo de abertura (v. 23.1) é idêntico ao 26.1, os eruditos frequentemente argumentam que esses dois capítulos fossem origi­ nalmente uma só narrativa que depois foi dividida pela inserção dos capítulos 24 e 25. O capítulo 26 representa uma versão similar e alternativa daquela do capítulo 24 (veja Por trás do texto, anteriormente). Como resultado, esses dois capítulos podem ter originado de uma fonte comum, mas divergiram-se duran­ te o processo de sua transmissão histórica. A história se abre com Saul em sua terra natal de Gibeá quando os zifeus forneceram informação sobre o paradeiro de Davi. Davi, por outro lado, estava escondido na colina de Haquilá (v. 1). Haquilá ficava na região do deserto

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ao sul de Canaã. Saul viajou para aquela região levando consigo três mil sol­ dados escolhidos. Ao entrar naquela região, Saul e seus homens armaram seu acampamento ao longo da estrada de Haquilá com vista para a cidade chamada Jesimom (veja também 23.19). Davi e seus homens continuaram residindo e se abrigando na região do deserto. Davi, porém, enviou espiões para estabelecer a posição de Saul (v. 4). Davi e seus homens se aproximaram do local onde Saul e seus homens estavam acampados para a noite. Um dos homens de Davi, Aimeleque, é chamado de hitita, do mesmo modo que Urias (2 Sm 11). O fato de que ele é chamado de heteu indica que ele não era um israelita e que Davi era inclinado a usar estran­ geiros como Aimeleque como mercenários. O outro homem que estava com Davi era Abisai, irmão de Joabe. Abisai era sobrinho de Davi (1 Cr 2.13-16), filho de sua irmã Zeruia. Abisai, mais tarde, provaria ser valoroso para Davi em combate, assim como seu irmão Joabe. Joabe se tornou o principal conselheiro militar e general durante os anos de deserto de Davi e também quando ele se tornou rei sobre Israel. Davi e Abisai encontraram Saul e seu general, Abner, dormindo em uma posição vulnerável (1 Sm 26.7). Ironicamente, uma lança, como aquela que Saul tinha usado para tentar encravar Davi na parede anteriormente (18.11), agora estava no chão, perto da cabeça. Davi, mais uma vez, teve a oportunida­ de de proteger a sua vida e também de se vingar contra Saul. Abisai abertamen­ te deu a sugestão de que Deus havia entregado Saul a eles e que ele deveria ferir Saul com a lança que estava encravada na terra (26.8). H 9-13 Quando Davi ouviu os comentários de Abisai, ele rapidamente con­ denou o plano de destruir Saul. Como é típico da história da ascensão de Davi, o texto percorre um longo caminho para mostrar que Davi não buscava a vin­ gança contra Saul e que ele não colocaria a mão na morte de Saul. A lingua­ gem de Davi no versículo 9: Quem pode levantar a mão contra o ungido do Senhor e permanecer inocente? é uma alusão aos seus comentários em 24.6. Além disso, Davi usou uma frase clichê em hebraico (hãlilâ li), Que o Senhor me livre, em referência à qualquer ideia de ferir Saul. A relutância de Davi em ferir Saul foi também significativa na história de sua ascensão porque Davi demonstrou ser mais nobre e mais magnânimo do que Saul. Davi tinha todo o direito de se vingar de Saul, mas Davi, mais uma vez, recusou-se a fazê-lo. Em vez de ferir a Saul, Davi pegou a lança e o jarro com água que estavam perto da cabeça dele e atravessou para o outro lado para que Davi estivesse distante do acampamento de Saul. Esses itens seriam a prova de que Davi teve a oportunidade de matar Saul, mas não o fizera. Isto

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novamente é semelhante ao capítulo 24, no qual Davi cortou um pedaço do manto de Saul para lembrá-lo de que poderia ter executado vingança sobre ele, mas se conteve em fazê-lo. ■ 1 4 - 2 5 Nesses versículos, Davi teve conversações com dois dos homens mais poderosos de Israel: Abner e Saul. Davi primeiro repreendeu a Abner por não fazer um bom serviço em proteger o rei. Davi até perguntou a Abner pelo paradeiro da lança e da jarra de água do rei para provar que ele tinha sido negli­ gente em permitir que Davi e seus homens entrassem no acampamento desper­ cebidos (v. 14-16). No ponto de vista de Davi, Abner merecia a pena de morte por sua falta de cuidado para com Saul. Davi então voltou sua atenção para Saul (v. 17-25). Quando Saul reconhe­ ceu a voz de Davi, ele o chamou de meu filho (v. 17). Diferentemente da oca­ sião em 24.16, Saul usou esta designação antes, e não depois da defesa de Davi. Davi respondeu às palavras de Saul com uma expressão respeitosa e humilde: ó rei, meu senhor. A sinceridade de Davi não o impediu de perguntar por que Saul o estava perseguindo e que crime ele havia cometido para merecer as in­ vestidas de Saul. Se Deus havia incitado Saul contra Davi, então, um sacrifício adequado poderia ser feito para aplacar a ira de Deus. Mas se fosse uma obra de homens que fizesse ficar com invejas e ciúmes de Davi, então os tais deveriam ser amaldiçoados perante o Senhor (26.19). Isto é, eles deveriam ser expulsos da comunidade da aliança (da herança do Senhor) para lugares onde outros deuses eram adorados - o mesmo castigo que ameaçava Davi. Saul aceitou a culpa pela presente circunstância e admitiu que estava er­ rado (v. 21-24). Ele reconheceu que agiu como um tolo em relação a Davi, invocando, assim, a imagem de Nabal no episódio anterior (v. 21). A confissão de Saul nesses versículos é significativa porque o implicava e essencialmente isentava Davi de qualquer culpa ou erro em termos de suas interações com Saul. Davi também apresentou a lança como evidência de que ele não tinha nenhuma intenção de tirar o símbolo do poder real do rei. Além do mais, Davi notou que, porque ele teve a vida de Saul como preciosa, Deus cuidaria de sua vida também e o livraria da angústia. Saul reconheceu os sentimentos de Davi e então pronunciou uma bênção sobre ele (v.25). De modo semelhante ao que um pai ancião abençoaria a um fi­ lho, as palavras de Saul a Davi antecipavam e preparavam o cenário para a futu­ ra grandeza de Davi como rei de Israel (Gn 27.27-29; 49.8-12,22-26). Quando Saul e Davi se separaram um do outro no final deste capítulo, esta foi a última ocasião em que falariam pessoalmente um com o outro. Quando a cortina se fecha no relacionamento deles, as palavras de Saul reverberam na mente do leitor enquanto Davi continua em seu caminho rumo ao trono.

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A PARTIR DO TEXTO Uma das coisas que aprendemos ao estudarmos a vida de Davi é que a vingança pessoal não realiza os propósitos redentores de Deus no mundo. O desejo de acertar as contas com aqueles que nos causaram dor, angústia ou so­ frimento é um sintoma da condição humana, mas não de um indivíduo pio. Todavia, como filhos de Deus, essas narrativas nos lembram de que Deus é o supremo juiz e trará a justiça divina no tempo certo. Embora Davi tivesse a oportunidade (e alguns diriam até o direito) de matar Saul, Davi entendia que Saul era o ungido de Deus e que não era sua a responsabilidade de exercer vingança contra ele. Nesse processo, Davi nos mostra o caminho apropriado de reagir àqueles que possam merecer vingança e que é possível oferecer a outra face com a ajuda de Deus. Deste modo, Davi foi mais justo e virtuoso do que Saul. Isto não significa que não podemos nos defender diante do perigo e nem devemos procurar nos colocar em uma posição vulnerável. O texto realmente transmite uma noção de que não devemos buscar ativamente pagar o mal com o mal, mas vencer o mal com o bem (Rm 12.21).

F. Davi entre os filisteus (27.1—30.31) POR TRÁS DO TEXTO Estes capítulos são considerados em conjunto porque cobrem o período em que Davi serviu como vassalo filisteu (esp. cap. 27, 29—30). A unidade mostra um elemento de simetria em que a Davi foi dado Ziclague por se tornar servo de Aquis no capítulo 27, e Davi vingou a destruição de Ziclague pelos amalequitas no capítulo 30. O episódio de Saul visitando a médium de Endor no capítulo 28 foi cuidadosamente inserido na unidade global da narrativa. Embora este capítulo possa parecer fora de contexto, ele de encaixa no contex­ to circundante no sentido de que a visita de Saul antecipa a batalha do monte Gilboa (cap. 31) e sua morte no campo de batalha (28.19). Além do mais, a rejeição dos filisteus quanto a Davi no capítulo 29 afastava Davi da cena da batalha na qual Saul morreu, e o situava em Ziclague. O capítulo 27 dá abertura à unidade e vem logo após a despedida entre Davi e Saul em 26.25. Este capítulo é peculiar porque representa uma versão alternativa dos eventos de 21.10 e seguintes. Aqui, Davi se abrigou com Aquis, o rei de Gate, todavia, ele já havia sido introduzido a ele no capítulo 21. Além

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disto, o capítulo 27 não dá nenhuma indicação de que Aquis conhecesse Davi previamente. Desta forma, é difícil determinar que capítulo pode ter sido a ver­ são original e qual é a edição secundária ou posterior. E também possível que duas tradições independentes concernentes ao relacionamento entre Aquis e Davi existissem. A outra questão proeminente é também semelhante à do ca­ pítulo 21. Saul parece ser seu próprio pior inimigo, já que sua vida recaiu em uma queda espiralar depois que Deus o rejeitou como rei (cap. 15). Enquanto Saul continuava a perseguir a Davi, ele o empurrou para a proteção dos inimigos de Israel. Além do mais, Davi conseguiu usar sua posição de vassalo dos filisteus para melhor ajudar suas próprias ambições políticas. No capítulo 27, Davi re­ cebeu o controle da cidade de Ziclague. A localização de Ziclague logo à mar­ gem da planície filisteia lhe dava ampla oportunidade de continuar atacando as orlas sulinas do país, de solidificar as relações sociais entre os clãs e tribos do sul, e aprimorar sua posição política entre o povo dali. A ligação de Davi com os clãs do sul provou ser inestimável quando ele se tomou rei sobre a tribo de Judá e depois sobre Israel. O capítulo 28 liga o capítulo 27 via 28.1-2. Esses versículos não só for­ necem a introdução à batalha de Saul contra os filisteus no capítulo 31, mas também preparam o contexto para a visita de Saul à médium em 28.3-25. Saul, que não recebia nenhuma palavra de Deus porque havia sido rejeitado, buscou a ajuda do profeta Samuel já morto. A conversa de Saul com Samuel se concen­ trava na iminente batalha contra os filisteus. Saul procurou conselho e direção para determinar a vontade de Deus para ele por intermédio do profeta. Em vez de palavras animadoras, porém, Samuel lembrou a Saul de que ele havia sido rejeitado por Deus e que Deus entregaria Saul e Israel nas mãos dos filisteus. As palavras de Samuel essencialmente selavam o destino de Saul e depois pro­ varam ser proféticas quando Saul morreu lutando contra os filisteus no monte Gilboa (cap. 31). Como nos outros capítulos da história da ascensão de Davi, este capítulo continua a destacar a noção de que Deus tinha Sua mão sobre a vida de Davi, enquanto que a vida de Saul continuava a se espiralar fora do controle. O capítulo 29 se encaixa com o capítulo 30 em que os filisteus rejeitaram a Davi e o impediram de ir à batalha contra os israelitas no capítulo 31. Como resultado, Davi retornou a Ziclague no capítulo 30. Quando Davi retornou a Ziclague, ele ficou sabendo que os amalequitas haviam destruído a cidade e tomado muitos de seus cidadãos prisioneiros. Os amalequitas tinham sido adversários de Davi anteriormente (27.8), mas neste contexto eles destruíram

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Ziclague em um ataque agressivo sobre a cidade. Davi reagiu à agressão dos amalequitas com um ataque também contra eles. Em termos da história da ascensão de Davi, porém, este episódio serve a duas importantes funções. Primeiro, a vitória de Davi sobre os amalequitas representa outro inimigo que Davi derrotou, mas que Saul foi incapaz ou indis­ posto a exterminar. Esta retratação de Davi preenche a agenda teológica/ide­ ológica das pessoas responsáveis pela história de Davi em que a mesma apoia a liderança davídica e demonstra a noção de que onde Saul havia falhado, Davi foi bem-sucedido. Segundo, os acontecimentos do capítulo 30 situam Davi em Ziclague e nas margens sulinas de Canaã. Já que Davi estava ocupado lutando contra os amalequitas, ele estava muito longe dos acontecimentos em torno da morte de Saul. O capítulo 30 coloca Davi em uma região do país na qual seria impossível que ele tivesse colocado a mão na morte de Saul. Esta informação, em certo sentido, serve como uma apologia em que demonstra que Davi tinha um álibi para responder às acusações daqueles que alegavam que Davi teve uma participação na morte de Saul. NO TEXTO

1. Davi e Aquis (27.1-12) I 1 -4 De acordo com estes versículos, Davi se refugiou entre os filisteus a fim de preservar a sua própria vida. Saul andava perseguindo a Davi primariamente em territórios onde Saul mantinha o controle. Saul nunca havia conseguido efetivamente afastar a pressão filisteia, e, então, a região em torno da planície filisteia fornecia a Davi um lugar de refúgio. Aquis é chamado de filho de Maoque (v. 2). Embora o nome seja Maaca em 1 Reis 2.39, isto pode representar uma tentativa de assimilar o nome a um formato familiar do Antigo Testamento. Maoque é um nome nativo filisteu, e comparações similares têm sido feitas com Macas ou Maca da Ásia Menor (Ackroyd, 1971, p. 205,206). Quando Davi viajou para Gate, ele levou consigo seiscentos homens e suas duas esposas: Ainoã e Abigail (v. 2-3). A primeira esposa, Ainoã, era de Jezreel. Embora o Vale de Jezreel estivesse na região norte de Israel, a Jezreel men­ cionada aqui é outra localização. O AT apenas menciona uma outra Ainoã, e esta é a mulher de Saul. Como resultado, alguns têm argumentado que Ainoã era a ex-mulher de Saul que se associou a Davi. Se Ainoã era ex-mulher de Saul,

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então ela, além de Mical, fornecia uma inestimável conexão com a casa de Saul (veja comentários em 25.43-44). Abigail tinha sido esposa de Nabal, com a qual Davi se casou depois da morte de Nabal. Ao se casar com Abigail, Davi não só obteve acesso à riqueza de Nabal, mas também capital político entre os descendentes de Calebe e outros clãs sulinos. H 5-6 Quando Davi veio a Aquis, ele ganhou o controle sobre a cidade de Ziclague, que fornecia acesso ao Neguebe (v. 6). A localização exata da cidade permanece desconhecida, mas dois ou três sítios têm sido propostos pelos ar­ queólogos (Fritz, 1993, p. 58-61,76). O sítio de Tel esh-Sheriah, em particular, foi sugerido como sendo a antiga Ziclague. Este sítio arqueológico fica na bor­ da leste da planície costeira. Logo, a antiga Ziclague estava situada perto do ter­ ritório de Judá, provavelmente bem na fronteira da área controlada por Gate. Ziclaque também era conhecida como propriedade da coroa, já que per­ tencia aos reis de Judá (v.6). Esta declaração provê evidência de que a tradição sobre Davi e Ziclague foi submetida à escrita depois que o reinado davídico em Judá havia sido estabelecido. I 7-12 Estes versículos recontam as incursões de Davi e seus homens à re­ gião sul de Israel quando Davi ocupava a cidade de Ziclague. Davi e seus ho­ mens eram cruéis quando atacavam os gesuritas, os gersitas e os amalequitas (v. 8). O texto nota que eles não deixavam ninguém vivo, não poupavam homens nem mulheres. Davi exterminava aqueles povos para que ninguém pudesse relatar a Aquis como Davi os havia tratado tão severamente. O texto pode estar usando uma hipérbole aqui porque os amalequitas “retornaram o favor” quando atacaram a cidade de Ziclague (30.1-3). Enquanto Davi atacava esses territórios e tomava os despojos para si, ele também enganava a Aquis, que lhe perguntava onde ele havia atacado. Davi respondia que seus ataques acon­ teciam no território do sul de Judá: “O Neguebe de Judá” ou “O Neguebe de Jerameel” ou “O Neguebe dos queneus” (v. 10). Aquis acreditava que Davi estava se tornando odioso para com o povo de Israel, mas como uma raposa astuta, Davi estava avultando sua posição enquanto enganava o rei filisteu.

2. Saul consulta uma feiticeira (28.1-25) ■ 1-2 Embora estes versículos possam não parecer relacionados aos eventos dos versículos 3-25, eles antecipam a chegada da batalha entre os filisteus e os israelitas. Eles também levantam as questões sobre o papel de Davi na guerra e se ele permaneceria fiel aos filisteus ou aos israelitas. O rei filisteu, Aquis, ten­ tou reafirmar a lealdade de Davi no momento da batalha. Davi havia engando

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Aquis, fazendo-o pensar que estava se tornando odiado pelo o povo de Israel (27.12). entretanto, Aquis parecia ansioso para se certificar de que Davi não se aliaria aos israelitas na guerra contra os filisteus. O comentário dele em 28.1: Saiba que você e seus soldados me acompanharão no exército, não era tanto uma pergunta, mas uma exigência sutil. O texto emprega o infinitivo absoluto para o primeiro verbo (yãdõ a têdã ) e um imperfeito para o segundo (têtê ) de forma que isto pode ser entendido como uma forma de comando. Davi ten­ tou dar garantia a Aquis afirmando simplesmente: Então tu saberás o que teu servo é capaz de fazer (v. 2). Davi, porém, arquitetou sua resposta de tal modo que não afirmou especificamente o que ele faria. Como leitores, ficamos com a pergunta sobre como Davi reagiria quando os filisteus, de fato, guerreassem contra os israelitas. Será que ele ajudaria os inimigos de Israel na batalha, ou ele retornaria à sua aliança com o povo de Israel? Davi escolheu suas palavras cuidadosamente aqui para que as suas in­ tenções nunca fossem esclarecidas. Aquis, por outro lado, tomou a declaração dele como um sinal de que Davi lutaria a favor dos filisteus. Aquis acreditou em Davi até ao ponto de torná-lo seu guarda pessoal (v. 2). Contudo, nem todos os filisteus estavam convencidos de que ele permaneceria fiel a eles em tempo de guerra (29.3-4). I 3 - 4 A iminente batalha contra os filisteus é prefaciada pela notícia da morte de Samuel e seu sepultamento em sua cidade natal em Ramá. A notícia da morte de Samuel é primeiro relatada quase palavra por palavra em 25.1. Embora este versículo possa parecer supérfluo, ele serve como uma importan­ te ligação para a narrativa dos versículos seguintes. No momento da batalha, os israelitas se acamparam em Suném, uma cidade no aclive da montanha de Moré, do lado oposto do monte Gilboa no vale de Jezreel (veja também 29.1). I 5 -7 Quando Saul avistou o acampamento filisteu, ele teve medo; ficou apavorado (v. 5). Como já foi mencionado previamente, uma das falhas de Saul como rei era a sua incapacidade de derrotar os filisteus. Até o capítulo 25, Saul não só tinha falhado em derrotá-los, mas também estava com medo deles. Assim como Saul havia tentado fazer no passado, sem obter sucesso, Saul consultou o Senhor, mas este não lhe respondeu (28.6). O leitor nota nova­ mente a ironia do nome de Saul (sã w/) e o seu pedido (vayis ’al ) ao Senhor, buscando direção. Saul utilizou todo instrumento religioso disponível a ele a fim de receber uma palavra de Deus: nem por sonhos nem por Urim nem por profetas. Todavia, o Senhor permaneceu em silêncio.

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A recusa de Deus em responder não só reafirmava sua rejeição a Saul, mas também apontava para o absoluto isolamento que Saul experimentava no final de seu reinado como o líder de Israel. Já que Saul não recebeu nenhuma respos­ ta do Senhor, ele ordenou aos seus servos que encontrassem uma “feiticeira” (v. 7 ARC). A sugestão de Saul não só ressaltava seu completo desespero, mas também simbolizava sua separação de Deus quando ele tentava se engajar em uma prática que Deus havia proibido (v. 3; veja também Dt 18.10; Lv 19.31; 20.6,27). A mulher morava na cidade chamada En-Dor, cidade da tribo de Manassés (Js 17.11) situada a poucos quilômetros ao nordeste do acampamen­ to filisteu em Suném. I 8-14 Percebendo a inconformidade de suas ações, Saul então se disfar­ çou, vestindo outras roupas e foi até a casa da mulher à noite para que nin­ guém o visse (1 Sm 28.8). Quando Saul encontrou-a, ele deu a ordem: Invo­ que um espírito para mim, fazendo subir aquele cujo nome eu disser. A mulher, porém, acreditava que Saul estivesse armando uma armadilha (v. 9) a fim de matá-la, pois Saul havia destruído os médiuns e os que consultam os espíritos (v. 3). Após jurar um voto pelo Senhor, afirmando que nenhum mal viria sobre ela, Saul lhe fez o pedido para que fizesse subir o espírito de Samuel. Não se sabe ao certo como foi, mas quando a mulher invocou o ilusório espírito de Samuel, ela imediatamente reconheceu Saul, apesar de seu disfarce (v. 12). Alguns têm argumentado que é necessário ler o nome de Saul em vez de Samuel para que o texto faça sentido. Seria possível, porém, que o falso Samuel tenha revelado à mulher que era Saul quem estava na presença dela, ou ela foi capaz de deduzir que era o rei simplesmente se baseando em seu pedido por Samuel? O texto não dá uma resposta clara aqui. Quando Saul perguntou o que ela via, ela respondeu: “Vejo deuses” (v. 13 ARC). A palavra que é usada aqui (*êlõhim ) geralmente significa “Deus” ou “deus”, mas pode também significar “um ser semelhante a deus”. Então, pro­ vavelmente deveríamos ler “espírito” ou “fantasma”. Ela também viu que ele estava usando um manto, ou seja, a forma como o Samuel verdadeiro é caracte­ rizado em outros lugares (15.27). I 15-19 O suposto Samuel apareceu a Saul em 28.15 e fez a seguinte per­ gunta: Por que você me perturbou? O dissimulado Samuel não se referiu a uma perturbação emocional, mas a uma fictícia interrupção do descanso dos mortos (Is 14.9) e por ter de sair do Sheol (o submundo) para se envolver em questões terrenas novamente (Jó 3.12-19). Saul tornou a contar-lhe que Deus

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não se comunicava mais com ele, e ele estava procurando o conselho de Samuel. A única reação do Samuel impostor foi de resignação; se Deus havia rejeitado Saul, ele também não tinha poder de fazer nada por ele (1 Sm 28.16-18).

A habitação dos mortos O AT não contém uma teologia muito desenvolvida de vida após a morte. Os indivíduos mortos viajavam para o submundo do Sheol. O Sheol é retratado como um lugar para onde alguém desce (Nm 16.30; Jó 7.9; Is 57.9) e é, às vezes, referido como um abismo (Is 5.14; 38.18; Ez 31.16; 51 30.3; 88.3,4; Pv 1.12). As trevas são uma característica fundamental do Sheol (Jó 17.13; Lm 3.6) e sua etimologia pode estar relacionada à necromancia (literalmente, "perguntar, inquirir"). Logo, o Sheol é um lugar onde alguém se engaja em necromancia, uma prática que geralmente acontecia à noite (1 Sm 28.8; Is 45.18-19; 65.4). O AT não retrata o Sheol como um local de castigo ou recompensa, mas apenas como o destino final, tanto para os bons (Gn 37.35) como para os maus (Nm 16.30). Este é o lugar de encontro para todos os mortos (SI 89.48). Um entendimento mais elaborado sobre a vida após a morte se desenvolveu durante o perí­ odo intertestamentário, no qual os perversos sofreriam uma punição após a morte enquanto os justos gozariam de felicidade e alegria (Lewis, 1992, p. 101-105).

Em vez de direção, o falso espírito de Samuel deu uma palavra dura a Saul (v. 19). Ele, essencialmente, deu três mensagens agourentas para Saul. Primei­ ro, Deus havia rasgado o reino de Saul e entregue a outro. Segundo, ele reiterou que Deus havia rejeitado Saul por sua falha em obedecer Sua ordem na questão dos amalequitas (cap.15). Terceiro, Saul, e seu filho, e o exército israelita seriam entregues nas mãos do exército filisteu (cap. 31). Em vez de receber uma pala­ vra de encorajamento ou de direcionamento do ilusório fantasma de Samuel, Saul foi confrontado com o conhecimento de sua queda pessoal e com o fim de seu reinado.

I 20-25 O capítulo encerra com uma nota sobre o que aconteceu a Saul depois que o falso Samuel apareceu a ele e à feiticeira. Saul caiu estendido no chão, aterrorizado pelas palavras de Samuel (v. 20). Além do mais, Suas forças se esgotaram, pois ele não havia se alimentado, provavelmente porque

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estava jejuando em preparação para seu encontro com Samuel. A mulher, ven­ do que Saul estava aterrorizado, ofereceu-lhe um bocado de pão (v. 22) para ajudá-lo a recobrar a sua força. Somente após ter sido fortemente encorajado por seus servos e pela mulher, Saul se levantou e comeu. Em sinal de hospita­ lidade, a feiticeira preparou um bezerro gordo ... e pão sem fermento para ele comer (v. 24). Ironicamente, a última pessoa a demonstrar bondade e mi­ sericórdia a Saul não foi Deus nem o falso Samuel, mas uma feiticeira que se envolvia em necromancia.

3. Os filisteus rejeitam Davi (29.1-11) I 1 -3 O capítulo se abre com a notícia de que os filisteus se reuniram para a peleja em Afeque (v. 1). Afeque estava situada no norte de Efraim, não muito longe do sul de Suném. O fato de que os filisteus exercessem pressão militar a tal distância ao norte demonstra quão formidável a ameaça deles contra os israelitas havia se tornado. Os israelitas se acamparam em JezreeI, uma cidade no lado noroeste do monte Gilboa. Os filisteus haviam congregado um imenso exército que estava se deslocando em grupos de cem e de mil (v. 2). Davi e seus homens ficaram na retaguarda dos filisteus com Aquis. Os comandantes dos filisteus mostraram ceticismo em relação a Davi e seus homens porque não acreditavam que Davi permaneceria fiel aos filisteus quando se preparavam para lutar contra os israelitas (v. 3,4). Os filisteus se refe­ riram a Davi e seus homens como estes hebreus, um termo que haviam usado em relação aos israelitas anteriormente (4.6, veja comentário lá). Mais prova­ velmente, os filisteus os viam como mercenários e vagabundos que poderiam mudar de aliança em qualquer momento. Além do mais, os filisteus entendiam que Davi havia previamente servido a Saul em seu exército. O que impediria que Davi se aliasse aos israelitas e virasse as costas para os filisteus no calor da batalha? Aquis tentou amenizar as reservas deles, citando os serviços leais de Davi para com ele: Desde que ele tem estado comigo (. . .) Eu não encontrei nada nele desde o dia do seu afastamento até hoje (v. 3). Na resposta de Aquis, o termo afastamento sugere que Davi realmente “desertou” (NRSV, nãplõ) de Saul quando se uniu ao líder filisteu. Além do mais, o verbo é um infinitivo conotando a continuação do abandono de Davi quanto a Saul. Logo, a presença de Davi com Aquis servia de prova de que ele havia cortado as relações com o rei israelita.

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I 4 - 5 Apesar da emocionante defesa de Aquis em favor de Davi, os coman­ dantes filisteus mantiveram sua desconfiança quanto a ele e ordenaram que ele voltasse para Ziclague. A dúvida deles sobre Davi estava fundamentada na noção de que ele poderia se unir aos israelitas e se tornar adversário durante 0 combate (v. 4). O termo “adversário” aqui (satãn) tem um amplo leque de significados no AT e é geralmente traduzido como “acusador” ou “tentador”. À luz deste contexto, entretanto, ele deve provavelmente ser tomado como “anta­ gonista” ou “inimigo”, indicando assim sua resistência ativa contra os filisteus. Na mente dos príncipes filisteus, suas reservas quanto a Davi eram justi­ ficadas já que somente à custo da cabeça dos filisteus Davi poderia alcançar o favor de Saul (v. 4; 18.27). Os comandantes filisteus até citaram a frase que os israelitas reservaram para Davi (18.7; 21.11) como justificativa para suas ações. Davi se encontrou em uma interessante posição; Saul não confiava nele e o queria morto, e os filisteus não estavam convencidos de que ele realmente permaneceria fiel a eles na batalha contra os israelitas. 1 6 - 1 1 Mediante a rejeição de Davi pelos filisteus, Aquis reiterou sua admi­ ração por Davi e novamente contou aos príncipes filisteus sobre a fidelidade de Davi. É significante que mais uma vez na história da ascensão de Davi outro indivíduo o achou inocente de qualquer erro. Nesta ocasião, entretanto, foi um não israelita que esbanjou elogios a Davi. Aquis mencionou em 29.6 que nenhum m al em ti achei, desde o dia em que a mim vieste até ao dia de hoje. Uma questão significante se levanta aqui à luz do comentário de Aquis sobre Davi: se Davi fosse tão leal a Aquis, o que isto significava em termos de seu relacionamento com o povo israelita nesta ocasião ? Além do mais, como o povo interpretaria a lealdade de Davi a Aquis à luz do fato de que os filisteus eram os inimigos mortais de Israel? Davi poderia ter sido percebido como um traidor, e esta informação poderia ser usada contra ele quando ele se tornasse rei sobre o povo israelita. O material aqui nestes versículos tenta abordar este assunto e apagar quais­ quer criticismos negativos sobre Davi que o mesmo possa ter gerado. O texto faz isto de diversas maneiras importantes. Primeiro, Davi não foi permitido ir à batalha contra o povo israelita. De acordo com os versículos 6b-7, 9 os prínci­ pes filisteus não deram a Davi nem a seus homens permissão para acompanhá­ mos à guerra. Logo, o texto impede Davi de lutar contra o povo sobre o qual ele um dia reinaria. Segundo, Davi foi ordenado a voltar para Ziclague: Volta, pois, agora, e volta em paz (v. 7a). Davi fez como fora instruído: Então, Davi de madrugada

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se levantou, ele e os seus homens, para partirem pela manhã e voltarem à terra dosfilisteus (v. 11). A notícia sobre Davi deixando os filisteus e retornando a Ziclague também serve uma importante função ao situar Davi e seus homens longe da batalha no monte Gilboa - o local onde Saul morreu quando lutava contra os filisteus. Após a saída de Davi, o texto menciona que os filisteus foram para Jezre­ el (v. 11). O texto percorre uma longa distância aqui para mostrar que Davi e os filisteus de dirigiram em sentidos opostos; Davi viajou para o sul, e os filisteus foram para o norte. A nota no versículo 11 convincentemente coloca Davi lon­ ge de Jezreel, o que em torno significa que ele não teve participação na morte de Saul (nem de Jônatas). Terceiro, Aquis garantiu o caráter de Davi; especialmente sua lealdade e fi­ delidade. Aquis enfatizou isto principalmente no versículo 9, quando afirmou: “Bem o sei; e que, na verdade, aos meus olhos és bom como um anjo de Deus” (ARC). A palavra bom (tõv) neste contexto se refere ao caráter e desempenho de Davi enquanto a serviço de Aquis. Portanto, a palavra pode ser traduzida como “sem culpa” (NRSV), “aceitável” (JPS), ou “fiel” (NTLH). Embora es­ tas palavras venham da boca de um filisteu, elas realmente falam bem de Davi e enfatizam a noção de que ele era um servo fiel. Da perspectiva da narrativa, 0 respaldo de Aquis quanto ao caráter de Davi também teve uma importante função teológica e de relações públicas. Se um gentio não conseguia encontrar traição em Davi, quanto mais poderiam os israelitas confiar em Davi quando ele se tornasse o seu rei ? A ironia é que ele não era um servo fiel, mas enganava a Aquis enquanto estava a seu serviço (27.10-12).

4. Davi se vinga da destruição de Ziclague (30.1-31) 1 1 - 4 0 capítulo se inicia com a notícia de que Davi e seus soldados chega­ ram a Ziclague, no terceiro dia (v. 1). A declaração de abertura se encaixa bem com o final do capítulo 29 (esp. v. 10,11), assim o texto indica que os aconte­ cimentos estão conectados. A nota sobre o terceiro dia realmente precisa ser lida como depois de três dias. Os três dias de viagem são significantes diante dos eventos que se dão neste contexto. Isto mostra que a distância entre Afeque, no norte (29.1), e Ziclague, no sul, não poderia ser deslocada rapidamente. Graças às descobertas arqueo­ lógicas, isto provou ser um “espaço de tempo bem razoável” para Davi e seus homens chegarem a Ziclague (Tsumura, 2007, p. 638). Logo, uma jornada de três dias separava Davi dos filisteus.

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Além do mais, o monte Gilboa, o cenário da última batalha de Saul (cap. 31), ficava a mais cinqüenta e cinco a sessenta quilômetros ao nordeste de Afeque. Davi estava, portanto, bem distante dos filisteus e ainda mais longe da cena da última luta de Saul. A implicação é clara: Davi não ajudou os filisteus na batalha contra os israelitas, nem teve sua mão envolvida na morte de Saul. Quando Davi e seus homens chegaram a Ziclague, a cidade estava quei­ mada a fogo, e suas mulheres, seusfilhos e suasfilhas eram levados cativos (v. 3). A destruição da cidade pelas mãos dos amalequitas também leva o leitor de volta à história de Saul. Embora Davi tenha tratado os amalequitas duramente como o líder de Ziclague (27.8), o leitor é relembrado que Saul deveria ter der­ rotado e completamente aniquilado os amalequitas segundo a ordem de Deus (15.3). Por causa da desobediência de Saul com relação aos amalequitas (veja também a importante injunção deuteronômica estabelecida em Dt 25.17-19), eles continuavam vivos para atacarem a cidade de Ziclague quando Davi residia ali. Como resultado, pessoas da cidade de Davi e da família de Davi sofreram as conseqüências da indisposição de Saul de obedecer à ordem de Deus. Davi se viu mais uma vez enfrentando angústia pessoal por causa das ações de Saul. Davi e o povo que com ele estava se agonizaram pela destruição da cidade e pela captura de seus familiares (1 Sm 30.4). A angústia deles é destacada na linguagem do versículo 4: Davi e o povo que se achava com ele alçaram a sua voz e choraram, até que neles não houve maisforça para chorar. H 5-6 As mulheres de Davi, Ainoã e Abigail são citadas entre os membros da comunidade que foram levados cativos. Os amalequitas, sem dúvida, estavam fazendo uma declaração política quando levaram as esposas do governante da cidade. Mais provavelmente, os amalequitas teriam feito as mulheres de Davi de servas, ou, como despojos de guerra, usá-las para favores sexuais. É possí­ vel também que as mulheres tivessem sido presas como reféns por um resgate. O fato de que apenas estas duas mulheres foram mencionadas indica que esta narrativa se correlaciona com os primeiros estágios da carreira política de Davi. O texto informa ao leitor que Davi tomou mais mulheres quando se tornou o líder de Judá e quando passou a reinar em Jerusalém (2 Sm 3.2-5; 5.13,14). Davi também acendeu a ira do povo de Ziclague que basicamente o cul­ pou pela catástrofe. Como resultado da irritação deles, os sobreviventes fala­ vam em apedrejá-lo (v. 6). O povo de Ziclague reconhecia que, por causa da ausência de Davi, os amalequitas criaram coragem de iniciar o ataque. Logo, o povo ficou ressentido com Davi e o responsabilizava pela perda de seus fi­ lhos e filhas. No meio desta situação caótica e terrível, Davi procurou a ajuda de Yahweh; “Davi se esforçou no Senhor [Yahweh], seu Deus” (v. 6 ARC). A

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sintaxe desta última declaração é significante porque indica que sua força foi encontrada em seu Deus, o Senhor; uma fonte que transcendia, e, logo, não era afetada nem limitada pelas circunstâncias mutáveis nas quais os humanos frequentemente se encontram. I 7 - 1 0 Davi aconselhou a Abiatar, o sacerdote que havia estado com ele desde sua visita a Nobe, para que trouxesse o colete sacerdotal, “éfode”, a fim de determinar se ele deveria perseguir os amalequitas (v. 7). Aqui, como em 23.6, o éfode funcionava como um instrumento de invocação que Davi usava para decifrar a vontade de Deus em dada situação. Devo ir atrás desse bando e alcançá-los? (v. 8) é muito semelhante à linguagem que Davi usou em outro lugar quando estava se preparando para a batalha (1 Sm 23.2; 2 Sm 5.19). Diferentemente das ocasiões em que Saul consultou a Deus (1 Sm 14.37; 28.6), Davi continuou a receber a resposta divina para a sua pergunta. Deus respondeu na afirmativa: Persegue-a, porque, decerto, a alcançarás e tudo libertarás (30.8). A linguagem aqui é importante porque o primeiro verbo (rêdõj) é um comando, e os outros dois verbos (hassêg tassig e hassêl tassil) são infinitivos absolutos. A sintaxe indica que Deus não só ordenou que Davi fos­ se à guerra, dando-lhe o sinal verde para o ataque, mas, de forma inequívoca garantiu-lhe que lhe daria o sucesso nesse empreendimento. Em resposta à palavra de Deus, Davi saiu com 600 homens (v. 9). Os nú­ meros indicam que o bando de Davi cresceu dos 400 originais (22.2). Informa­ ções concernentes às origens e identidade desses homens permanecem elusivas. Será que Davi se encontrou com eles quando estava no deserto, ou eles se jun­ taram a Davi quando Aquis apontou a Davi como governador de Ziclague ? O texto não responde plenamente a esta pergunta, mas pode ser que ambas as respostas se aplicam. Embora Davi tivesse 600 homens, apenas 400 o acompanharam na ba­ talha. Esses 400 podem representar os 400 membros originais que apoiaram Davi desde o início (22.2). O texto menciona que Davi e seus homens atraves­ saram o ribeiro de Besor (30.9). Este ribeiro intermitente nunca é menciona­ do em outro lugar no AT, então, identificá-lo com confiança é problemático. Entretanto alguns o tem associado com o ribeiro de Ghazzeh, o proeminente ribeiro no sudoeste de Ziclague (Tell esh Sheriah) por aqueles que escavaram o sítio (McCarter, 1980b, p. 435). Se isto estiver correto, então este teria sido o mais importante sistema de rios intermitentes que escoam o Neguebe no mar Mediterrâneo. H 1 1 - 1 4 Enquanto os soldados de Davi marchavam adiante, eles encontraram um egípcio desconhecido que estava associado aos amalequitas (v. 11). Já

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que o território dos amalequitas não estava muito longe do Egito, não era de surpreender que um egípcio encontrasse emprego como servo na casa de um amalequita. O servo egípcio estivera viajando por três dias e estava faminto. Depois de lhe dar comida e água, Davi interrogou o jovem (v. 13): De quem és tu e de onde és f O jovem alegou que seu mestre o deixara para trás depois de fazer in­ cursões no Neguebe dos queretitas e no Neguebe de Calebe (v. 14). O termo Neguebe significa “sul” em hebraico, logo elas correspondiam a duas áreas no extremo sul do país. A primeira área levava o seu nome por causa dos quere­ titas. Este grupo étnico provavelmente veio originalmente da região de Creta ou Caftor. O texto bíblico também identifica Creta ou Caftor como o local de origem dos filisteus (Jr 47.4; Am 9.7). Portanto, os dois povos compartilhavam uma ascendência comum, com os quereteus compondo um subconjunto dos filisteus. Davi veio a depender dos serviços dos queretitas (juntamente com os peletitas), e eles formavam a espinha dorsal de sua guarda pessoal (2 Sm 8.18). O Neguebe de Calebe era provavelmente um subdistrito dos queneus (1 Sm 25.3; 27.10), que estava localizado na região sul de Hebrom. O rapaz também confessou que os amalequitas haviam queimado a cidade de Ziclague. Quando Davi soube destas notícias, ele pediu ao rapaz que o conduzisse ao bando de invasores. ■ 1 5 - 1 6 O jovem concordou em conduzir Davi e seus homens aos amale­ quitas na condição de que Davi não o matasse nem o entregasse ao seu senhor. A localização do bando de invasores não é fornecida; entretanto, quan­ do Davi e seus homens chegaram ao local, os amalequitas estavam espalhados pela região, comendo, bebendo e festejando (v. 16). A sintaxe sugere que os amalequitas estavam realmente “se esbanjando” por causa dos despojos que ha­ viam tomado em suas incursões contra as terras dos filisteus e a terra de Judá. Além disso, todos os verbos indicam que eles não tinham nenhuma intenção de diminuir sua celebração. ■ 1 7 - 2 0 Davi lançou um impressionante ataque contra os amalequitas desde o amanhecer até a tarde (v. 17), impondo um pesado golpe sobre eles. Além dos 400 jovens que fugiram da invasão de Davi, o texto enfatiza a plenitude da vitória de Davi. Davi conseguiu reaver tudo o que os amalequitas tinham levado. O texto ainda faz questão de notar que Davi recuperou tudo o que os amalequitas tinham levado, incluindo suas duas mulheres. Nada faltou: nem jovens, nem velhos, nem filhos, nem filhas, nem bens, nem qualquer outra coisa que fora levada. Davi recuperou tudo(v. 18,19). Davi ainda recuperou todos os rebanhos ovinos e bovinos, de forma que diziam: Estes são os despojos de Davi (v. 20).

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■ 21-25 Estes versículos mencionam que Davi foi generoso com os despojos que havia recuperado. Davi não se esqueceu dos 200 homens que não o acompanharam na incursão. Os homens “corruptos e sem valor” (v. 22 NRSV) entre os 400 que estavam com Davi no ataque contra os amalequitas se ofende­ ram com a noção de que aqueles que ficaram para trás deveriam compartilhar dos despojos. Davi demonstrou um espírito generoso, porém, quando indicou que aqueles queficaram com a bagagem deveriam receber recompensas assim como aqueles que participaram da invasão (v. 24). Ao fazer isto, Davi promul­ gou uma regra de distribuição de despojos que faz lembrar a legislação encon­ trada em Deuteronômio 20.14. I 26-31 Davi não só partilhou os despojos da batalha com seus homens, mas também fez inúmeros amigos na região sul de Israel. O texto enumera diversas cidades das pessoas a quem Davi deu presentes. Betei não fazia parte de Judá, e a Septuaginta diz “Bete Zur” aqui, a qual era uma cidade calebita nas montanhas de Judá a alguns quilômetros ao norte de Hebrom (Js 15.58). A localização de Ramote do Neguebe é desconhecida, mas ela era também chamada de Baalate-Beer (Js 19.8). Jatir era uma cidade levítica nas montanhas de Judá a aproximadamente dezoito quilômetros ao sul-sudoeste de Hebrom (Js 15.48; 21.14). Aroer era uma cidade da região da Transjordânia, mas pode ser melhor in­ terpretá-la como Adada (Js 15.22), uma cidade do Neguebe a cerca de dezoito quilômetros ao sudeste de Berseba (McCarter, 1980b, p. 434,436). A localiza­ ção de Sifmote é desconhecida. Estemo era uma cidade levítica das montanhas de Judá a cerca de doze quilômetros ao sul de Hebrom (Js 15.50; 21.14). Racal pode ser um erro ortográfico relativo à cidade de Carmelo, que fica a aproxima­ damente onze quilômetros ao sul de Hebrom (Js 15.55). Hormá talvez fosse perto de Ziclague (1 Sm 27.5,6) e incluída como uma das cidades de Judá (Js 15.30), embora Simeão a reivindicasse (Js 19.4). Corasã, também conhecida como Borasã, era uma cidade levítica das montanhas de Judá a poucos quilômetros a noroeste de Berseba (Js 15.42; 19.7; 21.16). Atace é conjugada com Asã (Js 15.42; 19.7). Hebrom ficava nas montanhas de Judá, servia como a principal cidade da região e se tornou a capital da tribo de Judá quando Davi foi inicialmente proclamado como rei (2 Sm 2.4). Todas estas cidades representavam localidades na parte sul de Judá onde Davi estabeleceu uma presença substancial. Davi conseguiu se congraçar com os clãs, tribos, e famílias da região quando repartiu os despojos da batalha com

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eles. A “politicagem” na qual Davi se engajou e as conexões pessoais que ele fez durante esse tempo, entretanto, beneficiaram-no consideravelmente em sua trajetória rumo ao trono. O mesmo povo que Davi “conquistou para si” tam­ bém constituía o “povo de Judá”, o povo que iria, um dia, elegê-lo como rei da tribo de Judá (2 Sm 2.4). O trabalho que Davi estava plantando durante seus anos no deserto e como governador de Ziclague valeu muito a pena para ele mais tarde. A PARTIR DO TEXTO A história de Davi nesta seção também nos lembra que como indivíduos, nós realmente temos uma parte em moldar e contribuir para o nosso próprio sucesso ou fracasso na vida. Embora Deus estivesse cuidando de Davi, ele ainda tirava proveito das oportunidades que lhe eram apresentadas em sua trajetória rumo ao trono. Davi, por exemplo, beneficiou-se financeiramente e politica­ mente com seu casamento com Abigail (1 Sm 25). Davi herdou a riqueza de Nabal e solidificou sua posição entre os clãs/famílias do sul ao tomar Abigail como esposa. Davi também fez diversos amigos ao provê-los com presentes das invasões que fazia a vários grupos nos territórios sulinos. Os relacionamentos que Davi formou durante este período formativo de sua vida e carreira o bene­ ficiaram tremendamente em sua trajetória rumo ao trono. Foram esses mesmos amigos que procuraram fazer Davi rei sobre Judá depois da morte de Saul. O trabalho de base para esta decisão, contudo, estava sendo construído enquanto Davi sobrevivia no deserto. As lições fornecidas aqui podem parecer contraditórias quanto àquilo que alguns cristãos acreditam sobre a função que têm na formação de seu próprio futuro. Existem aqueles que esperam “passivamente” que Deus resolva a situação deles para eles, mude as circunstâncias para melhor, ou providencie “um sinal” para direcioná-los. Outros podem não tomar nenhuma atitude ou nenhuma decisão porque esperam que Deus faça tudo por eles ou porque temem que “sairão da vontade de Deus” para a vida deles. Deus, todavia, dotou os humanos de razão, livre-arbítrio, desejos, e da responsabilidade de fazer escolhas que os ajudarão a realizar os seus sonhos, desejos e metas. Nós acrescentamos aqui a observação de que algumas das ações de Davi foram politicamente motivadas para obter influência e poder, e como tal, elas não servem de exemplos ideais para nós seguirmos quando buscamos sucesso em nossa vida. Embora tenhamos de tirar proveito das oportunidades que vêm ao nosso encontro, precisamos também evitar ações que sejam egoístas, ações que

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trariam dano aos outros ou que lhes impediriam as oportunidades de crescer e ser bem-sucedidos no mundo. A literatura de Sabedoria de Israel entendia e apreciava o importante papel que as pessoas têm de mudar a direção (tanto em curto prazo como em longo prazo) que sua vida tomará. Os escritores da sabedoria frequentemente ressal­ tam uma correlação positiva entre as decisões e ações que as pessoas tomam e os resultados (sejam positivos ou negativos) que elas produzem. Os escritores de Provérbios, por exemplo, encorajavam seu público a ser diligente, planejar para o futuro, guardar a língua, aceitar a disciplina, buscar o bom conselho, e evitar abismos como a preguiça, a bebedice, a impetuosidade, a fofoca, e evitar os atalhos da vida. Os frutos de se fazer boas escolhas, eles entendiam, resultavam em felicidade, vida longa, riquezas, suavidade, e paz. A teologia de Provérbios presume que as escolhas prudentes colherão recompensas abundantes e que os seres humanos são capazes de tomar essas decisões. Ao estudarmos a vida de Davi e o livro de Provérbios, portanto, nós aprendemos que Deus trabalha em conjunto com a humanidade para alcan­ çar esses fins tanto em nível social como individual. Se não tivermos cuidado, poderemos deixar grandes oportunidades e bênçãos passarem por nós e nunca nos engajaremos ou tomaremos a iniciativa enquanto esperamos que Deus aja em nosso lugar.

G. A morte do rei Saul e de Jônatas (31.1-13) POR TRÁS DO TEXTO O capítulo 31 representa o fim do livro de 1 Samuel, tanto na Bíblia he­ braica como no Antigo Testamento cristão. Como o último capítulo do livro, o mesmo sinaliza o fim da história de Saul. Ele reconta a batalha de Israel contra as tropas filisteias no monte Gilboa e o falecimento do rei de Israel. Os eventos do capítulo 31 pressupõem as notícias em 28.1,2 e 29-1, mas são interrompidos pelos acontecimentos referentes a Davi em Ziclague no capítulo 30. Os deta­ lhes em torno da morte de Saul no capítulo 31 diferem significantemente do relato da versão do amalequita sobre o fim de Saul em 2 Sm 1. Será que temos diferentes tradições aqui ou a história do amalequita seria inventada? É difícil dizer, mas a disposição do amalequita em trazer a coroa e o bracelete de Saul a Davi levanta outras questões (veja Por trás do texto para 2 Sm 1.1-7).

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A história do trágico final de Saul, entretanto, foi sendo construída desde o momento em que o Senhor o rejeitou no capítulo 15 até a este ponto da narrativa. O suicídio de Saul no monte Gilboa nào só representa o ato final na rejeição do Senhor para com o rei, mas também significa seu completo fracasso em muitos e diferentes níveis. Ao avaliarmos a magnitude do fracasso de Saul como rei, a seguinte informação deve ser levada em consideração: 1. A requisição de um reinado e a inauguração da monarquia de Saul. A exigência do povo por um rei está situada imediatamente após as Narrativas da Arca (4.1 —7.1) e a tradição sobre Samuel liderando os israelitas na guer­ ra santa (7.7-14). Ambos os relatos demonstram claramente a capacidade do Senhor de humilhar e derrotar os filisteus (e seu deus Dagon) quer isto tenha acontecido diretamente pela mão do Senhor ou pela presença mediadora de Samuel. Já que o Senhor era capaz de derrotar os filisteus e tinha fielmente salvado Israel de seus inimigos no passado (12.6-12), a exigência de um rei foi considerada tanto desnecessária como uma rejeição à liderança do Senhor. O fato de que a monarquia de Saul tenha se desenvolvido dentro deste contexto não só lança o seu reinado em uma luz negativa, mas também levanta suspeitas sobre a própria instituição do reinado dentro da H.D.. 2. A conexão com Gibeá. Diversos indícios dentro das tradições de Saul ecoam de volta à terrível cena de estupro/desmembramento e à brutal guerra civil do final de Juizes (19—20). A conexão de Saul com esses acontecimentos é ressaltada, embora às vezes sutilmente, de diversas maneiras: • Sua extensiva linhagem patriarcal que retrocedia até aos 600 sobreviven­ tes masculinos da guerra civil (1 Sm 9.1). Isto também deixou aberta a possibilidade de que um de seus familiares estivesse envolvido no estupro, considerando-se que a cidade natal de Saul era Gibeá. • A ênfase em sua altura. A palavra para descrever a altura de Saul está ligada a Gibeá em sua base lingüística (9.2; 10.23). • A batalha contra os amonitas (11.1-14): o desmembramento dos bois como uma convocação para a guerra (v. 7) é semelhante ao desmembra­ mento da concubina do levita (Jz 19.29), e o resgate do povo de Jabes Gileade (1 Sm 11.9) relembra esta tradição (mais provavelmente o território natal de sua mãe; vejajz 21.12-14). 3. Ecos da história de Jefté. Tanto na história de Jefté (Jz 10— 11) como de Saul (1 Sm 14.24-46), um voto/juramento foi feito no momento de um conflito que subsequentemente teve graves conseqüências sobre os filhos dos homens que fizeram o voto/juramento (Jz 11.35,36; 1 Sm 14.44).

