Ana Maria Botelho
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Deixa-me fechar os olhos e pensar em ti, agora, nessa harmonia que a idade te empresta, nesse doce prazer que te obriga a pintar os nossos sentimentos como anjos, mostrando mansamente que a aventura da vida, talvez tenha um sentido. Será que sentes a subtil esperança que envolve os tons entrecortados dos sorrisos tristes dos teus palhaços, os olhos das africanas, as mãos das mães, os cavalos?... como se uma estranha magia acariciasse a criadora, para que a arte docemente se elevasse muito acima da esfera material, e cada côr fosse um dom, cada gesto um som, cada intimidade... um cântico, e cada quadro, um grão de eternidade! Os nossos sentimentos são movimentos evasivos de energia. Surgem de idealizações mentais, interiores! Vêm do sítio onde a Luz se manifesta, e interferem em tudo o que achamos, onde nos encontramos, no que somos e no que fazemos. É nos seus tranquilos terramotos que encontramos as melhores e mais simples terapias para o nosso equilíbrio. É com eles que vivemos as mais duras batalhas e que pintamos os outros no fugaz tempo que neles brilha uma estrela. É pela sua satisfação que encontramos em nós, o que de melhor temos para dar. É assim que se manifesta a arte: dando, mas dando pelo desejo de dar, de partilhar, de ajudar a melhorar com o que de melhor temos, aquilo que os outros têm de pior. É pela arte que emprestamos Luz a quem não a tem, que damos a camisa a quem tem frio, que combatemos pelo sorriso das crianças, que ridicularizamos o cinismo do interesse, a mentira sedutora e a preversão de tudo o que transforma os anjos em demónios. Os teus quadros, linda mulher, são manuscritos cheios de lições de uma infância branca, uma meninice maravilhosa, de poemas, céus abertos, vento fresco, e paz... um imenso e gritante pedido de paz! Ana Botelho, vou abrir os olhos: és um poderoso sentimento de Luz, num tabernáculo onde vives essa harmonia que a idade te empresta. A tua arte convida permanentemente a sentir o milagre da natureza, o cheiro das flores, para que tudo tenha, afinal, um valor positivo, transformativo. Sinto esse mundo inicial que mora em ti, como se ele fizesse também parte de mim. Sinto-o, excitado pelas tuas cores, por esse ouro sobre azul que vejo na tua alma inconfundível, pelas mil viagens que fizeste, pelas bebedeiras dos Picassos, dos Braques, Brellese e todos os poetas malditos, dos gigantes, dos anões, dos toureiros e dos vilões com quem viveste e dormiste, dos homens que amaste e dos deuses que seduziste, das dores que tiveste, das mágoas que choraste, e de tudo o que os gritos surdos não ecoaram, pelos clamores, desafios e pelas coisas desnecessárias que também constroem, destruindo, por toda a inumerável fonte de vida que Deus pôs no teu colo, para que acordes as gentes e sirvas numa só mesa, aquilo que a arte tem de mais puro, de mais forte e de mais vibrante em toda a sua pureza. Deixa-me abraçar-te pelo prazer de ser teu amigo. RUY DE CARVALHO
«Ana Maria Botelho é a serenidade na inquietação, a paixão na lucidez, a audácia na harmonia»
crítica à exposição da Galeria Dinastia, in Diário de Notícias, 30 de Maio de 1968
Ana Maria de Castello-Branco Gago da Câmara do Botelho de Medeiros nasceu a 27 de Janeiro de 1936 em Lisboa. Segunda de cinco filhos dos Viscondes do Botelho, José Honorato Gago da Câmara Botelho de Medeiros e Dona Maria da Piedade de Castello-Branco (Belas), a sua infância foi passada entre Lisboa e S. Miguel, marcada pela estética dos ambientes das casas de seus Pais, o Palácio da Junqueira, na capital, e o Paço de Nossa Senhora da Vida, em Vila Franca do Campo, que certamente terão contribuído para o desenvolvimento do seu sentido estético e criatividade Aos seis anos foi estudar, com sua irmã Maria Pia, no Colégio das Doroteias, na Rua Artilharia 1, onde fez o Ensino Primário e completou a admissão aos liceus. Depois, passaram ao Colégio do Ramalhão, das Irmãs Dominicanas, em Sintra, onde ficaram internas até completarem o 5.