ando por ruas do mundo todo atravĂŠs do google street view e fotografo pessoas que me despertam curiosidade. mando uma carta, com suas fotografias, convidando-as a participar do projeto correspondĂŞncia.
projeto correspondência FAUUSP trabalho final de graduação orientador: Luís Antônio Jorge
manuela costalima São Paulo, 2013
para meu pai, saudoso caminhante
agradecimentos agradeço a meu orientador, luís, pela presença tranqüila, pela dedicação e pela poesia a jacopo por sua excelente tese de doutorado, novas derivas, que foi fundamental na reflexão desse trabalho a marta, olho sensível e delicado, pelas criticas construtivas quando o projeto correspondência estava ainda engatinhando
a jessy, gudrun, bertrand, bill, david, ryan, pétur, ivi e gisela pelas saborosas respostas que trouxeram um novo significado ao projeto a helena, lina, florent, jacob e todos os colaboradores virtuais que traduziram cartas para as línguas mais estranhas, e me incentivaram a continuar essa empreitada a naná, que me deu o apoio inicial, sem o qual esse trabalho talvez não existisse a thais, que tanto contribuiu neste projeto, pela amizade e pela elegância ao mestre e amigo malaco, com quem eu sempre pude conversar
a minha mãe e meu irmão, companheiros nessa trajetória
a matheus, aninha, marília, mari, isa, marina e pedro; meus amigos, primeiros correspondentes e a alfredo, meu lugar nesse mundo.
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introdução
primeiros passos – andar pela cidade –
cidade pequena – fotografia e relato do lugar –
59 do espaço ao lugar – significações –
68 euralille, google e facebook – lugares para um tempo nosso – 76 nova cidade – à deriva no google street view –
110 projeto correspondência – do dia em que resolvi falar com estranhos – 114 30 correspondentes
246 notas 278 bibliografia
introdução “a vantagem de envelhecer, pensou Peter Walsh, saindo do Regent’s Park com o chapéu na mão, era só esta; as paixões permaneciam tão fortes quanto antes, mas a gente dispunha – por fim!- daquele poder que confere o sabor supremo à existência – o poder de agarrar a experiência, de examinála por todos os lados, lentamente, sob a luz.” Virginia Woolf, Mrs. Dalloway
Este trabalho final de graduação é uma reflexão a respeito do Projeto Correspondência, que se iniciou há cerca de um ano, quando decidi enviar cartas a pessoas que apareciam nas imagens do google street view. Pretendo investigar uma experiência: portanto é natural o tom pessoal adotado neste texto. Ele é, antes de tudo, uma conversa. Não acredito que seja aqui pertinente elaborar uma crítica, ou, tese científica. A teoria apresentada terá a única finalidade de inserir o trabalho num contexto mais amplo: dela me vali como instrumento para tentar entender essa experiência.
Olhar para um projeto quase concluído e a partir dele formular um texto é desnorteante. Todo o processo parece se embaralhar pela ação do tempo. Por outro lado, algum distanciamento também me permite contemplá-lo como parte de um conjunto. Algumas ideias clarearam-se no decorrer do tempo: foi gratificante perceber neste trabalho uma espécie de síntese de uma série de questões que me acompanharam ao longo de meu período na FAU. Organizei esta visita a ideias e vivências pessoais em capítulos, que tratam de aspectos específicos desta experiência: O primeiro trata do caminhar na cidade, de como essa prática tornou-se para mim um método para compreensão do espaço urbano.
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Em seguida, relato a trajetória da descoberta de um lugar que encontrei na cidade real, retomado depois na experiência de deriva através da tela do computador. Trata-se de um pedaço de cidade com feições específicas: cidades pequenas, lugares da vizinhança; do afeto e das pequenas identidades. Baseada nas reflexões de Yi-Fu-Tuan e Lucy Lippard, discuto então as noções de espaço e de lugar, e do processo de significação do espaço por meio da experiência humana. No quarto capítulo, trato do conceito de não-lugar, baseado no texto homônimo do antropólogo Marc Augé. A partir dele, da Sociedade do Espetáculo de Guy Debord, da Aldeia Global, de Marshall McLuhan e do Êxtase da Comunicação de Jean Baudrillard, desenvolvo algumas reflexões sobre a influência das mídias em um novo comportamento da sociedade atual. Depois falo sobre um não-lugar específico, o google street view. Analiso sua incorporação em nossos cotidianos e também sua presença recente na fotografia contemporânea. Finalmente apresento o projeto e compartilho uma amostra de correspondências enviadas.
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primeiros passos – ANDAR PELA CIDADE –
“ Do you think it quite impossible that on a gentle and patient walk I should meet giants, have the privilege of seeing professors, do business in passing with booksellers and bank officials, converse with budding, youthful songstresses and former actresses, dine at noon with intelligent ladies, stroll through woods with spiteful, ironic master tailors? All this can happen, and I believe it actually did happen”. Robert Walser, The Walk
Não me lembro de um dia bem disposta em que não tenha saído para andar. Uma caminhada rápida que seja, ainda assim sempre me é bem vinda. Se estou doente e não ando, meu dia é pior. Quando algo vai mal, quando preciso pensar, estar só, eu ando. Mas quando preciso estar com o outro, eu ando também. É no espaço da rua que posso reencontrá-lo, logo que sinto falta dele. Desde o início de minha formação como arquiteta e urbanista me vali das caminhadas como um método: entender o espaço a pé foi minha escolha. Por isso, foi natural me dar conta de que o caminhar foi o primeiro elemento do Projeto Correspondência. Desde que é homem, o homem anda – assim compreende o espaço, dialoga com o mundo. Andar é parte da nossa essência, do que há de mais banal para qualquer um. Algumas caminhadas, no entanto, se destacam: afastadas de seu fim prático cotidiano, nos permitem realizar as potencialidades de tal ação.
Richard Long, Vito Aconcci, Sophie Calle e Francis Alÿs são artistas que construíram suas poéticas através de caminhadas;
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Henry Thoureau, Charles Baudelaire, Walter Benjamin e Francesco Careri andando e escrevendo nos fazem pensar o caminhar; Mahatma Gandhi e Martin Luther King mudaram o curso da história caminhando ao lado do outro.1 Na arte, na literatura ou na política, através da caminhada dialogaram com o mundo. São diálogos múltiplos de homens diversos. Mas em todos eles pode-se apontar o caminho como elemento fundamental daquele ato. Valendo-me das palavras de Beatriz Falleiros, posso dizer que em tais caminhadas, o caminho é lugar.2 Há aqueles que elegeram a paisagem como o lugar de suas caminhadas. Richard Long é um artista nômade: percorreu vastas distâncias pela paisagem crua.3 Na Inglaterra, na Escócia ou mesmo nos Andes, interessam-no o vazio, o silêncio da natureza. Nela deixa intervenções mínimas, fugazes – linhas criadas pelo caminhar, pedras dispostas geometricamente, às vezes nada. Guarda suas impressões em pequenos textos, algumas fotografias. Por meio deles pode partilhar sua breve e sutil experiência estética. Antes de Long, Henry Thoureau havia escolhido a natureza como seu lugar. Amava a terra não cultivada, pela cidade nutria desprezo.4 Anos de descontentamento vivendo em sociedade, fez com que ele se mudasse para uma pequena casa na floresta, à beira do lago Walden. Ali pôde por em prática o modo de vida que pregava: livre de excessos, livre de tudo que lhe era pouco importante, cultivando a terra e dela extraindo a comida para sustento próprio. Na paisagem selvagem do norte dos Estados Unidos, passava grande parte de seu dia perdendo-se entre florestas e campinas. Para o incansável caminhante a arte de saber andar, de perder-se pelo caminho, era um privilégio reservado a poucos. No seu livro-manifesto, Walking, o autor retoma as origens de uma das palavras da língua inglesa para o caminhar (sautering)5: os peregrinos 13
medievais, que andavam pelo campo pedindo esmolas e, com elas, pretendiam chegar à terra santa (sainte-terre). Assim um saunterer (sainte-terrer) seria um caminhante rumo à terra santa. A afinidade entre as palavras o permitiu traçar um paralelo entre este e o sem-terra (sans terre) aquele que não tem lar, mas que igualmente está em casa em qualquer lugar.6 Entendo que esse estado de espírito seja fundamental para que se conquiste a arte de caminhar. Caminhadas feitas com tal disposição, sempre reservam algo de novo e interessante. Duas ou três horas caminhando me levam a lugares tão estranhos quanto esperava ver. Uma pequena casa no campo que nunca havia visto antes é por vezes tão bela quanto os domínios do rei de Dahomey.7 Que se guarde em mente a liberdade desses caminhantes - isto interessa. Quero tratar agora, contudo, de outra caminhada, distinta das praticadas por Long e Thoureau. Uma caminhada que é particularmente importante neste trabalho: a caminhada pelas cidades. A seguir irei me aproximar de outros caminhantes, que se voltam para as cidades com um olhar oposto ao de Thoureau. Com eles partilho a afinidade pelo espaço urbano. Espaço que me interessa pela densa trama de relações humanas que ali se estabelecem. É nesse espaço, portanto, que o Projeto Correspondência se construiu. Este trabalho se funda em um caminhar errante pelas cidades. Caminhar em que se estabelecem relações. Caminhar errante, muito próximo ao do arquiteto Francesco Careri, que além ter escrito o célebre Walkscapes; tão bem leu a cidade atual em suas transurbâncias junto ao grupo de stalkers. Quando percorro a cidade a pé, conquisto de imediato uma nova possibilidade: a de observar os pequenos acontecimentos, o cotidiano do cidadão comum, os
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fragmentos de estórias e as memórias que compõe a pequena narrativa de um dia no espaço urbano.8 No automóvel ou mesmo no transporte público o tempo passa de forma diferente, a apreensão da cidade se dá de forma distinta, pois a capacidade sensorial fica comprometida pela velocidade com que se desloca. 9
Enquanto ando pela cidade ponho-me em igualdade com os que ali se encontram, não há nada que me distinga do outro, todos partilhamos aquele espaço. Andando pelas ruas me aproprio e compartilho do espaço da cidade.10 Nas ruas lanço-me ao exercício da civilidade, a arte de interagir com estranhos sem utilizar essa estranheza contra eles e sem pressioná-los a abandoná-la ou a renunciar a alguns dos traços que os fazem estranhos.11 Assim se define, para mim, a ideia de espaço público. Lição que aprendi da antiga cidade de Atenas: é preciso estar no espaço público; nas ruas e nas praças, para que nos legitimemos enquanto seres políticos. 12 *
Até agora falei de qualquer caminhada urbana, das possibilidades políticas que ela cria, ainda que seja uma caminhada com finalidade prática, uma caminhada corriqueira de um cidadão qualquer. Há caminhadas, entretanto, que requerem algo mais de seus caminhantes. Para que a caminhada tenha valor estético; seja um fim em si mesmo, e não mero instrumento para chegar de um lugar a outro, ou melhor, para que a caminhada seja ela mesma um lugar, é preciso saber perder-se, assim como Thoureau e Long perdiam-se na paisagem. É agora preciso saber perder-se na cidade, flanar como Baudelaire ou Benjamin, para quem não há nada de especial em não nos orientarmos numa cidade. Mas perdermo-nos numa cidade, como nos perdemos numa floresta
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é coisa que precisa se aprender.13 Quando não preciso apressar o passo para tomar um ônibus, nem tenho algum compromisso, sinto crescer imediatamente minha percepção da cidade. É quase sempre nesta situação que as coisas mais interessantes e improváveis acontecem. Assim também se passa na novela A senhoria, de Dostoiévski: é num de seus vagares devaneios que Ordinóv encontra sua misteriosa inquilina, episódio decisivo para que se estabeleça esta estranha relação que será, então, o tema central da história .14 A literatura russa e especialmente Dostoiévski sempre me deixaram num estado um pouco onírico, me imaginando no lugar das personagens, a caminhar pelas ruas de São Petersburgo. Tinha grande vontade de me perder naquela cidade, de experimentar um pouco daquele mundo estranho. Em meados de julho de 2010 finalmente viajei até lá.15
Foi forte a minha primeira impressão naquele fim de tarde, quando do aeroporto, tomei com minha mãe um táxi dirigido por um homem que não falava inglês. Do aeroporto ao centro histórico, percorremos toda a Petersburgo da era soviética: avistei milhares de edifícios da revolução, tão discutidos nas aulas de arquitetura; monumentos à Lênin e Stalin a cada dois ou três (imensos) quarteirões. Já era noite quando chegamos ao lugar que havia sido escolhido também por causa de Dostoévski: hotel White Nights.16 Para aflição de minha mãe, não se avistava nada que lembrasse o aspecto de um hotel, no endereço que levamos anotado. Só um grande casarão decadente e várias campainhas para tocar, todas com indicações em russo. Teria me enganado, será? Estaríamos perdidas em São Petersburgo? Fui tomada por um misto de excitação e medo: estava enfim 16
ali, naquele mundo que tanto havia imaginado, e sentia um pouco do desconforto e do estranhamento vividos antes na literatura que me levara até lá. Não conseguia ler nada do que estava escrito, não havia ninguém nas ruas, mas fazia uma noite clara e a rua Bolshaia Morskaia iluminada pelo luar, me parecia um pouco familiar: senti que a qualquer instante surgiria por ali Raskólnikov, Ordinóv, ou Michkin.17 Passados alguns minutos, alguém respondeu pelo interfone e abriu-se a grande e pesada porta de madeira. Após subir quatro lances de escada, uma suntuosa escadaria nos idos tempos, pude imaginar, finalmente chegamos ao andar onde ficava o hotel e recebemos de uma mocinha russa, as chaves de nosso quarto. Tudo era incrivelmente interessante: eu estava na Rússia. Os dias seguintes no centro, todavia, foram uma grande decepção. Ao visitar o museu Hermitage, o teatro Mairiinsky, os canais do centro e a avenida Niévski, comecei a me sentir entediada: tudo era familiar num mau sentido. Não experimentava mais aquela estranha familiaridade da espera na rua Bolshaia Morskaia. Dostoiévski, Gogol e Tolstói haviam abandonado estes lugares. À luz do dia, e em meio a todo tipo de gente, exceto os russos senti que poderia conhecer aquela cidade folheando qualquer guia turístico. Apesar da impressão que tive na chegada, começava a me parecer que estar naquela cidade pouco me acrescentava ao vivido ali antes, por meio da leitura. Todos aqueles turistas, placas em inglês e vendedores de suvenires consumiam a beleza daqueles lugares do meu imaginário. Por que ir até lá? Percebi que me faltava a disposição de vagar sem rumo, sem o compromisso de visitar um sem-número de atrações. Precisava deixar de ouvir o onipresente inglês, ouvir o som da língua estranha dos russos. Precisava estar só. Tinha de sair dos arredores mais turísticos, enveredar-me pelas ruas escuras de Dostoiévski, me perder na cidade que era 17
exclusivamente deles, dos russos, fossem quem fossem estes russos da minha ideia.
Assim o fiz. Após a partida de minha mãe, numa manhã quente daquele julho decidi andar o dia todo, sem um rumo prédeterminado. Logo deixei para trás a desagradável multidão quando cruzei uma ponte do rio Neva. Cheguei a uma outra ilha da cidade. A arquitetura de lá era mais simples, mais real, talvez. O comércio também havia mudado, as placas agora eram escritas em russo, não vi mais nada daquele comércio pasteurizado que irritantemente se encontra em quase toda grande cidade hoje. Estava agora percorrendo caminhos mais próximos daqueles russos que tanto me intrigavam. Senti-me um pouco como alguém dali, quando pude viver situações banais do dia-a-dia do cidadão comum: encontrei um laboratório de fotografia, onde deixei alguns filmes para revelar - apesar de ninguém ali falar inglês. Tive fome e decidi entrar numa espécie de fast-food com comida russa típica e, apontando, escolhi para o almoço uma panqueca com ovas de peixe, que comi sentada num balcão vermelho, ao lado de uma senhora-matrioska com bochechas rosadas. Então atravessei uma nova ponte e perambulei por um novo bairro, onde tudo era mais estranho: a arquitetura, agora, era de um outro estilo, uma espécie de pós-moderno oriental. Puro pastiche: prédios de 20 andares com varandas adornadas ao modo das igrejas ortodoxas do centro, cores e dourados por toda parte. Claramente, aquele pedaço de cidade não tinha mais de 30 anos. Ali tampouco se percebiam-se turistas - havia os deixado para trás há muito. Era evidente que não estava caminhando na cidade de Dostoiévski, mas ali havia algo da mesma forma interessante. Encontrava-me num novo recorte do espaço-tempo: em uma nova São Petersburgo, diferente da que imaginei encontrar.
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Por fim avistei um enorme parque de diversões à beira do mar do norte, um parque todo armado para o verão. Havia chegado a uma cidade invisível.18 Aqueles russos não eram hostis como o taxista da chegada, ou os funcionários dos museus; eles sorriam, nadavam, tomavam sol, faziam piqueniques na praia e divertiam-se nos brinquedos coloridos. Senti-me satisfeita assim que cheguei àquele local improvável, depois da experiência de uma Rússia decadente e esgotada por uma multidão de turistas que assim como eu cumpriam sonolentos um roteiro oficial do Lonely Planet ou algum desses guias populares entre viajantes.19 Em seu livro A arte de viajar, Alain de Botton escreve sobre um viajante imaginário - o decadente e misantropo, Duque des Esseintes-,20 que viaja ao mundo todo desde a cama de seu quarto. Estar à deriva na Rússia me fez pensar nas variadas possibilidades de vivência de um espaço e na capacidade que a imaginação tem de nos levar aos lugares mais distantes. Estive na Rússia antes de ir até lá: pela literatura tive impressões tão marcantes daqueles lugares como quando de fato me encontrei ali. Mas foi ainda melhor estar fisicamente naquelas ruas. Por estar lá, por deixar-me flanar pelas ruas de São Petersburgo descobri lugares estranhos de que não fazia a menor ideia que existissem. Estar ali, entregue ao acaso me permitiu descobrir pela própria experiência uma Rússia pósmoderna, uma resposta dos tempos de hoje àquele universo tão presente no meu imaginário. Estar de fato ali permitiu que eu me comunicasse, sabe-se lá como, com pessoas completamente diferentes de mim. Isso só poderia se dar na experiência da realidade. Foi preciso, contudo, flanar. Estar na Rússia não bastava, era preciso perder-se pelas ruas desconhecidas. Flanar como fazia Baudelaire em Paris, na Paris que se transformava na
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virada do século XIX. Nas ruas da cidade que se modernizava, o poeta vagava descompromissado; contemplava a cidade com o distanciamento de um estrangeiro e se fazia invisível em meio à multidão. Olhava o mundo com atenção, mas passivamente - não agia sobre ele.21 Como observa Merlin Coverley, para Baudelaire, Paris tornara-se um livro para ser lido em caminhadas por suas ruas.22 Este flâneur se reconhece em Walter Benjamin, quando fala de sua Berlim ou da Paris para onde fugiu durante o nazismo.23 Aparece também no conto The man of the crowd, de Edgar Allan Poe, em que a personagem passa todo o conto seguindo um desconhecido pelas ruas de Londres. Em todos, a mesma atitude do observador passivo que se confunde em meio à multidão.