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4. A conexão com Acã. Além de Gibeá, os indícios nas tradições de Saul também retrocedem à história de Acã em Josué 7. • O modo como Saul foi escolhido como rei (1 Sm 10.17-24) tem muitas semelhanças com o processo pelo qual Acã foi identificado como o autor de um crime na guerra santa (Js 7.16-20). • O método que revelou Jônatas como o indivíduo que tinha violado o voto de Saul (1 Sm 14.40-42) também espelhava a seleção de Acã. • Como Acã, Saul poupou os despojos de guerra que deveriam ter sido de­ dicados à destruição (15.13-23) • Como Acã (Js 7.25), Saul trouxe problemas para a terra com seus atos de tolice (1 Sm 14.29). • Acã e sua família foram queimados pelo fogo pela sua desobediência (Js 7.15,25); o corpo de Saul e de seus filhos foram queimados pelos homens de Jabes Gileade (1 Sm 31.12). 5. Saul contra os filisteus. Embora fosse escolhido por Deus para derrotar a ameaça dos filisteus, Saul nunca foi capaz de eliminar o perigo palestino. Vários elementos nas narrativas de Saul indicam que ele fracassou em sua missão em diversos níveis. • Os filisteus tinham uma instalação em Geba/Gibeá, o quintal de Saul ( 13.2 ). • Saul fracassou em esperar Saul e ele mesmo ofereceu os sacrifícios (v. 5-15). Os prospectos de uma dinastia de Saul foram cortados por causa do ato impetuoso de Saul (v. 13,14). • Jônatas iniciou os ataques dos filisteus em suas fortalezas enquanto Saul parecia relutante em enfrentá-los. Jônatas obteve sucesso contra os filis­ teus, até derrotando a guarnição em Geba/Gibeá (v. 2). Saul somente se uniu à batalha contra os filisteus depois das investidas bem-sucedidas de Jônatas contra o território ocupado pelos filisteus. • Saul foi um embaraço, um obstáculo na batalha contra os filisteus. Seu voto imprudente fez com que seus homens ficassem famintos e fatigados enquanto lutavam contra os filisteus. Logo, as palavras de Saul impediram as tropas israelitas de obter uma maior vitória contra os filisteus. Além do mais, os soldados estavam tão famintos por causa do juramento de Saul que eles desafiaram um protocolo religioso aceitável ao comerem carne com o sangue ainda nela. Finalmente, o juramento de Saul colocou a vida de Jônatas em perigo porque ele inconscientemente violou a proibição.

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Saul estava até disposto a matar Jônatas, aquele a quem Deus usou para trazer a vitória de Israel sobre os filisteus. • Davi confrontou Golias enquanto Saul e seus soldados fracassaram em enfrentá-lo em batalha (17.1-58). Ao considerarmos esta informação, surgem alguns pontos germinais. Pri­ meiro, no decorrer de 1 Samuel, várias imagens e cenas de alguns momentos mais horríveis e decepcionantes do passado de Israel se convergem e vêm re­ pousar nas narrativas de Saul. A força retórica e teológica dessas alusões cria um senso de que Saul seria não só uma decepção como rei, mas também uma figura trágica que estava fadada ao fracasso desde o início. Isto é dizer que a monarquia de Saul constituiria outro triste episódio em uma série de tristes episódios das eras passadas. Segundo, Saul nunca cumpriu a missão para a qual ele foi inicialmente escolhido: libertar os israelitas da opressão dos filisteus. Ao longo das tradições de Saul, outras pessoas (Deus, Samuel, Jônatas, Davi) tiveram sucesso contra eles, mas Saul nunca teve. Saul representa um tipo de satanás no modo como era um desajeitado que cometeu diversos erros estratégicos que bloquearam o caminho de Israel ao sucesso na batalha contra os filisteus. Como resultado do fracasso de Saul em lidar adequadamente com a ameaça filisteia, Davi surgiu como o candidato que cumpriria a palavra de Deus a Samuel em 9.16. A magnitude do fracasso de Saul contra os filisteus é mais poderosamente ilustrada neste capítulo. Neste ponto da narrativa, a trajetória declinante da vida de Saul culmina em um ato de suicídio. Numa virada irônica, Saul teve de recorrer à opção de tirar a sua própria vida ao lutar contra o povo do qual ele deveria livrar os israelitas. Logo, a decepcionante história de Saul chega a uma amarga e solitária conclusão. NO TEXTO H 1 -2 A primeira unidade deste breve capítulo fornece informação sobre as circunstâncias em torno da morte de Saul. O capítulo se inicia com uma frase genérica: Em combate com os filisteus (v. 1). A seqüência dos eventos que recontam a batalha de Israel contra os filisteus no monte Gilboa em 28.4 e seguintes foi interrompida pelo relato da conquista de Davi em Ziclague no capítulo 29. No prosseguimento da narrativa, Saul e seus homens estavam em uma posição perigosa; eles estavam perdendo a batalha, muitos haviam fugido do campo de batalha, e inúmeros soldados tinham caído mortos diante dos filisteus.

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Nesse meio tempo, Saul estava prestes a ser capturado, e seus filhos ha­ viam sido mortos. Os filhos mencionados no versículo 2, Jônatas, Abinadabe e Malquisua, estão listados no registro dos filhos de Saul em 14.49. Um exame da lista em 14.49 revela que um filho, Isvi (que pode ser uma variante da grafia de Is-Bosete [2 Sm 2.8]), não estava presente com Saul em Gilboa, enquanto que Abinadabe foi acrescentado. A eliminação dos filhos de Saul no monte Gilboa, porém, também tinha implicações políticas, já que significava que ha­ via menor competição entre seus filhos para o trono de Saul. Somente sobra­ ram Is-Bosete, o filho de Rispa, concubina de Saul, e Merabe, filha de Saul. Os filhos de Rispa foram eventualmente mortos pelos gibeonitas (2 Sm 21). I 3-6 A peleja “se agravou” (ARC) contra Saul, e ele foi ferido pelos arquei­ ros que o encontraram. Percebendo que o fim estava próximo, e incapaz de se defender contra o ataque, Saul deu ao seu escudeiro suas ordens finais como rei: Tome sua espada e atravessa-me com ela, para que estesfilisteus incircuncisos não me atravessem e escarneçam de mim (v. 4). Em uma nota de amarga ironia, a última ordem que Saul deu como rei incluía sua própria sentença de morte. Saul preferiria morrer pela lança de seu próprio servo do que cair nas mãos dos filisteus. O desdém de Saul por seus adversários fica evidente pelo uso do termo filisteus incircuncisos, linguagem semelhante à da narrativa de Jônatas e de Davi e Golias (veja comentário em 14.6 [e quadro lateral]; 17.36). A última ordem de Saul não foi cumprida por­ que o escudeiro estava apavorado e não estava disposto a matar seu senhor. Sem mais ninguém para ajudá-lo, Saul, então, pegou sua própria espada e jogou-se sobre ela (v. 5). I 7 Quando os israelitas do outro lado do Jordão perceberam que Saul e o resto dos israelitas haviam fugido, eles abandonaram suas cidades e escapa­ ram. Como resultado, os filisteus foram ocupá-las. Saul nunca derrotou os filisteus; aliás, eles ficaram mais fortes durante o governo dele, ocupando até territórios que os israelitas antes ocupavam. H 8-13 Embora Saul não estivesse vivo para ver a tortura dos filisteus, eles ainda humilharam o seu corpo morto durante vários dias. Os filisteus corta­ ram a cabeça de Saul, pegaram suas armas... Expuseram as armas de Saul no templo de Astarote e penduraram seu corpo no muro de Bete-Seã (v. 9,10). O cenário é muito reminiscente da narrativa de Davi e Golias: a cabeça foi cortada, as armas colocadas no templo/lugar sagrado (21.10 ss.), e o corpo levado para uma cidade importante. Só que nesta ocasião, o rei israelita sofria desgraça nas mãos de seus inimigos. Além disto, os filisteus fizeram uma passeata com o corpo e as armas de Saul só para insultar os israelitas e lembrar à população que os filisteus exer­

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ciam uma considerável influência sobre aquela região. Foi um grupo de ho­ mens de Jabes-Gileade que tirou o corpo de Saul e de seus filhos do muro e os trouxe para casa para serem cremados ali (31.11,12). Sem dúvida, isto foi feito em gratidão pelas ações de Saul para com eles anteriormente (11.5-13) e possi­ velmente porque a mãe de Saul fosse daquela região também. A PARTIR DO TEXTO O trágico fim da vida de Saul nos lembra do que acontece quando o peca­ do e a desobediência consomem o indivíduo. No decorrer de sua carreira, Saul foi se distanciando cada vez mais de Deus, o que resultou em um acréscimo gradual no nível de desespero, ansiedade, solidão, suspeitas e ciúmes. O cur­ so dos acontecimentos finalmente culminou com o horrendo fim de sua vida. Paulo relembrava aos seus leitores (e a nós) que o salário do pecado é a morte (Rm 6.23). Jesus também comparou o pecado com aqueles que andam nas tre­ vas (Jo 3.19,20). A vida de Saul serve como um poderoso exemplo do impacto devastador que o pecado pode ter sobre os indivíduos. Nós somos avisados de que, quando os indivíduos se recusam obstinadamente a aceitar a graça e a direção de Deus em sua vida, eles também entram em um processo difícil e penoso que os leva para mais longe de Deus. Como neste caso da experiência de Saul, os efeitos do pecado podem tomar diversas formas: solidão, dor, remorso, culpa, desespero, ira, orgulho, negatividade, e egoísmo, para não dizer muitos outros. Sem o ge­ nuíno arrependimento, a alienação de Deus acoplada à inabilidade de vencer o poder do pecado pode levar as pessoas a se enredarem em um ciclo declinante que parece estar fora de controle. A garra do pecado sobre a vida de um indivíduo pode ser tão forte que pode levar a pessoa a ter um comportamento, ir a lugares, dizer e crer em coisas que nunca antes imaginava possíveis. Ao invés de produzir o fruto do Espírito Santo, que é pleno e bom, o indivíduo controlado pelo pecado leva as marcas da carne (G1 5.16-21). Assim como Saul, os resultados de uma vida dominada pela desobediência e pecado conduzem a comportamentos doentios que pro­ duzem vergonha e remorso. Felizmente, a graça proveniente de Deus é estendi­ da a cada um de nós, e pode tanto alcançar quanto livrar até o mais difícil dos pecadores. Por causa da abundante misericórdia de Deus, de Sua capacidade e disposição em purificar do pecado, e de Seu desejo de instilar em nós o poder para vencermos o pecado, a nossa história não precisa ser uma réplica do final de Saul, mas pode ser caracterizada pela paz, alegria, liberdade, e vida abundan­ te e eterna.

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O LIVRO DE 2 SAMUEL

H. O segundo relato da morte de Saul e o lamento de Davi sobre a morte de Saul e Jônatas (2 Samuel 1.1-27) POR TRÁS DO TEXTO O capítulo de abertura de 2 Samuel está dividido em duas seções princi­ pais. A primeira parte (v. 1-16) inclui um relato da morte de Saul pelas mãos de um amalequita. A informação do texto, como veremos, é diferente do relato sobre a morte de Saul no final de 1 Samuel (31.1-13). No final de 1 Samuel, Saul morreu como resultado de cair sobre a sua própria espada. Em 2 Samuel I, Saul foi morto por um guerreiro amalequita anônimo. As tensões/contra­ dições entre esses dois capítulos fizeram com que os eruditos oferecessem uma ampla variedade de opiniões quando à transmissão da história. Alguns têm argumentado que o soldado amalequita estava inventando a história a fim de obter a gratidão de Davi e ganhar uma recompensa do futuro rei (Keil e Delitzch, 1967, p. 286). Outros têm mencionado que houve duas tradições concernentes à morte de Saul que foram unidas pelo processo editorial, preservando assim as aparentes tensões. Finalmente, argumentos já foram apresentados sugerindo que o capítulo 1 é uma composição criativa de alguém próximo aos círculos


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davídicos cuja meta principal era proteger Davi das acusações de que ele tinha auxiliado na morte de Saul (Halpern, 2001, p. 78-80). De acordo com esta linha de pensamento, o texto funciona como uma apologia e serviu para defender Davi contra os ataques de seus oponentes que o viam como aquele que arquitetou a morte de Saul e Jônatas, o que, então, fornecia-lhe a oportunidade de reivindicar o trono de Israel. A segunda unidade deste capítulo (v. 17-27) segue o relatório do amalequita sobre a morte de Saul e Jônatas. Esses versículos tomam a forma do lamento pessoal de Davi em resposta aos eventos dos versículos 1-16. O texto é poético em estrutura e em estilo, e diversos eruditos o veem como uma com­ posição do próprio Davi, que Davi mandou que o ensinassem aos homens de Judá (Payne, 1982, p. 159-60; Birch, 1998, p. 1205). O poema toma a forma de uma endecha, ou lamento fúnebre, geralmente chamado de kinah (qina) na poesia e literatura hebraica. É uma canção pelos mortos e geralmente re­ trocede às realizações daqueles que estão sendo lamentados ou relembrados. A kinah não fala mal do morto, e não há referência ou menção de Deus, o que a distingue da angústia ou lamento dos Salmos. Este lamento é às vezes referido como o Lamento do Arco, que deriva da linguagem do versículo 18 (onde é simplesmente chamado de Arco). NO TEXTO

1. Um amalequita anuncia a morte de Saul (1.1-16) ■ 1 - 1 0 O versículo 1 faz a abertura da unidade com as palavras: Depois da morte de Saul. Esta é uma frase importante e não pode ser ignorada porque faz um paralelo com aquelas dos dois livros que a precedem: Josué 1.1: “E sucedeu, depois da morte de Moisés.. .** Juizes 1.1: “E sucedeu, depois da morte de Josué.. 2 Samuel 1.1: “E, depois da morte de Saul.. ” A frase “depois da morte de X ” aparece na abertura dos três principais livros da H.D., e linguisticamente, liga os três períodos principais da história de Israel, a libertação do Egito, a conquista de Canaã, e o período inicial da monarquia israelita. Além desta informação, o narrador foi rápido em men­ cionar que D avid tinha retornado deferir os amalequitas e que havia ficado dois dias em Ziclague (v. 1). Essas duas notícias são extremamente impor­ tantes porque situam Davi bem longe da batalha que aconteceu no monte

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Gilboa (1 Sm 31). O monte Gilboa estava localizado na metade norte do país, enquanto que Ziclague estava na porção sul na fronteira com a planície filisteia. Davi já estava em Ziclague havia dois dias (outra dica sutil, porém im­ portante para mostrar que Davi era inocente da morte de Saul) quando um amalequita anônimo se aproximou de Davi no terceiro dia e inclinou-se para ele (v. 2). A simetria aqui é signifícante: Davi, um israelita, havia acabado de matar um grupo de amalequitas (1 Sm 30); neste contexto, um amalequita matou Saul, o rei israelita. Além do mais, o amalequita se inclinou diante de Davi, o que indicaria que Davi gozava de certa autoridade política neste ponto de sua vida. O termo usado para se inclinar (yayistãhü) é geralmente empregado quando alguém está demonstrando subordinação diante de um superior reconhecido. Davi havia se tornado um governador vassalo sobre Ziclague pelo filisteu Aquis (1 Sm 27), e não demoraria para que reinasse sobre o território de Judá (2 Sm 2.1-4). Será que o gesto do amalequita indica que ele estava antecipando ou até aclamando Davi como o novo rei sobre Israel? Também, o amalequita neste contexto claramente sabia quem Davi era, mas como? Será que Davi já havia feito um nome para si nestas alturas, e, portanto, a sua reputação o precedera? Em ambos os casos, a resposta parece ser afirmativa. O amalequita também veio a Davi com sinais convencionais de luto: com as vestes rasgadas e com terra sobre a cabeça (v. 2). Davi, inspecionando a apa­ rência desalinhada do amalequita, sabia que ele era portador de más notícias e, então, prosseguiu a inquirir sobre onde ele andou: De onde você vem? O ama­ lequita relatou que havia acabado de escapar do acampamento de Israel (v. 3). Davi queria saber a última notícia da batalha e perguntou o que aconteceu (v. 4). O hebraico indica que Davi queria esta informação imediatamente porque ele acrescentou sua indagação com uma ordem direta: dize-me. O amalequita deu a Davi dois blocos de informação em seu relatório: pri­ meiro, o exército fugiu e inúmeros soldados israelitas morreram; segundo, Saul e Jônatas também haviam morrido. É interessante que, quando Davi reagiu ao relatório do amalequita, ele quis esclarecer a condição de Saul e Jônatas o mais rápido possível, mas não dos outros israelitas. Davi perguntou no versículo 5, como você sabe que Saul e Jônatas estão mortos? A rápida reação de Davi pode levantar algumas questões neste ponto. Será que Davi perguntou sobre Saul e Jônatas por que se preocupava com eles ? Ou, será possível que Davi qui­ sesse uma confirmação concernente a morte de Saul e Jônatas, sabendo que a sua jornada rumo ao trono de Israel havia se tornado mais desimpedida? Talvez

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seja por isso que Davi estivesse com tanta pressa de verificar a informação en­ volvendo a notícia da morte deles. É possível também que Davi suspeitasse da história do amalequita desde o começo e pensasse que ele estivesse mentindo. Davi pode ter percebido que o amalequita pensava que poderia ganhar alguma recompensa ao entregá-lo essas notícias. Alguns itens sobre a história do amalequita, porém, indicariam que a sua versão dos eventos era inventada. Primeiro, certos detalhes de seu relatório não coincidem com a narrativa em 1 Sm 31. O amalequita apenas mencionou a morte de Saul e Jônatas e não a dos outros filhos que morreram com Saul no monte Gilboa (1 Sm 31.2). Segundo, o relato de 1 Sm 31 menciona que Saul caiu sobre sua própria espada (v. 4), mas o amalequita conta que ele estava en­ costado sobre a sua lança (2 Sm 1.6). Terceiro, o amalequita alega que ele che­ gou por acaso onde Saul estava encostado sobre a lança. Será que alguém chega por acaso ao campo de batalha, muito menos em uma montanha, onde a bata­ lha ainda está furiosa dos dois lados? A história dele parece dúbia neste ponto. Além do mais, o amalequita conseguiu retirar a coroa de Saul e o bracelete dele e levá-los a Davi. Esta informação indicaria que o amalequita chegou ao corpo de Saul antes dos filisteus. Será possível que ele estivesse coletando despojos no campo de batalha e só então removeu as insígnias do corpo de Saul? Enquanto o amalequita transmitia os acontecimentos a Davi, ele alegou que chegou perto de Saul quando o rei estava prestes a se matar. Quando Saul perguntou a identidade do jovem, ele simplesmente respondeu: Sou amale­ quita (v. 8). Esta é a primeira vez na narrativa que a identidade do homem é esclarecida, e isto ressalta uma certa ironia na história de Saul em geral. Saul havia saído à peleja contra os amalequitas anteriormente (1 Sm 15); será pos­ sível que este amalequita estivesse tentando se vingar de Saul por ter matado a população amalequita? Aqui está uma perfeita oportunidade de acertar uma antiga disputa com facilidade pelo fato de Saul ter requisitado o jovem para que o matasse. Os eventos da história do amalequita então representam um paradoxo dramático: Saul perdeu o seu reinado porque ele não matou o rei amalequita (cap. 15), mas na batalha de Gilboa ele pediu a um amalequita que matasse o rei israelita. De acordo com o amalequita, Saul o instruiu que fosse sobre ele e o matasse, já que angústias me têm cercado, pois toda a minha vida está ainda em mim (v. 9). A frase aqui é difícil de ser traduzida, e as traduções modernas lidaram com ela de várias formas: “as convulsões me dominaram” (NRSV), “Estou em agonia” (JPS), ou estou na angústia da morte. Cada tradução pre­ serva a noção de que Saul estava sofrendo terrivelmente antes de morrer. O

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amalequita obedeceu a Saul e o matou, vendo que ele não sobreviveria depois de já ter caído. Quando o serviço foi realizado, o amalequita tirou a coroa e o bracelete de Saul (v. 10); dois símbolos de posição e de poder real como consta em uma lista de joias que o rei assírio, Senaqueribe, deu ao seu filho (e sucessor) Esar-Hadom (Walton, 2000, p. 322). H 11-16 O amalequita pensava que seu ato o tornaria digno de uma re­ compensa mais tarde ou quando Davi se tornasse rei. Entretanto, Davi e seus homens não reagiram em jábilo e gratidão depois que o amalequita apresentou as joias de Saul; aliás, eles reagiam com um sentimento de profunda amargura e luto. O texto nota que eles prantearam , e choraram, ejejuaram (v. 12). Davi e seus homens não só ficaram de luto por causa da morte de Saul e Jônatas, mas eles prantearam pelo exército do Senhor e pelo povo de Israel. A tristeza de Davi pela perda do rei e dos soldados de Israel logo se trans­ formou em indignação contra o amalequita. Davi perguntou no versículo 14 se o amalequita não tinha medo de levantara mão contra o ungido do SENHOR O comentário que Davi tornou popular anteriormente (1 Sm 24.6; 26.9) era agora uma pergunta e uma acusação contra o amalequita. Em vez de receber recompensas pelos seus esforços, as ações do amalequita essencialmente assi­ nalaram a sua própria sentença de morte. Davi ordenou a um de seus jovens venha aqui e mate-o (v. 15). Esta frase se aplicava a Saul que foi acusado de arremeter-se contra os inocentes (1 Sm 22.17b, 18) e nas tradições de Salomão ele mandou matar seus oponentes (1 Rs 2.25,29,31,32,34,46). Neste contexto, 0 amalequita foi ferido como alguém culpado de ter cometido regicídio. A unidade se encerra com uma poderosa declaração: Você é responsável por sua própria morte. Sua boca testemunhou contra você (v. 16). Esta de­ claração é significante no que se relaciona aos desígnios e preocupações gerais da história da ascensão de Davi porque ela vem como uma confissão da boca do amalequita que ele, e não Davi, matara o ungido do Senhor.

2. A canção de lamento de Davi (1.17-27) 1 17-18 Estes dois versículos servem como manchete para o lamento em si, que segue nos versículos 19-27. O texto menciona que lamentou Davi a Saul e a Jônatas, seufilho, com esta lamentação (v. 17). Esta observação indica a na­ tureza intensamente pessoal desta endecha que representava seus sentimentos de luto pela perda desses dois indivíduos. Davi desfrutou de um íntimo rela­ cionamento com Jônatas, em certo período, Saul tinha sido como uma figura

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paterna para ele; logo, a perda de Davi era sincera. Davi também ordenou que se ensinasse [a canção] aos homens de Judá (v. 18). A insistência em ensinar 0 povo de Judá provavelmente tenha sido politicamente motivada. Davi ainda não era o rei de Israel, mas se o povo de Judá demonstrasse estar prestando o devido respeito à memória de Saul, isto aumentaria a probabilidade de que as tribos do norte transferissem sua lealdade a Davi, que era de Judá (Evans, 2003, p. 142). A canção foi escrita no Livro de Jasar. Fora deste texto, o livro de Jasar é mencionado apenas uma vez (Js 10.13). Este livro era uma coleção de poemas antigos que fazia parte de um material de fonte que está por trás de diversos documentos do Antigo Testamento (Mauchline, 1971, p. 199). 1 19-22 A dizimação do exército de Saul representava um desastre para a nação de Israel. Os termos esplendor e guerreiros se referem àqueles que tombaram em combate, e a morte deles marcou uma incalculável perda para a nação (v. 19). A derrota dos valentes de Israel e de seu rei não deveria ser contada nas cidades filisteias de Gate e Ascalom, já que as filhas dos filisteus se alegrariam (do mesmo modo que as mulheres israelitas se alegraram com a derrota dos filisteus, veja 1 Sm 18.7). As mulheres são também chamadas de filhas dos incircuncisos, que é reminiscente da linguagem usada por Jônatas e Davi (veja comentários em 1 Sm 14.6 [e na margem]; 17.26) e por Saul, que não queria sofrer a indignidade de morrer pelas mãos deles (1 Sm 31.4). O luto da nação era tanto que até a natureza deveria participar. As colinas de Gilboa, os arredores da morte de Saul, não deveriam receber nem orvalho nem chuva, nem deveriam produzir safras como sinal de sua tristeza e deses­ pero por aqueles que tombaram em seus altos (v. 21). Embora Saul e Jônatas lutassem bravamente e valentemente (v. 22), eles não conseguiram repelir ade­ quadamente os inimigos filisteus. H 2 3-24 Saul e Jônatas são lembrados como sendo mui amados e que em morte eles estavam juntos (v. 23). Isto não implica que eles morreram juntos no mesmo lugar ao mesmo tempo, mas que “foram unidos por um propósito” (Evans, 2003, p. 143); eles deram a vida em defesa de seu país. Eles eram mais ágeis que as águias e mais fortes que os leões; duas características que os tor­ navam guerreiros valentes (v. 23). As filhas de Israel foram instruídas a chorar por Saul (v. 24). Saul havia trazido certa medida de segurança e estabilidade econômica para a nação; portanto, elas desfrutavam de luxos como rubros or­ namentos (veja Pv 31.21) e adornos de ouro. H 2 5 - 2 6 Esta seção do poema começa com o foco emJônatas e os sentimentos pessoais de luto de Davi por seu irmão tombado (v. 26). Davi expressou seu

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grande amor e admiração por Jônatas, cujo amor era mais preciosa do que 0 amor das mulheres. Davi não quer que pensemos sobre seu amor por Jônatas em termos de um relacionamento homossexual, mas, ao contrário, ele enfatizava a grande aliança, a fidelidade incondicional, o concerto de lealdade que Jônatas lhe demonstrou no decorrer da amizade. O tipo de fidelidade que Jônatas exibia para com Davi no decurso dos destinos inconstantes de seu relacionamento ultrapassava a dedicação de uma mulher pelo marido. 1 2 7 A endecha termina com mais uma expressão de desespero e angústia. Ela reitera a declaração do versículo 19: Como caíram os guerreiros como uma maneira de trazer um fechamento para o lamento. A canção não diz nada a respeito do futuro, mas simplesmente se concentra nas desagradáveis reali­ dades do presente. Davi não clamou a Deus aqui porque seus pensamentos estavam focados nos relacionamentos humanos e na sincera amargura que ele estava enfrentando. A PARTIR DO TEXTO Esta seção retrata um Davi que expressa uma profunda tristeza pela morte de Saul e de Jônatas. Davi e seus homens não só se engajaram em um ritual de luto (v. 11,12), mas os sentimentos pessoais de Davi pelo antigo rei e por seu amigo íntimo são emocionalmente registrados no lamento de Davi também (v. 19-27). O registro da reação de Davi quanto à morte desses indivíduos é significante porque isto mostra os verdadeiros sentimentos de Davi por Saul apesar do árduo passado deles. Davi não se “gloriou” com a morte de seu inimigo, e ele não usou esta ocasião para se deleitar na queda de Saul. Neste contexto, Davi novamente mostra seu caráter justo e magnânimo com relação a Saul. Davi não guardou ira nem ressentimento para com o homem que tentou matá-lo, mas, em vez disto, ele honrou a vida e a memória que ele teve no passado (1 Sm 24; 26). Porque Davi tratou Saul com respeito e dignidade quando ele esta­ va vivo, ele não foi castigado pelo remorso pessoal e desapontamento quando Saul morreu. Ele não teve de viver com a culpa e a vergonha pelo modo como tratou Saul, mas ele poderia lhe dizer adeus com uma consciência limpa. Por meio da história de Davi e Saul, nós somos relembrados de que a vida é curta e a morte visita a cada pessoa. Já que nunca sabemos quando a morte tomará a nossa vida ou a vida de um membro da família ou amigo, é essencial que vivamos em bons termos com aqueles com quem temos relacionamentos todos os dias. Ao consistentemente tratarmos as pessoas com bondade, consideração, paciência e compreensão, nunca teremos de experimentar um

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profundo remorso quando a morte nos separar. Os momentos em que os indivíduos experimentam remorso pela morte de um membro da família, um amigo, um vizinho, ou colega de trabalho porque não usaram a oportunidade de fazer reconciliações são numerosos demais para se contar. Ao seguirmos a exortação de Cristo de am ar uns aos outros (João 13.34) e a admoestação do escritor aos Hebreus de viver em paz com todos (12.14), nós podemos ser poupados da agonia de viver a vida toda em angústia e desilusão por causa de um relacionamento rompido.

I. Davi como governante de Judá (2.1 - 4.12) POR TRÁS DO TEXTO Estes capítulos são tratados em conjunto como uma unidade com base nos desenvolvimentos na subida gradual de Davi ao reino. Esta porção de Samuel representa o período intermediário quando Davi liderou como rei de Judá e antes de se tornar rei sobre todas as tribos israelitas. Durante este período da vida de Davi, as tensões continuaram a ocorrer entre a casa de Saul. A afiliação política de Davi com os filisteus ao longo de sua crescente carreira em Judá representava um sério risco para o reino de Saul. Dentro desta unidade, porém, torna-se claro para o leitor que, enquan­ to estas duas famílias reais se confrontavam, a casa de Davi progressivamente ganhava força contra a casa de Saul, especialmente contra o filho de Saul, Is-Bosete. Além do mais, a maré de hostilidades entre ambos os acampamentos pendeu em favor de Davi quando o antigo general Abner se dispôs a transferir as tribos israelitas para o lado de Davi. Ao final desta unidade, Is-Bosete é assas­ sinado para que o caminho para o reinado israelita ficasse completamente livre para Davi. Esta unidade, portanto, ocupa um importante elemento dentro da história da ascensão de Davi e reforça a noção de que Yahweh continuava a favorecer Davi e dar-lhe sucesso sobre a casa de Saul. NO TEXTO

1. Davi ungido rei de Judá (2.1-7) I 1 A carreira política de Davi avançava em estágios incrementais segundo o texto. Nesta unidade, Davi se tornou rei sobre a tribo de Judá antes de ser

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eleito como rei de Israel. O arranjo canônico da história da ascensão de Davi indica que Davi se tornou rei de Judá após a morte de Saul e de Jônatas (E su­ cedeu, depois disso [v. Ia]). No início do capítulo 2, Davi orou por si mesmo e perguntou ao Senhor se subiria a uma das cidades de Judá. A oração de Davi é significante, primeiro de tudo, porque inclui uma linguagem que temos visto em relação às tradições de Samuel e Saul. Davi pediu (sãal) assim como Ana pediu um filho e o povo pediu um rei. A declaração do pedido de Davi não só liga esta tradição às narrativas de Samuel/Saul, mas também usa o nome do rei recentemente morto. A sintaxe então tenta traçar um forte contraste entre a monarquia de Saul e o emergente reinado de Davi. Além do mais, na interrogação de Davi há uma referência quádrupla do verbo “subir” ou “ascender” ( ‘ãlah). Versículo 1: “Devo subir a alguma das cidades de Judá?” Versículo 1: Yahweh disse-lhe: “Sobe”. Versículo 2a: “Para onde subirei?” Versículo 2: E “subiu” Davi para lá, (Hamilton, 2004, p. 305 [citando Polzin]). A estrutura da comunicação entre Davi e Yahweh é significativa por diver­ sos motivos. Primeiro, o uso deste verbo é especialmente apropriado no con­ texto da história da ascensão de Davi porque Davi estava em sua elevação ao reino israelita. Logo, isto representa apenas uma, porém significante parada em sua jornada para se tornar rei. Com Yahweh respondendo ao pedido de Davi na afirmativa, a jornada de Davi rumo ao trono estava essencialmente selada. Segundo, a linguagem que é empregada nos versículos 1,2 é reminiscente de outros lugares onde Davi pediu uma resposta ao Senhor: Davi: Devo atacar osfilisteus? (1 Sm 23.2). Deus: Vá, eferirãs osfilisteus . . . Levanta-te, desce a Queila, porque te dou osfilisteus na tua mão (1 Sm 23.2,4). Davi: Subirei contra osfilisteus? (2 Sm 5.19a). Deus: Sobe, porque certamente entregarei osfilisteus nas tuas mãos (2 Sm 5.19c). Estas declarações também dizem respeito à tribo de Judá (a tribo de Davi): Os israelitas: Quem de nós será o primeiro a atacar os cananeus ? (Jz 1.1) Deus: Judá será o primeiro (Jz 1.2) Os israelitas: Quem de nós irá lutar primeiro contra os benjamitas? (Jz 20.18b) Deus: Judá irá primeiro (Jz 20.18c) Nos casos em que Davi e/ou Judá, o território tribal de Davi, buscavam

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“subir” ou “ascender” à batalha contra os filisteus ou cananeus e benjamitas, Yahweh consistentemente respondeu na afirmativa. A mesma resposta ocorre nos versículos 1,2, indicando assim uma mensagem semelhante; Davi receberia 0 trono e seria instalado como rei. Terceiro, Davi perguntou para que cidade deveria subir. Yahweh respon­ deu que deveria subir a Hebrom. A referência a Hebrom é particularmente im­ portante porque na história de Israel Hebrom havia servido de residência para dois importantes líderes: Abraão (Gn 13; 18) e Calebe (Js 15.13-19). Davi ser equiparado a essas significantes figuras e à cidade à qual eles pertenceram prefigura a grandeza de Davi como indivíduo e como líder. A conexão com Abraão é especialmente pertinente porque o texto continuará a traçar paralelos entre as duas figuras em outras conjunturas na história de Davi (veja a seguir). Ao fa­ zer isto, o escritor/narrador dessas tradições intencionava retratar Davi como um segundo Abraão por intermédio de quem as promessas feitas ao grande patriarca seriam cumpridas. 1 2 - 4 Quando Yahweh deu a Davi uma resposta positiva, ele se mudou para Hebrom com seus homens e sua família. O texto também menciona no versí­ culo 2 que Ainoã e Abigail, as duas mulheres de Davi, foram com ele. O texto nota que essas duas esposas estiveram com Davi quando ele governava Ziclague (veja os comentários em 1 Sm 27.1-4). O casamento de Davi com Abigail o ajudou a solidificar sua posição entre os clãs de Judá, e seu casamento com Ainoã lhe daria acesso à casa de Saul. Davi havia se casado com a filha de Saul, Mical, antes disto, mas“Saul a deu para ou­ tro homem mais tarde. Mical e Davi tornariam a se unir quando Davi estivesse se preparando para assumir o controle de todas as tribos de Israel (3.14). Davi se tornou o líder da casa de Judá quando os homens de Judá o ungi­ ram como rei (v. 4). Ao ungirem a Davi como rei, o povo de Judá aderiu aos princípios deuteronomistas (Dt 17.14,15) de forma que a monarquia de Davi foi legitimada com base nas instruções de Deus. Esta é a primeira vez que Davi é chamado de rei (melek), e no contexto da ascensão de Davi, isto foi um degrau para maiores conquistas pessoal e política. I 5 - 7 Esta unidade se encerra em 5,7 com uma observação sobre as comuni­ cações de Davi com o povo de Jabes-Gileade. Davi, não querendo perder uma oportunidade de relações públicas, fez uma jogada perspicaz enviando men­ sageiros aos homens de Jabes-Gileade pronunciando uma bênção sobre eles pelo empenho deles em enterrar o corpo de Saul. Os homens de Jabes-Gileade haviam sido aliados íntimos de Saul, e Davi queria recompensá-los (lit., fazer uma coisa boa) por suas ações (v. 6). Em retorno, Davi os lembrou de que Saul

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estava morto, e insinuou que eles deveriam agir valorosamente para com ele, o legítimo rei de Judá. Davi, basicamente, estava usando a morte de Saul para adquirir um novo aliado político.

2. Is-Bosete estabelecido como rei de Israel (2.8-11)

■ 8-11 O texto retoma nesses versículos com a informação concernente à casa de Saul. Embora Saul estivesse morto, a monarquia de Israel (i.e., as tribos do norte) ainda pertencia à sua família. A observação no versículo 8 provê in­ formação sobre a sucessão na casa de Saul. Já que Jônatas, o legítimo herdeiro, estava morto, o trono passou para o filho que sobrou de Saul, Is-Bosete. Na realidade, entretanto, Abner, o general de Saul, possuía tanto o poder militar como político, e, portanto, ele pessoalmente arranjou a transferência do reino de Saul para Is-Bosete. O texto ressalta este fato ao chamar a atenção imediatamente para Abner e seu papel em fazer Is-Bosete rei. Abner primeiro de tudo, tomou a Is-Bosete e o transferiuparaM aanaim (v. 8). Maanaim (lit., “dois acampamentos”) es­ tava localizada do lado leste do Jordão, presumivelmente tornando a capital de Is-Bosete segura contra a pressão dos filisteus (e de Davi?). Segundo, Abner constituiu Is-Bosete rei sobre Gileade, Assuri Jezreel, Efraim, Benjamim e sobre todo o Israel (v. 9). Os verbos no versículo 8 são ambos causativos, o que sublinha a noção de que Abner assumiu o papel principal neste processo. Embora Is-Bosete fosse o rei, Abner possuía o verdadeiro poder atrás do trono. Pouco se sabe pessoalmente sobre Is-Bosete. Esta é a primeira vez que ele formalmente aparece no texto. Seu nome original era Esbaal, significando “ho­ mem de baal/Baal”. A parte “baal” de seu nome pode ter sido um epíteto geral para Deus, ou pode estar associado à deidade cananeia Baal. Todavia, por cau­ sa de suas associações pagãs, o editor/narrador deste texto o chamou simples­ mente de Is-Bosete ou “homem da vergonha”. Crônicas mantém o nome Esbaal na genealogia de Saul (1 Cr 8.33; 9.39). O território de Is-Bosete basicamente correspondia às tribos do norte sobre as quais seu pai Saul reinara. A referência aos assuritas é problemática e pode ter sido intencionada a se referir ao povo de Aser. Esta seção se encerra com uma observação em 2 Sm 2.10,11 concernente ao tempo de duração do reinado tanto de Is-Bosete quanto de Davi. Isto é se­ melhante à história sincronista em Reis, na qual a cronologia tanto do reinado de Judá quanto de Israel é fornecida. Is-Bosete reinou sobre o território norte

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por um período relativamente curto, dois anos. Davi, por outro lado, reinou sobre Judá em Hebrom por sete anos e meio.

3. A batalha de Gibeom (2.12-32) ■ 1 2 - 3 2 A natureza do conflito entre a casa de Davi e a casa de Saul fica evidente nos acontecimentos em Gibeão. A unidade tem início com uma ob­ servação de que Abner, filho de Ner, e os soldados de Is-Bosete, filho de Saul, saíram de Maanaim e marcharam para Gibeom (v. 12). Nenhuma explicação em particular é dada para este deslocamento, mas as propostas amigáveis de Davi aos homens de Jabes-Gileade (2.4-7) podem ter fornecido uma razão para Abner confrontar Davi. Joabe, o comandante de Davi, e os homens de Davi saíram para encontrá-los no tanque de Gibeom. Embora nenhum dos reis esti­ vesse presente, seus principais generais comandavam os homens. O texto menciona que ambos os grupos de guerreiros se posicionaram de um lado e do outro do tanque (v. 13). Quando os dois grupos se posicionaram ali, Abner iniciou a conversa propondo: alguns soldados lutarem diante de nós (v. 14). Os jovens referidos aqui são os guerreiros de elite (hãne ' arim ), e não soldados comuns. O texto também usa o termo sãhaq, que significa “jo­ gar” ou “fazer esporte”. A questão surge se isto significava um exercício de artes marciais ou se a intenção era outra coisa. A palavra também pode se referir a “combate mortal”.Já que esta “competição” incluía soldados experientes, é mais provável que representava uma forma de batalha em uma menor escala dejogos de guerra (Niditch, 1993, p. 95). Os versículos seguintes indicam que este confronto não tinha a intenção de ser uma competição esportiva. A proposta foi aceitável a Joabe, e ele pronun­ ciou as palavras: Levantem-se (v. 14). Ambos os lados se dividiram em grupos de doze cada. A competição subsequente revelou ser algo brutal em que cada homem agarrava a cabeça do outro e enfiava a espada no lado de seu oponente de forma que ambos os homens tombariam. A competição foi sangrenta, e o lugar onde isto aconteceu recebeu o nome de Helcate-Hazurim (v. 16), que traduzido quer dizer “campo dos fios da espada”. Abner e seus homens foram inferiores neste duelo e foram derrotados (v. 17). A dinâmica da história muda da derrota de Abner e seus homens para a perseguição de Abner. O texto também se concentra em três irmãos: Joabe, Abisai e Asael (v. 18). Todos esses homens são chamados de filhos de Zeruia, irmã de Davi (1 Cr 2.16). Não é de surpreender que três dos melhores e mais

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confiáveis guerreiros de Davi fossem da família. Dos três, Asael é separado aqui já que ele era quem estava perseguindo a Abner após a derrota em Gibeom. Asael não só foi identificado como irmão de Joabe, mas ele é chamado de “ligeiro de pés” (ARC), como uma gazela (v. 18). A velocidade de Asael só é igualada à sua determinação de subjugar Abner. Asael sozinho seguiu a Abner sem desviar nem para a direita nem para a esquerda (v. 19). Abner, o general experiente, advertiu-o em duas ocasiões que desistisse de segui-lo e seguisse um dos outros guerreiros. Na segunda ocasião, Abner disse a Asael que voltasse porque como eu poderia olhar seu irmão Joabe nos olhos de novo? se ele matasse o irmão dele (v. 22). Asael recusou o convite de Abner, e o experiente general atingiu Asael no estômago com o cabo da lança de forma que ela saiu pelas costas de Asael. Asael caiu, e o local se tornou um memorial improvisado. Cada um que passava pelo local onde ele caiu parava (v. 23). Aquele era um gesto que de­ monstrava respeito a ele e celebrava a sua memória (v. 23). Com Asael morto, os dois outros irmãos, Joabe e Abisai prosseguiram a perseguição. Joabe e Abisai perseguiram a Abner e chegaram a uma colina chamada Amá (v. 24). Este monte-fiea no deserto de Gibeom no território de Benjamim. Compreensivelmente, os benjamitas, povo da terra natal de Saul, uniram-se em torno de Abner efizeram um batalhão (v. 25). Abner basicamente pediu uma trégua das hostilidades (v. 26) fazendo a pergunta: Consumirá a espada para sempref Não vê que isso vai trazer amargura? O prognóstico sombrio de Abner estava fundamentado na realidade já que as forças de Abner tinham essencialmente se firmado (lit., eles tinham tomado uma posição) no topo da colina e tomado uma postura defensiva (v. 25). Joabe reconheceu a avaliação de Abner e aderiu à trégua desta vez. Joabe, contudo, não se esqueceu do que acontecera com seu irmão e uma vingança pessoal permanecia em sua mente (3.27). Após este episódio, Abner e seus homens deixaram a área próxima de Gibeom e viajaram de volta para Maanaim passando pelo caminho da Arabá (v. 29). A Arabá geralmente significa planície ou deserto, mas aqui significa possivelmente o lado oeste do Jordão (Campbell, 2005, p. 38). E possível que eles tenham atravessado o Jordão logo ao norte do mar Morto, assim como Davi fez quando fugia de Jerusalém (2 Sm 15.28). Joabe, por outro lado, retornou a Davi em Hebrom e o texto relata que vinte dos homens de Davi haviam sido mortos, enquanto que trezentos e sessenta dos homens de Abner (que são chamados de homens de Benjamim) morreram no combate (2.31). O escritor/narrador já estava, entretanto, marcando o placar: Os homens de Davi

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mataram mais dos homens de Is-Bosete. Isto significava uma vitória decisiva de Davi sobre a casa de Saul, uma competição que iria continuar a pender em favor de Davi. O capítulo encerra com uma nota sobre Asael. O texto cuidadosamente preserva a memória de Asael, um dos guerreiros de elite de Davi. Asael foi en­ terrado em Belém, a cidade natal de Davi (v. 32).

4. Davi em Hebrom (3.1-5) I 1 A notificação geral do versículo 1 continua o tema e os interesses no pon­ to onde o último capítulo parou. No conflito militar de Gibeom, os homens de Davi, sob o comando de Joabe, tiveram vantagem sobre Abner e seus homens. Embora Asael tenha sido morto por Abner, o texto relembra o leitor de que os homens de Davi mataram mais do que os homens de Abner. A dinâmica alcan­ çada na batalha continua no versículo 1, que relata que houve uma longaguerra entre a casa de Saul e a casa de Davi (v. 1a); porém Davi se ia fortalecendo, mas os da casa de Saul se iam enfraquecendo (v. 1b). A trégua que foi combina­ da entre Abner e Joabe não durou. Os verbos no versículolb (hõlêq e hõlqim) dão ao leitor a noção de que Davi continuou a manter a superioridade naquele conflito contínuo enquanto que a casa de Saul enfraquecia progressivamente. I 2 - 5 Logo após a notícia concernente a casa de Davi e de Saul, os versículos 2-5 fornecem uma lista das esposas de Davi e de seus filhos que nasceram em Hebrom. Muitos eruditos entendem que este seja um pedaço de informação inserido porque quebra o fluxo do texto entre o versículo 1 e o versículo 6b. Incluir informações sobre a família do rei junto com as do seu reino não é incomum. O texto faz isto até para o rei Saul (1 Sm 14.49). A lista genealógica pode ter sido modificada pelo fato de que as tribos do norte estavam prestes a fazer uma aliança com Davi, com a ajuda de Abner. A lista em si é interessante. Seis filhos estão enumerados nesses versículos. Três dos filhos, Amnom, Absalão e Adonias foram envolvidos na tempestu­ osa rivalidade pelo trono. Amnom, que estuprou sua meia-irmã Tamar, seria assassinado por Absalão. Absalão não só se vingou do estupro de sua irmã, mas usurpou o trono de Davi. Adonias proclamou a si mesmo rei no final da vida de Davi, somente para ser substituído por Salomão e morto pela ordem real. A lista de mulheres basicamente inclui mulheres do território israelita: Je­ zreel, Carmelo e Hebrom. Entretanto, Maaca era de Gesur, um país arameu (2 Sm 3.3). Davi utilizava este relacionamento para ganho político contra a casa

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de Saul. É também digno de nota observar que o filho (Absalão) de Maaca, uma mulher cananeia, estaria no centro de um assassinato e rebelião que trouxe a Davi muita dor pessoal e instabilidade política (cap. 13—19).

5. Abner deserta para Davi (3.6-39)

■ 6-11

A notícia no versículo 1 sobre Davi ganhar força é igualada pela descrição sobre Abner. O versículo 6b indica que Abner se esforçava na casa de Saul. O verbo usado para descrever a posição de Abner na casa de Saul é o mesmo que se refere a Davi em 3.1b. A linguagem sugere que Abner era a verdadeira força atrás da monarquia de Is-Bosete, e sua estatura e autoridade na casa de Saul continuava a se expandir. Abner, afinal, foi o responsável por transferir Is-Bosete para Maanaim e estabelecer a sua monarquia após a morte de Saul. Além do mais, na contínua batalha entre as duas casas, Is-Bosete pode ter se tornado mais dependente do general, desta forma, fazendo com que Ab­ ner se tornasse o rei nominal. As duas notícias sobre Davi e Abner, entretanto, traz a ambos para um foco mais nítido. Abner estava disposto a passar para o lado de Davi, o que também armou o palco para o confronto final entre Joabe e Abner. Como pro­ va de sua crescente estatura dentro da casa de Saul, Is-Bosete acusou a Abner de ter tomado a concubina de Saul, Rispa, e dormido com ela (v. 7). Este ato teria sido visto como usurpação de poder no mundo antigo. O filho de Davi, Absalão, demonstrou que havia derrubado Davi ao fazer esta mesma coisa (2 Sm 16.21). Se, de fato, isto aconteceu ou não, ainda permanece obscuro. Abner fez objeção ao questionamento e acusação de Is-Bosete com grande retaliação (3.8), sou um cão a serviço de Judá? A referência ao cão é simbólica quanto ao que normalmente figura como um animal desprezível, o antônimo de um leão feroz e real (Alter, 1999, p. 209). Abner havia lutado por Saul e pela casa de Saul, e as observações de Is-Bosete eram equivalentes a dizer que ele havia cometido um crime de traição da pátria. A ingratidão de Is-Bosete para com Abner, juntamente com sua pergunta acusadora, provou ser a última gota para Abner. Abner jurou que iria prestar apoio para Davi (v. 10). Assim como fez com Is-Bosete, Abner iria transferir as tribos do norte de Israel para o lado de Davi para que Davi fosse rei sobre todas as tribos de Israel, de Dã a Berseba. Is-Bosete percebeu que Abner era quem realmente estava no poder e, portanto, não pôde fazer nada porque tinha medo dele (v. 11).