º ano. Após essa temporada, foram durante um ano e meio para o Colégio de Mortefontaine, a norte de Paris. A 7 de Outubro de 1953, Ana Maria casa, muito jovem, com o Visconde de Maiorca, na Capela-Mor do Mosteiro dos Jerónimos. Presidiu à cerimónia o Bispo de Priene. O Rei Umberto de Itália, os Príncipes de Thurn e Taxis, a Princesa de Lichenstein e os Arquiduques de Habsburgo foram algumas das personalidades presentes. No ano seguinte, nasce sua filha, Maria da Piedade, actualmente residente no Brasil. Em finais de 1954, viajou para Paris onde, durante cerca de um ano e meio, se associou voluntariamente à Obra de Santa Maria Madalena, em La Ferté-Vidame, que era uma casa de recuperação de criminosas. Esta obra deveu-se ao Padre Jean Courtois, de quem seus Pais eram grandes amigos. Foi um dos primeiros retratados a óleo por Ana Maria, por volta dos doze anos. Desde a sua permanência em Paris que foi uma referência na sua vida, sobretudo a partir desta grande temporada passada em conjunto onde reabilitavam ex-presidiárias para uma vida prática. Ao longo de quase dois anos, Ana Maria conviveu com mulheres na difícil situação de readaptação a uma sociedade muitas vezes hostil após longa permanência na prisão. Em atitude de grande generosidade, Ana Maria abria o coração ensinando
matérias tão díspares como desenho e pintura, encadernação de livros, línguas, ao mesmo tempo que com elas passeava, escutava confidências e lhes dava compreensão e carinho. Através do Padre Courtois, conheceu André Malraux, que lhe facultou uma bolsa de estudos para artistas estrangeiros residentes em França. Foi assim a sua entrada na Escola Superior do Louvre, em que frequentou Artes Plásticas. O seu interesse pelas artes vem desde criança, em que frequentemente retratava as colegas de escola. Aos doze anos, passou a ter lições de Desenho e Pintura com Eduardo Malta e João Reis, durante as férias, em vários anos seguidos. Desde essa época que frequentemente assina os seus trabalhos como «AMBO», marca que só há poucos anos deixou de utilizar. Se, por um lado, os ambientes em que cresceu foram uma marcada influência no seu olhar e sentir, certamente não o foram menos as pessoas com quem conviveu, desde bispos e cardeais, reis e Chefes de Estado mas também gente das Artes como Margot Fonteyn, Rudolph Nureyev, Maria Teresa de Noronha ou Amália. Muito jovem teve uma cultura museológica devido às viagens que fazia com a família. Aos doze anos fez a sua primeira viagem a Roma e Florença e, nos anos seguintes, conheceu Madrid, Paris e Southampton. Seu Pai era proprietário de uma empresa de grandes barcos de carga chamada «Carregadores Açoreanos» que herdara do Avô Gustavo Adolfo de Medeiros e, devido a essas circusntâncias, Ana Maria viajou para vários lugares pelo Mundo, por vezes sozinha ou com os irmãos, confiada ao comandante do barco. Nas viagens aos Açores era acompanhada por uma figura imporatante da educação da Artista – a sua nurse, Daisy Laurence, que veio a viver na Junqueira até ao fim da vida, sempre acarinhada pela família Botelho. Paris constituiu uma nova fase na vida de Ana Maria Botelho e, após a experiência na obra do Padre Courtois, vem a Ecole Superieur do Louvre, que constituiu uma nova viragem, assumindo-se como um passo determinante. Dormia num convento de dominicanas no Faubourg St-Honoré, onde tinha todos os dias que se recolher até às dez e meia da noite. Frequentava poucos cafés – a não ser, uma vez por mês, o Flore ou o Deux Magots – mas divertia-se muito à conversa nos cais do Sena, acompanhada dos outros estudantes seus amigos. Para trás ficara um casamento já desfeito e posteriormente
declarado nulo pela Santa Sé. A sua primeira exposição de pintura foi feita com outros estudantes, na rua, no Quartier Latin. Veio a Portugal durante os vários períodos de férias mas a sua sede de conhecimento levou-a a viver cerca de dois anos em Roma. Numa ânsia de mais aprender, frequentou a Escola de Arte da Via Babuíno. Nesta cidade, fez uma vida social intensa, repleta de artistas plásticos e de gente ligada ao cinema, aristocratas, bispos e cardeais. Em 1963 e 1964 viaja pelo Brasil e, no regresso a Portugal, conhece Carlos Borges de Castro, seu futuro marido. Uma nova fase surge então na vida da Artista já que a ele se deve a organização de grande parte das exposições que vem entretanto a fazer. A primeira vem a acontecer no Salão Nobre do Palácio Foz, casa de seus antepassados a que se encontrava sentimentalmente ligada por aí ter nascido sua avô Margarida, Marquesa de Belas pelo seu casamento. Ana Maria foi convidada para aí expor por Moreira Baptista, que dirigia o SNI, que funcionava no Palácio. Foi um sucesso, expôs cerca de setenta quadros, num turbilhão de géneros e influências. Um mês depois expunha outra série de telas no átrio do Casino