Em seu doutorado Novas Derivas, Jacopo Crivelli traça um paralelo entre o conto The man of the crowd, e os trabalhos de três artistas contemporâneos – Vito Aconcci, Sophie Calle e Francis Alÿs. Aconcci e Calle - em Following Piece (1969), e Paris Shadows (1978 – 79) - seguem uma série de pessoas em seus percursos pela cidade. Nos dois trabalhos a escolha da pessoa a ser seguida é aleatória e a deriva pode durar um dia inteiro ou alguns minutos, conforme o percurso de cada um. Seguindo o outro, tanto o personagem de The man of the crowd, como os dois artistas, puderam vivenciar uma nova cidade dentro de suas próprias cidades - Londres, Nova Iorque e Paris. Neste grupo de trabalhos pode-se também incluir Doppelgänger (1999), em que Alÿs se impõe a tarefa de seguir alguém que se pareça com ele cada vez que chega a uma cidade desconhecida. O artista ajusta então seu passo ao de seu doppelgänger, inventando-se tal papel para que assim possa se incorporar ao novo ambiente como qualquer outro pedestre local.24 Este trabalho difere dos outros dois pelo fato 20
de a cidade pela qual se vagueia não ser mais sua própria cidade, mas uma cidade desconhecida. A experiência do novo é mais natural, mas corre-se o risco de deixar de se perceber uma cidade interessante, a cidade dos locais. As instruções de Alÿs de como andar por uma cidade nova questionam a apreensão do espaço urbano pelo turismo.
É bastante possível aproximar estes trabalhos à experiência de cidade do flâneur, daquele que vê, mas se faz invisível. Desta eles diferem, contudo, num ponto central: têm um propósito. O flâneur olha para sua cidade desinteressadamente; Alÿs, Sophie Calle e Vito Aconcci ainda que nessas obras, também andem à deriva e observem o espaço das ruas a partir do anonimato, têm a intenção da prática artística ao longo do percurso. Enquanto andam os três artistas fazem arte, e para que seja possível a partilha de suas poéticas, registram suas experiências através de vídeos, fotografias e textos. Ainda em Paris, outros caminhantes surgiram após o flâneur – eram uma evolução deste tipo. Deixaram de ser observadores desinteressados; tinham o objetivo de produzir experimentos estéticos em suas caminhadas. Francesco Careri, em seu livro Walkscapes, caminnare como pratica estetica, identifica o período de transição dos movimentos dadá ao surrealismo (1921-1924), como o primeiro de três importantes momentos de passagem na história da arte moderna. Para Careri, tamanha era a relação entre o caminhar e as artes, que por toda a primeira metade do século XX, o caminhar foi praticado como uma forma de antiarte. Tanto os dadaístas quanto os surrealistas vagavam por Paris em grupos e tinham um olhar voltado para uma outra cidade. Deram as costas aos museus e monumentos - interessava-os 21
o que havia de comum na paisagem urbana. Suas caminhadas – as visitas-excursões dadás e as deambulações surrealistas - se assemelhavam no intuito da prática estética e num dito insucesso na tentativa de apropriação do espaço urbano. Estes artistas pretendiam atribuir uma simbologia ao caminhar que transferisse valor artístico dos objetos aos espaços e à performance. Visavam à dessacralização da arte, a completa fusão entre arte e vida. Partilho com esses artistas desse mesmo interesse por uma cidade dessacralizada. Minha experiência em São Petersburgo me fez perceber que andar por uma rua comum da periferia foi uma experiência ainda mais interessante do que ver ao vivo as dançarinas de Matisse, no acervo do museu Hermitage. Depois da transição entre as experiências dadás e surrealistas-; segue uma nova passagem, que inicia o segundo dos três momentos estabelecidos por Careri.25 Essa passagem se constitui na transição entre a Internacional Letrista e a Internacional Situacionista. Careri volta-se, então, para esta nova personagem que desponta nas ruas parisienses: os situacionistas.
Guy Debord, homem chave neste movimento, talvez tenha dado pouco crédito às experiências urbanas anteriores à que propôs, mas é inegável que muito de sua pauta já se anunciava entre seus antecessores imediatos: com os surrealistas compartilhava a percepção de que o stroller (andarilho) desocupado não tinha mais espaço nas calçadas, era preciso encarar a destruição de sua cidade. Para prosseguir com sua prática estética, era necessário tornar-se subversivo: a única forma de resgatar a cidade dos pedestres. 26 Os situacionistas gritavam contra a passividade, a alienação e a falta de participação da população. Pretendiam resgatar as múltiplas formas de nomadismo, que as cidades modernas 22
foram progressivamente esquadrinhando, restringindo, fixando e confinando, com o fim de aniquilá-las por completo.27 Em 1956, Debord funda a Internacional Situacionista e armado de conceitos e práticas como a psicogeografia e as derivas urbanas, propõe uma nova experiência de cidade. A ideia de uma psicogeografia era a de que a geografia urbana, teria efeitos sobre o comportamento afetivo dos indivíduos. Era preciso observar, então, cientificamente, tais estímulos através das caminhadas sem rumo e sem tempo determinado, as derivas. Por meio delas, através de uma participação ativa da sociedade, dada na apropriação do espaço das ruas, seria possível uma construção de uma nova cidade. Era preciso que houvesse uma verdadeira revolução da vida cotidiana,28 para que assim se conquistasse a cidade do homo-ludens de Huizinga,29 uma cidade lúdica e agradável aos seus pedestres.
A visão situacionista da cidade, muito mais do que propositiva tinha um sentido crítico em relação ao urbanismo existente. O urbanismo praticado pelos arquitetos modernos, que tinha Le Corbusier como figura central, havia errado ao esquecer-se do homem comum. Entendia a cidade como uma máquina para um homem ideal: espaço traçado e imposto pelo arquiteto, em que haveria de imperar o funcionalismo. Em contraposição a isto, os situacionistas pregavam uma cidade construída por seus próprios habitantes, uma cidade participativa.
No tempo da cidade-máquina, os automóveis familiares eram novidade exaltada: Le Corbusier sempre fotografava suas casas com um carro do ano parado na frente. Esse mesmo automóvel, contudo, iria tornar o espaço urbano cada vez mais hostil aos pedestres. Dezesseis anos após sua fundação (1972), a Internacional Situacionista foi extinta, apesar da visibilidade conquistada nas ações que marcaram os acontecimentos de Maio de 23
68. As divergências de visões entre aqueles que haviam se concentrado nas questões políticas em sua crítica de cidade (Debord), e outros que ainda estavam mais preocupados com os aspectos estéticos da questão, impossibilitaram a continuação do movimento. A politização crescente na postura de Debord fica clara com a publicação de seu emblemático texto, A sociedade do espetáculo, em 1967. O caminhante das cidades tem muito ainda a ouvir de Guy Debord. Suas críticas à sociedade mergulhada no tédio e no consumismo e à supressão da vida urbana pela hostilidade ao pedestre, permanecem tremendamente atuais.
O flâneur ficou, de vez, para trás: a cidade contemporânea requer de seus caminhantes uma postura ainda mais ativa, ainda mais política. Se a cidade já era hostil aos caminhantes situacionistas hoje ela é ainda mais. Está fora de cogitação vagar pelas cidades sem objetivos e observar tudo à distância. Para explorar o espaço urbano agora, é preciso portar-se como uma espécie de guerreiro que se arma de uma estratégia para ocupar seu lugar nas ruas.30 Há de se responder àquele espaço, atuar ali, percorrer as ruas com um olhar atento, sem perder tempo com vitrines, art nouveau ou caixas de fósforo - o flâneur de nosso tempo caminha com uma tese; não flana mais, tornou-se um stalker. 31 Alÿs ainda apresenta em Doppelgänger alguns traços do flâneur. Em Paradox of Praxis 1(1997), entretanto, se vê mais claramente um stalker em ação. Nesse trabalho, o artista empurra um bloco de gelo pelo centro da Cidade do México até que ele tenha desaparecido completamente, deixando no fim da caminhada um rastro de água. O que resta é muito sutil, mas o espaço percorrido se transformou. Alÿs não pode ter passado despercebido pelos pedestres que cruzaram seu caminho. Um bloco de gelo sendo arrastado pela cidade
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inevitavelmente provocou nos pedestres algum tipo de questionamento, retirou-os de seu estado sonolento da vida cotidiana. Com esta obra, o artista inseriu uma fábula na rapidez da metrópole.32 Chego aqui ao último tipo de caminhada, a que me interessa especialmente no desenvolvimento deste trabalho. A caminhada que transforma o espaço percorrido através da inserção de alguma espécie de objeto ou ação provocadores. Tais inserções, por instantes que sejam, deslocam de seus cotidianos aqueles que as encontram e os fazem pensar sobre outra cidade, distinta da familiar, percorrida muitas vezes sem atenção.
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cidade pequena
– FOTOGRAFIA E RELATO DO LUGAR – “You discover certain places in a city that you start to appreciate, because you’re welcomed in a bar or because suddenly you feel better (...) if you set off on a dérive in a good state of mind, you’ll end up finding a good place. Yes that’s what it is, and I’d even say if you put me in an unknown town I will find the place where I should be.” Ralph Rumney, The Consul “As cidades, como os sonhos, são construídas por desejos e medos, ainda que o fio condutor de seu discurso seja secreto, que suas regras sejam absurdas, as suas perspectivas enganosas, e que todas as coisas escondam uma outra coisa (...). De uma cidade não aproveitamos as suas sete ou setenta e sete maravilhas, mas as respostas que dá às nossas perguntas.” Ítalo Calvino, Cidades Invisíveis
Num sábado de 1967, Robert Smithson tomou um ônibus com destino a Passaic. Partiu de Manhattan na direção oeste, e, cerca de uma hora depois, chegou a sua cidade natal. Ali produziu uma série de fotografias que chamou de Monumentos de Passaic. Munido de uma câmera barata e simples, com foco fixo e apenas duas possibilidades de exposição – ensolarado e nublado - registrou a paisagem urbana inerte de uma cidade em construção. Era dia de descanso: o grande canteiro que consistia aquele lugar encontrava-se vazio. Nas imagens vê-se cenas banais: uma ponte, um caixote de areia, tubos de esgoto. Aquelas ruínas ao reverso eram seus monumentos. Daquele lugar silencioso e comum - que eventualmente viria a ser um subúrbio - Smithson extraía a poética de suas imagens. O artista batizou estranhamente aqueles objetos representados nas imagens de monumentos.
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Monumento é, segundo o dicionário Aurélio, toda obra grandiosa destinada a guardar uma memória de fato ou pessoa notável. O monumento localiza-se geralmente em uma praça importante da cidade, ou no lugar onde aquele fato de que se quer lembrar aconteceu. Que monumento se encontraria ali? Usamos a palavra monumental quando nos referimos a algo muito grande. Mas o que se vê naquelas imagens é pequeno e ordinário. Passaic existia sem relevância, sem passado, sem acolher nenhum “grande evento” da história. Sua existência resumia-se à perspectiva de um futuro ainda incerto.1 O artista tomou partido disto e reforçou a indefinição formal daquela paisagem urbana por meio do caráter errático daquelas imagens – geradas sem controle na câmera amadora Kodak Instamatic 400.
Os Monumentos de Passaic logo nos remetem às visitas dadaístas aos lugares banais de Paris; do dadá a Duchamp não é um caminho assim tão longo - creio que esse trabalho tem muito de Duchamp. Assim como o francês levou o urinol e o ancinho para o espaço expositivo; Smithson fez de tubos de esgoto monumentos. Se vê nos dois uma mesma postura de “dessacralização da arte”. Como em muitas obras de Duchamp, o título atribuído por Smithson tem o mesmo peso que as imagens ou o envolvente relato da visita à Passaic. Além disso, aquelas imagens eram também readymades. Como relataria o artista, sob a luz do meio dia e por meio daquela câmera ele fotografava fotografias.2 Neste processo paisagem tornava-se imagem. Deixava de existir o instante. No apreender automático, rápido e errático daquelas imagens, Smithson deixava de ser um fotógrafo e passava a ser um coletor de readymades – do tubo, da caixa, da ponte. Muitos consideram Duchamp o pai da arte conceitual.3 Mais tarde Smithson seria identificado com a land art, mas Os Monumentos de Passaic estão definitivamente inseridos 39
dentro do universo da arte conceitual.
Quando Smithson fez sua visita à Passaic, o mundo entrava em ebulição. Muitos iam às ruas, protestos por direitos civis pipocavam em toda parte. Os artistas transpiravam em seus trabalhos a politização daquele momento. Os dogmas da arte moderna eram revistos por movimentos que surgiam na Europa e nas Américas. Na Europa destacavam-se os situacionistas, nos Estados Unidos se organizavam um grupo de artistas que depois seriam chamados de conceituais. A crítica americana Lucy Lippard viveu de perto aquilo tudo. Ela fazia parte do círculo de Sol LeWitt, Joseph Kosuth, Dan Graham e Robert Smithson - artistas que contribuíram intensamente na produção de arte daqueles anos. Sobre estes artistas, Lippard escreveria mais tarde, em Six Years: The dematerialization of the art object um recorte no panorama das artes de 1966 a 1972. Esses seis anos foram, segundo a crítica, os anos mais importantes na produção da arte conceitual. No livro se encontra um grande apanhado de acontecimentos, textos e obras, agrupados ano a ano. A série Os Monumentos de Passaic faz parte das obras mencionadas por Lippard no segundo daqueles seis anos. Com outro enfoque, também Rosalind Krauss analisou essa passagem da arte moderna à pós-moderna. Em escultura no campo expandido, Krauss analisa as mudanças na relação espacial da obra de arte durante aquele período. A arte moderna existia sem lugar. Com o início do movimento Moderno, o monumento havia desaparecido, pois a escultura agora se voltava para o espaço abstrato. A crescente politização do mundo exigia, contudo, uma nova postura. A visão de um espaço moderno não era mais adequada àquele tempo, a escultura abstraída de um lugar deixava de fazer sentido. No fim dos anos 50, Barnett Newman disse que
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escultura era aquilo em que você tropeçava, quando dava alguns passos para trás de modo a ver melhor uma pintura.4 Nesse contexto começavam a surgir respostas absolutamente novas: escultura era o que estava em frente ao edifício, mas que não era edifício; ou o que se encontrava na paisagem, sem ser paisagem.5 Tudo era válido, as soluções eram múltiplas, mas era possível apontar para algo em comum entre elas: os artistas retomavam o lugar. Surgia, assim, o site-specific e a land art - movimento oficialmente inaugurado numa exposição em 68, da qual um dos maiores expoentes é o mesmo Robert Smithson, que um ano antes visitou Os Monumentos de Passaic. Nesses anos surgiram alguns notáveis artistas caminhantes, como Robert Long e Vito Aconcci. O fato é que tendo ou não o caminhar como matriz de suas poéticas, grande parte do que foi produzido nas artes a partir daquele momento aspirava a uma não comercialização. Era parte da postura política dos artistas a partir de então, questionar o espaço destinado às artes. Museus e galerias não mais respondiam as suas vontades poéticas - a arte queria desmaterializar-se, confundir-se com o cotidiano do cidadão comum. Este trabalho bebe dessas fontes. A desmaterialização - sobre a qual falou Lucy Lippard- e a retomada do lugar objeto de analise de Rosalind Krauss- são centrais em sua fundamentação. Falarei, por mais tarde ora, do lugar.
Os Monumentos de Passaic são fotografias de um lugar. Eu também, por um tempo, fotografei lugares da cidade. No Projeto Correspondência fotografo esses lugares novamente - agora a partir da tela do computador. Relato, a seguir, um primeiro momento nesta minha busca por lugares;
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experiência que se construiu através do caminho e da fotografia.
Por diversas vezes parti de um ponto qualquer da cidade e saí num caminhar zonzo,6 sem me preocupar com o destino. A câmera era a única bússola: buscava cenas e pedaços de cidade que me despertassem a vontade de fotografar. Tive boas surpresas. Nesses vagares, descobri lugares que nunca imaginei que pudessem existir. Assim como Ralph Rumney,7 quando me encontrava num bom estado de espírito, andar sem rumo sempre me fazia chegar aonde eu devia chegar. Chamei essas primeiras derivas de buscas por cidades invisíveis. Por meio delas explorei lugares desconhecidos, estranhos, inesperados. Suas feições podiam ser as mais variadas: era igualmente interessante chegar a um parque temporário, avistar crianças brincando numa piscina de plástico numa rua de terra perdida, ou surpreender-me com um restaurante vermelho no topo de uma montanha. Estar ali significava viver uma animadora experiência de realidade.
Wim Wenders também tem um pouco de andarilho. Há tempos ele se dedica a uma busca semelhante por estes lugares improváveis. Em uma cena clássica e talvez um pouco autobiográfica de um de seus filmes, Paris Texas, o andarilho Travis, percorre a vastidão do deserto americano. Da mesma forma Wenders caminha: vale-se deste caminhar sem rumo para conhecer as cidades. Enquanto estrangeiro, sempre que chega a uma cidade nova, ele opta por trilhar o caminho incomum. Num cruzamento, escolhe sempre virar a esquina desconhecida. Conta com o acaso, e depara-se com lugares que o surpreendem. Uma fachada, uma rua, ou uma montanha lhes são, por vezes, tão importantes quanto algumas personagens de seus filmes.8 Como diz, assim como pessoas, 42
lugares possuem personalidade. O diretor foi homenageado na mostra de cinema de São Paulo em 2010. Aqui ele esteve para organizar uma exibição de fotografias suas: Lugares estranhos e quietos, que ficou em cartaz no MASP de outubro daquele ano até janeiro de 2011. Havia logo na entrada da exposição um texto seu, em que contava um pouco de sua busca por lugares.
“(…)talvez você passe a entender meu apetite insaciável por lugares que não conheço: vem do fato que lá fora no mundo existem lugares, pontos e espaços mais impressionantes que você nunca poderia imaginar nos seus sonhos (…) por isso que não dou a mínima para nenhuma dessas imagens computadorizadas pois em todas elas, hoje em dia, o mundo é representado artificialmente, juntado, manipulado, inventado ou composto para criar uma nova realidade: o que tem de tão bom nisso? a realidade que encontro lá fora, de vez em quando, esses lugares estranhos e quietos, são muito mais atraentes na minha opinião, e muito mais emocionantes, pela simples razão de existirem. Na maioria do tempo humildemente, às vezes com orgulho, geralmente esquecidos e poucas vezes famosos. não existe nada mais lindo debaixo do céu de deus do que a incrível, alucinatória infinita variedade de lugares que realmente existem.” lugares estranhos e quietos, Wim Wenders outubro, 2010
Lugares que realmente existem: colocava-se em palavras a chave de minha busca. Entendia enfim a importância da fotografia no meu trabalho. Precisava de alguma forma documentar estas experiências, para apenas guardá-las, ou dividi-las com os outros. Por mais questionável que isso seja, buscava nessas imagens uma verdade objetiva. Estava movendo-me por um real movente, era preciso congelá-lo. Como em Passaic, não me preocupava com o resultado das imagens, mas limitava-me a registrar o
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potencial poético intrínseco a esses lugares a que cheguei aquele algo que esteve ali. A fotografia possui algo de tautológica, como disse Roland Barthes: nela um cachimbo será sempre um cachimbo.9 Entendo que quando se fala de fotografia analógica, a fotografia de que ele tratou em seu ensaio, A câmara clara, isto seja ainda mais válido.10 Por meio dessas imagens, produzidas e reproduzidas mecanicamente, imagens livres de manipulação, eu apresentava ao mundo uma prova. Tal qual prova de um crime, havia ali uma pista, um rastro de realidade. Pela imagem fotográfica ampliada a partir do negativo único eu dizia: este lugar existe e eu estive nele.