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I 12-16 Com a clivagem entre Abner e Is-bosete cimentada, Abner enviou mensageiros a Davi com a intenção de buscar aliança com ele. Abner procurou fazer um concerto com Davi, e em troca, Abner garantiria que todas as tribos de Israel seguiriam Davi. O papel ativo de Abner é destacado no texto quando 0 texto hebraico usa uma raiz causativa de forma que poderia ser traduzido como: a minha mão serâ com você, para tornar a ti todas as tribos de Israel (v. 12). Logo, seria pela mediação de Abner que Davi ganharia controle sobre todas as tribos. Abner, mais provavelmente, realizou este ato pensando que obteria uma posição especial com Davi em troca de sua ajuda. Davi concordou com este arranjo com uma condição: Abner teria de trazer Mical com ele como parte da transação (v. 13). O pedido de se reunir com Mical era, sem dúvida, uma jogiada política. Davi precisaria de uma conexão com a casa de Saul para parecer um governante mais legítimo sobre as tribos do norte que estavam sob o controle de Is-Bosete. Estando associado a um membro da família de Saul faria Davi parecer menos forasteiro, considerando que viera do território de Judá. 1 17-21 Abner veio ao povo de Israel com uma interessante mensagem. Pri­ meiro, as palavras que ele lhes disse indicavam que as tribos do norte estivessem “buscando” (NRSV) a liderança davídica (v. 17). O verbo aqui está indicando que o povo desejava isto há algum tempo. Segundo, expressou sua mensagem de forma que lembrava o povo sobre o fracasso de Saul em derrotar os filisteus. As palavras de Samuel concernentes a Saul em 1 Sm 9.16 foram aplicadas a Davi: ele resgataria os israelitas dos filis­ teus e de seus inimigos (2 Sm 3.18). Embora Saul fosse escolhido como o rei para esta tarefa, os filisteus ficaram mais fortes e mais entrincheirados durante o domínio de Saul. Saul até perdeu a sua vida lutando contra o próprio povo do qual ele deveria proteger os israelitas. Esta tarefa cairia nas mãos de Davi, e ele cumpriria o desejo de Deus para o Seu povo. O texto cuidadosamente nota que esta mensagem foi dirigida aos benjamitas também (v. 19). Como o território natal de Saul, Abner deixou claro que um líder de Judá seria o rei sobre as tribos do norte. Embora nenhuma resposta é dada pelos benjamitas, pode se imaginar até que ponto o povo de Benjamim estava concordando com esta decisão. Veremos mais tarde que nem todos os benjamitas ficaram satisfeitos com o reinado davídico (veja cap. 16 e 20). Quando Abner foi a Davi em Hebrom para lhe entregar este relatório, ele basicamente afirmou que todas as tribos, inclusive a de Benjamim, apoiavam

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sua decisão (3.19). A nova aliança foi celebrada com uma festa, e Abner e seus vinte homens participaram do banquete oferecido por Davi. O entusiasmo de Abner com seu novo acordo é visto no versículo 21 com três verbos na primei­ ra pessoa: Eu me levantarei, e irei, e ajuntarei ao rei, meu senhor, todo o Israel. A exuberância de Abner em transferir as tribos para Davi torna o leitor um pouco cauteloso de seus motivos. Será que Abner esperava algo em troca (i.e., uma promoção, uma consideração especial) pelo seu papel na transferência das tribos do norte a Davi? É fácil também antecipar como Joabe, o fiel general de Davi, poderia ter visto Abner como uma ameaça em potencial. H 2 2 - 2 7 Imediatamente depois que Abner saiu, Joabe e seus homens volta­ ram a Hebrom com despojos de batalha. Quando foi anunciado a Joabe que Abner tinha vindo a Davi e Davi o enviou em paz, Joabe ficou com suspeita dos motivos de Abner (v. 25). Além do mais, Joabe questionou Davi diretamente sobre deixar Abner escapar. Joabe garantiu a Davi que Abner simplesmente usou aquela ocasião como um pretexto para obter informações sobre a entra­ da e a saída de Davi (v. 25). Joabe enviou mensageiros a Abner e o trouxe à cisterna de Sirá (v. 26). O texto é cuidadoso em informar que Davi não ficou sabendo das ações de Joabe. Quando Abner voltou a Hebrom, Joabe conseguiu executar vingança con­ tra Abner apunhalando-o no estômago pela morte de Asael (v. 27). Joabe feriu a Abner à entrada da porta da cidade. Hebrom era designada como uma ci­ dade de refúgio (Js 20.7), onde a pessoa podia reivindicar o refúgio por uma disputa de sangue e não ficar culpada pelo assassinato de vingança. Todavia, o ato de Joabe não poderia ser desculpado como um ato de vingança (Nm 35.12; Dt 19.11-13), já que Asael ignorou as advertências de Abner em tempo de batalha (2 Sm 2.21,22). Como resultado, Joabe ter matado a Abner constituiu um ato de homicídio (3.30), e, logo, ele perdeu o santuário moral e legal que a cidade oferecia. ■ 2 8 - 2 9 0 texto menciona, todavia, que, quando Davi ouviu a notícia, ele apresentou um protesto emocional e enfático sobre a morte de Abner. O emo­ cionante desabafo de Davi incluía três componentes importantes. Primeiro, Davi alegou inocência com relação à morte de Abner. As palavras de Davi: Eu e o meu reino, perante o Senhor, somos para sempre inocentes, lembram ao público leitor que Davi não teve participação na morte do general de Saul (v. 28). É importante notar que o narrador da história de Davi faz os maiores es­ forços para que o público leitor saiba da inocência de Davi. Davi não sabia que Joabe havia se encontrado com Abner (v. 26), e ele não estava presente quando

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esses eventos ocorreram (v. 28). Esta foi a segunda ocasião, porém, em que al­ guém ligado a Davi foi associado à morte de uma figura importante conectada a Saul: o amalequita que matou Saul e trouxe as insígnias reais a Davi (1.10), e Joabe, que matou o antigo general de Saul (3.27). Sem dúvida, esses acontecimentos levantaram sérias questões e preocupa­ ções sobre a maneira com que Davi chegou ao trono. Eles até sugerem que Davi, de modo indireto, teve participação na morte destes indivíduos. Logo, o protesto de Davi no versículo 28 repreendia tais noções. Segundo, Davi proclamou uma severa maldição sobre Joabe e sobre toda a casa de seu pai (v. 29). Davi não só invocou várias doenças de pele, fome, e morte para aterrorizar a família dele, mas também afirmou que na casa dele não faltaria alguém que se use muletas. Esta curiosa expressão carrega um significa­ do depreciativo “de uma criatura afeminada que tem falta de qualidades más­ culas” (Mauchline, 1971, p. 211). As palavras de Davi significavam um ataque direto à masculinidade dos membros da família de Joabe. Isto insinua que os homens da família de Joabe só “serviriam para trabalho de mulher” (JPS), que a roca era usada para coser tecidos. Terceiro, Davi e seus homens fizeram rituais de luto (1.12; 3.31) nos quais eram obrigados a rasgar as vestes, cingir panos de saco e prantear pela morte de Abner (v. 31). Além disto, Davi ofereceu palavras de lamento sobre a vítima assassinada, alegando que Abner não merecia morrer do modo como Joabe o matou (v. 33; Por que morreu Abner como morrem os insensatos?). Por meio de tais atos, Davi demonstrava uma genuína tristeza e indignação contra o assassinato de Abner. O texto ainda nota que todo o povo entendeu as visíveis expressões de luto de Davi por Abner e isto pareceu bem aos olhos do povo (v. 36). Além do mais, todo o povo e todo o Israel reconheceram que o rei não tivera partici­ pação no assassinato de Abner, filho de Ner (v. 37). A reação de Davi quanto à morte de Abner alcançou uma vitória de relações pessoais: ele obteve o favor do povo de Israel e ao mesmo tempo amaldiçoou a casa de Joabe. As ações de Davi demonstraram que ele simpatizava com o herói do norte e que ele não tinha nenhum envolvimento pessoal com a morte de Abner. Ao organizar as narrativas desta maneira, poderia ser provado que Davi era inocente deste as­ sassinato, embora isto melhorasse sua carreira política. O capítulo quatro narra a morte do filho de Saul, e a sua morte foi propícia à sorte política de Davi também.

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6. A morte de Is-Bosete (4.1-12) I 1 O capítulo 4 representa o último maior obstáculo que se encontrava no caminho de Davi ao trono. O capítulo abre com a notícia de que ofilho de Saul ouviu que Abner morrera em Hebrom (v. 1). O texto não identifica quem é o filho de Saul neste versículo, mas deve estar se referindo a Is-Bosete, embora a LX X e o 4QSamadigam “Mefibosete”.Já que Abner funcionava como o rei no­ minal no território de Saul, não deveria ser surpresa para o leitor que as mãos de Is-Bosete se afrouxassem em resposta a esta informação. Esta é uma expres­ são idiomática para dizer que Is-Bosete perdeu a coragem (i.e, “ele perdeu o controle”, na tradução do inglês) como resultado da perda de Abner. Além do mais, todo o Israel ficou aterrorizado ou alarmado com a notícia da morte de Abner (v. 1). Embora nenhuma explicação seja fornecida no texto, alguém tem de per­ guntar por que o rei e o povo reagiram com temor às novas sobre a morte de Abner. É possível presumir que eles reconhecessem Abner como o verdadeiro líder de Israel e, logo, ficaram pasmados porque o seu “rei” havia caído. À luz disto, o povo pode ter tido falta de confiança nas habilidades de liderança de Is-Bosete considerando que ele não havia feito nada até o momento para se distinguir como um líder competente. Também é possível deduzir que o povo tinha medo de Davi e da probabilidade de se submeterem ao governo davídico. A notícia da morte de Abner em Hebrom (3.27), a capital de Davi, era sem dúvida preocupante para eles. A “casa de Davi” tinha estado em guerra com a “casa de Saul” durante este tempo. Será que a morte (assassinato?) de Abner seria um prenúncio das coisas futuras para o povo de Israel? Se Davi e seus ho­ mens tratavam Abner desta forma, como o povo de Israel seria tratado se Davi se tornasse rei sobre o velho reino de Saul? Será que ele os trataria justamente ou imporia um governo pesado sobre eles ? Além do mais, Davi era de Judá e não das tribos do norte. Será que ele seria simpatizante do modo de vida do norte ou avesso à sua história e interesses? Seja qual for a razão, é fundamental notar que o povo de Israel reagiu com horror à notícia da morte de Abner. I 2 - 3 O texto insere uma breve informação sobre dois indivíduos que tive­ ram uma tremenda influência no curso dos eventos no que tange ao percurso de Davi até o trono (veja espec. os v. 5-12 a seguir). Recabe e Baaná são ambos referidos comofilhos de Rimom, o beerotita, dosfilhos de Benjamim (v. 2). Rimom é mencionado em outro lugar neste capítulo (v. 5,9), e ele é chamado de beerotita. Os beerotitas eram originalmente um grupo não israelita que even­ tualmente se tornaram “cidadãos naturalizados” do território de Benjamim

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(Alter, 1999, p. 217). Os irmãos também eram capitães de tropas e, portanto, matadores experientes (v. 2). O texto fornece esta observação à luz do papel de­ les no assassinato de Is-Bosete nos versículos seguintes. Isto também se encaixa no padrão recorrente de um mensageiro de origem estrangeira que traz a Davi notícias de um desastre (1.1-10). 1 4 0 texto, curiosamente, insere um breve comentário sobre o filho de Jô­ natas (i.e., neto de Saul), Mefibosete. O escritor/narrador da ascensão de Davi inclui esta informação em antecipação à iminente morte de Is-Bosete e a ques­ tão de um herdeiro na casa de Saul. Embora Mefibosete (também conhecido como Meribe-Baal, 1 Cr 8.34; 9.40) representasse um herdeiro aparente, suas incapacidades físicas basicamente o impediam de ser um candidato legítimo ao trono. Mefibosete era aleijado de ambos os pés como resultado de um acidente no qual ele caiu e ficou coxo aos cinco anos de idade. O termo usado para a incapacidade de Mefibosete para andar (vayipãsêah) é etimologicamente similar ao termo que se refere à “Páscoa” {pesah) na tradi­ ção judaica. Ironicamente, enquanto que a morte de um cordeiro comemora­ va uma série de eventos que levaram à libertação dos israelitas do cativeiro na tradição do Êxodo, neste cenário, a incapacitação dos pés de uma criança está conectada à oportunidade de Davi assumir o controle do reino de Saul. Por mais que o texto antecipe o papel de Davi como rei sobre todo o Israel, ele tam­ bém olha para Mefibosete prevendo o seu futuro relacionamento com Davi. Quando Davi reinou sobre Jerusalém, ele trouxe Mefibosete para ficar com ele e “comer à [sua] mesa” (2 Sm 9.7-13). H 5-8 O texto volta o foco para a trama de assassinato de Baaná e Recabe contra a vida de Is-Bosete. Nenhuma explicação é fornecida quanto a por que eles queriam matar o filho de Saul, especialmente, já que eles vinham de Beerote, que fazia parte do território natal de Saul, em Benjamim (embora Beerote fosse originalmente uma das cidades dos gibeonitas, Js 9.17). O texto indica que este foi um ato descarado e ousado, já que ambos os homens entraram na casa de Is-Bosete na hora mais quente do dia (v. 5). Isto significa ao meio-dia ou logo depois, quando Is-Bosete estava deitado a dormir. Os versículos 6,7 recontam o plano de assassinato que Baaná e Recabe re­ alizaram contra Is-Bosete. Os detalhes da conspiração permanecem um pouco vagos baseados na confusão textual das tradições manuscritas. O TM, aliás, possui dois relatos sobre a morte de Is-Bosete: Versículo 6: (no qual o hebraico tem uma tradução difícil): Ambos os ho­ mens entraram na casa como carregadores de trigo e transpassaram-Ihe o estômago e fugiram...

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Versículo 7: Eles entraram na casa enquanto ele estava deitado em seu quarto; eles oferiram , mataram-no, e o decapitaram (NRSV). A LX X tem aliviado o problema da dupla referência ao assassinato com esta versão da narrativa: Versículo 6: E eis que o empregado da casa peneirava o trigo, e ele cochilou e dormiu; e os irmãos Recabe e Baanã entraram secretamente na casa. Versículo 7: E Is-Bosete estava dormindo em sua cama no quarto, e eles o feriram e o mataram e cortaram a sua cabeça. Uma comparação de ambas as tradições textuais revela que o versículo 7 é essencialmente o mesmo no TM e na LXX. O versículo 6 do TM, porém, omi­ te a observação de que o empregado da casa estivesse dormindo, o que permitiu que Recabe e Baaná entrassem sem ser detectados. Logo, a LX X representa a melhor leitura das duas tradições já que registra somente um assassinato e os acontecimentos se desenrolam mais logicamente: no versículo 6, os homens entram na casa sem ser detectados e, no versículo 7, Is-Bosete é assassinado. Além do assassinato de Is-Bosete, os dois homens pegaram a sua cabeça e viajaram toda a noite pela rota da Arabá (v. 7); uma rota que se estendia desde Maanaim ao vale ao sul do mar da Galileia (veja 2.29). Os homens trouxeram a cabeça a Davi em Hebrom, pensando que haviam feito um grande serviço a Davi. As palavras deles: Aqui está a cabeça de Is-Bosete, filho de Saul, teu inimigo, que tentou tirar-te a vida; indicava que Is-Bosete era rival de Davi, embora o texto não houvesse indicado isto até a este ponto (4.8). Além do mais, os dois homens atribuíram a morte de Is-Bosete a Yahweh que vingou hoje... de Saul e da sua semente. 9 9 " 1 2 Davi respondeu àqueles homens e às suas palavras da mesma forma que fez com o amalequita que anunciou a morte de Saul (1.1-10). Davi até se referiu ao amalequita e ao destino que ele teve quando entregou a Davi a no­ tícia da morte de Saul. Como no caso do amalequita, Davi mandou que esses homens fossem mortos, e além disto, suas mãos e pés foram cortados e seus corpos pendurados perto do tanque de Hebrom (4.12). O desmembramento de malfeitores e prisioneiros era prática comum no antigo Oriente Próximo e era um modo tangível para Davi denunciar os atos deles e fornecer evidência convincente de que ele não havia orquestrado o assassinato de Is-Bosete (Alter, 1999, p. 219). Os críticos de Davi têm se oposto a isto, argumentando que Davi armou o assassinato de Is-Bosete e depois cobriu suas pistas matando os indivíduos que executaram o ataque. Um exame, neste ponto, nos relatos de morte de Saul, Abner e Is-Bosete mostram características comuns entre eles: o próprio relatório da morte (1.10;

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3.27,28; 4.6-8), a eliminação, pelas mãos dos homens de Davi, da pessoa que anunciou a morte (1.13-15; 4.12), um ato de luto logo após a morte (1.11,12; 3.31-35), e uma confissão de inocência (1.16; 3.26,28,36,39; 4.8-10). Embora o texto indique que Davi não estava envolvido nos assassinatos desses indivídu­ os, as circunstâncias envolvendo cada uma das mortes parecem implicar a Davi e/ou aos homens associados a ele de uma forma ou de outra. Até o mais pie­ doso leitor do texto pode perceber algo de curioso sobre os eventos em torno da morte desses homens, que, por sua vez, levanta perguntas sobre a maneira como a carreira política de Davi se desenvolveu. Apesar da ira de Davi contra aqueles homens, ele não demonstrou remor­ so por Is-Bosete pessoalmente. Davi foi ficando mais dessensibilizado com as mortes dos indivíduos associados a Saul à medida que elas continuavam a acontecer. Dãvi exibiu uma grande tristeza com a notícia da morte de Saul e Jônatas, depois, menos desespero quando soube do assassinato de Abner, e finalmente, nenhum pesar sobre o assassinato de Is-Bosete. O leitor tem de ponderar se Davi se tornou mais imune à matança ao seu redor. Será que o remorso foi gradualmente sendo substituído pelo sentimento de “antecipação” ao se aproximar mais do trono com as mortes de cada um desses homens ? Fica por conta do leitor tirar suas próprias conclusões. O capítulo termina com a notícia de que a cabeça de Is-Bosete foi enter­ rada no túmulo de Abner em Hebrom (v. 12). Ao final do capítulo 4, quatro homens importantes associados com a casa de Saul haviam sido mortos: Saul, Jônatas, Abner e Is-Bosete. Com cada um desses homens eliminados, o cami­ nho do reinado se abria cada vez mais amplo para Davi. A PARTIR DO TEXTO A vida e o exemplo de Davi nesta unidade trazem à mente a ideia de que a tentação de comprometermos os nossos valores a fim de progredirmos na vida é tanto real como poderosa. Em duas ocasiões específicas (3.27; 4.8), pessoas associadas a Davi assassinaram indivíduos afiliados à casa de Saul. Em ambas as circunstâncias, as pessoas que “eliminaram” Abner e Is-Bosete pensavam que estavam fazendo um grande favor a Davi (3.25; 4.8). Elas acreditavam que ao eliminarem esses homens estavam ajudando Davi a se vingar de seus inimigos assim como abrindo o caminho que lhe facilitava a obter o trono. Davi garan­ tiu que ele não se conduziria desta forma, tampouco concordava com as ações daqueles que o faziam. Davi se opôs veementemente à noção de que ele iria se “sobressair” trapaceando ou por quaisquer outros meios desonestos. Ao fazer

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isto, ficamos sabendo que, na vida, as pessoas tomarão cursos de ações que são menos do que honráveis a fim de progredirem sua situação pessoal. Quer seja isto nos negócios, na escola, nos relacionamentos, na política, nos esportes e em outras competições, e até no ministério, as pessoas sucumbem à tentação de “trapacear” a fim de ganhar. Como crentes, espera-se que pratiquemos a honestidade em tudo o que fazemos, tanto em coisas grandes como pequenas, e vivamos honrosamente com todas as pessoas. Ser dúbios em nossos empreen­ dimentos diários pode não só trazer vergonha sobre nós, mas também desonrar a reputação do Deus que proclamamos adorar.

J. Davi se torna rei sobre Israel (5.1-25) POR TRÁS DO TEXTO Este capítulo representa um importante desenvolvimento dentro da tra­ jetória geral da história da ascensão de Davi. Primeiro, as tribos do norte es­ colheram Davi para ser seu rei, trazendo, assim, o reino de Saul e Judá para debaixo do controle de Davi (v. 1-5). Segundo, Davi capturou a cidade de Je­ rusalém (Jebus) e a estabeleceu como a cidade-capital de sua recém-formada monarquia unida. Jerusalém se tornou conhecida como “a cidade de Davi” e o futuro lar do templo de Salomão. Terceiro, Davi afastou o ataque dos filisteus que viam o recém-estabelecido reino de Davi como uma ameaça à própria se­ gurança e sobrevivência deles (v. 17-25). Por um lado, o capítulo 5 representa a culminação da jornada de Davi de pastor de ovelhas a rei, contudo, por outro lado, ele também serve como um prelúdio adequado para os capítulos 6—8, que registram os importantes eventos que transcorreram enquanto Davi reina­ va em Jerusalém. NO TEXTO

1. As tribos israelitas fazem Davi rei (5.1-5) H 1 -5 Após a morte de Abner e de Is-Bosete, a porta se abriu para Davi se tornar rei sobre todas as tribos. O texto menciona (v. 1) que todas as tribos de Israel foram dizer a Davi, em Hebrom a fim de fazê-lo rei. A frase todas as tribos de Israel se refere especificamente às tribos do norte que haviam

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permanecido leais à casa de Saul. Quando as tribos do norte vieram a Davi, falaram de Davi em termos elogiosos. As tribos basicamente reconheceram que, embora Saul fosse o rei sobre Israel, era realmente Davi quem saía e entrava com Israel e era Yahweh quem havia tomado Davi para ser pastor do seu povo Israel (v. 2). A linguagem aqui é sugestiva em diversas maneiras. Primeiro, quando os israelitas falam com Davi, eles constantemente fazem referência a Davi na segunda pessoa do singular (i.e., “tu”) no versículo 2: Eras tu o que saias e entravas com Israel. . . Yahweh te disse . . . Tu apascentarâs. . . As constantes referências na segunda pessoa têm a intenção de transmitir a convicção do povo de que era realmente Davi o tempo todo, e não Saul, que o conduzia, e era Davi que Deus havia escolhido (destinado) para ser rei sobre o povo. Esta linguagem essencialmente legitimava Davi como o líder reconhe­ cido sobre todo o Israel. Segundo, o povo se referia a Davi usando a linguagem e imagem pastoril. No Antigo Testamento, a figura do pastor era uma metáfora que geralmente se aplicava aos maiores líderes de Deus (i.e., Moisés). Davi era um pastor que estava cuidando do rebanho de seu pai no momento em que Deus o escolheu para ser rei (1 Sm 16.11). O texto prefigura que Davi seria um grande líder nos moldes dos grandes heróis do passado de Israel. Isto se coloca em grande contraste com Saul, que andava procurando os jumentos perdidos de seu pai no momento em que encontrou Samuel (9.1 ff.). É adequado que Deus tenha chamado Davi desde o rebanho de ovelhas de seu pai a fim de ser o pastor do povo de Deus. Terceiro, a expectativa do povo pelo reinado davídico (2 Sm 5.1,2) é mui­ to diferente da reação deles quando a probabilidade de ter como líder parecia palpável após a morte de Abner (4.1). Alguém pode questionar se este texto foi retocado por editores simpatizantes de Davi a fim de tornar Davi mais convi­ dativo para as tribos do norte. Esta informação pode também ter sido derivada de uma tradição separada que foi inserida neste contexto. É difícil determi­ nar qual resposta é a correta, mas as tensões estão presentes no texto. Além do mais, os israelitas disseram a Davi que nós somos sangue do teu sangue (5.1), demonstrando, assim, solidariedade para com Davi. Davi, porém, originava-se do território de Judá e em algum sentido era um forasteiro para com os do nor­ te. Isto se tornou evidente, por exemplo, nos sentimentos das tribos do norte quando decidiram se libertar do reino davídico (1 Rs 12.16). A linguagem em 2 Sm 5.1,2 apoia os propósitos davídicos e pode não representar sempre os verdadeiros sentimentos do povo.

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À moda deuteronomista, os anciãos do povo vieram a Davi e o ungiram como rei sobre Israel (Dt 17.15). Além disso, Davi fez com eles aliança (v. 3), ressaltando, assim, sua função em estabelecer um relacionamento político oficial com o povo. À luz das ligações políticas estabelecidas com as tribos do norte, a unidade encerra com uma breve declaração concernente ao período do reinado de Davi: ele reinou sete anos e meio em Hebrom e 33 anos sobre Israel. Como é típico na H.D., o reinado de um rei é frequentemente fornecido pela fórmula real que introduz o rei (1 Rs 15.2; 16.29; 2 Rs 3.1; 13.1; 14.2). Quarenta também é um ótimo número redondo que é semelhante à era dos juizes (Jz 3.11; 5.31; 8.28; 13.1). Isto é mais um relatório formulista do que um relatório historicamente preciso.

2. Davi captura Jerusalém (5.6-16) Como o rei reconhecido de Israel, Davi fez uma importante mudança po­ lítica ao estabelecer Jerusalém como sua cidade-capital. Jerusalém, que tam­ bém é chamada de Jebus, era ocupada pelo povo conhecido como jebuseus (v. 6). As cartas de El-Amarna indicam que Jebus era uma importante cidade cananeia já no século 14 a.C. O fato de que ela permanecia em existência até a épo­ ca de Davi não deve ser surpreendente. Existem diversos motivos importantes pelos quais Davi fez de Jerusalém a nova capital da monarquia unida. Primei­ ro, com uma elevação de 750m, Jerusalém era uma fortaleza e assim tinha um grande valor estratégico. Naquela altura, era difícil para os exércitos inimigos montarem um ataque bem-sucedido contra a cidade. Segundo, Jerusalém esta­ va estrategicamente situada ao longo da rota terrestre natural norte-sul que a conectava a cidades importantes como Siquém e Hebrom. Terceiro, Jerusalém era uma cidade “neutra” politicamente falando: ela não era uma cidade israe­ lita, então o povo de Israel e Judá não tinha afiliação prévia com ela. Quarto, porque Jerusalém era uma importante cidade-estado do final do período da Idade do Bronze, já havia uma burocracia composta de oficiais políticos talen­ tosos e sábios estabelecida. Davi poderia usar as habilidades desses indivíduos para estabelecer e organizar seu novo reino (Mendenhall, 1975, p. 155-170). O texto revela que Davi realmente tinha uma equipe burocrata ao seu dispor, mesmo que isto fosse um tanto escasso segundo os padrões modernos (2 Sm 8.15-18; 20.23-26). Este método de estadismo era bem conhecido no mundo antigo, e o fato de que Davi empregasse ex-oficiais daquela importante cidade -estado não deve ser surpreendente.

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Cartas de El-Amarna Em 1887 uma camponesa desenterrou diversas placas de argila em Tel-Amarna, a cidade-capital do faraó da décima oitava dinastia de Akhenaten. Ao todo, 382 placas ou pedaços de placas foram descobertos em Tel-Amarna: 352 cartas e 32 textos diversos. As cartas continham cor­ respondências reais entre o rei egípcio e vários poderes regionais: Mitani (norte da Síria), Babilônia, Assíria, e Hati (no leste da Turquia). As placas também continham trocas de correspondência com os vassalos egípcios do oeste da Ásia, incluindo Canaã. As correspondências com os vassalos revelavam que a estrutura do Império Asiático do Egito era composta de uma rede de cidades-estados que iam desde Biblos, Quedes, e Amurru ao norte, até Asquelom, Laquis e Jerusalém ao sul. Cada cidade-estado tinha o seu próprio governador e área agrícola adjacente. As cartas tam­ bém mostravam que fiscais egípcios eram designados para monitorar os desenvolvimentos do império e coletar tributos dos vassalos. Os vassalos frequentemente requisitavam o apoio do Egito quando uma cidade-esta­ do vizinha estava se tornando uma ameaça para a soberania egípcia, ou quando grupos de mercenários conhecidos como Habiru apresentavam uma ameaça ao comércio e à segurança das cidades-estados (Higginbotham, 2005, p. 123-24).

I 6 - 7 O texto menciona que Davi e seus soldados marcharam para Jerusa­ lém para atacar os jebuseus que viviam lá (v. 6). Quando os jebuseus se encon­ traram com Davi, eles lhe deram uma forte advertência: Você não entrará aqui porque o cego e o coxo o lançarãofora. Esta frase tem sido uma fonte de disputa entre os eruditos há décadas porque o que os jebuseus quiseram dizer não ficou claro. É possível, como já foi proposto com base nos textos hititas, que esta linguagem se relacione com o costume hitita de fazer o juramento dos soldados em frente a uma mulher cega e a um homem coxo para indicar o destino deles (i.e., eles se tornariam como os indivíduos incapacitados) se fracassassem em suas missões. Os jebuseus podem ter feito algo análogo aqui colocando o coxo e o cego nas muralhas como uma maldição contra aqueles que ousassem atacar a cidade (Alter, 1999, p. 222). H 8 - 1 0 Além disto, a descrição do modo como os homens de Davi tomaram a cidade não é menos difícil de entender. Tradicionalmente, tem-se entendido que Davi e seus homens fizeram um ataque à cidade subindo pelo canal da água (sinõr) que levava à cidade. Os arqueólogos descobriram o que é chamado de

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canal de Warren em 1867. Este canal é um túnel subterrâneo situado próximo às fonte de Giom do lado de fora do muro leste da cidade. Este canal pode ter proporcionado a Davi e seus homens uma entrada crítica para a cidade, pela qual eles puderam montar um ataque contra os cidadãos de Jebus. Estudos mais recentes têm questionado se isto era plausível na época de Davi (Shanks, 1999, p. 30-35). Caso contrário, o método de entrada na cidade permanece um mistério. As palavras de Davi no versículo 8 parecem confirmar esta estratégia de batalha. Davi realmente tomou a fortaleza de Siao e subsequentemente mu­ dou seu nome para Cidade de Davi (v. 9). Era uma prática comum no mundo antigo renomear a cidade com o nome daquele que a conquistou. Davi tam­ bém edificou a cidade desde o Milo até dentro. O Milo se refere a algum tipo de trabalho de barro, talvez uma plataforma para construção, criada com o aterro de uma ravina. Esta seção se encerra com a observação de que Davi foi se tornando cada vez mais poderoso, pois o Senhor, o Deus dos Exércitos estava com ele (v. 10). O texto é cuidadoso em atribuir as grandezas de Davi ao Deus que ele adorava. ■ 1 1 - 1 2 Davi não só tomou a fortaleza de Sião e a rebatizou como cidade de Davi, mas o rei fenício, Hirão de Tiro (Hirão 1 969-936 a.C.), reconheceu as realizações de Davi e sua posição política. Hirão enviou mensageiros a Davi juntamente com toras de cedro e também carpinteiros e pedreiros que cons­ truíram um palácio para Davi (v. 11). Hirão queria estabelecer uma relação política com Davi, considerando que ele compartilhava uma fronteira com o florescente reino de Davi. O relacionamento político de Hirão com a casa de Davi se estendeu até o reinado de Salomão, que procurou Hirão para obter recursos materiais e funcionários qualificados para o projeto do templo (1 Rs 5.1-60). O fato de que Hirão tivesse laços políticos com Davi e Salomão (1 Rs 5.1-10) indica que a construção do palácio de Davi aconteceu mais tarde em seu reinado. ■ 13-16 Além da construção do palácio real, a casa de Davi (i.e., família) continuou a crescer. O texto menciona que Davi tomou mais concubinas (pilagsim ) e esposas (nasim) de Jerusalém. A sintaxe do versículos 13 é significante porque está fazendo uma importante reivindicação sobre as mulheres com quem Davi se casou. A construção {min yirüsãlaim ) de Jerusalém indica que Davi tomou mulheres que eram de Jerusalém; isto é, ele se casou com mulheres jebuseias (cananeias) da cidade. Davi, sem dúvida, usou estes casamentos para apoiar e solidificar sua própria posição na capital. O texto não faz nenhum comentário sobre as mulheres estrangeiras com quem

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Davi se casou, embora elas apresentassem uma ameaça religiosa à comunidade (Js 23.12,13; 1 Rs 11.1-4) e Deuteronômio proibia o casamento misto com mulheres cananeias (7.3-4). O texto também lista os filhos de Davi que nasceram em Jerusalém: Samua, Sobabe, Natã, Salomão, Ibar, Elisua, Nefegue, Jafia, Elisama, Eliada e Elifelete (v. 14-16). A maioria dos filhos nesta lista tem pouca conseqüência na história de Davi e na sucessão do reino. Somente Salomão ficaria envolvido na luta pelo trono de Davi. À medida que a Narrativa da Sucessão se desenvol­ ve, porém, uma profunda e contenciosa divisão se desenvolve entre a facção hebronita que apoiava Adonias e a facção jerusalemita que apoiava Salomão. A mãe de Salomão, Bate-Seba, não é mencionada por nome aqui, mas sua pre­ sença está implícita pela referência de Salomão. Bate-Seba somente se tornou afiliada a Davi depois que ele estabeleceu Jerusalém como a cidade-capital (2 Sm 11), um fato que indica que o presente texto não está ordenado cronologi­ camente. Bate-Seba estava na facção jerusalemita que pressionava Davi a ungir Salomão como o seu sucessor. Isto exige uma pergunta: será que Bate-Seba era cananeia? Estudos recentes sugerem que este pode ser o caso (Chankin-Gould et al., 2008, p. 339-52).

3. Davi e os filisteus (5.17-25) ■ 17 0 capítulo encerra com as duas notícias sobre os ataques filisteus contra Davi. Os filisteus, compreensivelmente, ficaram desconfiados de Davi quan­ do ouviram dizer que os israelitas haviam ungido Davi rei sobre Israel. Davi tinha sido vassalo do rei filisteu Aquis e pode ter permanecido fiel aos filisteus quando se tornou rei de Judá. Não é de surpreender que os filisteus quisessem procurar Davi depois que ouviram que ele agora tinha se tornado rei sobre todas as tribos de Israel. Os filisteus tiveram dificuldade de confiar em Davi an­ tes que ele se tornasse rei (1 Sm 29), agora eles o consideravam um adversário com quem eles competiam para saber quem emergiria como a potência líder na região. Quando Davi soube que os filisteus estavam se aproximando para uma ba­ talha, ele entrou nafortaleza para se abrigar. Embora a fortaleza mencionada aqui não seja identificada, ela se refere a um lugarforte nos arredores de Jeru­ salém e não à caverna de Adulão que Davi havia visitado anteriormente (1 Sm 22 ).

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■ 1 8 -2 1 Ao se preparar para a batalha, os filisteus se espalharam no vale chamado Refaim (v. 18). Este vale fica fora de Jerusalém, bem do lado oeste da cidade. Antes de Davi confrontar os filisteus, todavia, ele consultou a Yahweh se deveria subir contra os filisteus (v. 19). A linguagem aqui é digna de nota porque Davi pediu (sã *at) a Yahweh direcionamento nesta situação. Esta lin­ guagem é idêntica à linguagem de Ana que pediu ao Senhor um filho (1 Sm 1.11-20) e ao povo de Israel quando pediu um rei (12.13,19). Saul também pe­ diu ou inquiriu no momento de uma batalha, mas não recebeu resposta (14.37; 28.6). Diferentemente de Saul, Deus responderia às perguntas de Seu ungido. Além disto, Davi também perguntou: Subirei contra osfilisteus? A per­ gunta subirei . . . ? é também reminiscente da época dos juizes quando Judá perguntou quem deveria “subir” contra os cananeus (Jz 1) e quando Judá é ordenado a “subir” contra a tribo de Benjamim no final de Juizes (cap. 20). Em ambos os casos em Juizes, Deus mandou Judá liderar a batalha e Ele pro­ videnciou o sucesso contra o inimigo. Os exemplos anteriores, quando Judá consultou a Deus, basicamente “prefiguram” Davi neste contexto perguntando se deve subir. Além do mais, o leitor é deixado a presumir que assim como Deus deu a Judá (a tribo de Davi) a vitória naqueles conflitos, assim também Deus daria a Davi sucesso contra os filisteus. Quando Davi interrogou ao Senhor se ele deveria subir, ele também per­ guntou Tu os entregarás nas minhas mãos? (v. 19). A sintaxe nesta frase é significante porque o Senhor é o sujeito do verbo, indicando assim que Deus seria aquele que lutaria por Davi e os entregaria em suas mãos. Davi recebeu uma resposta afirmativa de Deus: Sobe, porque certamente entregarei os filisteus nas tuas mãos. Quando o Senhor respondeu a Davi, o texto utiliza um termo que garantia enfaticamente (Eu certamente os tenho entregado em suas mãos) que Deus entregaria os filisteus a ele. Quando Davi saiu para lutar contra os filisteus, ele viajou para um lugar chamado Baal-Perazim (v. 20). O nome do lugar é significante porque foi ali que Yahweh rompeu meus inimigos diante de mim como quem rompe águas. Logo, o nome é uma etiologia e testifica da vitória que Deus prometeu que daria a Davi: “Baal” (senhor) e “perazim” (romper). Embora a palavra “Baal” seja o nome da deidade cananeia, ela também é o termo genérico para “Senhor” que pode se referir a Deus. A unidade termina com outra virada interessante. Quando os filisteus fo­ ram derrotados, o texto nota que eles deixaram ali os seus ídolos; e Davi e seus

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soldados os apanharam (v. 21). O que Davi queria com os ídolos filisteus? O que ele intencionava fazer com eles ? Será que ele os destruiu ou os levou de vol­ ta a Jerusalém? Nós não sabemos, e o silêncio do texto aqui pode deixar a ima­ ginação a se perguntar. O cronista esclarece um pouco esta declaração notando que Davi mandou que seus homens queimassem os ídolos (1 Cr 14.12), o que estava de acordo com a Torá (Dt 7.5; 12.3). O fato de que os filisteus abando­ naram seus ídolos também indica que eles eram impotentes para auxiliá-los na batalha contra o Deus de Davi. I 2 2 - 2 5 Os filisteus se reagruparam e se prepararam para um segundo ata­ que. Eles se encontraram nomesmo vale, e Davi novamente consultou ou pe­ diu direção a Deus. Nesta segunda ocasião, entretanto, Deus forneceu uma estratégia de batalha ao invés da afirmativa: suba. Yahweh instruiu a Davi: Não ataque pela frente, mas dê a volta por trás deles e ataque-os em frente das amoreiras (v. 23). Yahweh também deu a instrução de que, ouvindo um som de passos por cima das amoreiras, saia rapidamente, pois será esse o sinal de que o Senhor saiu à sua frente para ferir o exército filisteu (v. 24). A frase ouvindo tu um som de passos por cima das amoreiras é um tanto confusa, mas pode ter sido uma indicação para Davi de que, quando o vento soprasse sobre as copas das árvores (possivelmente se referindo à hora do dia em que a batalha aconteceria), ele saberia que o Senhor estava liderando o ataque. O balançar das árvores ao vento poderia também ser simbolizado pelos “passos do Senhor” quando Deus acompanhasse Davi na batalha (Hertzberg, 1964, p. 274). Davi fez assim como Yahweh lhe tinha ordenado, enfatizando assim a obediência de Davi às instruções de Deus (v. 25). A obediência de Davi resultou em sucesso: eleferiu osfilisteus desde Geba até chegar a Gezer (v. 25). A observação sobre a vitória de Davi sobre os filis­ teus é importante em diversos níveis. Primeiro, depois desta batalha, os filis­ teus não ofereceram um desafio sério para Israel novamente. As referências às guerras de Davi contra os filisteus em 21.15-22 e 23.9-17 devem possivelmente ser datadas deste período (Gordon, 1986, p. 230). A declaração em 8.1 está incluída em um resumo sobre as guerras regionais de Davi e, portanto, podem ter ocorrido perto da época destas batalhas também. A eliminação da ameaça filisteia foi uma das grandes realizações de Davi, algo que Saul nunca conseguiu concretizar (veja 1 Sm 9.16). Segundo, o leitor é lembrado do fracasso de Saul à luz do fato de que os filisteus foram expulsos de Geba. Geba é outra forma da palavra Gibeá, a cidade natal de Saul (veja comentário em 1 Sm 13.3). A LX X e 1 Cr 14.16, por exemplo, escolhem dizer Gibeom aqui também. O fato de que

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Davi fora capaz de expulsar os filisteus da cidade de Saul aumenta a divergência entre o destino desses dois homens. Neste ponto da narrativa, o leitor não pode deixar de perceber as gritantes diferenças entre Saul e Davi. Deus respondeu a Davi quando ele pediu instru­ ções, mas permaneceu calado quando Saul o consultou. Deus lutou por Davi e lhe deu sucesso contra os filisteus em múltiplas ocasiões, enquanto que Saul nunca derrotou os filisteus. Davi seguiu as ordens de Deus; Saul desobedeceu à palavra do Senhor. O texto não para de comprovar que Davi é superior a Saul em todos os aspectos. A PARTIR DO TEXTO O texto continua a ressaltar o apoio de Deus a Davi, evidenciado tanto pelas vitórias militares como por sua aclamação entre o povo de Israel e do rei Hirão. O sucesso de Davi não só lhe trouxe renome pessoal e político, mas também teve tremendas implicações para a saúde religiosa da nação. Por meio dos triunfos de Davi, Deus também era glorificado. Davi e seus homens captu­ raram Jerusalém (a “fortaleza de Sião”) e a tornaram a cidade-capital do novo império. Jerusalém, todavia, era muito mais do que simplesmente a cidade-capital; ela se tornou conhecida como a habitação de Deus. Já que o assento ou trono de Deus estava localizado na cidade, ela servia como o principal centro religioso para o povo de Israel. Era ali que o povo vinha adorar a Deus em louvou e ações de graça (SI 9.11; 1025.21), e o local onde Deus abençoava o povo. De Sião, Deus abençoava o Seu povo (Sl 128.5; 134.3) e a Sua instrução dali saía (Is 2.3; Mq 4.2). De acordo com os escritores bíblicos, Sião também possui uma esperança escatológica para todos os povos. Ela será o lugar onde a paz universal será estabelecida (Sl 46.10,11; 76.4; Is 2.4; Ez 39.9,10) e a divina instrução será dispensada a todas as nações (Mq 4.1-4). Neste capítulo aprendemos que, quando Deus trabalha em nossas situa­ ções pessoais, Ele pode ter um propósito muito maior em mente que nós nun­ ca completamente antecipamos, compreendemos ou apreciamos. Por meio da conquista de Jerusalém por Davi, Deus estabeleceu Sião como o Seu monte sagrado que seria a fonte de salvação e instrução para o Seu povo e, um dia, para todas as nações. Embora Davi não pudesse ter vislumbrado o impacto espiritual que Jerusalém teria no decorrer dos séculos, o plano de Deus estava intimamente ligado à escolha de Davi como rei e seu sucesso pessoal. Seme­ lhantemente, nós podemos nunca imaginar, naqueles momentos em que Deus está realizando os Seus propósitos em nós, as ramificações que aquilo terá em

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propagar o plano redentor de Deus no mundo. Deus pode estar no estágio inicial de fazer algo extraordinário ou significativo para o reino quando Ele trabalha em nossa vida, cujo impacto nós nunca sondamos ou cremos ou ve­ mos. O nosso trabalho é permanecer obedientes à voz de Deus e abertos à Sua direção porque nunca sabemos quais são as intenções e os planos ulteriores de Deus quando Ele se move em nossas situações pessoais.

K. Davi e a arca do concerto (6.1-23) POR TRÁS DO TEXTO O capítulo 6 retoma a história da arca que se encontra em 1 Sm 4.1 - 7.1. A imensa lacuna que separa essas duas seções nos livros de Samuel e o tempo que se passa entre os dois episódios levantam sérias questões sobre a história da transmissão da narrativa. Os eruditos têm tentado abordar estes e outros assun­ tos que circundam essas tradições, mas ainda não atingiram um consenso em suas conclusões. Alguns têm argumentado que a Narrativa da Arca é realmente formada por duas partes distintas (1 Sm 4—6; 2 Sm 6), escritas em tempos diferentes, que depois foram agrupadas quando os livros de Samuel tomaram forma. Outros eruditos têm analisado a Narrativa da Arca separando os versí­ culos que contêm o uso do termo “arca de Deus” daqueles que usam o termo “arca de Yahweh”. Segundo esta linha de raciocínio, a Narrativa da Arca pode ser dividida em duas versões da história, com cada uma enfatizando temas di­ ferentes (Campbell, 2003, p. 303-4). Campbell postulou que a Narrativa da Arca representa a tradição unificada. Ele sugeriu que a Narrativa da Arca é um relato contínuo baseado na seguinte construção: Desde o dia em que a arcafoi apresentada na Quiriate-Jearim, muito tempo passou (1 Sm 7.2a). E Davi se levantou efoi com todas as pessoas que estavam com ele dos cidadãos de Judá, para fazer subir dali a arca de Deus (2 Sm 6.2). (2003, 301). Por meio de sua análise, ele mostrou que é possível fazer uma ponte sobre a lacuna entre 1 Sm 7 e 2 Sm 6. De uma perspectiva sincrônica, a volta da arca para Jerusalém na época de Davi ajuda a dividir a história de Israel em duas eras distintas: a arca em Siló e a arca em Jerusalém. Enquanto que a primeira era enfatizava Israel sob

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a liderança de profetas/sacerdotes como Samuel, a segunda simbolizava Israel sob a liderança de um rei. Além disto, a transferência da arca para Jerusalém fez um importante ponto teológico: a presença de Deus habitava com o povo na capital da terra de Israel. A arca seria mais tarde colocada no templo, que estava situado próximo ao palácio do rei. O rei sempre seria lembrado de que era filho de Deus (servo; SI 2) e de que Deus habitava nele enquanto ele servia ao povo de Deus. NO TEXTO I 1 O capítulo começa com a afirmação: De novo Davi reuniu os melhores guerreiros de Israel, trinta mil ao todo (v. 1). Esta é uma afirmação um tanto curiosa porque não sabemos quando ele os ajuntou pela primeira vez. O núme­ ro de homens escolhidos, trinta mil, também é significante porque se correla­ ciona com o número de homens que morreram quando os filisteus capturaram a arca (1 Sm 4.10). Estes dados parecem fornecer uma ligação com as tradições da arca em 1 Sm 4—6, embora seja experimental. Os estudiosos também nota­ ram algumas outras conexões (Van der Toorn e Houtman, 1994, p. 222): 1. A referência sobre um “carro novo” (1 Sm 6.7; 2 Sm 6.3) 2. O uso de perguntas retóricas: a. “Quem nos livrará?” ( 1 Sm 4.8) b. “Quem poderia estar em pé?” (1 Sm 6.20). c. “Como virá a mim a arca de [Yahweh] ... ?” (2 Sm 6.9) Estes detalhes literários fornecem alguma coerência para os elementos discrepantes das tradições da arca, mas esses detalhes de forma alguma resolvem todas as questões histórico-literárias inerentes ao texto. H 2 Davi e todo o povo foram a Baalá em Judá a fim de trazerem a arca. Primeiro Samuel 7.1, todavia, relata que a arca residia na cidade de Quiriate-Jearim e permaneceu sob a supervisão de Eleazar, filho de Abinadabe. A discrepância no nome do local é aparente, mas Baalá em Judá (“homens de Judá”?) pode estar equacionada a Quiriate-Jearim segundo Js 15.9. Uzá e Aiô, os filhos de Abinadabe, também supervisionaram a transferência da arca. Uzá e Aiô também não são mencionados em 1 Sm 7.1, então a presença deles no tex­ to é intrigante. Os estudiosos já tentaram abordar esta discrepância de várias maneiras. E possível que Eleazar já tivesse morrido, o que explicaria por que ele não é citado aqui. É possível também que o nome Uzá represente uma forma curta do nome Eleazar, indicando assim que ele ainda estivesse vivo. Esta é uma opção plausível considerando que o nome de seu irmão, Aiô, pode ser lido

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como “seu irmão” em hebraico. Baseado nesta reconstrução, o texto poderia significar: Eleazar e seu irmão , o que é uma grande ajuda no esclarecimento da confusão. I 3 -9 A arca foi colocada sobre um carro novo que foi conduzido ^ Aosfilhos deAbinadabe (2 Sm 6.3). O leitor não pode deixar de pensar nos filisteus que também colocaram a arca em um carro novo quando a enviaram de volta para Israel (1 Sm 6.7). Diferentemente dos filisteus que estavam ansiosos para se livrarem da arca, neste cenário, Davi e o povo aguardavam e celebravam sua transferência para Jerusalém. Isto fica evidente pelo fato de que o transporte da arca era acompanhado com danças e músicas (2 Sm 6.5), como quando as mulheres saíam para cantar e dançar depois que os soldados retornavam da ba­ talha. A volta da arca parecia uma grande ocasião litúrgica; “a arca do Senhor, longamente ausente da vida de Israel, estava vindo para casa” (Campbell, 2005, p. 66). O cortejo que acompanhava a arca parou, entretanto, quando a arca estava em perigo de cair do carro. O filho de Abinadabe, Uzá, estendeu a mão para segurar a arca porque os bois haviam balançado o carro. O cortejo parou per­ to da eira (gõren). A eira era geralmente um lugar onde as atividades divinas/ religiosas aconteciam na época do Antigo Testamento (Gn 50.10; Jz 6.37; 1 Rs 22.10; 2 Rs 6.27; Os 9.1,2) (Ahlstrom, 1961, p. 113-27). Parar naquele local, então, era lógico e apropriado para aqueles que estavam acompanhando o objeto sagrado. Quando Uzá tocou a arca, a ira de [Yahweh acendeu-se] contra Uzá por seu ato de irreverência. Por isso Deus o feriu, e ele morreu ali mesmo, ao lado da arca de Deus (v. 7). Esta afirmação sempre tem deixado os leitores do texto frustrados e confusos. Por que o Senhor feriria de morte um indiví­ duo que simplesmente tocou a arca acidentalmente ? Até Davi ficou irado com Deus e trocou o nome do lugar para Perez-Uzá (“a explosão contra Uzá”) para imortalizar o acontecimento. A maioria dos estudiosos olha para a passagem paralela em 1 Cr 13.1-14 para entender este acontecimento (Evans, 2003, p. 162). De acordo com Crônicas, Uzá tratou a arca com irreverência e, portanto, merecia um castigo severo. O texto também nota que Davi temeu ao Senhor após esta tremenda demonstração de poder (2 Sm 6.9). O texto não menciona que Davi temesse ao Senhor até o momento deste incidente. Será que isto foi um despertamento para Davi, que precisava ver o poder de Deus ? Humilhado por este evento, Davi perguntou: Como vou conseguir levar a arca do Se­ nhor?

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■ 10-11 Em vez de levar a arca diretamente para Jerusalém, Davi levou a arca para a casa de Obede-Edom, de Gate (v. 11). E irônico que Davi tenha le­ vado a arca para a casa de Obede-Edom por alguns motivos. Primeiro, o nome dele literalmente significa servo de Edom, embora ele não tivesse uma afiliação com o território do sudeste. Segundo, ele era geteu, que é alguém que vinha da cidade palestina de Gate. Davi teve afiliações com Gate anteriormente (1 Sm 27) e este era o território natural de Golias. Davi, mais provavelmente, tornou­ -se conhecido de Obede-Edom durante o tempo em que serviu como vassalo filisteu. Terceiro, os filisteus tiveram em posse da arca anteriormente, mas a retornaram aos israelitas. Agora um israelita buscava a ajuda de um filisteu para servir de cuidador da arca. Será que Davi queria um não israelita ou uma pessoa “neutra”, alguém que não tivesse ligação com a religião israelita, para cuidar deste objeto sagrado até que ele conseguisse descobrir o que fazer com o mes­ mo ? Infelizmente, o texto não responde a esta questão. Quarto, o texto nota que, quando Davi levou a arca para a casa de Obede-Edom, Yahweh abençoou a Obede-Edom e a toda a sua casa... por amor da arca de Deus (v. 11). Antes, o Senhor trouxera dolorosas pragas sobre os fi­ listeus enquanto a arca esteve em custódia deles, inclusive na cidade de Gate. Agora Deus traz bênçãos sobre um filisteu enquanto a arca está sob seus cui­ dados. Por que a arca agora trouxe bênção, ao invés de destruição? É possível concluir que abençoar a casa de Obede-Edom era um sinal para Davi de que ele não deveria temer o poder aterrador da arca se a mesma fosse tratada de ma­ neira adequada. Isto parece responder à questão levantada no versículo 9 sobre a sua capacidade de cuidar adequadamente da arca. I 12-13 Uma vez que foi relatado a Davi que a arca trouxe bênção para a casa de Obede-Edom, Davi foi e trouxe a arca para a cidade de Davi com gran­ de festa (v. 12). O temor que Davi experimentou antes foi substituído por um sentimento de celebração. O entusiasmo de Davi para com a arca é também capturado pela expressão levassem a arca (vãyã €ãf); o verbo aqui é causativo, indicando assim a função ativa de Davi em transportar a arca a Jerusalém. A atitude transformada de Davi em relação à arca é também testemunhada no modo como a arca foi cuidadosamente transportada para Jerusalém. O texto nota que os que levavam a arca davam seis passos, ele [Davi] sacrificava um boi e um novilho gordo (v. 13). O profundo respeito de Davi pela arca e sua preocupação com seu tratamento apropriado são evidenciados pelos sacrifícios que acompanharam a marcha litúrgica. Os sacrifícios podem ter sido feitos a fim de santificarem

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progressivamente a cidade de Jerusalém para que quando o cortejo chegasse, ela estaria pronta para receber o objeto sagrado. O texto, mais provavelmente, exagera no número de sacrifícios oferecidos, considerando que seriam necessários inúmeros bois e animais cevados (i.e., carneiros, 1 Cr 15.26; 4QSama) para realizarem esta tarefa. Isto pode ter sido feito a fim de enfatizar a atitude reverente de Davi em relação à arca, que estava indo habitar em Jerusalém. ■ 1 4 - 1 6 Enquanto a arca estava sendo transportada para Jerusalém, Davi, vestindo o colete sacerdotal de linho, foi dançando com todas as suas forças perante [Yahweh] (v. 14). O éfode de linho indica que Davi cumpria tanto a função de sacerdote e de rei no cortejo, o que não era incomum no mundo antigo do Oriente Próximo. O éfode de linho era uma vestimenta curta, de for­ ma que quando Davi dançava e saltava em redor, é possível que ficasse exposto diante dos outros que estavam acompanhando a arca. A observação sobre o éfode é pertinente ao versículo 16, que destaca que quando a arca chegou à cidade, Mical, filha de Saul, estava olhando pela janela e, vendo o rei Davi, que ia dançando e celebrando perante Yahweh, desprezou-o em seu coração.