Estoril, sendo referida como a revelação de artista plástica de 1964 . Esta segunda mostra foi inaugurada pelo Chefe de Estado . O texto que a seguir se transcreve, da autoria de Mário de Oliveira, crítico e director artístico da galeria do Casino, representa um importante marco na análise da sua obra: «Ana Maria Botelho, «Ambo» – a revelação de artista plástica de 1964 – é um caso de pura vocação artística e, ainda, de disciplina, dentro do árduo trabalho da criação estética. O artista, para triunfar nesta época, não pode ser já aquele boémio indisciplinado dos princípios do século, antes uma pessoa estudiosa e disciplinada, no seu processo de trabalho, na constante descoberta das técnicas, e, ainda e principalmente, na difícil ordenação do seu poder emocional. Ambo, a pouco mais de um mês e meio da sua apresentação em público, numa exposição em que toda a crítica lhe reconheceu os seus méritos – e também instabilidade dentro dos caminhos a seguir – dá-nos nesta exposição uma obra mais harmoniosa, e sobretudo oferece-nos desenhos de uma apreciável força expressiva, mostrando nítidos progressos em relação aos trabalhos que apresentou na sua primeira exposição no S. N. I.. Mas, não foi apenas nos desenhos que Ana Maria evoluiu, porquanto a sua pintura sofreu também aquela evolução lógica de um trabalho árduo, disciplinado e que procura com ansiedade encontrar o seu verdadeiro caminho. Ana Maria Botelho entra pois neste «átrio» de exposições pelos seus méritos próprios. A Sociedade Estoril-Sol, ao elegê-la dentro do seu programa anual de exposições plásticas, não fez mais do que prestar justiça e estimular uma das artistas que dentro de pouco tempo será uma realidade válida, como o provam os seus desenhos e a sua pintura, que obedecem a um inconformismo angustiante, sempre renovado de um espírito lúcido, sensível, procurando pela arte, emoções não ilusórias, antes algo táctil, real e concreto como a terra que pisamos, como provam as obras: «Sem rumo e sem horas», «Inverno», «Talvez venha peixe», «Tempo de ilusões» e «Vida parada». Ana Maria, com esta sua exposição procurou afanosamente definir-se mais, e ser mais humana, por um espírito poético, que é afinal a essência da sua arte.» . In Exposição de Desenho e Pintura de Ana Maria Botelho, Casino Estoril, 25 Abril a 10 Maio 1964 Idem Exposição de Desenho e pintura de Ana Maria Botelho «Ambo»,
Nesse ano casa com Carlos Borges de Castro e não mais se separaram até à sua morte, em 1986. Dele teve dois filhos, Ana Carlos e Carlos Maria.. Nas palavras da Artista, «O Carlos foi o meu mentor, foi quem me estimulou para que profissionalizasse a minha carreira e mesmo a levar-me a sério» . No ano seguinte, em 1965, expõe pela primeira vez na Galeria do Diário de Notícias, em Lisboa. A crítica elogiou a Artista que havia encontrado, nessa ocasião, um estilo muito próprio. Utilizou um figurativo expressionista, a partir de apenas três cores. O catálogo salientava que esta produção artística datava do ano anterior: «Fez no S. N. I., em Março de 1964, a primeira apresentação dos seus trabalhos a público com 5 desenhos, 28 gouaches e 37 óleos, tendo sido imediatamente convidada a expôr no Casino do Estoril, onde dois meses depois apresentou 26 novos trabalhos.