Quando comecei a fotografar a cidade toda chegada a lugares inesperados me interessava; os sentimentos de surpresa e estranhamento me motivavam, aguçavam meu olhar. A experiência de estar na cidade me era válida e estimulante por ela mesma. Num segundo momento fui delimitando o meu assunto. Começava a ser atraída por um lugar mais definido: minhas imagens daquela época retratam grandes vazios. São silenciosas, as vezes um pouco melancólicas. Interessava-me cada vez mais pelos terrain vague: ali sentia-me protegida da agressividade da metrópole. Aqueles lugares eram ilhas onde estavam abertas todas as possibilidades, onde podia inventar minha própria cidade.11 Como o stalker Francesco Careri, caminhante da cidade nômade, explorava, naquele momento, a cidade que está entre - à margem da cidade tradicional, além dos muros de Zonzo,12 fossem esses muros visíveis ou invisíveis. Havia encontrado um novo lugar, citando Jacopo Crivelli, nessas bolhas de resistência no interior do espaço urbano.13 Para Solá-Morales a fotografia seria a melhor forma de 44
representação da grande cidade. Nascida praticamente no momento de sua expansão, dominou o nosso imaginário urbano: Paris, Berlin, Nova York e Tóquio entravam na nossa memória e na nossa imaginação por meio da fotografia. Esta funcionaria como índice, por meio da qual não se veria a cidade mesma, mas imagens que nos dariam indícios de que algo esteve ali. A Paris, Berlin, Nova York e Tóquio do nosso imaginário seriam construídas sobretudo pelas imagens que delas guardamos em nossa memória.14 Dentro desta construção imagética haveria de se observar, desde os anos 70, o surgimento desse lugar predileto aos fotógrafos. Repetidamente, nos distintos cantos do mundo se fotografava o terrain vague – espaços vazios, abandonados nos quais já sucedeu uma série de acontecimentos. Wim Wenders fotografou o terrain vague, Robert Smithson fotografou em Passaic o terrain vague, os fotógrafos alemães da escola de Düsseldorf fotografam, hoje, os terrain vague da Berlim em reconstrução. A ausência de uso gera um sentido de liberdade nesses lugares. Dali se extrai toda potência evocativa que eles têm na percepção da cidade dos últimos anos. Vago, vazio, portanto, como ausência, mas também como promessa, como encontro, como espaço do possível, da expectativa.15 Nessas ilhas de indefinição, à margem da dinâmica da cidade, encontra-se espaço para vagar, o silêncio dentro das sinfonias da metrópole, o tempo livre. Nos terrain vague é possível estar à deriva, ainda hoje, apesar de todas as dificuldades que apresenta a cidade contemporânea. Os terrain vague seriam uma contra-imagem da cidade; uma crítica e alternativa a esta. *
Neste trabalho me afastei da experiência direta da fotografia, mas é inegável a importância que ela teve em sua constituição. 45
Foi no laboratório de fotografia da FAU que tive esse primeiro contato consciente com a matéria, pude transformá-la, entender suas propriedades. Assim como quando andava, ali me relacionava de forma tátil com o mundo.
Hoje este lugar está se tornando um museu. Quase ninguém mais revela ou amplia suas fotografias num laboratório. Por outro lado, nossa relação com o mundo se dá cada vez mais pela imagem. Há câmeras cada vez melhores nos celulares, através das quais posso compartilhar meu cotidiano, em tempo real, com alguém do outro lado do planeta. A quantidade de imagens que se recebe diariamente e a velocidade com que se esquece delas é assustadora. Não se comunica mais sem o recurso da imagem, e muitas vezes a imagem toma lugar da palavra. A experiência de mundo se dá, hoje em dia, na imagem.16 As imagens contemporâneas, como disse Wim Wenders, podem ser mais belas, mais detalhadas e mais sedutoras do que nunca.17 Por outro lado, são cada vez menos críveis. Para que possam estar disponíveis em todos os lugares ao mesmo tempo e ser reproduzidas infinitamente, foi preciso que superassem a ideia de original. As imagens eletrônicas afastaram-se definitivamente da realidade. Foi-se o tempo da pintura como representação da realidade, em que ainda havia a ideia da imagem única e era necessário ir até ela para poder contemplá-la. Hoje se vive atolado em imagens que já nascem sem tempo e sem lugar; imagens cujas origens há muito se perderam. Sinto cada vez mais que o tátil se perde nesse processo acelerado e que devo retomá-lo de alguma forma. Aquela época em que passava as tardes no laboratório de fotografia foi talvez, o primeiro momento em que tomei consciência da importância que o tátil tinha para mim.
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O laboratório de fotografia era meu outro terrain vague. Passava muito tempo lá. Era-me prazeroso entrar na sala escura para preparar o negativo para a revelação, encaixar o filme lentamente na espiral, ouvir seus estalos, senti-lo deslizar entre os dedos. Ali vivia uma desaceleração do tempo pelas mãos, cada coisa devia ser executada em seu momento, uma por vez. No nosso mundo frenético, em que se faz tudo ao mesmo tempo, são raras as vezes que se pode ter uma experiência assim. Uma coisa de cada vez – era preciso paciência para gerar uma imagem. Primeiro assistir aos sais de prata se revelando na película. Depois, as ampliações, onde era ainda mais evidente a transformação da matéria: a luz queimava agora o papel e deixava os rastros daquele instante. Por fim, era o papel que se revelava e a imagem surgia lentamente sob a luz avermelhada da sala de ampliação.
Havia algo de fenomenológico nesse conjunto de experiências - eu me relacionava com o mundo, tomava consciência da matéria. Percebia-me simultaneamente enquanto corpo agente e passivo, caminhando pelas ruas, ou mais tarde, revelando aqueles encontros no laboratório. Aquela era uma relação dupla e inevitável. Tal consciência do meu próprio corpo inquietava-me ao fotografar. Afligia-me a possibilidade de que minha presença alterasse os lugares, destruísse as cenas com que me deparava naquelas derivas. Isso era especialmente problemático no caso dos retratos: ser fotografado não é algo simples. Saber-se congelado para sempre numa imagem geralmente faz com que se pose para a câmera.18 A pose não me interessava. Se o meu objetivo era capturar a relação daquele outro corpo com um lugar da cidade; pela pose tudo se dissiparia. Não podia, portanto, intervir naquela cena. Embora fosse um corpo estranho naqueles lugares – e assim potencialmente mais percebido 47
por aqueles que a ele pertenciam-, tentava manter-me o mais discreta e anônima possível. Camuflava-me, abstinha-me; ao menos até que se tivesse a fotografia. Por isso a maior parte das minhas imagens daquela época trazem pessoas de costas. Há uma série de fotografias chamada Subway Portraits, de Walker Evans que se originou de uma mesma vontade de fazer-se invisível.19 Para poder captar da forma mais espontânea possível as pessoas no metrô de Nova York; Evans camuflou-se. Vestiu-se de preto, pintou sua Leica de preto, inventou uma engenhoca para disparar por meio de um cabo, sua pequena câmera escondida dentro de sua jaqueta. Pediu a seu amigo, também fotógrafo Helen Levitt, que o acompanhasse pois deste modo seria mais fácil passar despercebido. Evans enfrentou inúmeras dificuldades; não tinha controle algum do enquadramento, e a luz dentro do metrô era pouca. Não sem esforços, alcançou seu objetivo: produziu memoráveis retratos não posados. *
Aos poucos fui perdendo o interesse pelos terrenos vagos. Começava a sentir falta do humano, dos traços frescos de sua ocupação no espaço. Deixei de lado a cidade por mim inventada. Tornava-se cada vez mais saboroso descobrir a cidade do outro. Lugares continuavam a ser-me imensamente interessantes, mas de novo eles mudavam de feição. Os terrain vague haviam sido uma pausa no meu percurso, uma fuga da cidade que agredia. Acredito, no entanto, que meu interesse pelas cidades tenha sempre sido um interesse pelo humano. Isso, contudo, poderia me levar a qualquer lugar Mas não tinha vontade de percorrer imponentes avenidas ou visitar as principais praças das cidades, tampouco me interessavam mais os lugares de passagem ou os vazios. 48
Esta minha última busca quase sempre se concluía nas periferias. Interessavam-me os bairros pacatos, distantes do burburinho dos grandes centros, desconhecidos pela “grande história” daquela cidade. Buscava lugares “sem nada de especial”, numa primeira impressão. Buscava, todavia, lugares um tanto únicos: talvez justamente por terem sido deixados de lado eles pertencessem mais aos seus habitantes e estavam impregnados de uma identidade própria. Por não haver nenhum grande fato histórico para guardarem, seriam, mais do que os endereços importantes das cidades – dos edifícios públicos, das grandes praças e dos monumentos-, depositários das pequenas memórias.20 Voltava-me para o casario e a casa; lugar da morada, aquele que se identifica como próprio dentro da grande trama urbana. Buscava um lugar de identidade, onde se manifestariam os traços mais particulares àquelas pessoas. Aqueles bairros residenciais teriam um pouco do casario de Atenas, sobre o qual falou Jonas Malaco: ali Nenhuma casa tem o mesmo desenho que outra e também nenhuma rua é igual à outra.21 Não bastava que pessoas morassem ali. Era preciso que houvesse entre seus moradores, coletivamente, um sentido de lugar. Lugar esse, similar ao da fala de Milton Santos: o lugar como o espaço do fazer solidário. Havia chegado a lugares da vizinhança.
Talvez não faça mais sentido contar histórias nos dias de hoje. Pelo menos não mais as grandes histórias.22 Pode-se aqui retomar a frase de Jean François Lyotard, que dizia ser o fim das grandes narrativas, o evento fundador da pósmodernidade.23 Sua análise voltava-se para o colapso das meta narrativas e das estruturas filosóficas universais, mas acredito que aplica-se igualmente ao escopo deste trabalho. O fim das grandes narrativas deixou um vazio, uma saudade 49
pela narração, como fala Lóránd Hegyi.24 Nesse campo floresceram as micro-narrativas: voltou-se para o pequeno. Na vontade de saber algo sobre a cidade, atentei à experiência não linear dos pequenos cotidianos, da intimidade e dos relatos de cada um.
Através de uma coleta de identidades podia formar um imaginário pessoal daqueles lugares por onde eu estive. Por meio de uma série de pequenos indícios - como um objeto no quintal, uma porta entreaberta ou uma conversa no portão - iam se construindo minhas Cidades Pequenas. Muitas vezes, durante estas caminhadas fotográficas, eu tinha alguns encontros e diálogos interessantes. O que fotografava, somado àquilo que surgia durante as conversas, eram elementos complementares e tinham a mesma importância na construção desse meu imaginário. A Cidade Pequena foi uma resposta das cidades para mim. Nesse lugar, à margem da rapidez e da frieza das metrópoles, encontrei a identidade e o afeto.
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do espaço ao lugar
– SIGNIFICAÇÕES –
“ Abraão tomou então ovelhas e bois e deu-os a Abimelec, e fizeram aliança entre si. Abraão pôs a parte sete jovens ovelhas do rebanho. “ Que significam, disse-lhe o rei, estas sete ovelhinhas que puseste a parte?”aceitarás de minhas mãos estas sete ovelhinhas, respondeu Abraão, como testemunho de que fui eu que cavei este poço.” Por isso deu-se aquele lugar o nome de Bersabéia; por que ambos ali tinham jurado.” (nota: Bersabéia: em hebraico Beer-Cheba, com dois sentidos possíveis: poço dos sete e poço do juramento) (Gênese 21, 28-31)
“Place for me is the locus of desire. Places have influenced my life as much as, perhaps more than, people.” Lucy Lippard, the lure of the local
O espaço é dado, é conceito abstrato. Espaço é possibilidade, folha em branco. O espaço independe do homem, está, é, desde sempre. O lugar, não. Lugar é construção. Construção de experiência, de memórias. Um lugar existe a partir do momento que se dá um nome a ele,1 associa-se a ele um fato histórico, ou mesmo uma pequena estória - algo pessoal. A existência do lugar pode se dar de forma coletiva ou individual, mas passa sempre pela experiência humana. Alguém esteve ali, viveu ali; constituiu-se, assim, um lugar. O processo de constituição do lugar é um processo de apropriação do espaço pelo homem. A partir dessa apropriação é que se trás identidade e significado a ele, cria-se o lugar. Liév Tolstói tinha um modelo na infância, seu irmão mais velho, Nicolai. Ele punha o pequeno Tolstói a sonhar. Certa vez disse para o irmão que possuía o segredo capaz de instaurar no mundo uma nova Idade de Ouro, na qual a humanidade seria feliz: livre de doenças, miséria e ódio. O segredo estaria gravado num graveto verde, enterrado numa ravina da
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floresta de Zakaz. A história marcou o escritor por toda a vida. Dois anos antes da morte, Tolstói recomendou o lugar onde gostaria que fosse guardada sua memória: “Embora seja um assunto desimportante, quero dizer algo que eu gostaria que fosse observado após a minha morte. Mesmo sendo a desimportância da desimportância: que nenhuma cerimônia seja realizada na hora que meu corpo for enterrado. Um caixão de madeira, e quem quiser que o carregue, ou o remova, a Zakaz, em frente a uma ravina, no lugar do “graveto verde”. Ao menos há uma razão para escolher aquele e não qualquer outro lugar. “
A história do graveto verde acabara por constituir um lugar. Por causa de seu irmão, Tolstói escolheu, dentre infinitas possibilidades, uma ravina da floresta de Zakaz. Ali seria enterrado. O mito do graveto verde de Nicolai tornava-a única, tornava-a um lugar.
Yi-Fu Tuan escreveu sobre espaços e lugares sob uma ótica que me parece bastante pertinente; a ótica da experiência humana. Espaço e lugar são para ele construções culturais, dependem, portanto, da experiência de cada um. Há, contudo, traços comuns a todo homem na vivência do espaço e do lugar. Parte-se de si mesmo e volta-se para o mundo exterior: dessa forma se dá a experiência de realidade. A experiência se dá em diferentes esferas da inteligência humana. Por vezes nosso relacionamento com o mundo é mais emocional, em outros momentos é mais tomado pela razão. Obviamente a experiência humana é múltipla, e estes processos nunca se dão de forma exclusiva. Tuan criou um esquema que organiza essas esferas da experiência – sensação, percepção e concepção. Quanto mais mental este processo, mais próximo seria de uma concepção de mundo; quanto mais emocional, mais haveria ali sensações da realidade.2 O homem é o ponto de partida dessas experiências. O sentido 59
de distância, por exemplo, é sempre a ele relativo. 3 Fica evidente essa compreensão do espaço por si próprio, quando observamos as primeiras unidades de medida estabelecidas pelo homem: elas são todas antropométricas.4
O espaço se mede, é o que se encontra entre dois lugares, dois corpos. Entre eu e o outro. Lugar é objeto. Lugares e corpos definem o espaço, lhe dão características geométricas. Espaço e lugar são interdependentes. Da estabilidade e segurança do lugar, tem-se consciência da grandeza, liberdade e desafio apresentados pelo espaço. Espaço é o que permite o movimento; o lugar, a pausa.5 O processo de entender o espaço passa pelo reconhecimento de lugares. Um recém-nascido, por exemplo, tem uma percepção muito vaga do espaço, tudo se apresenta diante dele como borrão. Quando começa a identificar alguns lugares e estabelecer relações de distância entre eles é que a criança vai tomando consciência do espaço.6 O sentido de lugar também vai se transformando com o passar do tempo: o lugar da infância tenra é a mãe.7 No colo da mãe, a proteção, o reconhecimento; fora dele, o mundo. Esse mundo, espaço no princípio assustador, vai se tornando mais atraente com o passar do tempo. Crescer é abrir-se a experiência do mundo, explorar o espaço. Por meio desse percurso nele inserir lugares, espaços com significado. A percepção do espaço está em grande parte ligada à presença do outro. Quando se está só, é mais fácil sentir-se oprimido pela amplitude do espaço. Medo do espaço geralmente acompanha o medo da solidão. Por outro lado, encontrar-se em meio a gente demais pode ser claustrofóbico. Cada cultura responde de uma forma à necessidade espacial que o homem tem. No Japão a falta de espaço disponível fez com que o homem se adaptasse a um padrão espacial
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inconcebível para um brasileiro médio. A densidade das ruas de Tóquio, bem como o espaço disponível nas habitações, poderiam ser angustiantes para alguém que nasceu em um país de dimensões continentais.
Thoureau e Debord, dois notórios caminhantes, são exemplo de uma nítida diferença que existe entre a lógica espacial de um norte-americano e a de um europeu. O norte-americano se formou na marcha para o oeste, na conquista do território selvagem, na miscigenação com o índio que já estava ali. O homem norte-americano se formou enquanto indivíduo na paisagem. O homem europeu, por outro lado, há tempos se estabeleceu no espaço, habita as cidades. O homem europeu sente-se bem em meio à multidão.8 Quando opta por estar só, ele retira-se para o lar; quando quer encontrar o outro lança-se às ruas. O oposto se dá do outro lado do Atlântico. Fora do lar, na paisagem, é que o americano pode encontrar a si mesmo, estar só. O pintor americano Edward Hopper ilustrou muito bem esse indivíduo americano, sempre solitário. Na paisagem ou nas cidades, se observa em suas pinturas, essa relação espacial particular. Entende-se, enfim, o desprezo de Thoureau pela cidade e a sua escolha pela paisagem selvagem. Entende-se também a reivindicação de Debord pelo espaço da rua, sua vontade de reocupá-lo coletivamente por meio das derivas situacionistas. Lucy Lippard, a crítica americana conhecida por ter escrito sobre arte conceitual (no já citado livro, Six Years – the dematerialization of art object), escreveu também sobre o lugar na sociedade contemporânea. Em the Lure of the local, ela discute a atração que os lugares exercem, sob a marcada ótica do indivíduo norte-americano. 61
A atração do local expõe em cada homem seus legados políticos e espirituais. É o componente geográfico da necessidade psicológica que se tem de pertencer a algo. É um antídoto à predominante alienação da sociedade hoje. Inerente ao local, apresenta-se o conceito de lugar – um pedaço de terra, cidade ou paisagem urbana que é conhecida e familiar. Muito frequentemente lugar é o nome que se dá ao local que é nosso, que se mistura na nossa memória com histórias e marcas próprias de um chão.9 Essa noção de local, segundo Lippard, torna-se cada vez mais atrativa para muitos que talvez nunca a tenham vivido realmente. Poucos conhecem seu lugar. A sociedade nômade contemporânea não mais estabelece vínculos, não se sente parte de lugar algum. Numa pesquisa feita por ela com 20 estudantes universitários, em que pediu para que citassem o nome de um lugar a que pertencessem, nenhum soube dar uma resposta. As únicas exceções foram duas mulheres navajos, e um homem descendente de uma família que habitava uma fazenda no sul de Illinois por gerações. 10
Hoje se está perdendo o senso de lugar. O mundo todo encontra-se conectado. Facilmente se pode voar a qualquer parte. Por outro lado, deixou-se de se estabelecer vínculos:11 pertence-se a todos e a lugar nenhum ao mesmo tempo. Muito tem se falado sobre essa nossa nova relação com o lugar. Apresento, a seguir, três textos que a discutem. Três visões distintas – de um escritor argentino, de uma artista plástica inglesa, e de um geógrafo inglês – sobre três ilhas – A ilha de Xiros, no mar Egeu, a ilha de Tristão da Cunha no oceano Atlântico, e a ilha de Pitcairn no Pacífico. Em todos eles há alguém que contempla de longe lugares distantes, lugares que ficaram à margem do hiper-conectado mundo de hoje.
