a23

Page 1



Ricardo Paulouro

© Dina Almeida

P.14 REPORTAGEM

O país sanitário visto do balcão da taberna Escrita de taberna com mão trémula de vinho. Viagem ao interior de um país desertificado, onde a ASAE, a bófia sanitária, persegue o chouriço de sangue e a marmelada oferecida aos lares da terceira idade. O tinto que se extingue no copo. As tabernas que fecham os olhos, tolhidas pela modernidade plastificada.

© Margarida Dias

A chegada ao quarto número de uma publicação gratuita, filha do associativismo, é motivo de comemoração. A cultura parece ter conhecido melhores dias, talvez porque o país parece apático, concentrado agora nos rumores da crise, no défice, na subida do petróleo. Pelo meio, as alegrias e emoções do Euro 2008 com um final amargo. Tudo o que nos faça esquecer a situação nacional. Preferimos acreditar que este é um momento, fugaz e passageiro. É também este retrato menos colorido que Urbano Tavares Rodrigues, a quem prestamos aqui a nossa homenagem, faz no seu último livro “Os Cadernos Secretos do Prior do Crato”. À semelhança do protagonista da sua história, que afirma ser o seu herói, também Urbano tem sido, à sua maneira, um Cavaleiro Andante que sempre lutou, através da palavra, por um mundo melhor, mais habitável. Condecorado no dia 10 de Junho pelo presidente da República, na Comemoração do Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas, Urbano Tavares Rodrigues teve um justíssimo reconhecimento, ele que é um dos maiores escritores e ensaistas do século XX. A A.23 orgulha-se de o ter não só em discurso directo, mas de publicar um texto seu inédito. O tempo, que é para muitos o grande inimigo, trouxe a Urbano um conhecimento e uma sabedoria dignos dos sábios. Destaque também para a grande reportagem que publicamos neste número e que enfrenta um dos temas mais marcantes da actualidade: a ASAE. Entre o Portugal profundo e a cidade cosmopolita, viaja-se pelas tascas e bares de Portugal, num movimento que tenta perceber o que já está enraizado e faz parte da nossa própria identidade. Só nos primeiros quatro meses do ano foram abertos 300 processos, com uma média de sete denúncias diárias, de incumprimento à Lei do Tabaco. Padarias, restaurantes, armazéns de alimentos, cantinas e até lares de idosos fecharam as portas, pagaram avultadas multas ou viram os seus alimentos oferecidos pela população serem destruídos com litros de lixívia. As instituições de solidariedade falam em “excesso de zelo”, a ASAE continua a probir que estes aceitem alimentos dados pelas populações e a deitar fora toda a comida congelada em arcas normais. É certo que há, pela primeira vez, uma polícia de segurança alimentar e que existem regras de higiene que é preciso cumprir. Mas como podemos viver sem as bolas de berlim ou as colheres de pau? Como podemos não nos assustar com agentes fardados e em treino militar a fiscalizarem as feiras? Nem as marcas de luxo, como a Cartier, a Hermès ou a Louis Vitton escapam ao olhar da ASAE. Voltámos ao tempo da polícia como juiz e executante de pena. A grande entrevista é dedicada a um dos melhores cantores e compositores da actualidade: Jorge Palma. Poucos sabem redescobrir a música, exibindo sentimentos, explorando emoções e cativando sempre mais gente. O seu último álbum é disso prova. “Com o sopro da manhã e o aroma/das frésias eu sonhava longamente”, assim o disse, com uma musicalidade tão sua, Eugénio de Andrade. Os dias correm longos e por cá tenta-se encontrar a sombra, clareiras da imaginação que nos obrigam sempre a estar atentos enquanto o inverno fica ancorado nos tempos do passado (e do tempo que está a chegar).

,,Destaques

© Rui Dias Monteiro

,,Editorial

P.04 OPINIÃO “Política, opinião pública e justiça na Beira Interior” “Concursos sem público” “A ´pátria em chuteiras´” “Spain is different”

P.06 FOTO-ENSAIO “O mundo depois da Geórgia”

P.011 DOSSIER CIDADANIA “Call Centers - Um Far West em Portugal”

P.24 ENTREVISTA

Entrevista a Jorge Palma Jorge Palma tornou-se uma presença constante nos palcos portugueses. “Voo Nocturno”, o seu mais recente trabalho, foi o pretexto para conversarmos com aquele que é hoje um dos nomes incontornáveis da música portuguesa. Uma carreira com mais de trinta anos. À entrega à musicalidade das palavras somam-se histórias de uma vida escrita em cada canção.

P.03 CULTURA “O ‘trabalho da língua’ do Padre António Vieira” “Jangada de pedra no naufrágio da Baixa” “Entrar para sair” “Debaixo de olho” “O teatro do silêncio, o teatro da fuga, o teatro da esperança”

P.18 CRÓNICA “Tropas à moda de Monsieur Ramos”

P.20 PORTFÓLIO P.32 INÉDITO E ENTREVISTA

Dina Almeida

Urbano Tavares Rodrigues

P.36 ARQUITECTURA DE PALCO

Começou a publicar há mais de cinquenta anos. “Os Cadernos Secretos do Prior do Crato” são a sua última obra que é, mais uma vez, um desejo de reflexão antropológica com o leitor. Urbano Tavares Rodrigues cruza vários fios. Homem sedutor e generoso, é difícil traçar um retrato preciso de alguém que permaneceu fiel às suas convicções e à ética que lhe sustenta a literatura e a vida.

P.38 GASTRONOMIA

“A ruptura persistente”

“As receitas do Dr. Elias” “O Túlio”, por Jacinto Galião de Tormes

P.40 MEMÓRIA

Director/ Ricardo Paulouro Director-adjunto/ Pedro Leal Salvado Chefe de Redacção/ Margarida Gil dos Reis Produção executiva/ João Paulo Alexandre Colaboram neste número/ António Melo, António Valdemar, Bruno Pereira, César Rodrigues, Francisco Elias, Jacinto Galião de Tormes, Luiz Antunes, Manuel da Silva Ramos, Marta Lança, Paulo Oliveira, Pedro Fiúza, Pedro Teles Ramos, Rita Barata Silvério, Rui Pelejão Marques, Urbano Tavares Rodrigues, Vasco Paulouro Neves Design Gráfico/ contiudo.com | David Duarte, Nuno Lages, Tânia Belo Foto de Capa/ Margarida Dias Fotografia/ Adriano Batista, António Supico, contiudo.com | David Duarte, Dina Almeida, José Pedroso, Margarida Dias, Nelson Fernandes / Paulo Nunes dos Santos, Rui Dias Monteiro Ilustração/ José Mouga, Sicrano Agradecimento/ Olga Cruchinho Periodicidade/ Trimestral Tiragem/ 10.000 exemplares Impressão/ Mirandela Artes Gráficas Distribuição/ Gratuita Propriedade/ Associação Cultural A.23 | associacao23@gmail.com | www.contiudo.com | contiudo@gmail.com Número registo na ERC/ 125073 Morada e sede de redacção/ Rua dos Três Lagares - Edifício Laranjeiras, Torre 3, 6º - 6230 Fundão A.23 // 01


02 // TEXTO INÉDITO


,, Salâm´âli Kum (A Paz esteja contigo) Texto inédito | Urbano Tavares Rodrigues Ilustração | José Mouga

Estive duas vezes em Beirute, a segunda com certa demora, era ele ainda criança, de olhos azuis, e parecia envolto num sonho de luz. A mãe, que continuava linda e o adorava, tornei a encontrá-la várias vezes por esse mundo. Não fui ao Líbano durante a guerra, mas os bombardeamentos cirúrgicos de Israel, que visavam limpar a cidade dos terreristas do Hezbollah e fizeram milhares e milhares de vítimas cívis, troaram dentro de mim, dolorosamente. Imaginei-o, teria ele já uns dezoito anos, a vaguear, como me contaram uns amigos comuns, pelas ruínas que em três ou quatro dias tornaram o centro da cidade e sobretudo as zonas mais pobres, grandes caixotes uniformes de betão, num campo de morte, sangue e soluços. Consigo vê-lo, indiferente como era a quase tudo, habituado até ao luxo fácil, abrindo agora os olhos para aquele horror, a tropeçar em cadávares de crianças e velhos com a espinha quebrada, por entre vazos de sol, a vida teimosa, a renascer. Acotevelavam-se, empurram-se os maqueiros e algumas ambulâncias, insuficientes, temtam salvar feridos, que ainda emergem dos escombros, onde poisam abutres atentos. Aqui estive há muito tempo, e numa missão de paz, mas era outra a paisagem urbana. Salve, violência dos mais fortes e bem armados, que aqui atinges o extremo tolerado da crueldade à distância. Estes corpos sem cabeça, as jaulas de sons indistintos, algum apelo de socorro que ainda vem do monstro, botas esburacadas que perderam as pernas de quem as calçava. Um ancião de turbante que parece sonâmbulo, ou dopado, cumprimenta aquelas faces silenciosas, como que de cinza, geladas, sem reacção: Salâm´âli Kum (a paz esteja contigo). Imagino o teu rosto de adolescente mimado, que tem comido pão de flores e sofrido uma solidão forrada de conforto. Isto dói, por dentro. Vejo-te estremecer com os ruídos pedregosos dos novos aluimentos. Nunca tinhas visto tectos a caírem, fachadas desmoronadas, onde as velhas, embiocadas no seu desespero, sentadas na pedra da tristeza sem remissão, choram os seus mortos e os seus bens perdidos para sempre, até a cama do seu dormir onde tinham esperado acabar tranquilas. Pergunto-me se a tua revolta, que naquele momento te endureceu, vai até à raiva. Tal como a tua mãe te pinta, nas raras cartas que me escreve, vives um pouco alheio ao rumor do mundo, quase na contemplação de ti mesmo. Que já tiveste umas namoradas e foste com elas para a cama, mas ninguém te prende. Gostava de te perceber, não é fácil. Se não és insensível, que se passa contigo? Moves-te habitualmente no círculo de umas quantas famílias maronitas afrancesadas. E ricas. Não te entendes com essa gente. Leila chama-o para o grande divã de onde se lhe oferece a paisagem cosmopolita da Corniche, agora convulsionada por muitas correrias de gente nervosa, com pressa, os carros a buzinarem. O adolescente senta-se ao lado dela, sorrindo.

- Amas-me? Um bocadinho? - Não tenho a certeza. De quase nada, aliás. - As outras dizem que fazes sexo mecanicamente e não te prendes, não pegas no telefone ao menos para mandar um beijo, para dizer que existes. - Queres dar uma volta por essas ruas? Vamos a Rachid Karane, ou a Achaafiel, o fim de tarde está bonito. Ou vamos a Raouche. Está toda a gente a querer partir, pisam-se uns aos outros, um delírio. A indignação contra os bombardeamentos já chega aqui. É o medo. - Não fujas à questão. Olha, já pensei se não reagirias melhor numa relação homosexual. Porque não experimentas? - Não Leila, não é que tenha preconceito, mas não sinto qualquer atracção por homens. - Então? - Não sei. Preciso de um encontro comigo. E com este mundo. O aeroporto tinha sido bombardeado, mas já funcionava, com poucos voos. Havia epidemias na cidade, causada pela dificuldade de sepultar os mortos. A sujidade, irmã da miséria e do abandono, alastrava pelas zonas incessantemente flageladas. Em dado momento gerou-se o pânico, quase geral. A empresa de navegação tinha vendido bilhetes a mais e os passageiros defraudados protestavam, imploravam, tentavam forçar o acesso às escadas. Já vi espectáculos semelhantes no Médio Oriente, o que me permite conceber os atropelos, ouvir os gritos de indignação e de ódio. Porque não eram as pessoas importantes que ficavam em terra. As vidraças da estação pareciam inclinar-se sobre a ansiedade e a decepção da turba, que empurrava os felizes possuidores de passagens, suportando depois os bastões da polícia. Lá em cima, na amurada, ainda mais impenetrável e belo do que de costume, o adolescente mirava a cena. Que pensou naquele momento? Foi um desgosto imenso que o abalou ou teve uma espécie de iluminação? Afastou-se lentamente da amurada, onde muitos passageiros pareciam absortos naquele tumulto e outros melancolicamente se despediam da existência que ali deixavam e fitavam Raouche e a Rocha dos Pombos. A mãe não o viu voltar as costas ao perturbante espectáculo. Poucos tripulantes o adolescente cruzou no seu caminho. A sala das refeições não era deslumbrante, mas tinha um mínimo de conforto. Nos corredores acendiam-se luzes, ultimavam-se limpezas e arranjos nos quartos. Quando ele chegou à piscina, viu-a com satisfação deserta. O céu entretanto abrira e um sol de chama e lágrimas espelhava a superficie da água, quase a sublimava. Adónis ajoelhou-se à beira da piscina, debruçou-se sobre esse espelho, viu surgir nele o rosto pálido, as feições perfeitas, o pescoço de lírio, osseus interrogativos olhos azuis, e foi-se aproximando mais, um pouco mais, até que mergulhou mesmo na água, em si, e foi nadando para baixo, para o fundo muito branco e depois ao acaso, rente à pedra lisa, até deixar de respirar. [x]

TEXTO INÉDITO // 03


,,

Sinais

+

+

+

-

A justiça, garante da liberdade Numa altura em que cada vez mais os políticos no poder tentam calar as críticas dos seus adversários com o recurso aos tribunais sob a capa de pretensos atentados à honra e bom nome pessoais, está de parabéns a justiça local ao absolver os dirigentes do Bloco de Esquerda e do PCP das acusações do autarca covilhanense Carlos Pinto. Seja este um sinal de que os tribunais continuarão a ser o garante da liberdade de expressão política, não cedendo à tentação fácil do proteccionismo excessivo do poder. TMG, uma referência nacional Mais de 109 mil pessoas foi o número de espectadores e utentes do Teatro Municipal da Guarda no último ano. O número foi revelado num balanço apresentado pelo Director do TMG, Américo Rodrigues, durante a sessão comemorativa do 3º Aniversário do Teatro, que decorreu no Café Concerto com a presença do Director Geral das Artes, Jorge Barreto Xavier. No último ano, o TMG promoveu e produziu 339 sessões, às quais assistiram 45014 pessoas. Somando a este número os participantes em actividades organizadas por outras entidades (2906) e os utilizadores do Café Concerto (61413), as actividades do TMG chegaram a mais de 109 mil pessoas, durante o terceiro ano de funcionamento do teatro. A taxa média de ocupação global de todos os espaços do TMG foi de 61,02 por cento, subindo quase 5 pontos percentuais relativamente ao valor do ano passado, em que a taxa de ocupação se fixou nos 56,34 por cento. Desde o primeiro ano de funcionamento, a taxa de ocupação dos espaços tem vindo a aumentar, com estes números, o TMG posicionou a Guarda como uma referência das políticas culturais ao nível nacional e um oásis ao nível regional Teatro Clube de Alpedrinha Está de parabéns a Associação Teatro Clube de Alpedrinha pela realização do 1º Festival Aragens. Durante um mês Alpedrinha vibrou e dançou ao som da melhor música pela mão de vários Dj´s que encheram a vila com sonoridades pop, electrónicas, passando pelo indie e pelo rock. É um sinal de que em Alpedrinha há vida para além dos Chocalhos e que os jovens desta vila que já foi sede de concelho ainda acreditam que é possível através do associativismo mover uma terra. Além do Festival Aragens, a associação tem tido um papel fundamental ao nível da produção cultural, nomeadamente na promoção do teatro amador.

O dificil desmoer da Moagem Com um investimento a rondar os cinco milhões de euros, foi anunciada como o ponto final em “trinta anos de carências locais de cultura”. A Moagem, aberta ao público em 2006, como a Cidade do Engenho e das Artes, prometia um público pagante para o primeiro ano entre 20 e 25 mil pessoas, totalizando 100 mil euros de receitas. Passados dois anos, a montanha pariu um rato e a Moagem revela-se um espaço deficiente para aquilo a que se propunha: ser a grande casa da cultura da Beira Interior. Com um auditório com pouco mais de 100 lugares, com um palco proibitivo para espectáculos de média dimensão e sem conseguir cativar públicos locais e regionais, a Moagem é hoje um espaço sem identidade cuja gestão – quer cultural, quer das suas valências comerciais – se tem revelado difícil e confusa ao ponto de estar hoje a cargo da Empresa Municipal de Turismo, empresa sem qualquer vocação ou competência na área cultural.

,,Política,

opinião pública e justiça na Beira Interior

Texto | Bruno Pereira

Para começar, reconheço que provavelmente o título que ilustra este pequeno texto poderá ser algo pretensioso, dada a vastidão e complexidade do tema, mas, contudo, na esteira dos três casos da vida real que vos entreterão nos próximos minutos, penso que ficarão com uma ideia de como a política se cruza com a justiça na sindicância de decisões tomadas na nossa região e de como, através do recurso aos abundantes processos por difamação, se tenta cercear a actuação dos (poucos) actores políticos na Beira Interior e, em consequência, fazer da opinião pública a opinião do “respeitinho” e do país “engravatado todo o ano / que se assoa na gravata por engano”. 1) Num país onde as listas de espera para cirurgias na especialidade oftalmológica chegam a ultrapassar os dois anos, com risco iminente de cegueira – em grande parte dos casos clínicos – inaugura-se, com pompa e circunstância, uma moderna clínica privada dedicada a essa especialidade médica em que os sócios são os responsáveis por tal departamento no Hospital público da cidade. Uma semana depois da faustosa inauguração sabe-se que esse Hospital público vai deixar de ter essa especialidade, transferindo-a para um outro Hospital que se situa a mais de 60 quilómetros. Apresentei queixa junto do Ministério Público pelo que me parecia indiciar a existência de um crime - participação económica em negócio - expondo, de forma pública, os argumentos de tal decisão: fui condenado ao pagamento de uma multa de 1800 euros pelo Tribunal da Relação de Coimbra pela comissão do crime de difamação, depois de, no Tribunal Judicial de Castelo Branco, ter sido absolvido, porque, nas palavras do Juiz, “ter agido num dever de cidadania”. Apenas mais dois pormenores: o recurso dos Srs. Médicos foi subscrito pelo ex-ministro Morais Sarmento, sócio desse “grande” escritório de advogados “PLMJ & Associados”, e o processo que foi iniciado com a minha participação-crime foi arquivado, sem sequer se ter procedido à audição dos participados - apesar de a lei o assim o determinar -, e que o Sr. Juiz do Tribunal de 1ª instância ter determinado motu proprio a abertura de um inquérito pelos factos testemunhados em audiência contra os mesmos participados (que não se sabe onde anda…). 2) Num país onde a propalada honra e bom nome tem, seguindo a jurisprudência (ainda) dominante, maior protecção do que a liberdade de expressão e em que o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem vem, constantemente, afirmando o contrário por decisões unânimes, condenando esse mesmo país ao ressarcimento dos danos provocados aos que ousam denunciar alguma situação da “cidade e do mundo”, existe um Presidente de Câmara que, utilizando os dinheiro de todos nós, não tem qualquer pejo em participar criminalmente daqueles que, satiricamente (veja-se o caso do blog “chicken charles”) ou frontalmente, ousem questionar ou duvidar dos actos administrativos adoptados por tal autarquia, esta resolve

vender - diferente de concessionar ou licenciar - metade da empresa que abastece a população do concelho de água, um monopólio natural de um bem escasso que, por força desta decisão contrária à Lei da água (que, bem ou mal, só permite a concessão ou licenciamento de tal bem que quer público) vai passar a ser privado para SEMPRE! Apresentei queixa perante o IGAT (agora IGAL) e intentei uma providência cautelar para suspender um acto ferido, na minha opinião, de nulidade: o Sr. Presidente, através da autarquia (pois somos todos nós que vamos pagar), apresentou queixa por... difamação e o diligente Ministério Público da Covilhã acusou-me da prática de cinco - 5 - crimes de difamação (uma por cada vereador da maioria camarária), correndo o risco de pagar uma indemnização cível de... 38.500,00 euros!! Requeri a abertura de instrução e, nessa sede, a Sra. Dra. Juíza do Tribunal Judicial da Covilhã proferiu despacho de não pronúncia, ilibando da prática de qualquer crime pois, nas palavras da Magistrada, caso assim não fosse, em vez de estarmos a construir uma sociedade livre e plural, estaríamos a abrir caminho para a ditadura. 3) Num país onde quem, transitoriamente, detém o poder utiliza todos os meios legais para dissuadir qualquer crítica política e onde, normalmente, o poder jurisdicional serve de amparo a tais pretensões, é preciso algum cuidado com as palavras, sobretudo quando se apoda alguém de cobarde, contudo, como se pode ler no livro mais vendido do mundo “a verdade libertar-te-á”. Apelidei de cobarde a acção de um Presidente de Câmara por este se ter eximido às suas responsabilidades de representante máximo da autarquia que dirige. O Exmo. Sr. apressou-se a acusar-me de difamação. O Ministério Público, por diligência simples efectuada em sede de inquérito (a audição do ora signatário), chegou à conclusão que, na verdade, o Sr. Presidente se eximiu das suas responsabilidades e, na crueza das palavras, ter tido uma acção... cobarde. O Sr. Presidente requereu a abertura de instrução, tendo havido despacho de não pronúncia porque, na fundamentação invocado na decisão judicial, as pessoas que actuam politicamente e, por isso, publicamente, tem de saber conviver com tal género de críticas ou expressões, digamos, mais apelativas. Com estas três situações reais e ainda vivas nos areópagos da sociedade portuguesa, pretendo somente alcançar um cristalino objectivo: dar força a todos aqueles que, por vontade ou dever (no sentido Kantiano do termo), se interessam pela “coisa pública” e pela melhoria da qualidade de vida de todos, para que utilizem os meios legais que a democracia colocou ao alcance dos cidadãos e, em consequência dessa luta desigual, levar à inversão da realidade ainda vivida na maioria dos Tribunais portugueses e destronando a mentalidade dos homens providenciais e da cultura do “respeitinho” bafiento e que apenas contribui para que sejamos dos países menos progressistas da União Europeia. [x]