0 Éfode Em algumas legislações sacerdotais do AT, o éfode é designado como uma vestimenta sumo sacerdotal (Êx 39.1-3). Ele é descrito como uma camiseta sem mangas (ou uma peça de roupa tipo um avental) atada ao corpo com alças no ombro. O éfode, incluindo as alças dos ombros e o cinto, tinha fios de linho fino torcidos tecidos com linha de ouro e ma­ teriais azul, púrpura e escarlate. Duas pedras de ônix eram afixadas nas alças com seis das tribos de Israel gravadas em cada uma. Montada sobre o éfode com argolas de ouro havia um peitoril feito do mesmo material de ouro, azul, púrpura e escarlate. O peitoril continha o Urim e Tumim (Êx 28.30; Lv 8.8). Fora do contexto deste material sacerdotal, o éfode também se refere a uma tanga sem ornamentos usada por funcionários cultuais como Samuel (1 Sm 2.18), os sacerdotes de Nobe (1 Sm 22.18), e o rei Davi (2 Sm 6.14). Diversas passagens também indicam que o éfode servia de uma vestimenta para cobrir algum ídolo ou outros objetos reli­ giosos localizados em cenários cultuais ou rituais (Jz 8.27; 17.5; 18.14,17­ 18, 20; 1 Sm 14.3; 21.9). O éfode podia também ser enviado para funções divinatórias, especialmente quando Davi buscava um oráculo de Deus (1 Sm 23.9; 30.7).

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No versículo 16, o texto faz alguns apontamentos importantes sobre Mi­ cal. Primeiro, Mical não é chamada de esposa de Davi, ela é simplesmente refe­ rida como a filha de Saul. Isto pode indicar que o relacionamento deles estava distante. Será que Davi e Mical tinham um relacionamento meramente políti­ co com o qual ele tinha uma conexão tangível com a família de Saul e com os membros das tribos do norte? Se assim for, aquele casamento era simplesmente por necessidade política e não baseado em amor mútuo (1 Sm 18.20, 28 so­ mente menciona que Mical amava Davi). O texto também insinua algo sobre a natureza do relacionamento deles quando nota que ela viu o rei Davi quando olhou pela janela (2 Sm 6.16). O texto não menciona que ela viu seu marido, mas um dignitário político. O texto parece confirmar nossas suspeitas. Segundo, a observação de que Mical estava olhando pela janela relembra o público-alvo da ocasião em que Mical ajudou Davi a escapar “pela janela” quando Saul e seus homens tentaram matá-lo (1 Sm 19.12). Neste contexto, ela olhava para ele a distância “pela janela” com desprezo quando ele se aproximava e entrava na cidade (Alter ,1999, p. 228). Terceiro, o texto observa que Mical desprezou a Davi em seu coração. Mais provavelmente, os sentimentos de Mical foram provocados por Davi saltar e dançar quando usava o éfode. Como mencionamos antes, aquela vestimenta curta não fornecia muita cobertura para Davi, o que permitia que suas partes íntimas fossem expostas diante do povo. A represália de Mical a Davi em 2 Sm 6.20 parece indicar isto. H 17-19 Quando a arca foi trazida para repousar na cidade, ela foi colocada na tenda que Davi lhe armara (v. 17). Esta tenda era uma habitação temporá­ ria para a arca até que Salomão construísse o templo e ela fosse colocada lá (1 Rs 6—8). Davi também ofereceu sacrifícios e ofertas além de apresentar um pão, um bolo de tâmaras e um bolo de uvas passas para a multidão que ali estava (2 Sm 6.19). Alguns eruditos têm observado que o comportamento festivo de Davi (i.e., dançar e saltar) e a apresentação dos alimentos quando do retorno da arca a Jerusalém mostra um paralelo com a celebração que os cananeus faziam a Baal após seu retorno anual de entre os mortos (Seow, 1989). Neste contexto, toda­ via, o cortejo foi modificado de forma que o transporte da arca para Jerusalém simbolizasse o retorno triunfante de Yahweh a Israel depois de muitos anos de residência em Quiriate-Jearim. A noção de que os israelitas padronizaram a chegada do Senhor baseados na celebração cananeia a Baal não deve nos turbar porque os israelitas se apropriaram do cenário e da liturgia cananeia para cele­ brarem e honrarem o Deus que eles adoravam: Jeová.

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H 2 0 - 2 2 Quando Davi voltou para sua própria casa, Mical recebeu Davi com escárnio e um pouco de sarcasmo iracundo. Ela o confrontou no versículo 20 com esta declaração: Quão honradofo i o rei de Israel\ descobrindo-se hoje aos olhos das servas de seus servos, como sem vergonha se descobre qualquer homem de BeliaL O depoimento de Mical é importante em diversos níveis. Pri­ meiro, o uso das palavras honra (nikbãd) e descobrindo-se (niglâ) é significante porque quando a arca foi inicialmente capturada pelos filisteus foi dito que a “glória/honra” (kãbôd) de Yahweh havia “ido embora” {gãlâ). Aqui, ela sarcas­ ticamente acusa Davi de honrar-se e descobrir-se na chegada da arca. O fato de que ela tenha usado esses termos aqui pode ser uma indicação do desprezo dela. Com uma jogada de palavras, ela insinuou que Davi realmente tinha rebaixado a si e a Israel, assim como quando a glória de Deus se retirou da terra quando a arca foi levada em cativeiro. Segundo, ela se referiu a Davi na terceira pessoa (“o rei de Israel”), o que reforça o escárnio dela por Davi. Mical estava com raiva porque Davi se com­ portou de modo como um indivíduo indecente, e não como o rei de Israel. A alegação de que Davi se expusera às servas é uma referência sexual, indicando que as partes íntimas de Davi podiam ser vistas pelas jovens. Ela pode não só ter sofrido um ressentimento político, mas um ciúme sexual, já que Davi se expôs para as humildes escravas (Alter, 1999, p. 229). As afirmações de Mical contra Davi não ficaram sem respostas, todavia. Davi defendeu suas ações diante de Mical, alegando que embora parecesse vulgar para ela, aquilo era uma demons­ tração de uma piedosa auto-humilhação diante de Yahweh (v. 22). I 2 3 O capítulo termina com a menção de que Mical não teve filhos, até o dia da sua morte. Davi pessoalmente deixou de conviver com ela, e assim, não teve relações sexuais com ela após este episódio. Já que Mical não produziu nenhum herdeiro para Davi, surgem as perguntas de onde sairia o sucessor de Davi. Este assunto é central na história da vida de Davi e sua família, como está registrado em 2 Sm 9—20 e 1 Rs 1—2. A PARTIR DO TEXTO A narrativa relativa ao transporte da arca para Jerusalém tem implicações teológicas importantes para o público leitor. O desejo de Davi de trazer a arca para Jerusalém fala imensamente sobre a natureza de seu reinado e de seu relacionamento com o Senhor. Ao transportar a arca para Jerusalém, Davi fez uma poderosa declaração concernente às suas prioridades como líder do povo de Deus e do caminho religioso que Israel deveria seguir. O texto registra os

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acontecimentos do capítulo 6 como um dos primeiros atos oficiais de Davi como o recém-estabelecido rei. Transportar a arca paraJerusalém não era apenas um pensamento posterior por parte de Davi, nem um ato de conveniência política. Davi primeiro procurou honrar o Deus que o havia levado até aquele ponto em sua vida e a reconhecer a fidelidade e soberania de Deus sobre Israel (Brueggemann, 1990, p. 248). A arca representava uma expressão tangível da presença de Deus, e o ato de abrigá-la em Jerusalém permanecia como um símbolo de que Deus iria habitar continuamente no coração da nação e iria ser honrado por seu rei e pelo povo. Davi também estava no ápice de sua vida pessoal e de sua carreira políti­ ca quando fez esta proposta religiosa. Teria sido tanto tentador quanto fácil para Davi se esquecer de Deus ou deixar de valorizar a Deus quando estivesse desfrutando daquele sucesso tão grande. A conscientização de Davi quanto à presença de Deus e de Seu auxílio em sua vida não estava pressuposta em suas circunstâncias ou situações pessoais. Ao honrar a Deus durante os períodos abençoados de sua vida, e não só nos momentos de angústia quando precisava de Deus, Davi viveu de acordo com as exortações encontradas em Deuteronômio 8.11-18: Tenham o cuidado de não se esquecer do Senhor, o seu Deus, deixando de obedecer aos seus mandamentos, às suas ordenanças e aos seus de­ cretos que hoje lhes ordeno. Não aconteça que, depois de terem comido até ficarem satisfeitos, de terem construído boas casas e nelas morado, de aumentarem os seus rebanhos, a sua prata e o seu ouro, e todos os seus bens, o seu coração fique orgulhoso e vocês se esqueçam do Se­ nhor, o seu Deus, que os tirou do Egito, da terra da escravidão. Ele os conduziu pelo imenso e pavoroso deserto, por aquela terra seca e sem água, de serpentes e escorpiões venenosos. Ele tirou água da rocha para vocês, e os sustentou no deserto com maná, que os seus antepassados não conheciam, para humilhá-los e prová-los, a fim de que tudo fosse bem com vocês. Não digam, pois, em seu coração: ‘A minha capacidade e a força das minhas mãos ajuntaram para mim toda esta riqueza’. Mas, lembrem-se do Senhor, o seu Deus, pois é ele que lhes dá a capacidade de produzir riqueza, confirmando a aliança que jurou aos seus antepas­ sados, conforme hoje se vê. Embora estas palavras estejam registradas como instruções de Moisés aos filhos de Israel, Davi encarna a mensagem contida nelas. Ele não se exaltou,

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nem ostentou seu novo poder arrogantemente, nem falhou em se lembrar de que foi Deus que tornou possível que ele se tornasse rei sobre o povo de Israel. A resposta de Davi não era de arrogância (i.e., minha força realizou isto), mas de humilde dependência e gratidão por tudo o que Deus havia feito por ele. Por meio das ações de Davi, nós somos relembrados da importância da exortação de Cristo de buscarmos primeiro o Reino de Deus e a sua justiça (Mt 6.33). Em todos os nossos empreendimentos pessoais, nós somos chama­ dos para fazer de Deus a prioridade em nossa vida. Ao reconhecermos a Deus primeiro em tudo o que fizermos, estamos reconhecendo que Deus é a provi­ são e a graça que tornam tudo possível. É especialmente importante que nos lembremos de Deus e reafirmemos a nossa dependência nele durante as fases de bênçãos e alegria. Durante estes momentos, torna-se fácil ficarmos autoconfiantes, crendo erroneamente que a nossa própria força e engenhosidade nos trouxe o sucesso. O verdadeiro teste da nossa devoção, dependência e gratidão a Deus nem sempre acontece durante os momentos de provação, mas também naquelas ocasiões em que a vida é boa.

L. Deus faz uma aliança com Davi (7.1-29) POR TRÁS DO TEXTO O livro de 2 Samuel 7 representa o clímax da história da ascensão de Davi ao reino quando Deus estabelece uma aliança especial com Davi e sua casa. A aliança davídica representa um desvio de algumas outras alianças referidas no AT. A aliança com Nóe era universal e era pertinente à humanidade em geral (Gn 8—9). A aliança abraâmica incluía promessas de terra e de descendentes (Gn 15; 17), e a aliança mosaica era uma aliança condicional que foi media­ da por Moisés em favor da comunidade israelita (Ex 20—23; Dt 12—28). A aliança de Deus com Davi era incondicional e centrada na garantia da dinastia davídica. O capítulo contém duas importantes seções. A primeira (2 Sm 7.1-17) inclui um oráculo do profeta Natã que se refere ao estabelecimento formal da aliança em si. A segunda (v. 18-29) inclui a oração de Davi de gratidão e louvor a Deus em resposta às promessas que Deus fez a Davi e à sua família. Os eruditos há muito têm notado que este capítulo tem uma história literária complicada na qual um material de fonte mais antiga foi suplementado com

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acréscimos editoriais mais recentes e composições deuteronomistas. Embora o pedido de construir um templo (v. 2) apareça no início do capítulo, o estrato mais antigo (v. 1-7, 11b, 16, 18-21, 25-29) expressa sentimentos contrários ao templo e está primariamente preocupado com a edificação de uma dinastia du­ radoura para a casa de Davi (Von Rad, 1962, p. 310-14; Schniedewind, 1999, p. 29-39). Foi somente mais tarde que o editor do período de Salomão (ou mais tarde) incluiu o material (especialmente v. 12-14) relativo à construção do templo (McCarter, 1984, p. 220-23) de forma que o mesmo apontasse para as realizações do herdeiro de Davi. Embora essa reconstrução separe os assun­ tos da edificação do templo e da edificação da dinastia em duas seções, ambas geralmente caminhavam lado a lado no mundo antigo. NO TEXTO

1. O oráculo de Natã para Davi (7.1-17) I 1 -3 Esta unidade é prefaciada no versículo 1 com as seguintes palavras: estando o rei em sua casa, Yahweh lhe deu descanso de todos os seus inimigos em redor. Esta observação não só indica que Deus deu a Davi sucesso militar (i.e., descanso), mas também faz referência à casa do rei na qual Davi estava residindo. A palavra casa (bayit) neste contexto não é uma referência específica ao palácio de Davi, mas é usada figurativamente aqui e no decorrer do restante desta unidade como um termo que simbolizava a família de Davi. Nos versí­ culos 1-17, o texto cuidadosamente constrói um jogo de palavras que reforça aquilo que Deus desejava fazer para Davi. Davi também demonstrou preocupação com a edificação da casa do Se­ nhor. Já que o rei habitava em um palácio, a arca também precisaria de uma habitação permanente. Embora a arca residisse no santuário de Siló nos dias de Samuel (1 Sm 3), o santuário ali mostrou ser uma local de habitação temporá­ ria, e não uma casa permanente. Davi estava bem abrigado na cidade-capital e, portanto, compelido a providenciar uma estrutura mais permanente na qual abrigasse a arca. Era prática comum no antigo Oriente Próximo que um rei construísse um templo numa cidade que ele conquistasse como sinal de respei­ to e reverência ao deus que ele adorasse. Davi não era diferente. O templo era um símbolo da presença divina, e ele garantia a benevolência divina para com o rei e sua família (Hamilton, 2004, p. 316). Davi até recebeu respaldo do pro­ feta Natã, que disse ao rei, Vai efaze tudo quanto está no teu coração, porque Yahweh é contigo (2 Sm 7.3).

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■ 4 -9 a O desejo de Davi de construir um templo e a mensagem de Natã a Davi nos versículos 2,3 estão em forte contraste com a palavra que Yahweh entregou a Davi por intermédio de Natã nos versículos 4-17. Com a fórmula típica de mensagem {assim diz Yahweh) Yahweh entregou uma palavra a Natã à noite para que ele a entregasse a Davi (v. 5). Naquele discurso, Yahweh que­ ria que Natã transmitisse diversas mensagens importantes a Davi. Primeiro, Yahweh se referiu a Davi como meu servo (v. 5). A própria expressão meu servo é significante porque somente é aplicada a mais um indivíduo na H.D.: Moisés (Js 1.2). Já que o texto liga Davi diretamente a Moisés, uma compara­ ção entre os dois líderes é feita: Moisés presidiu sobre o povo no monte Sinai; Davi reinou sobre o povo de Israel em Jerusalém. Logo, o texto antecipa que Davi seria o líder do povo de Deus em pé de igualdade com alguém da catego­ ria de Moisés. Segundo, o Senhor lembrou a Natã que Ele não havia habitado em nenhu­ ma casa (i.e., templo) desde o momento em que tirou os israelitas do Egito até a época de Davi (2 Sm 7.6). Yahweh havia habitado em uma tenda e em um tabernáculo quando os israelitas peregrinaram pelo deserto e se estabeleceram na terra de Canaã. Mais importantemente, o Senhor não desejava ter uma casa e nunca pediu para ter uma. Terceiro, Yahweh reiterou que, em vez disto, Ele construiria uma casa {bayit) para Davi. Ao fazer isto, Yahweh enfatizava Sua função em conduzir Davi da posição de pastor de ovelhas para líder do povo de Deus. O termo usado aqui para líder {nãgid) (às vezes traduzido como “príncipe”) é diferente do termo para “rei” {melek). O termo nãgid enfatizava a função protetora do lí­ der que presidia sobre o “povo de Deus”. Enquanto que “rei” representava uma forma de controle e poder centralizado que era frequentemente mal adminis­ trado e abusivo. A imagem e a linguagem pastoril é também significativa aqui porque os grandes líderes de Deus começaram como pastores antes de assu­ mirem a função de liderança (veja comentários em 2 Sm 5.2). Esta observação “prenuncia” a grandeza de Davi como um líder e também o conecta a Moisés, que também foi pastor de ovelhas antes de se tornar o líder do povo de Deus. Yahweh também relembrou a Davi que: Sempre estive com você por onde você andou (v. 9). A frase Sempre estive com você {vã hyeh) está baseada na forma do tempo imperfeito do verbo {hãyah) em hebraico. O verbo não só de­ nota existência (“ser”) mas também se relaciona com o nome divino “Yahweh”, já que deriva do mesmo verbo. Esta é a mesma linguagem que Yahweh usou quando falou com Moisés na sarça ardente (Êx 3.12 = “Eu estarei com você”).

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Logo, o texto aponta para outro paralelo que faz uma conexão de Davi com a figura de Moisés. I 9 b - 1 1 Yahweh também fez algumas promessas importantes a Davi: Ele faria Davi tão famoso quanto os homens mais importantes da terra. E pro­ videnciarei um lugar para Israel, o meu povo, e os plantarei lá, para que te­ nham o seu próprio lar e não mais sejam incomodados. (2 Sm 7.9b, 10). A promessa de um grande nome e de uma nação também conecta Davi com o patriarca Abraão. Semelhantemente a Davi, Deus prometeu fazer um grande nome para Abraão (Gn 12.2) e providenciar uma terra para os seus descen­ dentes (Gn 15; 17). A conexão entre essas duas grandes figuras é significante porque Deus cumpriria Suas promessas a Abraão por intermédio de Davi. Yahweh também prometeu edificar uma casa (2 Sm 7.1 lb) para Davi. Ao usar o termo casa, Deus não tinha a intenção de construir uma estrutura física para Davi, como um palácio, mas uma dinastia duradoura, uma família. No mundo antigo, era comum se referir à família real ou à dinastia como uma casa. Referências sobre “casa de Davi” já foram descobertas no registro arqueológi­ co. A famosa inscrição de Tel Dan contém a única referência à “casa de Davi” fora do texto bíblico (Biran e Naveh, 1993, p. 81-93). H 1 2 - 1 4 a Ao edificar uma casa para Davi, Deus prometeu levantar um filho após Davi e estabelecer o seu reino (v. 12). O leitor aqui não pode deixar de enxergar as referências a Salomão, embora o nome dele não seja mencionado especificamente. Deus também proclamou que Salomão edificaria a casa de Yahweh (v. 13), uma “prefiguração” dos eventos encontrados em 1 Rs 5—8. Deus não só prometeu um filho, mas também fez provisão para a continuidade da casa de Davi no sentido de que o reino de Davi seria estabelecido para sem­ pre Ç ad õlãm). A promessa de descendentes também recorda a promessa de Deus a Abraão, na qual Ele prometeu prover descendentes para ele também. Logo, na aliança davídica, os dois elementos mais proeminentes da aliança abraâmica se intersectam: terra e descendentes. Yahweh também falou sobre os descendentes de Davi em termos de filia­ ção: Eu serei seu pai, e ele será meu íilho. A referência ao rei como filho de Deus era um tema comum por todo o Oriente Próximo. Embora o termo não se destine a ser tomado literalmente, e embora Deus tenha gerado o rei, ele realmente implicava um relacionamento especial entre Deus e o monarca no sentido de que Deus escolheu o rei para reinar em Seu lugar (SI 2.7). O rei, por sua vez, deveria reinar sobre o povo com justiça e retidão e preservar a ordem que Deus estabeleceu na criação (SI 89.1-37).

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■ 14 b -15 A aliança davídica também era incondicional em natureza. O texto menciona que mesmo que um dos filhos de Davi cometesse iniqüidade, Deus poderia castigar o filho, mas Deus nunca removeria o seu amor inabalá­ vel pela casa de Davi e nunca arrancaria de Davi o seu reino. A promessa seria testada ao longo da história do reino davídico, e houve ocasiões em que Deus castigou o descendente de Davi, mas o território de Judá e a linhagem davídica nunca foram tirados (1 Rs 11.11-13). Este aspecto incondicional da aliança se distingue da aliança mosaica, que era condicional. Na aliança mosaica, se o povo desobedecesse a Deus, ele enfrentaria um severo castigo, incluindo a expulsão da terra (Dt 28.25-37). H 1 6 - 1 7 Como um aspecto final da aliança davídica, Deus também garan­ tiu a Davi que o seu reino duraria para sempre: A tua casa e o teu reino serão estabelecidospara sempre diante de ti; teu trono será estabelecido para sempre. Esta declaração abrange além dos filhos de Davi para se referir a todos os seus descendentes. A aliança davídica, porém, foi amargamente testada no exílio, e provocou muito questionamento e reavaliação sobre a justiça, misericórdia, e integridade de Deus durante a catástrofe (SI 89.38-52). Os escritores do Novo Testamento, todavia, encontraram nas promessas de 2 Sm 7 uma previsão mes­ siânica e o cumprimento desta aliança na vida de Jesus. Os pais da Igreja primi­ tiva viram referências nestes versículos não só acerca de Cristo, mas do reino indestrutível de Cristo também (Frank e Oden, 2005, p. 351-52).

2. A oração de Davi (7.18-29) Estes versículos seguem logo após o estabelecimento da aliança davídica. A colocação deste texto é lógica porque funciona basicamente como uma ora­ ção de louvor e gratidão em resposta ao que Deus havia feito por Davi. Eru­ ditos modernos encontraram, nestes versículos, várias camadas de atividades redacionais. Os versículos que englobam a maior parte da oração (v. 18-21, 25-29) devem ser considerados em conjunto e atribuídos à mesma fonte de acordo com os estudiosos modernos (Campbell and 0 ’Brien, 2000, p. 291; Noth 1991, 89). A parte central da oração (v. 18-24), todavia, tem sido atribu­ ída ao trabalho do(s) editor(es) Deuteronomista(s). A oração está basicamente dividida em duas partes: louvor ao Senhor (v. 18-24) e petição (v. 25-29). Duas subunidades dividem a primeira seção em unidades menores. ■ 18-21 Na primeira parte, Davi louvou a Yahweh pelos Seus tratamentos com Davi e sua casa. O versículo 18 indica que Davi assentou-se diante do

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Senhor. Presumivelmente, Davi estava na tenda (6.17; 7.2) e em frente à arca quando fez a oração. Davi enfatizou sua posição humilde na oração quando afirmou: Quem sou eu, ó Soberano Senhor, e o que é a minha família, para que me trouxesses a este ponto? As palavras de humildade de Davi se asse­ melham ao diálogo de Gideão, que lembrou a Deus de sua condição humilde quando Yahweh o escolheu como juiz (Jz 6). Como parte de sua humilde res­ posta, Davi reconheceu o papel de Yahweh em conduzi-lo até aquele ponto em sua vida. O verbo “trouxesses” (hãbVõtãni) é causativo, ressaltando a função de Yahweh na ascensão de Davi ao trono. Logo, foi o Senhor que trouxe gran­ deza a Davi, e não o contrário. ■ 22-24 Na segunda subunidade Davi novamente reconhece a grandeza de Yahweh. Nesta parte da oração, entretanto, a grandeza de Yahweh está baseada naquilo que Ele havia feito por Israel, o povo de Deus. Yahweh não só redimiu o Seu povo e expulsou as nações e seus deuses de diante dos israelitas, mas tam­ bém estabeleceu o povo, e este reconhecia Yahweh como Deus. ■ 25-29 Ap ós o louvor de Davi a Yahweh nos versículos 18-24, o texto muda para uma petição. Nesta segunda parte da oração, Davi essencialmente pediu a Deus para cumprir as promessas que Ele havia feito a Davi, servo de Yahweh. Davi pediu a Deus para garantir que o seu trono fosse estabelecido diante de ti (v. 26) e para abençoar a casa de teu servo, para que ele possa continuar para sempre diante de ti (v. 29). A PARTIR DO TEXTO Este capítulo relembra o leitor de que Deus busca estabelecer relaciona­ mentos de aliança com a Sua criação. A aliança de Deus com Davi é uma entre as quatro (noética, abraâmica, mosaica, davídica) maiores alianças que estão representadas no Antigo Testamento. Em cada um desses casos, Deus foi quem procurou a humanidade a fim de estabelecer esses contratos especiais de com­ promisso. Na aliança de Deus com Davi, Deus pôde cumprir as promessas fei­ tas ao patriarca Abraão ao garantir a Davi um grande nome (7.9; Gn 12.2), terra (2 Sm 7.10; Gn 13.14,15; 15.18-20; 17.18), e descendentes (2 Sm 7.12; Gn 15.5; 17.5,6). Este texto não só enfatiza as glórias do reino de Davi, mas também fala da fidelidade e confiabilidade do Deus que fez essas promessas a Abraão e Davi. Em um relacionamento de aliança, ambas as partes são obriga­ das a manter seus respectivos deveres. O AT reafirma ao longo de suas páginas

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que Deus levava a sério as obrigações de Sua aliança e cumpria as demandas desses relacionamentos, mesmo em tempos de incertezas e desafios. O outro aspecto da aliança davídica que é importante notar é a promessa de Deus de prover a Davi uma dinastia eterna (2 Sm 7.12,16). A promessa de Deus a Davi de um reino eterno foi severamente ameaçada durante o exílio babilônico quando o rei davídico foi levado em cativeiro (2 Rs 24—25). Para muitos israelitas o exílio mudou a sua fé em Deus e sua capacidade de manter uma lealdade de aliança quando o povo de Deus estava espalhado por todo o mundo do Oriente Próximo. Mesmo no exílio, entretanto, sinais de esperança cintilavam no horizonte. O rei davídico, Jeoaquim, foi solto da prisão e permi­ tido cear à mesa do rei (2 Rs 25.27-30), e os líderes davídicos Sesbazar (Ed 1.8) e Zorobabel (Ed 2.2) voltaram para a Judeia após o exílio. Assim Deus man­ tinha a Sua palavra na mente dos judeus (Ag 2.21-23) enquanto a linhagem davídica permanecia intacta. Embora a comunidade pós-exílica não tivesse um rei davídico para liderá­ -la, as promessas do texto da aliança em 2 Sm 7 continuavam a prover esperan­ ça de que o rei davídico, o Messias, surgiria novamente. No final do período intertestamentário e no primeiro século da era cristã, a comunidade judaica acreditava que o Messias surgiria como um líder político e ajudaria a restau­ rar a independência judaica dos suseranos estrangeiros. Na comunidade cristã primitiva, todavia, os crentes encontraram em Jesus o cumprimento das pro­ messas de Deus na aliança davídica. Jesus descendia de Davi (Mt 1.1-17), era chamado de “filho de Davi”, e apresentou um reino eterno conhecido como “o Reino de Deus”. Logo, Jesus, assim como Davi, cumpriu as promessas de Deus feitas a Abraão (descendência e terra), porém, de uma maneira mais perfeita. Aqueles que creem em Cristo agora são chamados de “filhos de Abraão”. Além do mais, os cristãos perseveram na esperança da herança de uma terra; não um espaço físico aqui na terra, mas um lar eterno no céu.

M. As guerras e a administração de Davi (8.1-8) POR TRÁS DO TEXTO Este capítulo representa o episódio final relativo à glória do reino de Davi. O tema deste capítulo, contudo, está centrado nas realizações e conquistas mi­ litares de Davi. Dentro dos versículos 1-14, o texto apresenta um sumário dos vários territórios que Davi colocou sob seu controle enquanto rei de Israel. O

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relatório indica que Davi conseguiu estender sua influência, e a de Israel, além das fronteiras até os territórios vizinhos. O texto se desloca para as regiões do sudoeste (v. 1), o leste (v. 2), o norte (v. 3-11), e para o sul (v. 13,14). Estas vitórias parecem “cumprir” a promessa de Deus feita a Davi e Israel (7.10,11). Em apenas dois pontos do texto (8.6b, 14), todavia, o narrador/editor chama a atenção para a função do Senhor nas vitórias de Davi. Alguns até já se pergun­ taram se este capítulo critica Davi, que se tornou obcecado com a edificação do império. A segunda parte (v. 15-18) é uma breve lista dos oficiais de Davi. Os estu­ diosos são da opinião de que esta informação se derivou das fontes de arquivo e, logo, tem em si uma qualidade “oficial”. A colocação deste material é com­ preensível à luz dos versículos 1-14 porque ele precisava de oficiais burocratas para ajudá-lo em seu império crescente. A lista de oficiais nos versículos 15-18 é semelhante àquela encontrada em 20.23-26 embora com algumas mínimas exceções. Este último registro burocrático é de um período posterior no reina­ do de Davi, já que mostra evidência de expansão. NO TEXTO

1. Relatório das guerras de Davi (8.1-14) H 1 Na lista das conquistas de Davi, os filisteus são mencionados primeiro. O texto nota quefoi, depois disso, que Davi matou osfilisteus. O anteceden­ te de depois disso é incerto. Alguns eruditos argumentam que este versículo provavelmente se conecta melhor com os acontecimentos em 5.17-25 onde Davi lutou contra as forças filisteias em Refaim e as afastou. Esta opinião pode estar correta, mas é impossível dizer com certeza. É importante também notar que, dos três verbos usados neste versículo, Davi é o sujeito de todos: Davi derrotou os filisteus, subjugou-os, e tirou do controle deles. A sintaxe não só indica que Davi gostou do sucesso contra os filisteus, mas o segundo verbo ('vãyãkní *êm) é causativo, o que enfatiza a função ativa que ele desempenhou em derrotá-los. Também, a palavra “subjugou” indica que Davi basicamente era capaz de dominá-los. Os filisteus são mencionados apenas poucas vezes na H.D. (1 Rs 4.21; 15.27; 16.15) depois do reinado de Davi, indicando que ele conseguiu torná-los ineficazes. O texto também menciona que ele tomou Metegue-Amá dos filisteus. Embora a identificação desta cidade seja incerta, o termo Metegue literalmen­ te significa “rédea” e Amá significa “cotovelo ou antebraço”. Primeiro Crônicas

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18.1 associa o local com a cidade de Gate e seus arredores, e a LX X simples­ mente diz “o território demarcado” Então, uma leitura mais satisfatória per­ manece elusiva. I 2 A seguir, Davi feriu os moabitas. A razão pela qual Davi atacou os moabitas permanece um mistério, considerando que ele tinha laços familiares com a região, e o rei de Moabe parecia ter sido amigável com ele anteriormente (1 Sm 22). E possível deduzir que quando o reino de Davi se expandiu, ele viu Moabe como uma potencial ameaça à segurança de Israel. A crueldade de Davi contra os moabitas é destacada quando ele mediu-os com uma corda e ele osfez deitar-se no chão; mediu dois pedaços defio para aqueles queforam mortos e uma medida para aqueles queforam autorizados a viver. Davi marcou alguns dos prisioneiros para serem executados enquanto que os sobreviventes se tor­ naram vassalos e foram obrigados a pagar tributo. I 3 - 8 Com as fronteiras sudoeste e leste de Israel seguras, o texto acompa­ nha a deslocação de Davi para o norte. O Livro de 2 Samuel 8.3 diz que Davi derrotou Hadadezer, filho de Reobe, rei de Zobá. Arã, assim como Israel, era uma potência em crescimento naquela época. No décimo século existiu um vácuo de poder por todo o Oriente, e esses dois reinos procuravam preenchê­ -lo. O texto indica que Davi levou vantagem nesta luta quando capturou 1.700 cavaleiros e 20.000 soldados de infantaria (v. 4). Davi também desabilitou os carros de combate de Hadadezer jarretando todos, praticamente 100 de seus cavalos. Hadadezer também recebeu ajuda dos arameus de Damasco, mas Davi conseguiu ferir 22.000 soldados do reforço (v. 5). Davi instalou guarnições perto de Damasco, a capital de Arã, e o povo ali se tornou seu vassalo (v. 6). Davi também tomou despojos de suas conquistas, os escudos de ouro de Hada­ dezer e bronze de duas cidades de Hadadezer: Tebá e Berotai (v. 8). A versão da LX X diz que Salomão fez o mar de bronze, os pilares, as pias de lavar, e todos os vasos do templo com o bronze que Davi capturou. I 9 - 1 2 A reputação de Davi continuava a crescer na região à medida que sua conquista militar se escalava. O texto observa que Toú, rei de Hamate . . . mandou seu filho Jorão . . . para saudá-lo e parabenizá-lo por sua vitória (v. 10). Hadadezer era inimigo do rei Toí, e, logo, ele estava grato por Davi tê-lo derrotado. Como evidência de sua gratidão, Toí enviou a Davi todo tipo de utensílios de prata, de ouro e de bronze (v. 10). H 1 3 - 1 4 De acordo com os versículos 1-12, Davi derrotou ou subjugou nada menos do que quatro ameaças contra Israel. Embora o texto enfatize o su­ cesso de Davi, a falta de referências à ajuda de Deus fora as breves observações no versículo 6b e no versículo 14b é bem visível. A afirmação no versículo 13

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de quefez um nome para si mesmo também ressalta a função de Davi em seus triunfos. A linguagem implica que Davi se tornou grande pelos seus próprios esforços, o que é contrário ao que Deus disse a Davi por intermédio do profeta Natã anteriormente (7.9). A linguagem em 8.13 também é semelhante àquela da cena da Torre de Babel (Gn 11.4) na qual o povo queria “fazer um nome para si”. Então, enquanto, na superfície, o texto intenta glorificar as realizações de Davi, suas subcorrentes podem ser interpretadas como uma crítica também.

2. A administração de Davi (8.15-18) ■ 15-18 0 capítulo termina com uma observação sobre a administração de Davi. Davi estabeleceu um impressionante reino que requeria a supervisão de oficiais especializados. O texto começa com a referência de que Davi reinou sobre todo o Israel (v. 15). Baseado nos versículos 1-14, seria correto dizer que a influência de Davi se expandiu além das fronteiras de Israel. Davi também administrava o direito e a justiça a todo o povo, o que era uma das principais responsabilidades de um rei. Como o líder de Deus, esperava-se que o rei man­ tivesse a ordem e a estabilidade que Deus constituiu desde a criação (Mellish, 2009, p. 168-76). A fim de manter a sociedade civil, Davi recrutou a ajuda de diversos indi­ víduos especializados para governar o reino. Davi colocou seu sobrinho (1 Cr 2.16), Joabe, como general do exército. A reputação de Joabe como guerreiro era bem conhecida, pois ele se distinguia no campo de batalha (2 Sm 3.12; 12.26,27; 1 Cr 11.6). Josafá era o cronista, ou secretário. Sua maior função seria na corte, onde ele manteria Davi informado, aconselhando-o, e comuni­ cando as ordens do rei (Baldwin, 1988, p. 224). Zadoque, o filho de Aitube, e Aimeleque, filho de Abiatar, funcionavam como sacerdotes de Davi. Zadoque aparece pela primeira vez, e suas origens estão cercadas de mistério. O Livro de 1 Crônicas 6.50-53 inclui Aitube na linhagem de Zadoque, mas o problema é que o avô de Aimeleque também era chamado de Aitube (1 Sm 22.20). Para resolver este problema, os estudiosos propuseram que Zadoque fosse sacerdote cultuai jebuseu antes que Davi conquistasse Jerusalém, depois fez parte da administração de Davi quando ele se tornou rei (Rowley, 1939, p. 113-14). Abiatar havia estado com Davi desde que este escapou de Saul (1 Sm 22.20), então, não é surpresa que Davi tenha feito Aimeleque sacerdote. Alguns têm argumentado que os nomes estão erroneamente revertidos, de forma que Abiatar deveria estar listado como o

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sacerdote. Esta é mais provavelmente a verdade, baseado em outros textos (1 Sm 22.20; 23.6; 30.7) que listam Aimeleque como pai de Abiatar. Seraías, também chamado de Seva (2 Sm 20.25), era o escrivão, uma posi­ ção comparada com o oficial egípcio que servia como secretário do rei. Benaia, filho de Joiada, era um soldado valente (2 Sm 23.20-23) que supervisionava os queretitas e os peletitas. Os queretitas e peletitas constituíam a guarda pes­ soal de Davi. Eles eram mercenários estrangeiros associados com o território de Creta (Albright, 1921, p. 187-94; Montgomery, 1951, p. 86). Eles tiveram uma importante função na coroação de Salomão no final da vida de Davi (1 Rs 1.38). A referência aos filhos de Davi como sacerdotes indica que o sacerdócio ainda não era hereditário. Crônicas os descreve como “oficiais superiores” (1 Cr 18.17). A PARTIR DO TEXTO A nossa reação inicial ao ler este capítulo, especialmente os versículos 1-14, sugere que Davi era um grande líder e um guerreiro bem-sucedido. Ele conseguiu estender o seu reino a áreas além da terra de Israel, estabelecer rela­ ções vassalas com os países vizinhos, e construir sua reputação entre os povos da região. Todo o sucesso que Davi desfrutou parece ter vindo do Senhor que dava vitórias a Davi em todos os lugares aonde ia. É significante notar, entretanto, que o foco de Davi muda de ser rei sobre Israel para se tornar um edificador de império. Há uma crescente tendência de se tornar consumido pela realização pessoal, a acumulação de poder, e uma inclinação rumo à autodependência. Um exame cuidadoso dos verbos deste texto revela que Davi é o sujeito da maioria deles, enfatizando assim as reali­ zações de Davi acima da função de Deus no texto (v. 6b, 14b). Dentro deste contexto, a afirmação de que D avifez um nome para si mesmo (v. 13) levanta a preocupação de que Davi esteja tentando se tornar um homem realizado por meio de seus próprios esforços, trabalho árduo, e iniciativa. Esta frase é também usada para se referir às pessoas que construíram a tor­ re de Babel: “deixe-nos. . . fazer um nome para nós mesmos” (Gn 11.4). As pessoas de Gênesis queriam alcançar grandeza e renome por meio de sua pró­ pria imaginação e engenhosidade. Como o texto revela, porém, o orgulho e a arrogância delas precederam sua queda, e Deus as humilhou confundindo sua linguagem.

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O texto parece estar insinuando a mesma mensagem a respeito de Davi. Na história de Davi, o capítulo 8 representa o ponto alto de sua carreira e rea­ lização pessoal. Depois deste texto, a vida de Davi andará, geralmente, numa trajetória declinante no decorrer da narrativa. A busca pelo poder e conquista que é insinuada neste texto será exibida nos tipos de comportamento que le­ varam às suas indiscrições morais, humilhação pessoal, e sofrimento. A vida de Davi é um lembrete para todos nós de que o orgulho vem antes da destruição (Pv 16.18).

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IV. A SUCESSÃO DO TRONO DE DAVI (9.1 - 20.26)

A. O tratamento de Davi com a casa de Saul (9.1­ 13) POR TRÁS DO TEXTO Este capítulo começa com uma unidade mais ampla que se estende até o capítulo 20. Enquanto o capítulo 8 funciona como um resumo das conquistas de Davi e a pedra angular da história da ascensão de Davi ao trono, o capítulo 9 inicia uma nova fase na vida de Davi. Os eruditos têm geralmente cognominado esta unidade de Narrativa da Sucessão porque ela focaliza a questão sobre qual dos filhos de Davi o sucederia no trono (veja a Introdução). O capítulo 9 preenche uma função ímpar na estrutura geral da Narrativa da Sucessão no sentido de que tenta responder a uma importante pergunta: “Como Davi tratará os sobreviventes membros da casa de Saul agora que ele é o rei de Israel?” Diferentemente dos outros capítulos desta unidade, o capítulo 9 realmente retrata Davi em uma luz positiva, quando ele demonstra bondade a Mefibosete, filho de Jônatas, ao convidá-lo para ficar com o rei.


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Os críticos podem argumentar, todavia, que esta é a maneira de Davi “ficar de olho” no herdeiro que sobrara da casa de Saul. Na perspectiva sincrônica, a disposição de Davi em ajudar a Mefibosete se torna especialmente importante durante a revolta de Absalão nos capítulos 11— 20 (16.1-4; 19.24-30), contudo, do ponto de vista redacional, o capítulo 9 presu­ me que os acontecimentos de 2 Sm 21.1 ff. já houvessem acontecido. Logo, este material é mais provavelmente arranjado tematicamente e não cronologicamente. NO TEXTO O capítulo sobre Mefibosete pode basicamente ser dividido em duas par­ tes menores (v. 1-5; v. 6-13). Na primeira parte, Davi essencialmente procurou saber sobre os sobreviventes da casa de Saul, enquanto, na segunda, Davi faz preparações para cuidar de Mefibosete e sua família. H 1 -5 A primeira parte inicia com uma pergunta de Davi no versículo 1: Existe alguém restante da casa de Saul? Esta pergunta sugere que Davi não sabia se algum membro da família de Saul ainda estivesse vivo. Uma leitura sincrônica do texto indica que Saul e seus filhos que estavam com ele no monte Gilboa haviam morrido (1 Sm 31) e Is-Bosete havia sido assassinado (2 Sm 4). Entretanto, outros membros da família de Saul ainda restavam, como indica 2 Sm 21. Esta informação fornece a razão pela qual os estudiosos redacionais postulam que o capítulo 9 se refere aos acontecimentos que ocorreram após o capítulo 21. É incerto por que Davi queria saber se restava algum sobrevivente da casa de Saul. Uma razão pode incluir a noção de que ele queira estar ciente de quais­ quer reivindicantes em potencial do trono que pudessem surgir enquanto ele estava reinando. O texto, porém, oferece outra razão: Davi queria mostrar mi­ sericórdia a qualquer sobrevivente membro da família de Saul. Davi pessoal­ mente reconheceu isto quando afirmou: eufarei de bondade para com ele por conta deJônatas (9.1). Embora Davi não especificasse o indivíduo aqui, ante­ cipa-se que seja Mefibosete. (Veja nota em 4.4 sobre seu nome Meribe-Baal). A bondade de Davi para com um membro da casa de Saul estava baseada na aliança de Davi com Jônatas, filho de Saul. A palavra bondade (hesed) indica a noção de aliança de lealdade e, logo, relaciona-se à obrigação de Davi como seu amigo. Davi também estendeu hesed aos seus aliados políticos, como Hanum (10.2). Davi mandou chamar um servo da casa de Saul a fim de encontrar resposta para esta pergunta. O servo, que se chamava Ziba, veio a Davi e dirigiu-se a

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ele com respeitosa cortesia: teu servo (9.2). Davi perguntou a Ziba se havia alguém ainda da casa de Saul a quem ele pudesse demonstrar bondade. Ziba mencionou o filho de Jônatas, mas também fez referência à sua deficiência: ele era aleijado dospés (v. 3). Ziba pode ter feito uma rápida alusão à incapacidade de Mefibosete a fim de minimizar quaisquer noções de que ele pudesse se tor­ nar uma ameaça política para Davi. O filho de Jônatas não é mencionado por nome aqui, ele é somente identificado como sendo da casa de Maquir, filho de Amiel (v4). Maquir morava do lado leste do Jordão e mais tarde se tornou um valioso aliado de Davi durante a revolta de Absalão (17.27). Embora o servo fale muito sucintamente neste contexto, a atitude de Ziba em relação a Davi será bem diferente posteriormente (16.1-4; 19.27-30). Ziba também revelou a Davi que o filho de Jônatas estava morando em Lo-Debar. Esta cidade estava localizada do outro lado do Jordão (Js 13.26) logo abaixo do Jaboque, perto da região de Maanaim, a antiga capital de Is-Bosete (Hertzberg, 1964, p. 300). Mefibosete estava morando ali por causa da proximidade com Maanaim, o centro político do governo de Isbaal. A bon­ dade de Davi para com Mefibosete o beneficiou pessoal e politicamente mais tarde. O povo daquela região não se esqueceu de como Davi tratou Mefibosete e, por sua vez, apoiou Davi quando ele se refugiou perto de Maanaim durante a revolta de Absalão (veja Maquir acima). ■ 6 - 1 3 Mefibosete veio a Davi e, quando chegou à presença do rei, ele caiu sobre seu rosto e inclinou-se diante dele (v. 6). O gesto de Mefibosete é o de um homem que temia pela sua vida. Ele poderia estar temeroso de que Davi viera para executar um membro da família de Saul. Mefibosete não imaginava que Davi viera para estender sua bondade ao filho de Jônatas. Ao invés de trazer retaliação a Mefibosete, Davi se ofereceu para restaurar a Mefibosete a pro­ priedade de sua família (provavelmente no território de Gibeá) e estendeu um convite para comer à mesa do rei. Comer à mesa do rei era um grande privilé­ gio (1 Rs 2.7; 18.19; 2 Rs 25.29), e isto simbolizava boas relações entre ambas as partes. O bondoso gesto de Davi provocou uma reação muito humilde e imérita por parte de Mefibosete em 2 Sm 9.8: Quem é o teu servo, para que te preocupes com um cão morto como eu? Pelo que ele sabia, ele não havia feito nada para merecer este tratamento. Davi também foi generoso com Ziba, o servo de Mefibosete, e com sua casa. Toda a terra que foi entregue de volta a Mefibosete seria usada para plantio de alimentos para a casa de Ziba. Esta unidade se encerra com a notícia de que Mefibosete tinha um filho chamado Mica (v. 12). Ironicamente, o filho e o neto de Jônatas não tinham direito ao trono, não obstante, viviam na casa do rei. Isto criou uma situação

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interessante em que as famílias de duas casas reais compartilhavam o mesmo espaço. Mefibosete, entretanto, não foi uma ameaça para Davi, já que o texto termina com a afirmação de que Mefibosete era aleijado em ambos os pés (v. 13). Qualquer leitor deste texto perceberia que a deficiência de Mefibosete o impedia de postular pelo trono. O simbolismo também é significante no sen­ tido de que a monarquia debilitada de Saul é refletida em seu neto incapaz que dependia da misericórdia de Davi para a sua sobrevivência. A PARTIR DO TEXTO Este capítulo apresenta Davi como um homem de integridade e compai­ xão. Davi se lembrou de sua aliança com Jônatas ao estender sua lealdade à casa de Jônatas como havia prometido (1 Sm 20.15,16). Como o novo rei, Davi poderia ter buscado vingança sobre qualquer sobrevivente da casa de Saul, con­ siderando o modo como Saul perseguiu Davi. Davi, entretanto, mostrou mi­ sericórdia e generosidade para com o incapaz Mefibosete ao prover para a sua família (e para a família de seu servo). O gesto munificente de Davi para com Mefibosete é mais do que impressionante à luz do fato de que suas convicções internas o pressionavam a manter o seu compromisso, e não porque ele era coagido a fazer isto. Ao cumprir as responsabilidades da aliança, Davi nos lembra da impor­ tância de sermos pessoas que cumprem a palavra. É sempre mais fácil para nós fazermos promessas aos outros do que cumpri-las. Demonstrar a capacidade de cumprir as nossas obrigações e manter as nossas promessas é um sinal de maturidade e caráter. Nós desenvolvemos a reputação de sermos fiéis e confi­ áveis quando permanecemos firmes em cumprir os nossos votos. Possuir esta qualidade não só nos beneficia em nossos relacionamentos pessoais e em nossa carreira, mas isto também testifica da presença de Cristo em nossa vida. Como crentes, é imperativo que a nossa palavra e as nossas ações sejam consistentes para que não sejamos vistos como “falsos” ou pouco confiáveis. Ao permane­ cermos fiéis à nossa palavra e cumprirmos os nossos compromissos com os ou­ tros, nós mostramos para os outros que eles podem contar conosco. Como resultado, desenvolvemos um laço de confiança com eles que, com o tempo, pode levar a um profundo relacionamento com eles e à oportunidade de com­ partilharmos a mensagem de Cristo de um modo mais pessoal.

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B. Davi e Hanum (10.1-19) POR TRÁS DO TEXTO Este capítulo é frequentemente considerado uma inserção dentro de uma história mais ampla da Narrativa da Sucessão. Um exame cuidadoso do con­ texto literário circunjacente, entretanto, sugere que o capítulo 10 sirva para fornecer o pano de fundo necessário para a história de Davi e Bate-Seba nos capítulos 11,12. Este capítulo também se conecta com o capítulo 9 no sentido de que Davi tentou mostrar bondade ou lealdade no pacto com alguém que havia perdido um ente querido que Davi conhecia. Considerações redacionais, todavia, indicam que o capítulo 10 originou-se de um contexto diferente e foi inserido aqui. A unidade começa no versículo 1, por exemplo, com a frase E aconteceu, depois disso. É difícil saber que acontecimento está sendo referido. Esta é uma fórmula temporal vaga que reflete a ordem não cronológica do texto (Alter, 1999, p. 244). Além do mais, a referência a Hadadezer como um inimigo de Davi no versículo 19 não correlata com as afirmações em 8.5-8, nas quais Davi derrotou Hadadezer e o fez seu vassalo. Esta informação sugere que os eventos do capítulo 10 devem ter ocorrido antes das declarações sumárias do capítulo 8. O material, da forma como chega a nós no texto, sugere que a guerra de Davi contra os amonitas (e os arameus) não aconteceu em uma úni­ ca campanha militar, mas ocorreu em etapas durante um extenso período de tempo. Os estudiosos já tentaram reconstruir as guerras de Davi na região da Transjordânia ao longo de várias linhas: 1. Um conflito de dois estágios: 2 Sm 10.1 - 11.1 representa a primeira ba­ talha, com os versículos 15.19a servindo como a segunda fase da guerra; 2 Sm 12.26 f£ representa o segundo e último estágio da batalha (Hertzberg, 1964, p. 305). 2. Um conflito de três estágios: A primeira batalha ocorreu fora de Rabá (10.6-14), com o segundo confronto acontecendo no norte de Gileade (10.15­ 19); o estágio final (8.3-8) no conflito que aconteceu quando Davi venceu a coalizão de Hadadezer (Mauchline, 1971, p. 247-48; McCarter, 1984, p. 278). 3. Um conflito de quatro estágios: Davi venceu a coalizão amonita-aramaica primeiro (10.6-14), depois, atacou e feriu a aliança reforçada (10.15­ 19); Joabe começou o ataque contra Rabá e a cidade caiu no domínio de Davi (11.1; 12.26); Davi decisivamente derrotou as forças aliadas (8.3-8) (Anderson, 1989, p. 146); Carlson, 1964, p. 150).