No conto a ilha do meio dia, Cortázar apresenta um comissário 62
de bordo, Marini, que passava três vezes por semana, sempre ao meio-dia sobre a pequena ilha grega de Xiros. Sua visão vai se transformando ao longo do conto. A ilha que era antes espaço abstrato, visão irreal, vai aos poucos se tornando um lugar para ele. A cada sobrevôo, a ilha vai tomando feições mais precisas e familiares. A vaga linha divisória entre mar e terra vai adquirindo contornos mais definidos: primeiro casas de pescadores, depois as redes de pesca e por fim até um pescador que observa o avião pode ser visto. O voyer distante do começo do conto olha com um olho solar, olha para baixo como um deus.12 A ilha toma significado para ele, a medida que a revê.13 Xiros finalmente torna-se um lugar para Marini que decide, enfim, abandonar os ares e lá viver para sempre.14 Tacita Dean tem também sua ilha. Passar um ano em Tristão da Cunha, a mais remota ilha do mundo, é o projeto que a artista sabe que nunca se realizará. Ali só se chega de barco, um barco que parte do Cabo da Boa Esperança apenas uma vez por ano. Nesse mesmo barco é que chegam também as correspondências e cargas. A comunicação ali requer outro tempo, um tempo inimaginável nesse mundo bombardeado de informações dos dias de hoje. A fantasia da ilha de Tristão da Cunha é uma fantasia de um mundo que foi deixado para trás, o mundo analógico. Lá ainda era possível perder-se, ou simplesmente desaparecer de vista, o que para Dean nada mais é do que um anacronismo da super-conectividade do tempo contemporâneo.15 Em Local sense of place, Doreen Massey discute esse encolhimento do mundo contemporâneo. As fronteiras se desmancham dia a dia; a trabalho se viaja de um a outro extremo do mundo – do vale do Silício à Coréia, de Singapura a Seattle. O Boeing encurtou as distâncias. É relativa, entretanto, essa conexão. As ilhas que se sobrevôoa continuam tão distantes quanto antes, possivelmente estejam ainda mais distantes agora. Antes os navios passavam por elas; com 63
a queda drástica nas navegações, elas se tornaram um destino quase impossível. Os executivos podem chegar mais rapidamente a seus destinos por meio das viagens aéreas, mas estas ilhas do Pacífico, como Pitcairn, nunca estiveram tão distantes do mundo. 16
O lugar distante pode tornar-se o meu lugar. Ocorre um processo de significação quando se volta para ele: a distância se desfaz com o olhar atento. O comissário de bordo da Ilha do meio-dia vê Xiros transformar-se diante de si a partir do momento que decide observá-la da janela do avião. Da primeira olhada mais atenta à escolha da ilha como seu lugar, foi preciso só um pouco de tempo. Guilherme Wisnik fala sobre esse processo de significação do lugar no ensaio O Tietê e o Brasil profundo. Uma peça de teatro do grupo Vertigem, encenada num barco que navega o rio Tietê, traz aquele terreno vago de volta ao imaginário da cidade. Quando se passa de carro ou de ônibus pelas marginais isso é inimaginável. O rio é um espaço abjeto. É preciso superar a barreira de asco, estar vulnerável às experiências sensoriais que navegar o rio oferecem, para que o Tietê torne-se um lugar.17 *
Como disse Lucy Lippard, o lugar é o locus do desejo. Acredito que debruçar-se sobre um lugar seja também desejá-lo. A linha representa um desejo de contato, sinaliza uma experiência daquele pedaço específico do espaço. A linha gera um lugar. Foi assim em Brasília: do cruzamento dos dois eixos surgiu um lugar. Ali se marcava uma vontade de ocupar aquele pedaço de território. O chão do sertão ganhava significado pelo simples 64
traço no chão, antes mesmo que se começasse a construção do plano piloto. A linha que marca um desejo e constrói um lugar aparece também no trabalho de dois artistas caminhantes: Richard Long e Francis Alÿs. A linha aqui é caminho. O caminho tece lugares. Enquanto caminham estes dois artistas significam aqueles espaços do percurso. A linha marcada no chão, por mais efêmera que venha a ser, tem o papel de reforçar esse processo. A linha está ali para contar que aquele percurso que se imagina com os olhos acabou por tecer lugares. O espaço tornou-se lugar através da prática estética desses artistas caminhantes. Em A Line made by walking, Long caminha repetidamente em linha reta sobre um gramado na periferia de Londres. Suas pegadas sobre a grama perduram tempo suficiente para que o artista fotografe aquela linha, mas já houve ali a significação do lugar. O espaço vazio, escolhido de forma quase aleatória, deixou de ser um gramado qualquer. A linha gera o lugar, e isso se dá no caminhar e no registro fotográfico de Long.
A linha de um percurso é também elemento recorrente no trabalho de Alÿs, um deles é The Green Line (2004). Nele, Alÿs percorre a fronteira entre o estado de Israel e da Palestina carregando nas mãos uma lata cheia de tinta verde. Um pequeno furo na lata faz com que a fronteira política, antes imprecisamente desenhada num mapa, seja agora explicitada através do caminho do artista. As vezes fazer algo político é fazer algo poético, as vezes fazer algo poético é fazer algo político.18 De fato a ação aparentemente sem sentido de Alÿs, que se confunde entre palestinos e judeus neste percurso, é um gesto de enorme potência política que explicita aquela barreira e ao mesmo tempo a desfaz pelo caminhar. Aquela terra de ninguém, disputada ferrenhamente pelos dois povos, 65
espaço indefinido no mapa toma novo significado quando se desenha pela linha verde de Alÿs. A arte significa lugares. A partir dos anos 60 e da ruptura com o espaço moderno, lugares passam a ser um elemento importante em grande parte da produção artística. Desde então muito foi feito, debatido e revisto, mas ainda hoje a arte volta-se para o lugar. Miwon Kwon trata em One place after another, desse novo lugar da arte contemporânea.19 *
O caminho tece lugares. No principio o que existe é espaço simplesmente. A partir do percurso vou estabelecendo relações. Associo histórias e sensações a trechos desse percurso e assim vão surgindo lugares para mim. Comecei andando pela cidade real. Ali os lugares se estabeleciam automaticamente, logo que punha meus pés na rua. Quase sempre, esses lugares passavam a existir por meio de relações humanas que ali se estabeleciam - conhecia ou conversava com alguém, partilhava de uma história perdida. A partir desses diálogos ficava mais fácil guardar aquele trecho de cidade na memória. Pelo contato humano aquele espaço adquiria significado e tornava-se lugar. Quando caminhava pela cidade, a constituição desses lugares era natural, inevitável, eu diria. Há algum tempo, contudo, venho percorrendo um outro tipo de espaço: o espaço virtual. Não encontro mais lugares como antes. Ainda percorro ruas estranhas, mas agora são ruas que aparecem nas fotografias do google street view. Ainda fotografo meus percursos, mas deixei de enquadrar e congelar a cidade real. O instante decisivo já passou, foi capturado por outro, no caso o carro do google. Deixei de mover-me pela realidade; o que vivo agora
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é uma experiência na imagem. Deste modo poderia parecer estranho que se estabelecessem lugares para mim. Se não existe mais a experiência da realidade, não deveria também existir o lugar, mas somente espaço. No máximo o que poderia surgir dessa nova experiência seriam lugares imaginários.
O espaço desse trabalho é, citando a definição do crítico francês Nicolas Bourriaud, o relacional.20 Seu lugar é aquele que se constrói sob a convivência.21 O lugar do dialogo é o que escolhi, mas como chegar a ele pela tela do computador? Como retomar a experiência do encontro com o outro se agora ele é só uma imagem? Poderia me perguntar se de fato existiriam aquelas pessoas de feições borradas nas fotos do google. No nosso tempo de acelerada mobilidade seria bastante possível que elas não se encontrassem mais ali. Acreditar na existência de ao menos alguns deles, contudo, era minha única chance de estabelecer uma comunicação. Imaginando que aquele casario nas fotos fosse o lugar dos meus retratados, que eles ainda morassem ou trabalhassem ali, haveria alguma forma de estabelecer diálogo com eles? Quando encontrei as Cidades Pequenas essa experiência era certa, mas como agora resolver essa questão? Poderia falar com imagens fotografadas pelos olhos do google street view? Da resposta a essa pergunta surgiu o Projeto Correspondência.
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euralille, google e facebook – LUGARES PARA UM TEMPO NOSSO –
“(...) entre Olha para o céu, Frederico! E O coronel e o lobisomem o mundo mudou de roupa e de penteado. Apareceu o impôsto de renda, apareceu Adolf Hitler e o enfarte apareceu.Veio a bomba atômica, veio o transplante, e a lua deixou de ser dos namorados. Sobrevivi a todas essas catástrofes. E agora, não tendo mais o que inventar, inventaram a tal poluição, que é doença própria das máquinas e parafusos. Que mata os verdes da terra e o azul do céu. Esse tempo não foi feito para mim. Um dia não vai mais haver azul, não vai mais haver pássaros e rosas. Vão trocar o sabiá pelo computador. Estou certo que esse monstro, feito de mil astúcias e mil ferrinhos, não leva em consideração o canto do galo nem o brotar das madrugadas. Um mundo assim, primo, não está por conta de Deus. Já está agindo por conta própria.” José Candido de Carvalho, JCC: História Pessoal “Did you Pack your bags yourself Has anyone had access In the event of an evacuation Has anyone ever said to you In the fullness of fading time Pull the mask toward you Ausgang / Sortie / Salida Then place the mask Then place the mask “ Don DeLillo, Valparaiso “Here we are far from the living room and close to science fiction.” Jean Baudrillard, The Ecstasy of Communication
O espaço contemporâneo é marcado por um fenômeno antropológico: o surgimento do não-lugar. Lugar é espaço significado, desejado, vivido, incorporado pela experiência humana. O não-lugar é uma coisa curiosa. Não é espaço neutro, tampouco lugar. No não-lugar a experiência humana se dá de forma muito distinta da que se dá no lugar. Não-lugares são marcados por uma vivência sonolenta, pasteurizada e uniforme. 68
No não-lugar é quase impossível surpreender-se; tudo se repete exaustivamente, da mesma forma, em qualquer parte do mundo. Como definiu o antropólogo francês Marc Augé, recentemente: se um lugar pode se definir como identitário, relacional e histórico, um espaço que não pode se definir nem como identitário, nem como relacional, nem como histórico definirá um não-lugar.1 Euralille, a cidade sem país, é um bom exemplo de não-lugar. Concebida como novo polo para uma Europa unificada, foi estrategicamente situada ao lado da pequena Lille - no meio do caminho entre Paris, Londres e Bruxelas. A escolha de sua localização não se deu por razões históricas ou paisagísticas, mas por mero caráter pontual. O desejo de mobilidade a inventou: Euralille é a cidade da sociedade nômade.2
Por fotografias (do google street view), pude ver os arredores daquele não-lugar: visto de fora, o principal prédio de Euralille, mais parece um shopping center ou aeroporto. As ruas que a circundam são grandes avenidas com pouca gente andando e muitos automóveis. Dos seus painéis de vidro pouco se imagina da vida que possa existir lá dentro. O que há em Euralille? Não sinto vontade alguma de andar por lá e posso imaginar o que encontraria se o fizesse: um concentrado de não-lugares. Certamente foram previstos em seu programa todos esses postos de uma sociedade do consumo: escritórios, cafés com wifi, academia de ginástica, anônimos quartos de hotel, farmácias e lojas de departamento. O que se vive em Euralille, pode ser vivido em qualquer metrópole do mundo. Euralille foi desenhada para atender à necessidade de conexões instantâneas dos homens de negócios, os homens que estão sempre em movimento, aqueles que mandam na
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era da supermodernidade.3 Por isso seu principal edifício acolhe a nova estação do TGV, o trem expresso que conecta o continente. Por questões geográficas Euralille foi situada ali, mas está muito próximo o dia em que ela poderia estar em qualquer lugar: como o barco de Foucault, Euralille é um pedaço flutuante de espaço, um lugar sem lugar, que existe por si mesmo, que está fechado em si mesmo e ao mesmo tempo se dá ao infinito do mar.4 Euralille me faz pensar no filme 2046, de Wong Kar Wai. Esse pseudo conglomerado urbano futurístico me trouxe à mente a imagem da androide misteriosa olhando para lugar nenhum através da janela do trem vazio. Assim como em Euralille, nesse trem não há espaço para o afeto. As relações que se dão ali são frias e automáticas. Nesses não-lugares tudo está programado, inclusive nossos desejos.5 Euralille e o trem de 2046 são lugares da solidão.
Na peça Valparaiso, o escritor americano Don deLillo fala de um homem chamado Michael Majeski, que numa viagem a trabalho toma, por engano, um avião para a cidade errada. Ao invés de ir a Valparaiso em Indiana, a 40 milhas de Chicago, pousa em Valparaiso no Chile. O cômico incidente acaba tomando uma importância sem medidas: sua aventura torna-se um espetáculo. Todos solicitam de Michael relatos detalhados de sua história. A peça inteira se faz dessas entrevistas exaustivamente repetitivas. Aos poucos, no entanto, vai se percebendo que aquela troca absurda talvez não fosse assim tão acidental. O não-lugar do aeroporto e do avião representavam para Michael uma fuga inconsciente da sua rotina, de seu casamento e dele mesmo.6 No avião sentia-se protegido: não era ele quem devia tomar as decisões. Foi uma espécie de conforto para Michael submeterse a autoridade dos todo poderosos sistemas.7 70
Submisso à autoridade dos todo poderosos sistemas, contudo, encontra-se Michael ao longo de toda a peça. Quando não está relatando o momento em que se submeteu às autoridades infra-aéreas; acata, docilmente, a todas as ordens da indiscutível autoridade chamada televisão. Ela é quem coordena tudo que se passa em Valparaiso: Lívia, mulher de Michael, está quase sempre assistindo televisão, muitas vezes assiste às entrevistas do marido. Na verdade, pouco importa o que esteja assistindo, Lívia parece sempre hipnotizada por essa televisão.8 O último ato da peça se passa num programa ao vivo. No trágico desfecho fica ainda mais nítido que tudo o que é feito ali foi milimetricamente calculado. É preciso produzir imagem da mais impactante. Tudo o que importa é conquistar o maior número de espectadores possível. No fim das contas nem se sabe ao certo se essa é uma postura restrita aos entrevistadores, ou se Michael e Lívia também não se portam de forma distinta por estarem dentro da televisão. Como disse Wim Wenders, a tele visão - visão a distânciainstaurou ao mesmo tempo uma proximidade e uma distância. Se por um lado ela pode mostrar sem distorções os acontecimentos ao vivo, por outro nos oferece imagens mais frias e mais distantes da realidade. A imagem sedutora da tela substitui a realidade. A ficcionista da sociedade americana contemporânea, Lydia Davis, fala, em um pequeno conto chamado Televisão, desse processo de invasão dos cotidianos pelo aparelho. “Acreditamos neste mundo. Acreditamos que eles se dirigem a nós. Mamãe, por exemplo está apaixonada pelo âncora. E meu marido fica olhando uma jovem repórter, esperando a câmera se afastar e revelar os seios dela. (...)
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Não é que eu ache este seriado sobre policiais no Havaí muito bom. É só porque parece mais real do que a minha própria vida. (...)” Lydia Davis, Televisão
Valparaiso é uma peça sobre a solidão na supermodernidade. Michael Majeski está sempre só: em casa, no aeroporto,9 ou quando é entrevistado. Os frios entrevistadores também se encontram sós. Lívia, sua mulher, está só: a cena recorrente em que pedala a bicicleta ergonômica e assiste televisão é terrivelmente triste e solitária.10 *
Existem muitos tipos de não lugares. O mais emblemático deles é, para mim, a internet: ela, o grande lugar da solidão. É raro o diálogo pelo mundo virtual. Ali geralmente se fala sozinho, mesmo quando se dirige ao outro. Na página inicial do facebook; o êxtase da comunicação.11 Todo mundo quer falar, todo mundo quer ser ouvido. A cada minuto, dezenas de novos posts. A sensação, no entanto, é de que toda essa informação se perde no espaço cibernético. Alguém lê isso tudo? Grande parte do que há lá é mais um culto à própria imagem, do que uma verdadeira vontade de estabelecer alguma conversa. O facebook é o lugar do narcisismo.12 Augé, em seu livro sobre os não-lugares, diz que essa comunicação que se trava nas redes sem fio é tão estranha que muitas vezes só põe o indivíduo em contato com uma outra imagem de si mesmo.13 Vi um post no facebook sobre um filme chamado Noah, que foi lançado no festival de cinema de Toronto neste ano de 2013. O curta é sobre o adolescente Noah e seu relacionamento em vias de ruptura. A imagem que vemos ao longo dos 17 minutos é a tela de computador do garoto em tempo real. Ali, entre buscas no google, filmes no youporn, chats no facebook,
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e conversas no skype; ele vai realizando o fim do seu namoro. Enquanto fala ao mesmo tempo com o amigo pelo facebook e com a namorada pelo skype, facebook e whatsapp, Noah faz uma infinidade de outras coisas simultaneamente e numa velocidade impressionante.
Ao longo dos 17 minutos de filme, percorre-se o universo cibernético de um adolescente; uma das infinitas possibilidades que a internet oferece. Não me identifico com os lugares virtuais de Noah, mas me vejo sim naquela prática deambulatória e naquelas janelas todas abertas ao mesmo tempo. Não é agradável tomar consciência disso, mas não posso negar que esta prática está assustadoramente incorporada à minha rotina. De link em link, de aba a aba passo por tanta informação, que me esqueço de quase tudo logo depois. São tantas imagens e possibilidades circulando pelo mundo virtual que acabo atônita, pasma e sonâmbula; sem saber o que escolher, o que ler, ou o que fazer. Estar imersa no intoxicante mundo das imagens tem realmente esse efeito narcótico, como tão bem teorizou Neil Leach. Segundo o autor, os males da supermodernidade seriam a anestesia e a acriticidade14 – uma defesa a esse bombardeio de imagens e informações que sofremos a cada instante. Marshall Mcluhan, o visionário teórico da comunicação, falou sobre isso em sua famosa obra, The Global Village. O homem de cultura oral vive no espaço acústico. Assim como as ondas sonoras se percebem simultaneamente, apesar de virem de distintas direções, todas as informações e estímulos que ele recebe na sua experiência de mundo estão integrados. O homem que lê, por outro lado, tem outra relação com o 73
mundo. A escrita o fez mais racional e ao mesmo tempo menos intuitivo. Ele aprendeu a pensar por exclusão, a abstrair figura do fundo. Seu pensamento se dá de forma fragmentada, sequencial. Seu espaço é o visual. O rádio e a televisão reintroduziram o homem ocidental ao espaço acústico. É preciso agora reaprender a mover-se por este espaço; encontrar um novo tipo de equilíbrio. Estamos perdidos entre estas duas realidades: o pensamento ainda se dá quase sempre de forma linear e raramente se sabe lidar com essa nova conexão mutidisciplinar e ininterrupta; desenvolvemos a tal dislexia.15
A televisão já havia nos capturado para a imagem na tela, a sedução da comunicação pelo computador potencializou essa captura.16 O universo da comunicação, do contato, da contigüidade e da interface generalizada nos fascinou: fomos abduzidos para o espaço virtual.17 A vida foi transportada para a tela do computador. Em quase todas as suas instâncias ela é ali contemplada: compra-se pelo computador, trabalha-se pelo computador, comunica-se pelo computador, entretêmse pelo computador, viaja-se pelo computador. Agora até mesmo a experiência de andar pelas ruas se oferece na tela do computador. A realidade liquifez-se,18 o mundo desmaterializou-se. Até a moeda das transações comerciais escusou-se de sua materialidade: o cartão de crédito e débito encarrega-se de pagar todas as contas - do jornal na banca à conta do hotel. O mundo dividiu-se entre aqueles que participam ou não dessa existência liquefeita. Sem um cartão de crédito, você não é ninguém.19 O novo instrumento de poder é extraterritorial. Num mundo desvinculado da matéria, também o espaço perde significado. Aqueles que mandam são os que possuem maior volatilidade, aqueles que têm a propriedade de escorrer pelas frestas. 20 74
O espaço público se reduziu nas cidades, pois a experiência do encontro é cada vez mais tomada pela esfera virtual. Vivemos o declínio do real. De fato o mundo virtual fascina e acaba suprimindo o real, que vai se tornando um grande e inútil corpo.21 Em seu ensaio O êxtase da comunicação, o sociólogo francês Jean Baudrillard fala sobre essas novas possibilidades de comunicação que acabam por modificar o espaço do convívio. Na realidade, segundo Baudrillard, nesse tempo do êxtase da comunicação, deixa de existir o espaço público e da mesma forma, o espaço privado. Tudo se confunde e se mistura e a ideia de privacidade se desfaz. Como na peça Valparaiso, o que se tem então é obscenidade. Tudo está sendo gravado, monitorado e exposto por toda parte. Não existe mais um sentido de intimidade, mas tudo é do domínio de todos. O cotidiano foi satelitizado.22 *
Diante desse cenário apocalíptico, retomar a vivência da realidade se apresentou como minha única alternativa. Não me satisfazia habitar um mundo imaterial, me faltava o tátil. Queria voltar a sentir o mundo com as mãos. Era preciso resgatar a experiência do espaço público e retomar o convívio plural.