,, Concursos sem público Texto | Pedro Leal Salvado Ilustração | SicRano

Um dos princípios basilares do Estado de Direito no que concerne à actuação da administração pública, assenta no facto de a lei obrigar a Administração a fazer uso do procedimento do concurso público na contratação com privados. O objectivo da lei na criação da regra dos concursos públicos é óbvia: assegurar a igualdade de tratamento entre todos os fornecedores privados, evitando possíveis favorecimentos, do mesmo modo que assegura através da aceitação de várias propostas que o fornecimento, obra ou prestação de serviços seja a menos onerosa para os dinheiros públicos. Sucede que tal regra é lesiva dos interesses particulares dos órgãos que compõem a Administração Pública, uma vez que a politica depende muitas vezes de compromissos - eleitorais, partidários e outros -, que pela via dos concursos públicos tornam-se difíceis de cumprir. A verdade é que é habitual - e cada vez mais, infelizmente -, o recurso a estratagemas jurídicos para uma fuga aos concursos públicos, de modo a conseguir apurar um vencedor de antemão ou, no mínimo, restringir ao mínimo o número de candidatos. A mais comezinha estratégia é a da publicação dos anúncios do concurso em jornais que apenas os “vencedores pré-determinados” têm acesso, ou seja, o anúncio do concurso é feito num jornal sem qualquer expressão de leitores o que, a grande maioria das vezes, faz com que o comum dos candidatos interessados nem sequer se aperceba que o concurso existiu. Quando falha aquele primeiro estratagema, parte-se então para o mais descarado, o de descrever o “candidato vencedor” nos requisitos de admissibilidade ao concurso, chegando-se ao ridículo de um anúncio publicado há uns tempos para admissão ao quadro de uma secretária de uma Câmara Municipal, em que se inscreviam os seguintes requisitos: “licenciatura em engenharia aeronáutica, com pós-graduação em comunicação social, com dois anos e meio de prática profissional”…mais claro só inserindo “o candidato deve ser portador do Bilhete de Identidade número...”… Esta, conveniente diga-se, fobia aos concursos públicos por parte dos governantes desvirtua por completo aquele princípio basilar de qualquer Estado de Direito e abre - escancara mesmo - a porta ao favorecimento pessoal e politico de determinados candidatos, obviando à transparência a que o gasto de dinheiros públicos obriga, ou que deveria obrigar. Mas se a situação é grave nos concursos de admissão de pessoal, mais grave se torna ainda nas adjudicações de projectos e obras, e é mais grave não ao nível da violação da lei e dos princípios do estado de direito, mas pelos valores envolvidos neste tipo de concursos. Embora a Lei torne mais

difícil a fuga ao concurso público nestes casos, a verdade é que insistem o Estado e as Autarquias Locais em tornear a lei e viciar os concursos públicos, atribuindo projectos, empreitadas e todo o tipo de obras a quem bem entendem. O mais pernicioso de todos estes processos de verdadeira fuga à legalidade é que os prejudicados nos concursos públicos viciados, sabendo que o Poder pode viciar a seu bel-prazer os procedimentos legais e, na esperança que amanhã os viciem em seu favor, calam-se e preferem não denunciá-los, pactuando e eternizando a corrupção e subversão de todas as regras. Quem sofre a final somos todos nós, pois é o erário público, ou melhor, os nossos impostos, que paga depois as quantias astronómicas aos vencedores viciados - que, diga-se acabam por ser sempre os mesmos… O caso autárquico Se a nível do Governo a fuga aos concursos públicos têm um reflexo menos directo nas finanças do comum cidadão, dado que o Governo tem virtualmente saldo ilimitado, já a nível autárquico o desbaste dos dinheiros públicos em benefício de privados tem consequências directas e por isso mais gravosas nos bolsos do cidadão. Ao fugirem aos concursos públicos nas adjudicações de grandes projectos e obras, as autarquias contraem empréstimos avultados a prazos a perder de vista. Há que realçar que o concurso público permite a concorrência de fornecedores que, em ultima análise, leva à apresentação de preços de execução mais baixos e, consequentemente, com custos menos pesados para a autarquia. Ora, duas consequências sobressaem de imediato: por um lado, hipoteca-se o futuro do município e, por outro lado, os municípios para fazerem depois face às despesas correntes recorrem à imposição de variadas taxas aos cidadãos. Tudo em prol do favorecimento do privado A ou B. Concretizando, centremo-nos no recente concurso levado a cabo pela Câmara Municipal do Fundão para a adjudicação do projecto de remodelação do Cine-Teatro Gardunha. Para a realização do referido projecto escolheu a Autarquia uma certa empresa e, reafirme-se, escolheu pois fê-lo por adjudicação directa - ou seja, sem qualquer tipo de concurso -, sem mais. O preço total do projecto foi de 412.000,00 euros. Alguém poderia ter apresentado um projecto de valor inferior? Não poderemos saber, uma vez que houve apenas um único projecto. Mas como conseguiu a Câmara Municipal atribuir a quem bem entendeu o referido projecto? Sem entrar em questões

jurídicas e explicando de uma maneira simples, fez o seguinte: abriu um primeiro concurso para a elaboração de um Estudo Prévio - ou seja, um estudo de viabilidade - para a remodelação do Cine-Teatro Gardunha, atribuindo como valor do concurso um valor que permitisse um concurso não público, mas limitado, por convite. Neste concurso convidou cinco empresas, sem qualquer apresentação de currículos na área na qual se propunham fazer um estudo prévio, no lote das quais se incluía uma empresa de projectos de estradas e túneis…Este concurso foi “ganho” por uma determinada empresa, que entregou o estudo prévio e que foi paga. A história deveria acabar aqui, mas não. Sob o pretexto de “protecção de direitos de autor”, entregaram a elaboração do projecto de remodelação do referido imóvel à empresa “vencedora” do primeiro concurso…Uma ilegalidade do tamanho do próprio cinema. É verdade que a Lei protege os direitos de autor, mas só permite a adjudicação sem concurso público com este fundamento se, e passo a citar “o fornecimento dos bens ou serviços apenas possa ser executado por um locador ou fornecedor determinado”. A pergunta é óbvia: o projecto de remodelação do Cine-Teatro Gardunha só pode ser feito pela empresa Bernardo & Bernardo?...sim, mas só se todos os arquitectos do mundo trabalharem nesta empresa… Confrontada com esta ilegalidade a Câmara Municipal - quer através do seu presidente, quer através dos órgãos partidários locais -, limitou-se a responder que “foi seguido o procedimento habitual nestes casos” e que “se trata de meras formalidades”…ou seja, o à-vontade já é tal que uma questão de violação da lei nada mais é que “uma mera formalidade”… E, se é este “o procedimento habitual” nestes casos, quem sabe quantos milhares de euros são gastos anualmente sem qualquer tipo de concurso público, milhares que poderiam ser substancialmente menores se tem havido concorrência na adjudicação dos projectos e obras, pois é fácil de entender que a probabilidade de entre 100 ou 1000 candidatos haver um projecto economicamente mais vantajoso para a Autarquia – para todos nós – é infinitamente maior do que dando o projecto directamente a um candidato determinado. Neste último caso pagamos todos nós o preço que o candidato “escolhido” pedir, seja 400.000,00 euros, seja 1.000.000,00 euros… O sistema de adjudicações está actualmente viciado, com as regras do jogo a serem moldadas ao sabor das necessidades e compromissos dos órgãos adjudicantes e negligenciando o interesse público, acabando-se por gastar substancialmente mais do que aquilo que se gastaria havendo concursos públicos. [x]

OPINIÃO // 05


No passado 6 de Agosto, o presidente Georgiano Mikhail Saakashvili ordenou às forças armadas Georgianas que iniciassem um ataque contra a auto-proclamada região independente da Ossétia do Sul. Segundo o governo de Moscovo, este ataque, que culminou com a morte de cerca de 1500 civis somente na capital Ossetia de Tskinvali, foi iniciado com a intenção de fazer uma limpeza étnica de Ossétios de origem Russa. Acusações que o governo da Geórgia recusa terminantemente.

Guerra no Cáucaso

,, O Mundo depois da Geórgia

Como retaliação, a Russia envia apoio militar para a Ossetia do Sul e desencadeia um ataque contra as populações Georgianas vizinhas, sendo Gori, a terra natal de Stalin, a cidade mais afectada pelos bombardeamentos da aviação russa. Gori tem uma população de 40 mil habitantes e, segundo dados oficiais das Nações Unidas (ONU), cerca de 95% da população terá deixado as suas casas em direcção a capital Tbilisi. Segundo as últimas estimativas oficiais da ONU, cerca de 192 mil pessoas terão sido afectas directamente pelo conflito na Ossetia. De acordo com os números apresentados, 127 mil pessoas estarão agora deslocados dentro da Georgia, 30 mil deslocados dentro da região da Ossetia do Sul e 35 mil pessoas terão abandonado as suas casas para encontrar refúgio na Ossetia do Norte e na Rússia. A Rússia detém agora o controlo no que diz respeito ao acesso às zonas separatistas da Abhkazia e da Ossetia do Sul, tendo destacado forças de manutenção de paz para as zonas circundantes estratégicas para algumas localidades em território da Georgia. O governo de Moscovo reconheceu também a independência e autonomia destas zonas separatistas. Após várias semanas de pressão por parte do mundo ocidental e intensas negociações com a União Europeia, a Rússia admite uma retirada total destes territórios dentro de um a dois meses. 06 // FOTO ENSAIO

1


Foto 1 - Uma refugiada Georgiana à espera que o tempo passe à porta do seu quarto no antigo edifício do Exército Vermelho Russo em Tbilisi. Cerca de 1500 pessoas abandonaram de suas casas nas localidades vizinhas de Tskinvali, a principal cidade da Ossétia do Sul, aquando do início do conflito entre as tropas Georgianas, Russas e Ossétias, para encontrar refúgio em habitações improvisadas na capital da Geórgia. Foto 2 - Um habitante de Gori tenta recuperar o que sobra dos escombros da sua casa bombardeada pelas tropas Russas no início do mês de Agosto. A população começa a regressar ao que resta das suas casas, em busca dos corpos dos familiares mortos no conflito e dos bens que possam ainda ser recuperados. A reconstrução é agora uma prioridade. Foto 3 - Edifícios destruídos pelos bombardeamentos e ataques do exército Russo na cidade de Gori entre 7 e 12 de Agosto. Foto 4 - Um habitante de Gori, vítima dos bombardeamentos russos, numa cama de hospital. Cerca de 1500 civis terão morrido aquando dos ataques levados a cabo pelas tropas russas contra várias localidades perto de Gori. Estes ataques ocorreram como retaliação pela tentativa do governo georgiano de retomar controlo da região separatista da Ossétia do Sul.

3

2

4

FOTO ENSAIO // 07


5

6

08 // FOTO ENSAIO

7


Foto 5 - Uma mulher sentada à porta de uma loja na vila de Variani nos arredores da principal cidade da região separatista da Ossetia do Sul, Tskinvali. As tropas russas tomaram controlo militar das regiões separatistas de Abhkazia e Ossétia do Sul desde o declarado cessar-de-fogo assinado dia 12 de Agosto entre os governos de Moscovo e Tbilisi, após cinco dias de intenso conflito. Foto 6 - Uma mulher de origem Ossetia num táxi a caminho da sua vila Shindisi, nos arredores de Tskinvali, a principal cidade da região separatista da Ossetia do Sul. As forças de manutenção de paz Russas controlam agora toda a área circundante a Tskinvali. Foto 7 e 8 - Uma coluna militar Russa passa numa estrada entre as vilas de Shindisi e Pkvenisi, perto da principal cidade da região separatista da Ossétia do Sul. Uma força militar Russa de manutenção de paz tomou controlo da area circundante a Tskinvali desde o cessar-de-fogo declarado a 12 de Agosto pelas tropas Russas e Georgianas. Foto 9 - Autocarro escolar passa controlo das forças militares Russas, limitando a estas a entrada de ajuda humanitária ocidental e barrando o acesso a jornalistas estrangeiros.

8 PERFIL PAULO NUNES DOS SANTOS Nascido em 1977, no Nordeste Transmontano, onde passou grande parte da sua infância e adolescência, mudou-se, em 1998, para Lisboa para estudar Ciências da Comunicação, onde deu os primeiros passos no mundo do fotojornalismo. Terminado o curso universitário, colaborou como jornalista em várias publicações a nível nacional. No início de 2003, decidiu deixar o país e ingressou numa viagem pela Europa, estabelecendo-se finalmente na República da Irlanda, onde actualmente reside e trabalha como fotojornalista em regime livre. Nos últimos anos, tem viajado e fotografado gente e lugares da América do Sul, Ásia, Pacífico do Sul, Norte de África e Europa. Durante estas viagens, tem criado alguns projectos pessoais que resultam em reportagem fotográficas que dão exposição à realidade, problemas sociais e conflitos do mundo actual.

9

Colabora actualmente com a agência Alisei Press O seu trabalho pode ser visto em: www.paulonunesdossantos.com

FOTO ENSAIO // 09


Spain is different Texto | Rita Barata Silvério (escreve diariamente no blog www.rititi.com) Fotografia | contiudo.com | David Duarte

,,Levante-se o réu Tribunal Europeu Acusada. A união europeia “arguida” no processo de promoção da precariedade no trabalho, como no aumento da semana de trabalho para as 60 horas, abdicando de décadas de evolução e progresso social, em detrimento da visão neo-esclavagista das economias emergentes, nomeadamente China e Índia. O Estado Social Europeu, princípio basilar da União Europeia, é hoje uma miragem, mostrando-se a Europa dos 25 impotente para se afirmar como uma força económica autónoma e defensora dos direitos, liberdades e garantias do cidadão europeu.

Supremo Tribunal Absolvido. Condenado em 1ª instância por ter “metido o socialismo na gaveta” na década de 1980 e acusado de uma aproximação exagerada à Direita, Mário Soares recorreu e apresenta-se actualmente como a mais forte voz discordante da política levada a cabo pelo governo socialista. O Réu mostra-se preocupado com a falta de políticas sociais e o abandono dos mais carenciados e desfavorecidos, tentando abrir a gaveta onde o socialismo parece estar esquecido.

Tribunal de Comarca Culpado. O presidente da associação comercial e industrial do Fundão, Rogério Hilário, que contra a vontade dos comerciantes e contra os interesses do comércio tradicional defendeu e continua a defender os parquímetros no centro da cidade. Um caso notório de subserviência aos interesses da Câmara Municipal. Absolvido. Um caso que abalou a região e o país e que colocou no centro do debate político e jurídico a importância cada vez maior dos blogues como espaços de crítica e debate livre, principalmente a nível local, terminou com a absolvição de Chicken Charles das acusações por parte do presidente da Covilhã de difamação. Saiu vencedora a liberdade de expressão na blogosfera.

Lá pelos anos 60, quando meio mundo ocidental tripava por universos paralelos ao som de baladas antibélicas, o generalíssimo Franco achou que já era hora de modernizar a isolada mas pitoresca Espanha abrindo o areal do Mediterrâneo à sempre gratificante industria do Turismo. Umas suecas em biquíni devem fazer mais pelo avanço civilizacional do país que umas eleições livres, imaginou o velho desde os jardins do Pardo, e aproveitando os extensos areais das praias alicantinas e a capacidade de fabricar paellas às toneladas, o ditador pensou a campanha publicitária com maior transcendência política, económica e social dos tempos modernos: venham, amigos da Europa democrática, conhecer este paraíso de sol e praia, onde todos os homens são toureiros e as mulheres dançam flamenco em cada tasca; passem e vejam, senhores, este oásis de tradição e prédios de trinta andares em Benidorm, porque, amigos do Benelux, Spain is different. E tanto. Se Portugal teimou apresentar-se ao mundo como uma espécie de Viriato analfabeto orgulhosamente só, Espanha agarrou-se ao slogan franquista para atrair turistas, negociar fundos estruturais da CEE ou negar-se a proibir as corridas de touros. Con dos cojones. E este Spain is different sobreviveu à morte de Franco, à Transição democrática, ao filipismo e a Mario Conde, aos Jogos Olímpicos de Barcelona, ao nascimento das revistas do coração, ao 11-M e à boda do Príncipe Filipe. E até a Zapatero, o líder da Aliança de Civilizações e do anti-tabagismo e homem empenhado em modernizar esta Espanha casmurra pelos hábitos higienizantes e paritários da Europa alérgica aos ácaros e ao queijo sem pasteurizar. Os que vivemos deste lado da fronteira damos fé da insistência obstinada em ser diferentes do resto dessa UE longínqua, globalizada e anestesiada por decretos de lei, regulamentos ministeriais e normas de carácter global e indiscriminado que saem da imaginação legislativa de um grupo de burocratas de Bruxelas. Mas também sejamos sinceros, que mal tem regular a limpeza das cozinhas dos colégios, proibir fumar em hospitais pediátricos ou legislar o fabrico de croquetes e chouriços artesanais? Nenhum. Mas também não parece ser esse o ponto da questão: uma visita rápida à página web do Ministério de Saúde e Consumo do Governo de Espanha dá-nos a ideia do estricto cumprimento da legislação europeia, nacional e autonómica, como se não houvesse espaço para a improvisação na vida pública e sanitária espanhola. Aqui não faz falta a ASAE, pois tudo parece estar mais que regulada, atado e inspeccionado pelo Instituto Nacional do Consumo, a Agência Espanhola de Segurança Alimentaria e Nutrição ou de Medicamentos e Produtos Sanitários. Hoje não se pode comprar uma morcela

sem que esta esteja devidamente embalada ao vazio, etiquetada e validada pelo Ministério e a Comunidade Auntónoma respectiva, para não falar já dos queijos com a obrigatória dominação de origem, os vinhos catalogados segundo as regiões vinícolas definidas pelo Governo e as carnes identificadas segundo a raça do animal. Trata-se de um debate sobre as formas e como mexem estas directrizes normalizadoras com tradições, modos de viver o quotidiano e, sobretudo, com o que a maioria do povo pensa que é a vida privada. E se Spain is different é porque se posiciona a priori como dona de umas tradições supostamente ancestrais, como se Espanha como conceito já existisse antes da Pré-Historia, os Iberos tivessem inventado a Tauromaquia, o jamón fosse património exclusivo das tribos de Altamira e já os Reis Católicos celebrassem a Feira de Abril dançando sevilhanas e bebendo Fino La Ina lá pelo século XV. Mesmo que a Directiva 93/119/CE, de 22 de dezembro de 1993, proíba o sofrimento do porco nas matanças tradicionais, as corridas de touros estão protegidas pela UE por serem consideradas um bem cultural. Se Europa proíbe fumar, Espanha responde que depende de onde e assim legisla na particularidade e se Zapatero propõe a criação de uma Comissão Nacional de Regularização de Horários os cronistas, escritores e pensadores públicos lançam uma campanha de mofa e escárnio de tal magnitude que faz esquecer a ideia em três tempos. E enquanto o meu Portugal encolhe os ombros e afirma que “aqui já não se pode fumar” e os clientes que vão morrer de cancro para o olho da rua e aponta a ASAE como o maior dos males sem antes saber quais as implicações reais e até positivas de inspeccionar restaurantes, casas de pasto e cozinhas de senhoras que fazem croquetes, Espanha está empenhada a defender o que considera como autóctone, nem que para isso tenha mandar comissários defender tradições inventadas a Bruxelas. Mesmo que o queijo da Serra da Estrela seja fabuloso, acontece que o da Serena é vendido como o único no mundo que utiliza os mesmo métodos tradicionais que na época medieval. E se em Portugal só se ouvem premonições sobre o Fim do Mundo e dos métodos de manufactura ancestrais, em Espanha, desculpem lá, tudo o que seja etiquetado como tradicional é sinónimo de exclusividade e vendido em lojas de gourmet a preço de ouro. Sim, Spain is different e se calhar a Portugal também não lhe fazia mal nenhum deixar-se de vitimizações patéticas e começar a apresentar-se como um país que tem algo mais de que orgulhar-se e que defender um ser mal-encarado chamado Mourinho e uns quantos campos de golf no Algarve.[x]


,,Call Centers

Um Far West em Portugal Texto | César Rodrigues

Os Centros de Atendimento (CA) tornaram-se, em Portugal, um importante sector de empregabilidade, imitando a tendência internacional1. No entanto, o desconhecimento da actividade a nível estatal, juntamente com a ausência de regulamentação do sector no que aos recursos humanos diz respeito, bem como a ignorância da população sobre o que realmente neles se passa no que concerne às competências dos trabalhadores e aos efeitos que tal actividade pode ter na saúde dos mesmos, torna-o num subgénero do mítico Far West. Tratemos com a profundidade que o espaço deste artigo permite cada uma das dimensões acima enunciadas, começando por ter em consideração que este universo apresenta forma variáveis em dimensão e competências profissionais, facto que depende da natureza da actividade económica na qual se integra o CA. Assim, nos diversos sectores que recorrem aos seus serviços, a escala varia entre os dois trabalhadores até às centenas e o trabalho realizado poderá ir da informação simples, passando pelo Marketing, até à prestação de serviços mais complexos, como é o caso dos sectores de telecomunicações, assistência na saúde, banca, entre outros, os quais reclamam ao trabalhador competências elevadas (linguísticas, informacionais, isto é,