(...)» . Em Maio de 1968, ano em que publica, no Rio de Janeiro, o seu primeiro livro de poemas , a Galeria Dinastia apresentava um registo novo da as obra . Tratava-se de um conjunto de pinturas em cartolina tornada translúcida, com luz por detrás, expostos junto a móveis antigos, criando um ambiente de plena harmonia. Acerca da exposição, a revista «Eva» relatava a «Lisboa elegante e artística» que se reuniu nessa vernissage, destacando a presença do empresário António Champalimaud, do escritor e intelectual Ruben A., da actriz Beatriz Costa e dos Embaixadores da Holanda, da Suécia, de Espanha e da Nicarágua . Mário de Oliveira escreve sobre os novos rumos de Ana Maria Botelho, bem como de uma «porta aberta» para outras saídas, referida aliás pela própria artista . Estes translúcidos estão de algum modo relacionados com a situação de carência de materiais nobres, consequência das grandes cheias de 1967, em que, perante a destruição das telas e das tintas, a Artista experimenta tintas de parede, colas, diluentes e até areias trazidas pela chuva, tomando como suporte a cartolina. Depois desse temporal, um sol radioso trespassou estas pinturas e colagens, surgindo assim a ideia dos translúcidos. Sobre estes trabalhos, referiu Fernando Casino Estoril, de 25 de Abril a 10 de Maio de 1964 Depoimento de Ana Maria Botelho, Alcobaça, 30 Setembro 2007 AMBO, Galeria Diário de Notícias, 21 a 29.4.1965 Cf. Anna Maria Botelho, Varanda sem casa, Livros de Portugal, Rio de Janeiro, 1968 In Novidades, 13 Maio 1968 In Eva, Julho 1968 In ...., 23 Maio 1968
Pamplona na sua crítica de artes plásticas, transmitida pela rádio: «Têm decorativismo as suas pinturas translúcidas, alumiadas por dentro, como vitrais. Revestem elas feição abstracta em seu arabesco gracioso e em seu cromatismo rico, cheio de estranhas ressonâncias»10. Outro destacado crítico, Cristiano Lima, afirmava na mesma ocasião que Ana Maria Botelho «tem a Pintura no sangue» e «há nela mais a pluralidade do que a singularidade, que lhe torna quase impossível pintar dois temas da mesma maneira ou obcecar-se por um único tema» e, ainda sobre a mesma exposição, refere a junção feita pela Artista, do figurativo e do abstracto, que o crítico afirma serem, «em pintura, o Abel e Caim dos tempos de hoje»11. Numa entrevista em 1972, refere: «Não tenho horário para trabalhar: o que tenho é vício e necessidade de comunicação! Escrevo ou pinto de tarde ou de noite. Só escrevo quando sofro. E basta estar vivo para sofrer.»12. A 20 de Maio de 1969 a imagem de um Cristo na exposição de Ana Maria Botelho numa nova mostra na Galeria Dinastia foi referência no Diário de Notícias, onde se lê – «Esta obra de arte não é um Cristo – é o Cristo. O Cristo de todos, sem exclusão dos descrentes, que exprime na sua dor a do mundo. Tela admirável. Por ela, Ana Maria Botelho transcende-se»13. Sobre a sua exposição, Vera Lagoa testemunhou que «a inauguração foi um dos acontecimentos mais acontecimento e mais mundano da semana. Do mês.» onde se viam, entre Ministros e Embaixadores, mulheres bonitas e elegantes, José Augusto França e Mário de Oliveira14. Sobre esta exposição, Cristiano Lima afirma, no «Diário de Notícias» que Ana Maria desacredita as escolas, como que acreditando que só a arte é imortal, prenunciando da Artista uma carreira ascensional15. Alfredo Marques diz da Artista: «Ana Maria Botelho é uma senhora ilustre que dedica os seus ócios à pintura» referindo o seu testemunho - «Não pinto por prazer. Pinto por imperiosa vontade que não domino e por sofrimento» concluindo que «o curioso diletantismo da artista coloca-a no panorama artístico em posição destacada». O crítico fala da sua pintura robusta, de marcada interioridade e forte gama pictórica16. No dia de Natal, a convite de Natércia Freire, o «Diário de Notícias» apresenta uma ilustração de Ana Maria sobre outro tema 10 Emissora Nacional de Radiodifusão, «Crítica de artes plásticas», 13-61968, citado in Fernando Pamplona, ......., p. 230. 11 In Diário de Notícias, 7 Maio 1968 12 In A Época, 22 Janeiro 1972 13 In Diário de Notícias, 20 Maio 1969 14 In Diário Popular, 23 Maio 1969 15 In Diário de Notícias, 19 Junho 1969 16 In Diário Popular, 29 Maio 1969