Se fui fisgada involuntariamente, era hora de escapar desse mundo virtual, ou ao menos confiná-lo ao menor espaço possível. Se a internet se consolidou como parte do meu dia-a-dia; por meio do Projeto Correspondência tentei trazer significado e identidade a esse não-lugar.
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nova cidade
– À DERIVA PELO GOOGLE STREET VIEW –
“My work explores the paradoxes of modernity. In 2008, a year after Google sent out an army of hybrid vehicles bearing nine cameras on a single pole to photograph the world, I began an exploration of this new virtual world, and was fascinated by how powerfully Street View photographs can represent our contemporary experience, the conflict they can express between an indifferent robotic camera and man’s search for connectedness and significance. The photos underscore the tension between an uncaring camera and man’s need to interpret his experience. While celebrating and critiquing modern experience, the technological tools themselves show how they can estrange us from ourselves.” Jon Rafman
Estar na internet é estar à deriva. Ali o percurso nunca é controlado, é impossível prever aonde chegarei um pouco depois de abrir o safari no meu computador. O filme Noah nada mais é que o registro de uma deriva do garoto pelo (seu) mundo virtual. As vezes, assim como Noah, me sinto dominada pela tela do computador, perdida num turbilhão de imagens e informações a que me exponho com o simples gesto de apertar o botão on. Estar à deriva pelas ruas do google street view é metalinguagem. Quando ando pelo google street view me encontro duas vezes à deriva: à deriva no espaço virtual e à deriva nas ruas das cidades registradas pelas câmeras do google Recentemente, o espaço do google street view foi incorporado por diversos fotógrafos que costumavam percorrer ruas das cidades reais. Talvez o primeiro momento em que isso tenha tomado visibilidade tenha sido em 2011, quando Michael Wolf foi premiado pela World Press Photo Awrads por sua série – Moments from Google‘s Street View. Em seu trabalho, Wolf 76
seleciona imagens produzidas pelas câmeras do Google, que de forma indiferente e aleatória captaram o que ele chama de unfortunate events (eventos infelizes), acidentes e fatalidades que os carros do google presenciam sem notar. A resposta à premiação de Wolf foi de hostilidade imediata. Questionavam se o seu trabalho poderia ser sequer chamado de fotografia. O fato é que as ruas do street view foram incorporadas aos nossos cotidianos e ao nosso universo estético também. Ao lado de Wolf, muitos outros fotógrafos trocaram as ruas reais pela possibilidade de percorrer todo o globo a partir da tela do computador. Jon Rafman é outro fotógrafo que tem trabalhado sobre as imagens do street view. Coincidência ou não, Rafman possui algumas imagens idênticas às de Wolf. A questão desses fotógrafos não é mais a autoria; como na arte conceitual eles se apropriam, selecionam e reeditam o que encontram pronto nas telas de seus computadores. Esse processo poderia ser colocado ao lado do que se dá no filme Blow-Up, em que a ampliação e a edição acabam por revelar o que não havia sido percebido na realidade. Falo de uma refotografia. Este fotografar fotografias me lembrou dos Monumentos de Passaic. Trabalhar com imagens do google é retomar uma espécie de readymades de um tempo virtual.
A série The nine eyes of google street view, de Rafman foi exposta no meio do ano passado, na galeria Saatchi, em Londres. Nelas vê-se imagens randômicas, belas e por vezes bizarras de ruas de todo o mundo. Como diz Rafman, nesse refotografar acontece uma contraposição entre dois olhares distintos: o olho técnico e indiferente do google, que registra o mundo como uma grande máquina fotocopiadora,1 e o olho humano que tem necessidade de estabelecer relações, significar espaços e criar narrativas. 77
Neste projeto, também substituí a experiência do espaço real das cidades por uma cidade virtual. Estive em cidades pequenas da Ukrania, da África do Sul, da Romênia, da Tailândia, da Noruega, do interior do Japão, da Austrália, da Irlanda, da Finlândia, da Suécia, do México, da Republica Checa, da França, do Alaska, do Canadá, da Estônia, da Espanha, do Chile e do Brasil. Meus destinos eram escolhidos de forma aleatória e me era quase indiferente o país que percorresse.
Essa instantaneidade, de que falou o sociólogo polonês Zygmunt Bauman, em Modernidade Líquida, realmente acabou por sugar parte da magia de visitar esses lugares todos. Se existe algo de fascinante na possibilidade de alcançar essas geografias, também acontece que ao se tornarem tão facilmente acessíveis elas acabam por perder seu valor especial.2 A experiência de percorrer essas ruas virtuais foi de fato muitas vezes enfadonha. *
Decidi, a seguir, repetir essa experiência da caminhada virtual em São Petersburgo, a cidade por onde flanei três anos atrás. Através da narrativa deste percurso revisitei algumas ideias que frequentemente me ocorreram durante essas derivas. Às minhas experiências anteriores de São Petersburgo, sobreponho uma terceira camada de experiência. Somo agora à cidade vivida na literatura e depois na realidade, uma nova cidade, percorrida desta vez por meio dos impulsos eletrônicos. Começo meu caminho virtual por onde o comecei três anos atrás: rua Bolshaya Morskaya. Venho do canal Moyka, onde 78
começa a rua. Refaço parte do percurso de uma noite em que voltei do teatro ao hotel. Faz sol e há pouca gente na rua. Imagino que o google móvel tenha passado por ali num final de semana. A data que vejo na foto é setembro de 2012, quase outono por lá. Pelo agasalho do senhor que caminha junto ao canal diria que faz frio. Ando um pouco e avisto um tanto de gente na esquina. Não sei se estão todos saindo do mesmo lugar, mas parecem confraternizar entre si. Quando aperto o teclado e ando dois passos para frente, todos desaparecem. Teria o google apagado todos que estavam ali? Volto os dois passos para trás e percebo que um ano decorreu entre as imagens. O dia continua ensolarado, todavia. Pela luz na casa rosada não se diz que essas imagens não são todas do mesmo momento. Uma mulher ruiva olha para a foto e parece sorrir, embora não se veja muito bem suas feições, que foram borradas.
Em uma ânsia de comunicação, interrompo a deriva para checar meus emails. Caixa vazia. Como diz a personagem do filme Medianeras, nada mais triste que não receber emails nos dias de hoje. Olho minhas mensagens, respondo alguns emails pendentes, converso, pelo chat do gmail com um grupo de amigos sobre um projeto. Levanto, acendo luz, preparo um café.
Volto para o google street view. De volta para o começo da minha rua, um prédio muito antigo de esquina me chama a atenção: acho engraçado ver pela tela do meu macbook um prédio que deve ter vivido o czarismo, a revolução socialista e a perestroika. Atrai o meu olhar, sua grande porta de entrada com um símbolo do partido comunista sobre ela. Em frente à porta, há um garoto com jeito de punk que olha para a foto. 79
Formam um conjunto engraçado, o prédio e o garoto.
Passaram-se duas horas e se estivesse realmente andando já estaria agora num lugar distante, mas a tela do computador me distrai, sempre me lembro de outras tantas coisas a fazer. Um pouco a frente, vejo um grupo de meninos. Não havia tantos deles pela rua Bolshaya Morskaya quando estive ali. Era julho, os estudantes, de férias, provavelmente viajavam, talvez a um lugar distante como o Brasil. Não reconheço meu hotel, até ver do outro lado da rua a arcada por onde se entra para um café simpático onde jantei algumas vezes. Depois disso é que identifico a porta enigmática a que chegamos eu e minha mãe naquele julho de 2010. À medida que avanço em direção à Avenida Niévsky, a arquitetura vai perdendo altura e ganhando ornamentos. Detenho-me por um instante num casarão suntuoso, com cavalos empinando em suas colunas estruturais. Imagino que seja algum prédio público. Fico pensando que ali talvez trabalhasse a alta burocracia do final do século XIX, os homens importantes que aparecem nas histórias de Dostoiévski. Chego ao grande largo da Catedral de Santo Isaac. Através das copas das árvores avisto o domo dourado lá atrás. Nas esquinas, grandes hotéis; virando para o outro lado, o monumento do cavaleiro de bronze e os imponentes prédios do Senado e do Sínodo. Esse lugar é grandioso. O que me chama a atenção, no entanto, é uma poça d’água próxima ao monumento; ela confere um quê de realidade a essa imagem. Através da poça d’água me transporto até ali. O céu nublou-se e as pessoas na rua se agasalharam, estamos agora em agosto de 2012. Passo em frente a um restaurante com mesinhas na calçada e bandeiras russas e fico imaginando um cardápio em inglês com o borsch ao lado
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do macarrão à bolonhesa. Uma moça loira na propaganda da L’oréal me lembra a Lara do filme Doutor Givago. Ela olha para o alto com olhar sonhador. Talvez essa foto tenha sido tirada em Paris ou em Nova York, possivelmente estampa páginas de revistas do mundo todo. Mas na frente daquele casarão verde e branco por um minuto pensei numa garota russa. Um correspondente me avisa que agora a Islândia também está no google street view. Interrompo minha caminhada russa para cair na estrada de uma planície deserta perto de Reykjavík. Esse tempo esquizofrênico do computador só pode fazer mal: fui de São Petersburgo a uma estrada perdida na Islândia em segundos (entre os dois destinos me comuniquei pelo facebook com alguém na Noruega). Não sei dizer se a mudança em questão é espacial ou temporal, mas é inegável que essa nova relação com o mundo é um tanto estranha. De volta a Rússia vejo agora um Mc Donald’s e um ônibus em sua frente: Arctur interbus. Cheguei ao centro turístico. Andei um mês para frente: é setembro e as férias se encerraram por lá. Nesse pedaço da cidade, entretanto, não se escapa daquela multidão de turistas que me mandou para longe dali. Reconheço a loja de suvenires que passei na frente algumas vezes no caminho de volta ao hotel. Na foto do google quase pude ver a coleção de matrioskas que por instantes pensei em levar para casa quando estive lá.
Estou enfim na esquina da avenida Niévski, ou Niévski Prospekt, a avenida mais importante da Rússia, tema e título de uma história de Gogol.3 Como em Gogol, a avenida Niévski me causa um sentimento dúbio. Por um lado me atrai aquele espaço cheio de história e gente e por outro ela me parece um cenário confeccionado para turistas. Os KFCs ou Mc’ Donald’s com letreiros em cirílico parecem ter o único intuito de 81
divertir estrangeiros em busca de um pouco (mas não muito) exotismo. Talvez essa sensação diminua quando se caminha para o leste em direção à estação Moscou. Mas, de onde estou, bastam alguns passos para chegar ao grande mar de gente que enfrenta filas infindas para entrar no museu Hermitage. A praça é bonita vista da foto do google. A multidão está ali, mas a praça é tão grande que da foto mal se percebe todo seu volume. Tento atravessar a praça e chegar à entrada do museu. Lembro-me, então, de que as fotos foram tiradas da avenida: a minha perspectiva limita-se à de quem olha de um carro. Decido atravessar a ponte. Na Rússia real, foi quando cruzei o rio Neva que minha deriva se tornou mais interessante. O palácio de inverno está à minha direita e a ponte está congestionada de automóveis. Fico imaginando os todopoderosos nove olhos do google que tudo vêem, presos num congestionamento da hora do rush e essa cena me parece divertida. Alguns cliques de mouse e me encontro no meio da ponte. Três meninas a atravessam alegremente e tudo me diz que são turistas. Do outro lado, mais outras duas turistas; a pose para a foto não engana. Canso-me enfim de apontá-los; há uma infinidade deles aqui. Viro-me para trás de modo a espiar o palácio Hermitage do rio e vejo a sombra do carro do google projetada no chão. A sombra estranha parece um rastro de um monstro; um monstro antropofágico e sem face que engole toda a cidade real e nos cospe imagens de volta.
O rio ficou para trás, parto rumo a oeste, talvez chegue ao mar novamente. Um casarão bege me convida a explorar essa nova ilha. Em seu térreo funciona um restaurante com um ar 82
decadente. Tento entender o que está escrito na placa, logo em sua entrada, mas já me esqueci de todo o alfabeto cirílico. Uma mulher aguarda na porta com uma grande sacola branca, que revela alguma coisa retangular projetada em sua superfície. Talvez seja uma caixa embalando um presente ou alguns livros que ela comprou antes do almoço. Daqui da minha cadeira o que me cabe é imaginar pequenas histórias para essas imagens. As construções ocupam, agora, toda a quadra e tem entradas imponentes. Diria que percorro um campus universitário. A data que se lê é de agosto de 2012, seria férias para eles quando o carro do google passou. A impressão do vazio seria, assim, explicada. Afasto o zoom, saio do google street view e tento ler no mapa; mas não descubro nada, pois a legenda do prédio está escrita em russo.
Chego agora a construções mais sofridas que as da margem do rio - à decadência russa que me encanta e oprime ao mesmo tempo. Sinto enorme vontade de entrar nesse prédio descascado e conversar com alguém. Não será possível, por ora, pois me encontro tão muda quanto a moça da propaganda de relógio. Eu fotografo a foto da foto e relembro do texto de Lorenzo Mammi para a exposição Lugar Nenhum: de fato o que se dá aqui é uma vivência na imagem. Vivência de um mundo sem fundo, queda livre de uma imagem a outra.4 As vezes quase me engano e até parece que estou andando na cidade real, quando me imagino no lugar das pessoas que aparecem nas fotografias. Assim como antes havia visitado Petersburgo pelos pés de Ordinóv, agora olhar os pedestres me conecta àqueles lugares. Gosto do bairro onde estou, suas ruas me parecem democráticas – há espaço para o casal jovem e seu pequeno bebê, para a estudante, para os amigos 83
que entram no bar e para o senhor de cabeça branca que olha tranquilo do café. Sigo em frente e passo bem perto de uma senhora que caminha no meio da rua.
A rua termina no rio, viro-me para a esquerda já sem saber muito bem a direção que tomei. Decido não olhar mais no mapa para que essa experiência se aproxime das minhas derivas pela cidade real. A avenida que beira o rio está toda em obras. Tapumes obstruem a sua visão. Quando o céu cinzento é substituído por um panorama ensolarado, quase fico feliz. Também o homem engravatado do prédio da esquina parece alegrar-se. Não há mais tapumes: avisto uma série de barcos na outra margem. Seria um porto ali, do outro lado do rio? Decido cruzar a ponte e checar o que há por lá. Construções mais novas nessa avenida larga, devem ser da época da revolução. Interrompo minha deriva, mas antes disso envio o link do endereço de onde estou por email, vou retomá-la no mesmo ponto amanhã. De volta ao computador, digito o endereço na barra do google maps e me encontro no mesmo lugar. As mesmas nuvens ocupam o céu, os mesmos carros passam na rua, os galhos da árvore ainda balançam na mesma direção; é claro, eu percorro uma fotografia. Diferente da cidade real, posso voltar a essas ruas quando quiser, elas serão sempre exatamente iguais (pelo menos até o google atualizá-las). A experiência do instante que escapa, da completa soberania do tempo sobre minha vontade desapareceu agora. Eu controlo o tempo, ele não existe mais. No caminho imaginário eu invento minhas histórias, visito essas ruas quantas vezes quiser: a experiência se repetirá infinitamente. A deriva, que durou não mais que oito horas na cidade real, já completou três dias e, no entanto, se eu fizesse um caminho
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de volta quando estive lá tudo seria novo. Aqui tudo é sempre assustadoramente igual. Posso olhar o que meus amigos comentam no facebook, posso checar minha caixa de emails, posso fazer perguntas ao google, posso, até mesmo, desligar o computador e voltar um ano mais tarde; o caminhão com a estranha foto da lagosta ainda estará no mesmo lugar.
Viro na primeira rua à esquerda, há um grande canteiro ali. Ando um pouco mais e avisto um buraco no chão. Parece que o buraco me suga: a cidade virtual me entedia. Sem a sensação de percorrer o real, sem a chance da experiência física do espaço, começo a perder interesse por essa cidade. Sim, eu caí no buraco. Já estou no meu quarto dia de caminhada e esse ato me parece cada vez mais sem sentido. Até frases soltas de pessoas que conheço pouco no facebook me agradam mais: “Entradas esgotadas para Chelsea Wolfe. Que bien! Durmiendome en los laureles de Julio Cesar.” Quero terminar esta deriva, mas a realidade lá fora me é infinitamente mais atraente. Andarei até o final dessa rua e fim, é preciso concluir. Começam a surgir terrenos vazios que anunciam algo diferente para dentro daquelas quadras. Um parque atrás desse prédio, talvez. Por um instante, as sensações de incerteza e estranhamento me reanimam. Um prédio alto destoa do resto das construções da rua: estou diante de uma grande colagem pós-moderna. Lembro-me das arquiteturas curiosas que havia encontrado no final de minha deriva pela São Petersburgo real, mas aqui ele aparece como um elemento perdido entre uma arquitetura mais sóbria e mais antiga. De qualquer forma, a escala dessa rua já é outra: mais condizente com a vastidão do território russo e mais distante da escala humana das cidades europeias. As pessoas que aparecem nas imagens estão pequenas e não se lê mais 85
suas feições. Chego a uma rotatória e decido seguir em frente, sempre em frente, até o fim dessa rua. Decreto o final da rua como o destino derradeiro desta deriva.