11º ou 12º ano”.2 Quando à intervenção do Estado neste sector, relevamos a contradição patente no facto de que nos diversos sectores económicos nos quais se recorre aos CA o Estado proceder à regulação da concorrência, ao mesmo tempo que descura a regulação do mercado de trabalho, visível tanto na falta de averiguação do cumprimento das regras laborais, como no desconhecimento do número de trabalhadores. Isto é observável, primeiro, no facto do Instituto Nacional de Estatística não ter definido um código para a profissão no âmbito da Classificação Nacional de Profissões (CNP) - instrumento que, entre outras valências, permite, como se pode ler no sítio do INE, “Tomada de decisões no âmbito do mercado de trabalho, designadamente, sobre regulamentação, formação e orientação profissionais”; e em segundo, quando o Gabinete de Estudos e Planeamento (GEP), do Ministério do Trabalho e da Solidariedade Social (MTSS), ao contabilizar apenas a existência de 402 trabalhadores no sector dos Centros de Atendimento subestima o número real de Assistentes existentes em Portugal.3 Este valor, que resulta da Classificação da Actividade Económica (CAE) regista apenas as empresas que declaram ser sua

que se constituem como ameaças ao bem-estar físico e psicológico dos trabalhadores. Por exemplo, Laville, em 1970, e Dessors, em 1978, identificaram algumas das consequências: “crises nervosas, modificações do comportamento e da personalidade, distúrbio de humor e de carácter, sensibilidade excessiva, irritabilidade e agressividade, ansiedade, dificuldades de ler e manter uma discussão, problemas de memória, perturbações da linguagem, empobrecimento do vocabulário”.5 Outro tipo de maleitas diz respeito aos efeitos físicos designados Osteomusculares, resultantes tanto com o stress resultante da actividade, como com as condições físico-ambientais (cadeiras e características das cadeiras, disposição dos computadores, etc. Como exemplo, um estudo realizado na Suécia, que utilizou a comparação entre o grupo de operadores e outro grupo constituído por diversos profissionais com características semelhantes quanto ao sedentarismo, tido como referência, identificou que os sintomas eram mais frequentes no grupo de Assistente e que as dores de cabeça, do pescoço e da região dos ombros eram as queixas mais frequências.6 Com este artigo pretendemos, principalmente, chamar a atenção para o facto de que, pelas razões atrás apontadas,

aplicações informáticas, gestão de conflitos, para além do domínio dos produtos da empresa e dos procedimentos de trabalho, alguns dos quais complexos, etc.). Importa ter isto presente por duas razões. Em primeiro lugar para se combater o estigma que a função de Assistente de Atendimento tem na população, o que ocorre talvez, por um lado, por manifesta falta de conhecimento e, por outro, pela precarização que caracteriza a actividade. Por outro lado, por saber-se que a concentração de serviços e de competências nos CA, benéfica para as empresas que a eles recorrem, não ter correspondência com a remuneração oferecida. De facto, são conhecidas as vantagens para as empresas - possibilitam a concentração de competências num serviço -, como também é sabido que os CA recorrem a mão-de-obra com qualificações mais elevadas do que a que substitui, embora, paradoxalmente, o aumento de qualificações tivesse sido acompanhado pela diminuição da remuneração. No estudo de caso que Ana Paula Marques e Maria João Santos realizaram sobre as “atitudes face ao trabalho” dos trabalhadores numa empresa de Telemarketing, constataram que “cerca de 47% [dos trabalhadores] possuem licenciatura ou frequência universitária” e “35% possuem o

actividade a prestação de serviço em Centros de Atendimento, pelo que não permite contabilizar o número de trabalhadores nos diversos Centros de Atendimento. Podemos, no entanto, socorrer-nos dos dados da Associação Portuguesa de Contact Centers 4, a entidade que congrega algumas empresas do sector. Esta associação apresenta o significativo número de 48 empresas associadas, distribuídas por diversos sectores de actividade. A este número de empresas corresponderá por certo uma quantidade expressiva de trabalhadores. Como exemplo, a empresa Teleperformance apresenta o número de 685 comunicadores, por si só superior ao número que é apresentado pelo GEP. Por outro lado, e apesar da crescente importância do sector em Portugal, escasseiam, no nosso país, estudos científicos sobre a actividade. É do nosso conhecimento apenas uma investigação apenas o universo. Nota-se a falta de investigações que abordem as dimensões que as investigações realizadas noutros países consideram importantes. Entre elas destacamos a análise dos efeitos prejudiciais da actividade, causados pelas condições físicas dos locais do exercício da actividade, do controlo e pressão típicos da organização taylorista do trabalho,

devem ser realizados estudos sobre este sector em expansão e os seus resultados serem considerados como instrumento reformador, no sentido de melhorar a regulamentação, para que desta forma se crie um ambiente saudável de trabalho e se distribuam melhor as vantagens resultantes da sua existência. [x] 1

“De acordo com a Datamonitor, o número de posições de Call Center na EMEA [Europa, Médio-Oriente e África] passaria de 1,5 milhões no final de 2003, para 2,1 milhões em 2008”, Maria João Santos e Ana Paula Marques, O caso dos Call Centers: organização do trabalho e atitudes face ao trabalho e ao emprego, in Sociologia, problemas e práticas, nº52, pp 67-86. 2 Idem. 3 http://www.gep.mtss.gov.pt 4 http://www.apcontactcenters.com. [ultimo acesso em: 23-01-2008]. 5 Júlia Issy Abrahão; Camila Costa Torres, Entre a organização do trabalho e o sofrimento: o papel da mediação da actividade, in Revista Produção, volume 14, pp 67-76, 2004. 6 Kerstin Norman, Tohr Nilsson, Mats Hagberg, Ewa Wigaeus Tornqvist, Allan Toomingas, Working Conditions and Health Among Female and Male mployees at a Call Center in Sweden, publicado on-line na Wiley InterScience, 2004 http://www3.interscience.wiley.com/cgi-bin/abstract/109075761/ ABSTRACT?CRETRY=1&SRETRY=0 [ultimo acesso em: 10-01-2008]

DOSSIER CIDADANIA // 11


,,A “pátria em chuteiras” “Pátria é a selecção nacional de futebol” Albert Camus

Álvaro Magalhães percorre a história e o entendimento do futebol desde os tempos mais remotos até aos dias de hoje. De como surgiu, a sua importância nas comunidades, o seu significado, o lado do praticante, o lado do adepto, num livro profusamente ilustrado. -

Texto | Vasco Paulouro Neves

No último mês de Junho realizou-se mais um campeonato europeu de futebol de selecções. Outra vez o mundo inteiro reduzido a uma bola de futebol. Nos dias de hoje, poucos acontecimentos são tão globais como o são um campeonato do mundo ou um campeonato da Europa de futebol. Essa é a força do beautiful game. Um fenómeno que consegue transcender todas as clivagens, sejam elas de natureza racial, social, religiosa ou geracional. Um desporto/ espectáculo que associado aos novos meios de comunicação adquire uma presença verdadeiramente global (a este propósito, é curioso perceber como a FIFA conta com mais membros do que a própria ONU). Hoje é inegável que o futebol, quer como cultura popular quer como produto da emergente indústria do lazer, ocupa um lugar central nas nossas sociedades. Como alguém disse, o futebol é o mais importante entre aquilo que não é importante. Uma das razões deste fenómeno social talvez esteja naquilo que Norbert Elias definiu como “descontrolo controlado das emoções”. Para este sociólogo, o futebol permite a busca da excitação em sociedades (as nossas!) inexcitantes e monótonas. As próprias características inerentes ao jogo (como a imprevisibilidade, a dramaticidade, o confronto físico, a competição, a divisão de tarefas ou até a disposição dos adeptos no estádio) oferecem ao espectador, de uma forma condensada e necessariamente simplificada, os dramas e as emoções da vida quotidiana. Seja qual for a razão da importância do futebol enquanto fenómeno social, no último mês de Junho ficou mais uma vez evidente a sua omnipresença. Todos nós, mais ou menos racionais, seguimos com total sofreguidão os jogos da “equipa de todos nós”. Na feliz expressão do escritor brasileiro Nelson Rodrigues, é o momento do “país em chuteiras”. Como sempre sucede neste tipo de ocasiões, os meios de comunicação optaram por fazer uma cobertura o mais imbecil possível do evento, destacando todos os

Álvaro Magalhães História Natural do Futebol Assírio & Alvim, 2004

fait-divers imagináveis ou exaltando um patriotismo de pacotilha e provinciano. É a altura em que o nacionalismo “coloniza” o futebol. O futebol constitui-se assim, enquanto prazer de massas, no fenómeno ideal para a produção e reprodução das narrativas e representações mais comuns sobre a identidade nacional, entendendo aqui que as nações se fundam em comunidades imaginadas, como brilhantemente expressou Benedict Anderson. A sua centralidade e importância cultural e social faz com que nos dias de hoje seja dos poucos fenómenos aos quais se pode apropriadamente aplicar o conceito de facto social total de Marcel Mauss. Ou seja, actualmente o futebol é dos poucos fenómenos que conseguem “mobilizar a totalidade da sociedade e das suas instituições”. Esta enorme visibilidade faz do futebol um meio privilegiado para, num contexto de crise dos Estadosnação provocado pelos processos de globalização, criar e recriar laços de pertença a essa comunidade imaginada que é a nação e a pátria. Paradoxalmente, o belo jogo é simultaneamente um actor da globalização e um meio de reforço das identidades locais e nacionais. O mais curioso nos discursos produzidos sobre a selecção nacional é que tanto podem produzir uma retórica de nacionalismo positivo como negativo, ou dito de outra forma, o discurso é afirmativo ou defensivo em função de uma bola entrar numa baliza ou bater caprichosamente na trave. Quando Portugal ganha é o reflexo de um pequeno povo que sabe superar-se. Ao invés, quando a selecção nacional perde é logo chamado à colação o típico fatalismo português, o nosso triste fado ou a nossa “típica” falta de organização e de influência. Quem leu os jornais portugueses no passado mês de Junho sabe do que estou a falar!

Pascal Boniface A Terra é redonda como uma bola. Geopolítica do Futebol Editorial Inquérito, 2002 O autor aborda o futebol de uma forma original, transmitindo-lhe profundidade no âmbito da política mas também falando de inúmeros casos particulares das selecções, dos grandes clubes e jogadores, contando histórias e pormenores interessantes. Afinal de contas, “o futebol é a bagatela mais importante do mundo.” -

Nuno Domingos e José Neves (org.) A Época do Futebol. O Jogo Visto pelas Ciências Sociais Assírio & Alvim, 2004 Um conjunto de investigadores oriundos das Ciências Sociais pesquisa e reflecte aqui sobre o tema do futebol, em conjunto com um cuidadoso projecto fotográfico que recolhe várias imagens que relacionam o futebol com a cidade. -

João Nuno Coelho Portugal: A Equipa de Todos Nós. Nacionalismo, Futebol e Media Edições Afrontamento, 2001 O sociólogo João Nuno Coelho leu todos os dias, durante um ano, os jornais desportivos Record, A Bola e O Jogo, para tentar perceber como estes jornais reproduziam discursos sobre Portugal, nos textos que se escreviam sobre a selecção portuguesa. Ele próprio um apaixonado do futebol, analisou de forma sistemática estes diários e tentou perceber os valores ligados à nação portuguesa numa perspectiva histórica.

12 // OPINIÃO


,, O ‘trabalho da língua’ do

Padre António Vieira Texto | António Valdemar ¨ Jornalista e membro da Academia das Ciências

O IV centenário do nascimento de António Vieira tem o mérito de nos aproximar de uma figura que viveu e marcou o seu tempo, projectando-se para os outros tempos e constituindo uma referência emblemática da língua falada hoje por mais de 200 milhões de habitantes de cinco continentes. Vieira nasceu em Lisboa e é quase um ignorado na sua cidade. Tem o nome inscrito na toponímia, mas numa rua vulgar, igual a tantas e tantas outras. Nunca se ergueu um monumento à sua memória. Até agora, no Panteão Nacional, não há um cenotáfio que o recorde. Apenas Columbano o integrou num dos retratos colectivos que se encontram nos Paços Perdidos do Palácio de São Bento. Esta é uma das raras homenagens que recebeu. A outra foi de Fernando Pessoa ao incluílo na “Mensagem” e exaltando-o como o imperador da língua portuguesa e dizendo que ele «foi-nos um céu também». -

Missionário, diplomata, político e génio literário, Vieira foi tudo isto. Ocupou quase por inteiro o século XVII - umas vezes, com os maiores privilégios e distinções, pelos êxitos alcançados, dentro e fora de Portugal; outras, marginalizado, suportando o travo da derrota, a crueldade e o silêncio do ostracismo. Exerceu influência assinalável no Portugal da Restauração. Pregador e conselheiro de D. João IV, realizou missões diplomáticas a Paris e Haia, à procura de alianças e fundos para a Guerra contra Castela. Teve encontros com as comunidades judaicas de Ruão e de Amesterdão. Propôs a D. João IV a admissão de mercadores judeus e a abolição da discriminação dos cristãos novos, com o objectivo de atrair os seus investimentos. Depois de uma polémica com os colonos no Brasil, fez aprovar legislação contra a escravatura dos índios. Enfrentou conflitos com a Inquisição, esteve preso nos cárceres do Santo Oficio mas conseguiu do papa a suspensão dos autos de fé. António Vieira teve, ainda, um contencioso no seio da própria Companhia de Jesus. Para muitos causa surpresa e atribui-se ao seu temperamento arrojado e heterodoxo. Contudo, essa heterodoxia, talvez faça parte e seja uma das virtualidades da actuação e funcionamento da Companhia: ocupar a Cidade dos Homens a fim de atingir a Cidade de Deus. Mais de 300 anos depois de Vieira, Theilhard de Chardin é outro exemplo desta «dissidência controlada». Existem diferenças inevitáveis, entre ambos, mas não há dissemelhanças irredutíveis no essencial, da atitude, do comportamento e até da doutrina. Partindo de uma experiência temporal, Vieira formula uma visão simbólica e alegórica para o domínio político - espiritual, enquanto Chardin, projectando as suas concepções cientificas, procedeu a uma teorização teológico - filosófica do universo. Tanto um como outro, mantiveram-se sempre na Companhia e não se desviaram das suas finalidades, apesar de sofrerem admoestações, reprimendas e, até, a proscrição e o ostracismo. Para Vieira foi a utopia do Quinto Império, para Chardin a Noosfera, o que ascende e converge para um Cristo Cósmico, ponto ómega da idade final do espírito. Ambos foram universalistas e ambos se quiseram profetas e historiadores do futuro. (...) E que dizer do génio literário de Vieira? Como orador e epistológrafo não tem paralelo. Seguiu os modelos da Antiguidade Clássica, do pensamento e da literatura medievais, aprofundou os prosadores e poetas quinhentistas; as bases doutrinais do Concílio de Trento e outras directrizes da Contra Reforma. Mas é sempre ele próprio. Entre os Sermões e as Cartas há diferenças, mas o autor é sempre o mesmo. Sem exibir rupturas com o passado, Vieira trouxe contributos inovadores, deu outro estatuto à língua. Aprofundou e desenvolveu as estruturas sintácticas, introduziu extensões semânticas, enriqueceu o discurso com outra diversificação melódica e rítmica, ampliou o poder de comunicação. “Cada sermão de Vieira é uma «partitura linguística» e constituía um acontecimento religioso, politico e mundano. Esgotava a lotação da capela real, das igrejas e conventos de Lisboa e do País. Aconteceu o mesmo no Brasil, em especial na Baía e São Luís do Maranhão. Também no Vaticano, deslumbrou o Papa e o Sacro Colégio.”

O tema está, sempre, subordinado a uma efeméride religiosa, a uma data do calendário litúrgico, mas deriva para situações escaldantes da conjuntura política e social. Pronuncia-se acerca das hipocrisias do mundo, do amor e da morte, da felicidade e da infelicidade, da modéstia e da vaidade, da corrupção e do roubo, dos impostos abusivos, das riquezas ilegítimas das fraquezas e grandezas da condição humana. Contra opiniões dominantes, defendeu a igualdade dos povos e das raças. Destaca-se, já o assinalámos, a posição assumida em relação aos judeus e aos índios, mas que correspondia a uma linha de rumo da Companhia de Jesus, na Europa e no Brasil. Tem um discurso organizado, persuasivo, às vezes provocador, para se apoderar do auditório. Criou um estilo que é só dele. Sem uma palavra a mais, sem uma palavra a menos; sem uma palavra que pudesse ser outra. A propriedade vocabular, o acabamento formal, a rigorosa construção frásica, não reprimem os largos voos da imaginação e um dinamismo de propostas que, muitas vezes, se sucedem entre concordâncias e contradições. Nele não há tempos fracos, todos são fortes. O discurso de Vieira é empolgante. Entre os principais clássicos é o mais acessível. Continua a despertar e a prender a atenção. A língua portuguesa actual provém do século XVI. Vem de João de Barros, de Sá de Miranda e de Camões que fixaram e construíram, a língua que ainda hoje falamos e escrevemos. No entanto, Vieira, sem o aparato mitológico e as complexas transposições da sintaxe d’ “Os Lusíadas”, prosseguiu esse trabalho da língua que circula hoje nos países de expressão portuguesa. Fernando Pessoa, no “Livro do Desassossego” diz-nos que se sentiu «deslumbrado e possuído perante aquele movimento hierático da nossa clara língua majestosa, aquele exprimir das ideias nas palavras inevitáveis, correr de água por que há declive, aquele assombro vocálico em que os sons são cores ideais. Tudo isto me toldou». E Pessoa/ Bernardo Soares acrescentou ainda: «Vieira, na sua fria perfeição de engenharia sintáctica, me faz tremer como um ramo ao vento». (...) O estilo, para Vieira, deverá ser «claro com brevidade, discreto sem afectação, copioso sem redundância, e tão corrente, fácil e notável, que, enriquecendo a memória e afeiçoando a vontade, não cansa o entendimento». Vieira indica ainda uma característica, essencial, em “Frei Luís de Sousa”, e que notabiliza qualquer escritor: «dizer o comum com singularidade, o semelhante sem repetição, o sabido e vulgar com novidade». O grande desígnio de uma política da lusofonia tem raízes no pensamento de Vieira ao defender a abertura da língua à vida, ao tempo e ao mundo. Essa abertura é a da actual língua portuguesa, a terceira língua do Ocidente e a sétima mais falada no mundo. No quarto centenário de António Vieira enaltecemos o génio que engrandeceu a língua na qual dizemos uns aos outros o que nos une e o que nos distingue; realidade quotidiana e património intemporal de portugueses, brasileiros, africanos, orientais, pátria de pátrias, instrumento de cultura e civilização com íntimas cumplicidades de afecto e fortes vínculos de história. E tal como queria António Vieira numa ambiciosa visão do futuro. [x]

CULTURA // 13


Reportagem Escrita de taberna com mão trémula de vinho. Viagem ao interior de um país de duques e cenas tristes. O tinto que se extingue no copo. As tabernas que fecham os olhos, tolhidas pela modernidade plastificada

,, O país sanitário visto do balcão da taberna Texto | Rui Pelejão Marques Fotografia | Margarida Dias e António Supico

“O camelo é o animal que aguenta mais tempo sem beber, não sejas camelo, bebe”. É aqui. Cheguei. Cheira a vinho. Um bafo antigo, intemporal, ressequido, incrustado neste chão, nestas paredes, no mármore do balcão. Não há pipas de 50 litros a ornamentar a parede, nem serradura para aparar as bátegas de vinho transbordante em mãos delirus tremens. Não há sequer um papagaio a debitar vernáculo amestrado como havia nas velhas tabernas de Lisboa. Mas não há que enganar. Cheguei finalmente a uma genuína taberna. O balcão de mármore é altar que dá guarida à balança de ranger reumático e à telefonia Grundig, agora calada dos relatos longínquos do hóquei em patins, dos golos do Eusébio, do “E depois do adeus”…

14 // REPORTAGEM

Não é um tasco abastardado de casa de pasto, nem sequer uma tasquinha típica com acepipes, ou o café central do emigrante com zumbido Sport TV e balcão-enlatado de alumínio. Não. É mesmo uma taberna à antiga portuguesa. Um retrato amarelecido do tempo em que os homens se acamaradavam ao balcão para beber vinho do pipo e petiscar mata-borrão, fintando a solidão dos dias e vingando as filhas da putices com que a vida nos encorna. “Como é refrescante o relincho de um burro quando o aliviam de toda a carga.” Isso, e o estardalhaço folgazão dos homens na taberna. Numa cadeira de praia listada de cores garridas, a velha vestida de preto apara umas vagens no avental e levanta os olhos de um azul límpido e desconfiado. Deixo a luz cálida de Maio pelas costas, com o aroma de giestas que perfumam as ruas graníticas de Alpedrinha e vestem as encostas da Serra da Gardunha de um manto amarelo bravio, a desafiar fogaréu de Verão. Entro na penumbra fresca da “Tasca da Ti Maria”. Mas não é uma tasca, não senhora, é uma taberna. – Uma ginga, se fizer favor! A velha levanta-se a custo com a curvatura da bengala a imitar a das costas cansadas, e passa para o seu púlpito.