religioso – a Sagrada Família17. Para Ana Maria Botelho, a figura de Cristo foi sempre inspiradora, pela filosofia do amor e da compaixão que partilhou com os Apóstolos. Em vésperas de uma nova década, falando sobre a Arte os Artistas em Portugal, Ana Maria Botelho exprimia a consciência de uma necessidade de mudança constante nos percursos artísticos individuais18. No final de Dezembro de 1969, «num dia gelado», pela mão de seu marido Carlos Borges de Castro, as ruínas do Teatro Avenida recebem uma exposição de jovens artistas portugueses denominados «Besouros»19. Em Maio de 1970, dentro do mesmo espírito, Ana Maria Botelho participa na importante colectiva em favor do Centro Hellen Keller, na Galeria Dinastia, em Lisboa. O «Diário de Notícias» afirmava: «(...) todas as tendências artísticas marcam presença – desde o clássico figurativo de Henrique Medina e de um João Reis à modernidade instante de um João Vieira, de uma Ana Maria Botelho, de um Siqueira e de um Bual, passando por Maria Keil, Júlio e Martins Correia.»20. O Chefe de Estado, Américo Tomás, inaugurou a mostra, que reuniu ainda estilos tão diferentes como Jorge Vieira, Artur José, Mário Cesariny, Cruzeiro Seixas, D´Assunção e António Areal. Nesse ano, fez ainda parte do Júri dos Prémios do XV Salão da Primavera da Costa do Sol, dedicado à Pintura21. Sete quadros e sete retratos foram expostos por Ana Maria Botelho nas Arcadas do Parque do Estoril, sob o patrocínio da Junta de Turismo da Costa do Sol, a convite de Oskar Pinto Lobo, inaugurada a 29 de Junho de 197022. Um dos quadros que mais marcou a crítica foi a figura de uma grávida de mãos sobre a barriga23 – de resto, uma figuração recorrente na obra desta Artista – veja-se a «Palhaça de Esperanças», na década de 1980 e, mais recentemente, na exposição na Patriarcal, com diversas figuras de esperanças. Os sete retractados eram Margarida Jácome Correia, Sandra Bensaúde, Manuel Leiria Fernandes, Ana Mafalda Weisntein, Ayres el Lozy, Ricardo Leiria Fernandes e o «Minhas Irmãs e 17 18 19 20 21 22 23
In Diário de Notícias, 25 Dezembro 1969 In Diário da Manhã, 19 Junho 1969 In Diário de Notícias???, 1 Janeiro 1970 In Diário de Notícias, 20 Maio 1970 In Diário de Lisboa, 18 Junho 1970 In Diário de Notícias, 9 Julho 1970 In Jornal da Costa do Sol, 4 Julho 1970
Eu» onde Ana se retrata ao lado das irmãs Maria Pia e Margarida. O catálogo, que incluía o preçário da exposição, menciona os seus quadros entre dezoito e quarenta e cinco mil escudos, naquele ano ainda anterior à Revolução24. Oskar Pinto Lobo assina o texto do catálogo, que se reproduz: «Quando um dia parti para o espaço à procura de ideias tinha comigo uma alma de Marco Polo. Viajei os mesmos muitos anos e os muitos de regresso, só para ver, para contar coisas, aos homens que estavam e continuavam sentados na praça grande, à espera de acontecimentos. Lembro-me bem de os ver ali sentados, fumando e cavaqueando, à espera das novas dos homens que partiam à procura de formas, de contornos e de Poesia. Tudo isto se passava na praça grande que tinha sempre sol e que tinha sempre cadeiras com homens sentados à espera das novas dos homens que tinham partido para o espaço. A casa de Ana Maria Botelho está no espaço. Ela pinta no alto de uma torre, lá em cima, numa torre redonda como um moinho muito alto, um moinho com velas abstractas que andam com os ventos e os bafos da respiração. A sua pintura incandescente, tem o cheiro do carvão em brasa e o aspecto arrumado de uma lareira romântica. Lá em cima, no alto de uma torre no espaço, Ana Maria Botelho vê as nuvens, o negro profundo do Universo e o carvão incandescente da sua lareira criadora. Toda a sua pintura contem as teorias do espaço, a síntese da forma do Universo e, simultaneamente, a claridade morna da sua lareira romântica, que nos dá o conforto da meditação e o êxtase da meditação. Quando um dia cheguei à praça grande, sempre cheia de sol, disse aos homens tranquilos, que continuavam sentados à espera de acontecimentos, que Ana Maria Botelho chegara mais uma vez, com a forma do seu universo e o calor romântico da sua lareira para lhes dar conforto e contemplação.» Oskar Pinto Lobo25 Ainda no Verão de 1970, Ana Maria Botelho é uma de doze artistas participantes numa exposição organizada por seu marido em Albufeira na Galeria «A Tralha», como forma de 24 25
Pintura, Ana Maria Botelho, 29 de Junho de 1970 Pintura, Ana Maria Botelho, 29 de Junho de 1970