Depois da rotatória chego a uma ruazinha estreita com um grande calçadão ao lado. Aqui a cidade é mais verde, se contrapõe à aridez de todo o percurso. Passo muitas pessoas pelo caminho, isso me faz pensar numa cidade saudável, ocupada, onde se exerce a arte da civilidade. Aproximo-me (ao menos visualmente), da experiência das Cidades Pequenas. Estou numa simpática zona residencial. Mais alguns minutos andando por essa rua e dou numa grande avenida. De novo, a vastidão russa. Uma vastidão diferente, dessa vez. A vastidão ocupada. Os grandes edifícios residenciais, destinam seus térreos ao comércio. Há muitos russos nas ruas, aqueles que eu quis há tempos encontrar. Não há beleza ou grande estranhamento neste lugar a que cheguei. Pode-se dizer que estou num lugar ordinário, mas não por isso desinteressante. Aqui me vejo numa Petersburgo menos europeia e mais moscovita, com seu comércio local e seus grandes edifícios laminares da revolução. Gosto do contraste entre a sisudez dos edifícios e o colorido do comércio e da gente que ocupa a rua. Finalmente consigo ler uma placa: ОПТИКА, ótica! Adeus ao mundo das imagens. Aqui se encerra meu caminho.
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projeto correspondência
– DO DIA EM QUE RESOLVI FALAR COM ESTRANHOS –
“Não fale com estranhos” – outrora advertência de pais zelosos a seus pobres filhos – tornou-se o preceito estratégico da normalidade adulta. Esse preceito reafirma como regra de prudência a realidade de uma vida em que os estranhos são pessoas com quem nos recusamos a falar.” Zygmunt Baumann, Modernidade Líquida
Não sei ao certo dizer o momento que me veio essa ideia, mas o que era absurdo para muita gente, me parecia razoável desde o início. Mandar cartas às pessoas que via no google street view era minha única chance de falar com elas. Da forma que fosse, eu precisava travar uma comunicação com esses estranhos da tela do computador; estranhos que por sorte talvez existissem no mundo real.
Encontrei nesse processo, uma chance de escapar do mundo virtual, passar pela porta estreita de volta à realidade. Ali estaria de novo exposta às frustrações, aos erros e aos limites. Depois de um tempo vivendo onde tudo era possível e ilusório, isto seria como uma lufada de ar fresco no rosto. Como disse Arthur Schopenhauer, a realidade é a teimosa indiferença do mundo em relação à minha intenção, a relutância do mundo em se submeter à minha vontade, que resulta na percepção do mundo como “real”, constrangedor, limitante e desobediente.� Queria estar, outra vez, neste mundo desobediente. Por muitas horas andei pelas ruas do google street view, procurando pessoas com um endereço. Não bastava que fossem pessoas com quem eu quisesse falar; era preciso que houvesse alguma chance de que aquelas pessoas recebessem as cartas.
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Encontrei belas imagens sem endereço: alguém acenando da janela, conversando da porta de casa, ou varrendo o quintal, cenas perdidas das Cidades Pequenas. Tentava a todo custo descobrir os números daqueles lugares, mas ora eles haviam sido borrados pelo google (como as placas de carros e os rostos das pessoas), ora simplesmente não apareciam daquele ângulo de onde foram fotografadas. (flagrei-me repetindo essa busca na cidade real. Casinhas da minha vizinhança eram atentamente inspecionadas. Às vezes distraída, me alegrava ao conseguir ler os números). Tive algumas surpresas: o número borrado da primeira imagem, por vezes podia ser lido quando avançava um pouco para frente. Numa perspectiva oblíqua era possível, com esforço, decifrá-lo.
Em alguns momentos dessa busca me perguntei se enlouqueci. Será que eu queria mesmo escapar do mundo virtual, ou teria, ao contrário, sido capturada para sempre? Quando organizava minha lista de endereços e montava todas as imagens para impressão, aquilo começava a fazer sentido novamente. Imprimindo as fotografias, carimbando os envelopes e escrevendo os endereços de cada um, eu cruzava uma ponte. Estava adentrando o mundo da matéria. No correio, me vinha a certeza de que aquilo não era devaneio. Os envelopes todos passando pela máquina seladora, sendo encaminhados aos entregadores, me faziam crer que ao menos aquilo era real. Não era mais uma fantasia minha; os envelopes do projeto já não mais me pertenciam. Encontravam-se agora em meio a pacotes, cartas comerciais e algumas cartas pessoais. Gostava de imaginar um segundo momento desses envelopes 111
– eram como mensagens na garrafa. Eles estavam entregues ao acaso, foram lançados ao mundo. Pouco importava se eles atravessavam o globo ou simplesmente o bairro: agora eles pertenciam à realidade. Eram, então, manuseados, dobrados, carimbados e, com muita sorte, entregues aos correspondentes. De qualquer forma, eram agora matéria vivida, significada.
Muitos desses envelopes voltaram para a caixa postal do projeto. Alguns traziam carimbos interessantes com a informação: domicílio abandonado; mudou-se; ou não existe o correspondente, ass. Fulana de Tal (moradora). Na maior parte deles, no entanto, estava marcado: não existe o endereço. O todo poderoso google tinha falhas; mesmo tendo lido o número das casas nas imagens e checado o nome da rua no mapa, havia erros nos CEPs ou nos nomes de distritos. No começo ficava frustrada quando recebia esses envelopes de volta, entendia-os como um erro e não considerava isso parte do projeto. Ora, eu só estava exposta ao erro porque voltava à realidade. (levou um tempo para perceber) Realizei, por fim, as não respostas como algo significativo. Elas não deixavam de ser uma espécie de resposta. Além do mais, mesmo sem que se estabelecesse comunicação com um correspondente, já havia ali, por meio daqueles objetos viajantes, uma significação do espaço. Aqueles envelopes que voltavam para mim estiveram em lugares distantes, passaram pelas mãos de carteiros e foram transformados pela experiência do caminho. A maior parte dos envelopes, contudo, nunca voltou. Não se pode saber o que houve com eles. Perderam-se no caminho, foram jogados no lixo sem sequer serem abertos, ou descartados depois de abertos por seus destinatários?
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Será que assustei alguém com sua própria imagem enviada na carta com remetente desconhecido? Em conversas sobre o projeto ouvi, muita vezes, que receber uma dessas cartas seria uma invasão de privacidade, uma experiência estranha e assustadora. De fato eu tinha a intenção de inserir objetos estranhos no cotidiano daquelas pessoas, provocá-las até; jamais assustá-las. Eu só queria falar com estranhos.
Felizmente nem todos se assustaram. Tive algumas respostas. Pedi muito a meus correspondentes: em primeiro lugar era preciso que não se assustassem com aquela estranha carta, depois, era preciso que se dessem ao trabalho de escrever alguma coisa e, por fim, era preciso que eles fossem até os correios (hoje em dia, quase ninguém vai aos correios). Tal dedicação era comovente. Aquelas feições borradas da tela do meu computador foram, assim, se definindo. Era saboroso descobrir que aquelas pessoas e aqueles lugares existiam. Pela partilha de suas histórias, por meio de seus relatos, aqueles não lugares das imagens virtuais ganhavam novo significado – tornavam-se lugar.
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BERTRAND
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notas primeiros passos - ANDAR PELA CIDADE -
1 A marcha do Sal, foi uma peregrinação de protesto contra a Lei Britânica do Sal, liderada por Mahatma Gandhi, em 1930. Acompanhado de um grande grupo de indianos, o líder partiu de Sabarmati Ashram até chegar a Dandi, no litoral. Lá colheram um pouco de sal para si, desobedecendo pacificamente uma das muitas opressoras ordens britânicas, que proibia a extração de sal por indianos. A marcha sobre Washington, manifestação politica que tomou grandes proporções; foi liderada por Martin Luther King e aglomerou milhares de pessoas vindas de toda a parte do país. Milhares de homens caminharam quilômetros até chegar à capital e lá reuniram-se no dia 28 de agosto de 1963. Com profunda ordem e civismo, clamavam pelo fim da opressão à população negra; e em muito graças a repercussão do grandioso ato, conquistariam entre outros direitos civis, o de voto em 64.
2 “O artista-caminhante tem a especificidade de fazer dos meios os seus fins, (...). Assim diferencia-se do pedestre em seu percurso para o trabalho. A diferença é que para o artista, ao contrário, o caminho torna-se imensamente mais importante do que os pontos de partida e chegada. Para o artista-caminhante o caminho é um lugar.” FALLEIROS - São Paulo, FAUUSP, 2007 3 “Escolhi fazer a arte caminhando, utilizando linhas e círculos, ou pedras e dias.” LONG 246
4 “The village is the place to which the roads tend, a sort of expansion of the highway, as a lake of a river. It is the body of which roads are the arms and legs – a trivial or quadrivial place, the thoroughfare and ordinary of travelers. (…) Hence, too, the Latin word villis and our vile, also villain. This suggests what kind of degeneracy villagers are liable to.” THOUREAU, 1994 5 “to walk in a slow and relaxed way”, ou em português, caminhar de modo lento e relaxado. definição de Cambridge Dictionary. 6 THOUREAU, 1994 (tradução minha)
7 “two or three hours’ walking will carry me to as strange a country as i expect ever to see. A single farmhouse which i had not seen before is sometimes as good as the dominions of the King of Dahomey” THOUREAU, 1994 8 a rua é o espaço dos encontros, no conto The walk, de Robert Walser. “morning, I do not know any more for sure what time it was, as the desire to take a walk came over me, I put my hat on my head, left my writing room, or room of phantoms, and ran down the stairs to hurry out into the street. I might add that on the stairs I encountered a woman who looked like a Spaniard, a Peruvian, or a Creole. She presented to the eye a certain pallid, faded majesty. But I must strictly forbid myself a delay or even two seconds with this Brazilian lady, or whatever she might be; for I may waste neither space nor time. As far as I can remember as I write this down, I found myself, as I walked into the open, bright, and cheerful street, in a romantically adventurous state of mind”. WALSER, the Walk (in: Selected Stories, 1982) 247
9 “while industrial means of transport threaten to make our limbs and our senses obsolte – confining daily life to an oscilation between Jobs, media, indulgence and shopping – walking persists in defining human life as a matter of territorial and political activity” MEDINA (in: Francis Alÿs, p. 77) 10 “se a cidade é uma linguagem dos caminhantes, então uma cidade pós - pedestres não só tornou-se silenciosa, mas corre o risco de tornar-se uma linguagem morta”. SOLNIT, 2000 11 BAUMAN, 2001 12 Francis Alÿs, o artista que anda pelas cidades, explora constantemente em sua obra esse sentido político que o espaço das ruas possui. Em um de seus primeiros trabalhos, The Sleepers (1999– 2006), o artista fotografa pessoas e cães que dormem nas ruas da cidade do México, através de um enquadramento que olha do plano dos que dormem: o chão. Tal escolha reflete e redunda algo que naturalmente acontece pelo simples fato de se estar a pé, nas ruas: o contato com o mundo do outro. retomarei, ao longo do texto, a obra deste artista que foi tão importante em minha formação.
13 BENJAMIN (in: rua de mão única e uma infância berlinense) 14 “ andava agora pelas ruas como um alienado, como um eremita que de repente saiu de seu deserto mudo para uma cidade ruidosa e tumultuosa. Tudo lhe parecia novo e estranho. (...) sentia cada vez mais prazer em vaguear pelas ruas. Olhava para tudo embasbacado, como um flaneur. Mas mesmo agora, fiel a esse seu jeito de ser, lia num cartaz que se descortinava vivamente diante de seus olhos como nas
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entrelinhas de um livro. Tudo o surpreendia; não deixava escapar uma só impressão e olhava com um ar pensativo para os rostos dos transeuntes, espreitava a fisionomia de todos os que o rodeavam, punha-se a escutar afetuosamente a conversa popular, como se tudo viesse a confirmar suas próprias conclusões, nascidas na calada de suas noites solitárias. (...) aqui tudo andava mais rápido; seu pulso batia rapidamente e com mais força, sua mente, oprimida pela solidão, aguçada e afinada aguçada e afinada apenas pela tensão de uma atividade exaltada, trabalhava agora com rapidez, tranqüilidade e audácia.” DOSTOIÉVSKI, 2006 15 Alain de Botton, fala sobre experiências similares em um livro seu, a arte de viajar. Também ele viajou a lugares por inspiração de obras de arte. Numa destas viagens, visita a Arles, na Provença; motivado pelas pinturas de girassóis e ciprestes, que Van Gogh havia criado lá. Mas não é somente Van Gogh que o inspira na decisão de seus destinos turísticos, também o cinema e a fotografia o levaram a lugares até mais improváveis: “a Provença não foi o único lugar que comecei a apreciar e quis explorar por causa da maneira como foi retratado nas obras de arte. Certa vez visitei zonas industriais da Alemanha depois de ter visto o filme Alice nas cidades de Wim Wenders. As fotografias de Andreas Gursky despertaram em mim o gosto pela parte inferior das vias expressas. O documentário Robinson in space, de Patrik Keiller, me levou a tirar ferias nas proximidades de fabricas, shoppings e centros de negócios no sul da Inglaterra” BOTTON, 2012 16 Em português, Noites Brancas, novela escrita por Dostoiévski em 1848. 17 Personagens das seguintes obras de Dostoiévski – Crime e Castigo (1866), A Senhoria (1846) e O Idiota (1869), respectivamente.
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18 Este livro, do escritor Ítalo Calvino, foi muito importante para a compreensão do que eu estava buscando nas cidades. Talvez juntamente com a obra de Alÿs, as cidades invisíveis, tenham sido um dos pilares na lenta definição do tema deste trabalho.
19 Das inúmeras cidades descritas neste livro, três delas dizem um pouco sobre a minha experiência em São Petersburgo: Anastácia, Leônia e Raíssa. São todas elas variações de cidades antônimas convivendo no mesmo espaço, dependendo do ponto de vista do qual olhamos. Enquanto turista não me encantei por São Petersburgo; apesar de tratar-se de uma bela cidade, não havia ali quase nada do que buscava. Foi a partir do momento que me pus à deriva que a cidade mostrou-me sua face mais interessante, assim como Raissa, onde o belo e o feio, o alegre e o triste convivem lado a lado, bastando que se cruze uma ponte para que todo o cenário se reverta: “ A vida em Raissa não é feliz Pelas ruas, as pessoas caminham retorcendo as mãos, imprecam às crianças que choram, encostam-se nos parapeitos do rio com a cabeça apoiada nas mãos, acordam de manhã com um pesadelo e logo começa outro. Nas mesas em que em todos os momentos alguém esmaga os dedos com o martelo ou fura-se com a agulha, ou nas colunas de números negativos dos registros dos comerciantes ou dos banqueiros, ou diante da fila de copos vazios sobre o balcão dos botequins, ainda bem que as cabeças abaixadas poupam olhares tortos. Dentro das casas é pior, e não é necessário entrar para sabê-lo: no verão, as janelas ribombam de brigas e pratos quebrados. Todavia, em Raíssa, sempre há uma criança que da janela sorri para um cão que pulou num alpendre para comer um pedaço de polenta que caiu das mãos de um pedreiro que do alto do andaime exclamou: “minha jóia, tem um pouco para mim?” para uma jovem hospedeira que ergue um prato de sopa sob a pérgula, contente de servi-lo ao vendedor de guarda-chuvas que comemora um bom negocio, uma sombrinha de renda comprada por uma grande dama para pavonear-se durante as corridas, apaixonada por um oficial
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que lhe sorriu ao saltar o ultimo obstáculo, que estava feliz mas mais feliz ainda estava seu cavalo, que voava sobre os obstáculos vendo voar nos céus uma perdiz, pássaro feliz liberado da gaiola por um pintor feliz de tê-lo pintado pena por pena, salpicado de vermelho e amarelo naquela miniatura daquela página de livro em que o filósofo diz: “Em Raissa, cidade triste, também corre um fio invisível, que, por um instante, liga um ser vivo ao outro e se desfaz, depois volta a se estender entre pontos em movimento desenhando rapidamente novas figuras de modo que a cada segundo a cidade infeliz contem uma cidade feliz que nem mesmo sabe que existe.” CALVINO, 1990 20 Trata-se do primeiro capítulo do livro, chamado da expectativa, nele Botton fala sobre o romance às avessas, de J. K. Huysmans, publicado em 1884. Selecionei aqui um trecho deste texto que vai de encontro à minha sensação ali, naquela São Petersburgo invadida pelo turismo: “Qual é a necessidade de se locomover, quando uma pessoa pode viajar tão maravilhosamente sentada numa cadeira? Já não estava em Londres, com seus cheiros, seu clima, seus cidadão, sua comida e até seus talheres dispostos ao redor dele? o que poderia encontrar lá, senão novas decepções?” ainda ali sentado à mesa ele refletiu: “ Eu devia estar sofrendo de alguma aberração mental ao rejeitar as visões de minha obediente imaginação e pensar, como qualquer velho tolo, que seria necessário, interessante e útil viajar ao exterior” BOTTON, 2012 21 No poema a uma passante, se nota esta passividade de Baudelaire diante do mundo: A mulher que poderia ser objeto de seu amor só pode existir enquanto alguém que por ele passa por entre a multidão: “A rua em torno era um frenético alarido. Toda de luto, alta e sutil, dor majestosa, Uma mulher passou, com sua mão suntuosa
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Erguendo e sacudindo a barra do vestido.
Pernas de estátua, era-lhe a imagem nobre e fina. Qual bizarro basbaque, afoito eu lhe bebia No olhar, céu lívido onde aflora a ventania, A doçura que envolve e o prazer que assassina. Que luz... e a noite após! – efêmera beldade Cujos olhos me fazem nascer outra vez, Não mais hei de te ver senão na eternidade?