- Com ou sem elas? - Com. - E a caneca de alumínio interrompe a sesta de lavatório, esvoaçando por cima do monte de latas de atum Tenório, das salsichas Nobre e das caixas de fósforos, para, num ritual basculante, mergulhar no boião baço do licor com a mão de camaroeiro experiente da Ti Maria a extrair a ginga com ela. Um gesto tão antigo como a própria taberna. - Vai para 60 anos que tenho a taberna aberta. - E adoça-se-lhe o azul dos seus olhos onde a desconfiança se dilui. Molho o bico na ginja. Docinha, boa para destemperar deste país amargoso. Sento-me no mocho, apoiando o cotovelo firme na mesa trôpega de caruncho. Tiro o Moleskine e o lápis. É aqui sentado que vou fazer a reportagem de taberna, enviado-especial da A23 à “Tasca da Ti Maria” de Alpedrinha, a Sintra da Beira, onde se vende um litro de vinho a um euro. Em busca do povo das tabernas, enquanto vinhos finórios que ganham óscares-a-dias escorropicham no decantador de cristal conspurcado dos deputados da Nação que assinaram de cruz a “importação” do regulamento 852/2004 do Parlamento Europeu, que regula a higiene dos produtos alimentares. Os mesmos pintalegretes que do alto da sua indolente estupidez deram bacamarte e braço longo à ASAE, essa bófia sanitária que persegue o chouriço de sangue e a marmelada oferecida aos lares da terceira idade. Um país que não cuida dos seus velhos e lhes confisca a marmelada preparada com amor filial, não é um país, é um sanatório. Do Europa de Copenhaga a Alpedrinha Moleskine, idos de Março - reunião com os editores da A23 para discutir ideias. Copenhaga, bar de má catadura no Cais do Sodré, três da manhã bem regadas. Ana, empregada do bar, baixinha e despachada, 40 e picos, senta-se à nossa para tabaquear o assunto: “Sou de Lamego, éramos sete irmãs, mas as gémeas morreram num acidente de automóvel. Tenho uma irmã que é camionista em França. Vivi em Londres, casei com um tropa inglês que foi com o caralho numa explosão na Guerra Irão-Iraque. Depois fui para as Filipinas, conheci lá um jornalista japonês e tive um filho dele. Aquilo deu para o torto e voltei para cá. Tive a exploração do bar Europa aqui ao lado. Fui eu que inventei os after-hours. Fechava às quatro da matina e depois pedi uma licença à Câmara para abrir às seis. A partir das quartas-feiras tinha sempre a casa à pinha até ao meio-dia. Pessoal da pastilha, mas também muita gente da alta. Um juiz costumava alugar-me aquilo para umas festas sado-masoquistas, tudo no máximo sigilo e discrição. Os gajos combinavam tudo pela internet e entravam de máscaras e fatos de cabedal. Depois era um ver se te avias, um bacanal que só visto. Gajas atadas aos varões a levar chicotadas; uma médica, uma gaja boa e

com pinta, a levar no cú e na pachacha em cima do balcão. E coca com fartura. Conheço as putas todas do Cais do Sodré, são umas pobres coitadas, velhas já para avós, abandonadas na sarjeta pela família. Todos os natais organizava uma festa para elas no Europa, com bolo-rei e espumante. Larguei o Europa porque foram lá os cabrões da ASAE e disseram que se não fizesse obras no valor de 30 mil euros fechavam aquilo. Mandei-os pró caralho e trespassei aquela merda.” Ora ai está, a ASAE no país de putas desdentadas abandonadas na sarjeta, no país de juízes-desbraguilhadores, no país das tascas de refeições económicas para operários do salário mínimo; a 6 euros com direito a azeitonas, sopa, prato, vinho e bagaço. É para aí que vamos? É que cá estamos, agrilhoados às galés do absurdo. A solidão silenciosa da taberna é quebrada pelas passadas dos dois trolhas que entram mudos e quedos como na Igreja. Rostos de cansaço esculpido e olhar mortiço de estátuas. Pousam os sacos de plástico com a muda de roupa ao pé do balcão. As botas e as mãos encardidas de cimento. – Duas minis, Ti Maria. A velha arrasta-se vagarosamente para a sua sacristia. Bebem depressa e em silêncio, como se comungassem na missa. Um rafeiro espreita pela porta de língua à banda e vira as costas escanzeladas, pelos vistos prefere animação mais ossuda. - Os novos querem o moderno, agora o que mais cá vem são excursões e assim. Acham graça a isto, veja lá que já estou na Internet - informa-me a taberneira com irreprimível orgulho. - Antes era uma loja para guardar burros, eu e o meu homem comprámos isto e fizemos aqui a taberna e o talho ao lado, mas quando ele morreu fiquei só com a taberna. - Sempre se vai entretendo… - É... mas havia de cá vir na festa dos chocalhos, são dois dias que ninguém prega olho, e a taberna enche-se outra vez de gente como antigamente. Era aqui que se juntavam quando vinham da lavoura e do trabalho. Agora só querem é parar nos cafés… - Alpedrinha transforma-se em vila-tasquinha em Setembro durante a Festa dos Chocalhos, o culminar do Festival da Transumância. Os caminhos de pedra por onde passavam os pastores com os seus rebanhos engalanam-se num arraial de tasquinhas com comes e bebes. São as casas e as lojas das pessoas da terra que vendem petisquinho caseiro, morcela assada, chouriço, doces da avó, jeropiga e vinho sem aditivos. Centenas de “foliões” afluem às ruas estreitas e íngremes onde as portas das casas se franqueiam para uma celebração popular dos paladares tradicionais, os tais a que a Europa iofilizada e maníaca da normalização decidiu decretar guerra com a aquiescência caprina de governos, como o português. Um fenómeno de transumância política. Méé, méé, méé! Pobreza proibida Meto-me à estrada de braço dado com o Tejo à procura de tabernas antigas, a farejar as redondezas de estações de comboios e as terras ribeirinhas. Paragem em todas as estações e apeadeiros. Senhores passageiros, estamos a chegar à estação de Santarém, a gótica. É aqui que se

realiza todos os anos o festival da gastronomia. Tal como em Alpedrinha, mas a uma escala pantagruélica, celebram-se os paladares na sua “biodiversidade”. Aqui se produz cultura popular para a barriguinha, insalubre aos olhos da ASAE, que há dois anos decidiu aqui fazer uma rusga ao petisco com aparato de “Miami Vice”. Depois refreou-se, alguém lhe terá segredado, cuidadinho. E a ASAE amochou. Agora que o contador eleitoral acelera, os deputados andam numa azáfama com projectos de resolução para emendarem a sua própria mão conivente com o malfadado regulamento 852/2004. Dezembro passado na audição parlamentar ao xerife da ASAE, António Nunes, o deputado do PS eleito pelo distrito de Castelo Branco, Jorge Seguro Sanches defendeu que “temos de dar garantias aos nossos cidadãos de que a pequena economia continue a subsistir. Temos de preservar produtos e práticas tradicionais.” Estão pois na forja, derrogações ao regulamento... Na “Taberna do Quinzena”, a mais típica tasquinha de Santarém, os forcados amadores de patilha de banda larga brindam ao “vinho de boa cepa e filha de boa mãe”. Come-se bem por aqui: “Ocupemo-nos da Santa Trincadeira, que o meu estômago está a gritar contra a cabeça que o Governa.” A quadra na ementa podia ser metáfora para uma país de barriga vazia, onde são poucos os que se governam bem, à custa dos muitos que mal se governam. Tristezas não pagam dívidas e marcham umas febras de pica-pau, uma azeitonas que fazem Capela Sistina no céu da boca, e um naco de toiro bravo, lidado a jarrinho de tinto, num ambiente onde a tauromaquia e a cultura do campino ribatejano são lei: “Uma casa com 137 anos, que já vai na sua quarta geração e que se esforça por manter viva a tradição”, explica Fernando Baptista, o quarto de uma dinastia de monarcas-taberneiros. Os jarrinhos e os petiscos aquecem o mármore das mesas e o coração dos convivas. Paredes forradas a cartazes tauromáquicos recordando “toiradas” em Portugal, e venha de lá um fadinho: “Na noitinha havia fado/o Zé Pirrote ia tocado/o Jacinto Ferro Velho muito mouco acompanhado/o Tónio Gago bem avinhado/ o Rui Pedro já pingado/ e o Galinhas arreliado/acabava já com o fado” - Ah, fadista! Fumar é que não, avisa o autocolante-semáforo dependurado ao lado do cartaz do Joaquim Bastinhas. “E a ASAE, não vem cá” pergunto eu de malícia. “Vêm cá muitas vezes … almoçar”, devolve com piscadela de olho marialva o rei-taberneiro. - E a ASAE, Ti Maria, nunca cá veio? - Graças a Deus não. Sei que é de muitas exigências. Já não estou em idade para fazer obras na taberna, se cá vierem fecho! – Desabafa a octogenária. Em todo o comércio de Alpedrinha já foi metido bedelho perdigueiro, e se deixaram a Ti Maria na sua paz de taberna é porque algum inspector de bom senso decidiu fazer vista grossa. Mas esse inspector não faria decerto parte das brigadas que encetaram impiedosa rusga ao Centro de Dia da Atalaia do Campo, a poucos quilómetros daqui, confiscando e proibindo as ofertas de alimentos que as pessoas da terra fazem aos seus pais e avós – as galinhas do campo, as batatas, as compotas e a maldita marmelada. O pároco Paulo Figueiró insurge-se contra a prepotência da ASAE: “O Centro de Dia é uma instituição sem fins lucrativos e não um estabelecimento comercial. Vivemos com algumas dificuldades económicas que não são compatíveis com as exigências da ASAE. É um absurdo”.

REPORTAGEM // 15


© António Supico

Finlândia do Sul

O povo das tabernas do Fundão também se “modernizou”. Agora aterram na tasca “groumet” em frente às Finanças. Um espaço bem decorado mais a modos que um “bar lounge” e que foi adoptado pelos sem-abrigo do tinto e da Sagres. A clientela ruidosa e bebedora sente-se em casa 16 // REPORTAGEM

Portugal passa o tempo dividido. É um país rico em opinião. É esse o nosso petróleo. A ASAE, por exemplo divide o país entre os que são a favor e os que são contra. Margarida Afonso é técnica de controlo de qualidade no refeitório de uma fábrica e admite que gostaria de trabalhar na ASAE: “A higiene alimentar é uma questão de saúde pública. Finalmente há uma entidade em Portugal que faz cumprir a lei e tenta eliminar a concorrência desleal que os estabelecimentos não cumpridores fazem aos cumpridores. Quando apreende toneladas de carne estragada, a ASAE está a prestar um bom serviço ao país.” A questão é precisamente essa. Não é pela eficiência com que apreende carne putrefacta que se pode obliterar a sanha persecutória que STASI dos costumes move aos pequenos e aos pobres, como o Centro de Dia da Atalaia do Campo. Isso seria o mesmo que desvalorizar as baixas civis causadas em bairros xiitas pelos bombardeamentos americanos, porque afinal, o que eles pretendem é combater o terrorismo e implantar a democracia no Iraque. Aceitar os danos colaterais provocados pelo escrúpulo policial da ASAE é aceitar o bombardeamento da nossa liberdade em prol da segurança alimentar. Não é uma boa troca, independentemente do que possa pensar um primeiro-ministro obcecado com a ideia de transformar Portugal numa Finlândia do Sul. No distrito onde a marmelada passou à clandestinidade e a farinheira de fabrico caseiro é proscrita, a ASAE realiza 15 fiscalizações semanais levadas a cabo por 16 inspectores oriundos da IGAE ou da Direcção Regional da Beira Interior (DRABI). Num distrito onde os campos agrícolas estão votados ao abandono e as enchadas morrem nas mãos dos velhos, foi preciso dar uma “nova oportunidade” aos técnicos agrícolas. Ou

seja, fiscalizar a qualidade dos alimentos, que aquelas terras já não produzem, por não terem quem as fecunde. “Todas as denúncias são investigadas”, explica orgulhoso ao jornal “Diário XXI” o tenente Márcio, antigo comandante do posto da GNR do Fundão, e que coordena agora com zelo policial a ASAE no distrito. - Um tinto Ti Maria, que tenho a boca seca de tanto perorar sobre a choça. E a liberdade, Ti Maria, e a liberdade? - Tenho uns selos da campanha do Humberto Delgado que o meu marido guardou quando o General veio a Alpedrinha. Andava tudo com medo e calado por causa dos bufos e da PIDE. Mas o meu marido não. Era um homem sem medo comove-se com brilho azul-diamante de lágrima. Povo das tabernas Basta calcorrear as terras que se espreguiçam à beira do Tejo para perceber que as velhas tabernas estão mais extintas do que o tinto no fundo do meu copo. “Vai-se tornando habitual assistir-se à reestruturação dos espaços de taberna, multiplicando-se as suas lógicas de vivência subjacentes, não raro, à concorrência comercial. Muitas das antigas tabernas viram os seus espaços reaproveitados em snackbars, cafés ou casas de pasto. Muitas outras fecham portas à medida que os velhos taberneiros vão desaparecendo”, explica Dulce Magalhães, socióloga da Faculdade de Letras da Universidade do Porto e autora do estudo “Consumos e sociabilidades de taberna”. É assim também pela Beira Baixa adentro: “Já cá não há nenhuma taberna”, lamenta-se o velhote sentado à sombra no Carvalhal apontando salvação para o bar do “Espanhol”, onde a malta nova do TT mata as horas com zapping entre o canal “Fashion” e os desportos radicais do “Extreme”.


© António Supico

Pela estrada, apoiadas às bengalas, vêm as velhotas de Valverde, aviar-se de pão e leite ao Carvalhal, já que a ASAE fechou as mercearias de Valverde. - O pequeno comércio já não vale nada. Vai tudo fazer compras ao Jumbo de Castelo Branco. – Conta a Ti Maria Todas as semanas, os hipermercados da região organizam carreiras especiais que vão recolher os clientes às terras, dão-lhes cartões desconto, fazem-lhes promoções e pastoreiam o rebanho até às prateleiras de verdejante pasto. O Ti Pereira vem de lá. Foi na camioneta da manhã com a sua mulher, e agora veio com ela aviar uma receita de “comprimidos para a atenção” na farmácia de Alpedrinha. Mas para ele a receita é outra. - Um tintinho! – E a Ti Maria lá bota no copo fusco. Olho para a mão enrugada e trémula apoiada no balcão e a outra que se estende para o copo. Estica as bochechas e os lábios em varas verdes, semicerra os olhos, abre a goela e lá vai disto! Ora zumba na caneca! Exala um suspiro satisfeito e limpa as beiças ao casaco já coçado. - Se o vinho é sangue de Cristo, bem haja quem o matou! - Tremelicando, lá pede o segundo mandamento: - Antes que venha aí a patroa atazanar-me o juízo. O médico proibiu, mas se não beber a minha pinguinha, fino-me mais depressa que um pardal. Veja lá que para beber em casa tenho de esconder uma garrafinha no galinheiro e ir fechar as galinhas. A patroa já desconfia, e diz, “Ó Manel, nunca quiseste ir fechar as galinhas, o que é que te deu agora”. - E toca de embutir mais um em ritmo de pilha-galinhas. Sigo pela estrada que vai de Valverde ao Fundão, a sede do Concelho. A “Tasca da Estação” é um ícone da terra. Gare central para o povo das tabernas, a mudar agulhas para traçadinhos com mata-bicho de estalo: sopa de feijão e a sandes de bacalhau. A tasca foi restaurada, mas mantém vivo

o espírito fundador. Hoje está fechada, tal como o vizinho Centro Cultural da Moagem, mas este não admira, está sempre fechado. Dinheiro para o betão, mão estendida para a programação. O povo das tabernas do Fundão também se “modernizou”. Agora aterram na tasca “groumet” em frente às Finanças. Um espaço bem decorado mais a modos que um “bar lounge” e que foi adoptado pelos sem-abrigo do tinto e da Sagres. A clientela ruidosa e bebedora sente-se em casa. Basta olhar para o quadro de honra do torneio da sueca, para perceber que este é o novo território da borracheira. “A gente agora junta-se aqui ao fim da tarde para beber uns copos antes de ir para casa. E pode-se fumar e tudo!”, balbucia Venâncio, feirante de trinta e tal anos já com dois grãos em cada asa. Conversas no Sanatório Deixo a A23 e sigo pelas antigas rotas do contrabando do Sabugal, entrando no país de Torga. A desolação é completa e o contrabando agora é outro. Dá-se o salto para Espanha onde “o pessoal vai abastecer o depósito; a gasolina é 28 cêntimos mais barata; ou vai às compras, já que o IVA é a 16 %. Isto deu cabo de tudo o que é comércio aqui na raia”, lamenta-se o puto com ar sonolento do quiosque da estação de Vilar Formoso, antigo posto fronteiriço em decrepitude Pós-Schengen. Sigo pelas planícies áridas da Castela, Ciudad Rodrigo ergue-se pitoresca e monumental. Dentro do seu perímetro de muralhas estamos a salvo. Abanco no “El Sanatório”. Tal como na “Taberna do Quinzena” a cultura dos touros é o prato forte. As paredes desta velha taberna estão revestidas com fotografias antigas das largadas de touros nas festas de “El Carnaval”. Um longo balcão aloja um punhado de clientes

que atacam alegremente as benditas “tapas”. Junto-me a eles. Uma “caña” acompanhada com “huevos fritos com farinato” expostos numa montra que mereceria esquartejamento público do seu dono, caso a ASAE aqui tivesse jurisdição. Mas alto lá! As leis europeias não valem aqui? Não há fiscalizações sanitárias? “Aqui no pása nada”, informa-me Jaime, o príncipe-herdeiro de uma dinastia de taberneiros espanhóis que fizeram do “El Sanatório” um ex-libris da cidade. Em Espanha a aplicação de algumas directivas comunitárias fica a critério das Comunidades Autónomas, que delegam nos Ayuntamentos, que ignoram as leis dementes da Comunidade Europeia em matéria de higiene alimentar, e as subordinam à sua orgulhosa gastronomia, estaca funda da sua identidade cultural. “Me voy, no te aguento más, gitano” diz o gordo esbaforido, visivelmente farto da conversa do mosca de bar de ar altivo, rabo de cavalo. O “gitano” vira-se para a ala Leste do balcão olímpico e em vagarosa braçadas nada até mim, desfiando as suas glórias de velho toureiro. Conta quando subiu à arena da grande catedral da tourada, a “Maestranza” em Sevilha, com o seu radiante fato de lantejoulas. Um herói de outros tempos, afogado no esquecimento de balcão no “El Sanatório”, cravando vermutes a náufragos de bar. Olho ao longe para o país onde ainda se passa fome e onde a única segurança alimentar digna desse nome é a do Banco Alimentar Contra a Fome que assiste quase meio milhão de pessoas, que no desespero, perdem a vergonha da esmola. Quando é que Portugal se fodeu? - Está na hora! – diz a Ti Maria levantado o alguidar com as vagens. Fecho o bloco com um estalido seco. - E agora Ti Maria… vai fechar a taberna? - A taberna fecha quando eu fechar os olhos. [x]

REPORTAGEM // 17


Texto | Manuel da Silva Ramos Fotografia | Adriano Batista

,, Tripas à moda de Monsieur

Ramos

Nessa noite estava no Porto para fazer uma conferência no café Guarany. O tema era aliciante e devia ter algum público, principalmente jovem, já que o título da minha exposição era todo um programa: «A importância do pensamento gnóstico no desenvolvimento do orgasmo feminino». Enquanto não eram horas de ir para esse belo café da avenida dos Aliados fui jantar. Não gosto do Porto, acho-o pegajoso como o capachinho do Portas e religioso como uma freira pasmada que acaba de sair da catedral da Santíssima Trindade em Fátima que mais parece uma praça de touros. Já não falo do seu lado sombrio que me faz arrepiar imediatamente os pêlos do cóccix e então no inverno, às cinco da tarde, parece a negra Escócia trevosa, mas sem whisky. Mesmo assim fui dar ao dente para uma tasca na Ribeira - único sítio que vale a meus olhos um dedalzinho de indulgência. Estava eu a comer um bacalhau à minhota quando entrou na sala o meu conhecido Lemos que me bateu nas costas. Estava no Porto em negócios. Tinha ido encomendar um escritório moderno a Paços de Ferreira. Era um duro caçador de negócios falidos que depois reactivava. Além disso jogava na bolsa onde ganhara muito dinheiro. Nascera na província e desse tempo ficara-lhe a paixão das tascas e das putas. Víamo-nos às vezes em Lisboa no lançamentos de livros, vernissages de pintura ou concertos de cantores franceses. Ele tinha também a paixão pela França. Sentou-se e encomendou uma tripas. Durante o jantar, ele que é um fala-barato, só falou em merdetrizes. Se eu conhecia algum local novo. Qual era o preço vigente. Se ainda havia putas de Leste com a cona rapada. Enfim, o Lemos deu-me uma seca. Olhei o relógio e vi que eram horas de partir. Mas ele ofereceu-se para me transportar. Saímos do restaurante e ele conduzia que nem um esquimó mas mesmo assim antes do Guarany, diante da estação de São Bento, deu um grande grito sioux e abrindo o vidro do seu lado disse alto que foderia nessa noite uma palangana de brasileiras. Lá me deixou e insistiu para me vir buscar pois tínhamos de «ir a elas». Embora o tema fosse sedutor, nessa noite não tive mais de cinquenta pessoas. Os dragonenses jogavam, havia um concerto no palácio de Cristal, chuviscava, enfim, a cultura