divulgação da arte no Algarve26. Participaram também nesta mostra Manuela Pinheiro, Fernanda Amado, Ivone Sales, Bual, Artur José, Óskar Pinto Lobo, Serge Aguilar, Serrade Rivera, António Montelano, Raul Perez, Carlos Montes e Regina Alexandre Pires27. Esta iniciativa foi visitada pelo Presidente da Região de Turismo do Algarve, Pearce de Azevedo e outras autoridades regionais, para além do Director Geral do Ministério dos Negócios Estrangeiros, Embaixador Calvet de Magalhães, do Presidente do Conselho de Administração do Crédito Predial Português, Afonso do Canto Lucas, e do Presidente da RTP, Ramiro Valadão28. Curiosamente, de Ramiro Valadão, a Artista recorda que foi ele que lhe apresentou a obra de Proust, o que veio a originar uma amizade para toda a vida. A localidade onde a Artista habitava desde há alguns 26 27 28
In Diário Popular, 20 Agosto 1970 In Diário Popular, 24 Agosto 1970 In Diário Popular, 23 Agosto 1970
nos atrás e onde mantinha o seu atelier, decidiu prestar-lhe homenagem em 1971. O Presidente da Câmara Municipal de Loures, Luís Demony29, associou-se a esta evocação dando o nome de Ana Maria Botelho à rua onde ainda hoje vive. E, perante um cortejo atrás da Banda de Loures que tocava uma marcha, sua filha Ana Carlos descerrava a placa com o nome de sua Mãe30. O jornal «Açores», no final de 1971, quando a Artista Ana Maria Botelho contava 35 anos, referia a grande amizade que a ligava ao casal formado por Maria Helena Vieira da Silva e Arppad Szenes, reproduzindo a opinião deste último segundo a qual: «Ana Maria Botelho é uma força da natureza!»31. Marco na internacionalização da sua carreira foi a participação na mostra comemorativa dos quatrocentos anos da publicação de «Os Lusíadas», em 1972, realizada em Paris. Esta iniciativa do «Diário de Notícias», coordenada por Natércia Freire e montada por Paulo Ferreira contou ainda com a participação de outros emblemáticos artistas nacionais: Almada Negreiros, Ana Maria Botelho, António Areal, Artur Bual, Cândido Costa Pinto, Carlos Botelho, Charrua, Charters de Almeida, Cruzeiro Seixas, Dórdio Gomes, Dorita de Castelo Branco, Estrela Faria, Relógio, Guilherme Camarinha, Helena Almeida, João Abel Manta, Júlio, Júlio Resende, Lagoa Henriques, Lima de Freitas, Lino António, Lourdes de Castro, Cargaleiro, Maria Keil, Cesariny, Martins Correia, Nadir Afonso, Querubim Lapa, Sara Afonso, Tom e Vieira da Silva. A mostra chamou-se «Os Lusíadas que fomos – Os Lusíadas que somos» e viajou por diversas partes do Mundo e nela Ana Maria Botelho apresentou um desenho monumental representando uma figura de Cristo a preto e branco. Nesse mesmo ano, Ana Maria abre pela primeira vez as portas do seu estúdio a uma entrevista, a Carlos Monteiro, para «A Época», onde afirma o seu inconformismo e a sua rebeldia artística. «Não me conformo com o Mundo e as suas coisas. Sou por natureza uma inconformista, constante nas técnicas, mas não nas ideias. Não consigo pintar tudo igual. Sinto uma necessidade muito grande de mudar...»32. 29 30 31 32
In Correio dos Açores, 8 Dezembro 1971 In Açores, 19 Dezembro 1971 In Açores, 19 Dezembro 1971 In A Época, 22 Janeiro 1972
Em 1973, ano em que publica o seu segundo livro de versos33, Ana Maria Botelho ilustra a capa do livro de seu Pai num tema relacionado com a História épica de Portugal: «O Encoberto nos Jerónimos»34. De resto, a figura de D. Sebastião é também recorrente na sua obra, voltando a ela na década de 199035. Em Maio de 1973, Ana Maria Botelho e seu marido, Carlos Borges de Castro, criam a «Galeria Centro, Arte de Ontem e de Hoje» na Rua Rodrigo da Fonseca, em Lisboa. Doze quadros de grandes dimensões da fase vermelha de Ana Maria constituíam a exposição denominada «O Vermelho o Real e o Poético». O «Diário de Notícias» noticiou a inauguração, apresentando uma fotografia da pintora entre dois dos seus retratados: Domingos Monteiro e António Cupertino de Miranda36. Ao jornal «A Época», Ana Maria Botelho disse sobre a sua obra: «Pareceme que presentemente estou a ser o que se pode chamar – figurativa, expressionista e poética»37 - sendo um dos ícones da exposição o quadro «A Família», adquirido pela Fundação Artur Cupertino de Miranda38. No «Diário de Notícias», Luís d´ Oliveira Nunes testemunha ser a vigésima galeria de arte a abrir portas em Lisboa, com a particularidade de ter antiguidades a par da arte contemporânea39. A actividade desta galeria e do casal na divulgação de jovens talentos foi importante sendo que não cobravam comissões dos artistas, prática que foi abraçada por Ana Maria Botelho também nos espaços que viria a dirigir mais