Longe daqui! tarde demais! nunca talvez! Pois de ti já me fui, de mim tu já fugiste, Tu que eu teria amado, ó tu que bem o viste!” BAUDELAIRE, 2006 22 COVERLEY, 2012 (tradução minha)
23 “Paris, escribe Benjamin, me enseñó el arte de extraviar-me. (...) En el escaso sentido de la dirección de Benjamin y su incapacidad de leer un mapa de calles se convierten en su amor a los voyages y su dominio del arte de extraviarse. ” SONTAG, 2007 24 “ Because I don’t ever really belong to the cities I am passing through, I invent myself a role so as to slip into the newly found environment as another local character” Francis Alÿs: a story of deception, p.105 25 o terceiro momento apontado por Careri seria marcado pela passagem da Arte Minimalista à Land Art, entre 1966 e 1967. Richard Long, Robert Smithson, Carl Andre e Walter de Maria são artistas cujas obras o autor percorre neste capitulo de seu livro, Walkscapes. 252
26 “what surrealism in general, and these books in particular (Nadja, Paris Peasant e the Last nights of Paris), were to enphasise is the fact that the idle stroller can no longer stand at the wayside or retreat to his armchair, but must now face up the destruction of his city. In the aftermath of the war, the streets were radicalised as never before and revolutionary change was in the air. If the urban wanderer was to continue his aimless strlling then the very act of walking had to become subversive, a means of reclaiming the streets for the pedestrian” Merlin Coverley, the art of wandering, p.192 27 ANDRADE (in: apologia da deriva, p.11) 28 JACQUES, 2003 29 “Uma vez que não somos tão razoáveis como imaginava o século das Luzes, que venerava a Razão, pensamos acrescentar à primeira definição da nossa espécie Homo sapiens a de Homo faber. Ora, este segundo termo é ainda menos justo que o primeiro, porque faber pode qualificar também um animal. E isto vale tanto para o ato de fabricar como para o de jogar: muitos animais jogam. Por isso o termo Homo ludens, o homem que joga, que exprime uma função tão essencial como a de fabricar, parece-me merecer seu posto depois do termo Homo faber.” HUIZINGA, apud: CARERI, 2013 30 ” the urban wanderer has been subordinated to the « dictatorship of the automobile” as a new urban landscape emerges. A non-place dominated by technology and advertising whose endless reflective surfaces are devoid of individuality” DEBORD, 1997
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31 ”the concept of stolling aimless urban wandering, the flânuer had been suppressed. We had moved into the age of the stalker;
jorney made with intent – Sharp eyed and sponsored. The Stalker was our role-model: purposed hiking, not dawdling, nor browsing. No time for the savoring or reflections in shop Windows, admiration for the art nouveau iron work, attractive match boxes rescued from the gutter. This was walking with a thesis� Sinclair, Lights out p.75
32 DAVILLA, apud: VISCONTI , 2012
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cidade pequena -FOTOGRAFIA E RELATO DO LUGAR-
1 “That zero panorama seemed to contain ruins in reverse, that is – all the new construction that would eventually be built. This is the opposite of the “romantic ruin” because the buildings don’t fall into ruin after they are built but rather rise into ruin before they are built. This anti-romantic mise-en-scene suggests the discredited idea of time and many other “out of date” things. But the suburbs exist without a rational past and without the “big events” of history. Oh, maybe there are a few statues, a legend and a couple of curios, but No past – just what passes for a future.” SMITHSON (in: Robert Smithson, the collected writings p.72) 2 “The bus passed over the monument. I pulled the buzzer-cord and got off at the corner of Union Avenue and River Drive. The monument was a bridge over the Passaic River that connected Bergen County with Passaic County. Noon-day sunshine cinema-ized the site, turning the bridge and the river into an over-exposed picture. Photographing it with my instamatic 400 was like photographing a photograph.” SMITHSON (in: Robert Smithson, the collected writings p.72) 3 “ The event that made conceivable the realization that it was possible to “speak another language” and still make sense in art was Marcel Duchamp’s first unassisted readymade. With the unassisted readymade, art changed its focus from the form of the language to what was being said. Which means that it changed the nature of art from a question of morphology to a question of function. This change – one from “appearance” to “conception” – was the beginning of “modern” art and the beginning of “conceptual” art. All art (after Duchamp)
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is conceptual (in nature) because it only exists conceptually (joseph Kosuth, Art after philosophy, 1969)”
OSBORNE, 2002
4 KRAUSS, 1979 (in: anti-aesthetics) 5 “But it would be probably more accurate to say of the work that one found in the early 60’s that sculpture had entered a categorical no-man’s land: it was what was on or in front of a building that was not a building, or what was in the landscape that was not the landscape.” KRAUSS, 1979 (in: anti-aesthetics) 6 Francesco Careri dedica seu livro Walkscapes ao zonzo, uma espécia de flanêur que vaga sem rumo pela paisagem urbana. “Andare a zonzo significa in italiano “perdere tempo girovagando senza meta” È un modo di dire cui non si conoscono le origini, ma che si inscrive perfettamente nella città passeggiata dai flâneurs, e nelle strade in cui si aggiravano gli artisti delle avanguardie degli anni venti e dove andavano alla deriva i giovani lettristi del dopo guerra.” CARERI, 2013 7 Ralph Rumney foi fundador do Comitê de psicogeografia de Londres, e estava presente na fundação da Internacional Situacionista, em 1957. Partidário das derivas, assim como os situacionistas, criticava a idéia de autoria desta prática, que estes tomavam para si. Para ele aqueles só a haviam nomeado, mas a deriva existira desde sempre. COVERLEY, 2012 8 “notei que levo para uma paisagem, para dentro de uma cena, um olhar que corresponde de uma certa maneira àquele que eu levaria a um personagem suplementar. 256
Uma rua ou a fachada de uma casa, uma montanha ou uma ponte ou um rio ou o que quer que seja, são mais do que um « último plano ». Eles também possuem uma história, uma « personalidade », uma identidade que deve ser levada a sério. “ WENDERS (in: revista do iphan n.23, 1994) 9 “Lo que la Fotografía reproduce al infinito únicamente ha tenido lugar una sola vez: La Fotografía repite mecánicamente lo que nunca más podrá repetirse existencialmente. En ella el acontecimiento no se sobrepasa jamás para acceder a otra cosa: La Fotografía remite siempre el corpus que necesito al cuerpo que veo, es el particular absoluto, la contingencia soberana, mate y elemental, el Tal (tal foto, y no la Foto), en resumidas cuentas, la Tuché, la Ocasión, el Encuentro, lo Real en su expresión infatigable.(…) Por naturaleza, la Fotografía (…) tiene algo de tautológico: en la Fotografía una pipa es siempre una pipa, irreductiblemente. ” BARTHES, 2008 10 Barthes publicou seu ensaio sobre a fotografia em 1980, apenas 5 anos após o surgimento da primeira câmera digital. Steven Sasson, engenheiro da Kodak foi o inventor desta tecnologia, agora absolutamente incorporada ao cotidiano de qualquer pessoa.
11 “Hoje, não é nos locais superpopulosos , onde se cruzam, ignorando-se, milhares de itinerários individuais, que subsiste algo do encanto vago dos terrenos baldios e dos canteiros de obras, das estações e das salas de espera, onde os passos se perdem, de todos os lugares de acaso e de encontro, onde se pode sentir de maneira fugidia a possibilidade mantida da aventura, o sentido que só se tem que “deixar acontecer”?” AUGÉ, 1994 12 “ A caminhada dos jovens Stalkers buscava atravessar os “muros de Zonzo”, sair da cidade mais praticada e conhecida de todos para ver o que está ao redor desses muros, visíveis ou invisíveis, nas 257
margens da cidade tradicional, espaços que não aparecem nos guias turísticos, espaços urbanos indeterminados, marginais, periféricos, territórios em plena transformação, espaços mutantes que se parecem com a zona do filme Stalker, de Andrei Tarkovski, que deu nome ao grupo. Espaços nômades, zonas intersticiais, nas fronteiras ou nos terrenos baldios das cidades.” JACQUES (in Walkscapes, 2013) 13 VISCONTI, São Paulo, FAUUSP, 2012 14 “As manipulações dos objetos captados pela câmera fotográfica, seu enquadre, a composição e o detalhe, têm uma incidência decisiva na nossa percepção das obras de arquitetura. Não é possível fazer hoje uma história da arquitetura do século XX sem se referir aos nomes dos fotógrafos de arquitetura. Nem sequer na experiência direta dos objetos edificados escapamos da mediação da fotografia, de modo que carece de sentido a ideia maniqueísta segundo a qual haveria uma experiência direta, honesta e verdadeira dos edifícios e outra manipulada e perversa através das imagens fotográficas. Pelo contrário, a percepção que temos da arquitetura é uma percepção esteticamente reelaborada pelo olho e pela técnica fotográfica. (...) Sucede o mesmo com a cidade. Não só a possibilidade de acumular experiências pessoais diretas é problemática nos lugares nos quais não temos vivido por um longo tempo. Também nossa mirada tem sido construída e nossa imaginação, prefigurada através da fotografia. Obviamente, existem a literatura, a pintura, o vídeo ou o filme. Mas a incidência do fotógrafo, essa arte menor, segundo a qualificava Pierre Bourdieu, segue sendo primordial em nossa experiência da grade cidade.” SOLÁ-MORALES, 2002 15 SOLÁ-MORALES, 2002 16 “Em grande parte da fotografia recente, ao contrário, a experiência do mundo não se dá pela imagem, mas na imagem, 258
como se o mundo fosse uma coleção e uma superposição infinita de imagens, cada uma remetendo a uma série potencialmente infinita de outras imagens. Não se trata necessariamente de formalismo, porque a referência a esse conjunto ilimitado de imagens não segrega da experiência do mundo; ela é, justamente, grande parte da experiência do mundo. Mas de um mundo sem fundo, queda livre de uma imagem a outra, sem que nunca possamos dizer que chegamos, não digo a um objeto, mas à reprodução fiel de nossa experiência imediata do objeto.” MAMMI, 2013 17 “Nós estamos no limiar da revolução numérica – da imagem vídeo à alta resolução “high-vision”. E as imagens eletrônicas terão enfim atingido sua maturidade. Elas serão mais belas, mais detalhadas e sedutoras que nunca. Elas terão definitivamente superado a idéia de “original”. Cada duplo será idêntico ao original, cada imagem eletrônica estará disponível ao mesmo tempo e em toda parte do mundo, onde poderá ser reproduzida. Assim, no futuro as imagens eletrônicas serão mais belas e acessíveis que nunca, mas por outro lado já não serão críveis.” WENDERS, 1992 (in: revista do iphan n.23, 1994)
18 “ (...) he sido fotografiado a sabiendas. Entonces, cuando me siento observado por el objetivo, todo cambia: me constituyo en e lacto de “posar”, me fabrico instantáneamente otro cuerpo, me transformo por adelantado en imagen. Dicha transformación es activa: siento que la Fotografía crea mi cuerpo o lo mortifica, según su capricho (...), la vivo con la angustia de una filiación incierta: una imagen – mi imagen - va a nacer. (...) es “yo” lo que no coincide nunca con mi imagen; pues es la imagen la que es pesada, inmóvil, obstinada (...), y soy “yo” quien soy ligero, dividido, disperso y que, como un ludión, no puedo estar quieto, agitándome en mi bocal.” BARTHES, 2008
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19 “In 1938 Walker Evans went underground to photograph
passengers on the New York Subway. Interested in capturing the everyday routines of anonymous people, Evans wanted to catch his subjects unaware. “The guard is down and the mask is off”, he wrote, “even more in lone bedrooms (where there are mirrors). People’s faces are naked repose down in the subway.” Between 1938 and 1941, using a hidden camera, Evans photographed his subjects in these unguarded moments. Evans solicited the company of his friend, the photographer Helen Levitt, in the belief that his activities would be less noticeable if someone accompanied him. In order to create his clandestine photographs, he orchestrated a way of taking photographs “undercover”. He painted the shiny chrome of his camera black and hid it under his coat so that the camera lens surreptitiously peeked out between two buttons. Despite the public setting of the subway, Evans managed to capture people lost in their thoughts and moods, displaying a range of human emotions. With these black-and-white photographs, Evans managed to pull off a complicated feat: creating truly unposed portraits.” Subway Portrait, descrição no site do MOMA 20 “finalmente, uma vez que os nomes próprios já são “autoridades locais “ ou “superstições”, os números os substituem: ao telefone, não se disca mais ópera, mas 073. O mesmo vale para histórias e lendas que assombraram o espaço urbano como habitantes supérfluos ou adicionais. Elas são objeto de caça as bruxas, pela própria lógica da tecno-estrutura. Mas o extermínio dessas histórias (como o extermínio das árvores, florestas e dos lugares recônditos onde vivem essas lendas) faz da cidade uma “ordem simbólica suspensa”. A cidade habitável é assim anulada. Portanto, como disse uma mulher de Rouen, não, aqui “não há lugar nenhum especial, exceto minha própria casa, e só ... não há nada”. Nada “especial”: nada que se destaque, que se mostre através de uma lembrança ou historia, que alguma outra coisa ou alguém mais tenha assinado. Apenas a caverna do lar permanece crível, ainda aberta a lendas por um certo tempo, ainda cheia de sombras. A não ser por isso, segundo
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um outro habitante da cidade, ha apenas “lugares em que não se pode mais acreditar em nada”. De CERTEAU, 1993 (in: revista do iphan n. 23, 1994) 21 “Blocos de habitações, neles os edifícios individuais; permeando os blocos, as ruas – tudo isto com formas bastante variadas e complexas: Eis o casario de Atenas no século V ac. E já de inicio ele se faz notar pela ausência de traços simples ou regulares em seu desenho. Nenhuma casa tem o mesmo desenho que a outra e também nenhuma rua é igual à outra.” MALACO, 2002 22 “ O recurso aos grandes relatos está excluído; não seria o caso, portanto, de recorrer nem à dialética do Espirito nem mesmo à emancipação da humanidade para a validação do discurso cientifico pós-moderno. Mas, como vimos, o “pequeno relato” continua a ser a forma por excelência usada pela invenção imaginativa, e antes de tudo pela ciência.” LYOTARD, 2013 23 VISCONTI, São Paulo, FAUUSP, 2012 24 HEGYI, 2008 (P. 234) – apud: VISCONTI, 2012 P.30
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do espaço ao lugar -SIGNIFICAÇÕES
1 “as soon as the child is able to speak with some fluency he wants to know the names of things. Things are not quite real until they acquire names and can be classified in some way”. TUAN, 2011 2
Sensação Experiência Percepção Concepção
EMOÇÃO emoção
pensamento
PENSAMENTO
3 “Distance is distance from self. (...) Personal pronouns, demonstrative pronouns, and adverbs of location closely implicate one another.” TUAN, 2011 4 “Folk measures of length are derived from parts of the body. Widely used are the breadth or length of finger or thumb; the span either from thumb to the tip of the little finger or to the tip of the forefinger; from the top of the middle finger to the elbow (cubit), or over outstretched arms from finger tip to finger tip (fathom). TUAN, 2011 5 “The ideas “space” and “place” require each other for definition. From the security and stability of place we are aware of the openness, freedom, and threeat of space, and vice-versa. Furthermore, if we think of space as that which allows movement, then place is pause; each pause in movement makes it possible for location to be” TUAN, 2011
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6 “Place is a type of object. Places and object define space, giving it a geometric personality. Neither the newborn infant nor the man who gains sight after a lifetime of blindness can immediately recognize a geometric shape such as a triangle. The triangle is at fisrt “space”, a blurred image. Recognizing the triangle requires the prior identification of corners – that is, places. A neighborhood requires the identification of significant localities, such as street corners and architectural landmarks, within the neighborhood space.” TUAN, 2011 7 “How does a young child understand place? If we define place broadly as a focus of value, of nature and support, then the mother is the child’s primary place. (...) A man leaves his home or hometown to explore the world; o toddler leaves his mother’s side to explore the world. Places stay put. Their image is one of stability and permanence. She is nearly always around when needed. A strange world holds little fear for the young child provided his mother is nearby, for she is his familiar environment and heaven. A child is adrift – placeless- without the supportive parent.” TUAN, 2011 8 “Carefree individuality, though, is foreign to the European. He doesn’t find privacy in the great outdoors but in the crowd itself. He spends his lifetime learning the strategies and uses of the social mask. (...) The European habitually goes out to be social and comes home to be alone. The American and the Canadian do exactly the reverse.” McLUAHAN, 1992 9 “The lure of the local is the pull of place that operates on each of us, exposing our politics and our spiritual legacies. It is the geographical component of the psychological need to belong somewhere, one antidote to a prevailing alienation. (...) These days the notion of the local is attractive to many who have never really experienced it, who may or may not be willing to take the 263
responsibility and study the local knowledge that distinguishes every place from every other place. Inherent in the local is the concept of place – a portion of land/ town/ cityscape seen from the inside, the resonance of a specific location that is known and familiar. Most often place applies to our own “local” – entwined with personal memory, known or unknown histories, marks made in the land that provoke and evoke. Place is latitudinal and longitudinal within the map of a person’s life. It is temporal and spatial, personal and political.” LIPPARD, 1997 10 “ Few of us in contemporary North American society know our place. When I asked twenty university students to name a place where they felt they belonged, most could not. The exceptions were two navajo women, raised more or less traditionally, and a man whose Family had been on a Southern Illinois farm for generations.” LIPPARD, 1997 11 Esse pertencer a um lugar é abordado por Wim Wenders, quando ele fala em um texto seu sobre os aborígenes australianos. Para aqueles homens seria absurda a idéia de possuir a terra, pois ela sim seria a possuidora dos homens. O lugar a que se pertence seria talvez a mais importante identidade daqueles homens: “Alguns anos depois, no deserto australiano, encontrei alguns homens que viviam lá, nômades, há 40.000 anos: eram os aborígenes. Eles acreditavam numa coisa essencial, eles acreditavam que pertenciam à sua terra que eram responsáveis por ela: cada um deles por uma determinada região. Eles eram parte da região. A idéia inversa, ou seja, que eles mesmos ou qualquer outro pudesse possuir um pedaço de terra, era inconcebível para eles. Segundo a sua visão, a terra é a proprietária do homem – jamais o contrário.” WENDERS, 1992 (in: revista do iphan n.23, 1994) 12 Michel de Certeau escreveu sobre antagonismo semelhante ao da experiência de Marini da ilha de Xiros. No caso fala-se da relação com a cidade, do Voyer ou Caminhante:
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“ Ser alçado ao topo de World Trade Center é ser surrupiado do aperto da cidade. O corpo do indivíduo não está mais nas garras das ruas que fazem voltas e retornos conforme uma lei anônima; nem está possuído, seja como o que joga ou como o que é jogado, pelo estrondo de tantas diferenças e pelo nervosismo do tráfego de Nova Iorque. (...) Sua elevação o transfigura num voyer. Coloca-o à distância. Transforma o mundo encantatório pelo qual ele foi “possuído” num texto distante diante dos seus olhos. E lhe permite lê-lo, ser um Olho solar, olhando para baixo como um deus. (...) Os praticantes comuns da cidade moram “lá embaixo”, abaixo do limiar onde a visibilidade começa. Eles caminham – uma forma elementar dessa experiência da cidade; eles são caminhantes. Wandersmänner, cujos corpos acompanham resolutamente um “texto” urbano, que escrevem sem serem capazes de lê-lo. Esses praticantes fazem uso de espaços que não podem ser vistos; o conhecimento que têm destes é tão cego quanto o dos amantes abraçados.” De CERTEAU, 1993 (in: revista do iphan n.23) 13 REVER Augusto de Campos, equivocábulos, 1970 14 “Nada disso fazia sentido, voar três vezes na semana ao meio-dia sobre Xiros era tão irreal como sonhar três vezes por semana que voava ao meio-dia sobre Xiros. Tudo era falso na visão inútil e repetida; salvo, talvez, o desejo de repeti-la, a consulta ao relógio de pulso antes do meio-dia, o breve e agudo contato com a deslumbrante franja branca à beira de um azul quase negro, e as casas onde os pescadores levantariam apenas os olhos para acompanhar a passagem daquela outra irrealidade. (...) A costa sul de Xiros era inabitável, mas para o lado oeste havia vestígios de uma colônia lídia ou talvez creto-micênica, (...). Disseram-lhe, na agência de viagens, que teria de fretar um navio especial, saindo de Rynos, ou talvez pudesse viajar na pequena embarcação que recolhia os polvos, mas isto só poderia ser resolvido por Marini em Rynos, onde a agência não tinha representante. (...) Certa vez tirou uma fotografia 265