18 // CRÓNICA

nunca arrastou multidões neste país que vive a trivialidade do costume: problemas de saúde derivados de questões financeiras. Expliquei aos presentes como em 1945 se tinha descoberto em Nag Hammadi, no Alto Egipto, doze livros encadernados em couro e vários cadernos de um décimo terceiro: era toda uma biblioteca gnóstica em papiro e em tradução copta. Estavam ali reunidos todos os textos completos tantas vezes discutidos pelos filósofos neoplatónicos e os heresiólogos cristãos, tais como o Evangelho da verdade, atribuído a Valentim, o Livro dos Segredos de João, ou o célebre Evangelho de Tomás. Expliquei depois o que era a gnose e disse-lhes que à força de experiência, lendo ora o Apocalipse de Adão, o Evangelho segundo Maria, ora as sentenças de Sextus ou a três Estelas de Seth às mulheres apaixonadas elas entravam imediatamente num longo e puro orgasmo. Não era de admirar, disse-lhes eu, não havia em toda a alma abrasada o desejo de recuperar o que ela tem de divino? Concordaram comigo e no final a minha erudição foi muito aplaudida. Deixei levantar o público e olhei a entrada do café. Chegara o Lemos e trazia um homem estranho a seu lado. Em camisa e desgolado, só podia ser um chofer de táxi. Esse final de noite foi patético. O chofer de táxi levou-nos pelo menos a vinte casas anónimas na rua Fernão de Magalhães e arredores. O chofer parava, indicava-nos a casa, nós batíamos à porta, um olho abria-se, entrávamos para uma salinha e rapidamente vinha uma dezena de putazinhas em biquini ou string e nós escolhíamos ao mesmo tempo que discutíamos o preço com a matrona da casa. Foi à vigésima que acertámos mas já eram quatro da manhã. Eu escolhi uma brasileira de ascendência japonesa, altíssima, nunca tinha visto uma japonesa assim. Cara de gueixa num corpo escultural. Esta mestiçagem excitou-me e subi com ela para o seu quarto enquanto o Lemos levava duas do Pará. Valentina chamava-se ela. Além disso era um apocalipse perfeito e podia muito bem ter saído de um romance de Tanizaki. A primeira coisa que lhe disse foi que deveria gozar comigo como uma compatriota sua que se chamava também Valentina e que eu encontrara no comboio entre Corumbá e São Paulo. Sabe o que ela fez para me satisfazer? perguntei-lhe. Já ela


Esse final de noite foi patético. O chofer de táxi levou-nos pelo menos a vinte casas anónimas na rua Fernão de Magalhães e arredores. O chofer parava, indicava-nos a casa, nós batíamos à porta, um olho abria-se, entrávamos para uma salinha e rapidamente vinha uma dezena de putazinhas em biquini ou string e nós escolhíamos ao mesmo tempo que discutíamos o preço com a matrona da casa -

tirava o soutien e mostrava uns seios dignos de serem trincados. Foi o que fiz e ia introduzir-lhe o dedo na cona quando ela se afastou. Devia ter ido a Luxor com o Paulo Coelho. As suas recriminações viriam mais tarde em forma de flamingo? Não, como ave pernalta ela portou-se bem até ao fim, sempre amorosamente colaboracionista. E foi assim que se agarrou ao meu caralho para o chupar com entusiasmo. Olhava para ela e notei no seu olhar que simpatizava comigo porque eu lhe dissera que vinha do Altiplano, lá onde o mundo se anotava duplamente para se tentar ser feliz. Pois foi precisamente isso que ela fez, disse-lhe. Então enquanto chupava o meu caralho contei-lhe que lhe ia fazer uma revelação. Uma revelação de entontecer o povo mais aguerrido. Tirou o caralho da boca e eu olhei-a e vi que ela tinha tido prazer e aproveitei para a virar de costas. Era à canzana que ela seria revelada. Sabes quem eram os gnósticos? Umas pessoas como nós. Acreditam na salvação pelo conhecimento. O sofrimento do exílio está na base dos gnósticos. Ela gemia já e concordava. E às tantas falou: «Eu estou neste mundo mas eu não sou deste mundo». E lançou-se outra vez no gozo, enrodilhava-se toda como uma cobra. Valentina era gnóstica sem o saber. Se a vida é êxodo, o gnosticismo deve encontrar vias que lhe permitam o regresso à pátria de origem. O conhecimento é o instrumento desse regresso que se chama salvação. Estávamos agora em uníssono e foi assim naturalmente que passados dez minutos nos viemos os dois ao mesmo tempo. Quando desci do quarto satisfeito, a matrona segredou-me que o meu amigo ficava lá nessa noite hospedado até às tantas. Fora o recado que ele me deixara. Chamei um táxi e reganhei o hotel para ir buscar as malas já que tinha o Alfa muito cedo. Enquanto tomava um duche para acordar, pensava no Lemos que afinal era gnóstico (o que eu não sabia) e encontrara o Discurso perfeito. Deixei Campanhã já era dia e no comboio a alta velocidade, enquanto arrumava a minha bagagem, uma freira sentou-se a meu lado. Sem mais delongas comecei-lhe a contar a aventura gnóstica dessa noite e imediatamente as suas tripas começaram a remoer. [x]

CRÓNICA // 19


,,Portfolio

Dina Almeida

Vaca Azul India Rickshaw India Espera em Leh India Travessia dos Himalaias India


Dina Almeida nasceu em 1975 na vila de Penamacor, Beira Baixa. Em Lisboa, fez o curso de iniciação fotografica na ARCO e mais tarde o curso fotografia P/B na ETIC. A universidade levou-a até Tomar onde tirou o curso de Tecnologias e Artes Gráficas. Participou em várias exposições gráficas e fotográficas, realizou formações de pintura, serigrafia e encadernação. Voou para Londres onde viveu 3 anos e fez de tudo um pouco sem nunca perder o gosto pelas artes e criatividade. O amor por outros mundos e culturas e a vontade de fazer voluntariado levou-a a pegar na mochila e viajar por um ano. India, Sri Lanka, Nova Zelândia e Austrália foram os destinos escolhidos e aqui partilhados. Há imagens que valem por mil palavras, mas há mundos que mil imagens não conseguem descrever.


Sem TĂ­tulo Sri Lanka


Pescador de Unawatuna Sri Lanka


Entrevista

,,A viagem de

Jorge Palma

Texto | Margarida Gil dos Reis e Ricardo Paulouro Fotografia | Margarida Dias

Jorge Palma tornou-se uma presença constante nos palcos portugueses. Voo Nocturno, o seu mais recente trabalho, é, sobretudo, um álbum de afectos, onde a viagem é a meta daquele que encontra na errância uma forma de estar na vida. O aclamado Bairro do Amor, em 1989, confirmou o sucesso de uma carreira que tem estado próxima de todas as gerações. Muitos foram os que o viram em 1971, em Vilar de Mouros, nos teclados dos Sindikato, outros assistiram à sua colaboração com outros músicos, tais como em Palma’s Gang, Cabeças no Ar e Rio Grande. Influenciado por tudo o que o rodeia, Jorge Palma reconhece que a sua preocupação sempre foi a de universalizar aquilo que escreve. O seu ‘bairro’ é o mundo, que o tem acolhido ao longo do seu percurso enquanto músico. Suiça, Itália, Dinamarca, Escandinávia, Inglaterra, Alemanha, mas, sobretudo, Paris, o ‘quartel-general’, onde foram muitos os concertos no metro, são algumas das cidades que o viram crescer como artista e o ouviram cantar o amor, a saudade, a tristeza, o medo, a denúncia. A entrega à musicalidade das palavras soma-se às histórias de uma vida escrita em cada canção. -

Próximo destino: Paris. No bolso, “On the Road”. Palma começa a ouvir de outra forma Cohen e Dylan, a “Beat Generation”, Ginsberg. Cinco dias na Cidade das Luzes é a meta traçada. Passagem de ano de 1977-78. Uma guitarra emprestada é o suficiente para tocar à porta da Ópera de Paris, num dia de greve. Desconhece-se o próximo destino porque se leva a música como passaporte. Como é que um aluno de Ciências acaba por dedicar a sua vida à música? JORGE PALMA - Eu sempre fui músico, desde que nasci, desde que comecei a brincar com o piano. Eu nunca pus em questão o facto de ser músico. Não posso falar das coisas inatas mas lembro-me de ter em casa um brinquedo que era um piano, com o qual brinquei muito. Aquele brinquedo passou a fazer parte de mim, como um órgão extra, parte do meu corpo e do meu espírito. Não faria sentido, mesmo que eu tivesse outra profissão, que não tivesse abraçado a música na minha vida. As coisas aconteceram porque tinham de acontecer. Acredito no destino mas acho que nós temos nele uma parte activa. É isso também que faz com que a nossa existência tenha algum sentido.

Começou por escrever duas músicas em inglês. Porque é que depois sentiu a necessidade de escrever em português? Acho que a partir dessa altura evoluí muito. Depois da aprendizagem com o Ary, comecei a ouvir os primeiros discos do Sérgio Godinho e do José Mário Branco, mais tarde do Fausto e do Zeca, e acho que foram marcantes para mim. Fiquei a perceber que era possível fazer boa música, acessível, em português. Foi uma aposta que eu queria ganhar ou, pelo menos, entrar nela. Apesar de eu falar bem inglês, das experiências no metro de Paris, domino muito melhor o português. Vou gravar em breve as canções em inglês que escrevi nessa fase, há cerca de vinte anos. Acho-as engraçadas mas sei que são simples, sem grande elaboração. O meu primeiro álbum foi escrito com poemas do Ary dos Santos, e alguns meus, em português. Em seguida viajei para a Dinamarca e aí, não sabendo do 25 de Abril, encontrei condições para trabalhar em música. Comecei então a pensar no mercado inglês e fiz uma adaptação para inglês da música que tinha escrito. Quando se deu o 25 de Abril, voltei para Portugal e acabei por fazer em português algo que já não era Ary e também já não eram as músicas que eu tinha adaptado para inglês. Só a música era a mesma. Nessa altura saiu o primeiro álbum, Viagem na palma da mão.

Ainda se lembra do seu primeiro concerto, em Lisboa? Eu comecei a tocar como organista de bandas rock. Lembro-me de ter tocado com os Black Boys que eram de Santarém. Aí foi o meu salto para a carreira musical. Em Lisboa, talvez tenha sido com o Sindicato, em 1969. Nessa altura demos muitos concertos e tocávamos em eventos muito pequenos. Actualmente, e ao contrário desse tempo, a dificuldade é escolher entre tanta oferta de espectáculos. O primeiro concerto a solo mais significativo foi talvez na Aula Magna, organizado pelos estudantes.

Sozinho na rua, quase à meia noite, a tocar Bob Dylan. Um transeunte aproxima-se e pergunta-lhe se quer ganhar uns trocos. O conselho é simples: ir tocar para as carruagens do metro. Da guitarra arrancam-se acordes. No bolso, alguns francos necessários para comer, beber, dormir e fumar, em troca de muitas emoções. As pessoas passam apressadas à saída do metro, algumas param para ouvir a música. “Quelque chose pour la musique?...” -

24 // ENTREVISTA


Qual é a viagem física que volta a fazer sempre mentalmente? Há várias viagens. Ultimamente será a viagem a Nova Iorque. Mas Paris será sempre Paris. Há tantos sítios onde me apetecia ir amanhã, como Veneza, por exemplo. Itália, de um modo geral, é o meu país de eleição. Em Paris, estou em casa. Em Nova Iorque, redescobri a cidade por causa da masterização do “Norte”. Ali, toquei no “Tonic”, um bar muito especial onde foi uma honra tocar, e por aí fora… Há muitos sítios onde ainda não fui. Paris foi, no entanto, uma cidade marcante na sua vida… Fui para Paris para passar cinco dias e acabei por ficar alguns anos. Ia todos os dias ao Café Masé, onde os músicos se reuniam, trocar as moedas que ganhava durante o dia a tocar em vários sítios da cidade. Curiosamente, não havia muitos portugueses. Eu era conhecido como “Jorge, le portugais”. Houve um momento de ouro, de que me recordo especialmente, início dos anos 80, em que fazíamos muito dinheiro a tocar na rua. Podíamos pagar o hotel, beber cervejas, comer ostras e ir a muitos concertos! Até o dono do Café Masé, que já nos conhecia, a alguém que tinha o azar de lhe ser roubada a guitarra emprestava o dinheiro. Havia um sentimento de cumplicidade e ajuda mútua. Encontrávamo-nos no Festival de Cannes e fazíamos bandas improvisadas, viajávamos pelos países em redor... Como foi essa experiência de, em 1977, ter tocado no metro em Paris? Eu estava com uma óptima idade para viajar, aprender outras coisas. Nessa altura, comecei a ler muito os poetas da beat generation, canções de estrada... Paris tornou-se o meu quartel-general. A partir daí viajei para a Suiça, Itália, Escandinávia, Inglaterra, Alemanha... Ao fim de três, quatro meses de enclausuramento a tocar no metro em Paris, o único lugar onde, no Inverno, se fazia dinheiro, havia uma vontade de sair e viajar. Nem sempre essas viagens corriam bem! Em alguns sítios, por exemplo, era proibido tocar na rua. Mas sabíamos sempre que estávamos em casa em Paris. Conseguia viver sem Lisboa ou esta cidade faz-lhe falta? Já estive períodos fora de Lisboa e não senti grandes saudades. Sempre tive amigos provenientes dos vários continentes. Neste momento, a situação é diferente. Já penso no futuro. Tem-se o cuidado de diversificar o repertório: Led Zeppelin, Elton John, Rolling Stones, Beatles e, mais tarde, Velvet Underground. Continua-se a tocar sempre porque, afinal, está-se na Terra dos Sonhos. Ao fim do dia, encontro marcado no Café Masé, no Odeon, com outros músicos e artistas de rua parisienses. Cerveja e ostras para acalmar o estômago, «omolette aux champignons» ao pequeno-almoço. Jorge, “le portugais”, está em casa. Ao longo de uma carreira com quase 40 anos, consegue ainda chamar para os seus concertos público de várias gerações... Não é algo objectivamente pensado... acho que me tenho mexido bem, que tenho usado uma linguagem acessível e não datada que reflecte os problemas que toda a gente teve e tem porque, na verdade, acabam por ser os mesmos. A minha atitude tem também sido algo irreverente porque não me tenho deixado acomodar a nenhuma engrenagem. Na música “20 anos”, em 1973 diz: “Eu sou quem sou, tenho as minhas mãos abertas, sei onde vou, sem algemas nem profetas”. Passados estes 30 anos sente-se desiludido com o sistema ou continua esperançoso? De certo modo acho que o tenho conseguido. Neste meu último disco acho que faço um pouco o ponto da situação. A partir da expressão que ouvi o José Saramago dizer - «um optimista céptico» - acho que me posso actualmente caracterizar assim também. Mantenho, mesmo que com um certo cepticismo, um optimismo que é necessário ao meu bem estar e ao meu equilíbrio. É também isso que tenho procurado transmitir às pessoas. Acho que, acima de tudo, sou um humanista. Gostava de ver o nível cultural de Portugal muito mais alto do que está.

ENTREVISTA // 25


Em várias músicas suas pressentem-se ecos literários. Quais foram os autores que mais o influenciaram? Foram muitos, desde Camus, T. S. Eliot, Beckett, Brecht, Alexandre O’Neil, Cesariny, Mourão-Ferreira... No fundo faço um apanhado do que gosto mais ou menos de cada um. Qual é o laboratório de Jorge Palma para fazer as canções? É onde eu estiver. Não observo conscientemente e necessariamente o que acontece para em seguida escrever um texto. Sou como uma esponja. A literatura atravessa, de uma forma muito constante, a sua obra. Este último trabalho, “Voo Nocturno”, remete-nos, por exemplo, para Saint Exupéry. Quais são as referências literárias de que nunca se conseguiu afastar? Vou-me ora aproximando, ora afastando de certos escritores, depende da altura. Houve uma época em que só lia tragédia grega, algo despoletado pela “Odisseia”, de Homero. Li Sófocles, Ésquilo, Eurípides, Aristófanes… A partir daí passei para as tragédias do século XX, como Camus, Corneille, Shakespeare. Penso que terei lido quase toda a obra de Shakespeare. Depois tenho outras fases em que leio a “Beat Generation”. Penso que estas leituras não têm uma relação directa com aquilo que escrevo, no entanto, são estas leituras que dão azo à criação propriamente dita. Tem uma prática de escrita diária ou este pode ser um processo doloroso? A escrita não me custa nada. Muitas vezes pode é não sair tão bem como eu gostaria. Às vezes, a escrita é uma necessidade de comunicar. Não me considero um escritor. Se me quiserem chamar alguma coisa é músico. Nunca teve essa pretensão de escrever um livro? Já tentei escrever um romance, quando tinha 20 anos. Eram páginas soltas. Já tinha um título para esse romance? Tinha fãs. Uns sete ou oito [risos]. O que há de novo, ao nível instrumental, neste último trabalho, “Voo Nocturno”? Penso que essas diferenças têm sobretudo a ver com questões de sonoridade. A banda que me acompanhou neste disco é a banda que tocou comigo no “Norte”. No “Norte”, acabámos por encontrar um som “jazzy”, enquanto este trabalho é mais rock. De qualquer das maneiras, os músicos mantêm-se, na sua maioria. Acho que estou mais solto neste disco, um pouco devido a uma série de noitadas pelas quais passei e que contribuíram para o sucesso deste trabalho. Digamos que é uma certa dose de loucura que faz com que estas coisas resultem. Um dos temas incluídos neste disco é a “Gaivota dos Alteirinhos”, numa referência a uma praia onde vai com frequência. Neste trabalho, procurou fazer também um roteiro de afectos e viagens? Penso que sim porque sinto-me um viajante. Para além da viagem física e geográfica, sinto-me um viajante no tempo. Cada dia, num modo geral, é diferente. Detesto a monotonia e gosto de sentir aquele prazer que se tem ao viajar sem ser com guia turístico. Gosto de sentir que há uma viagem a cada momento. Esta canção é, de algum modo, uma homenagem a um espaço que lhe é especial? Foi uma das primeiras músicas que compus para este álbum. Estava na praia e comecei a ouvir esta música dentro da minha cabeça. É uma balada de amor porque aquele ambiente inspira-me. Considera-se um errante? Apesar de estar hoje em dia mais sedentário, gosto de vaguear, de encontrar o inesperado, seja no Chiado, seja na Tailândia.

26 // ENTREVISTA


A escrita não me custa nada. Muitas vezes pode é não sair tão bem como eu gostaria. Às vezes a escrita é uma necessidade de comunicar. Não me considero um escritor. Se me quiserem chamar alguma coisa é músico. -

O lançamento deste último álbum terminou com dois concertos no Coliseu, em Lisboa, ambos com sala esgotada. Qual foi a sensação de subir, nestas condições, ao palco do Coliseu? Senti-me aflito porque estava com uma faringite. Podia ter cancelado ou adiado mas não fui capaz de o fazer sabendo que a sala estava esgotada. Foi muito doloroso porque quando se está com a voz naquele estado é muito difícil actuar. Mas correu bem.

de talentos, de aptidões que são muito importantes. Quando trabalho com pessoas que não são músicos, desde actores, encenadores ou escritores, estou sempre a aprender alguma coisa. A minha aprendizagem da métrica e da prosódia também me permite decidir se parto de uma letra para a musicar ou vice-versa. Com todas essas pessoas com quem me tenho cruzado tenho aprendido a usar as palavras certas, que às vezes são como ‘monstros’, tal como o Ary lhes chamava.

Como define a sua relação com o público? Quer esteja mais ou menos próximo do público, normalmente fecho os olhos porque evito distrair-me. Por isso, tocar para mil pessoas ou meia dúzia é igual. Concentro-me na canção e interiorizo tudo. Não estou a cantar para mim mas canto sempre dentro de mim. Se tocar com banda, como com Os Demitidos, tenho tendência para estar mais em sintonia com os músicos. Se tocar a solo comunico mais com o público.

Neste último álbum, Voo Nocturno, incluiu “A Velhice”, um tema que foi criado para a sonoplastia da peça de teatro “Começar a Acabar”, interpretado por João Lagarto. O João Lagarto é aquele excelente actor que, como eu, gosta de riscos. Decidiu-se organizar uma série de textos de Beckett e traduzi-los. Ele assinou a tradução e lançou-se para um monólogo. Foi um trabalho muito engraçado porque um dia o João [Lagarto] procurou-me e pediu-me ajuda para dois momentos específicos do texto em que ele sentia que precisavam de ser cantados. Um dos momentos foi pensado para ser à capela e no outro, na “Velhice”, pareceu-me que uma tuba ou uma trompa nos dariam a sonoridade pretendida (Dixie Gang).