tarde, desde a Casa de Arte Ana Maria Botelho até à Galeria António Clara onde sempre cultivou uma atitude de grande generosidade sendo que, nesta última, a Artista salienta «o grande coração de António Clara, leal e dedicado a todos os seus projectos e a quem me une uma grande amizade40». Urbano Tavares Rodrigues, a respeito da exposição, que classifica «deslumbrante» refere que «após a sua incursão pelas experiências cinéticas e gestálticas, Ana Maria Botelho 33 Cf. Ana Maria Botelho, «Céu de Linho», Ed. da Sociedade de Expansão Cultural, Colecção Convergência, Lisboa, 1973 34 In O Século, 1 Janeiro 1973 35 In O Desejado, exposição colectiva de pintura e escultura, Galeria Conventual, Alcobaça, 1994. 36 In Diário de Notícias, 18 Maio 1973 37 In Época, 18 Maio 1973 38 In Diário de Notícias, 12 Julho 1973 39 In Diário de Notícias, 22 Maio 1973 40 Depoimento de Ana Maria Botelho em Alcobaça, 19 de Março de 2008
regressa ao óleo e a um realismo poético transfigurador que desta feita, não poderá deixar de impô-la (ou então háde o futuro voltar para ela os olhos) como um dos pintores mais originais desta década»41. Refere ainda «uma herança italiana e flamenga nesta pintura liberta da existência, dos seres humanos, dos animais, das coisas que os olham». No inicio de Junho estando ainda patente esta exposição, devido ao sucesso alcançado no número de apreciadores, foi visitada pelo Secretário de Estado da Informação e Turismo, César Moreira Baptista42. A promoção de jovens talentos praticada por esta Galeria foi salientada entusiasticamente por Alice Vieira no «Diário Popular»43. José Santiago Naud, escritor e ensaísta brasileiro, ao tempo bolseiro da Fundação Gulbenkian, escreveu o texto do catálogo da exposição que a seguir se reproduz: «Dez anos quase transcorreram entre a primeira exposição de Ana Maria Botelho e esta, que vem inaugurar a sua própria galeria, dirigida por Carlos Borges de Castro. Nesses dez anos todo um processo artístico se consuma. Pois data de 1964 a efectivação do seu encontro com Carlos, selado por uma união de beleza que veio frutificar em vitalidade, convívio e arte. Agora o convívio se manifesta na inauguração desta Galeria Centro que, segundo o nome, aspira a ser irradiação de cultura e do espírito português. A arte é testemunhada pela própria exposição que, intitulada sugestivamente, marca uma fase importante na actividade artística da pintora ou, se quiserem, sua primeira fase definida. Com efeito, a crítica podia indicar como fases, primeira fase e até fase nenhuma, a série de quadros e experiências que se sucederam de 1964 a 1970. De facto existem lá menos ensaios, grandes intuições, execuções magistrais e telas definitivas como «O jogador» e «A cega». Mas o que predomina é a busca, a que a crítica imparcial já conferiu o justo valor e identificou as tendências em não poucos artigos. Precariamente, permito-me chamar «primeira fase» todo aquele primeiro exercício, nela incluindo a generalidade dos quadros, com destaque para os referidos. Alguns outros poderiam ser indicados como «transição», - por exemplo, «Paralelas I», «Fuga a Herodes» e «Desceu aos Infernos» 41 42 43
In O Século, 6 Junho 1973 In Diário Popular, 28 Março 1973
- para estabelecer, paralelamente a retratos como o das «Três Irmãs», feitas de memória, do escritor Domingos Monteiro e o da Princesa Pag Sampatiziri, o nexo entre um primeiro período e este que agora se inicia, particularmente seu e nitidamente autónomo. A pintora vê claramente o caminho transposto. «Depois de muito me interessar pela Natureza – árvore, luz, bicho -, a minha natureza pessoal apaixonou-se pela NaturezaHomem: pessoas que existem iguais e diversas, vermelhas e sangue, pessoas intemporais por não terem existência de passado, futuro ou presente.» E assim foi. A natureza das ilhas a que tanto deve desdobrou-lhe o movimento dos céus e as formas da terra, luminosidades e lembranças primordiais. Somou-se o mundo da cultura informando um conceito e a visão dramática da vida. Abriu-se-lhe o segredo do arcaico, agora apreendido nas telas encarnadas. Que vem a ser esta pintura actual? Conforme o próprio adjectivo sugere, a ambiguidade, ambivalência nos domínios da imagem real e do real imaginário. A