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A informação anterior indica que as opiniões dos eruditos variam em como melhor reconstruir os acontecimentos do capítulo 10. Embora não haja um con­ senso, parece seguro afirmar que o material nos versículos 6-19 representa dois está­ gios dentro de uma batalha maior contra as forças amonita-aramaicas. A informa­ ção nos versículos 1-5, portanto, fornece as condições que desencadearam a guerra. NO TEXTO H 1 -5 Os versículos iniciais fornecem uma razão para a batalha contra os amonitas que sucede nos versículos 6-19. Davi expressa o desejo de mostrar bondade a Hanum, o novo rei. O texto identifica Hanum como o filho de Naás, o rei dos amonitas (v. 2). Naás havia atormentado o povo de Jabes Gile­ ade anteriormente, mas tinha sido derrotado por Saul e as tribos israelitas (1 Sm 11). Interessantemente, Naás funcionou como inimigo de Saul, mas tratava Davi amigavelmente (2 Sm 10.2). O texto não fornece uma razão para a mu­ dança na política, mas pode ter sido que a ideia da inimizade de Naás para com Saul pode tê-lo levado a fornecer refugio ou apoio logístico para Davi e seus homens quando Saul os estava perseguindo (Alter, 1999, p. 244). O nome do filho é importante nesse aspecto porque deriva da palavra gra­ ça (hên). Seu nome é semelhante à palavra hebraica graça (hãnüm) apontan­ do para a forma do particípio passado, desta forma, pode ser traduzido como aquele a quem se mostrou graça. Este é um nome apropriado, considerando o gesto atencioso de Davi para com o rei amonita nos versículos 1,2. Davi enviou uma comitiva de servos seus com presentes, a fim de honrar o rei celebrando a memória de seu pai. Contudo, quando os mensageiros chegaram ao rei, os conselheiros de Hanum questionaram aquele gesto, perguntando-se se eles vie­ ram para honrar Naás ou vasculhar a cidade em preparação para tomá-la (v. 3). Como resultado, Hanum agiu precipitadamente para com as ofertas de Davi. Em vez de retribuir em apreciação, Hanum pegou os mensageiros de Davi e raspou metade da barba, e cortou metade de suas vestes, até as nádegas, e os mandou embora (v. 4). O tratamento vergonhoso e desrespeitoso de Hanum com os mensagei­ ros foi essencialmente uma mensagem direta a Davi pessoalmente: nem pense em atacar a nossa cidade! No mundo antigo, cortar metade da barba e metade da roupa para que as nádegas ficassem expostas (basicamente afeminando-os; Niditch, 1993, p. 118) era interpretado como um gesto de humilhação, não só para os próprios mensageiros, mas especialmente para o rei que os enviara. A roupa que eles usavam (mãdü) não era uma roupa comum, mas eram vestes

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reais simbólicas da corte de Davi. Logo, eles vieram a Hanum como embaixa­ dores oficiais de Davi. Quando Davi ficou sabendo o que havia acontecido, ele se encontrou com os mensageiros que se sentiam muito humilhados (v. 5) pelo que havia acontecido e os instruiu a esperar em Jericó (“a cidade das palmei­ ras”) até que a barba deles crescesse novamente. I 6-7 Compreensivelmente, as atitudes de Hanum provaram ser prejudiciais à sua relação com Davi. O texto menciona que osfilhos de Amom viram que “eles tinham atraído sobre si o ódio de Davi” (v. 6). Antecipando uma severa reação de Davi, os amonitas alugaram dos siros de Bete-Reobe e dos siros de Zobá (20,000 soldados de infantaria), e do rei de Maaca, (junto com 1.000 homens), de Tobe, (12.000 homens). Quando Davi ouviu sobre a imensa tro­ pa que estava congregada no território de Amom, ele enviou Joabe, seu gene­ ral, com o exército dos homens ou poderosos guerreiros (v. 7). A palavra que é usada para as tropas (hãgibõrim) de Davi indica que ele despachou somente os melhores guerreiros para enfrentar os amonitas e seus aliados. A notícia de que Davi enviou Joabe e seus guerreiros sinaliza confusão, porque Davi não os conduziu em batalha, o que era uma das maiores respon­ sabilidades do rei. Davi enviará tropas para a batalha novamente em 11.1 en­ quanto ele fica em casa, uma situação que resultou em adultério e assassinato. I 8-14 0 texto caminha imediatamente para a cena da batalha, que é descri­ ta nos versículos 8-14. Os amonitas saíram para se encontrar com Joabe e seus homens no portão da cidade, enquanto que a coalizão dos aliados permanecia em campo aberto (v. 8). Nenhuma cidade específica é mencionada no versícu­ lo 8 e, portanto, sua identidade permanece incerta. Rabá é representada pela cidade-capital de Amom, mas o leitor não é informado de que este seja o caso. Alguns estudiosos expressam dúvida se Hanum seria tão tolo de esperar que as tropas israelitas chegassem até sua capital para que tomassem uma atitude de­ cisiva. É por esta razão que outros têm proposto que talvez a cidade em questão seja Medeba, uma cidade amonita mais ao sul. O plano de batalha dos aliados consistia em dividir as tropas em duas fren­ tes principais: os amonitas estavam na cidade, enquanto que os arameus de Zobá e Reobe juntamente com os homens de Tobe estavam situados no cam­ po. Essa estratégia, na verdade, cercava Joabe e suas tropas, pois, havia tropas em frente a ele e atrás dele. Joabe, que sentiu a necessidade de confrontar as duas frentes simultanea­ mente, dividiu suas tropas em dois grupos. Joabe ficou com o grupo seleciona­ do (bêhürêy byirsã êl) para se encontrar com os arameus, e o restante dos sol­ dados foi colocado sob o comando de Abisai, seu irmão, para batalhar contra

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os amonitas (v. 9,10). Este arranjo permitia a Joabe flexibilidade em sua estra­ tégia, de forma que se Joabe ficasse flanqueado, Abisai o socorreria; e se Abisai ficasse sobrecarregado, Joabe viria em seu auxílio. No desenvolver da batalha, Joabe se aproximou dos arameus que estavam no campo e eles fugiram dele (v. 13). Quando os amonitas viram que os arameus haviam fugido, eles bateram em retirada e procuraram abrigo na cidade. Quando Joabe percebeu que o ini­ migo estava preso na cidade, ele cessou o ataque e voltou para Jerusalém (v. 14). ■ 15-19 Os arameus que fugiram previamente (v. 13) se reagruparam, e outro contingente de arameus além do Eufrates foi chamado para suplementar as forças de Hadadezer. Quando foi relatado a Davi que os arameus haviam reforçado suas tropas, ele saiu para a cidade de Helã para batalhar. Assim como Joabe, Davi teve sucesso contra os arameus; eles fugiram diante dele e Davi matou 700 condutores de carros e 40.000 soldados de infantaria assim como Soboque, o comandante do exército (v. 18). A derrota da coalizão aramaica provou ser uma importante batalha para a carreira política de Davi. Quando Davi derrotou Hadadezer, seus vassalos passaram a fazer aliança com Davi (v. 19). Esta batalha, portanto, basicamente solidificou o poder de Davi na região, desde Israel e Transjordânia até a Síria e Aram no nordeste. Assim, a influência de Davi se expandiu para bem longe de Israel, até ao caminho do Eufrates. A PARTIR DO TEXTO A história de Davi e a guerra contra os arameus contêm elementos tanto positivos quanto negativos. Por um lado, nós somos lembrados que um bem re­ pentino pode advir de uma situação ruim. Embora Davi tratasse Hanum com respeito e bondade, Hanum não correspondia. A narrativa indica que Israel tinha de viver entre as nações e lidar com os conflitos que surgiam entre elas (Birch, 1998, p. 1280). As ações hostis de Hanum para com Davi e seus ho­ mens eventualmente se tornaram um pretexto para a guerra. Embora a guerra não seja necessariamente uma coisa boa em si mesma, Deus conseguiu cumprir Sua promessa a Davi, em parte, com esses acontecimentos (2 Sm 7.9), e a nação de Israel foi abençoada pelas conquistas de Davi. Os incidentes do capítulo 10, então, passam a noção de que, em tempos de adversidade e conflitos, Deus pode estar trabalhando em nossas circunstâncias para trazer uma bênção ocul­ ta. A nossa função é não perder a fé nesses momentos, mas permanecermos firmes e procurarmos o bem em todas as situações. Há também uma nota de precaução na história de Davi e Hanum. Dentro da narrativa, Davi começa a exibir um comportamento que aponta

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para o desenvolvimento de um problema. Quando os amonitas inicialmente congregaram sua coalizão, Davi enviou Joabe e seus guerreiros para a batalha enquanto ele ficou em casa (10.7). Esta é uma declaração que revela que no mundo antigo se esperava que os reis conduzissem os soldados em tempos de guerra. A falha de Davi em fazer isto indica uma falta de juízo e responsabilidade por parte dele. Davi cometeu o mesmo erro em 11.1, exceto que, naquele contexto, o abandono de seu dever preparou o cenário para a sua queda moral. Uma leitura cuidadosa do texto destaca esta crescente tendência na vida de Davi: no capítulo 8, ele lutou todas as suas batalhas, no capítulo 10 ele ficou para trás inicialmente (v. 7) e só depois os acompanhou (v. 17), no capítulo 11 ele se reclinava em sua casa, no palácio, enquanto seus soldados estavam no campo (v. 1), e no capítulo 12 ele foi coagido por seu general a lutar (v. 28). Pelos exemplos de Davi, nós somos lembrados de que os maus comporta­ mentos e hábitos não acontecem repentinamente ou em um vácuo. Eles são ge­ ralmente sintomáticos de problemas maiores que evoluíram ao longo do tem­ po. Infelizmente, as pessoas não percebem que têm um problema até que a vida fique adversamente afetada por suas ações. Às vezes, esses mesmos comporta­ mentos podem prejudicar seriamente a nós ou aos outros. Nós aprendemos, portanto, que é melhor reconhecer as nossas falhas logo cedo e admitirmos que temos um problema antes que isto se desenvolva e se transforme em algo mais severo. Deus pode nos dar força para confrontarmos as nossas fraquezas e providenciar os recursos para que possamos lidar com elas. Ao tomarmos este caminho, podemos livrar a nós e aos outros de tremendas dores de cabeça mais tarde.

C. Davi e Bate-Seba (11.1—12.31) POR TRÁS DO TEXTO Estes dois capítulos são tratados juntos, já que estão essencialmente liga­ dos por bases temáticas. No geral, as notícias sobre a guerra com os amonitas estruturam a história de Davi e Bate-Seba e assim fornece o contexto necessá­ rio no qual os sórdidos eventos do adultério de Davi ocorreram (11.1; 12.26­ 31). A maioria dos estudiosos argumentaria que 11.1 serve como uma intro­ dução editorial, enquanto que 12.26-31 deriva de outras fontes, possivelmente arquivos históricos. Os eruditos ficam confusos, porém, em como entender a transmissão histórica de 11.2—12.25.

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Alguns argumentam que o material em 11.2— 12.24 deriva de um autor profético que estava fornecendo uma correção teológica/moral às ações de Davi (McCarter, 1984, p. 290). Outros argumentam que 11.2-27a—12.15b-25 contém a narrativa mais antiga, com 11.27b—12.15a originando da mão pro­ fética (Dietrich, 1972, p. 127-29); Wurthwein, 1974, p. 24; Veijola, 1975, p. 233-34; Schwally, 1892, p. 155-56). Baseado nesta reconstrução, Davi come­ teu seu pecado de adultério sem remorso e, logo, deixa o leitor com a impressão de que este era o modo como os reis agiam (veja por exemplo 1 Sm 8.11-17). 0 material em 11.27b— 12.15a, portanto, chama o comportamento de Davi a um questionamento, o que faz com que Davi se arrependa. A questão está lon­ ge de ser resolvida, todavia, nos estudos modernos, mas elementos da narrativa (veja esp. 12.7-12) pressupõem que acontecimentos posteriores podem indicar uma data posterior de composição. Esses capítulos apresentam Davi como alguém que era vulnerável de abu­ sar de seus poderes reais, que é um retrato diferente nos capítulos que levam a esses acontecimentos. Além do mais, o cenário para este texto não se encaixa muito bem com os outros relatos concernentes às constantes batalhas de Davi contra os amonitas. Pode ser que a batalha contra os amonitas fosse a continu­ ação da batalha iniciada no capítulo 10, com o capítulo 8 sendo um resumo da conclusão das hostilidades entre Davi e Amom. Entretanto, o problema é deixado em aberto para debate. É significante, porém, que a cena de batalha contra Amom (11.1; 12.26­ 31) fornece a estrutura para o caso de Davi e Bate-Seba. Este relato não só critica Davi por ser negligente em sua função como rei e comandante das forças armadas, mas também indica que o rei estava suscetível ao abuso do poder real. Além do mais, as transgressões de Davi também se conectam com os aconte­ cimentos seguintes na história de Davi. Os eruditos têm notado que a vida de Davi está basicamente dividida em duas partes: Davi sob a bênção e Davi sob a maldição. Depois do encontro de Davi com Bate-Seba e o assassinato de Urias, sua vida nunca foi a mesma. Davi foi amaldiçoado com problemas internos na família e com perturbação política. Os editores desses textos têm, então, usado os capítulos 11 —12 como uma linha de demarcação na história de Davi. NO TEXTO

1. O adultério e o assassinato cometidos por Davi (11.1-13) 1 1 O versículo inicial essencialmente abre o cenário para os eventos que se seguem. O texto indica que era “na virada do ano” (JPS), que geralmente tem

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sido traduzido como na primavera. O texto não indica a época do ano, mas a qualifica com esta afirmação: época em que os reis saíam para a guerra. O verbo aqui está no infinitivo (sã 7), o que indica que sair para a guerra era uma responsabilidade costumeira do rei. Contudo, Davi não saiu para a guerra com suas tropas. Aliás, o texto nota que David enviouJoabe e os seus servos e todo o Israel para a batalha. Deve-se notar que a fraseologia aqui é semelhante a 10.7 quando Davi enviou Joabe e o exército para lutar contra os amonitas. Assim, Davi foi negligente em suas obrigações em pelo menos duas ocasiões, e o texto já está insinuando algo importante sobre o caráter de Davi. O texto também menciona que enquanto seus homens estavam lutando na guerra, Davi ficou em Jerusalém. O verbo usado aqui (yõsêb) indica uma atividade corrente ou contínua. Essencialmente, a linguagem insinua que Davi não planejava sair de Jerusalém, mas fez-se confortável em seu palácio. A pre­ sença de Davi em Jerusalém também abriu a oportunidade para os fatos que ocorreram nos versículos 2-27. I 2 - 3 Os casos sórdidos dos versículos 2-27 começam no versículo 2a com a notícia de que era noite e Davi se levantou da cama e caminhou sobre o te­ lhado da casa do rei (v. 2). O texto ressalta o estilo de vida agradável de Davi em casa e faz referência à soneca que ele tirou em seu palácio. Embora a sesta em um dia quente acontecia não muito depois do almoço, o texto indica que já era quase noite quando Davi resolveu se levantar de seu repouso. Além do mais, o verbo para andava passeando é um reflexivo (vayithãlêk), que indica que Davi estava passeando de modo prazeroso (i.e., ele estava andando despreocupadamente no terraço). Tudo neste cenário declara em alto som a posição privilegiada de Davi. Ele gostava de ficar no conforto do palácio enquanto que seus servos estavam arriscando a vida pelo rei. Já que Davi estava no terraço da casa do rei, ele tinha um ponto de van­ tagem para enxergar lá embaixo as casas próximas. Os estudiosos sempre têm notado o simbolismo do poder e autoridade do rei capturado nesta imagem. Davi viu do terraço a uma mulher tomando banho, enquanto ele andava passe­ ando, notou a beleza física dela (v. 2). A observação de que Davi a viu (vayar ’) é muito significante porque utiliza a mesma linguagem que Yahweh usou para se referir a Davi quando Samuel o ungiu como rei escolhido: “Yahweh não vê [yir eh] como vê o homem. Pois o homem vê [yir eh] o que está diante dos olhos, porém Yahweh olha [yireh] para o coração” (1 Sm 16.7). Enquanto que a afirmação de 1 Sm 16.7 tinha a intenção de sugerir que Davi seria fiel a Deus, neste contexto ela pressupõe sua queda moral. O nome da mulher não

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é dado, somente sua descrição física é fornecida: mulher muito bonita. Logo, Davi não estava interessado nela pessoalmente, mas somente em sua aparência. Davi mandou perguntar sobre a mulher e ficou sabendo que ela era Bate-Seba, filha de Eliã e mulher de Urias, o hitita (v. 3). A descrição de Bate-Seba é significante. Ela é descrita como tendo ligações com outros homens, notadamente, seu pai e seu marido. Basicamente, Bate-Seba não era simplesmente um objeto a ser conquistado ou manipulado; ela era um valioso ser humano tanto como filha e como esposa. Não obstante, Davi a considerou e a tratou de uma maneira que a objetificava, e, assim, ignorava o valor dela como indivíduo. Em essência, ela era um objeto para saciar as necessidades dele, e não uma pessoa para ser amada. I 4 - 5 O costume de Davi de enviar pessoas para fazer sua vontade apare­ ce novamente no versículo 4: Davi mandou que a trouxessem [e tomou], e se deitou com ela. Esta série de verbos é significante sintaticamente porque indica uma ação rápida e intencional por parte de Davi; do tipo que alguém faz com um só propósito em mente. Bate-Seba também é o sujeito de um dos verbos (“ela veio a ele”). A inclusão de Bate-Seba na série de verbos pode ser um sinal de que era cúmplice naquele caso (Finlay, 2005, p. 223-26). O leitor cuidadoso do texto pode se perguntar sobre qual foi o papel de Bate-Seba em se encontrar com Davi: uma súdita obediente respondendo às ordens do rei ou uma participante voluntária que tinha algo a ganhar? A LX X fornece uma leitura diferente aqui, de forma que é Davi quem inicia toda a ação. Nela está escrito: “e [ele] a levou, e chegou-se a ela, e ele se deitou com ela”. Logo, no relato da LXX, Bate-Seba teve um papel mais passivo. Outras partes da narrativa, entretanto, indicam que Bate-Seba tinha muito o que ga­ nhar pessoal e politicamente com o encontro. Foi o filho dela, Salomão, que sucedeu Davi no trono, e Salomão reservou um assento para ela bem ao lado dele quando foi coroado como rei (1 Rs 2.19). O texto também provê a observação de que Bate-Sebajá estava limpa da sua imundície (v. 4). Esta frase é importante gramaticalmente porque os lei­ tores ficam a se perguntar se isto foi incluído para dizer que ela se purificou depois do sexo com Davi, ou se ela havia se purificado previamente após seu ciclo menstruai. A distinção é importante porque se a última opção for a cor­ reta, então o texto está enfatizando a noção de que o bebê pertencia a Davi, e não a Urias. Entretanto, a Septuaginta traduz este versículo de modo a indicar que ela se purificou depois do encontro sexual. As diferentes tradições textuais deixam ambas as opções à vista.

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De maneira bem sucinta, o texto anuncia que Bate-Seba engravidou, e mandou um recado a Davi dizendo que estava grávida (v. 5). Esta breve, po­ rém poderosa notícia desencadeou uma série de reações de Davi a fim de lim­ par a bagunça que ele havia feito. H 6-9 Em resposta à notícia de Bate-Seba, mandou Davi a Joabe para que o enviasse Urias (v. 6). A constante repetição deste verbo indica que Davi traba­ lhou com uma série de canais intermediários para fazer a sua vontade (o verbo enviar ocorre onze vezes neste capítulo). Nesse processo, todavia, isto simboli­ za uma imensa lacuna entre o rei e a população. Isto diminui o contato pessoal entre o rei e o súdito e objetifica as pessoas nesse procedimento. Por ordem de Davi, Joabe, por sua vez, enviou Urias ao rei. No decorrer dessa seção, as pessoas vieram a Davi, mas ele nunca foi a elas. O mesmo foi ver­ dadeiro com relação a Urias: Davi mandou chamar Urias e ele chegou a Davi (v. 7). Davi só mandou chamar Urias porque estava preocupado em acober­ tar sua má conduta sexual. Davi até disfarçou suas verdadeiras intenções com Urias perguntando sobre a situação da guerra. Além disso, ele também deu a Urias uma ordem de descansar um pouco em sua casa (v. 8). Diferentemente de Bate-Seba que tinha de “subir” à casa do rei, Urias recebeu ordem de “des­ cer” à sua casa. A frase “descansar um pouco em sua casa” é um eufemismo que insinua que Urias deveria ir para casa e ter relações sexuais com a esposa. Davi tentou até amenizar a coisa, enviando-lhe um presente (v. 8). Urias, todavia, não foi para casa, mas dormiu àporta da casa real (v. 9). O verbo aqui {sãkab) é o mesmo que foi usado quando Davi “deitou-se” com Bate-Seba. O contraste entre Davi e Urias não poderia ser mais contundente; Urias se deitou no chão à entrada da casa do rei, enquanto que Davi se deitou com a mulher de Ürias nos confortos de sua casa. ■ 10-13 Ap esar de seus esforços, Davi ficou sabendo que Urias não tinha ido para casa. Eles disseram a Davi contém o verbo no plural indicando que os servos de Davi estavam espionando Urias a fim de poder contar para o rei (v. 10). Quando foi questionado sobre por que não tinha ido para casa, Urias respondeu: A arca, e Israel, eJudáficam em tendas e meu senhorJoabe e os servos de meu senhor estão acampados no campo (v. 11). A resposta de Urias inclui o uso de dois verbos: residindo (yõsbim) e acampando (hõnim). Isto é significante porque transmite a noção de que a arca e os soldados permaneciam no campo e, logo, cumpriam as diretrizes do rei. A posição dos guerreiros de Davi ficava em gritante contraste com a do rei, que permanecia em seu palácio. Urias tam­ bém indicou que o pensamento de ir para a sua casa para comer e beber e se deitar com sua mulher seria anátema. Tal comportamento quebraria o código

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de conduta como um soldado e demonstraria deslealdade para com os soldados e seus líderes. A nobreza e a lealdade de Urias são bastante aparentes quando contrasta­ das com as ações indecentes de Davi. A nobreza de Urias é reforçada pela sua declaração: Como você vive e como eu vivo eu nuncafaria isso (v. 11). As palavras de Urias eqüivaliam a um juramento que significava que se ele fizesse o que Davi estava pedindo que ele fizesse, tanto a vida do rei quanto a vida dele deve­ riam ser tiradas. Isto é um sinal de quão sério ele levava a sua obrigação como servo do rei e membro do exército. Davi só pôde responder ordenando que Urias ficasse com o rei naquele dia e no próximo. A ordem para permanecer pode indicar que Davi precisava de um tempo para descobrir como poderia manipular seu plano e conseguir que Urias encobrisse o seu erro. Davi tentou mais uma vez que Urias fosse para casa enchendo-o de bebida forte (v. 13). O verbo embriagou (vãysãkkrêhü) indica que Davi tinha uma função ativa e intencional em alterar o juízo e as inibições de Urias. O plano falhou, todavia, porque Urias ficou em sua cama com os ser­ vos de seu senhor. Uma questão poderosa é levantada aqui; Urias, um soldado bêbado, foi mais justo do que Davi, um rei sóbrio.

2. Davi manda matar Urias (11.14-27) I 1 4 - 1 5 Quando o estratagema de Davi para fazer Urias ir para casa não deu certo, sobrou-lhe a única opção: assassinato. Davi concentrou seus esforços para eliminar Urias em uma elaborada trama. Davi escolheu enviar uma carta por intermédio de Urias [em mãos] com instruções para deixá-lo vulnerável ao ataque no campo de batalha: Ponha Urias na linha de frente [batalha] e deixe-o onde o combate estiver mais violento, para que seja ferido e morra (v. 15). Sem saber, Urias basicamente carregou sua própria sentença de morte ao homem que iria executar as ordens de Davi. É também irônico que os reis nos tempos antigos geralmente usassem es­ tratégias de batalha que garantissem o sucesso contra seus inimigos. Neste con­ texto, porém, Davi acreditava que a morte de um de seus homens significasse a vitória para si mesmo. Nenhuma palavra é dada sobre quais foram os pensa­ mentos de Joabe acerca da ordem de Davi de deixar Urias morrer no campo de batalha, mas aquilo expôs Davi, no sentido de que Joabe ficou ciente das maquinações perversas de Davi. H 1 6 - 2 5 Joabe seguiu as ordens dadas a ele pelo rei e colocou Urias no lugar onde sabia que os inimigos eram mais fortes (v. 16). Sem nenhuma surpresa,

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quando lutavam contra os homens da cidade, morreram Urias e alguns dos ser­ vos de Davi (v. 17). Esta última frase é significante porque indica que Davi não só foi responsável pela morte de Urias, mas foi também culpado pelos outros guerreiros que inconscientemente se tornaram um “dano colateral” da conspi­ ração de Davi. O plano de Davi se desenrolou como ele previa, e Joabe enviou de volta uma mensagem a Davi sobre o relatório completo da batalha (v. 18). Joabe ins­ truiu o mensageiro a não se preocupar se Davi ficasse nervoso com as notícias de que seus homens estivessem lutando perto da muralha onde os soldados eram vulneráveis ao ataque (Jz 9.53). Joabe sabia que o mensageiro levava a notícia que Davi almejava: E morreu também o teu servo Urias (2 Sm 11.21). O mensageiro entregou as novas a Davi como fora instruído, até fornecendo uma elaborada explicação por que os servos de Davi lutaram perto da muralha. Ao entregar a mensagem a Davi, entretanto, o servo esperou até o final de seu relatório para dizer a Davi que Urias havia morrido na batalha. A reação de Davi quanto ao relatório da batalha nos versículos 22-25 está registrada diferente das tradições da LX X e TM. Na LXX, Davi fica indignado quando inicialmente ouve a descrição dos eventos envolvidos na batalha (v. 22). Ele questionou a estratégia de lutar tão perto da muralha da cidade, até citando o caso de Abimeleque (Jz 9.53) como uma razão pela qual as tropas não deveriam estar acampadas ali. A ira de Davi se aplacou quando recebeu a notícia de que Urias estava morto (2 Sm 11.25). A resposta irada de Davi não consta na versão do TM, nem a referência à história de Abimeleque. Embora Davi reagisse calmamente às notícias que ele recebeu (no TM), o leitor pode apenas supor que Davi teve uma sensação de alívio ao perceber que aquele caso horrendo estava chegando ao fim. Davi se reanimou quando soube da morte de Urias e até enviou uma mensagem consoladora para Joabe, basi­ camente, dizendo-lhe que não se incomodasse com o revés temporário e que continuasse se esforçando no ataque contra a cidade (v. 25). Animados com esta notícia, Davi até deu instruções para que encorajasse Joabe. H 2 6 - 2 7 O texto nitidamente contrasta o alívio de Davi pela notícia de morte de Urias com o luto de Bate-Seba quando soube da morte de seu ma­ rido. O texto indica que ninguém oficialmente lhe contou sobre a morte de Urias, mas ela simplesmente ouviu que Uriasfo i morto (v. 26). O texto dá a entender que o relato da morte do marido dela foi um boato ruim que ela ou­ viu de segunda mão. O luto de Bate-Seba é indicado pela observação de que ela lamentou sobre ele. A palavra que é usada aqui para transmitir luto (vatispõd)

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pode também ser traduzida como “lamentou”, que é um comportamento cos­ tumeiro após a perda de um ente querido. Na época do AT, a lamentação pelos mortos geralmente durava um perío­ do de sete dias (Gn 50.10); o mesmo período que Davi deu a Bate-Seba antes de mandar buscá-la e trazê-la para a casa dele. Davi se casou com Bate-Seba e ela lhe deu um filho. A sintaxe e a gramática enfatizam a noção de que a criança era de Davi, e não de Urias. Além do mais, o anúncio do nascimento de um filho anunciava um potencial sucessor para Davi. O filho de Davi, todavia, nunca cresceria até a idade de se tornar um candidato para o trono.

3. Natã confronta a Davi (12.1-15a) I 1 - 4 As ações de Davi para com Bate-Seba e Urias foram chamadas de uma coisa má pelo escritor deste texto. O capítulo 12 representa a resposta de Deus à indecência de Davi no capítulo 11. De uma maneira um tanto humorosa, o autor deste texto menciona que Yahweh enviou N atã a Davi (v.l). Foi obser­ vado no capítulo 11 que Davi ficou conhecido por enviar pessoas para fazer o seu serviço sujo: quer fosse para arranjar seu encontro com Bate-Seba ou a morte de Urias. Aqui, Deus enviou um profeta para confrontar Davi. O texto diz que Natã veio a Davi, o que também foi verdade quanto à Bate-Seba (11.4) e Urias (11.7). Nesta ocasião, entretanto, o rei não havia mandado chamar Natã, como fizera com Bate-Seba e Urias. O texto não contém um prefácio quanto à chegada de Natã; aliás, ele foi ao rei e inesperada e imediatamente contou a parábola. Esta construção literária indicaria que a mensagem que ele veio entregar era urgente. A história/parábola que Natã contou teria usado imagens e adereços da vida cotidiana para que o ouvinte pudesse ser atraído para a história. Muito pa­ recido com as parábolas de Jesus (Mt 13.31-32; 18.23-25; Mc 4.1-9; Lc 10.29­ 37; 15.3-7, 11-32), o público ouvinte teria ficado preso aos detalhes da histó­ ria, ficando assim desarmado da atitude defensiva. O mesmo aconteceu com Davi, já que a história de Natã sobre o homem rico, o homem pobre e a ovelhinha tinha a intenção de deixar Davi vulnerável ao impacto de sua mensagem. A parábola de Natã foi pungente e empregava várias maravilhosas técnicas de contar histórias. Davi foi tão atraído pela a história que ele não percebeu que os personagens representavam Davi (o homem rico), Urias (o homem pobre), e Bate-Seba (a ovelhinha). Os elementos da história também são muito comoventes. A ovelhinha, por exemplo, é chamada de filha porque o homem pobre a considerava como a

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um membro da família (v.3). Jogos de palavras bem criativos também são apa­ rentes. A palavra usada para o viajante que veio visitar o homem rico ( õrêah) soa bem parecida com o nome Urias ( üriyyã). A palavra chegou, no v. 4, é também usada em relação a Urias anteriormente no cap.l 1 (v.7). I 5 - 6 Quando Davi ficou sabendo que o homem rico havia tomado a ovelha do pobre, ele ficou indignado. O texto primeiro menciona que a ira de Davi se acendeu muito contra o homem (v.5). A linguagem usada para descrever a re­ ação de Davi é frequentemente usada para ilustrar a reação do Senhor quando os israelitas pecavam contra Ele. Segundo, pronunciou um severo juízo sobre o homem que roubou a cordeira. Davi alegou que o homem merecia a morte e que a cordeira deveria ser restituída quatro vezes mais por não demonstrar compaixão (v.6). A resposta de Davi no v.6 é significante porque o rei no mundo antigo era responsável por garantir que a justiça fosse feita na sociedade. Ao proclamar a sentença sobre o homem da parábola, Davi inconscientemente trouxe o juízo sobre si mesmo. A segunda parte da sentença (a cordeira deveria ser restituída quatro vezes) é particularmente digna de nota, especialmente no modo como se relaciona com a história de Davi. Davi realmente pagou quadruplicado por suas ações quando perdeu quatro filhos antes de Salomão se tornar rei: o bebê gerado por a Bate-Seba, Amnom, Absalão e Adonias. Foi somente depois que o quarto filho morreu que Salomão se tornou rei. O nome de Salomão é tam­ bém conveniente, já que o termo hebraico para “fazer restituição” ou “restau­ rar” (silêm ou silümah) é linguisticamente baseado na mesma raiz hebraica do nome de Salomão (slõmõh). O texto indica que Davi pagaria a restituição pela vida de Urias com a vida de seus próprios filhos. Somente depois que a restituição fosse completada poderia haver paz. O nome de Salomão é também relevante já que está linguis­ ticamente relacionado à palavra paz (sãlôm ). Logo, quando Salomão subiu ao trono houve paz porque a restituição havia sido feita pelas transgressões de Davi. H 7 -1 2 Enquanto Davi inconscientemente julgou a si mesmo com o pro­ nunciamento de uma sentença; Natã esclareceu o julgamento com as palavras “Você é esse homem!” (v.7). Davi estava tão absorto na narrativa que nem percebeu que a história era pertinente a ele. A resposta de Natã a Davi enfatiza dois importantes aspectos. Primeiro, ele contou o ato bondoso de Deus para com Davi. Natã lembrou a Davi que Deus lhe dera a casa de Saul, suas esposas, e os reinos de Israel e Judá. Mesmo com tudo que Deus havia concedido a Davi, ele ainda não tinha o suficiente.

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Natã até mencionou que Deus estava disposto a dar a Davi mais coisas se ele tivesse sido obediente. O segundo aspecto do oráculo de Natã para Davi re­ sultou numa sentença de julgamento sobre Davi e sua casa. O juízo proferido inclui o uso da palavra espada (hereb) nos v. 9,10. Davi tinha sido fundamental em ferir Urias pela espada dos amonitas, agora Deus faria a espada se levantar contra a própria casa de Davi. Com o desenrolar da história de Davi nos capítulos seguintes, as palavras de Natã se confirmam, no sentido de que a família de Davi fica caracteriza­ da por incesto, assassinato e rebelião. A afirmação de Natã no v. 11 (NRSV): “Vou levar suas esposas diante de seus olhos, e dá-las a seu vizinho, o qual se deitará com suas mulheres perante este sol” fala dos eventos que transcorreram durante a revolta de Absalão. Absalão fez sexo com as concubinas (esposas se­ cundárias) de Davi ao ar livre para que todos pudessem ver (16.20-22). Este gesto sinalizava que Absalão havia substituído Davi como rei. H 13-15a Em seu favor, todavia, Davi confessou que ele havia pecado con­ tra Yahweh quando ouviu as palavras de Natã (12.13). Na história de Davi, nas duas vezes em que foi confrontado pelos profetas por seu comportamento pecaminoso, ele se humilhou em contrição perante Deus. Esta é a razão pela qual o editor da H.D. mantinha uma alta estima por Davi e o considerava uma figura fiel e reta (l Rs 9.4; 11.4,6,33; 14.8; 15.3,5,11; 2 Rs 14.3; 16.2; 18.3; 22.2). Deus, em resposta à confissão de Davi, permitiu que ele vivesse, mas o filho que estava para nascer morreria. Depois que Natã entregou esta notícia, ele foi embora para sua casa.

4. A morte de um filho e o nascimento de outro (12.15b-25) ■ 15 b -19 A palavra do profeta concernente ao filho é cumprida nesta seção. O texto nota que Yahwehferiu a criança que nasceu ã mulher de Urias (v. 15). A linguagem que é usada aqui é semelhante às narrativas da praga e das tradi­ ções da arca onde o Senhor feriu pessoas com diversas calamidades, inclusive morte. Que o Senhor feriria uma criança inocente indica que as circunstâncias em torno do nascimento da criança eram pecaminosas. É também significante que o texto não chama a mãe da criança de Bate-Seba, mas simplesmente a cha­ ma de mulher de Urias. O texto ainda visualiza Bate-Seba em relação a Urias. “Buscou Davi a Deus pela criança; e jejuou Davi, e entrou, e passou a noite prostrado sobre a terra” (v. 16 ARC). Davi se engajou neste ato de angústia e contrição na esperança de que Deus revertesse a sorte da criança.

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Embora Davi se recusasse a comer com os anciãos de sua casa durante sete dias, mesmo assim a criança morreu. Os servos de Davi ficaram com medo de transmitir a notícia a Davi, pensando que Davi poderia se ferir. Contudo, quando Davi viu que seus servos estavam cochichando entre si, ele percebeu que algo estava errado. Davi, então, perguntou aos servos: A criança morreu? Eles simplesmente responderam na afirmativa: Sim, morreu (v. 19). I 2 0 - 2 3 Com a notícia definitiva sobre a criança, Davi reverteu suas ações. Davi se levantou, lavou-se, ungiu-se e trocou suas vestes. O texto diz que ele também “entrou na Casa do Senhor, e adorou” (v.20 ARC). O texto inclui um anacronismo neste ponto porque o termo “Casa do Senhor” se refere ao templo. Esta é uma evidência de que esta narrativa foi escrita em um período em que o templo já estava construído, possivelmente na época de Salomão ou mais tarde. A mudança no comportamento de Davi deixou seus servos perple­ xos, mas Davi sabia que, já que a criança havia morrido, não havia nada que ele pusesse fazer para trazer a criança de volta à vida. ■ 2 4 - 2 5 A narrativa nesta conjuntura muda da morte de um filho para o nascimento de outro. Davi consolou Bate-Seba pela morte da criança (v.24). Graças às ações de Davi, Bate-Seba sofreu e lamentou a morte de duas pessoas importantes: Urias, seu marido, e um filho recém-nascido. Diferentemente do cenário em 11.3, Bate-Seba é chamada de mulher de Davi (v. 24a, sua mu­ lher) pela primeira vez, juntamente com a observação de que ele “entrou a ela” (ARC); uma reversão de “entrando ela a ele” (11.4 ARC). Davi deitou-se com ela, e ela teve um menino. Davi deu a este filho o nome de Salomão, que tem um tremendo significado por sua função na Narrativa da Sucessão (veja a In­ trodução e comentários em 12.5,6). As condições que envolvem o nascimento dos dois filhos não poderiam ser mais diferentes: o primeiro nasceu como resultado de um encontro ilícito e um assassinato acobertado; o segundo, pelo ato de uma terna consolação. O primeiro filho morreu em conseqüência do pecado de Davi; o nascimento do segundo filho recebeu a aprovação de Deus. O primeiro sinal de que Deus aprovava este filho inclui a observação de que “o Senhor o amou” (v.24 ARC). A confirmação do favor do Senhor também é ressaltada na mensagem trazida pelo profeta Natã. O filho recebeu o nome de Jedidias. O nome Jedidias literalmente significa amado do Senhor, logo, enfatizando o divino patrocínio da criança. Uma explanação para a inclusão do segundo nome é problemática. Os reis recebiam um nome de coroação quando subiam ao trono, logo, pode ser possível ver Salomão como o nome pessoal e Jedidias como o nome de coroação. Entretanto, Jedidias é visivelmente ausente

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na narrativa de Salomão ( I R s l — 11), e não ocorre em nenhum outro lugar no AT. E melhor tomar como um sinal da posição favorável da criança, como no caso de alguns personagens bíblicos (i.e.,Jacó, Gn 32.28) (Gordon 1986,260).

5. A guerra contra Amom (12.26-31) I 2 6 - 3 1 A breve observação concernente à tomada de Rabá no v. 26 conti­ nua e completa a notícia sobre o ataque em 11.1. Logo, o caso de Davi e Bate-Seba é colocado em um contexto maior da guerra de Israel contra os amonitas. Nesta fase da batalha, “pelejou Joabe contra Rabá, dos filhos de Amom, e to­ mou a cidade real” (ARC; i.e., a capital). O texto destaca a noção de que Joabe conduziu os soldados na batalha e os levou à beira da vitória. Joabe enviou uma mensagem a Davi dizendo que ele deveria ser o conquistador da cidade para que Joabe não recebesse o crédito pelo triunfo e a cidade recebesse o nome dele. Davi ajuntou o povo e lutou con­ tra Rabá e a conquistou (v.29). Embora Davi recebesse o crédito pela conquis­ ta, foi Joabe que essencialmente fez o trabalho de base para o sucesso de Davi. Davi subsequentemente tomou a coroa da cabeça de Moloque [Milcom], e ela foi colocada na cabeça de Davi (v.30). Milcom era a deidade prin­ cipal dos amonitas, e a coroa seria usada por uma estátua cultuai de Milcom. Colocar a coroa de Milcom na cabeça de Davi celebrava o triunfo de Davi e simbolizava seu domínio sobre o povo dali. A coroa era impressionante e sem comparação; ela era de ouro, pesava aproximadamente trinta e cinco quilos e continha pedras preciosas (v.30). Davi também colocou os cidadãos da cidade para trabalhar com “serras, e às talhadeiras de ferro, e aos machados de ferro, e os fez passar por forno de tijolos” (v.31 ARC). Davi, mais provavelmente os en­ volveu na demolição das fortificações da cidade, garantindo assim que a mesma não seria uma ameaça a ele ou ao seu reino no futuro. A PARTIR DO TEXTO 1. A história de Davi, Bate-Seba e Urias revela que a indiscrição de Davi aconteceu como resultado de algumas más escolhas que culminaram em uma grande catástrofe. Primeiro, Davi permaneceu em casa no conforto de seu pa­ lácio enquanto o seu exército saiu para guerrear. Como rei, a principal respon­ sabilidade de Davi implicava em conduzir as tropas à guerra contra os inimigos de Israel. O abandono de Davi quanto ao seu dever o colocou em uma situação em que ele nunca deveria estar.

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Segundo, quando Davi ficou sabendo da identidade de Bate-Seba e que ela era mulher de Urias, ele não deveria ter insistido mais naquele assunto. Davi, porém, descartou esta informação irresponsavelmente e ignorou o sentimento das pessoas envolvidas a fim de seguir apenas os seus desejos lascivos. Como rei, Davi tinha bastantes concubinas e esposas à disposição dele, e ele poderia ter obtido mais, se o seu coração desejasse. Em vez de ficar satisfeito com o que ele tinha, entretanto, ele cobiçou uma pessoa que já pertencia a alguém. É significante notar que o curso dos acontecimentos na vida de Davi po­ deria ter sido completamente diferente se ele simplesmente estivesse onde ele deveria estar em primeiro lugar. Embora ele estivesse omisso em seus deveres e tivesse ficado em Jerusalém, ele não precisava piorar a situação fazendo outra má escolha. Assim foi uma cadeia de eventos que, como uma bola de neve, culminou nesta má situação. Os mesmos princípios se aplicam na vida moderna. Nós podemos fazer uma má situação ficar pior quando acrescentamos uma série de pequenos erros. Em vez de reconhecermos as nossas falhas, procurarmos o perdão, e fazermos a restituição logo que eles ocorrem, nós geralmente tentamos acobertar a nossa transgressão inicial cometendo mais pecados. Quantas amizades, casamentos, e relacionamentos de amizade/trabalho, por exemplo, que poderiam ser res­ gatados se aquele que cometeu a ofensa simplesmente admitisse o erro e pro­ curasse ser restaurado. Frequentemente ouvimos a frase “Se apenas ele tivesse sido mais honesto comigo desde o início”, então a situação poderia ter sido diferente. Infelizmente, a arrogância, o medo ou a vergonha nos impede de admitir o erro desde o começo, mantendo enganosamente, assim, a indiscrição escondida daqueles que a mesma magoaria. O mesmo princípio é verdadeiro para outros cenários também. Quantas maravilhosas oportunidades na vida já foram desperdiçadas por causa da falha em confrontar os comportamentos destrutivos desde o princípio: a desonesti­ dade, a preguiça, o vício das drogas, do alcoolismo, os maus hábitos na alimen­ tação, a falta de disciplina financeira ou a obstinada indisposição de acatar um conselho ou ouvir um aconselhamento ? Quando não tratadas, até as pequenas e menos notáveis ações podem levar à dor, à angústia e ao remorso. 2. Nós também aprendemos com Davi que os reis (e os líderes em geral) têm a capacidade de abusar de seu poder. Até os reis bons, quando imbuídos de completa autoridade, podem se tornar ensandecidos com o poder e desilu­ didos em pensar que podem usar esse poder ininterruptamente. É significante que os problemas pessoais e falhas morais de Davi somente ocorreram depois que ele estabeleceu sua residência em Israel como o líder inquestionável do povo de Israel.

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Em sua jornada rumo ao trono, Davi dependia de Deus para sua força e buscava em Deus a sua direção. Quando Davi chegou ao ápice de sua carreira política, sua atitude e perspectiva mudaram drasticamente. No Cap. 8 Davi expôs o desejo de expandir seu poder e influência com uma série de conquistas. Enquanto que no Cap. 8 o foco de Davi era a conquista de nações, o Cap. 11 inclui a conquista de Davi sobre os indivíduos. A busca de Davi pelo poder pa­ rece ter sido insaciável quando ele tentava subjugar nações e as pessoas que ele governava. Como o rei exercitava seu poder de maneira egoísta e cruel, o povo que ele governava foi ferido nesse processo. Isto fica evidente não só na histó­ ria de Davi e Bate-Seba, mas também na narrativa quando Davi proclamou o censo. Davi fez o censo a fim de acrescentar o poder do rei e do estado, mas no final, foi o povo que sofreu pelas ações de Davi (2 Sm 24.1-17). 3. Embora Davi fosse o supremo governante da terra, ele não estava acima de Deus e nem acima da lei. Davi ainda tinha de responder a Deus e quando ele transgredia a lei de Deus, Ele enviava o profeta para confrontá-lo. Embora Davi cometesse esse pecado em secreto, Deus estava cônscio de seus erros e os trouxe à luz. Para crédito de Davi, quando o profeta Natã o confrontou sobre seu pe­ cado, Davi confessou seu erro. Embora Deus perdoasse Davi, ele ainda teria de sofrer as conseqüências de seu pecado. À medida que a história de Davi se desenvolve, o leitor fica ciente de que Davi pagou um pesado preço, tanto pes­ soal como profissionalmente pelo adultério e assassinato que cometeu. Vários filhos de Davi morreram, sua família foi assolada com toda sorte de disfunções e contendas, e o seu controle do reino foi ameaçado quando Absalão fomentou uma revolta contra o pai. Tudo isto foi em resposta à palavra do profeta que o avisou do problema que lhe sobreviria por causa de seus atos. Mesmo que amasse Davi e o fizesse prosperar, Deus não poderia permitir que seu compor­ tamento ficasse sem punição. Por meio do exemplo de Davi, nós aprendemos a importante lição de que colhemos aquilo que plantamos (G1 6.7-9). Embora sirvamos a um Deus bondoso e perdoador, Deus nem sempre nos livra das conseqüências de nos­ sas ações. Estas conseqüências são sempre lembretes do nosso passado e das duras penalidades que o pecado distribui às suas vítimas. Ser justificado não significa necessariamente que não levaremos as marcas das más decisões que tomamos. Deus pode perdoar o ladrão, por exemplo, mas o ladrão, mesmo assim, precisa passar pelo encarceramento. Deus pode perdoar o sonegador de imposto de renda, mas a Receita Federal, ainda assim, fará uma auditoria e exigirá uma multa. Deus pode perdoar o cônjuge infiel, mas isto não garante

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que o casamento será restaurado. Mesmo quando enfrentamos as conseqüên­ cias de nossos pecados, entretanto, Deus pode continuar trabalhando em nossa vida para trazer cura e esperança. Deus pode nos ensinar novas lições sobre o Seu amor e graça, e Ele nos dá força para deixarmos para trás um passado que tenta nos roubar o futuro.

D. O estupro de Tamar e o assassinato de Amnom (1 3 .1 -1 4 .3 3 ) POR TRÁS DO TEXTO Estes dois capítulos são considerados juntos baseados em princípios lite­ rários e temáticos. A frase de abertura em 13.1 (ARC): “E aconteceu, depois disso” indica um novo capítulo na vida de Davi, e uma série de conjunções vav que ocorrem ao longo do Cap. 14 indica que estas duas seções maiores perten­ cem a um conjunto. Além do mais, a frase de abertura em 15.1 delineia outra unidade que assume a narrativa concernente à revolta de Absalão contra Davi. O material dos Cap. 15—19, portanto, serve como um complemento adequa­ do para os acontecimentos que estão registrados nos cap. 13— 14. Nestes dois capítulos, são apresentadas condições que depois conduziram à ascensão de Absalão como líder antagônico ao seu pai. O Cap. 13 relata como Amnom estuprou sua meia-irmã, Tamar, e a reação de Absalão e de Davi em relação à Amnom. Absalão não só ficou irado com Amnom por estuprar sua irmã, mas ele também concebeu o plano de que iria tirar a vida de seu irmão. Davi, por outro lado, ficou irado com Amnom por suas ações, mas não to­ mou nenhuma medida disciplinar contra ele. Estes textos retratam Davi como um pai fraco que falhou em disciplinar seu próprio filho e, logo, forneceu o ímpeto para que Absalão fizesse vingança contra Amnom. O texto também compromete Davi no sentido de que ele inadvertidamen­ te contribuiu para a situação que levaria à revolta de Absalão. A inação de Davi não só inflamou a ira de Absalão contra Davi, mas a disposição de Davi em permitir o retorno de seu filho ao lar deu a Absalão a oportunidade de ajuntar seguidores e fomentar uma rebelião contra seu pai. Logo, os Cap. 13—14 de­ vem ser estudados juntos como a base da rebelião de Absalão (Cap. 15-19) no sentido de que fornecem a causa essencial para isto.

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NO TEXTO

1. A cena de abertura (13.1-5) BI

1 Os primeiros cinco versículos fornecem o contexto para a narrativa se­ guinte. Como foi mencionado antes, 13.1 (ARC) abre uma nova unidade lite­ rária com a frase: “E aconteceu, depois disso”. Embora o texto não assinale qual episódio é referido nesta afirmação, o cenário canônico indica que esta unidade é destinada a ocorrer depois do incidente de Davi e Bate-Seba. Estas palavras de abertura podem indicar que um período de tempo não revelado se passou, mas o fato de que estejam colocadas logo após o caso de Davi com Bate-Seba e o assassinato de Urias indica as intenções ideológicas/teológicas do editor(es) responsável pela formatação desses textos. Ao colocá-la neste contexto literá­ rio, o historiador deuteronomista tinha a intenção de mostrar que os eventos que ocorreram nos Cap. 13— 19 estão diretamente relacionados com o adul­ tério e assassinado que Davi cometeu, e, portanto, confirmam as afirmações proféticas de Natã em 12.10. Esses versículos de abertura também introduzem os personagens princi­ pais da narrativa. Neste capítulo, o texto se concentra nos filhos de Davi e na confusão interna de sua própria família. O filho de Davi, Absalão (que signifi­ ca “meu pai é paz”), é mencionado primeiro, mas apenas sucintamente. Embo­ ra ele só apareça na história bem mais tarde (v.20), o narrador tem o cuidado especial de chamar a atenção para ele, já que ele tem um profundo efeito na história de Davi. Absalão é chamado de filho de Davi, e sua mãe era Maaca, a princesa gesurita filha de Talmai (2 Sm 3.3). Deve-se notar aqui que Maaca era uma mulher cananeia, o que era con­ trário à legislação que proibia o casamento com estrangeiros (Dt 7.1-4). Isto fornece evidência de que os textos deuteronomistas que proíbem o casamento com gentios foram um desenvolvimento posterior à época de Davi. Mesmo assim, o texto destaca que o filho de uma mulher cananeia trouxe uma dor pessoal e angústia à Davi. E dito que Absalão tinha uma irmã, Tamar, que é essencialmente chamada de muito bonita. O texto não comenta nada sobre o caráter dela, mas se refere apenas à sua aparência, que é tão crucial para a trama da história. Assim como sua irmã, Absalão será notado por sua boa aparência (14.25). O texto introduz Amnom por último. Ele é mencionado somente em re­ lação à Tamar; ele amou-a. Tamar era meia-irmã de Amnom, já que ele era filho de Ainoã (2 Sm 3.2). Como já mencionamos anteriormente, Ainoã pode

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ter sido a ex-mulher de Saul (veja comentários em 1 Sm 25.43-44; 27.3). Se isto for verdade, então isto indicaria que os laços de sangue com a casa de Saul existiam dentro da própria casa de Davi. Além do mais, o arranjo complexo da família de Davi tinha uma importante influência na sucessão do trono porque Amnom era o filho mais velho e o primeiro na linha de sucessão de Davi. Logo, era concebível que alguém conectado à linhagem de Saul pudesse governar a monarquia. Este fato tem tremendas implicações no modo como devemos entender as ramificações políticas da família de Davi e o drama que se desenvolve nos capí­ tulos seguintes. A história de Amnom e Tamar/Absalão coloca duas unidades familiares uma contra a outra: os filhos de Ainoã por um lado, e os filhos de Maaca por outro. 1 2 - 5 0 texto também relata que Amnom estava angustiado a ponto de ado­ ecer por causa de Tamar (v.2). O segundo verbo está no reflexivo (lêhithalõt), 0 que indica que Amnom se remoía por causa de Tamar a tal ponto de se tornar fisicamente enfermo. Amnom também estava perturbado porque Tamar era virgem e não havia nada que elepudessefazer para mudar as circunstâncias. A lei bíblica proibia que um filho dormisse com sua (meia-) irmã (Lv 18.9), mas esta legislação, mais provavelmente, seria de uma época posterior a Davi (Alter 1999, 268). Sendo uma virgem, Tamar provavelmente andasse acompanhada, tornando difícil para Amnom levar a cabo suas intenções carnais. O termo virgem (bétülâ ), entretanto, pode também significar uma jovem em idade de casamento (Gordon 1986, 262). Amnom talvez não estivesse procurando um relacionamento de longo prazo com ela, somente um namorico único (2 Sm 13.15). Ambas as opções de interpretação ainda são possíveis. Amnom recebeu ajuda e conselho de Jonadabe, primo de Amnom e filho de Simeia, irmão de Davi (v.3). Pouco se sabe de Jonadabe, exceto que ele é chamado de muito sábio (me õd hãkãm). A linguagem insinua que Jonadabe era astuto, ou “sagaz”; o tipo de pessoa que é “engenhoso”. O conselho dele para Amnom: fingir estar doente e pedir ao seu pai que mande Tamar alimen­ tá-lo, o que criaria um pretexto para que ele pudesse ficar sozinho com Tamar sem que Davi soubesse de suas verdadeiras intenções.