Prefere o trabalho de produção ou o estar na estrada, em digressão, é também uma fase importante? É fundamental sentir-me satisfeito com a produção. Na estrada, interpreto sempre de forma diferente o meu trabalho. Nunca há duas vezes iguais. É claro que quando toco a solo tenho mais margem de movimento, atraso, páro… é um one man show. Com a banda, como temos grande entendimento uns com os outros, também acabo por ter essa liberdade. Cartier Latin, Babylon ... Encontro com Sérgio Godinho ao virar da esquina a comprar tacabo. Uns dias correm melhor que outros. Hoje só dá para pagar o hotel. Mas aqui respira-se a liberdade total. A única obrigação é viver. Em 2005, é publicado um livro, Na Terra dos Sonhos, sobre o seu percurso enquanto músico. Este foi um trabalho de resgate de memórias? O trabalho de recolha desenvolvido neste livro foi, para mim, uma surpresa. Revivi coisas que me fizeram sorrir, outras que me fizeram rir à gargalhada. Foi um reavivar da memória que me fez bem porque me fez perceber que se eu consegui conviver, como autodidacta, com mestres como o Ary e muitos outros de várias áreas, e continuei sempre a progredir, então acho que valeu a pena. Este trabalho é, no fundo, um grande auxiliar de memória e um grande incentivo. Tal como as críticas, sobretudo as construtivas, que eu vou guardando, trazem-me momentos da vida e ajudam-me a melhorar. Eu abro este livro e ali encontro a história da minha vida, desde os anos 70. Consegue encontrar na sua escrita esse lado documental? Sinto todas essas transformações, no entanto, as coisas não são assim tão datadas na minha escrita. Eu sempre tive uma preocupação de universalizar aquilo que escrevo, no tempo e no espaço. Sem me prender a um tempo ou a um bairro. Eu sou influenciado por tudo aquilo que me acontece e que se passa ao meu redor mas procuro não me cingir a essa realidade, não me colocar num ghetto. Importa-me sim que as pessoas sintam aquilo que estou a viver naquele exacto momento, para além das sensações sociais e políticas que possa transmitir. Porque é que eu hei-de falar do estado das coisas de forma explícita? Tudo isso pode estar nas entrelinhas mas eu não sou um cronista. O que lhe surge primeiro numa composição, a letra ou a música? Não há uma ordem, é caótico. No ano passado, por exemplo, escrevi o Norte, já em estúdio, porque sabia que tinha mesmo de escrever. Foi um processo de trabalho em que já que a ideia era escrever uma série de canções, foi também encarado como tal. Melhor ou pior eu sabia que conseguia. O Ary, por exemplo, não era músico mas era muito musical, assim como a Maria Velho da Costa, com quem também trabalhei para teatro... No fundo, tudo se passa em torno de uma convergência

As noites passam-se no Stella, um pequeno hotel onde a clientela é composta por artistas e aspirantes a realizadores de cinema. Nem todos pagam a conta. Alguns entram à socapa. É um fã de Beckett? Sou, assumidamente. Gostava de o ter conhecido! Qual é a sua leitura deste texto, “Começar a Acabar”? É um texto muito forte. Tem uma linguagem com a qual me identifico muito, assim como Brecht, outro autor a partir do qual trabalhei. Daí a sua tendência para uma escrita mais dramática, à semelhança de Shakespeare… Em suma, como disse Tom Robbins, “nunca é tarde para se ter uma infância feliz” [risos]. É, de certa forma, um desafio escrever e compor a pensar num autor? Tem de se gostar muito e tentar estar por dentro da obra desse autor, sentir aquilo que ele estava a sentir quando escreveu aquilo. Se o autor estiver distante ou morto é sempre mais difícil porque não podes ter qualquer contacto com ele. É um jogo de perspicácia, afectivo. Se for uma parceria, com pessoas mais próximas, - e há algumas agora em projecto - é sempre mais linear. Essas cumplicidades entre músicos são importantes na música portuguesa? Sem dúvida. Eu estou habituado a fazer um trabalho solitário, a escrever sozinho. O que me tem acontecido é pegar numa letra ou numa música ou escrever ambas a pensar em alguém. Tenho vários projectos, desde os Clã, Marisa, Carlos do Carmo, Rui Reininho, João Pedro Pais… há uma série de pessoas que me têm proposto desafios muito interessantes. Trabalhar em conjunto é sempre muito importante, até pela discussão de ideias. [x] O mundo está na palma da mão.”Dá-me Lume”, tema composto sob as luzes de Paris, será um dos seus maiores sucessos. Passam-se dois anos em Paris. Jorge Palma continuará a ser um eterno viajante e Paris será sempre paragem obrigatória. -

ENTREVISTA // 27


,,Jangada de pedra O triste destino do Grémio Lisbonense

no naufrágio da Baixa

28 // CULTURA


Velhotes a jogar bilhar à espera de vez para a cadeira de barbeiro. Malta nova com bandas a dar concertos. Valsas e forrós, sardinhadas e jazz. As tribos do Erasmus, os poetas, os artistas ou os simples membros da sociedade da copofonia artística. Todos encontraram refúgio no Grémio Lisbonense, uma jangada com secular varanda de pedra sobre o Rossio. O velho Grémio, porto de abrigo de cultura numa Baixa pombalina que naufraga num deserto de ideias. O velho Grémio que foi afundado à força de bastonada policial -

O senhor Alfredo Teixeira pedia o habitual corte de cabelo ao senhor Fernando, barbeiro da casa, que já o fora no Parque Mayer. Olga Cruchinho repunha as garrafas de cerveja no bar. Pedro Rodrigues preparava-se para actuar na festa do precariado. Entre o jogo de bilhar assomava-se à majestosa varanda para ver a cidade acontecer. Alguém falava sobre o evento da noite passada, ou sobre uma próxima conferência. “Era curioso entrar e numa mesa estarem os senhores a jogar às cartas, noutra meia dúzia de punks, ao lado umas senhoras a pintar, e uns miúdos Erasmus a beber umas cervejas. Não estava direccionado para um público só, mas sim para a cidade de Lisboa” explica uma das dinamizadoras que ressalta, no Grémio, o seu descomprometimento. É a cidade de Lisboa que deseja recuperar o fantástico espaço onde, no último ano, se deu toda essa confluência e que, em 165 anos, foi habitado pelo Grémio Lisbonense, uma instituição de utilidade pública, com valor histórico e de intervenção social, recentemente daí desalojada. OS BASTÕES CONTRA OS SÓCIOS

Texto | Marta Lança Fotografia | José Pedroso

A 8 de fevereiro deste ano a PSP trouxe a mensagem musculada da expulsão. Afinal, dizem eles, só usaram os “meios coercivos necessários e adequados” à situação, para que o proprietário do espaço, que moveu a acção de despejo contra a associação, pudesse sair do local uma vez que “um grupo de pessoas estava a bloquear a passagem do proprietário, do mandatário judicial e da própria PSP”. Os meios foram uma violenta e desmesurada repressão. “A polícia estava lá a fazer uma das coisas para que serve: proteger a propriedade privada. Só que neste caso é uma associação, e de interesse público, o que complica as coisas. Teve uma atitude inqualificável, pôs em causa a segurança das pessoas ali, e levou um preso que nada tinha feito e que foi espancado na esquadra” conta Pedro Rodrigues, um dos sócios presentes, que se haviam reunido no prédio para discutir a situação e defender o espaço. Estavam ansiosos com os destinos do Grémio, e gritavam: “O Grémio é nosso!”, “Lisboa a quem a vive!” Foi quando os reforços policiais abriram caminho à força pelas escadas a varrer indiscriminadamente à bastonada tudo o que encontrassem. Fotógrafos e jornalistas aleatoriamente agredidos. Telemóveis arrancados entre provocações pelos polícias - e sem estarem identificados - num absoluto descontrolo. “Nós é que tínhamos que dizer calma, eles é que lançaram a confusão. E ainda se diz que as forças policiais servem para manter a calma.” comentam Dina e Olga, que já vamos conhecer. A associação foi corrida de uma hora para a outra, com todo o seu valor lá dentro, os 165 anos de espólio histórico: documentos, livros, móveis - e até a cadeira de barbeiro -, além das centenas de bebidas, pois esse ia ser um fim de semana com várias bandas a actuar. Como a instituição não tem onde guardar as coisas, ali ficaram, depois de inventariadas pelas autoridades e as fechaduras mudadas para que só o ‘fiel depositário dos bens’ pudesse entrar. Até se resolver... Se tivesse havido uma carta de ordem de despejo fora mais fácil ter preparado a saída. Ao mandar proceder ao despejo daquela forma brutal, o próprio senhorio reconhece, num fax

enviado à advogada do Grémio, que o fez indevidamente. Foi apresentada queixa contra a acção policial e ninguém vai esquecer a despedida do Grémio em forma de repressão de uma manifestação pacífica. O PESO DA HISTÓRIA Fundado em 1842, o Grémio Lisbonense foi distinguido com o grau de comendador da Ordem de Benemerência pelo então Presidente da República Óscar Carmona, no ano em que comemorou o primeiro centenário (1942), e com a medalha de mérito “Grau Prata” da cidade de Lisboa pelos serviços prestados à comunidade. Além destes louros, a instituição ostenta orgulhosamente na lista de sócios a frequentação de filósofos, escritores, músicos e pintores como Agostinho da Silva (que por lá fez conferências ‘com aquele seu jeito de comunicar’), Sam Levi, mestre Lagoa Henriques, mestre Lima de Freitas, maestro José Atalaia, Ferreira da Silva e o pedagogo João Lopes Soares (pai de Mário Soares), que mereceu uma placa comemorativa da sua passagem em 1970. Outros artistas contemporâneos se lhes seguiram. O edifício que o alojava não podia ser mais cobiçado! Desde logo, pela sua privilegiada localização (que faz a fortuna do edifício): em pleno Rossio em frente ao Teatro D. Maria II, destacando-se pela varanda do Tribunal da Santa Inquisição, por cima do Arco do Bandeira, mandada construir pelo Marquês de Pombal, após o terramoto de 1755 que destruíra o antigo palácio dos Estados onde eram sentenciados os hereges. A varanda continua a ser o melhor camarote para o melhor palco de Lisboa: o Rossio das manifestações, dos esquemas, dos namoros, das compras, das áfricas, das vitórias de futebol (com as câmaras da BBC e Sky aí bem posicionadas durante o Euro 2004). Depois, a amplitude do espaço. Mas, no interior, nem sempre foi assim, sala nobre continua com as mesas de bilhar, acrescentando-se a cadeira do barbeiro, mas havia um restaurante e azulejos antigos até meio da parede. Também o chão que era de madeira está forrado a uma massa de pedra e betão. Algumas destas mudanças, naturais avaliando a sua longevidade, são motivo de indignação dos herdeiros de tamanho património, a família Vasconcelos e Sousa, que desejava há muito tempo despejar os inquilinos, para quem seria difícil de digerir que um edifício com tamanho potencial e extensão rendesse apenas 350 euros por mês. A ASSOCIAÇÃO O senhor Alfredo Teixeira, presidente do Grémio, faz-nos viajar no tempo com os seus termos muito correctos, os colarinhos muito bem engomados e o cabelo bem aparado. O sorriso é matreiro (adjectivo que tem vindo a perder a sua matreirice). Matreiro no sentido de falar de uma coisa que só ele sabe e recorda assim. Para lá da janela do escritório da advogada onde conversamos, na Augusto Aguiar, a rua ganhará repentinamente o preto-e-branco das imagem de arquivo televisivo, quando se abre a caixa das memórias do Grémio. “Nos primórdios tinha uma acção muito diferente. Foi fundado por comerciantes das redondezas. Era uma associação para convívio, mas tomou uma dimensão filantrópica, com gratificações a pessoas menos protegidas pela sociedade, assistência, repastos e ceias de natal.” Havia um restaurante à entrada, na porta para uma grande sala, e as longas mesas enchiam-se de damas e cavalheiros sobretudo, onde se comia em colectivo. Caras de portugueses de outros tempos, elas de colares de pérolas e casacos de raposa e eles de chapéu e charuto em riste. Por lá passou gente com as mais variadas motivações, inclusive com ligação à Maçonaria que deram ao Grémio, segundo o sr. Alfredo, um grande implemento. Habitantes da Baixa, muitos reformados, quadros do Exército, capitães (como o sr. Aníbal, o anterior presidente), generais, muitos universitários, “professores que aí encontravam uma continuidade da sua vida profissional”. Enumera com entusiasmo as boas prestações da associação exemplar: tertúlias, sessões de cultura, defesas de teses, aulas, a conferência do Agostinho da Silva . Apesar do senhor Alfredo

CULTURA // 29


garantir que nunca se falava de política: “não havia política, nem os estatutos autorizam. Havia apenas o espaço de cultura!”, nós duvidamos. Há uns anos estava ele a jogar na sala de bilhar quando o convidaram para entrar para a direcção como secretário e depois passou a presidente. Além do trabalho administrativo, Alfredo Teixeira tinha muito com que se entreter: cartas, damas, bilhar, e podia sempre recorrer aos serviços de barbearia. Em tanta actividade lúdica, nada havia relacionado com desporto, só cultura. “Tínhamos um grupo cultural, os Andarilhos, que visitavam todos os bairros de Lisboa e por todo o lado levavam o nome do Grémio. Depois, escreviam o que viam e enviavam relatório todos os anos.” As sucessivas direcções sempre trabalharam em articulação com a Junta de Freguesia de S.Nicolau, que ali realizou muitos dos seus eventos, inclusive rastreios médicos e sardinhadas. Recentemente, depois da Câmara de Lisboa ter emitido um parecer positivo, decretou-se a utilidade pública do Grémio Lisbonense. Chegados à constrangedora situação actual, lembra o desgastante processo jurídico que a acção de

providência cautelar acompanhada pelo presidente da Junta, que sempre teve uma conotação simpática com o Grêmio, seguiram-se os trâmites “e nós continuávamos por ali.” Até porque coincidiu com o aparecimento de três jovens que dinamizaram o espaço e trouxeram novos sócios ao clube dos mais idosos. “A partir da altura em que elas tomaram conta das actividades conseguiram muitas inscrições. Sempre houve bom ambiente e louvamos as suas iniciativas.” Foi uma nova fase da vida do Grémio, mas já lá vamos. Globalmente é uma instituição muito ligada àquele espaço pombalino, “não pode ser noutro sitio senão acaba. Só tem a sua utilidade pública, cultural e social se for ali.” Esta é a “ansiedade que a gente tem de reavermos aquilo e continuarmos ali.” É uma situação que Alfredo Teixeira lamenta, tendo-se visto forçado a mudar de poiso. Subiu uma encosta da cidade e passa as tardes no Jardim da Estrela. “Há uma casinha junto ao hospital, a sala do idoso, é para ali que vou todos os dias jogar às damas.” Alguns sócios também aparecem, outros foram para a Academia, outros para a associação dos jogadores do bilhar, no Conde Redondo, “mas todos queremos voltar ao Rossio”.

despejo envolveu. “Fomos julgados na 1ª instância, perdemos, tribunal da relação, perdemos, no constitucional, perdemos. A partir daí aguardávamos a notificação para o despejo. Mas houve um anjo-da-guarda que nos salvou...” Era a advogada Paula Alves de Sousa que aparecera numa sardinhada organizada pela Junta, a convite de um cliente seu e - bendito Santo António! - se sensibilizou pela causa do Grémio começando a montar uma estratégia. Em virtude do estatuto de utilidade pública o caso tinha de ser julgado em tribunal administrativo. Interpôs uma acção de

UM PONTO DE ENCONTRO

30 // CULTURA

Olga Cruchinho estudara Comunicação Social e naquele momento estava numa fase de ruptura com outras coisas da sua vida. Dina Almeida tirara Artes Gráficas e acabava de chegar de uma viagem de um ano. Ambas nos inícios dos 30 anos, disponíveis para começar uma nova coisa com mais um amigo. Foram ao Grémio, onde tinham feito uma festa de Carnaval, encontraram “um bar que só tinha duas cervejas no frigorífico, um café mau e nem sempre alguém para servir.” E

de repente... “percebemos que a renda era extremamente barata e que valia a pena tentar. Fizemos uma proposta para o bar.” Foram desde logo alertadas de que havia um processo e que a qualquer momento o Grémio podia ser notificado, o que acabou por as motivar: “achámos mesmo que, se o dinamizássemos, íamos ajudar o Grémio a ficar neste espaço.” Começaram em Julho de 2007, numa altura em que muita gente está fora. Porém, o espaço já era sobejamente conhecido porque se alugava para festas. Para ir ganhando confiança com os associados, faziam o bar e começaram por pagar metade da renda. “Depois comprometemo-nos em assegurar as despesas e eles deram-nos carta branca.” Sucederam-se os concertos, de novas bandas, em que os grupos ficavam com a porta e elas com o bar, o que estimulava as bandas a trazerem muitas pessoas. Depois, a divulgação foi-se fazendo naturalmente de boca em boca. “A onda era: Queres entrar? Tenho um espaço! E de repente já tínhamos muitas pessoas a propor-nos coisas. Tentámos ser o mais ecléticas possíveis. Evitávamos só música muito violenta porque o edifício é antigo.” Tudo isso nos contam as impulsionadoras da ‘onda’. A programação não tinha uma linha, mas talvez a palavra interculturalidade lhe assentasse bem, pois ali dialogavam coisas das mais diversas proveniências: Erasmus, Leonardo da Vinci, brasileiros, nepaleses, miúdos da Cova da Moura (para quem angariaram dinheiro para irem representar Portugal no Carnaval da Baía), e inúmeras associações que andavam à procura de um poiso. As actividades passaram a ser de tudo um pouco, “mas o mais dominante era malta nova com bandas”. Ora vejamos um bocadinho do que passou por lá: workshop de guionismo e serigrafia, grupos de teatro que lá iam ensaiar, a roda de choro e as Milongas todas as semanas, lançamento de livros e de publicações como a A23 ou a Telhados de Vidro e o jornal Mudar de Vida. Dança contemporânea, oriental, samba e forró. Concertos como o de José Mário Branco, fado, música brasileira e muitas músicas do mundo, além de imensos grupos como Conjunto Pau, Presidente Drogado e Nossa Senhora, A Feromona, Bluzz, Riddim Culture Sound, Projecto Ponkies, o duo Pedro e Diana, Atma e Nata, Mimicakix e Anita no Brasil, Farra Fanfarra e Los Cubos, e muito jazz: projecto Almagreira; jam session com Tânia Vaz e Francisco Artur; Off Jazz Quartet; Loose Canon; BÄ MBO; Ana Paula Trio, The Shoklats, Rising Echo, A Caravana, Duas Semicolcheias Invertidas, A Loja das Conveniências. E até o Toy animou uma das noites. Realizaram-se exposições e feiras (de troca de discos, de artesanato, de arte e de BD) assim como festas temáticas: Loucos Anos 20, aniversário do Grémio, Halloween, angariação de fundos, anos 60, festa Hippie, de Carnaval e a festa visionária “O Grémio tem a cabeça a prémio”. Tinha mesmo. Também houve lugar para debates, como “Reflexões sobre a cultura”, com Lauro António e Pedro Barroso e “A noite precária” sobre a precariedade contratual que foi organizada pelos precários inflexíveis e ainda não pelo May Day. “Era apenas um debate/festa para levantar estas questões e mostrar a outras pessoas que existíamos”, conta Pedro Rodrigues, da organização desta festa, como manifestação de revolta da situação em que estão os precários que “querem não ser pau para toda a obra, menos explorados e terem contratos com direitos” ou seja, contra as vidas a prazo.


AS PESSOAS ESTÃO SEDENTAS DE ESPAÇOS Na defesa da “dinâmica cultural da Baixa de Lisboa, contra a cidade desocupada, das casas emparedadas, da especulação imobiliária e dos negócios de luxo”, lê-se no blog do Grémio. Contra a cidade envelhecida, em que as ruas são sinistras e a vida é só para dentro de paredes, e com este notório aumento de actividades culturais (nem sempre sinónimo de qualidade nem de mais cultura), surgem pequenos nichos de acolhimento para este ‘entusiasmo cultural’ e de festa. O mais interessante é que parecemos voltar ao tempo em que as pessoas estavam juntas e queriam fazer coisas juntas. De novo Pedro Rodrigues, “é uma luta pelo espaço público, contra a privatização e o fechar de tudo o que são excepções na cidade. O capital põe bancos no centro e empurra o que não dá lucro para as margens. O Grémio está mesmo no centro de Lisboa, nesse sentido há qualquer coisa de exemplar neste caso.” Apesar de faltarem espaços contam-se alguns de âmbito cultural nos últimos tempos como referências diferentes, refiram-se o Braço de Prata (com uma afluência constante), o Bacalhoeiro e a veterana Zé dos Bois. E houve o Monte, numa outra linha. No reconhecimento de uma “rede” relativamente interessante, Pedro Rodrigues estranha, porém, que “às vezes é mais fácil organizar um concerto do que arranjar um espaço para fazer um encontro ou uma reunião à noite sem barulho num sítio central público. Deve ser das ‘especializações’.” Era essa guetização que o Grémio contrariava, ainda que o ser eclético por vezes resvale para um nivelamento em que vale tudo, uma vez que não há critérios definidos. “As pessoas estão fartas de sítios de gueto, tipo carneirinho, em que vais ali e tens que ser assim, usar aquela camisola. No Grémio estavas descontraído, cada um era da sua maneira.” E era precisamente o trabalho partilhado e o ambiente familiar que fazia a magia da coisa. A SITUAÇÃO ACTUAL Depois da ordem de despejo, os participantes das festas e actividades não foram, como os antigos sócios, jogar damas para a Estrela, mas deramlhes seguimento noutros lugares: Voz do Operário, Ass. 25 de Abril, Centro Social da Mouraria, Clube Ferroviário de Portugal, Ateneu Comercial de Lisboa, Teatro da Comuna. Mas não é a mesma coisa. Ainda se vão fazendo novos sócios (já são cerca de 200, entre eles pessoas do mundo do rock dos Ena Pá 2000 e dos Peste & Sida, o poeta Manuel de Freitas, a coreógrafa Olga Roriz), mas assim não é a mesma coisa. Em termos jurídicos a associação multiplicou-se em “reuniões com quase todos os vereadores da Câmara, e todos queriam contribuir para que o Grémio continuasse aí”, conta o Presidente Alfredo. A situação actual é que a Câmara Municipal de Lisboa substituiu o Grémio nas negociações com o senhorio, propondo para o edifício o estatuto de imóvel de interesse municipal. O espaço histórico e pombalino da cidade de Lisboa e a sua localização privilegiada contribuem para que a Câmara se dedique à luta por este espaço, e pela persecução da actividades do Grémio no mesmo. A advogada confirma-nos que o recurso já foi admitido e estão à espera dos próximos capítulos. Entretanto esta situação jurídica do Grémio contribuiu para que houvesse um certo afastamento do grupo cultural. Todos têm presente a idéia de que aquele espaço, e só ali, é a garantia de continuar em força. Não existe uma ideia de continuidade como grupo propriamente, era sobretudo aquele espaço que unia pessoas tão diferentes que, com idéias tão diferentes, ainda não se sentaram em assembleia para que todos pudessem discutir o que fazer e o que pretendem desta associação. “É uma questão de honra.” Afirma Olga Cruchinho que garante que “um espaço físico mantém as pessoas ligadas”, confessando por fim: “pessoalmente já não acredito em nada, só vendo.” Mas no fundo, no fundo sabemos que acredita. [x]

CULTURA // 31


,, Entrevista a Urbano Tavares Rodrigues

‘Os Cadernos Secretos do Prior do Crato’

Testemunho ou Testamento?