de Xiros mas saiu escura; já conhecia alguma coisa a respeito da ilha, sublinhara as praias e referências num e noutro livro. (...) A ilha era visível durante uns poucos minutos, mas o ar estava sempre tão límpido e o mar recortava com uma crueldade tão minuciosa, que os menores detalhes iam se ligando, implacáveis, à lembrança da viagem anterior: a mancha verde do promontório ao norte, as casas cor de chumbo, as redes secando na areia” (...) Nesse dia, as redes desenhavam-se precisas na areia e Marini teria jurado que o ponto preto à esquerda, à beira-mar, era um pescador que devia estar olhando para o avião.” CORTÁZAR, 2009 15 “I sit in urban safety imagining my journey to Tristan da Cunha. I have known about this island for many years, (...) They call it the remotest island. On Earth because it is nearly three thousand kilometers off the nearest coast and only one boat goes there a year out of the Cape of Good Hope. (...) For a long time I wanted to go there: to arrive on that boat, the RMS St Helena, and to leave on it a year later. (...) I began to have dreams about Tristan da Cunha. I dreamt about waiting for the post to arrive. Once, when letters were being distributed into piles on tables, it occurred to me, quite suddenly and as if in panic even in my dream, that the boat that had brought the letters had to be the boat: the boat that meant my year was over and that I could go home. My concentration on all those letters I could not send as well as those I could not receive, made me begin to imagine a year in the plod of time and in the minutiae of all that News I could not get. But this fantasy belongs to the analogue world: the world where you could still get lost. It belongs to a time before we began endlessly and futilely communicating with each other, when people expected a year for a letter. (…) Maybe getting lost, or rather disappearing out of sight, has become an anachronism in our communication-crazed world. Is this why being hostage to such remoteness is so attractive to me when, truth to be told, I am a coward to such loneliness? “ DEAN (in: situation p67)
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16 “One of the results of this is an increasing uncertainty about what we mean by “places” and how we relate to them. How, in the face of all this movement and intermixing, can we retain any sense of local place and its particularity? (…) Jumbos have enabled Korean computer consultants to fly to Silicon Valley as if popping next door, and Singaporean entrepreneurs to reach Seattle in a day. The borders of the world’s greatest ocean have been joined as never before. And Boeing has brought these people together. (…) But what about those they fly over, on their islands, five miles below? How has the mighty 747 brought them in communion with those whose shores are washed by the same water? It hasn’t, of course. Air travel might enable business man to buzz across the ocean, but the concurrent decline in shipping has only increased the isolation of many island communities… Pitcairn, like many other Pacific islands, has never felt so far from its neighbours.” MASSEY (in: situation) 17 “Dentro do barco, (...), vemos a cidade de um ponto de vista rebaixado. Nada de skyline, apenas viadutos em abismo no céu, luzes de automóveis que passam incessantemente ao redor, taludes recém-inaugurados nas margens do rio-canal e os blocos carcomidos que afloram das fundações dos pilares das pontes. Assim o Tietê, que há décadas virou o “buraco negro” de São Paulo, transforma-se de repente na superfície que nos ampara. Nesse momento, me lembro que ele é um rio sui generis, porque se afasta do mar correndo para o interior continental. O que o aproxima, ao menos poeticamente, de uma dimensão turva e inconsciente. É o rio da introspecção. (...) Ao tomar o rio Tietê como palco da encenação, o espetáculo BR-3 realiza um movimento de mão dupla. Pois se, por um lado, toma emprestada a qualidade espacial daquele “cenário” para a sua narrativa, por outro, acaba conferindo novo significado a essa paisagem, lançando luz sobre a sua qualidade de “lugar” e, em registro ampliado, sobre a história de constituição da vila de Piratininga, na bacia hídrica de São Paulo” WISNIK, O Tietê e o Brasil profundo (in: Ensaio Crítico P. 30-32)
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18 “sometimes doing something poetic can become political, and sometimes doing something political can become poetic.” ALŸS, the Green line 19 “Site-determined, site-oriented, site-referenced, site-conscious, site-responsive, site-related. These are some new terms that have emerged in recent years among many artists and critics to account for the various permutations of site-specific art in the present. On the one hand, this phenomenon indicates a return of sorts: an attempt to rehabilitate the critically associated with the anti-idealist, anti-commercial site-specific practices of the late 60s and early 70s, which incorporated the physical conditions of a particular location as integral to the production, presentation and reception of art. On the other hand, it signals a desire to distinguish current practices from those of the past – to mark a difference from artistic precedents of site specificity whose dominant positivist formulations (the most well known being Richard Serra’s) are deemed to have reached a point of aesthetic and political exhaustion.” KWON, 2004 20 BOURRIAUD, 1998 21 Em Não-Lugares Marc Augé fala do lugar antropológico como este lugar do encontro ao qual me refiro: “Se nos detivermos, por um instante, na definição de lugar antropológico, constataremos que ele é, antes de mais nada, geométrico. (...) Em termos geométricos, trata-se da linha, da intersecção das linhas e do ponto de intersecção. Concretamente, na geografia que nos é cotidianamente mais familiar, poder-se-ia falar, por um lado, em cruzamentos e praças onde os homens se cruzam, se encontram e se reúnem” AUGÉ, 1994
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euralille, google e facebook -LUGARES PARA UM TEMPO NOSSO-
1 AUGÉ, 1994
2 “Se as tradicionais metáforas usadas para designar a cidade estiveram sempre ligadas às noções de atração e concentração (imã, recipiente), hoje aludem mais à dispersão (interface, rede). Ocorre que, cada vez mais, a atividade que agrega as pessoas e, portanto, serviços e construções, é a circulação. Mobilidade é conexão. Por isso é que se diz que, na metrópole pós-industrial, o espaço se tornou um derivado do movimento. (...) Pensemos, por exemplo (...), nas gigantescas “cidades” de serviços montadas em torno dos aeroportos. Um caso exemplar é Euralille: novo complexo metropolitano criado ao lado da pequena cidade de Lille, na França. WISNIK, O nomadismo sedentário (in: Estado Critico, à deriva nas cidades) 3 “As pessoas que se movem e agem com maior rapidez, que mais se aproximam do momentâneo do movimento, são as pessoas que agora mandam. E são as pessoas que não podem se mover tão rápido – e de modo mais claro a categoria das pessoas que não podem deixar seus lugares quando quiserem – as que obedecem. A dominação consiste em nossa própria capacidade de escapar, de nos desengajarmos, de estar “em outro lugar”, e no direito de decidir sobre a velocidade com que isso será feito – e ao mesmo tempo de destituir os que estão do lado dominado de sua capacidade de parar, ou de limitar seus movimentos ou ainda torná-los mais lentos. A batalha contemporânea da dominação é travada entre forças que empunham, respectivamente, as armas da aceleração e da procrastinação.” BAUMAN, 2001 4 FOUCAULT, 1984
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5 “ (...) as grandes superfícies nas quais o cliente circula silenciosamente, consulta as etiquetas, pesa os legumes ou frutas numa máquina que lhe indica, com o peso, o preço, e depois estende o cartão de crédito a uma jovem também silenciosa, ou pouco loquaz, que submete cada artigo ao registro de uma máquina decodificadora, antes de verificar o bom funcionamento do cartão do banco. Diálogo mais direto, porém, ainda silencioso: o que cada titular de um cartão de banco mantém com a máquina distribuidora na qual ele o insere e em cuja tela são-lhe transmitidas instruções, geralmente estimulantes, mas que por vezes constituem verdadeiras invocações à ordem (“cartão mal introduzido”, “retire seu cartão”, “leia atentamente às instruções”). Todas as interpelações que emanam de nossas estradas, centros comerciais,(...), visam simultânea e indiferentemente a cada um de nós: elas fabricam o “homem médio”, definido como usuário do sistema rodoviário, comercial ou bancário. (....) o espaço do não-lugar liberta de suas determinações habituais quem nele penetra. Ele não é mais do que aquilo que faz ou vive como passageiro, cliente, chofer. (...) Objeto de uma suave possessão, à qual se abandona com mais ou menos talento ou convicção, como qualquer possuído, saboreia por um tempo as alegrias passivas da desidentificação e o prazer mais ativo da interpretação do papel. (...) O passageiro dos não-lugares só reencontra sua identidade no controle da alfândega, no pedágio ou na caixa registradora.” AUGÉ, 1994 6 “ MICHAEL Out of place, I guess. Displaced or misplaced. Somewhere else. INTERVIWER But you were somewhere else. This is the point.
MICHAEL I don’t mean in body only. Somewhere else in a deeper way. Somebody somewhere else. I’m trying to be completely clear. 270
(…)
MICHAEL I felt remote. I felt a tremendous separation. INTERVIWER From what?
MICHAEL From what. From everything. Physically safe. Physically fine. But cut off from everything around me. And from myself as well.” DE LILLO, 1999 7 “I felt submissive. I had to submit to the systems. They were all-powerful and all-knowing. If I was sitting in this assigned seat. Think about it. If the computers and metal detectors and uniformed personnel and bomb-sniffing dogs had allowed me to reach this assigned seat and given me this airline blanket that i could not rip out of its plastic shroud, then I must belong here. That’s how I was thinking at the time.” DE LILLO, 1999 8 “O tempo do consumo das imagens, meio de ligação de todas as mercadorias, é o campo inseparável em que se exercem plenamente os instrumentos do espetáculo, e o objetivo que estes apresentam globalmente, como lugar e como figura central de todos os consumos particulares: sabe-se que os ganhos de tempo constantemente procurados pela sociedade moderna – seja nos transportes rápidos, seja no uso da sopa em pó – traduzem-se de modo positivo para a população dos Estados Unidos no fato de ela poder assistir à televisão, em media, de três a seis horas por dia.” DEBORD, 1997 9 “All right, she doesn’t look at me. They never look at us. How can they? They are long lines of people all the time. She has her console 271
and her random access memory. I have my meagre piece of paper. But I want something to pass between us. Some nuance of human sharing. Some egg-whitely nuance. I look at her face for a sign.” DE LILLO, 1999 10 Sobre esse estado de solidão em que se encontra a sociedade contemporânea fala Guy Debord, em Sociedade do espetáculo: “ Do automóvel à televisão, todos os bens selecionados pelo sistema espetacular são também suas armas para o reforço constate das condições de isolamento das “multidões solitárias”. O espetáculo encontra sempre mais, e de modo mais concreto, suas próprias pressuposições” DEBORD, 1997 11 Jean Baudrillard fala em um de seus últimos textos, sobre uma imersão da sociedade contemporânea num êxtase da comunicação: nesse estágio, não há mais cena , ou espelho, não há mais público ou privado. Os cotidianos foram todos satelitizados: “This realization of a living satellite, in vivo, in a quotidian space, corresponds to the satellitization of the real, or what I call the “hyper-realism” of simulation”: the elevation of the domestic universe to a spatial power, to a spatial metaphor, with the satellization of the two-room-kitchen-and-bath put into orbit in the last lunar module. (…) what was projected psychologically and mentally, what used to be lived out on earth as metaphor, as mental or metaphorical scene, ishenceforth projected into reality, without any metaphor at all, into an absolute space which is also that of simulation. (…) We are here at the controls of the micro-satellite, in orbit, living no longer as an actor or dramaturge but as a terminal of multiple networks.” BAUDRILLARD, 1998 (in: the anti-aesthetic, P.147-148) 12 “When the ground moves too fast, a condition of endemic to the electronic society, only figure is left. The left-brain oriented individual substitutes the act of going inside himself for identity, he 272
uses his own figure as his ground. (…) at the speed of the light you become a narcissist because only the figure of self remains – which explains, as Tom Wolfe has pointed out, why some jet-setters are so involved with themselves. (…) Narcissism, as a side effect of acoustic space, is, besides AIDS, the fastest developing social disease of the peoples of the West.” McLUAHAN, 1992 13 AUGÉ, 1994 14 “the process of aesthetization heightens awareness toward sensory stimuli. Thus in turn triggers a compensatory anaesthetization as a protection against overstimulation. Anaesthetization therefore works in tandem with aesthetization; the one feeds into the other. (…) The bombardment of images may prove to have a narcotic effect, hightning one’s aesthetic receptivity to further visual information.” LEACH, 2000 15 “The current spate of dyslexia and other learning disability difficulties (...) may well be a direct result of TV and other electronic media pressuring us into returning to the right hemisphere. Dyslexia is an inability to adopt a single, fixed point of view with respect to all letters and words. Conversely, it consists of approaching letters and words from many points of view simultaneously (...) without the assumption that any one view is solely correct.” McLUAHAN, 1992 16 “Electronic man, having found himself in an arena of simultaneous information also finds himself increasingly excluded from the older more traditional (visual) world in which space and reason seem to be uniform, connected, and stable. Instead, Western (visual and sequential) man now discovers himself habitually relating to information structures which are simultaneous, discontinuous, and dynamic. He has been plunged into a new form of 273
knowing, far from his customary experience tied to the printed page. In the same way that the sense of hearing apprehends details from all directions at once, within a 360-degree sphere, as it were, in a manner similar to a magnetic or electrical field; so knowing itself is being recast and retrieved in acoustic form.” McLUAHAN, 1992 17 “Something has changed, and the Faustian, Promethean (perhaps Oedipal) period of production and consumption gives way to the “proteinic” era of networks, to the narcissistic and protean era of connections, contact, contiguity, feedback and generalized interface that goes with the universe of communication. With the television image – the television being the ultimate and perfect object for this new era – our own body and the whole surrounding universe becomes a control screen. (...) No more fantasies of power, speed and appropriation linked to the object itself, but instead a tactic of potentialities linked to usage: mastery, control and command, an optimization of the play of possibilities offered by the car as a vector and vehicle, and no longer as object of psychological sanctuary. The subject himself, suddenly transformed, becomes a computer at the wheel, not a drunken demiurge of power. The vehicle now becomes a kind of capsule, its dashboard the brain, the surrounding land-scape unfolding like a televised screen (instead of a live-in projectile as it was before). But we can conceive of a stage beyond this one, where the car is still a vehicle of performance, a stage where it becomes an information network. The famous Japanese car that talks to you, that “spontaneously” informs you of its general state, possibly refusing to function if you are not functioning well, the car as deliberating consultant and partner in the general negotiation of a lifestyle, something – or someone: at this point there is no longer any difference – with which you are connected. The fundamental issue becomes the communication with the car itself, a perpetual test of the subject’s presence with his own objects, an uninterrupted interface.” BAUDRILLARD, 1998 (in: the anti-aesthetic, P.146-147) 274
18 BAUMAN, 2001
19 “In that rapidly approaching future, what about the person Who has not role-played well enough to attain a continual creditworthiness? He will then, as he is now, be a non-person. (and as we all know, non-persons pay cash.) Yet, the definition of status will tend to harden as the EFT payments pattern takes over smaller and smaller transactions so that the debit card will be used for virtually all those payments now assigned to cash. Those who can only pay cash may be looked on as poor credit risks and, consequently, may have difficulty obtaining employment. They will have suffered in effect a high-velocity loss of identity by being tied to hardware in an essentially software environment.” McLUAHAN, 1992 20 “o poder pode se mover com a velocidade do sinal eletrônico – e assim o tempo requerido para o movimento de seus ingredientes essenciais se reduziu a instantaneidade. Em termos práticos, o poder se tornou verdadeiramente extraterritorial, não mais limitado, nem mesmo desacelerado, pela resistência do espaço (o advento do telefone celular serve bem como “golpe de misericórdia” simbólico na dependência em relação ao espaço: o próprio acesso a um ponto telefônico não é mais necessário para que uma ordem seja dada e cumprida. Não importa mais onde está quem dá a ordem – a diferença entre “próximo” e “distante”, ou entre o espaço selvagem e o civilizado e ordenado, está a ponto de desaparecer). Isto dá aos detentores do poder uma oportunidade verdadeiramente sem precedentes: eles podem se livrar dos aspectos irritantes e atrasados da técnica de poder do Panóptico. O que quer que a historia da modernidade seja no estágio presente, ela é também, e talvez acima de tudo, pós-panóptica. O que importava no Panóptico era que os encarregados “estivessem lá”, próximos da torre de controle. O que importa, nas relações de poder pós-Panópticas é que as pessoas que operam as alavancas do poder de que depende o destino dos parceiros menos voláteis na relação podem fugir do alcance a 275
qualquer momento – para a pura inacessibilidade.” BAUMAN, 2001 21 “There is a problem here, however, to the extent that this electronic “encephalization” and miniaturization of circuits and energy, this transistorization of the environment, relegates to total uselessness, desuetude and almost obscenity all that used to fill the scene o four lives. (...) The real itself appears as a large useless body. This is the time of miniaturization, telecommand and the microprocession of time, bodies, pleasures.” BAUDRILLARD, 1988 (in: the anti-aesthetic, P.148) 22 “this realization of a living satellite, in vivo, in a quotidian space, corresponds to the satellization of the real, or what I call the “hyperrealism of simulation”: the elevation of the domestic universe to a spatial metaphor, with the satellization of the two-room-kitchenand-bath put into orbit in the last lunar module. (...) We are here at the controls of a micro-satellite, in orbit, living no longer as an actor or dramaturge but as a terminal of multiple networks” BAUDRILLARD, 1988 (in: the anti-aesthetic, P.147)
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nova cidade -À DERIVA PELO GOOGLE STREET VIEW-
1 “photographs that no one took and memories that no one has” RAFMAN, 2012 2 “Se aplicado à relação tempo-espaço, isso significa que, como todas as partes do espaço podem ser atingidas no mesmo período de tempo (isto é, em “tempo nenhum”), nenhuma parte do espaço é privilegiada, nenhuma tem um “valor especial”. Se todas as partes do espaço podem ser alcançadas, a qualquer momento, não há razão para alcançar qualquer uma delas num dado momento e nem tampouco razão para se preocupar em garantir o direito de acesso a cada uma delas. Se soubermos que podemos visitar um lugar em qualquer momento que quisermos, não há urgência em visitá-lo nem em gastar dinheiro em uma passagem válida para sempre. (...) O tempo instantâneo e sem substancia do mundo do software é também um tempo sem conseqüências. “instantaneidade” significa realização imediata, mas também exaustão e desaparecimento do interesse.” BAUMAN, 2001 3 “Não há nada melhor do que a Avenida Niévski, pelo menos em Petersburgo; para a cidade ela representa tudo. E o que não brilha nessa rua – a beldade de nossa capital? Sei que nenhum dos pálidos funcionários públicos que a habitam, trocaria a avenida Niévski por qualquer vantagem que fosse. (...) Basta entrar na avenida Niévski para sentir o aroma de um passeio. Mesmo que tenhamos algum assunto urgente e incontornável, ao entrar na avenida certamente esqueceremos de tudo. Aqui é o único lugar onde as pessoas aparecem não por necessidade, um lugar para onde são atraídas não por obrigação, nem pelo interesse comercial, que arrebata São Petersburgo inteira. (...) A avenida Niévski é a via de comunicação 277
obrigatória de Petersburgo. Aqui, o morador de Petersburgo ou de Víborg, que há anos não revê um amigo de Piéski ou do portão de Moscou, pode estar seguro de que o encontrará sem falta. Nenhum guia de ruas e nenhuma agência de informações fornece noticias tão confiáveis quanto a avenida Niévski. A todo-poderosa avenida Niévski! A única alegria do pobre num passeio em Petersburgo! (...) Porém os acontecimentos mais estranhos de todos têm lugar na avenida Niévski. Ah, não acredite nessa avenida Niévski! Eu sempre me envolvo mais ainda em minha capa quando passo por ela e tento, de todo modo, não olhar para os objetos que encontro. Tudo é ilusão, tudo é sonho, nada é o que parece! Ela mente o tempo todo, essa avenida Niévski, porém mente sobretudo quando a noite recai sobre ela como uma densa massa e realça as paredes brancas e cor de palha das casas, quando a cidade inteira transforma-se em trovão e brilho, miríades de carruagens despencam das pontes, boleeiros berram e saltam sobre os cavalos e quando o demônio em pessoa acende os lampiões, apenas para mostrar tudo sob um aspecto falso. GOGOL, 2012 4 “Quando o mundo real se transforma em simples imagens, as simples imagens tornan-se seres reais e motivações eficientes de um comportamento hipnótico. O espetáculo, como tendência a fazer ver (por diferentes mediações especializadas) o mundo que já não se pode tocar diretamente, serve-se da visão como o sentido privilegiado da pessoa humana – o que em outras épocas fora o tato; o sentido mais abstrato, e mais sujeito à mistificação, corresponde à abstração generalizada da sociedade atual” DEBORD, 1997
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projeto correspondência -DO DIA QUE RESOLVI FALAR COM ESTRANHOS-
5 SCHOPENHAUER, apud: BAUMAN 2001
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