2. Amnom estupra Tamar (13.6-22) 1 6-10 Amnom seguiu o conselho de Jonadabe e fingiu estar doente. Quan­ do Davi veio visitá-lo, Amnom pediu que Tamar viesse e fizesse bolos para ele para que ele pudesse comer das mãos dela (v.6). A incapacidade de Amnom

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de se sentar seria prova de que ele estava enfermo. Em resposta ao pedido de Amnom, “mandou, então, Davi a casa, a Tamar” (v.7 ARC). O rei, mais uma vez, “envia” alguém para fazer o seu serviço (veja cap. 11); neste caso, era sua filha Tamar. A referência à casa de Tamar levanta questões sobre o modo como a família de Davi estava organizada no complexo palaciano. Tamar irá à casa de Absalão a mando de Davi (“Vai a casa de Amnom, teu irmão, e faze-lhe alguma comida” [v.7 ARC]). Fica parecendo que não só os filhos de Davi tinham uma casa diferente da do rei, mas também as diversas famílias estavam situadas em habitações diferentes dentro do complexo real. O modo como Davi ordenou Tamar a servir a Amnom indica que ela era tratada como um dos servos. Quando Tamar chegou à casa de Amnom, ele es­ tava deitado (v.8). Assim como seu pai previamente, uma situação problemá­ tica envolvendo um escândalo sexual começou com alguém deitado (11.2). O texto vai longe para descrever o alimento que ela preparou para o irmão. Tamar “tomou massa, e a amassou, e fez bolos diante dos seus olhos, e cozeu os bolos” (13.8 ARC). A cuidadosa descrição sobre a preparação do alimento indica que Amnom teve a oportunidade de observar sua irmã lascivamente antes de tocá­ -la fisicamente. Quando Amnom não quis comer o alimento, ele ordenou a todos que estavam no quarto que saíssem (“Fazei retirar”). O verbo aqui é um comando causativo (hõtVü), enfatizando suas intenções sórdidas (v.9 ARC). I 1 1 - 1 4 Quando o quarto ficou livre, Amnom deu ordem a Tamar para trazer o alimento para o quarto para que ele pudesse comer de suas mãos. As condições estavam propícias para ele encenar seu plano do mal. Quando Ta­ mar lhe trouxe os bolos, Amnom a agarrou e ordenou: “Vem, deita-te comigo” (v.l 1 ARC). A linguagem empregada neste versículo é significante. O primei­ ro verbo (vayahãzeq ) é um causativo seguido de preposição hebraica com o pronome feminino (bâ ). Esta construção denota a ideia de que Amnom a agar­ rou brutalmente, como quando um homem força uma mulher. Assim, o texto indica que ele abusou dela. A segunda metade do versículo utiliza dois comandos: “vem” e “deita-te comigo”. Tamar não só foi agarrada à força, mas também ordenada a se deitar com ele. O texto, com o uso de dois comandos, indica fortemente que Tamar não era uma participante voluntária daquele caso, mas estava sendo coagida a fazer algo contra a sua vontade. Esta frase também relembra a saga de José quando a esposa de Potifar tentou pegá-lo para que dormisse com ela contra a vontade de José (Gn 39.7). Os comentários de Tamar em 2 Sm 13.12 indicam a severidade das ações de Amnom: “Não me forces, porque não se faz assim em Israel; não faças tal

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loucura” A palavra “forces” Çãnah ) pode significar humilhar sexualmente (i.e., estuprando-a), degradando-a desta forma. A palavra loucura ( nebãlâ ) também pode insinuar algo que é uma desgraça, especialmente segundo os padrões de Israel. Alguns traduzem isto como “vil” (NRSV) ou “loucura de­ vassa” (RSV). A linguagem que é utilizada aqui também ressoa a história do estupro da concubina do levita (Jz 19.23). Já que Amnom estava inclinado a estuprá-la, Tamar fez a proposta de que Amnom deveria falar com o rei “porque náo me negará a ti” (2 Sm 13.13 ARC). Esta resposta pode parecer confusa a princípio ao leitor moderno. Se Davi desse permissão para Amnom se casar com Tamar, será que a união entre os dois membros da família seria de alguma forma legítima? Pode ser também possível considerar que Tamar estivesse usando este convite como um plano seu para poder se livrar daquela situação difícil considerando que ela não tinha uma vantagem física contra Amnom, esta “proposta” lhe providenciava uma oportunidade de escapar das investidas de Amnom. A sugestão de Tamar foi em vão, pois Amnom “não quis dar ouvidos à sua voz” (v. 14 ARC). Este verbo em hebraico pode também ser traduzido como “obedecer” ou “escutar” (KJV). Embora isto possa ser utilizado no relaciona­ mento de alguém para com Deus (1 Sm 15.1), isto pode também ser uma re­ ferência ao relacionamento humano. Não querendo ouvir o pedido dela, Am­ nom, “sendo mais forte do que ela, a forçou e se deitou com ela” (v. 14 ARC). A linguagem é específica e denota que a ação foi realizada contra a vontade dela, constituindo, assim, um estupro. ■ 1 5 -1 9 0 amor de Amnom por Tamar logo se transformou em um pro­ fundo desprezo. Amnom mandou que ela fosse embora, mas inicialmente Tamar recusou. A reação de Tamar reflete a legislação de que o jovem era obrigado a se casar com a virgem que ele estuprasse (Êx 22.16; Dt 22.28,29). A indisposição de Tamar em sair fez com que Amnom mandasse que ela fosse removida à força de sua presença. Tamar foi escoltada para fora e a porta do quarto de Amnom foi trancada assim que ela saiu. A linguagem de Amnom ao seu servo em 2 Sm 13.17 (ARC), “Deita a esta fora e fecha a porta após ela”, reflete seu tratamento brutal com Tamar ao não especificar o nome dela, mas referindo-se a ela quase como a um estranho (i.e., esta). As ações de Amnom não só constrangeram e desonraram Tamar, mas também trouxeram o opróbio sobre ela. Como resultado da angústia dela, Tamar “tomou cinza sobre a sua cabeça, e a roupa de muitas cores” (ARC) (kêtõnet hapasim ) que estava vestindo e saiu do quarto chorando. Interessantemente, José é a única outra pessoa no AT que tinha uma “roupa

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de muitas cores” (kêtõnet hapasim), que foi rasgada e encharcada de sangue (Gn 37.29-33). Nós podemos provavelmente presumir que a túnica de Tamar também estivesse manchada, já que ela era virgem (Dt 22.13-21). H 2 0 - 2 2 Foi somente depois que Tamar foi estuprada e humilhada que seu irmão Absalão entrou na história. O texto não indica um elemento temporal aqui, mas a gramática de 2 Sm 13.20 insinua que Absalão conversou com sua irmã imediatamente após o incidente com Amnom. Absalão, mais provavel­ mente, viu sua aparência despenteada e percebeu o que havia acabado de acon­ tecer. A pergunta dele: “Esteve Amnom, teu irmão, contigo?” presume que ele sabia que algo de natureza sexual havia se passado (v. 20 ARC). Absalão a instruiu a ficar quieta sobre o incidente e Tamar se tornou uma mulher desola­ da na casa de seu irmão. Davi, enquanto isso, ouvir falar das ações de Amnom e ficou irritado com o relato. A linguagem indicaria que ele estava furioso ou extremamente contrariado (ele ficou muito indignado) sobre o que aconteceu (v.21). Contudo, ele não fez nada para punir o filho. Absalão, porém, “aborre­ cia a Amnom” por ter violado sua irmã (v. 22b ARC). Ele tomaria uma atitude contra Amnom em vista da falha de Davi em providenciar uma disciplina.

3. A vingança de Absalão (13.23-39) ■ 2 3 - 2 7 O texto indica que há uma considerável lacuna entre o v.22 e o v.23. Os eventos do v.23 retomam dois anos depois do estupro de Amnom. Nenhuma indicação é fornecida sobre o que aconteceu nesse período, mas o leitor pode concluir que a ira Absalão fervilhou por dois anos enquanto ele maquinava um modo de realizar vingança contra seu meio-irmão. No final de dois anos, Absalão convidou Davi para suafesta de tosquia de ovelhas (v.24). Embora a tosquia pudesse envolver trabalho pesado, ela também incluía um momento de diversão e farra (v.28). Davi rejeitou o convite para a festa de Absalão, embora seu filho o tenha “pressionado” para que fosse (v.25 NRSV). Absalão tomou esta oportunidade para expressar seu desejo de con­ vidar Amnom para ir no lugar de Davi. Se Absalão agarrou essa oportunidade somente depois que Davi se recusou a ir ou se ele havia planejado isto antes é difícil dizer. Absalão pode ter antecipado a resposta de Davi tendo em vista o fato de que eles não compartilhavam uma ligação tão íntima de pai e filho. A festa da tosquia foi marcada para acontecer numa cidade chamada Baal-Hazor (v.23). Esta cidade fica a aproximadamente trinta quilômetros de Jerusalém na região montanhosa central. Se Absalão tivesse uma vingança

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premeditada em mente, isto lhe daria a oportunidade de isolar Amnom e executar o seu plano. Davi não entendeu por que ele convidaria Amnom para a festa. A pergunta de Davi: Por que ele iria com você? provavelmente indica que as relações entre os dois filhos eram tensas, ou até amargas como resultado dos acontecimentos prévios (v.26). Absalão, entretanto, “pressionou” Davi sobre o assunto e Davi enviou Amnom com ele. A linguagem aqui pode indicar que Amnom originalmente pode não ter desejado ir, mas Davi fez com que ele fosse com todos os filhos do rei (v.27). Davi aqui parece ou ingênuo, ou descuidado em enviar Amnom com Absalão, considerando a história pessoal deles. O resultado seria trágico para Amnom. ■ 28-29 A cena seguinte abre com Absalão dando instruções aos seus servos na festa. Embora o texto hebraico não forneça muita informação sobre isto, a LX X diz que “Absalão fez um banquete como banquete de rei”. O 4QSama inclui a frase: “Absalão preparou um banquete real”. A refeição teria incluído muita bebida e muita farra, e o plano de Absalão dependia de que Amnom ficasse bêbado. Absalão deu a ordem aos seus servos de que quando “o coração de Amnom estivesse alegre do vinho”, então eles deveriam feri-lo (v.28 NRSV). Os servos executaram a ordem de Absalão e mataram a Amnom. Enquanto Davi tentou e fracassou em acobertar seus erros fazendo Urias ficar bêbado (11.3), Absalão teve sucesso em fazer propiciação pelo crime de Amnom por meio de uma celebração excessiva. H 30-33 O falso relatório de que Absalão havia matado todos os filhos do rei chegou até Davi. Desta maneira, Davi reagiu com luto, rasgando suas vestes e deitando-se no chão. Jonadabe, o tio de Amnom, tentou acalmar Davi di­ zendo que “só morreu Amnom; porque assim o tinha resolvido fazer Absalão, desde o dia em que ele forçou a Tamar, sua irmã” (v.32 ARC). A declaração de Jonadabe levanta uma questão interessante. Como é que ele sabia que só Am­ nom havia morrido e não os outros irmãos ? Davi não sabia desta informação baseado em sua reação com a notícia. Isto pode indicar que Absalão, de alguma forma, contou seu plano para Abinadabe de antemão. Será que isto era, então, um plano para eliminar Amnom desde o princípio? Será que Tamar foi usa­ da pelo próprio irmão a fim de torná-lo o próximo candidato legítimo para o trono? Ou será que Absalão estava apenas buscando vingança contra Amnom pelo estupro de sua irmã, e por Davi não ter disciplinado Amnom adequa­ damente? Embora sejam em si mesmas questões tentadoras, prover respostas satisfatórias continua difícil. I 34-39 Depois do assassinato de Amnom, Absalão fugiu para o rei Talmai de Gesur. Absalão voltou ao seu avô e à terra do nascimento de sua mãe. Ele

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ficou ali por três anos, um período de tempo considerável (v.38). É digno de nota que depois que Absalão retornou de Gesur, ele fomentou uma revolta contra Davi. Neste aspecto, Absalão se assemelha a Jeroboão I, que também procurou refúgio em território estrangeiro somente para depois voltar para casa e fazer parte de uma rebelião contra a casa de Davi (l Rs 12.20-33). Será que Absalão estava planejando o golpe enquanto residia com o seu avô? Será que Talmai estava possivelmente envolvido no plano de derrubar Davi? Embo­ ra o texto não diga isto, ele realmente levanta, entretanto, fortes possibilidades.

4. Absalão retorna a Jerusalém (14.1-24) A abertura do cap. 14 conecta bem gramaticalmente com o final do cap. 13. Dois fragmentos de informação aqui são vitais. Um, o texto menciona que Ab­ salão ficou com Talmai durante três anos (2 Sm 13.38). Dois, Davi se conso­ lou pela morte de Amnom (13.39). O texto hebraico é um tanto difícil de ser traduzido em 13.39, já que parece estar faltando uma palavra. As reconstru­ ções baseadas em alguns manuscritos da LX X e do 4QSama traduzem 13.39a como: e o espírito de D avi, o rei, ansiava por Absalão. E a segunda metade do v.39, então, diz: porque estava consolado acerca de Amnom, porque ele mor­ rera. Aqui, o verbo para consolar {nibam) pode significar “arrepender-se ou consolar-se”. Esses dois fragmentos vitais de informação, logo, indicam que Absalão estava vivendo longe de casa e que Davi se conformou com a morte de Amnom. O final do cap. 13 prepara o palco para o retorno de Absalão nos versículos seguintes. H 1 - 1 1 A volta de Absalão foi mediada por uma terceira pessoa, o general de Davi, Joabe. Joabe procurou uma mulher astuta da cidade de Tecoa para ser a agente facilitadora da reconciliação (v. 2). Tecoa era uma pequena cidade não muito longe de Jerusalém, a mesma cidade da qual veio o profeta Amós (Amos 1.1). Se Tecoa era ou não conhecida como um centro de proliferação da tradição da sabedoria israelita permanece aberto ao debate (Isbell, 1977, 213 ss.). Embora não fosse uma erudita, a mulher sabia “discernir, articular e prati­ car a vida fora das categorias da percepção burocrata” (Brueggemann, 1990, p. 292). Joabe instruiu a mulher a vestir-se como uma enlutada e a entregar uma mensagem específica ao rei. Joabe a instruiu sobre o que ela deveria dizer (2 Sm 14.3). A última frase pode indicar que a sabedoria, na verdade, derivava de Joabe, e não da mulher (veja v. 19). A mulher alegou ser uma viúva e apresentou a Davi a história de dois irmãos. Ela contou que os dois irmãos estavam no campo quando um dos

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irmãos feriu e matou o outro. A situação que a mulher descreveu não só tinha um paralelo com a de Absalão, mas a questão do fratricídio e a frase no campo também relembram a narrativa de Caim e Abel (Gn 4.8). A mulher também mencionou que os membros da família se levantaram contra o outro irmão para que pudessem vingar a morte daquele que foi assassinado. Entretanto, matar o filho sobrevivente também iria consumir o único descendente restante na família (querem apagar a última centelha que me restou [v. 7]). A luta da mulher era idêntica à que estava ocorrendo na casa de Davi. Davi estava tão absorto pela história da mulher que não percebeu que ela estava falando do filho do rei (para uma reação semelhante, veja 12.1 -7). Quan­ do Davi ouviu o pedido da mulher, ele a garantiu que ninguém seria destruído e que a vida do filho dela seria poupada. Ao produzir este julgamento, Davi também preservava a vida de Absalão. Assim como na história de Caim e Abel, 0 infrator não experimentaria uma retaliação por suas ações (Gn 4.14,15). H 12-24 Ao dar esse veredito, entretanto, Davi indiciou a si mesmo. O filho mais velho que foi banido do reino teria a permissão de voltar para casa sem a possibilidade de que uma vingança fosse feita contra ele. O rei ordenou a Joabe que trouxesse Absalão para casa; Davi não escoltaria seu filho (2 Sm 13.21). A função de Joabe tanto em facilitar o encontro com Davi como em mediar o retorno de Absalão é intrigante. Por que ele tinha tanto interesse no bem-estar de Absalão? Será que ele tinha algo pessoal a ganhar com a volta de Absalão? A resposta de Joabe a Davi no versículo 22 (de que o rei atendeu o pedido de seu servo) implica que trazer Absalão para casa era um favor pessoal. Os esforços de Joabe podem apontar para suas futuras aspirações políticas (veja a seguir). Joabe viajou para o território de Gesur para buscar Absalão. Embora Davi permitisse que seu filho retornasse para casa, ele não permitiu que ele chegasse à presença do rei. Apesar de Davi ter permitido a volta de Absalão, ele estava essencialmente condenado ao ostracismo e permanecia inexistente para o rei (v. 28-33).

5. Davi perdoa Absalão (14.25-33) 1 2 5 - 2 7 Dentro do contexto do retorno de Absalão, o texto inclui afirma­ ções sobre a aparência física de Absalão no versículo 25: N ão havia, porém, em todo o Israel, homem tão belo e tão aprazível como A bsalão; desde a plan ta do pé até a cabeça, não havia nele defeito algum . Estes detalhes podem parecer

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fora de lugar, mas dão uma indicação porque Joabe decidiu patrocinar Absa­ lão. Absalão tinha uma tremenda reputação entre o povo, e o fato de que ele tinha três filhos e uma filha indicava o potencial para uma dinastia se ele se tornasse rei depois de Davi. A ênfase nos atributos físicos de Absalão, porém, relembra o leitor do rei Saul de que, embora fisicamente bem dotado, revelou ser um colossal fracasso. O texto parece antecipar um destino semelhante para Absalão também. I 2 8 - 3 3 Embora Absalão fosse autorizado a voltar para Jerusalém, ele não teve contato com seu pai por dois anos (v. 28). Já que Absalão estava banido da presença de Davi, ele procurou a ajuda de Joabe para arranjar uma audiência com o seu pai. Absalão teve de recorrer a colocar fogo no campo de Joabe a fim de conseguir chamar sua atenção. E curioso que Absalão tenha de utilizar tais práticas já que ele morava próximo a Joabe (i.e., eles tinham propriedades vizi­ nhas). Será que isto sugere que Absalão estava basicamente confinado à “prisão domiciliar” por ordem de Davi ? As ações de Absalão tiveram sucesso em chamar a atenção de Joabe. Joabe perguntou : “Por que puseram os teus servos fogo ao pedaço de campo que é meu?” (v. 31). Absalão revelou as verdadeiras intenções de seus atos; ele que­ ria saber por que Davi o havia deixado voltar. Absalão tinha sido abandonado por Davi, e ele queria entender a razão pela qual Davi o evitava. Teria sido melhor para Absalão ter permanecido em Gesur do que ser ignorado pelo seu pai. Absalão também acreditava que era inocente no caso de Amnom: “Se eu for culpado de alguma coisa, que ele mande me matar” (v. 32). Na mente de Absalão, a morte de Amnom foi justificada e não deveria ser a razão pela qual ele precisaria ficar alienado de Davi. Persuadido pela solicitação de Absalão, Joabe foi a Davi em favor dele. Davi mandou chamar Absalão, que compareceu diante de Davi e prostrou-se, rosto em terra. O texto não registra a conversa entre Davi e Absalão; ele somente inclui a observação de que Davi beijou Absalão (v. 33). Este gesto, sob todos os aspectos, indica que Davi tinha perdoado Absalão, contudo, eles permaneceram distantes um do outro. A PARTIR DO TEXTO A história dos problemas da família de Davi relembra ao leitor que o pecado e a desobediência têm sérias conseqüências. Os acontecimentos que se desenro­ laram entre os filhos de Davi são interpretados como se tivessem se originado no caso de Davi com Bate-Seba e no assassinato de Urias. A família de Davi foi

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assolada por situações de estupro, assassinato e rebelião. A narrativa, contudo, culpa Davi pelos desastrosos eventos que aconteceram em sua família. Primeiro, os filhos de Davi copiaram ou emularam o comportamento do pai. O desejo de Amnom de possuir uma mulher que não lhe era permitida relembra ao público do desejo de Davi de obter Bate-Seba, mesmo que aquilo significasse usar táticas cruéis para conseguir o que ele queria. Davi demons­ trou um péssimo exemplo para seus filhos seguirem. Amnom nasceu quando Davi estava em Hebrom, então, ele era um rapaz quando Davi foi para Jerusa­ lém. Amnom teve muitos anos para observar seu pai e ver o exemplo que ele estava deixando para os seus filhos. Sob todos os aspectos, Davi causou uma má impressão em seus filhos, e eles, por sua vez, perpetuaram os mesmos erros que Davi tinha cometido. É irônico que Davi pudesse exercer controle sobre o povo que ele governava, mas não conseguia controlar sua própria família. Segundo, Davi também criou as condições que levaram à rebelião de Ab­ salão. O texto deixa claro que Davi nunca castigou Amnom adequadamente por seu tratamento criminoso contra Tamar. Porque Davi não cuidou daquela situação, isto abriu uma porta para que Absalão se vingasse de seu irmão. Assim, por causa da falta de ação de Davi, ele permitiu que a situação se inflamasse (por dois anos), o que permitiu que a ira de Absalão contra Amnom continuasse a fervilhar e lhe desse tempo suficiente para planejar o assassinato de Amnom. Se Davi tivesse tratado desses assuntos quando eles começaram a apare­ cer, uma terrível situação seria evitada. A atitude de Davi para com Absalão também criou as condições que inspiraram a rebelião contra Davi. Depois que Absalão assassinou Amnom, Absalão estava basicamente morto para Davi. O relacionamento tenso fica evidente quando ele vai embora para a família de sua mãe e fica lá por três anos. Foi somente pela mediação de Joabe e da mulher sábia de Tecoa que Absalão foi autorizado a retornar para Jerusalém. E mesmo quando Absalão voltou a morar em Jerusalém, Davi o abando­ nou e não teve nenhum contato com ele durante dois anos. Absalão estava clamando pela atenção de seu pai, e ele até perguntou a Joabe por que Davi o ignorava. Davi só mandou chamar a Absalão, como a um servo, e não como a um filho, depois que Joabe intercedeu por Absalão. Davi não foi correndo se encontrar com ele quando ele voltou, como o pai fez na história do filho pró­ digo (Lc 15.11-32). Mesmo quando Absalão se apresentou diante de Davi, o texto não retrata uma reconciliação cálida e emocionante entre Davi e Absalão, apenas que Davi “beijou” seu filho. Davi pode ter “perdoado” Absalão, mas a cena tem falta do sentimento da reparação genuína de um relacionamento rompido. Logo, não deveria ser nenhuma surpresa para o leitor que Absalão

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não tivesse um respeito profundo e amor por Davi, e, ao contrário, alimentasse amargura e desejos maus. A revolta que ele fomentou contra Davi tornou isto evidente.

E. A fuga de Davi de Jerusalém e o seu retorno (1 5 .1 -1 9 .4 3 ) POR TRÁS DO TEXTO Esses capítulos são analisados juntos porque estão ligados por dois temas importantes: a fuga de Davi para Jerusalém e o seu retorno. Nessas narrativas, a vida de Davi faz um ciclo completo. Absalão fomentou uma revolta contra Davi que o expulsou da cidade-capital (cap. 15), e Davi foi escoltado de volta à pátria no final (cap. 19). No intervalo entre esses dois pontos fixos, o texto dis­ corre sobre Davi, enquanto ele e seus seguidores se refugiam na Transjordânia, e sobre Absalão, enquanto ele estabelece sua recém-encontrada autoridade na cidade-capital que seu bai abandonara. No decorrer da narrativa, Davi recebe o apoio daqueles que se mantiveram fiéis a ele e ajudaram-no a derrubar Absalão e recuperar o trono. Davi também teve seus detratores, que o ridicularizavam e o provocavam em um dos pontos mais baixos de sua vida. Absalão teve seu quinhão de aliados que também se reuniram em torno dele e apoiaram seu golpe de estado. Absalão também pro­ curou destruir seu pai, mas depois foi ferido pelo general de Davi. Com a mor­ te de Absalão, a revolta foi silenciada, e a porta para a volta de Davi foi aberta. Em seu retorno ao trono, Davi demonstrou gratidão àqueles que perma­ neceram leais a ele e lhe deram socorro durante sua fuga de Absalão. Ele até perdoou aqueles que tinham lançado insultos contra ele durante o seu exílio. 0 texto indica que nem todos estavam satisfeitos com o reino davídico, como ficou evidenciado nesta revolta, mas no final, eles tiveram de aceitar o fato de que Davi continuaria sendo o rei. NO TEXTO

1. Absalão usurpa o trono (15.1-37) 1 1 -6 Absalão começou sua revolta contra Davi primeiro ao estabelecer suas credenciais políticas entre o povo. Absalão realizava isto ao absorver a pompa e a circunstância do reinado. Ele, então, começou a levantar questionamentos sobre a capacidade de Davi de administrar justiça entre o povo. A usurpação

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de Absalão começou abertamente quando ele aparelhou carros, e cavalos, e cinqüenta homens que corressem adiante dele (v. 1). O uso de carros, cavalos e homens correndo adiante dele significava sua reivindicação à posição real. O filho de Davi, Adonias, também tentaria alcançar o poder de uma maneira semelhantemente prepotente como esta (1 Rs 1.5). Absalão também se levantava cedo eficava pelo caminho próxim o à porta que levava à cidade (v. 2). Nos tempos antigos, a porta da cidade representava o local onde as atividades comerciais e judiciais aconteciam, e, logo, qualquer um que tivesse alguma disputa teria o seu caso decidido ali. A cilada de Absalão para tornar o povo contra o seu pai também incluía levantar uma insatisfação entre aqueles que estavam procurando encontrar justiça ali à porta. Embora Absalão decidisse que um indivíduo tinha um caso digno de ser ouvido por alguém da administração de Davi (v. 3), ele lembrava ao povo que não havia ninguém da parte do rei para ouvir o caso. Não fica claro se Davi era negli­ gente em suas obrigações como rei ou se ele simplesmente dava preferência ao povo de Judá e basicamente dispensava os que eram das tribos do norte do reino de Saul. A pergunta de Absalão, de que cidade tu és? e a resposta, de uma das tribos de Israel, pode indicar que a última alternativa seja verdadeira (v. 3). Absalão apenas agitava a situação ainda mais, afirmando: Quem me dera serju iz na terra, para que viesse a mim todo homem que tivesse dem anda ou questão, para que lhefizesseju stiça (v. 4). Ao enfatizar as falhas do reinado de Davi, Absalão gradualmente criava dúvidas na mente das pessoas sobre Davi, relembrando-as por que deveriam estar insatisfeitas com a liderança dele, e as­ sim, preparava o cenário para o seu golpe de estado. Absalão também obteve o favor do povo devido ao modo como tratava aqueles que estavam buscando justiça: Ele estendia a sua mão, e o segurava, e o beijava (v. 5). Isso significava um sinal de respeito e um gesto de amizade; 0 tipo de toque pessoal que o povo não estava recebendo de Davi. O plano de Absalão alcançou sucesso já que ele roubou o coração das pessoas de Israel (v. 6). A gramática hebraica é significativa aqui porque em alguns contextos a pa­ lavra pode significar “enganar” (Gn 31.20,26). Se esta leitura se aplicar, ela traz um novo significado às intenções de Absalão no sentido de que o texto insinua que ele estava usando o povo como marionetes para o seu próprio benefício. 1 7-12 A revolta de Absalão, embora apenas em sua infância nesta conjuntura, incluía uma segunda estratégia. Absalão pediu permissão de Davi para ir a Hebrom cumprir um voto que fez quando estava em Gesur, território natal de sua mãe (v. 7). Embora o texto nunca registre esse voto, Absalão alegou que precisava voltar a Hebrom e adorar ao Senhor. Isto era um estratagema

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orquestrado por Absalão para que pudesse se juntar ao povo de Hebrom contra Davi. Hebrom representava o local de nascimento de Absalão (3.3) e a antiga capital de Davi. O povo de Hebrom parecia estar insatisfeito com Davi também, e poderia ter abrigado ressentimento contra o rei por ter transferido sua capital para Jeru­ salém. Já que o povo conhecia Absalão e apoiava a sua causa, uniu-se a ele e olhou para ele como seu novo rei. Absalão também levou consigo duzentos homens de Jerusalém. Esses homens eram inocentes e não sabiam das intenções de Absalão (v. 11). Os homens insuspeitos podem ter amenizado quaisquer suspeitas que a viagem de Absalão a Hebrom pudesse ter levantado. Também é possível que Ab­ salão tivesse a intenção de usá-los como reféns para influenciar a família deles em Jerusalém, uma vez que o golpe fosse realizado. Absalão também adquiriu o suporte e o parecer do conselheiro de Davi, Aitofel. Aitofel era da cidade de Gilo, uma cidade nas montanhas de Judá (Js 15.51). Aitofel, mais provavelmente, apoiava Absalão e sua rebelião à luz de como Davi tratou sua neta e Urias previamente (2 Sm 11). Qualquer chance de vingan­ ça contra Davi teria sido bem-vinda. O texto deixa claro que Absalão gostava do apoio de tantas pessoas importantes e influentes. Por todas as indicações, a rebe­ lião contra Davi foi popular e vinha o povo e se aumentava com Absalão. I 13-18 A revolta política que Absalão instigou foi forte o suficiente para que Davi tivesse de deixar a capital. Um dos mensageiros de Davi informou ao rei que o coração de cada um em Israel seguia Absalão (v. 13). Como Davi só foi perceber esses eventos catastróficos naquele momento ainda permanece obscuro. Será que isto sugere uma negligência da parte de Davi em monitorar adequadamente seus inimigos políticos ? Ou será que a revolta foi escondida tão cuidadosamente que Davi só descobriu quando já era tarde demais? A força da revolta é indicada pela ordem de Davi aos seus servos que esta­ vam com ele: Levantemos efujam os, para que possamos escapar de Absalão. Apressemo-nos a caminhar, a fim de que, porventura, não se apresse ele, e nos alcance, e lance sobre nós algum mal, efira a cidade a fio de espada (v. 14). A casa de Davi, seus oficiais e guarda-costas saíram da cidade em antecipação à invasão de Absalão. Davi deixou dez concubinas para trás para guardarem a casa (v. 16). Davi estava também acompanhado de seiscentos giteus, ou ho­ mens de Gate. Davi tinha sido vassalo de Aquis (1 Sm 27), o rei de Gate, e, sem dúvida, Davi desenvolveu fortes relações com membros daquela cidade filisteia (2 Sm 6.10,11). H 19-23 Além da família e dos oficiais de Davi mencionados nos versículos anteriores, Davi foi acompanhado de outros indivíduos que mostraram sua

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lealdade ao rei. Um desses indivíduos foi Itai, de Gate, a quem Davi enco­ rajou a voltar e ficar na cidade (v. 19). Itai também era da cidade de Gate e pode ter estado no comando dos seiscentos giteus que seguiam Davi. Itai era um estrangeiro, apenas um dos muitos estrangeiros a serviço de Davi. Mais tarde, ele comandaria um terço das tropas de Davi na batalha contra Absalão (18.2). Itai recusou a proposta de Davi de retornar para a cidade: No lugar em que estiver o rei, meu senhor, seja p ara morte ou p ara vida, a li certa­ mente estará também o teu servo (v. 21). A resposta de Itai espelha a de Rute (Rt 1.8-17), que fez um voto de lealdade para com Naomi. Davi aceitou sua posição como um sinal de grande fidelidade. Interessantemente, há um jogo de palavras baseado em seu nome. Itai ('tay) é linguisticamente semelhante à palavra “comigo” (V/) em hebraico. Logo, até o seu nome significava sua lealdade para com Davi. Enquanto Davi e sua comitiva saíam de Jerusalém, “o povo chorava alto” (v. 23 NTLH ). Essa afirmação parece ser uma hipérbole, já que Absalão es­ tava apoiado por um crescente aumento da população, bem como de pessoas ligadas a Davi. O rei, então, atravessou “o riacho de Cedrom”, que incluía o vale que separava a Cidade de Davi do Monte das Oliveiras no lado leste de Jerusalém. O vale de Cedrom era tido como a fronteira da cidade na época de Davi (1 Rs 2.37). H 24-29 Além de Itai, Davi também recebeu a ajuda de dois sacerdotes: Abiatar e Zadoque. O texto hebraico apresenta alguma dificuldade nos versí­ culos 24-29 porque parece que a presença de Abiatar é uma inserção posterior no texto. No versículo 24, a declaração de A biatar ocorre depois da frase: E puseram ali a arca de Deus (referindo-se a Zadoque e aos levitas). Certos ma­ nuscritos da LX X omitem a última frase inteiramente, o que implica que a declaração sobre Abiatar foi adicionada secundariamente. Além do mais, o ver­ sículo 25 refere-se a Zadoque no singular (torna), e, no versículo 27, Davi con­ versa apenas com Zadoque (torna,pois), mas aproxima declaração no versícu­ lo 27 (Aimaás, seu filho) tem um sufixo possessivo singular, apesar de a última frase (vocês) ter um final plural possessivo. Além do mais, embora Abiatar e Zadoque sejam mencionados no versículo 29, o verbo levar está no singular. Os eruditos argumentam que a narrativa principal, portanto, tinha Zadoque como o principal sujeito aqui, e as referências a Abiatar foram acrescentadas depois (Mauchline, 1971, p. 273). É significativo que, dos dois sacerdotes mencionados aqui, apenas Zado­ que permaneceria a serviço do rei davídico após a morte de Davi. Salomão baniu Abiatar e promoveu Zadoque como o sacerdote principal depois que

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solidificou seu reino (1 Rs 2.27). As referências aos levitas em 2 Sm 15.24 tam­ bém mostram sinais desta inserção secundária (1 Sm 6.15). É duvidoso que elas gozem de um reconhecimento oficial no momento. Os levitas levam o crédito do transporte da arca (Nm 3.31). Não há ne­ nhuma indicação neste contexto de que Davi pedisse que a arca fosse trans­ portada com ele. Já que a arca era um símbolo da presença e do poder de Deus, os sacerdotes podem tê-la trazido consigo como um sinal da presença de Deus com Davi e como uma ajuda na batalha se Absalão os perseguisse. Entretanto, a fé de Israel na eficácia da arca como um símbolo cultuai pode ter sido abalada como resultado da derrota do exército israelita em Ebenézer (1 Sm 4.4-11). A luz disto, Davi pode não ter acreditado na capacidade da arca em protegê-lo. Além do mais, ele pode ter enviado a arca de volta a Jerusalém como uma indi­ cação de sua crença de que Deus, e não a arca, agiria em seu favor. ■ 30-31 Davi subiu “o monte das Oliveiras” logo ao leste da cidade, seguin­ do no sentido leste em direção ao Jordão e ao deserto (17.16). O texto retrata a marcha de Davi e sua caravana quase como um cortejo fúnebre. Davi subiu chorando com sua cabeça coberta e com os pés descalços, todos os sinais que indicam um ritual de luto (Jr 14.3; Ez 24.17; 1 Sm 4.12; 2 Sm 19.4). Esses verbos também estão no particípio, enfatizando assim a continuidade da desi­ lusão, vergonha e humilhação que Davi estava experimentando. As notícias de que o conselheiro de Davi, Aitofel, também conspirara com Absalão não era nada menos perturbadora. A única reação de Davi neste ponto baixo de sua vida foi confiar que Deus resolveria essas condições difíceis: Ó Senhor, torna o conselho de Aitofel em loucura (v. 31). Aitofel iria fornecer instruções sábias a Absalão posteriormente (17.1-4), mas Absalão iria tolamente descartá-las. H 3 2 - 3 7 Davi também recebeu em sua companhia Husai, que veio oferecer sua simpatia e auxílio. A LX X até o chama de “amigo de Davi”. Davi, porém, viu outro propósito útil em seus serviços; ele poderia funcionar como um es­ pião de Davi para mantê-lo informado das intenções de Absalão e confundir 0 conselho de Aitofel. Davi o encorajou a dizer a Absalão: “Como fui dantes servo de teu pai, assim agora serei teu servo” (v. 34 ARC). Até mesmo no exílio, Davi mostrou seu lado astuto, sagaz, como um político e estrategista. O con­ selho de Davi eventualmente valeu a pena, já que Husai foi quem proveu um conselho que finalmente levou à derrota e à morte de Absalão.

2. Os adversários de Davi (16.1-23) 1 1-4 Diferentemente da seção anterior onde Davi recebeu a ajuda de seus apoiadores, estes versículos contam sobre vários indivíduos que se opuseram a

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Davi. Nos versículos 1-4, Ziba, o servo de Mefibosete, encontrou-se com Davi quando ele Mal Davi tinha passado pelo alto do monte. Ziba trouxe a Davi duzentos pães, cem bolos de uvas passas, cem frutas da estação e uma va­ silha de couro cheia de vinho, para que o rei e sua família comessem, e dois jumentos para que montassem (v. 1). A bondade e a generosidade de Ziba para com o rei deposto são contras­ tadas marcantemente nesta seção com a deslealdade de Mefibosete com Davi. Davi perguntou a Ziba: Onde está Mefibosete, neto de seu senhor? É in­ teressante que Davi tenha mencionado neto de seu senhor em referência a Jônatas, que já estava morto havia muito tempo. Ziba insinuou que Mefibosete viu a revolta de Absalão como uma oportunidade para o reino retornar à casa de Saul, e, portanto, ele voltou para Jerusalém. Ao fazer esta declaração ele retratou Mefibosete como um ingrato traidor. O leitor, contudo, não sabe se Ziba estava mentindo para Davi ou se ele disse a verdade sobre Mefibosete. Mefibosete depois desmentiu essas afirmações e sugeriu que as palavras de Ziba constituíam em uma calúnia (19.24-30). Davi confiou nas palavras de Ziba e recompensou sua lealdade transferindo-lhe a propriedade de Mefibosete. As intenções de Ziba são difíceis de serem analisadas aqui, mas ele realmente foi grandemente recompensado por “dedurar” Mefibosete. H 5 - 8 Quando Davi chegou a Baurim, um vilarejo na descida oriental do monte das Oliveiras, Simei, fiho de Gera, foi-lhe ao encontro. O texto men­ ciona que Simei, como Mefibosete, era do clã da família de Saul. Embora Simei não fosse mencionado até agora, neste ponto da história de Davi, ele era provavelmente do clã de Matri, ao qual Saul pertencia (1 Sm 10.21). Simei confrontou Davi, proferindo maldições contra ele. O verbo que é usado nes­ te contexto (mêqallêl) está na forma de particípio que denota uma ação pro­ gressiva, em outras palavras, “ele lhe falou tudo o que quis”. Simei demonstrou seu desprezo pelo rei deposto jogando pedras nele e em seus servos e lançando sérias acusações contra ele. Simei chamou Davi de “homem de sangue” e “ho­ mem de Belial” (2 Sm 16.7 ARC) (i.e., um assassino). O uso do termo “Belial” (habbêlíã ‘a l ) por Simei é semelhante à palavra usada para os filhos de Eli (1 Sm 2.12) - um termo pejorativo da mais alta or­ dem. E evidente por suas palavras que Simei achava Davi culpado pelo sangue derramado na família de Saul (v. 8). As declarações de Simei não eram exage­ radas, considerando-se as pessoas associadas com a casa de Saul que morreram no caminho de Davi rumo ao trono: Saul e Jônatas (1 Sm 31; 2 Sm 2); Abner (2 Sm 3); Is-Bosete (2 Sm 4); além dos sete filhos e do neto de Saul que Davi permitiu que os gibeonitas matassem (2 Sm 21). Simei entendia que aquela

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situação problemática de Davi era apenas a justa recompensa pelos crimes que ele cometera contra a família de Saul. H 9-14 Em meio às acusações de Simei, Abisai, filho de Zeruia, veio em de­ fesa de Davi com uma forte reação: Permite que eu lhe corte a cabeça (v. 9). A reação zelosa de Abisai não é surpreendente, considerando-se o temperamento dele (1 Sm 21.6-8) e sua posição entre os guerreiros confiáveis de Davi (2 Sm 23.18-19). Davi, porém, refreou o entusiasmo e as intenções de Abisai, dizen­ do que, se Simei estava amaldiçoando Davi, era porque Deus permitiu que isto acontecesse. A resposta de Davi não era de apatia, mas de confiança na provi­ dência de Deus. O que ele poderia fazer se Deus trouxera aquela calamidade sobre ele ? É significante notar, entretanto, que Davi nunca considerou como suas próprias ações contribuíram para as suas dificuldades, especialmente no que se relacionava ao caso de Amnom e Tamar (cap. 13). Simei persistiu em seu incansável criticismo a Davi enquanto ia pela en­ costa do monte, no lado oposto do caminho pelo qual Davi e seus servos viaja­ vam. Ele continuou a jogar pedras, lançar poeira, e amaldiçoar a Davi enquanto ele caminhava para fora da fronteira da cidade. Davi e o povo que estava com ele finalmente chegaram exaustos (v. 14) ao Jordão. Sem dúvida, toda aquela situação foi física e mentalmente exaustiva. A forma verbal aqui ( àyêphím) indica um extremo cansaço ou exaustão. Já no Jordão, Davi se revigorou. ■ 15-23 A narrativa neste ponto retorna à cidade de Jerusalém, para onde Absalão e todos os homens de Israel entraram (v. 15). Absalão também recebeu o apoio do antigo conselheiro de Davi, Aitofel. Como partidário de Absalão, Aitofel funcionava como o conselheiro político de Absalão. Absalão procurou conselho com o ex-conselheiro de Davi: que devemos fazer? Neste primeiro ato como conselheiro, Aitofel instruiu Absalão a ter relações com as concubinas de seu pai, que ele deixou para tomar conta do palácio (v. 21). Um público moderno pode não entender a sabedoria desta declaração. O símbolo do poder e prestígio do rei estava ligado ao harém de concubinas ou esposas que pertenciam ao rei (1 Rs 11.1). Fazer sexo com as concubinas de Davi enviaria uma clara mensagem ao povo de Jerusalém que Absalão havia to­ mado as rédeas do poder. Tal ato também seria interpretado como um insulto e uma afronta a Davi, tornando, assim, Absalão e o povo aliado a ele odiosos para com Davi. O povo teria entendido que a possibilidade de reconciliação entre Absalão e Davi seria remota. Logo, as mãos de todos os que estavam com Absalão seriam fortalecidas. O povo poderia apoiar Absalão de todo o coração sem medo, sabendo que Absalão não o trairia.

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Concubinas Concubina era uma companheira marital de posição inferior à esposa. Nos tempos bíblicos, a concubina gerava filhos para o marido de sua se­ nhora (Gn 35.22) quando a esposa legítima era estéril (Gn 16). Se a esposa principal, mais tarde, tivesse seus próprios filhos, eles assumiam a herança dos filhos da serva (Gn 21.12). A lei israelita providenciava salvaguardas para os direitos das filhas hebraicas vendidas como servas (Êx 21.7-11). Às vezes, o relacionamento de concubinato poderia compartilhar de muitos aspectos de um casamento normal. A concubina nem sempre morava na casa do marido (Jz 19.2), mas este nem sempre foi o caso (Jz 19—20). O marido da concubina era chamado de genro do pai dela, que era o sogro. As concubinas reais eram padrão entre os reis de Israel e Judá, e em ou­ tros reinos do mundo antigo (Ct 6.8-9). Elas eram claramente distinguidas das esposas do rei (2 Sm 5.13; 1 Rs 11.3; 2 Cr 11.21). Deitar-se com uma concubina do rei era comparado a usurpar o trono (2 Sm 3.7; 16.21-22; 1 Rs 2.21-24). As concubinas reais geralmente ficavam aos cuidados de um eunuco (2 Rs 9.32; Ester 2.14). Os descendentes das concubinas eram geralmente classificados como tribos secundárias (Gn 22.24; 36.12) espe­ cialmente entre os grupos abraâmicos (Gn 25.6; 1 Cr 1.32). Alguns dos clãs de Israel foram frutos de concubinas (1 Cr 2.46; 7.14).

Absalão acatou o conselho de Aitofel. Uma tenda foi armada para Absalão no terraço (presumivelmente no palácio do rei) e ele teve relações com as concubinas de seu pai à vista de todo o Israel (v. 22). Esta petulante e ousada manobra solidificou a reivindicação de Absalão ao trono entre o povo; esta­ va evidente que Davi não dominava mais o reino. A linguagem é significante porque a expressão concubinas de seu pai usa um possessivo que indica que Absalão dormiu com as concubinas que pertenciam a Davi. O golpe de estado estava realizado e as palavras de Natã foram cumpridas (12.11). Aitofel forne­ ceu um conselho sábio de forma que a sua instrução a Absalão foi comparada à palavra do próprio Deus. O texto não quis dizer que esta palavra veio de Deus, mas foi uma jogada política muito perspicaz.

3. O conselho de Husai (17.1-29) H 1 - 4 Embora o texto hebraico e as traduções inglesas criem uma nova quebra de capítulo aqui, esses versículos acompanham mais de perto o final

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do capítulo 16. Nesta seção, Aitofel deu mais conselhos políticos a Absalão. Aitofel aconselhou Absalão que ele deveria obter a permissão de escolher doze mil homens (i.e., guerreiros) e perseguir a Davi (v. 1). Aitofel contava que Davi estaria cansado e desanimado (lit., mãosfrouxas) depois de ser expulso da capital e viajado o dia todo em direção à região do Jordão. Se Aitofel e seus homens pudessem atacá-lo neste momento estratégico, isto provocaria uma derrota devastadora contra quaisquer esperanças de ressurgência de Davi. Aitofel planejava matar apenas Davi e trazer de volta o resto dos segui­ dores de Davi como a noiva retoma ao seu esposo (uma leitura baseada numa reconstrução da LXX). Esta é uma metáfora pungente, já que indicava que o povo de Israel de fato e de direito pertencia a Absalão, assim como a noiva está casada com seu esposo. O plano de Aitofel presumia que se Davi fosse morto, então os aliados dele transfeririam sua aliança para Absalão. Este cenário é se­ melhante ao que aconteceu com Davi após a morte de Is-Bosete (2 Sm 5). ■ 5-10 Ap esar de o conselho de Aitofel ter parecido bom a Absalão e a todas as autoridades de Israel, Absalão buscou o conselho de Husai sobre o plano de Aitofel (v. 4). E digno de nota que Absalão confiaria na palavra do ex-conselheiro de seu pai em detrimento à de Aitofel, que tinha sido leal a ele desde o princípio. A confiança de Absalão em Husai é ainda mais confusa considerando-se que ele havia questionado a lealdade de Husai anteriormente (16.16-18). Isto pode indicar que Absalão era muito ingênuo e não tinha uma perspicácia política saudável. De acordo com Husai, a ideia de Aitofel não era prática. Husai argumen­ tou que Davi e seus homens eram guerreiros valorosos e estavam irados como uma ursa selvagem da qual roubaram os filhotes (v. 8). Além do mais, Davi era um homem de guerra (i.e., um guerreiro experiente) que não passaria a noite em lugar aberto onde estaria vulnerável aos ataques, mas se esconderia numa caverna ou nalgum outro lugar onde seria difícil encontrá-lo e de onde gozaria de uma vantagem tática. O tempo que Davi passou sobrevivendo no deserto se escondendo de Saul, sem dúvida, proporcionou-lhe habilidades de sobrevivência que ele usaria neste momento de sua vida. Husai indicou que os homens de Absalão estariam em desvantagem na presença de um indivíduo cauteloso como esse, e qualquer perda de vida acrescida por parte dos homens de Absalão faria com que os outros enfraquecessem o coração; até o mais bra­ vo soldado, corajoso como leão, ficará morrendo de medo (v. 10). H 11-14 Husai também ofereceu um plano de ataque. Diferentemente de Aitofel, que propôs uma abordagem agressiva, Husai sugeriu que Absalão espe­ rasse até que todo o Israel se reunisse a Absalão, desde Dã até Berseba (v. 11).

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Como agente secreto de Davi, Husai ofereceu um plano que beneficiasse Davi, dando-lhe tempo para escapar, revigorar e reagrupar. Além do mais, o plano exigia que Absalão e suas tropas fossem a Davi, colocando, assim, suas tropas em posição vulnerável. Um exército enorme não seria viável num terreno rús­ tico onde Davi poderia posicionar seus homens estrategicamente. O conselho de Husai essencialmente se resumia na sentença de morte de Absalão. Absalão, incrível e insensatamente, concordou com esta tática. Em muitos aspectos, as ações de Absalão se assemelham às do filho tolo de Salomão, Roboão, que nesciamente rejeitou o conselho saudável e aceitou o conselho imprudente (1 Rs 12.8). Em ambos os casos, os resultados de seguirem o conselho errado foram desastrosos. I 15-20 Husai transmitiu aos dois sacerdotes que sobraram em Jerusalém, Zadoque e Abiatar, o conselho que dera a Absalão. Os sacerdotes transmitiram a mensagem para seus dois filhos, Jônatas e Aimaás, em En-Rogel. En-Rogel era uma fonte de águas na confluência do ribeiro de Hinom e o ribeiro de Giom, a principal fonte de água que abastecia Jerusalém. Jônatas e Aimaás de­ senvolveram um sistema de comunicação com Davi, com o qual eles passariam a informação para uma menina que, por sua vez, entregaria a mensagem a Davi. Em certa ocasião, um menino os viu e relatou isto a Absalão. Jônatas e Aimaás saíram dali e foram escondidos em uma cisterna pela esposa de um homem anônimo de Baurim. Porque a mulher espalhou uma cobertura sobre a boca do poço e jogou grãos por cima, os dois permaneceram ocultos quando os servos de Absalão chegaram até a mulher e perguntaram sobre o paradeiro dos dois jovens. Embora os servos de Absalão procurassem, eles não puderam encontrá-los. Tal foi o risco que esses jovens correram por apoiarem Davi na­ quele momento tumultuoso. I 2 1 - 2 3 Porque os dois escaparam, eles puderam contar a Davi o conselho que Aitofel dera a Absalão. Os dois aconselharam Davi e seus soldados que se levantassem e passassem depressa (ambos imperativos em hebraico). Davi e o povo que com ele estava terminaram de atravessar o Jordão à luz da manhã. Quando Aitofel viu que Absalão não seguiu o seu conselho, ele entendeu que suas ações seriam consideradas como uma traição se Davi sobrevivesse e re­ tornasse a Jerusalém. Como resultado, Aitofel foi para casa, para a sua cidade, e se enforcou. O texto observa que ele foi enterrado na sepultura de seu pai. A morte de Aitofel é significante porque representava o primeiro maior golpe no futuro político de Absalão. Ao seguiu o conselho de Husai, Absalão começou a plantar as sementes de sua própria destruição.