Romance histórico: “O Campo das Promessas” e “Os Cadernos Secretos do Prior do Crato” No romance “O Campo das Promessas”, atraiu-me fundamentalmente o sonho do Vasco da Gama de ir à Índia e desbravar mares e terras, bem como o diálogo que se estabelece entre ele e o amigo. Um diálogo de um homem de acção e um homem de reflexão, que é o diário entre um homem da Renascença e um homem que já pertence ao futuro e que sonha com um futuro diferente. “Os Cadernos Secretos do Prior do Crato” foram feitos com prazer e com sofrimento. Não sei se será um livro de testemunho, um livro de testamento, certamente que é. Eu diria que é um livro da procura da serenidade, através da angustia e através do remorso, da perplexidade e da luta. O Prior do Crato não era exactamente o homem fadado para ser o rei de Portugal e para encabeçar a luta contra Espanha. Já Jorge de Sena o tinha sentido também, na peça de teatro o “Indesejado”. Aqui ele é um místico sem Deus, ou alguém que O procura através da sensualidade, através da batalha, através de múltiplas experiências, encontrando a sua serenidade, de certo modo, no final do livro. Ele recusou o lado obscuro, o lado proibitivo e, então, eu diria, a parte final do livro, quando ele já se encontra em França a envelhecer, é justamente de uma serenidade perturbada que está no encontro do homem com a totalidade. Testemunho ou Testamento O Prior do Crato tem muito haver comigo. Escolhi-o um pouco por isso. Ele é um herói de causas perdidas, como eu fui na luta durante a minha vida toda, durante o fascismo e,depois, lutando por uma democracia avançada, a caminho do socialismo.”Os Cadernos Secretos do Prior do Crato” retrata a agonia de uma pátria que só vai ressurgir em 1640. Mas é também um testemunho de mim próprio, até mesmo na relação dele com as mulheres. Há qualquer coisa de experiências minhas também, de uma reflexão sobre o direito que se tem de, no fundo, utilizar as mulheres como objectos de descoberta e prazer. É essa curiosidade do ser humano e essa sensualidade que ele sente como remorsos que me atraiu. Esse remorso é também testemunhal. Deus Foi uma necessidade minha para criar o Prior do Crato. Este livro é mais Prior do Crato do que Urbano Tavares Rodrigues porque o Prior do Crato é um homem que pensa no além e o livro em Latim mostra isso. No meu livro, a ideia de Deus esbate-se um pouco e o Prior do Crato já é outra vez Urbano Tavares Rodrigues, sem deixar de ser o Prior do Crato, nessa procura que é o Uno, que é a unidade de todas as coisas e que seria uma visão quase panteísta, algo que me é intrínseco.

Texto | Ricardo Paulouro e António Melo Fotos | Rui Dias Monteiro

Começou a publicar há mais de 50 anos. Mas muito lhe devem a crítica e a teoria literárias do século XX. “Os Cadernos Secretos do Prior do Crato” são a sua última obra que é, mais uma vez, um desejo de reflexão antropológica com o leitor. No tecido literário, Urbano Tavares Rodrigues cruza vários fios. Homem sedutor e generoso, é difícil traçar um retrato preciso de alguém que permaneceu fiel às suas convicções e à ética que lhe sustenta a literatura e a vida 32 // LITERATURA

Regressar ao Alentejo É sempre bom regressar ao Alentejo. Eu procurei isso mesmo, uma escrita muito limpa, mas ao mesmo tempo poética sem ser barroca. Uma poesia que não se deve sentir muito mas que está lá. As personagens femininas Em “Os Cadernos Secretos do Prior do Crato”, Elisabeth de Vignancour foi uma personagem criada por mim. A única referência que tenho é que o Prior do Crato teve uma relação com uma senhora em França. Sabe-se que o Prior do Crato teve experiências eróticas acauteladas quando era governador de Tânger, mas não se sabe com quem. Por isso, inventei também Amina, uma algarvia levada para Marrocos e que


Até hoje nunca desapareceram completamente as marcas existencialistas, nem as marcas surrealistas.

depois se apaixona pelo Prior do Crato. Representa o encantamento erótico, o prazer quase puro, que é a mescla da sensualidade e da ternura e da aceitação de uma dádiva. As duas são completamente diferentes. Uma é só sentidos, a outra é a cabeça.

Maior escritor português do século XIX Para mim é o Eça de Queiroz. A omissão de Eça em Teixeira Gomes é fruto de uma moda. Ele, o Fialho de Almeida toda essa geração reage contra o Eça. É a vontade de matar o Pai.

Misericórdia A palavra misericórdia é uma palavra que tem um valor não só cristão mas tem também um sentido universal, quer dizer a compaixão, partilhar do sofrimento dos outros. A entreajuda é um valor que está presente em toda a minha obra. Eu sou marxista mas nunca achei que lutar pela transformação do mundo seja suficiente. É preciso lutar no concreto por cada ser humano.

Existencialismo e Neo-realismo Eu regressei a Portugal e comecei a trabalhar como jornalista no Diário de Lisboa. Isso deu-me uma imagem da vida e do poder. O fascismo português repugnava-me. Eu tinha uma ânsia de luta enorme que faz com que escreva livros de resistência que se confundem com o Neo-realismo, um período onde escrevi “Uma Pedrada no Charco”, “Os Insubmissos”. No entanto, mesmo nesse período, nunca abandonei características que não são neo-realistas, como a convicção de que não se pode separar o conteúdo da forma, quer dizer, tenho preocupações estéticas ao nível da linguagem que o Neo-realismo nunca teve, ou teve muito pouco. Por outro lado, não tenho um herói colectivo e os meus livros desaguam muitas vezes em zonas muito sombrias. Em relação ao povo tenho quase sempre uma visão subjectiva que não é própria do Neo-Realismo e aparece apenas, em certa medida, em Carlos de Oliveira, que é um Neo-Realista muito sui generis. Nunca cheguei a ser verdadeiramente um Neo-Realista. Fui, sobretudo, um escritor de resistência que, por vezes, se pode confundir com o escritor neo-realista.

O que posso saber, o que posso fazer, o que me é lícito esperar O que é lícito esperar é aquilo que qualquer ser humano, em alguma fase da sua vida, se terá interrogado: o que há para além da morte? Eu sou um agnóstico, não acredito em Deus mas não nego a possibilidade de haver uma experiência de energia, ou uma forma superior de matéria que nos sobreviva e que seja, portanto, uma continuação da espécie. O Oscar Lopes creio que partilha um pouco esta minha idéia, sendo também marxista. Isto é, não vejo a divindade de Jesus, mas tenho uma grande simpatia pela figura de Jesus como alguém que vem pregar uma fraternidade, que procura uma redignificação da mulher, que tem ao seu lado os mais pobres e deserdados. A mensagem de Jesus é uma mensagem que a igreja católica tradicional hoje condenaria. Se Ele cá voltasse seria outra vez cuxificado, seria outra vez o Cristo.

Estilo O meu estilo é a mistura do estilo de Teixeira Gomes, um estilo que tem a ver com o decadentismo e o simbolismo, e o Camilo Pessanha que me marcou profundamente e cujo onirismo marcou muito a minha escrita.

Do marxismo ao capitalismo Eu diria que não há dúvida que o desaparecimento da União Soviética veio demonstrar que havia certos erros que não podem voltar a ser cometidos. O repensar as possibilidades do socialismo no futuro é absolutamente legítimo. Creio que o marxismo nunca foi tão importante como hoje, que é preciso lutar contra a forma extremamente egoística do capitalismo de mercado livre que conduz à miséria e à exploração, bem como à escravização de muitos seres humanos.

Fernando Pessoa Li muito Fernando Pessoa e interesso-me muito pela sua obra. Não sou dos escritores, como Vasco Graça Moura, que o recusa. Eu, pelo contrário, acho que ele é um pouco o pai de todos nós, em muitas coisas. Não seria o escritor que sou se não tivesse lido Fernando Pessoa. Ele estilhaça a língua portuguesa, sobretudo com o Álvaro Campos.

Obras completas Eu tinha a necessidade de publicar tudo sob a forma de “Obras Completas”, mesmo as coisas mais fracas, como por exemplo, “As horas perdidas”, que deve ser o meu romance mais fraco, escrito ainda antes dos vinte anos. Talvez porque me queria rever por inteiro com as minhas ideias, a minha sensibilidade, com aquilo que fui, com aquilo onde falhei, com aquilo onde acertei. Família A Isabel (Fraga) tem mais influência da mãe, embora também tenha algumas marcas do pai. Acho que é uma escritora cheia de talento. Ela é uma escritora como a Maria Judite de Carvalho, um pouco secreta, que não gosta de se expor. Geralmente tenho o privilegio de ser o seu primeiro leitor. Geração É curioso, eu não sou surrealista mas sofri uma grande influência do surrealismo francês que li desde muito cedo. O Manuel Gusmão, numa analise à minha escrita, refere elementos surrealistas muito sensíveis, no Alentejo mágico, em a “Porta dos Limites”, em muitos textos da “Noite Roxa”.

Prémio Nobel Se o Saramago não tivesse ganho bem poderia ter sido o António Lobo Antunes. Poderia também ter sido uma poetisa como Sophia de Mello Breyner.

O que é lícito esperar é aquilo que qualquer ser humano, em alguma fase da sua vida, se terá interrogado: o que há para além da morte? Eu sou um agnóstico, não acredito em Deus mas não nego a possibilidade de haver uma experiência de energia, ou uma forma superior de matéria que nos sobreviva e que seja, portanto, uma continuação da espécie -

Leituras No que diz respeito a uma geração mais nova de escritores, gosto muito de ler o José Luis Peixoto e o Possidónio Cachapa. Vejo surgir três escritores muito interessantes que são a Dulce Maria Cardoso, a Maria Antonieta Preto e a Patrícia Reis, com talentos diferentes. O Gonçalo M. Tavares, embora não seja da minha família, acho que é um escritor com futuro. Novo Livro Um livro de contos inéditos que foram escritos em alturas diferentes da minha vida, ao longo dos últimos anos, e mostram várias maneiras de escrever. Contos realistas, contos de humor trágico, contos mágicos, contos alegóricos. Apostei mais na grande variedade da escrita do que propriamente na unidade. A unidade terá de ser uma procura no meu estilo que percorre um pouco todo o livro. [x]

LITERATURA // 33


,,Entrar para sair Texto | Luiz Antunes

Estava sentado nas cadeiras de um dos estúdios da Escola de Dança do Conservatório Nacional, para assistir à apresentação dos alunos finalistas, quando me deparo com a entrada de um corpo mulato e esbelto envergando as roupas da Kitri, personagem principal do Bailado D. Quixote. A variação chegou ao fim e o que me ficou de sensação e na retina foi o touche, a sensualidade e a energia contagiante com que esta foi dançada. Vânia Doutel Vaz era a protagonista de tais sensações. O percurso desta jovem bailarina | intérprete é curioso pela dimensão de pré-conceitos e preconceitos ultrapassados. Um breve retrato sobre uma rapariga formada na única escola oficial vocacionada no ensino artístico para bailarinos, onde se aprendem os princípios e valores da Grande Dança, e que se vê obrigada a saltar de “dança” em “dança”, deparando-se com balcões de discotecas como palcos para sobreviver e partners que nada mais são que curiosos da profissão. Este percurso levanta algumas questões pertinentes; porquê alimentar sonhos a jovens bailarinos se depois não temos forma de os absorver no nosso mísero mercado artístico? Porque continuam os palcos de norte a sul do país vazios de criações nacionais? Porque é que as criações subsidiadas têm uma estreia de duração de vida? Porque é que a dança de carácter mais comercial não está nas mãos de profissionais, mas sim de gentes pouco conhecedoras da área? Enfim… são subtextos que surgem… Tropeçou na dança por acaso devido aos pés valgos da irmã, depois de ter frequentado, ainda muito nova, os ateliers de teatro com Mário Viegas e Maria Vieira no Teatro Municipal S. Luiz em Lisboa. Tudo começou pelas mãos de Fernanda Mafra com quem deu os primeiros passos de pés em en dehor. Vânia Doutel Vaz, que é então a menina de 10 anos, tem agora 23. Na sua íntima vontade pensava ser “bailarina de dança contemporânea”, pois deparou-se com as mudanças do seu corpo e rapidamente esqueceu o sonho dos tutus brancos e das personagens idílicas, mas sendo aluna do Conservatório de Dança Nacional o objectivo era chegar ao fim, mais que não fosse por brio e com uma constante ideia de perfeição. Forjou-se e moldou-se dentro das paredes daquela casa no Bairro Alto, local onde as ideias parecem ser pouco a pouco moldadas pelo tempo, mesmo que com muitas dificuldades, não estivéssemos “nós” à beira mar plantados. Refere como pilares na sua formação nomes como Luísa Taveira, “uma referência como bailarina, um exemplo como professora, um sentido apurado e pragmático da Técnica Académico Clássica, Georges Garcia pela sua exigência e rigor e José Luís Vieira como alguém que me viu para além do não clássico existente em mim”, diz. No seu exame final teve como júri, entre outros, o coreógrafo Vasco Wallenkamp e a Primeira Bailarina do extinto Ballet Gulbenkian, Graça Barroso, que lhe dirigem o convite de imediato para ingressar a Companhia Portuguesa de Bailado Contemporâneo, como bailarina estagiária. Começa por relatar a sua primeira experiência profissional com a seguinte frase: “todas as experiências são positivas no sentido acumulativo” e salienta o facto de se ter sentido muito desprotegida, num período em que Vasco Wallenkamp não estava em fase de criação e a companhia profissional tinha um carácter deveras familiar. Depois de 10 meses não viu o seu contrato renovado e começa a saga das audições. Começou pela Holanda onde, num estúdio onde fazia aulas particulares, recebeu um convite para trabalhar num projecto com o coreógrafo inglês Benjamim Love em Londres. Foram quatro meses de ensaios que passaram também por Covent Garden e que acabaram em glória no teatro Sadler’s Wells. O sonho inglês e as dificuldades de tão cosmopolita cidade caem por terra, e o regresso a Portugal é inevitável. A realidade portuguesa é dura e começa a “fase dos nãos”. Projectos que se iniciam e que morrem à nascença, convites que não dão em nada… meses de ensaios para uma estreia e

34 // CULTURA

nada mais, a nossa realidade. Seguem-se seis duros meses sem trabalho, onde o excesso de tempo a leva a pensar na sua Dança, na sua condição… a decisão foi parar e repensar a sua vida enquanto bailarina | intérprete e a grande questão surge: Dançar seria uma necessidade ou simplesmente um hábito? Tornou-se independente, saiu de casa dos pais, trabalhou como balconista numa loja de roupa, mas depois de quatro meses decide continuar a sua formação e, entre workshops e aulas, ingressa no curso de Pesquisa Coreográfica do Fórum Dança. A menina do conservatório, o que em determinados meios é um estigma, conhece o outro lado da Dança pelas mãos de Vera Mantero, João Fiadeiro, Emanuel Huyn e Nuno Bizarro. Esta nova realidade da dança independente portuguesa leva-a até à produtora Bomba Suicida onde colaborou em alguns projectos pontuais, não fosse este meio tão fechado quanto o da Dança Clássica, é que por vezes os opostos atraem-se. Mas o preço da independência por vezes é caro, e a necessidade de sobreviver era uma condição. Depois de um telefonema de uma amiga, soube de uma vaga para bailarina no Parque Mayer para “A REVISTA É LIIINDA” (do Francisco Nicholson e Mário Rainha) e depois de um dia de ensaios estreou no dia seguinte. Surrealismo puro. Outra realidade, sapatos altos, pernas desnudas, decotes ousados, plumas e lantejoulas. Deixou de subir a cena como bailarina, mas como mulher, afirma, trespassando no seu sorriso o subtexto adjacente. Mas foi nas tábuas do Maria Victória que lutou contra os seus próprios fantasmas e com os tabus dos colegas e amigos que viviam outras realidades na Dança. Considerou que foi uma escola de palco, onde criou relações. No início o que era uma vergonha passou a ser um dado adquirido, criando para si a máxima “tudo pelo palco, tudo pela arte”. Depois outros projectos comerciais surgiram e passou a integrar grupos de dança que animavam discotecas “onde os bailarinos são uma espécie de cenário vivo”. Outro convite surge: participar no filme de Carlos Saura, “Fados”... e assim foi rumo a Madrid. Logo de seguida ingressa na companhia de Rui Lopes Graça durante nove meses, onde participa no trabalho coreográfico “Arte e Fuga” com música da Bach, e onde se reencontra com o seu corpo e com a sua Dança. Depois de tão díspares experiências começa a usar o seu corpo, o seu instrumento de trabalho de uma forma mais livre, explica. Voltou à fase de instabilidade, mas continuou com projectos pontuais, tanto com o jovem coreógrafo e ex-colega de conservatório Luís Guerra, como com Miguel Moreira na Ópera “Orpheu e Eurídice” levada a cena no Teatro Trindade. O pão começou novamente a fugir-lhe da boca e decide voltar a sair de Portugal. Curiosamente, encontro a Vânia num café de Den Hagg, na Holanda, onde se fazia acompanhar por um bailarino luso-holandês da companhia NDT II, Roger van Der Poel, amigo e ex-colega do Conservatório de Lisboa e que foi recentemente galardoado com o prémio de jovem bailarino revelação. Vânia Doutel Vaz estava de novo envolta nos seus medos e fantasmas, fazer audição para uma companhia de topo. Nunca tinha sido um sonho pois nunca quis criar expectativas, pensava. Depois de ter sabido que após várias dezenas de jovens bailarinos tentarem a entrada na companhia ainda existiam dois contratos para mulheres vagos, propôs à direcção uma audição privada. Regressou a Lisboa sem expectativas, pois os directores não tinham tido disponibilidade total de a avaliarem. Foi-lhe pedido que enviasse um DVD com um solo. Quem de direito gostou do que viu, viu talento, viu garra, viu uma energia contagiante e sensualidade, uma técnica resolvida, qualidades da mesma Kitri que vos falei no início. Regressou aos estúdios da companhia de Dança Holandesa, agora como convidada para mostrar o seu valor ao vivo… encontrou mais duas bailarinas que também o faziam… e o problema era que o lugar disponível era apenas um… Apesar da companhia não costumar aceitar bailarinos com mais de 21 anos, ela foi uma excepção e conseguiu um contrato de dois anos, onde vai dividir barra com outro jovem português, César Fernandes, que acabou de conseguir também contrato. Realmente as mentalidades e os palcos portugueses são demasiado pequenos para gente assim. [x]

,,Debaixo de olho

Ladies and Gentleman I give you... ”Professor Nieto Show”

Texto | Pedro Teles Ramos

Luis Nieto estudou Comunicação e Linguística na sua Colômbia natal entre 1998 e 2001 quando decide mudar-se para França onde completou os seus estudos na Escola de Belas Artes de Toulouse e na ENSAD de Paris. Um curriculum igual ao de tantos outros jovens artistas que tentam cada vez mais neste mundo sem fronteiras completar a sua formação nos mais variados países como se isso só por si fosse um atestado de maior capacidade. A grande questão é que não é artista quem quer mas sim quem pode e principalmente quem tem reais capacidades para isso. Existe hoje em dia uma venerada corrente artística europeia que assenta na realização de obras estranhas, indecifráveis ou inclassificáveis, e em que o autor é tanto mais elevado à condição de artista quanto maior for a incompreensão da sua obra pelos comuns mortais (Também ajuda não comer carne, vestir roupas estranhas, não tomar banho com regularidade e fumar muita ganza. Tudo isto dá pontos). Já os sul americanos têm uma postura tão descomplexada e popular face à arte e nomeadamente ao audiovisual que transforma estas cinematografias nas mais refrescantes e estimulantes dos dias de hoje. Luis Nieto deu-se a conhecer com Carlitopolis, uma curta de animação e imagem real realizada em 2006 e que foi sendo descoberta por meio mundo ao longo destes 2 últimos anos. É uma simples e divertida peça audiovisual, realizada sem grandes preocupações estéticas mas com um ritmo e uma “mise en scéne” perfeitamente adequadas, que questiona a ética da clonagem através de pequenas e hilariantes experiências feitas com um rato de laboratório. Uma pequena peça que pode ir do divertimento puro e simples a níveis de leitura e discussão verdadeiramente profundos. E é com base nesta sua primeira obra que Luis decide montar o “Professor Nieto Show” constituído por 5 episódios/experiências que vão desde as baratas futebolistas brasileiras até aos Chihuahuas assassino de bébés passando pelos pequenos Pintaínhos gladiadores.. E porquê experiências com estes pequenos e inofensivos animais com os seus olhinhos cintilantes? Essencialmente por provocação. Porque hoje em dia as pessoas são extremamente sensíveis a qualquer dano físico provocado a um animal, mesmo quando este não passa de pura animação encenada como é o caso dos pequenos filmes de Luis Nieto.