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I 2 4 - 2 6 Davi e o povo que com ele estava chegaram a Maanaim, do outro lado do Jordão no território de Gileade (v. 24). O nome literalmente signifi­ ca “dois acampamentos”, e outrora servira como a capital do filho de Saul, Is-Bosete (2.8). Paradoxalmente, a antiga capital de Is-Bosete funcionou como o quartel-general temporário de Davi durante a revolta de Absalão. Davi con­ seguiu encontrar o apoio do povo dessa região por causa de seu tratamento bondoso para com Mefibosete (9.7). O texto também nota que Absalão colocou Amasa sobre o exército. Amassa é descrito como filho de Jéter, o ismaelita, e Abigail, irmã de Zeruia (v.25). Isto, teoricamente, tornava Amasa um parente de Davi, por casamento, e, logo, um judeu. Mais tarde, quando a revolta foi suprimida, Davi colocou Amasa no comando do exército (19.13), possivelmente para aplacar os judeus simpatizantes de Absalão. H 2 7 - 2 9 O capítulo encerra com três indivíduos que trouxeram alimento para Davi e suas tropas: Sobi Maquir e Barzilai. De uma forma ou de outra, esses homens compartilhavam um importante relacionamento com Davi. Sobi era filho de Naás, membro da família real amonita (10.2); Maquir era original­ mente um simpatizante de Saul que estendeu hospitalidade a Mefibosete (9.4); e Barzilai era um fiel patrocinador, a quem Davi convidou para morar consigo depois que voltasse para Jerusalém (19.31-39).

4. A morte de Absalão (18.1-33) H 1 -2 Davi, até este ponto, vinha executando uma estratégia de batalha de­ fensiva. Neste capítulo, Davi adotou uma campanha mais agressiva contra Ab­ salão e suas forças. Embora não se saiba quantos soldados Davi tinha consigo, assim como Gideão (7.16) e Saul (1 Sm 11.11) fizeram antes, Davi dividiu seus soldados em três acampamentos. Joabe liderou um grupo; Abisai, irmão de Joabe, o segundo; e Itai o terceiro. Os homens a quem Davi confiou esta tarefa haviam demonstrado bravura e lealdade em diversas ocasiões. O estratagema de batalha de Davi dava aos seus guerreiros flexibilidade na arte de guerrilha, utilizando o terreno e táticas não convencionais contra a milícia conscrita de Absalão. H 3 - 5 Os soldados de Davi não permitiram que o rei entrasse na batalha. Davi representava um alvo de grande valor, cuja vida valia dez mil de seus homens (v. 3). Davi ficou na cidade e enviava ajuda quando necessário. Embora Davi não acompanhasse os homens na batalha, ele ordenou que seus comandantes

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deveriam “tratar brandamente” com Absalão. As ordens de Davi não parecem ser sábias. Ele basicamente pediu aos homens que estavam colocando a vida em risco por causa dele que mostrassem bondade para com seu arquirrival. Esta ordem não só desrespeitava os homens que estavam lutando por Davi, mas também transmitia fraqueza diante de um adversário perigoso. H 6-8 Os homens de Davi saíram para pelejar perto das floresta de Efiraim. A referência destas florestas apenas ocorre aqui, mas isto provavelmente in­ cluía uma região florestal do lado leste do Jordão. Além disso, o termo pode ser definido como um “bosque”, que incluía uma “mistura de árvores e vegeta­ ções rasteiras emaranhadas em terreno escarpado” (Evans, 2003, p. 215). Esse território pode ter sido povoado por efraimitas anteriormente quando eles se espalharam na região montanhosa central na Cisjordânia. Lutar contra os sol­ dados de Absalão nesta área florestal e traiçoeira definitivamente fornecia aos homens de Davi uma ampla cobertura para lutar em um estilo de guerra não convencional. A estratégia funcionou bem, pois, vinte mil homens de Israel ca­ íram nas mãos dos servos de Davi. O texto capta a engenhosidade deste plano de batalha afirmando que a batalha espalhou-se por toda a região e, naquele dia, a floresta matou mais que a espada (v. 8). Os homens de Davi definitiva­ mente usaram o terreno acidentado para sua vantagem, 1 9 - 1 5 Os homens de Davi não só desfrutaram do sucesso contra as tropas de Israel, mas a batalha eventualmente ceifou a vida de Absalão também. Em uma cruel reviravolta do destino, os cabelos longos pelos quais Absalão ficou tão famoso (14.26; Josefo, Ant. 10.10.2) também o levaram à sua ruína pes­ soal. Quando a mula de Absalão passou por baixo da espessura dos ramos de um grande carvalho, sua cabeça ficou presa nos galhos, de forma que ele ficou pendurado entre o céu e a terra (v. 9). Mesmo quando Absalão estava pendu­ rado vulneravelmente na árvore, os homens de Davi, conscientes da ordem que ele dera concernente a Absalão, não o feriram. Joabe, entretanto, propôs uma recompensa para aquele que o matasse: dez peças de prata e um cinturão de guerreiro (v. 11). O convite de Joabe para matarem Absalão não foi aceito. Um dos homens se defendeu, dizendo que se ele matasse Absalão, então Joabe se oporia (v. 13). Esta declaração apresenta um interessante ponto de vista sobre o caráter de Joabe, no sentido de que ele não daria a recompensa ao homem, mas, ao contrá­ rio, ficaria distante e permitiria que Davi mandasse executar o homem. Aquele soldado e possivelmente os outros sabiam que não podiam confiar em Joabe. À luz da relutância do soldado em matar Absalão, Joabe usou a oportunidade para ele mesmo tomar três dardos e atravessar o coração de Absalão (v. 14). Ao matar Absalão, todavia, Joab desafiou a ordem de Davi.

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I 1 6 - 1 8 Com a morte de Absalão, Joabe proclamou o fim da guerra. Os homens de Joabe tomaram o corpo de Absalão e lançaram-no num grande fosso na floresta (v. 17). Pedras foram amontoadas sobre o corpo de Absalão, significando assim o trágico fim de suas ambições políticas. O versículo 18 é geralmente tido como uma inserção editorial para explicar o pilar erigido no vale do Rei. Este vale fica a aproximadamente um quilômetro e meio ao norte da porta de Damasco em Jerusalém (Mauchline, 1971, p. 287). O monumento comemorava o fato de Absalão não ter um filho. A observação no versículo 18 fica em contraste com 14.27, que enumera três filhos de Absalão. Duas explicações são possíveis para esta tensão: Os filhos de Absalão já haviam morrido na luta contra os guerreiros de Davi, ou o presente versículo preserva uma tradição variante concernente à história da família da Absalão. ■ 1 9 - 2 3 A notícia sobre a morte de Absalão foi levada a Davi. Aimaás, filho de Zadoque se candidatou a entregar a mensagem de que o Senhor lhe fez justiça, livrando-o de seus inimigos (v. 19). Aimaás, que havia funcio­ nado como um mensageiro anteriormente (15.36; 17.17), estava ansioso para levar as novas ao rei. Joabe impediu que Aimaás entregasse a mensagem a Davi. Joabe poderia estar cuidando da segurança de Aimaás, considerando que Davi tinha a tendência de matar os portadores de más notícias (1.15; 4.12). Joabe pode também ter se preocupado por Aimaás dizer a Davi que Joabe matara Ab­ salão. Davi não ficou feliz com Joabe quando ele matou Abner (3.28). Como Davi reagiria agora, sabendo que Joabe desobedecera a uma ordem explícita? Joabe, em vez disso, escolheu um estrangeiro, um “cuxita” (alguém do sul do Egito, como Etiópia ou Núbia), para contar a Davi as novas sobre a morte de Absalão. Se Davi tinha o potencial de matar o mensageiro, seria melhor enviar um estranho do que um servo fiel. Aimaás entendeu a preocupação de Joabe, mas pediu para poder correr adiante também. O respeito e a lealdade de Aimaás por Davi ofuscava as preocupações com a sua própria segurança. Isto fica evidente pela sua resposta: “Seja o que for, deixa-me também correr” (v. 22 ARC). Joabe o permitiu, possivelmente pensando que o cuxita chegaria primeiro a Davi. H 2 4 - 2 7 Davi esperava ansiosamente ouvir as notícias da batalha. Ele estava sentado entre a porta interna e a externa da cidade para que pudesse ser o primeiro a encontrar qualquer mensageiro que chegasse do campo de batalha (v. 24). Além disso, uma sentinela estava situada no terraço da porta para que pudesse avistar qualquer mensageiro de antemão e transmitir a informação para Davi imediatamente. A sentinela levantou os olhos e viu uma figura

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solitária correndo em direção à cidade (v. 24). Já que os soldados geralmente viajavam em grupo, a visão de uma figura solitária geralmente significava que um mensageiro estava trazendo novas em sua boca. O vigia também notou um segundo mensageiro que corria como Aimaás, filho de Zadoque (v. 27). Davi sabia que Aimaás era um bom homem, e, logo, trazia boa notícia. Embora Aimaás tivesse saído depois, ele conseguiu chegar primeiro do que o “cuxita” à cidade. Ou Aimaás pegou um atalho para a cidade passando pelo caminho da planície (v. 23), e assim passou na frente do cuxita, ou ele simplesmente era mais rápido e correu mais do que o outro (o que é su­ gerido pelos versículos 27-28). Sua empolgação em levar as boas novas também pode tê-lo impelido a ir mais rápido do que o outro mensageiro. I 2 8 - 3 2 A construção sintática dos versículos 27b e 28 cria uma sensação de que o relatório de Aimaás seguiu imediatamente após a proclamação de Davi de que Aimaás traria boas novas. Além do mais, a sintaxe indica que Aimaás bradou, quase que com impaciência e antecipação, a Davi a fim de chamar a sua atenção logo antes de chegar à cidade. Sua breve, porém oportuna palavra ao se aproximar de Davi disse tudo: Bendito seja. A breve mensagem de Aimaás a Davi incluía a palavra sãlôm , um trocadilho com o nome do próprio Absalão ( 5bsãlôm ) e um prelúdio para a indagação de Davi concernente ao bem-estar {sãlôm) de seu filho no versículo 29. Ironicamente, não havia nada de pacífico com Absalão, cujo nome lite­ ralmente significa “pai da paz”. A resposta de Aimaás a Davi também indica que ele entendeu claramente a preocupação de Joabe em relatar a morte de Absalão. Aimaás não disse a Davi sobre o destino de Absalão, exceto Deus, que entregou os homens que se rebelaram contra o rei, meu senhor (v. 28). Davi não havia levantado a mão contra Saul, e Deus o protegeu, mas as pessoas que levantaram a mão contra Davi morreram na tentativa. A resposta de Aimaás também é quase ininteligível quando lida literalmente: Vi que houve grande confusão quando Joabe, o servo do rei, ia enviar teu servo, mas não sei o que aconteceu (v. 29). Alter observa que esta linguagem incorerente não é devida a corrupção textual, mas é uma resposta incoerente e nervosa a uma pergunta que Aimaás não ousava responder (1999, p. 309). Quando Davi per­ cebeu que não conseguiria ouvir a história toda por Aimaás, ele se voltou para 0 cuxita para obter a informação pertinente. O cuxita transmitiu a notícia da morte de Absalão a Davi, mas de um modo indireto, amenizando assim o gol­ pe: Sejam como aquelejovem os inimigos do rei, meu senhor (v. 32). 1 3 3 O Texto Massorético insere uma quebra de capítulo neste ponto da

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história, de forma que o leitor fica um pouco em suspense sobre a reação de Davi quanto à notícia da morte de Absalão. Será que Davi se voltará contra o cuxita e mandará que seja morto, como fez com o amalequita? As traduções modernas do inglês proveem uma resposta a esta questão antes que o capítulo 19 comece (v. 33). Davi não respondeu em ira, mas com extrema angústia. O texto nota que ele tremia e ele chorava. Davi somente conseguia reagir repetin­ do a frase que agora é famosa: Absalão, meu filho, meu filho! Muitos leitores acham nas palavras de Davi uma resposta quase patológica e incompreensível. Como poderia Davi demonstrar tal remorso por um filho desafiador cuja rebelião literalmente lhe custou o controle do reino ? Alguns argumentam que o amor de um pai transcendia as ações irresponsáveis de um filho rebelde, não importa o quanto as mesmas ferissem o pai individualmente. Entretanto, a re­ ação de Davi pode apontar para suas próprias falhas como pai. Foi a falta de uma disciplina firme na vida de Absalão que permitiu que ele se tornasse tão irresponsável e perigoso. A observação sobre o desejo de Davi em morrer no lu­ gar de seu filho (v. 33) pode até insinuar a culpabilidade de Davi na destruição de Absalão. A angústia de Davi poderia também ser o resultado da combinação de uma série de acontecimentos ruins que ocorreram em sua vida após o caso com Bate-Seba. Ele teve um filho que morreu ao nascer, outro filho foi morto por Absalão, e agora a morte do terceiro filho. E possível que o último aconte­ cimento tenha sido demais para Davi suportar.

5. Davi retorna para Jerusalém (19.1-43) H 1 - 4 As diferentes divisões textuais encontradas no Texto Massorético e nas traduções modernas também têm ramificações na ênfase de interpretação. Já que as traduções modernas se referem ao lamento de Davi em 18.33, o foco do trecho de abertura do capítulo 19 está na repreensão de Joabe a Davi nos versículos 5-8a. Contudo, no TM, o lamento de Davi é encontrado em 19.1 (em oposição a 18.33) e, logo, apresenta um retrato mais simpático do rei, no sentido de que focaliza a angústia de Davi. As notícias alcançaram Joabe de que o rei anda chorando e lastima-se por Absalão (v. 1). A combinação dos dois verbos tem a intenção de enfatizar a angústia de Davi. O primeiro verbo está no particípio (bõkaeh ) mostrando que Davi continuava a chorar por causa da morte de Absalão. O segundo é reflexivo (vayit *abeir), o que enfatiza o luto que Davi experimentava pessoalmente. Em essência, a gramática significa que Davi estava tão consumido com sua própria

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aflição que ele nem pensou como aquilo afetava os guerreiros que lutaram por ele. Uma vez que a demonstração pessoal (egoísta?) da angústia de Davi se tornou conhecida de seus homens, ela teve um efeito devastador sobre eles. Os soldados entenderam que Davi estava sofrendo por causa do filho , e isto se tornou em um insulto ao povo que o defendeu e arriscou a vida por ele. Em vez de ser um momento de alegria e celebração, os soldados entraram escondidos na cidade. Davi fez seus homens se sentirem envergonhados, como aqueles que fogem da peleja em covardia (v. 3). Como resultado, a vitória se tornou, naquele mesmo dia9 em tristeza (v. 2), e Davi somente aumentou os problemas cobrindo o rosto e clamando: meu filho Absalão! Meu filho, meu filho Absalão (v. 4). I 5 - 8 À luz do comportamento de Davi, Joabe veio à casa do rei para repre­ endê-lo face a face. Joabe afirmou, sem rodeios, que Davi estava envergonhan­ do todos aqueles que salvaram a vida dele, e também a vida dos filhos, das filhas e das esposas e concubinas dele (v. 5). Joabe também acusou a Davi de amar aqueles que o odiavam e odiar aqueles que o amavam. Com suas próprias ações, Davi estava deixando transparecer que os seus comandantes e soldados não significavam nada para ele e que, se Absalão ainda estivesse vivo, Davi estaria feliz (v. 6). Joabe, sem temer uma represália do rei, então ordenou a Davi uma série de três comandos rápidos, porém diretos no versículo 7: vai e encoraja teus soldados! Esta última frase poderia ser traduzida como “fale gentilmen­ te” ou encoraje os seus servos. Joabe ameaçou Davi que se ele não falasse boas palavras aos seus homens e reparasse o dano que havia causado, nem um só deles permanecerá contigo esta noite (v. 7). Joabe tinha o poder de animar o exército a abandonar Davi e, assim, deixar o rei sem poder. Esta situação seria pior do que todas as des­ graças que já te aconteceram. As palavras de Joabe indicavam que se Davi não consertasse a situação, outra rebelião, que seria liderada por Joabe, estaria no horizonte. Davi ouviu o conselho de Joabe, mas somente em parte. Em vez de falar com os soldados, ele sentou-se junto à porta da cidade e todos os sol­ dados juntaram-se a ele (v. 8). A imagem de Davi aqui não é a de um líder grato, vitorioso, que falava entusiasticamente com seus soldados. Ao contrário, esta imagem relembra o retrato “de um homem abatido até ao pó, que mal consegue se levantar, e faz apenas o mínimo que lhe é devido ou que se espera dele” (Alter, 1999, p. 213). Embora abatido, Davi sobreviveu, mas Absalão não. A morte de Absalão enviou os homens de Israel (i.e., as tropas de Absalão) fugidos para casa. Os israelitas teriam de decidir seu futuro e seu líder agora que as esperanças deles

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foram esmagadas com a derrota de Absalão. H 9 - 1 0 O material desta seção aborda a questão da futura liderança política de Israel. O que os israelitas que apoiaram Absalão iriam fazer agora que o golpe político falhou? O texto menciona no versículo 9 que o povo discutia acerca das perspectivas de se submeterem ao governo de Davi. O verbo que é usado neste contexto (dírí) é passivo e, logo, pode ser lido como “pleiteando” ou “contendendo” ou “disputando”. O texto transmite uma noção de que o povo estava em conflito por causa desta questão. O texto também deixa a im­ pressão de que as tribos israelitas tentaram muito a se convencer de que voltar para Davi seria uma boa escolha: O rei nos tirou das mãos de nossos inimigos, e ele nos livrou das mãos dosfilisteus; e agora ju giu da terra por causa de A b­ salão (v. 9).

Segundo esta linha de raciocínio, as tribos do norte baseavam sua decisão na capacidade de Davi no passado de “salvá-los” de seus opressores. Elas não basearam sua decisão em seus próprios sentimentos para com Davi, nem em como poderiam ser tratados sob o governo dele. A abordagem deles era utili­ tária, pragmática, e de curta visão. Isto pode tê-los beneficiado em curto prazo, mas isto os prejudicaria em longo prazo. ■ 1 1 - 1 5 Enquanto as tribos israelitas deliberavam sobre sua decisão, Davi ou ignorou, ou não se importou com o apoio de Israel, e voltou a sua aten­ ção para conquistar o favor do povo de Judá. Ele entendia que pessoas de seu próprio território apoiaram Absalão e que muita esperança de sua reinstalação dependia de uma reaproximação da tribo de Judá. Em vista disto, Davi enviou seus dois leais sacerdotes, Abiatar e Zadoque, para agir como seus embaixado­ res e abrir o caminho para a reconciliação (v. 11). Davi deu dois comandos importantes aos seus sacerdotes. Primeiro, eles deveriam relembrar ao povo de Judá que vocês são meus irmãos, sangue do meu sangue (v. 12). Davi compartilhava de um relacionamento íntimo com eles, já que eram como família para ele. Davi era proveniente da tribo de Judá, e, portanto, gozava de um relacionamento pessoal com eles. Segundo, eles deveriam enviar uma mensagem ao general ao exército deposto de Absalão, Amasa. Eles deveriam dizer a ele que Davi o considerava como família, embora ele tivesse liderado as forças da oposição. Eles também deveriam transmitir a Amasa que Davi oferecia torná-lo comandante no lugar de Joabe (v. 13). A rea­ ção de Joabe não é registrada aqui, mas o leitor pode presumir que ele não esta­ va satisfeito com a escolha de Davi em elevar o comandante das forças opostas. A estratégia de Davi valeu a pena, ele moveu o coração de todos os homens

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deJudd, como o de um só homem (v. 14). Ainda permanece obscuro se foi Davi

que moveu o coração dos homens ou se foi Amasa. A NRSV insere Amasa aqui, enquanto que a JPS coloca o nome de Amasa entre colchetes. A NIV simplesmente diz: “ele conquistou os corações de todos os homens de Judá”, deixando, assim, a questão obscura. Não obstante, este plano foi um bom sinal para Davi, quando eles envia­ ram de volta esta mensagem em uma voz unificada: Volta tu com todos os teus servos (v. 14). O verbo é um imperativo, de forma que a impressão dada é que o povo queria que Davi voltasse e antecipasse a sua volta para casa. Quando Davi chegou ao Jordão, Judá se encontrou com Davi em Gilgal (v. 15). O simbolismo disto não pode ser ignorado, considerando que Gilgal serviu como um importante ponto de parada quando os israelitas se prepara­ vam para entrar em Canaã (Js 4—5) e o povo renovou o reinado nos dias de Saul (1 Sm 11.14). O fato de Davi atravessar o Jordão perto de Gilgal convida o leitor a considerar seu retorno e o reestabelecimento da monarquia davídica à luz desses importantes acontecimentos. Judá trouxe D avi ou escoltou-o na travessia do Jordão até a terra, simbolizando, assim, o fim do êxodo de Davi de Jerusalém. ■ 16-23 O resto do capítulo é concernente a diversos indivíduos que se encontraram com Davi quando ele atravessava a terra de Israel. Nesta seção (v. 16-23) e na próxima (v. 24-30), dois indivíduos associados com a casa de Saul se encontraram com Davi em seu retorno a Jerusalém. Simei, que desafiadoramente amaldiçoou Davi e jogou pedras nele quando este saía de Jerusalém (16.5 -14), agora demonstrava humildade e contrição quando se aprontava para se encontrar com Davi. Simei essencialmente rogou a Davi que o perdoasse em vista de como havia tratado o rei anteriormente. O texto menciona que ele se apressou ou correu para cumprimentar o rei, e juntamente com ele vieram m il varões de Benjam im (v. 16-17). Os mil homens não estavam com Simei quando ele amaldiçoou Davi, mas também eram provenientes do território tribal de Saul. E possível que eles esti­ vessem preocupados com o fato de Davi exercer vingança contra eles também. Simei também seprostrou diante de Davi e rogou-lhe que o perdoasse pelo jeito como tratou o rei previamente (v. 18-19). Ele basicamente rogou que Davi não considerasse sua culpa e nem se lembrasse de como ele havia errado no dia em que Davi saiu de Jerusalém (v. 20). Um guerreiro de Davi, Abisai, viu na vulnerabilidade de Simei uma oportunidade para se vingar do inimigo de Davi. A resposta de Abisai no versículo 21: N ão m orreria, pois, Sim ei por isso, havendo am aldiçoado ao

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ungido do SENHOR? fornecia uma justificativa racional para a morte, já que o rei, o ungido do Senhor, era considerado sacrossanto (1 Sm 24.6-7). Embora uma reação compreensível, ela basicamente escondia seu desejo de fazer uma vingança pessoal contra Simei. Davi se desassociou de Abisai, entretanto, ao dizer: “Que tenho eu convosco, filhos de Zeruia?” (2 Sm 19.22). A resposta de Davi é intrigante já que ele usa o plural “filhos”, embora esteja se dirigindo a Abisai. O comentário de Davi parece estar sendo direcionado a Joabe, irmão de Abisai, já que abater pessoas caracterizava o seu modus operandi. O plano de Davi não incluía retaliação; Você não será morto (v. 23). Davi selou sua promessa com um juramento, que era válido pelo resto de seus dias. A reação de Davi a Simei neste contexto era não só misericordiosa, mas tam­ bém politicamente sagaz e pragmática. Seria difícil para ele garantir a lealdade dos benjamitas se tivesse mandado matar Simei logo ali. Davi, porém, não se esqueceu de Simei, mas o assunto perdurou até quan­ do ele estava em seu leito de morte quando Salomão tomou as rédeas do poder. Foi então, depois que o trono de Davi estava firmemente garantido entre o povo de Israel, que Davi relembrou a Salomão de como Simei o tratara naquele dia fatídico em que ele fugira de Jerusalém e instruiu a Salomão a não tê-lo como inocente. Basicamente, Davi mandou Salomão matar Simei (“saberás o que lhe hás de fazer” [1 Rs 2.9]), logo, “tecnicamente” mantendo o juramento que havia feito a Simei. H 2 4 - 3 0 Além de Simei, Mefibosete, o neto de Saul (uma leitura baseada na LXX, o TM diz ofilho de Saul)> também veio cumprimentar Davi. Mefibosete veio a Davi com uma aparência desgrenhada: “não tinha lavado os pés, nem tinha feito a barba, nem tinha lavado as suas vestes desde o dia em que o rei tinha saído até ao dia em que voltou em paz” (v. 24). A aparência desleixada de Mefibosete significava um ato de luto em favor de Davi durante a revolta de Absalão e tinha a intensão de ser tomada como um sinal de sua lealdade ao rei. A pergunta de Davi no versículo 25: Por que você não foi comigo? era uma tentativa de verificar a informação que Ziba lhe havia passado anteriormente (16.1-4) com o álibi de Mefibosete em 19.26,27. Mefibosete contou para Davi que Ziba o havia traído. Mefibosete havia planejado selar um jumento para que montasse e pudesse acompanhar Davi. Já que Mefibosete era coxo, ele alegou que não teve tempo de se aprontar e ir se encontrar com Davi, provendo, assim uma oportunidade para que Ziba fosse na frente e “falsamente” acusasse "o teu servo diante do rei, meu senhor” (v. 27). A linguagem de Mefibosete no versículo 27 emprega um trocadilho, já que

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a palavra para calúnia (rãgal) é quase idêntica à palavra para “pé/pés” (regei), chamando, assim, a atenção para a deficiência de Mefibosete e a tentativa de Ziba de desmerecê-lo. O apelo de Mefibosete também incluía uma linguagem estratégica na qual ele consistentemente referia a si mesmo como o seu servo, ele chamava Davi de anjo de Deus, e lembrava a generosidade de Davi para com ele depois da morte de Saul e Jônatas, seu pai. Davi parecia incapaz de distinguir se a história de Ziba ou a de Mefibosete era a verdadeira. Como resultado, ele alterou sua decisão inicial (16.4) e permi­ tiu que ambos tivessem direito à propriedade que Davi havia concedido a Ziba anteriormente. Ao invés de acatar a decisão, Mefibosete abriu mão de sua parte do campo, mostrando, assim, sua lealdade a Davi e a sua gratidão de quejâ veio 0 rei, meu senhor, em paz à sua casa (v. 30) 1 31-40 Por último, Davi foi recebido por Barzilai, que havia provido para ele quando esteve em Maanaim (17.27-29). Davi não se esqueceu da bondade de Barzilai para com ele e ofereceu retornar o favor convidando-o para ir com ele para Jerusalém, onde Davi proveria para ele (v. 33). Barzilai declinou a ofer­ ta de Davi, essencialmente alegando que era velho demais para poder desfrutar a vida no palácio de Davi, e ele não queria ser um peso para Davi. Mas, Barzilai se ofereceu para atravessar o Jordão e ir um pouco mais adiante com Davi e pediu que Quimã, provavelmente seu filho (1 Rs 2.6), passasse o Jordão com Davi e fi­ casse com o rei (2 Sm 19.36-37). Davi concordou em cumprir os desejos de Bar­ zilai por causa do grande respeito do rei pelo seu amigo: Quimã virá comigo! Farei por ele o que você achar melhor. £ tudo o mais que desejar de mim, eu o farei por você (v. 38). Quando Davi atravessou o Jordão, ele beijou Barzilai e 0 abençoou, dois sinais da afeição e reverência de Davi por este aliado. Quando Davi atravessou o Jordão, Quimã e todo o povo de Judá foram com ele. O texto faz questão de apontar que somente “metade do povo de Israel estava presente” (v. 40 ARC). Esta última observação insinua que nem todo o povo de Israel apoiava Davi nem queria vê-lo retornar como rei. O texto já está levantando a questão de que haveria problemas adiante para a casa de Davi. 1 41-43 Davi ainda não tinha voltado para Jerusalém quando sinais de dispu­ tas entre as tribos pareciam estar fervilhando. Todos os homens de Israel vieram a Davi com uma reclamação. Eles queriam saber: “Por que os nossos irmãos, os de Judá, seqüestraram o rei e o levaram para o outro lado do Jordão, como também a família dele e todos os seus homens? (v. 41). A acusação pelos ho­ mens de Israel é interessante por dois motivos. Primeiro, a palavra “seqüestraram” é semelhante à usada para descrever a maneira pela qual Absalão tinha seduzido o povo de Israel para longe de Davi (v. 41). Agora eles estavam usando as mesmas

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palavras contra os homens de Judá. Segundo, os israelitas tiveram o cuidado de chamar os judeus de nossos irmãos, logo, fazendo parecer que isto era um tipo de conflito que se levanta em uma família. Mais tarde, quando as tribos do norte ficaram insatisfeitas com o reino davídico, elas se desassociaram da família do rei, argumentando que não tinham “parte” na casa de Davi (1 Rs 12.16). A PARTIR DO TEXTO A história da fuga de Davi de Jerusalém durante a rebelião de Absalão traz à tona diversas ideias importantes. Primeira, Davi teve uma boa parte da culpa pela rebelião de Absalão, no sentido de que ele falhou em tratar adequadamente com a situação de Amnom (2 Sm 13) e no modo como tratou com Absalão (cap. 14). Porque Davi foi relaxado, como pai, em disciplinar seus filhos e em deixar um bom exemplo para eles, ele colheu uma safra de dor, humilhação e sofrimen­ to como resultado. Além do mais, o povo encontrou em Absalão um indivíduo que poderia prover para um tipo de liderança que ele estava procurando porque Davi e a sua administração foram negligentes no tratamento com a população. Desta forma, não só Absalão estava insatisfeito com o modo como seu pai o tra­ tava, mas o povo estava descontente com o reino davídico também. Esses fatores criaram as condições que fomentaram a rebelião e o retrocesso político de Davi. Segunda, apesar de a rebelião ter tirado Davi do poder, Deus permaneceu fiel à promessa da aliança que tinha feito com Davi. Ao longo do texto, o leitor é levado a se perguntar se o tempo de Davi como rei de Israel havia chegado ao fim quando ele saiu de Jerusalém sem nenhuma garantia de que voltaria. Em­ bora Davi enfrentasse uma grande oposição e a situação permanecesse desola­ da, no final, Davi recuperou seu trono e o controle do reino. Nesse processo, nós somos relembrados de que Deus não deixou nenhuma de Suas promessas ao rei cair por terra. Assim como Deus provou tantas vezes no decorrer da his­ tória do Seu povo, Deus permaneceu fiel e cumpriu a Sua palavra àqueles com quem Ele fez uma aliança. Terceira, na história da rebelião de Absalão nós aprendemos também o valor da amizade e da lealdade. Embora Davi tivesse seus caluniadores, Davi também teve um círculo de pessoas que permaneceram fiéis a ele. Em mui­ tos pontos da narrativa, vários indivíduos colocaram a vida em risco por Davi (17.15-21), ajudaram a confundir os planos dos inimigos (17.5-11), trouxeram alimento e auxílio nos momentos de necessidade (17.27-29), e lutaram por ele a fim de protegê-lo (18.1-18). A volta de Davi a Jerusalém e a restauração de seu reino não teriam sido possíveis sem a assistência dos outros. É também

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verdade que nos momentos da adversidade nós descobrimos quem são nossos verdadeiros amigos. Davi descobriu quem eram seus verdadeiros amigos e de­ monstrou sua gratidão a eles por sua fidelidade (19.31-40). Quarta, nós também aprendemos que Davi estendeu sua misericórdia e perdão aos seus inimigos, em vez de vingança. No decurso da narrativa, Davi enfrenta várias formas de oposição daqueles que não o apoiavam e pensavam mal dele. Absalão desrespeitou seu pai no sentido de que organizou sua rebe­ lião bem debaixo do nariz de seu pai. Quando Davi saiu de Jerusalém humilha­ do, pessoas como Simei lançaram insultos contra ele e o amaldiçoaram. Até o conselheiro de Davi, Aitofel, se voltou contra ele e buscou a sua ruína. De acor­ do com o texto, Davi nunca pensou em “acertar as contas” com seus inimigos. Na guerra contra Absalão, Davi ordenou a seus soldados que não ferissem seu filho. A notícia sobre a morte de Absalão não trouxe satisfação a Davi; ao contrário, ele expressou uma explosão emocional de dor e angústia. Quando a oportunidade novamente favoreceu Davi, e ficou óbvio que a rebelião havia terminado, ele não procurou retribuir às pessoas que quiseram feri-lo. Embora Abisai, por exemplo, quisesse destruir Simei por causa de seus atos de desprezo para com Davi, ele não permitiu que Abisai o ferisse. Davi até estendeu bon­ dade a Mefibosete, que parece ter traído Davi durante e revolta (16.3). Isto foi um gesto especialmente poderoso, considerando-se que Mefibosete tinha possivelmente se tornado mau, apesar da prévia bondade de Davi para com ele (Cap. 9). Logo, por meio do exemplo de Davi, nós aprendemos que o perdão, e não a vingança, realiza a obra redentora de Deus no mundo.

F. A revolta de Seba (20.1-26) POR TRÁS DO TEXTO O capítulo 20 pode ser dividido em suas seções principais: os versículos 1-22 concernem à revolta de Seba; os versículos 23-26 incluem uma lista re­ visada dos principais auxiliares de Davi. A revolta de Seba indicava que as ri­ validades entre as tribos e as dissensões que fomentaram a rebelião de Absalão não estavam completamente erradicadas. Embora Seba recebesse algum apoio para o movimento separatista, ele não desfrutava do respaldo político de todas as tribos do norte. A disputa que está registrada nos versículos 1-22 parece ter sido provocada pelas desavenças entre os representantes de Judá e Israel no final do capítulo 19 (Birch, 1998, p. 1350). Davi teve de lidar com líderes rebeldes

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como Se ba a fim de reunificar o seu reino. A imagem do descontentamento po­ lítico que está preservada no capítulo 20, porém, relembra ao leitor que os anos finais do reinado de Davi não foram de um calmo contentamento. Os eruditos estão de acordo que a lista de auxiliares de Davi (v. 23-26) foi inserida no texto. O desacordo que surge é se o registro é simplesmente uma variante da lista encontrada em 8.15-18 (McCarter, 1984, p. 435), ou se exis­ tem duas listas - uma datada de uma época inicial do reinado de Davi (8.15­ 18) e outra derivada de um estágio posterior (20.23-26) (Anderson, 1989, p. 243,244; Mettinger, 1971, p. 7). À luz das diferenças entre as duas listas, a última opinião parece mais provável. NO TEXTO

I 1-2 Embora Davi retornasse a Jerusalém com o seu reinado intacto, os pro­ blemas ainda esperavam por ele. A rebelião de Absalão tinha sido efetivamente reprimida, mas uma nova revolta estava em desenvolvimento. O texto inicia no v.l com uma referência a Seba, filho de Bicri, um benjamita. Seba era um desconhecido até este ponto, mas ele era do clã de Bicri, e mais importante, do mesmo território que o rei Saul. Logo, ele era simpatizante das tribos do norte e do reinado de Saul, e não de Davi. Seba é chamado defilho de Belial, utilizando a mesma linguagem em re­ ferência aos filhos de Eli (bêliya ‘a l ) em 1 Samuel 2.12 (ARC). O fato de ele ser chamado de um “imprestável” (TM) aqui é uma indicação de que este texto tem uma visão distintamente judaica e deriva dos círculos que são de perspec­ tiva pró-davídica. Seba não apoiava o reino davídico, e, portanto, instigou uma revolta entre as tribos de Israel com sua convocação à rebelião no versículo 1: Não temos parte alguma com Davi, nenhuma herança com o filho de Jessé! Para casa todos, ó Israel. Estas palavras também antecipam a reação das tribos do norte quando elas se desprendem da casa de Davi na época de Roboão (1 Rs 12.16). A convocação de Seba ao protesto ressoou entre o povo de Israel, e este seguiu Seba, enquanto o povo de Judá permaneceu fiel a Davi. H 3 Davi voltou para sua casa em Jerusalém. Uma das primeiras ordens de sua agenda incluía confinar as dez concubinas que foram deixadas para trás na ocasião da rebelião de Absalão. Já que Absalão “havia entrado” às concubinas de seu pai, Davi as colocou em guarda, e as sustentava, mas não entrou a elas (i.e., não teve relações sexuais). O texto observa que as concubinas permaneceram confinadas, vivendo como viúvas até a morte. Embora Davi provesse suas

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necessidades diárias, elas viveram em celibato a fim de evitar que outro homem se casasse com elas, e para isolar Davi da vergonha que a revolta de Absalão deve ter lhe causado. ■ 4-13 O texto dos versículo 4-22 volta ao assunto da revolta de Seba. Davi parece ter agido rapidamente a fim de colocar um fim na rebelião antes que a mesma pudesse crescer e tomar impulso. Davi procurou o antigo general de Ab­ salão, Amas a, para que reunisse os homens de Judá (v.4). A urgência do pedido de Davi fica aparente quando ele dá três dias para que os homens fossem reunidos. Por razões desconhecidas, Amasa demorou em ajuntar as tropas e o tempo de­ terminado passou. Como resultado, Davi se dirigiu ao seu leal guerreiro Abisai, juntamente com os servos de Davi para que perseguissem Seba (v. 6). Embora Davi não consultasse Joabe para esta missão, os homens de Joabe foram com Abisai à procura de Seba (v. 7). Além disso, a guarda pessoal de Davi, os queretitas, os peletitas, uniram-se a outros guerreiros para sufocarem a revolta. Amasa se juntou a eles com um pequeno exército à pedra grande que está junto a Gibeão (v. 8). O texto não diz ao leitor como Amasa alcançou os guerreiros, mas Joabe, que andava disfarçado, estava lá para recebê-lo. Quando Amasa indagou sobre o bem-estar de Joabe, este se aproximou de Amasa para beijá-lo e depois o feriu com uma espada na barriga, de forma que “lhe derra­ mou por terra as entranhas” (v. 10). Neste ponto da narrativa, Joabe matou três homens importantes associados a Davi: Abner (2 Sm 3.27), Absalão (18.14), e Amasa (20.10). Joabe pode ter cometido esses três assassinatos com impunida­ de já que só ele sabia da verdade acerca de Urias. Já que apenas poucas pessoas tinham informação sobre o assassinato de Urias, Joabe conseguia manter esta informação contra Davi e não temer qualquer recriminação por parte do rei. Salomão, por outro lado, eliminou Joabe quando sucedeu Davi como rei (1 Rs 2.28-34). H 14-22 Seba viajou pela região norte e chegou à cidade de Abel-Bete-Maaca (v. 14). Esta era uma cidade localizada a aproximadamente dezoito quilômetros ao norte do lago Hula, perto da cidade de Dã. Embora Seba tenha iniciado esta revolta contra Davi, parece que a mesma não ganhou uma força significativa. Entre todo o povo israelita, apenas os bicritas (o próprio clã de Seba) apoiaram o movimento. As forças de Joabe chegaram à cidade e a cercaram. Primeiro, eles armaram uma rampa para o cerco, depois começaram a derrubar o muro. Com a cidade sob coação, uma mulher sábia gritou a Joabe e questionou sobre a eficácia de se destruir uma cidade israelita (v. 16). A destruição da cidade provavelmente inflamaria os ânimos contra Davi por “devorar a herança do Se­ nhor” (v. 19). Esta também representa a segunda ocasião em que Joabe interage

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com uma mulher que é chamada de sábia (veja 14.2). Na primeira ocasião, ele utilizou uma mulher de Tecoa para garantir o retorno de Absalão. Nesta opor­ tunidade, ele dependeu do conselho de uma mulher sábia para apreender um inimigo de Davi. Joabe forneceu a razão para o cerco e indicou que Seba havia se revoltado contra Davi e agora havia se abrigado atrás do muro daquela cidade. Joabe propôs uma negociação com ela: “entregai-me só este, e retirar-me-ei da cidade” (v. 21). O pedido de Joabe pareceu razoável à mulher sábia. Ela voltou ao povo da cidade e o persuadiu a entregar Seba. O povo cortou a cabeça de Seba e a lançou a Joabe. A instrução da mulher provou ser saudável, afinal: ela ajudou a salvar a cidade e impediu Joabe de cometer uma violência desnecessária contra seus companheiros israelitas. Com a rebelião essencialmente exterminada, Joa­ be tocou a trombeta e os soldados se dispersaram da cidade e foram para casa. H 2 3 - 2 6 Com a ordem restaurada, o texto inclui uma breve notícia sobre os funcionários administrativos de Davi. A colocação dos auxiliares de Davi nesta conjuntura é lógica, considerando-se que o reinado de Davi havia sido restau­ rado. No capítulo 8, a lista de auxiliares aparece depois que Davi solidificou sua posição no reino. A lista da equipe administrativa nesses versículos é bem similar à que está em 8.15-18. Existem algumas diferenças importantes que indicam que o gabinete de Davi mudou com o passar do tempo. Adonirão é citado como o oficial encar­ regado do trabalho forçado. No reinado de Davi, e depois de Salomão, tanto 1 os estrangeiros (1 Rs 9.13-21) como os israelitas (1 Rs 5.13-17) eram igual­ mente recrutados para os projetos de serviço ao rei. Ser submetido ao serviço do rei se tornou muito impopular e foi uma das maiores causas da cisão da monarquia unida (1 Rs 12.16). Adonirão, mais tarde, seria morto pelo próprio povo que ele supervisionava (1 Rs 12.18). Ira é citado como sacerdote de Davi e parece ter substituído os filhos de Davi (2 Sm 8.18). Ira era de Havote-Jair, em Gileade (Nm 32.41; Dt 3.14), e ele não parecia desfrutar da mesma posição que Zadoque e Abiatar nos assun­ tos cultuais. Seva é uma variante do nome Seraías (2 Sm 8.17). Para Abiatar, veja o comentário em 2 Sm 8.17. A PARTIR DO TEXTO Esta unidade nos lembra de que o povo de Deus não está imune aos criticismos e às hostilidades daqueles se opõem a nós. Embora Davi representasse o líder ungido de Deus entre o povo, e Deus restaurasse a monarquia de Davi após uma tumultuosa revolta, Davi ainda enfrentou oposição de seus calunia­ dores, especialmente daqueles que eram leais à casa de Saul. Este exemplo da

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vida de Davi ilustra o ponto de que, como crentes, podemos estar vivendo na vontade de Deus, demonstrando uma vida santa, e obedecendo cuidadosa­ mente às instruções de Deus, e ainda assim podem aparecer pessoas no nosso caminho que sejam antagônicas para conosco e nos desafiem ativamente. Ser um seguidor de Deus não garante que você será popular com todo mundo. A vida de José, Moisés, Daniel, Jesus, e Paulo atesta o fato de que indiví­ duos de grande fé e obediência podem enfrentar toda sorte de abusos, perse­ guições e adversidades, mesmo injustificáveis. O exemplo deles também nos ensina que a nossa fé em Deus e o nosso compromisso de viver segundo os princípios de Deus podem até ser a razão pela qual certas pessoas nos despre­ zam. Durante esses momentos é importante ter em mente que só porque en­ frentamos um tratamento injusto por outros, isto não significa que estamos vivendo fora do centro da vontade de Deus. É imperativo fixarmos o olhar em Deus e não nos distrair com aqueles que lançam insultos sobre nós, confiarmos no cuidado providencial de Deus para nos suster, e não procurarmos vingança contra aqueles que nos tratam injustamente. Desta maneira podemos vivenciar o propósito de Deus em nossa vida e refletirmos o caráter e o exemplo de Cristo em nosso mundo.

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V. APÊNDICES (2 1 .1 -2 4 .2 5 )

POR TRÁS DO TEXTO Os capítulos 21—24 ficam em uma posição exclusiva dentro da estrutura geral de Samuel. Por um lado, eles representam o fechamento formal do livro, no entanto, por outro lado, eles formam sua própria unidade literária distin­ ta. Durante muito tempo, os eruditos contemplaram esta unidade como um apêndice “intrusivo” que basicamente interrompia a Narrativa da Sucessão em 2 Sm 9—20 e 1 Rs 1—2 (Birch 1998, 1354). Porque os estudiosos original­ mente consideravam este material como supérfluo, eles não pensavam que o mesmo tivesse qualquer peso significativo na interpretação de Samuel. Uma análise dos capítulos 21—24 revelou que eles formam uma estrutura quiástica (Budde, 1902, p. 304; Childs, 1979, p. 273-275): A 21.1-14: uma narrativa da expiação da culpa de Saul B 21.15-22: uma lista de heróis e de seus feitos C 22.1-51: uma canção de ação de graças pelo livramento do Senhor C ’ 23.1-7: uma canção de celebração pela promessa de Deus a Davi B’ 23.8-39: uma lista de heróis e de seus feitos A’ 24.1-25: uma narrativa da expiação da culpa de Davi


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Baseado no diagrama anterior, o leitor pode detectar que os capítulos 21 — 24 foram arranjados de uma maneira muito deliberada e cuidadosa pelo editor de Samuel. Estes materiais formam um anel concêntrico no qual duas canções de louvor e ações de graça (22.1-51; 23.1-7) estão cercadas por dois relatórios dos heróis de Davi e seus feitos (21.15-22; 23.8-39), e depois, conjugados com duas narrativas baseadas no tema da expiação da culpa de Saul e de Davi (21.1­ 14; 24.1-25). O arranjo desses capítulos contém uma lógica básica que se torna aparente numa inspeção mais de perto. O capítulo 24 corresponde com o 21.1-14 base­ ado em seu tema de “castigo” comum pelos abusos da realeza que aconteceram no governo do rei israelita (Anderson, 1989, p. 282). As listas dos guerreiros de Davi em 21.15-22 e 23.8-39 foram comparadas a fim de retratar Davi tanto como um líder de homens heroicos e como alguém que dependia da ajuda de­ les em momentos de perigo. O cenário da canção de gratidão de Davi (22.1-51) é apropriado, considerando-se que vem precedido de duas revoltas perigosas, porém, malsucedidas contra Davi (capítulos 15—20) e pelo episódio dos qua­ tro gigantes (21.15-22). Finalmente, o texto poético de 23.1-7 funciona como um tipo de último desejo e testamento de Davi quando ele reivindicou as pro­ messas de Deus para si e antecipou a perpetuação da dinastia davídica após a sua morte. O arranjo canônico dos capítulos 21—24 também tem um significado interpretativo e teológico importante. No “coração” deste quiasmo (C,C’), a fidelidade da aliança de Deus é enfatizada. Isto fica evidente pelo fato de que Deus veio em socorro de Davi, livrou-o do perigo, e lhe deu vitória sobre os seus inimigos. A fidelidade de Deus também estava no centro da aliança que Deus estabeleceu com Davi e era a base na qual Davi poderia confiar que seus desejos para com a dinastia se concretizariam. As “bordas” do quiasmo (A, A’) apresentam uma mensagem completamente diferente. Enquanto que o centro do quiasmo fala bem do caráter de Deus, os extremos levantam a preocupação sobre os reis humanos e sua tendência de abusar da autoridade que Deus lhes confiou. No caso de Saul, ele fala da brutalidade da matança dos gibeonitas sem uma causa justificável (21.1-14). Com relação a Davi, ele aponta para o seu desejo de ampliar o poder do rei e declara isto com a realização do censo. Brueggemann tem corretamente afirmado que o capítulo 24, por exemplo, revela um rei assolado por uma arrogância egoísta e autônoma (1988, p. 383). Em termos de sua história de transmissão, os capítulos 21—24 foram vários materiais independentes e originalmente não relacionados que foram

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combinados juntamente pelo editor final de Samuel. A primeira destas unidades textuais, 21.1-14, é baseada na tradição que aparece fora do lugar na perspectiva cronológica. Ambos os eventos do capítulo 9 e a maldição de Simei sobre Davi (16.7 ff.) pressupõem que a morte dos sete filhos de Saul já tivesse acontecido (Hertzberg, 1964, p. 381). Os eventos do capítulo 21, logo, ajustam-se melhor ao início do reinado de Davi, e não ao final. A história pode ter sido tirada de seu contexto original (antes do capítulo 9) durante o processo de transmissão e subsequentemente colocada depois do capítulo 20 pelo compilador final. Ao fazer isto, o editor final de Samuel manteve o tema da disputa de Davi com os membros da família de Saul, um tema que ocorre proeminentemente ao longo da história de Davi. 2 Samuel 21.15-22 consiste de quatro curtos episódios que ocorrem du­ rante as guerras filisteias. Em cada um desses relatos, o oponente é um homem de tamanho incomum, e em alguns casos, de descrição física extraordinária. Estes textos podem ter se originado dos arquivos nos quais os feitos notáveis eram registrados por escrito e formavam “Book of the Wars of the Lord” (Nm 21.14) (Hertzberg, 1964, p. 386). Como 21.1-14, este material não parece se encaixar no contexto literário e pode ter sido originalmente conectado aos re­ latórios das batalhas de Davi com os filisteus em 2 Sm 5.17-25, por exemplo. Os relatos de 21.15-22 podem ter sido inseridos após o capítulo 20 pelo com­ pilador final porque a última guerra de Davi foi registrada no cap. 20. As tenta­ tivas dos estudiosos de explicar a razão para esta colocação no final de Samuel “provavelmente não serão bem-sucedidas”, todavia (McCarter, 1984, p. 451). O texto poético de 22.1-51 tem um paralelo, em muitos aspectos, com o Sl 18. Porque o salmo chega até nós em duas versões, é provável que elas se origi­ naram da mesma versão do poema. As divergências que existem são “de origem ortográfica e correspondem às categorias da mudança que acontecem na trans­ missão de todo texto antigo” (McCarter, 1984, p. 473). A canção é um hino de ação de graças, e como tal, possui muitas das marcas características de um salmo de seu gênero (i.e., introdução, clamor por ajuda, descrição do livramen­ to, referência à justiça de Deus, uma confissão, etc.). Este salmo é geralmente considerado como sendo muito antigo, mais provavelmente, proveniente de uma época do início da monarquia, e teve suas origens num cenário cultuai (Hertzberg 1964, 392-93) O texto poético de 23.1-7 é apresentado como as “últimas palavras” ou “último desejo” de um moribundo. Como tal, a passagem forma um paralelo com as últimas palavras de Jacó (Gn 49) e Moisés (Dt 33). Não obstante, 2

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Samuel 23.1-7 é retratado como um oráculo profético e não como uma bênção formal (Evans, 2003, p. 240). Fora do versículo 1, que parece ser uma inserção editorial, acredita-se que o poema reflete o período monárquico inicial. A evi­ dência para uma data mais antiga deste texto está baseada no paralelo com os oráculos de Balaão em Números 24, que são reconhecidos como antigos, bem como a temática “o rei sob a imagem do sol” (v.3b-4) encontrada na literatura egípcia do Médio Império (McCarter, 1984, p. 484). Além do mais, o poema também fala da casa real de Davi como uma instituição viva e não como um objeto de esperança messiânica futurística. Isto indicaria que ele corresponde ao período monárquico e não a uma época posterior. A litania dos guerreiros de Davi em 23.8-39 está interessada nos dois gru­ pos de elite dentro do exército de Davi: os Três (v. 8-12) e os Trinta (v. 13­ 39). A lista parece ter se expandido enquanto o poder de Davi crescia. Os dez primeiros guerreiros depois de Asael (v.24) vieram do território de Judá e das cidades nas proximidades de Belém. Os próximos dez são da parte norte de Israel, e provavelmente se uniram a Davi depois que ele estabeleceu controle sobre o antigo reino de Saul. Os três guerreiros dos versículos 33-35 são do sul de Judá. A esses 23 guerreiros, os Três foram adicionados, juntamente com Abisai, Benaia, Asael e Joabe, trazendo assim o número para 30. Esta prova­ velmente representava a lista original dos varões valorosos de Davi (McCarter, 1984, p. 500). Os homens dos v.36-39 representam substituições, já que vários deles vieram do leste do Jordão ou não eram israelitas de origem. Os eruditos expressam opiniões diferentes sobre a história literária do ca­ pítulo 24. Alguns argumentam que o capítulo é mais ou menos um bloco uni­ ficado com alguns acréscimos (v. 10,17) inseridos (Smith, 1929, p. 387). Ou­ tros isolam revisões deuteronomistas mais extensivas no todo (Veijola, 1975, p. 340-357). Diversos eruditos argumentam que este texto é uma compilação de tradições independentes mais amplas (Dietrich, 1972, p. 42; Schmid, 1970, p. 241-250; Rupprecht, 1977, p. 5-9). Dentro deste modelo, três blocos de nar­ rativas foram agrupados: os v.2, 4b-9 recontam o censo de Davi (deixando os v.l,3-4a como suplementos redacionais); os v. 11-15 incluem a visita de Gade a Davi (v. 10 é uma adição posterior); e os v. 16,18-25 consistem de uma etiologia do altar (v. 17 é uma inserção secundária) (Rupprecht, 1977, p. 10-15). Embora os estudiosos modernos tenham a tendência de reduzir o capítulo em vários elementos, uma leitura canônica do texto mostra que existe uma es­ trutura lógica. O censo de Davi faz com que Deus envie o profeta Gade a Davi; Gade proclama o julgamento sobre Davi por suas ações; o povo sofre a praga por causa do rei; Davi compra a eira na qual ele pode oferecer os sacrifícios. As