,, o teatro do silêncio,

o teatro da fuga, o teatro da esperança Texto | Pedro Fiúza Fotografia | Nelson Fernandes

Há umas semanas no meu programa televisivo preferido num canal de televisão local de Barcelona (TeleMonegal na BTV), o seu inteligente e acutilante apresentador, o grande Ferran Monegal, mostrava como o tratamento noticioso dado a um episódio doméstico em que o proprietário de um cão lhe batia violentamente tinha suscitado uma onda de escândalo e indignação incomparavelmente maior que o de uma notícia do mesmo dia em que milícias iraquianas matavam um civil na rua. Nos anos 50 e 60 grandes cineastas como os irmãos Taviani, Ermano Olmi ou Luis Buñuel usavam cenas de mutilação de animais nas suas unanimemente consideradas obras de arte. Hoje em dia estes cineastas arriscavam-se a ser presos e condenados como se dos maiores criminosos se tratassem. Atenção que com isto não quero vir aqui defender a livre mutilação das pobres criaturas que nos servem de companhia ou de substituto afectivo. Simplesmente acho que Nieto conseguiu da forma mais simples e divertida investir contra a hipocrisia reinante do cada vez maior número de defensores de direitos dos pobres animaizinhos que depois encontramos na nossa fila do supermercado com a sua embalagem de bifes debaixo da protecção moral das couves de bruxelas e do tomate biológico. As reacções negativas e de reprovação às hilariantes animações com animais de Luis Nieto são do melhor que assisti nos últimos tempos. Reacções muito mais viscerais e autênticas que a obras pretensamente destinadas a uma reflexão profunda por parte do espectador. Estes pobres animais virtuais do professor Nieto contam-nos muito mais sobre nós próprios que tantos e tantos filmes sofridos e complicados feitos por gente sofrível e complicada para a qual já não há pachorra. E é porque o espírito do IMAGO sempre foi despretensioso, descomplicado e acima de tudo inteligentemente divertido que Luis Nieto vai ser um dos convidados de excepção do festival e até já estamos a fazer um casting de ovelhas para a sua nova experiência. O Professor Nieto Show é animação brilhante combinada com imagem real divertida sustentada na original e básica herança que Méliés deixou a todos os amantes da sétima arte. Até ao IMAGO todos aqueles que queiram dar os seus animais para ajudar as experiências científicas do professor podem escrever-lhe para animaux@profnietoshow.com [x] Profesor Nieto Show: http://www.profnietoshow.com/ Telemonegal: http://www.barcelonatv.com/programacio/detail.php?id=37 Autour de Minuit Productions: http://www.autourdeminuit.com/ Banda Sonora: The Notwist – The Devil, You + Me : http://www.notwist.com/ BD a condizer: Le Grand Autre – Ludovic Debeurme http://www.bdgest.com/ chronique-2628-BD-Grand-autre-(Le)-Grand-autre-(le).html

num país descalço, mergulhado no lado opaco das coisas, há um rumo indefinido. um teatro de pedra. uma espécie de ruína antiga, vazio de vida, dominado por esqueletos detentores de uma grande verdade nula. fraude. subversão. impotência para girar. gritar. abutres. esgravatam no corpo dos fracos com o seu peso autista. ninguém diz nada. chama-se teatro a uma miragem de coisa nenhuma. tantas ilusões sentenciadas, abusivamente assistidas, pactua-se com a fraude com os olhos tão cheios de coisa nenhuma, números estatísticos, fórmulas, quantidades de espectadores, seres que comem o seu bilhete com a vaidade de quem se sente especial, assistentes do mero nada, da fantochada oficial, do desfile do ridículo. teatro e ilusão. como é possível que o silêncio ocupe as cabeças? que num país que se oferece a si mesmo tanta tradição revolucionária, a única coisa que se ganhe seja o silêncio? o consentimento. o pacto cego. a ilusão do espectador. a verdade que todos sabem, Portugal é um país onde há muito pouco teatro, há teatro a mais mas é num sentido inverso, é o teatro da vida. há muito pouco teatro teatro em Portugal, deste pouco se tirarmos o que tem uma qualidade ambígua, ainda menos existe. as figuras de referência ou morreram ou estão com os dias contados. a geração dita revolucionária não desiste do poleiro e anula o salto. a geração que se está neste momento a apropriar dos rumos tem as fórmulas antigas. a juventude recusa a voz, não a exige, não tem condições para viver, não tem condições para trabalhar, não tem condições para produzir a sua necessidade, quando as tem são limitadas, a juventude come os restos da geração poleiro e da geração que espreita desenfreadamente por cima dos ombros da geração poleiro. ainda não se fez nada. continuam-se com metáforas autistas das revoluções. nas manifestações, as frases que se gritam têm o mesmo tantan que tinham na altura efusiva que não vivi. não há gritos de guerra. teatro na política, política no teatro, a história dos subsídios vai afundando tantas ilusões... o jogo dos subsídios... quem é mais amigo de quem... quem é mais protegido por quem... quem é mais bem relacionado... nada disto passa por perspectivas de qualidade, tudo esquemas com concursos mais ou menos feitos, quando os resultados já se sabem com antecedência. triste mas verdade. bem, o melhor que há a fazer num país assim é usar o aeroporto e ir para outro país. o melhor que há a fazer num teatro com estas definições é não o fazer ou procurar outro. é o que estou a fazer. tirar férias do teatro. desistir deste país. deste Portugal mínimo, fraudulento, tantas e tantas vezes grotesco na essência, tantas e tantas vezes insignificante na forma de pensar o futuro ou o presente, como se a grande bandeira fosse um passado de não sei quantos anos de história e uma revolução inevitável, porque a revolução era inevitável, todas as revoluções o são, até a próxima. precisamos de um teatro que volte a devolver a esperança e que consiga encher o corpo. precisamos de um teatro que anule as coisas que têm de ser anuladas, um teatro útil. chega de prateleiras de pó ou da sua anulação fácil, a performance. a única coisa que a performance fez foi transformar os tantans em gemidos mascarados de intelectualidade. nos últimos anos assistimos a um crescimento quantitativo do acontecimento performance e a um congelamento, em quantidade e qualidade, do acto teatro. parece que hoje, um artista que faça parte do seu tempo tem de fazer isso da performance, mesmo que seja uma paródia ao próprio acontecimento. teatro nada. lá insistem as carcaças velhas e decrépitas (há excepções) no seu ritmo caduco, no seu teatro mole, no seu nada a dizer, na sua engorda!!! porque há quem ganhe bom dinheiro com isso do teatro!!! há muitos esquemas neste mundo!!! tantos!!! tanta coisa para queimar. esfregar as mãos de contentamento com os fracassos dos outros porque é muito melhor do que assumir que estamos todos no mesmo barco e que o barco se está a afundar e que vamos todos com o barco. barco a afundar. mundo, abre os olhos, barco a afundar. teatro nenhum. texto ambíguo. é preciso viver. o teatro há-de vir. inevitavelmente. o corpo construiu-se assim. [x]

CULTURA // 35


,, A ruptura persistente

Cenografia com alguns trabalhos recentes de José Manuel Castanheira Texto | Paulo Oliveira

Há uma ordem inexplicável que define uma ideia de ruptura, um gesto inesperado que nos inscreve no real, obviamente, o real de onde provém a informação que no espaço teatral se reconfigura e revela como metáfora da experiência humana. A informação produzida durante o processo criativo é um contributo para a apreciação do informe, ou seja, daquilo que num determinado momento começa a ganhar forma. O espaço dos actores, mas será só deles? O espaço para eles e para nós espectadores que com Peter Brook no eterno ensaio semeamos a linguagem como a vida: it uses words, but also silences, stimuli, parody, laughter, unhappiness, despair, frankness and concealment, activity and slowness, clarity and chaos (1) . 1

Quatro exemplos, em trabalhos recentes do cenógrafo José Manuel Castanheira, são o pretexto para lembrar uma possibilidade, a nossa possibilidade de ainda habitar o teatro em vida, o teatro das imagens que, embora bonitas, teimam em conter as paixões e as feridas, como qualquer embrulho, um convite para algo que o laço e a ocasião não têm capacidade de superar e etcetera: eu continuo, no entanto, a admirar boas fotografias, sardinhas assadas e a consagração da impudica capacidade de subtrair os conteúdos aos metros e metros de prosa das estreias que, por delicadeza, ainda conseguimos aplaudir. Serve este interlúdio, então, para tocar ao de leve em quatro objectos cenográficos, pois importa dizer, desde já, que é a cenografia que nos move, mesmo que a opacidade do real nos dificulte a passagem:

Fedra, de Jean Racine Tradução: António Barahona Encenação: Rogério de Carvalho Cenografia: José Manuel Castanheira Iluminação: José Carlos Nascimento Figurinos: Mariana Sá Nogueira Estreia: 28-12-06, Teatro Municipal de Almada Goldoni Terminus Texto: E. Erba; Rui Zink; Tena Stivicic Encenação: Toni Cafiero Cenografia: José Manuel Castanheira Iluminação: Jean Pascal Pracht Co-produção: Teatro Nacional da Croácia, Teatro Stabile da Sardegna, Teatro Nacional D.Maria II, Bienal de Veneza 2007 Estreia: 6-6-07, Croácia

36 // ARQUITECTURA DE PALCO


Quisiera Ser Texto e encenação: Jorge Herrera Coreografia: Tino Sánchez Música: Duo Dinâmico Cenografia: José Manuel Castanheira Figurinos: Cuca Ansaldo Iluminação: Nicolás Fischtel Estreia: 2-10-07, Teatro Nuevo Apolo, Madrid

In Nomine Dei Texto: José Saramago Encenação: José Carlos Plaza Cenografia: José Manuel Castanheira Figurinos: Pedro Moreno Iluminação: Francisco Leal Produção: Centro Andaluz de Teatro Estreia: 12-12-07, Teatro Central de Sevilha Sendo quatro exemplos que, quer pela complexidade dos seus pressupostos, condições de produção e disparidades geográficas, bem como pela particularidade dos universos dramatúrgicos que convocam, prestam-se pouco a sínteses e a cruzamentos apressados. No entanto, em todos eles persiste uma teimosia romântica que subliminarmente nos convoca a celebrar o momento primordial em que o homem, tal como Robert Lepage refere na sua mensagem do dia mundial do teatro, se apercebeu que a sua sombra, e as suas irresistíveis potencialidades expressivas, permitiam criar “personagens maiores que a natureza”, relembrando que já desde as primeiras fogueiras que as histórias são plásticas. Impossível não referir aqui o mito de Plínio, o Velho (2), em que a filha de Butades de Sycione, em Corinto, ao contornar na parede a sombra do seu amado (de partida para o estrangeiro) à luz da lamparina, prefigurava esta nossa capacidade de figurar a ausência. Pois representar é isso mesmo, viver o que não está presente, e, acrescento eu, transformar essa experiência de memória num acto criativo que resulte numa reinvenção do modelo, por outras palavras, inventar o desejo. Algumas palavras para eles, os cenários: 1- A Fedra apresenta-se como uma sucessão de velaturas em tule negro que, activadas pela iluminação, adquirem um valor temporal, ontológico, que revelam as personagens como ícones trágicos e heróis de um Olimpo que parece frágil. 2- Goldoni Terminus apresenta-nos uma malha veneziana, com Canaletto ao fundo, que se oferece ao frenético cabaret em que T. Cafiero transformou, com a ajuda dos autores, a complexa teia relacional de um hotel que é falência familiar. 3- Quisiera Ser é o musical que nos diz que o tempo, é a imparável espiral que, no seu melhor, nos impele ao movimento ascendente, straight to the top / up where the air is fresh and clean (3). Superprodução que a aclamada Gran Via madrilena soube acolher, derrubando algumas cristalizações que o poder do género impõem, onde a translucidade e a mecânica de um engenhoso dispositivo cenográfico permitem viajar, via Renfe, dos anos 60 dos Duo Dinâmico à voracidade tecnológica contemporânea. 4- In Nomine Dei é a ruína monumental moldada pela argamassa do massacre; política, religião e poder no palco devastado de uma imaginária babel de sangues. Estamos perante uma poderosa atmosfera em que a arquitectura de pedra e ossos enquadra a operática gestão de José Carlos Plaza, sem esquecer a neblina profética e densa das cambiantes lumínicas oferecidas por Fransisco Leal. No percurso entre a nossa casa e o Teatro mais próximo confirma-se o lugar, a sala está cheia e quatro parágrafos não são quatro janelas abertas para iluminar a obra, mas cada janela é uma moldura que nos oferece a paisagem cortada e a velha ciência confirma-o: o segredo está no corte. Talvez, como alguns dizem, o teatro esteja a morrer. Penso, no entanto, que pior que a morte é a dor, pois esta, ao contrário da morte, persiste. O teatro é a dor. [x] (1) Peter Brook, The Empty Space, London, Penguin, 1968. (2) Plínio, o Velho, História Natural, XXXV. (3) Tom Waits, Straight to the top, in Frank’s Wild Years, 1987.

ARQUITECTURA DE PALCO// 37


,,As receitas do Dr. Elias Bacalhau com Broa Fotografia | Margarida Dias

38 // GASTRONOMIA


para 4 pessoas

Ingredientes 3 lombos de bacalhau 1 lt de leite 2 folhas de louro 2 cabeças de alho 2 cebolas grandes 6/8 fatias de mais ou menos 1 mm de espessura de salpicão 0,5 kg de broa sem côdea e ralada (no ralador do queijo) sal e pimenta q/b 3/4 lt de azeite

-

Preparação 1. Demolham-se os lombos de bacalhau em leite com alho laminado sob o comprimento , durante ±12 horas no frigorífico. 2. Aloura-se a cebola em rodelas finas com as folhas de louro e 4 dentes de alho. 3. Tiram-se a pele e as espinhas ao bacalhau e lasca-se este. 4. Num recipiente à parte, mistura-se a broa, com sal e pimenta moída no momento. Adiciona-se, de seguida, o leite onde o bacalhau esteve de molho e amassa-se tudo até atingir a consistência de uma papa grossa. 5. Num pirex untado com manteiga, colocam-se, por camadas, primeiro, a cebola alourada, segundo o bacalhau em lascas juntamente com o salpicão, terceiro cobre-se tudo com a papa da broa, quarto cobre-se muito bem com um “tapete” de alho laminado finamente. 6. Por fim, verte-se por cima o azeite (utilizando também o do refogado da cebola), até ficar um dedo acima de todo o preparado. 7. Vai ao forno quente (180º/200º), primeiro, na prateleira do fundo do forno, até o azeite começar a ferver. 8. Passa-se, de seguida, para a prateleira do meio, até ganhar uma crosta estaladiça. (NOTA: à medida que vai fervendo, o azeite vai-se infiltrando no preparado)

Sugestão de acompanhamento Acompanha com batata cozida e repolho salteado em azeite, com salpicão, bacon e bastante alho.

Uma descoberta maravilhosa a duas dentadas do Tejo

,,

O Túlio

Texto | Jacinto Galeão de Tormes

Durante muito tempo hesitei se devia ou não desbocar-me, isto é, falar do restaurante “O Túlio“ no Arneiro. Fui lá comer e fiquei impressionado com o que lá vi e comi. Dar a conhecer uma maravilha gastronómica é sempre delicado pois arriscamo-nos a ver hordas e hordas de turistas famintos inundarem um sítio virgem e pachorrento ou desnaturarem um lugar ideal que estava condenado a passar de orelha em orelha. Desvendo pois este oásis da cozinha alentejana, que parece pertencer à nossa Beira de tal maneira é vizinho, por duas razões muito simples: a primeira é que este restaurante só funciona por encomendas e segundo é que vivemos em Portugal num intempestivo momento controlador e de grandes fundamentalismos técnico-gastronómicos que estão a arruinar a nossa cozinha tradicional. Resolvi pois testemunhar a minha admiração por um povo engenhoso que sabe procurar produtos na natureza e cozinhá-los maravilhosamente. De longe, ficámos logo impressionados com a aldeia do Arneiro. Tínhamos matado saudades subindo a estrada caracoleante que sobe do Tejo para Nisa e de repente uma placa anuncia-nos que estamos no Alentejo. É tão imprevisto que esfregamos os olhos. Campos de sobreiros a perder de vista, uma pequena aldeia branca, os dois magníficos mamelões das Portas de Ródão ao longe. É uma paisagem estranha. E quando chegamos à aldeia ficamos surpreendidos: um barco está plantado numa rotunda. É surrealista na paisagem que acabámos de atravessar. Toda a gente conhece “O Túlio“. Paramos o carro diante de um toldo humilde que anuncia o restaurante onde vamos comer. Em 1948 era uma taberna e pertencia ao Zé Sapateiro. Em 1997 é um café. Alguns anos depois será também casa de pasto e em 1990 é o restaurante do senhor Túlio da Graça Pinto. E quem está nos fornos é a Ti Graça, uma mulher espantosa que tem umas mãos de fada essencial. Iremos comer logo ex abrupto uma fritada sublime de peixe: há anos que não comíamos um peixe do rio assim. Isto só demonstra que só em Portugal se come desta maneira. Eu posso afirmar isso pois vivi em muitos países poluídos do mundo. É barbo, meus amigos, é barbo e pescado entre a barragem do Fratel e a de Cedilhe em pleno Tejo, com redes próprias, malhas apropriadas. No Arneiro, terra de pescadores, no antigamente toda a gente sabia nadar pois a água é a menos de dois quilómetros. Magnificamente estaladiços e apetitosos, os bocados de barbo comidos à mão rapidamente desaparecem. Volatilizam-se. Passamos a uma sopa de peixe, migas com carpa e barbo, trazida pela mão célere do senhor Inácio. E deslumbramonos. Com o paladar soberbo e a preparação: as mil esferazinhas de ovas por cima do pão são outras tantas estrelas diurnas. E será a seguir uma outra de enguias e deslumbramo-nos mais uma vez. Meu Deus, onde estava eu, em que mundo, enquanto o senhor Inácio servia estas delícias a gente espantada? No tempo certo, diz-me ainda

ele, serve-se a lampreia que vamos buscar a jusante da Barragem de Belver e embora raro, o sável também aparece por cá. Fotografias nas paredes do restaurante anunciam troféus monstruosos e estes saborosos pratos de resistência. Terminámos a custo o provado, regado com um delicioso vinho da casa, Vidigueira tinto. Mas também há bons tintos conhecidos: o Conventual, o Borba, Monsaraz, o Porto da Bouga (reserva). Quanto às sobremesas, elas são divinas: a tigelada e o arroz doce. E finalizámos com um naco de magnífico queijo de ovelha, para acabarmos em beleza com o tinto. A poucos quilómetros das Portas de Ródão, “O Túlio“ abre-nos a porta do paraíso e a mágica Ti Graça o céu. O nosso corpo parece voar agora por cima dos sobreiros em direcção ao céu. Meu Portugal profundo, conserva-te assim pois enquanto há sabores destes há esperança. E nós temos a sensação de sermos eternos. Palavra de honra. [x]

Casa de Pasto “O Túlio” Monte do Arneiro Santana - Nisa tlf. 245 469 129 Aberto Sábados e Domingos, mediante marcação prévia -

GASTRONOMIA// 39


,,livro

,,memória

A Poesia das Beiras A Poesia das Beiras. Antologia, org. e prefácio Arnaldo Saraiva, Edições Caixotim, 2007. Não é a primeira antologia de poesia da Beira mas Arnaldo Saraiva, organizador deste volume, volta a presentear-nos com um trabalho rigoroso que reúne, para além das palavras, ambientes e modos de vida das várias regiões beirãs. É o próprio quem diz: “Tratando-se de uma antologia de poesia de incidência beirã, impor-se-ia contemplar, na medida do possível, as várias regiões e os vários modos de vida das ou nas Beiras. Na medida do possível: já se sabe que o espaço das Beiras é mais vasto e diversificado do que o de outras regiões, e que nem todos os santos podem entrar na ladainha”. No entanto, dispostos criteriosamente por ordem cronológica, deparamo-nos com nomes como Gil Vicente, Luís de Camões, António Nobre, Vitorino Nemésio, Eugénio de Andrade, António Salvado ou Fernando Assis Pacheco. [*] Covilhã Downtown´06

,,

marcas

Nenhuma outra bebida engarrafada se vende tanto como a Coca-Cola. Centenas de milhões de litros são consumidos diariamente em 200 países. Foi inventada, em 1886, por John Pemberton que cobrava cinco centavos a garrafa, alegando que servia para curar a dor de estômago, as dores de cabeça, a impotência e a adição à morfina. Mentiras? Não. O seu efeito é, de facto, estimulante pela cola que contém. Este tipo de fruto tem um elevado nível de cafeína que, junto à teobromina, outro dos seus compostos químicos, faz desta uma bebida aditiva. Na sua fórmula inicial, esta bebida tinha de facto folha de coca. Quatro anos mais tarde este ingrediente foi retirado. E se já ouviu falar nas propriedades corrosivas desta bebida, sim, também é verdade. O E-338 é capaz de corroer o ferro. Mas a bebida tem o mesmo pH (acidez) que o suco gástrico, pelo que não afecta o estômago... O sabor, esse, é inconfundível. Dizse que resulta da combinação de essências distintas: laranja, limão, noz moscada, canela da China e lima.

,,arte e memória

,,o vereador cowboy

Escandalizamo-nos com o uso do corpo humano na arte quando nos confrontamos directamente com a morte. Gunther von Hagens, por exemplo, estrutura as suas exposições a partir de cadáveres humanos despojados de pele e conservados através de um processo de plastificação. Mas se pensa que esta é uma técnica contemporânea, desengane-se. No século XVII, Frederik Ruysch, mais conhecido como o “holandês macabro”, desenvolveu uma técnica através de uma mistura de substâncias que permitia conservar órgãos durante anos. Este anatomista criava grupos escultóricos com esqueletos de crianças sobre paisagens feitas com órgãos humanos. Em Amesterdão, a sua colecção chegou a ser conhecida como a “oitava maravilha do mundo”.

Aguarda-se com expectativa a estreia do filme “Lost West”, realizado pelo fundanense Mário Fernandes, e que conta com a participação especial do Vereador da Cultura da Câmara Municipal do Fundão, Paulo Fernandes. O filme foi rodado nas Aldeias do Xisto, no couto mineiro. Histórias e imagens da rodagem em http://www.lostwest.blogspot.com

PUB




Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.