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observações iniciais sobre o fluxo geral do capítulo revelam que os eventos são conduzidos para o fim proposto, que culmina com a compra da eira. NO TEXTO

1. Davi e os gibeonitas (21.1-14) I 1 O capítulo começa com uma notícia de que houve uma fome na ter­ ra. Extensos períodos de seca não eram incomuns na terra de Canaã (Gn 12.10;26.1), entretanto, a fome referida aqui parece ter sido especialmente se­ vera, pois durou três anos. Os povos do mundo antigo percebiam a fome como um sinal de que os deuses/deusas aos quais adoravam estavam irados e então re­ tinham a chuva. Davi não era diferente, e ele consultou ao Senhor sobre a causa da seca. O texto não menciona que ele utilizava os canais sacerdotais a fim de se comunicar com Deus; parece que ele buscou a Deus diretamente. Também não está claro onde Davi fez esta consulta, mas existia um lugar alto em Gibeão (1 Rs 3.4-5). Considerando que os gibeonitas são o assunto principal nos ver­ sículos seguintes, esta parece ser a opção mais plausível. O Senhor deu uma explicação para a fome: “É por causa de Saul e da sua casa sanguinária, porque matou os gibeonitas” (2 Sm 21.1 ARC). Esta declara­ ção traz à tona o episódio de Josué 9, quando Josué e os israelitas pouparam os gibeonitas da matança. Os israelitas subjugaram os gibeonitas e eles se torna­ ram servos (“rachadores de lenha e tiradores de água” [Js 9.21]) dos israelitas. Parece que eles foram usados nesse serviço no santuário de Gibeão. Porque os israelitas fizeram uma aliança com os gibeonitas (Js 9.15), eles ficaram obri­ gados a protegê-los (Js 10.1-15). Ao invés de protegê-los, o texto alega que Saul foi responsável por matá-los. O texto não conta, porém, o incidente em que Saul tomou uma atitude mortal contra os gibeonitas, quebrando assim o tratado. Ou o material que registrou o massacre foi extraviado, ou é possível que a matança esteja associada ao assassinato dos sacerdotes em Nobe (1 Sm 22.6-23). I 2 - 6 Quando Davi recebeu a resposta, ele convocou os gibeonitas. O texto traz uma nota parentética no versículo 2b dizendo que os gibeonitas não eram israelitas, mas remanescentes dos amorreus, membros dos habitantes da terra antes dos israelitas. Esta observação é provavelmente uma inserção secundária no texto para esclarecer a identidade dos gibeonitas e explicar as ações de Saul em relação a eles (Caird, 1953; Smith, 1929). Ambos os fragmentos de informação seriam úteis aos leitores posteriores. Davi parecia pronto para dar assistência aos gibeonitas de qualquer forma

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que pudesse (v. 3): Que quereis que eu vosfaça? E que satisfação vos darei, para que abençoeis a herança do SENHOR? Davi perguntou às vítimas daquele ato brutal como o crime deveria ser expiado e o que deveria ser feito com o responsável. Como rei, Davi era responsável por supervisionar e manter a justiça na sociedade, e ele estava revestido de poder para fazer isto. Os gibeonitas apresentaram a Davi o pedido deles no versículo 6; eles pediram que sete descendentes de Saul fossem mortos como reparação pelos gibeonitas que Saul assassinara. O pedido dos gibeonitas por justiça era comensurável com o crime cometido contra eles. Eles não buscavam ouro nem prata como pagamento de ninguém da casa de Saul, nem procuravam m atar pessoa alguma em Israel (v. 4). Eles buscavam sangue em resposta do sangue que Saul derramou. A execução dos descendentes de Saul estava de acordo com os membros tribais, enquanto que sete foi o número escolhido porque era tido como santo (Hertzberg, 1964, p. 383). O método que eles queriam para a execução não se sabe. O termo usa­ do no versículo 6 é baseado na palavra (yãqa ) cujo significado é ambíguo. A NVI traduz como executados enquanto outras dizem “empatados” (NRSV, JPS). Considerando a frase seguinte, perante o Senhor, é mais provável que se leia “empalar”. De qualquer forma, aquele tinha a intenção de ser um castigo humilhante e doloroso. Isto deveria acontecer em Gibeã de Saul, o eleito do SENHOR. Comentaristas modernos leem “Gibeão”, baseados em uma recons­ trução do texto da LXX. Isto faz sentido tendo em vista o fato de que um lugar alto estava localizado em Gibeão. A resposta de Davi aos gibeonitas no versículo 6 foi lacônica e direta: Eu os entregarei a você. A execução dos membros da família de Saul foi justa, considerando que o crime ocorreu quando Saul era rei. Isto satisfaria aos gibe­ onitas o desejo de retaliação, mas não era excessivo o bastante para que pudesse gerar sentimentos hostis entre os israelitas. Davi também se beneficiaria com a morte dos familiares de Saul, já que isto eliminaria a oportunidade de alguém da casa de Saul fazer ressurgir a velha monarquia. Aquela decisão essencialmen­ te fortalecia o domínio de Davi sobre o reino. H 7 - 9 Do restante dos homens descendentes da família de Saul, somente Me­ fibosete foi permitido viver (v. 7). O texto observa que Davi poupou o filho de Jônatas por causa do voto que havia estabelecido entre Jônatas e Davi (1 Sm 20.12-17). O termo usado aqui inclui a noção de ter compaixão de alguém, como quando a filha de faraó teve compaixão de Moisés e poupou a vida dele (Êx 2.6). Davi tomou os dois filhos de Rispa, que era concubina de Saul (2 Sm

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3.7-11), Armoni e Mefibosete, bem como cinco filhos da filha mais velha de Saul, Merabe (v. 8). O TM, na verdade, diz “Mical”, mas outros textos indicam que Mical era estéril (2 Sm 6.23) e que Adriel era seu marido (1 Sm 18.19). 0 nome Merabe está também atestado nas tradições textuais antigas como a LXX, a Peshita, e o Targum. Logo, “Merabe” é preferível. O texto continua a mostrar o envolvimento ativo de Davi nesse processo: ele poupou Mefibosete, pegou os filhos de Rispa e Merabe, e depois “os entre­ gou na mão dos gibeonitas” para serem executados (2 Sm 21.9). Não é de se surpreender porque Simei, que estava associado à família de Saul amaldiçoasse Davi como assassino e filho de Belial durante a revolta de Absalão (16.6-7). Os gibeonitas os enforcaram no monte, perante o SENHOR nos dias da sega, nos dias primeiros, no princípio da sega das cevadas (v.9). Os filhos fo­ ram executados na época da colheita da cevada (abril-maio) no mês de Zive. Zive correspondia ao segundo mês do ano agrícola segundo o calendário cananeu (McCarter, 1984, p. 442) e é mencionado em conexão com a construção do templo de Salomão (1 Rs 6.1,37). Alguns eruditos têm argumentado que este capítulo mostra evidência de que Davi assimilou práticas de adoração cananeias ao permitir que os membros da família de Saul fossem executados nessa época específica do ano. O rei era responsável pela fertilidade da terra, e sacrificar os membros da família de Saul garantiria que as chuvas voltariam (Kapelrud, 1955, p. 116-117; 1959, p. 299). Outros, todavia, têm demonstrado que o verdadeiro foco aqui se concentra na questão da exigência do castigo pelas violações de um tratado, uma questão que é mencionada em outras culturas antigas (Fensham, 1964, p. 20). Ao se vingar de um crime, o peso da culpa pelo crime cometido no passado não seria transmitido à presente geração. 1 10-14 Rispa, a mãe de dois daqueles homens, cuidou dos corpos dos mor­ tos “desde o princípio da sega, até que destilou a água sobre eles do céu” para protegê-los dos animais selvagens (v. 10). A vigília de Rispa durou meses, desde abril até maio, durante o verão todo (Hamilton, 2004, p. 361). Isto era contrá­ rio à lei em Dt 21.22-23, que proibia que um corpo passasse a noite pendurado no madeiro. A presença da chuva indicava que a tentativa de Davi de fazer emendas pela morte dos gibeonitas foi bem-sucedida. O texto nota que “Deus se aplacou para com a terra” (9 v. 14b); a seca acabou agora que o crime de Saul foi expiado. Os cuidados de Rispa não deixaram de ser notados. Davi ficou sabendo do que ela havia feito ao cuidar dos corpos dos descendentes de Saul. Davi ficou tão comovido com a atitude dela que pegou os ossos de Saul e de Jônatas com

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o povo de Jabes Gileade (1 Sm 31.12-13), e eles foram congregados aos ossos daqueles que foram empalados. Os ossos foram levados para a terra de Zela e colocados no túmulo de Quis, pai de Saul.

2. Os homens de Davi (21.15-22) ■ 1 5 - 1 7 Esses versículos contam quatro episódios nos quais Davi e seus ho­ mens lutaram contra gigantes filisteus. O primeiro relato (v. 15-17) começa com a declaração: “Tiveram mais os filisteus uma peleja contra Israel” (v. 15 ARC). A colocação deste episódio de batalha é curiosa e fora de lugar. Será que esta pretende seguir o capítulo 20, que fala da batalha mais recente de Davi, ou será que se conecta melhor com 2 Samuel 5.17-25, que narra a última batalha de Davi com os filisteus? A maneira como essas tradições foram montadas faz com que responder a esta pergunta com qualquer certeza seja uma tarefa difícil. O texto faz referência a Isbi-Benobe, que é chamado de “um dos filhos dos gigantes” (v. 16 NRSV). O termo usado aqui (rãpâ) para descrever Isbi-Benobe é semelhante aos “refains” que também são notados por seu grande porte (G n 14.5; 15.20; Js 12.4; 13.12). A descrição da lança dele também é similar à história de Golias (1 Sm 17.7), embora a lança de Isbi-Benobe tivesse a metade do peso (três quilos e seiscentos gramas) e fosse feita de bronze. O texto cita que Isbi-Benobe tinha a intenção de matar Davi, mas Davi não estava em forma para lutar contra este guerreiro {Davi se cansou [v.l5b]). Abisai, sobrinho de Davi, filho de sua irmã Zeruia (1 Sm 26.6; 2 Sm 2.18), veio ao auxílio de Davi eferiu ofilisteu e o matou (21.17). O texto enfatiza a vulnerabilidade de Davi aqui; ele não está em forma para lutar e tem de depender da assistência de seus guerreiros para poupá-lo do perigo. Embora Davi tenha sido nada menos do que um guerreiro eminente até este ponto do texto, nos v. 15-17 ele é retratado como alguém que está pro­ pício à fragilidade e fraqueza. Parece que Davi tornou-se um peso para os seus guerreiros, e eles não queriam correr o risco de perdê-lo. Eles ordenaram a Davi a não sair mais para as batalhas, para que a lâmpada de Israel não se apagasse. U 18-22 Três relatos de breves batalhas estão incluídos nos v. 18-22 para arrematar o capítulo. No primeiro relato, Sibecai matou um dos gigantes cha­ mado Safe em Gobe. A localização da cidade de Gobe é desconhecida; ela só é mencionada aqui e no v. 19. Sibecai, de Husate, era da cidade de Husa, que estava localizada ao sudoeste de Belém (2 Sm 23.27; 1 Cr 4.4). Ele é citado como um dos “trinta” guerreiros de Davi (2 Sm 23.24). O segundo relato no v. 19 afirma que Elanã (...)> de Belém, matou Go-

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lias, de Gate. A similaridade com a batalha de Davi contra Golias (1 Sm 17) é inegável, incluindo a referência à espada de Golias, cuja lança era como um eixo de tecelão (1 Sm 17.7). Diferentes argumentos têm sido apresentados para explicar os paralelos entre este versículo e o relato de 1 Samuel 17. Primeiro: Elana, que também é o “filho de Dodô” (2 Sm 23.24 ARC), seria um nome alternativo para Davi. Segundo: Davi, que era muito mais famoso, mais tarde, com o passar do tempo, substituiu Elanã na história. Terceiro: o nome Go­ lias se tornou secundariamente associado ao filisteu anônimo que Davi matou. Quarto: o cronista nota que Elanã matou Lami (1 Cr 20.5), preservando, as­ sim, o registro original da história. Não existe uma resposta exata, mas a segun­ da e a terceira opções parecem as mais plausíveis. O terceiro episódio, nos v. 20-21, muda o cenário da batalha para a cidade palestina de Gate, onde Jônatas, filho de Simeia, irmão de Davi, matou um filisteu que tinha seis dedos em cada mão e seis dedos em cada pé. O relacio­ namento entre o Jônatas citado aqui e o Jônatas, filho de Sama, o hararita, da lista dos Trinta (2 Sm 23.33) é incerto. O anterior está associado a Belém e suas circunvizinhanças, enquanto o outro não está. O último é citado como Jônatas, filho de Samote, o “harodita”, em 1 Crônicas 11.27 (ARC).

3. O hino de ação de graças de Davi (22.1-51) H 1 Este versículo corresponde ao título do Salmo 18. Ele indica que esta can­ ção foi uma resposta ao livramento que Davi teve de seus inimigos, inclusive das mãos de Saul. Nenhuma ocasião específica é mencionada aqui, mas a fuga de Davi no deserto para evitar Saul pode estar insinuada aqui. I 2-4 Diversas metáforas são usadas nestes versículos para retratar Deus como um abrigo em momentos de perigo. Várias metáforas relembram inci­ dentes particulares pelas palavras escolhidas (Baldwin 1988,287). Deus é cha­ mado de minha rocha (v.2), por exemplo, o que descreve a situação de Davi em 1 Samuel 23.25-28. O termo minha fortaleza relembra 1 Samuel 22.4; 24.22, e a própria Jerusalém (2 Sm 5.7). A frase Deus é a minha rocha (22.3^) também é similar a 1 Samuel 24.2. Logo, Davi lembrava-se de experiências pas­ sadas, quando Deus o livrara de seus inimigos, como base em sua confiança de que Deus viria em seu auxílio novamente (v.4). ■ 5-7 As palavras aqui refletem os momentos em que Davi estava sendo atacado por diversos oponentes. As ameaças eram tão severas que ondas da morte o confrontavam e “cordas do inferno” (NRVS) o emaranhavam. Eram

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nesses momentos de oposição, entretanto, que Davi clamava ao Senhor, e Deus maravilhosamente ouvia a sua voz e o seu clamor. ■ 8-16 Em resposta ao clamor de Davi, Deus conduzia as forças da natureza para que socorressem o Seu servo. As imagens desses versículos são também alusivas às manifestações do poder que Deus demonstrou no Sinai (Ex 19.9, 16-20). O texto indica que Deus, que tem todo o poder sobre a natureza, mo­ veria o céu e a terra para responder ao clamor de quem estivesse em perigo. I 17-20 Davi estava na posição de receber a intervenção de Deus em suas questões. Deus “tirou-o das muitas águas” (JPS) e livrou-o de seu possante ini­ migo. Deus o levou a um “lugar amplo” (NRSV), onde ele estivesse seguro, e agora ele poderia viver em paz. H 2 1 - 2 5 O Senhor livrou Davi, porque suas ações eram justas e corretas, especialmente em relação a Saul. Davi havia “guardado os caminhos do [SE­ NHOR],” e “de Seus estatutos não se desviou” (v.2Zz, 22>b NRSV). Davi não executou vingança contra Saul, mas esperou no Senhor para que o vindicasse. Agora a vindicação havia chegado, ele podia concluir seguramente que ele ti­ nha sido reto diante de Deus (Sl 66.18-19). Davi estava irrepreensível diante do Senhor e, portanto, o Senhor o recompensou adequadamente. H 2 6 - 3 1 As interações de Deus com os indivíduos estão na proporção direta do caráter deles. Deus é leal àqueles que lhe são leais, é sincero com aqueles que são sinceros, e é puro para os que são puros. Para o perverso ou corrupto, entre­ tanto, Deus mostra-se astuto. Deus trabalha para derrubar o arrogante, mas ao humilde (i.e., ao aflito) Ele livra. Com Deus ao seu lado, Davi conseguia “saltar um muro” ou “passar pelo meio de um esquadrão” (v.30 NRSV), porque Deus é um escudo para todos os que nele se refugiam (v.31). I 3 2-36 Diante de toda ação salvadora de Deus, o escritor pergunta no v.32, Quem éDeus, senão o SENHOR f O Senhor provou ser um rochedo para Davi, “cingindo-o de força” (v.33 NRSV) e “colocando-o em segurança nas alturas” (v.34 NRSV). Deus providenciou “o escudo da sua salvação, e a ajuda de Deus o engrandeceu” (v.36 NRSV). ■ 37-43 Por causa da ajuda de Deus, Davi conseguiu destruir os seus ini­ migos e feri-los até que não conseguissem se levantar novamente. Deus proveu força para a batalha e fez os inimigos de Davi afundarem debaixo dele (v.39). Mesmo quando os seus inimigos clamaram a Deus, Ele não os ouvia e não havia ninguém para salvá-los. Porque Deus abandonou os seus inimigos, Davi conse­ guiu moê-los como o pó da terra e os esmagou episou neles como a lama das ruas (v.43). I 4 4 -4 6 O estabelecimento da monarquia de Davi pode ser o pano de fun­

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do para esses versículos. Deus livrou Davi das contendas com meu povo. Isto pode provavelmente se referir à última parte do reinado de Davi, quando havia inúmeras ocasiões para contendas. Deus manteve Davi como líder das nações (v. 44b), e povos que ele não conhecia “serviram-no” (v.44c NRSV). Estrangei­ ros bajulavam-no (v.45^), eles “obedeciam-no” (v.45b NRSV), e eles “saíram tremendo de suas fortalezas” (v.46b NRSV; veja 2 Sm 80.1-14). I 4 7 - 5 0 À luz de tudo isto que Deus tinha feito por Davi, a última parte da canção culmina com adoração e louvor. Davi reconhece que o SENHOR vive e que Deus, a rocha de sua salvação, é aquele que lhe concedeu vingança sobre os seus inimigos e o exaltou acima de seus adversários. Por causa disto, Davi exultará o Senhor entre as nações e cantará louvores ao Seu nome. 1 5 1 Davi celebrou a ligação entre Deus e o rei. Deus era a “torre da salvação” (NRSV) do Seu ungido e Ele demonstrava “amor pelo Seu ungido” (NRSV). 0 amor de Deus também estendia-se aos descendentes de Davi, os membros da dinastia que Deus prometeu ao rei (2 Sm 7).

4. As últimas palavras de Davi (23.1-7) 1 1 As últimas palavras de Davi são apresentadas em um oráculo. Embora o oráculo tenha sido atribuído a Davi, duvida-se que estas realmente reflitam as suas últimas palavras. A poesia é antiga, entretanto, e pode ser datada do período inicial da monarquia. Ao dar o seu último desejo e testamento, Davi se assemelha aos grandes heróis do passado de Israel que também fizeram significantes discursos antes de sua morte: Jacó (Gn 49), Moisés (Dt 32—34), e Josué (Js 23—24). As palavras de Davi assinalam a conclusão formal de uma importante era na história de Israel, mas elas também apontam para o futuro, no sentido de que pressupõem a aliança eterna que Deus fez com a família de Davi (2 Sm 23.5). 1 2 - 4 Davi é apresentado como um profeta e também como um poeta nesta seção. Ele nota no v.2 que o Espírito do SENHOR fa la por mimy e a Sua p a­ lavra está em minha boca. O pronunciamento profético de Davi centraliza-se no assunto da liderança justa. Ele menciona que a pessoa que governa “com justiça” (v.3 NRSV, JPS), governa também com o temor de Deus. O rei que governa em retidão e com uma preocupação para com a justiça é comparável “à luz da manhã, quando sai o sol em uma manhã sem nuvens” (NRSV). Tanto o rei quanto o povo beneficiam-se deste tipo de liderança. Esta traz bênçãos

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como “a chuva em uma terra coberta de grama” (NRSV).

I 5 Davi indicou que a sua casa assemelhava-se aos líderes justos dos versícu­ los anteriores (“não é a minha casa assim?” [NRSV]). Ele relembrou a aliança eterna que Deus fez com ele e entendeu que isto era um contrato legítimo e válido (“ordenado em todas as coisas e seguro” [NRSV]). Segue-se, então, que já que Davi procurava reinar com justiça, que “toda [sua] salvação e (...) prazer” (NRSV) cumpririam-se segundo a promessa que Deus fez a Davi. H 6-7 A imagem do líder piedoso é contrastada com a do ímpio. Os “ímpios são todos como os espinhos que são lançados fora” (v.6a NRSV). Os ímpios são julgados como imprestáveis e precisam ser descartados porque se opõem à causa de Deus e são perigosos. “Eles não podem ser capturados” (v.6 NRSV), mas precisam ser tocados com uma ferramenta ou com a barra de ferro da lança (v.7a). Se forem deixados, os ímpios sufocam o crescimento de tudo o que é bom, portanto, eles devem ser consumidos pelo fogo.

5. Os valentes de Davi (23.8-39) A lista dos valentes de Davi está organizada em três seções separadas: ob­ servações concernentes aos Três (v.8-12), relatos dos feitos heroicos de Abisai e Benaia (v. 18-23), e o registro dos Trinta (v.24-39). I 8-12 A primeira seção concentra-se nos feitos corajosos de Jabesao, Elea­ zar, e Samá (v.8). Jabesão é chamado de chefe dos três guerreiros principais e um tacmonita. O local é provavelmente uma variante da leitura em 1 Cr 11.11 onde ele é chamado de hacmonita. Ele recebe o crédito de ter matado oitocentos homens de uma vez. Eleazar, íilho do aoíta Dodô, estava com Davi “quando eles desafiaram os filisteus” (v.9 NRSV). Esta última frase está incorreta e deve ser lida “quando os filisteus os desafiaram em Pas-Damim” (McCarter 1984,490). Esta leitura está baseada na reconstrução da LXX e de 1 Cr 11.13. O texto nota que o Senhor era capaz de operar um grande livramento contra os filisteus por meio dos es­ forços dele. O último dos Três mencionados, Samá, filho de Agé, lutou contra os filis­ teus em “um pedaço de terra” (v.l 1 NRSV) na cidade de Lei. Lei é mencionada como o local onde Sansão feriu mil filisteus com a queixada de um jumento (Jz 15.9-19). O texto novamente menciona que o Senhor trouxe uma grande vitória por intermédio dele. ■ 13-17 Esses versículos recontam um episódio distinto, relacionado às batalhas de Davi contra os filisteus em 2 Sm 5.17-21. Neste contexto, Davi e

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seus homens estavam na caverna de Adulão (2 Sm 23.13; veja 1 Sm 22.1). Os filisteus estavam acampados no vale de Refaim, nos arredores de Jerusalém, cortando as conexões de Davi em direção à Israel (Hertzberg, 1964, p. 405). Os filisteus também tinham montado um destacamento em Belém, cidade natal de Davi. No meio deste relatório, o texto observa que Davi expressou (...) for­ te desejo de beber água da cisterna, que ficava na porta da cidade de Belém (v. 15). Então, “os três valentes abriram caminho pelo arraial dos filisteus” (v. 16 NRSV) e tiraram a água e a trouxeram de volta à Davi. Davi subsequentemen­ te derramou a água no chão, incapaz de tomá-la, sabendo que seus homens colocaram a vida em risco. As palavras de Davi, no v. 17, o SENHOR proibiu que eufizesse isso, enfatizam a sinceridade e a convicção com as quais Davi de­ cidiu renunciar à água que os seus soldados providenciaram, correndo perigo. O derramamento da água foi um tipo de ritual de sacrifício que enfatizava a excepcionalidade do presente deles para Davi (Evans 2003, 242). B 18-23 Estes versículos recordam as conquistas de dois dos valentes de Davi: Abisai (v. 18-19) e Benaia (v.20-23). Abisai tinha a posição de “chefe dos Trinta” (NRSV). Abisai era irmão de Joabe, o principal general de Davi, e era sobrinho de Davi (1 Cr 2.16). Ele é lembrado no texto por sua bravura ao matar com sua lança (...) trezentos homens. Davi, às vezes, não concordava com Abisai (1 Sm 26.8 ssp.; 2 Sm 3.39; 16.9 ssp.; 19.21 ssp.), mas não tinha como negar a sua lealdade a Davi. Parece que ele até salvou a vida de Davi certa vez (2 Sm 21.17). Embora ele desfrutasse do sucesso e fosse contado entre os Trinta, ele nunca alcançou uma posição entre os Três. O texto registra Benaia como um homem diligente. Ele era de Cabzeel, no sul de Judá (Js 15.21), e era lembrado como um homem “realizador de grandes intentos” (v.23.20a NRSV). O texto recorda dois desses feitos: “ele vitimou dois filhos de Ariel e Moabe” (v. 20b NRSV). O termo para Ariel (ariel) pode também ser traduzido como “leões de Deus”. Tendo em vista a afirmação se­ guinte: “desceu ele e feriu um leão no meio de uma cova” (v.20 ARC), diversos estudiosos têm optado por esta leitura (Hertzberg 1964, 406). A breve obser­ vação de que “a neve caíra” (NRSV) provavelmente está incluída para dar a ideia de que ele seguiu os rastros de um leão que estava na cova. Benaia também era um ótimo guerreiro de combate corpo a corpo, matando um egípcio (um homem de boa aparência) que tinha uma lança na mão. Benaia conseguiu to­ mar a lança da mão dele e depois matá-lo com sua própria lança. Assim como Abisai, ele era o mais nobre dentre os Trinta, mas não alcançou o nível dos três primeiros.

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Benaia foi colocado a cargo da guarda pessoal de Davi. A guarda pessoal de Davi consistia dos queretitas e peletitas, guerreiros que originalmente vie­ ram da região do Egeu. A guarda pessoal desempenhou um papel importante no reinado de Davi, especialmente no final de sua vida, quando chegou a hora de coroar Salomão como seu sucessor (1 Rs 1.32-40). H 24-39 Esses versículos incluem o longo registro dos trinta guerreiros. Assim como estão, os v.24-39 fornecem uma lista de trinta nomes, contudo a última afirmação, no v. 39, diz: Foram ao todo trinta e sete. A fim de correta­ mente chegarem ao número trinta e sete, eruditos acreditam que os seguintes nomes deveriam ser incluídos: Joabe, Abisai, Benaia e os Três. Isto chega a trin­ ta e seis nomes apenas. Parte do problema está no próprio texto. O versículo 32 é obscuro e faz referência aos filhos de Jasém. É possível que todos os filhos de Jasém não estejam listados aqui. Se este for o caso, então, isto pode explicar por que os números não somam corretamente.

6. O censo de Davi, a praga, e o lagar (24.1-25) I 1-9 Esta unidade começa com um comentário interessante no v.l: is ira do SENHOR novamente acendeu-se contra Israel. Estas palavras indicam que o Senhor esteve irado com os israelitas em outra ocasião prévia. Que ocasião prévia está sendo referida aqui? Alguns estudiosos afirmam que este comen­ tário refere-se aos acontecimentos de 2 Sm 21.1-14, uma situação em que o Senhor ficou irado com os israelitas por causa do tratamento duro de Saul para com os gibeonitas. Em ambos os casos, uma séria transgressão foi cometida pelo rei, um lugar santo estava incluído, e em cada caso uma situação desastrosa levou a algum tipo de bênção (Hertzberg 1964, 426). Outra explicação pode estar associada à referência feita a Urias no versículo que precede este capítulo (23.39). A referência a Urias relembra ao público seu assassinato e, logo, serve de pretexto para a ira de Deus contra Israel. Embora ambas as soluções sejam possíveis, uma resposta definitiva para esta questão ainda permanece indefini­ da* Em resposta a este comentário, o texto nota, no v.l, que o Senhor incitou Davi a realizar o censo: “Vá contar as pessoas de Israel e Judá” (NRSV). O ter­ mo incitar (sut) implica que Deus instigou Davi a fazer o censo. Mas, por que Deus mandaria Davi fazer um censo que levaria Davi à desobediência (v. 10) e à praga (v.l 1-17)? As respostas para esta questão são variadas em número e difíceis de determinar com certeza. Uma solução é enxergar o v.l como um co­

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mentário editorial posterior acrescentado a três narrativas originais indepen­ dentes sobre o censo, a praga, e a eira (veja Por trás do texto). Esta observação editorial provê um raciocínio teológico quanto ao motivo para um censo feito por Davi ter resultado em sanção divina. A segunda sugestão inclui a ideia de que Davi foi o veículo de Deus, por meio do qual Ele puniu Israel (Evans 2003, 243). Logo, Deus incitou Davi a realizar o censo para que Ele pudesse impor um castigo pelo pecado/crime (desconhecido neste contexto) que os israelitas cometeram e aplacar Sua ira. Terceiro, este versículo tem de ser visto dentro do fluxo geral da narrativa do capítulo. Deus incitou Davi a fazer o censo a fim de instigar a praga que fi­ nalmente levaria à compra da eira para a construção do altar. Logo, a narrativa se desloca da desobediência de Davi à reparação. Quarto, o problema com o censo pode estar relacionado ao modo como o mesmo foi conduzido e a razão de Davi para realizá-lo (veja abaixo). A outra questão é relativa à responsabilidade de Deus quanto ao censo. Se Deus incitou Davi a fazê-lo, será que isto não implica que Deus seria responsá­ vel pelas conseqüências que se seguiriam? Naquele tempo, todo pensamento e crença israelita, todos os fenômenos, tanto bons quanto ruins, eram atribuídos a Deus. Portanto, embora o censo não fosse considerado uma coisa boa, o ím­ peto de realizá-lo emanou originalmente de Deus. Embora este seja um concei­ to difícil para os leitores modernos entenderem, a mente antiga categorizava a fonte do bem e do mal desta maneira. Todavia, este entendimento mudou com o passar do tempo, tanto o bem quanto o mal foram atribuídos a diferentes fontes/seres. Esta é uma razão porque, por exemplo, a causa do censo foi atri­ buída a Satanás {sãtãn) em 1 Cr 21.1. Embora Satanás, em Crônicas, não seja a forma neotestamentária de Satanás ou diabo, isto mostra que o cronista não queria atribuir tentação ao Deus de Israel. O texto cita, em 2 Sm 24.2, que o rei ordenou a Joabe e aos outros co­ mandantes do exército que fossem contar o povo. E interessante que Davi é chamado de o rei quando esbravejava as ordens para o seu oficial. A gramática parece estar chamando a atenção para o seu ofício e o poder que ele exercia como o principal líder de Israel. O censo que Davi encomendou deveria ser minucioso, e todo o povo, de Dã a Berseba, foi contado. Assim, Davi saberia o “número do povo” (ARC). A expressão de Dã a Berseba é formulista e sugere todo o país de Israel, do norte ao sul; de cima até embaixo. Ironicamente, essa expressão é usada em referência à fidelidade de Samuel como profeta (1 Sm 3.20). Neste contexto, ela magnifica a extensão do pecado de Davi.

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Joabe teve preocupação, em 2 Sm 24.3, com o desejo de Davi de contar o povo: por que o rei, meu senhor, deseja fazer isso? A pergunta de Joabe su­ gere a impropriedade do censo. Em Crônicas, a resistência de Joabe à ordem de Davi é mais desafiadora, no sentido de que ele deixou de completar totalmente o censo (1 Cr 21). A razão para a apreensão de Joabe é compreensível à luz da razão pela qual um rei faria um censo. Em geral, entende-se que o censo é reali­ zado por duas razões: (1) ele servia como uma base para se cobrar os impostos e (2) para alistar os homens no serviço militar (Bright 1981, 198). Tendo em vista o v.9, parece razoável presumir que Davi fez o censo a fim de determinar o número de guerreiros que ele tinha ao seu dispor. Várias referências no AT indicam que contar os soldados antes da época da guerra constituía-se em uma prática comum (Nm 1.2,3; Js 8.10; Jz 7.3; 20.17 ss.; 1 Sm 11.8; 15.4; 2 Sm 18.1; 1 Rs 20.15, 27; 2 Rs 3.60). A evidência, toda­ via, parece indicar que Davi mandou realizar esse censo em uma época de re­ lativa paz, já que foram necessários nove meses para que se completasse (2 Sm 24.8) (Yarchin 2000,326). Realizar o censo em tempo de paz faria o povo ficar desconfiado e levantaria suspeitas entre as tribos relativamente independentes da monarquia iniciante (Keil e Delitzsch 1967, 502,3; McKane 1963, 302). A resposta de Joabe à ordem de Davi revela esta preocupação. Apesar da relutância de Joabe, a palavra do rei “prevaleceu contra Joabe e os chefes do exército” (v.4 NRSV). No final, Davi iria prosseguir com seus planos, mesmo quando seus comandantes lhe aconselharam contra esta lógica. Joabe e os homens realizaram o censo nos v. 5-9. A rota geográfica retrata as extremas fronteiras do território de Davi. O grupo do censo foi para o leste do Jordão, perto de Aroer (v.5), continuou para o norte, em direção à Gileade e Cades (v.6). Depois, deslocou-se no sentido oeste em direção à Da e à fortaleza de Tiro no noroeste (v.7). Finalmente, viajou para o sul, para o Neguebe de Judá em Berseba (v.7). A rota indica a plenitude com que Joabe e seus homens se empenharam no censo. Isto não só lhes custou nove meses para realizar, como também incluía toda pessoa apta ao censo, inclusive as não israelitas (v.7). O texto parece estar indicando que nin­ guém ficava fora do alcance de Davi. Joabe, então, apresentou o relatório dos guerreiros disponíveis: 800 mil homens de Israel e SOO m il homens deJu d á . H 1 0 Depois que o censo foi realizado, o texto menciona que o coração de Davi doeu. Davi sentiu culpa por causa do censo, e a sua consciência lembrou-o do erro que havia cometido. Mas o que Davi fez de errado ? Parte do problema pode ter sido a maneira como o censo foi realizado. De acordo com a lei da Antiguidade (Ex 30.11-16), um resgate teria de ser pago a Deus depois que o

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censo fosse realizado. Todos os que entraram no registro tinham de pagar meio siclo como oferta ao Senhor. Se o dinheiro não fosse pago segundo a lei, então a praga desceria sobre os que foram arrolados. Esta é a razão, por exemplo, que Josefo cita como a causa da praga neste contexto (Ant. 7.13.1). O censo, todavia, também aponta para um assunto mais amplo e mais pro­ blemático. Ao tomar o censo, Davi buscou expandir o poder do rei e do estado. As ações de Davi beiram a arrogância, no sentido de que ele tentou exercer e magnificar sua autoridade acima do domínio de Deus. Em essência, Davi militou uma política de controle centralizado sobre o povo de Israel. Nesse proces­ so, todavia, Davi não mais representava o líder pastor que trazia livramento a Israel, mas um rei guerreiro que ameaçava o bem-estar do povo (Yarchin 2000, 357). A culpa de Davi levou-o a humilhar-se e a confessar seus erros diante do Senhor. Davi reconheceu que pecara gravemente e pediu que Deus removesse a culpa de Seu servo (v. 10). O termo para “pecado” (hãta) usado aqui é um dos termos mais comuns para pecado no AT. Ele geralmente transmite a ideia de “errar o alvo”, indicando assim que alguém não conseguiu alcançar os padrões de Deus. O termo “culpa” ( avôn) fala das conseqüências do pecado cometido ou do castigo que o pecado merece. Davi também pediu que Deus perdoasse a culpa/castigo que o seu pecado havia incorrido. A reação de Davi demonstrou sua confiança na capacidade de Deus e sua disposição de fazer reparação pelo pecado que cometeu. H 11-17 Deus respondeu à súplica de Davi pelo ministério do profeta Gade. Gade é chamado de “vidente de Davi” (ARC), o que indica que ele funcionava como o conselheiro religioso pessoal do rei que mediava a mensagem de Deus quando necessário. Pouco se sabe sobre Gade, mas ele forneceu palavras de instrução a Davi mais cedo em sua vida (1 Sm 22.5). Gade revelou a Davi que Deus tinha três coisas para oferecer a ele e que ele deveria escolher uma das seguintes opções como castigo pelo censo que ele havia realizado (2 Sm 24.13): primeira: três anos de fome; segunda: Davi teria de fugir por três meses de diante de seus inimigos; ou terceira: uma “pestilência” (NRSV) viria sobre a terra e duraria três dias. Embora os três castigos pareçam estar pessoalmente direcionados a Davi (i.e., fome em sua terra, os inimigos o perseguirão, uma pestilência virá sobre a sua terra), o texto informa que, no final das contas, seria o povo que Davi governava que sofreria o peso do pecado de Davi. Estupefato pelas opções que Gade lhe apresentara (estou em grande angústia ), Davi não conseguia decidir seu destino e então colocou a decisão nas mãos do Senhor (v. 14). Davi acreditava que se sairia melhor nas mãos de Deus, que poderia demonstrar misericórdia para com ele.

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O texto torna claro que o Senhor decidiu enviar “a peste a Israel” (NRSV). A pestilência afligiu todo o território incluído no censo: de Dá a Berseba. A peste também causou uma grande baixa no povo de Israel, pois, setenta mil pessoas morreram por causa dela (v. 15). Deus não permitiu que Jerusalém fosse destruída e impediu o anjo de estender sua mão em direção à cidade. E irônico que embora as diretrizes para a realização do censo tenham emanado de Davi na cidade de Jerusalém, tanto a capital quanto o rei foram poupados, enquanto que o povo, ao longo do reino de Davi, perecia. O anjo do Senhor estava perto da eira de Araúna, o jebuseu, quando a pestilência parou (v. 16). No mundo antigo, as eiras representaram lugares onde a atividade divina acontecia (Ahlstrom 1961, 113-27; veja também comentário em 6.6). A eira de Araúna não seria diferente, no sentido de que Davi ofereceu sacrifícios ali, e mais tarde ela serviu de local para o templo na época de Salomão (veja abaixo). Quando Davi testemunhou a destruição, ele protestou, em 24.17, pelo fato de que foram as suas ações (“eu sozinho pequei” [NRSV]) que trouxeram 0 desastre sobre o povo inocente e desavisado (o que essas ovelhasfizeram ?). Davi chegou à conclusão de que o rei e o povo estavam intrinsecamente liga­ dos; as decisões do rei tinham sérias repercussões sobre aqueles que ele gover­ nava. Davi pediu que a punição fosse dirigida contra ele e sua família, e não contra o povo. 1 1 8 - 2 5 Os eventos que seguiram o censo e a praga ocorreram na eira de Araúna, o tema dos v. 18-25. O profeta Gade instruiu Davi a construir um al­ tar naquele local para que Davi pudesse oferecer sacrifícios, a fim de expiar os seus pecados e restaurar a própria ordem entre Deus e Israel. Antes que Davi pudesse erigir um altar, ele teria de comprar o campo de debulha que pertencia a Araúna. Araúna era um jebuseu, membro da cidade dos Jebus, antes que Davi tomasse a cidade (2 Sm 5.6-12), e, logo, um cananeu. O nome Araúna não é israelita e talvez seja derivado da palavra hurrita ewrine> que significa “senhor” (Gordon 1986, 320). Alguns estudiosos enten­ dem que esta seja uma referência ao seu título. No v.l 6, o nome Araúna aparece com um artigo definido, uma evidência que é geralmente usada para apoiar esta conclusão (Hoffner 1973, 225). Todavia, nem todos os eruditos estão de acordo com esta posição. Em vez de um título, Araúna pode ter sido uma pessoa de status significativo na cidade cananeia. No v.23, a tradução pode ser tudo isto Araúna, o rei, dã, sugerindo que ele funcionava como o rei da cidade na época em que Davi conquistou Jebus. Se for assim, Davi permitiu que ele vivesse uma honrável aposentadoria depois que tomou a cidade dos jebuseus (Gordon 1986, 321).

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Araúna sugeriu, no v. 22, que Davi ficasse com a terra e ofereceu bois, o debulhador e o jugo dos bois para o sacrifício também. Embora Araúna se oferecesse pra dar esses itens a Davi, ele recusou e ofereceu cinqüenta peças de prata pela eira e pelos bois. Ao fazer o pagamento pela eira, Davi garantiu que a terra seria legalmente pertencente a um israelita e não a um cananeu. Ao negociar esta preciosa propriedade, Davi se assemelha a Abraão quan­ do comprou a cova de Macpela como jazigo para Sara (Gn 23). Em ambos os casos, o processo de dar o preço ao pedaço de terra e depois fazer um pagamen­ to preciso da quantidade estipulada constituía um direito de posse antigo (Tucker 1966, 77-84). Assim como a cova de Macpela, a terra que foi comprada cumpriria uma importante função na vida do povo de Israel. A eira que Davi adquiriu tornou-se a fundação do templo de Salomão (1 Cr 21.28—22.1). O altar que Davi construiu e os sacrifícios que ele fez naquele local prefiguravam o templo que Salomão edificaria e as ofertas que seriam feitas ali. O Segundo Livro de Samuel termina com uma observação de que Deus aceitou os holocaustos e as ofertas pacíficas e respondeu a oração de Davi pela terra. O fim da praga assinalava a restauração de Davi, o pecador penitente, à graça e à comunhão com Deus. A PARTIR DO TEXTO No decorrer desta última seção de Samuel, diversos apontamentos teoló­ gicos importantes são feitos, que podem ser aplicados à nossa própria jornada de fé. 1. Como mencionamos anteriormente (Por trás do texto), o arranjo canô­ nico dos capítulos 21—24 salientam a fidelidade e a confiabilidade de Deus. Como a canção de ações de graças de Davi enfatiza, Deus é um refugio e um rochedo a quem podemos clamar nos momentos de desespero e turbulência. E significante que muitos dos verbos nas primeiras partes do Salmo (v. 1-4) sejam passivos em natureza. O escritor ressalta a ideia de que nos momentos de adversidades e oposição, Deus trabalhará em nosso favor, e a nossa responsa­ bilidade é apenas confiar em Deus e esperar enquanto Ele opera o nosso livra­ mento diante dos nossos olhos. São nesses momentos de confusão e caos que a nossa mente e nosso coração permanecem em descanso porque sabemos que Deus é a nossa defesa. O texto também diz que, como Senhor da criação, Deus tem todos os recursos ao Seu dispor para nos dar socorro e nos confortar e sustentar em meio às mais terríveis circunstâncias. Embora o escritor use cenários criativos

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e hipérboles para ilustrar o domínio de Deus sobre a Criação em certos momentos (v.8-16), o objetivo é poderosamente alcançado, de que Deus fará tudo que estiver em Seu poder para operar em nosso favor. Deus não só tem o poder de nos livrar de nossos inimigos e nos colocar em um lugar amplo, mas Ele também pode nos livrar de nossos temores e ansieda­ des e nos dar força para enfrentarmos os momentos de provações. O escritor também afirma que Deus é capaz e reverter a nossa sorte e reverter nossos in­ fortúnios em vitórias. Nós também somos relembrados de que Deus humilha o soberbo (v.28) e pode elevar a posição dos fracos e humildes. 2. A lista dos valentes de Davi, em 2 Sm 21.15-22 e 23.8-39, faz-nos lem­ brar de que a amizade é inestimável e de que nós dependemos da assistência dos outros em nossa vida. Até mesmo alguém poderoso e bem-sucedido como Davi tinha amigos íntimos que o apoiavam e levavam os seus fardos nos mo­ mentos de fraqueza. Como temos testemunhado no decorrer de sua história, Davi não só chegou ao trono como resultado da assistência de seus amigos, mas também eles cuidaram dele em seus momentos de trevas. Quando a vida de Davi começou a desmoronar ao seu redor (i.e., Cap. 15—20), seus amigos cuidaram dele, protegeram-no, e até arriscaram a vida por ele. O texto de 22.15-17, em particular, indica que houve ocasiões em que quando Davi ficou cansado, seus guerreiros tiveram de lutar por ele. Do mes­ mo modo, em nossos momentos de desânimo e fraqueza, a amizade dos outros pode ser um agente curador que nos conforta na hora da dor, encoraja-nos quando sentimos vontade de desistir, e nos fornece sabedoria e direção quando não sabemos que decisões devemos tomar. A amizade é um presente de Deus. Nós fomos criados para estarmos em comunidade e não para vivermos no isolamento. O velho ditado continua ver­ dadeiro: ninguém é uma ilha para si mesmo. Quando Deus criou o homem no jardim, por exemplo, Deus percebeu que não era bom que ele “estivesse só”. O homem necessitava de interação humana e contato, o tipo de nutrição social e emocional que as outras partes da ordem criada não poderiam lhe oferecer. No NT, os amigos e companheiros de Paulo foram indispensáveis para ele e para a missão para a qual Deus o chamara. Paulo dependia de seus com­ panheiros para viajar com ele enquanto ele levava a mensagem do evangelho pelo mundo mediterrâneo (At 13.13; 14.11; 15.40; 16.3). Outros providen­ ciaram companheirismo e apoio moral durante os momentos de perseguição (At 16.16-40; Rm 16.7). Ainda outros visitaram Paulo na prisão quando ele definhava em uma cadeia romana (At 28.30). Paulo também teve de depender da generosidade e caridade dos outros para suprir suas próprias necessidades

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(Fp 4.16-18) e as necessidades de crentes de várias igrejas (1 Co 16.1; 2 Co 8,9; G1 2.10). Se os grandes homens, como Davi e Paulo, precisaram da ajuda dos outros, quanto mais nós? 3. A última parte de Samuel (Cap. 24) fornece uma crítica necessária ao reinado e à liderança em geral. No decorrer do último capítulo de Samuel, nós somos relembrados de que, embora Deus escolha os líderes para guiar e dar direcionamentos a uma comunidade de indivíduos (tanto religiosos como se­ culares), os líderes ainda são mortais e permanecem sob a jurisdição da autori­ dade de Deus. Quando Davi mandou que o censo dos israelitas fosse realizado, seu desejo de exaltar o poder, tanto do rei como do estado, tornou-se aparente. Davi essencialmente colocou sua fé nos recursos que estavam à sua disposição, e não em Deus. Ao fazer o censo, Davi esqueceu-se do importante princípio de que o seu poder de governar derivava de Deus, não do exército que ele seria ca­ paz de convocar. Quando Davi tentou garantir sua autoridade como rei, inde­ pendentemente de Deus, ele ilustrou a tentação na qual os líderes caem quando recebem uma grande responsabilidade e são revestidos de poder. As mesmas tendências existem entre os líderes dos tempos modernos, in­ clusive pastores e outros que possuem responsabilidades eclesiásticas. Deus unge e chama diversas pessoas para prover liderança em Sua igreja, o Corpo de Cristo. Infelizmente, até os líderes cristãos podem se tornar amantes de suas posições proeminentes e do poder que é inerente às mesmas. Assim como Davi, eles se esquecem de que foram chamados para ser humildes servos, cuja principal tarefa é prover uma direção amorosa e edificante ao povo de Deus. Eles tentam liderar sem a ajuda de Deus, frequentemente dependendo de sua própria iniciativa e imaginação, seguindo sua própria agenda, e, às vezes, abu­ sando do poder que Deus lhes confiou. O fascínio de estar em uma posição de responsabilidade pode até se tornar uma busca narcisista na qual o brilho de estar nos holofotes torna-se intoxicante e impulsiona o ego da pessoa. Os resultados de uma liderança fracassada podem ser devastadores. Assim como a história de Davi e o censo revelam, existe uma correlação direta entre as ações do líder e os efeitos sobre o povo daquele grupo ou comunidade. As pessoas da comunidade são aquelas que inconscientemente e inocentemente sofrem o impacto das escolhas e das ações equivocadas do líder. O povo de Israel, por exemplo, sofreu uma terrível pestilência por causa das ações de Davi e de sua arrogância. Semelhantemente, a comunidade da fé pode ser destruída por escândalos, facções, e conflitos dolorosos, porque os líderes não funciona­ ram como pastores das ovelhas de Deus. A vida de Davi, então, serve como um perfeito exemplo de como até os melhores líderes podem se extraviar quando se esquecem qual é o seu verdadeiro propósito e missão na vida da igreja.

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4. Embora a história de Davi e do censo seja catastrófica, em certo sentido, ela também proclama o principal tema das Escrituras: Deus sempre tem agido e continuará agindo redentivamente em relação ao problema do pecado huma­ no. Os livros de Samuel poderiam ter terminado em um tom de desespero por causa do pecado de Davi; todavia, a trajetória geral desta narrativa desloca-se de uma desobediência humana para uma expiação e restauração. O pecado de Davi resultou em dor e angústia para o povo israelita, mas culminou na compra da eira onde os holocaustos poderiam ser feitos em seu favor. No meio desta narrativa, nós somos relembrados de que Deus sempre pro­ videnciou um meio pelo qual os pecados possam ser expiados e, assim, reverter os efeitos danosos que eles têm na vida de uma pessoa e de uma comunidade. A propriedade que Davi comprou não apenas serviu como o local da expiação do pecado de Davi, mas também se tornaria a base do templo, o principal sítio religioso onde os israelitas apresentariam as suas ofertas expiatórias também. Ao observarmos a narrativa a partir desta perspectiva, a história de Davi e da eira representa apenas um episódio no âmbito geral da “história da salva­ ção”, que engloba toda a Escritura. A metanarrativa da graça redentora de Deus atravessa a história do povo de Israel e os profetas e culmina na vida, morte, e ressurreição de Jesus, e repercute na mensagem de Paulo e da Igreja primitiva. Esta é a mensagem que continua a ser proclamada hoje e eternamente. Também somos lembrados de que a misericórdia e o perdão que Davi rece­ beu estavam baseados em sua reação à sua própria culpa e à Palavra de Deus por intermédio do profeta. Para o crédito de Davi, toda vez que ele foi confronta­ do pelo profeta, concernente à sua desobediência, ele reagiu com humildade e contrição (2 Sm 12.13; 24.10,17), assumiu a responsabilidade pelos seus atos e confessou o seu erro. Esta é uma das imagens duradouras que Davi deixa com o leitor do texto. Embora Deus tenha escolhido Davi para liderar o povo de Israel e ele tenha se tornado um dos mais impressionantes reis do passado de Is­ rael, ele não era perfeito. Assim como nós, ele estava sujeito a crises de fraqueza espiritual e ele cometeu a sua dose de erros morais. Entretanto, a grandeza de Davi é testemunhada no fato de que, quando transgredia a autoridade de Deus, ele ainda era capaz de reconhecer sua depen­ dência do Senhor e a sua necessidade de perdão. O Salmo 51, um cântico que a tradição atribui a Davi após o caso com Bate-Seba e o assassinato de Urias, eloquentemente relembra o seu desejo de ser purificado de seu pecado e de que Deus criasse nele um coração puro (v. 10). A disposição de Davi de se humilhar perante Deus se acha em grande contraste com seu filho Salomão, a quem o texto nunca registra estar confessando seus pecados diante de Deus (1 Rs 11.1


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ff.). Em Davi, então, o exemplo de como reagir em genuína tristeza e arrepen­ dimento pelo pecado, e a prontidão de Deus em lidar com o pecado humano com Sua misericórdia e Seu perdão, são para sempre preservados.

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KEVIN J. MELLISH ensina Literatura Bíblica na Olivet Nazarene University, onde se formou Bacharel em Artes. Possui Mestrado em Divindade pelo Nazarene Jheological Seminary e Mestrado e Doutorado em Filosofia pela Claremont Graduate University. Além de ensinar, ele já atuou como pastor associado e é membro da Society ofBiblicalLiterature.

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