artista fez convergir toda a experiência anterior ao essencial, que resultou na fusão sanguínea da ideia e da sensação. Vida de relação que historia o cósmico. Pois «encarnado» refere cor, mas lembra também o cerco espiritual da carne. Gente que caminha numa paisagem de sonho e memória, gente que chega e gente que parte, gente que se detém, gente que estiola e gente que acena, grupos integrados ou indivíduos entregues a mais pungente solidão. Vislumbra-se nestes quadros a união das forças contrárias, retidas em consciência e formadoras da pessoa. Servida pela rigorosa técnica do desenho, firmada numa cultura europeia elaboradíssima, herdeira de memórias antigas e responsável pelo destino próprio voluntariosamente aceito, a pintora com esta exposição acrescenta a arte portuguesa. Inequivocamente. Enraizado na Itália e na aprendizagem flamenga o ponto de partida da experiência, seu conhecimento do moderno actualizou o achamento da forma pessoal nu contexto nacional. Então abriu em quotidiano e onírico, as dimensões vastas do futuro ou do que o futuro pode vir a ser e deve vir a ser: possibilidade constante, conciliação vital, amor de si mesmo e amor do outro. E, ao jeito da nossa demanda arquetípica aberta ao mar, propõe o embarque. Porque Ana Maria Botelho crê em destino – explosão de beleza espiritual
haurindo a circular do sangue. Já testemunhou. «Cor de vida, de sol, e de fim, cor de princípio, cor de chama e óxido de ferro. Primeiro colorido do universo na minha visão poética de ciência – o real». E esta exposição faz-nos ver com violência. José Santiago Naud 44» «Maias de Abril» foi o nome da exposição que a Galeria S. Mamede organizou em Julho do ano da Revolução reunindo setenta e cinco artistas, tendo Ana Maria Botelho sido uma das participantes. A par de Pereira Coutinho, proprietário da Galeria, colaboraram na organização, Sophia de Mello Breyner Andersen, Lima de Freitas, Mário Henrique Leiria, António Areal, Cruzeiro Seixas e Mário Cesariny, que escreveu para o catálogo45. Ana Maria Botelho, atingindo uma maturidade após os seus quarenta anos, decide, em 1981, inaugurar uma nova fase na sua carreira, sob o tema «Augusto o Inventor de Sonhos». Contudo, a temática dos palhaços já estava presente na sua obra na década de sessenta. Estas telas revelariam ao público uma faceta dramática da existência humana nunca antes desta maneira abordada pela Artista. No catálogo da exposição é revelado o interesse pela temática circense como um interesse proveniente de reminiscências da infância da Autora que, de certo modo, acompanharam alguns períodos da sua criação plástica. A 14 de Maio de 1981 o Grémio Literário recebeu uma individual de Ana Maria Botelho46, inaugurada pelo Chefe de Estado, António Ramalho Eanes e pelo Presidente da Fundação Gulbenkian, José Azeredo Perdigão47. O jornal «O Dia» 44
Ana Maria Botelho expõe «O Vermelho, o Real e o Poético», Galeria Centro, 17 Maio 1973, Lisboa. José Santiago Naud, poeta e ensaísta brasileiro, que assina este texto, é formado em Letras Clássicas, em Porto Alegre, foi director do Instituto do Livr; fundador da Universidade de Brasília (UNB), em 1962. Leccionou literatura luso-brasileira em Yale e na UCLA. Foi bolsista da Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa e da Comissão Fulbrigth, nos EUA, junto ao IWP “International Writing Program” da Universidade de Iowa. Prêmio de Poesia (1958), Festival Internacional da Revista “Quixote”, Porto Alegre, e Prêmio Nacional de Poesia (1965), no Encontro Nacional de Escritores, promovido pela Fundação Cultural do Distrito Federal, Brasília. De 1973 a 1985, contratado pelo Itamarati (MRE), foi Director do Centro de Estudos Brasileiros, sucessivamente em La Paz (Bolívia), Rosário (República Argentina), Panamá e México. Tem mais de vinte livros publicados - http://www.antoniomiranda.com.br/Iberoamerica/brasil/jose_santiago_naud.html
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In Diário de Lisboa, 2 Julho 1974 In Diário de Lisboa, 15 Maio 1981 In Diário de Notícias,15 Maio 1981
noticiava «uma notável exposição sobre o inédito tema Augusto, o inventor de Sonhos, em que são apresentados, sob a máscara do clown de circo, 19 trabalhos com extraordinária aceitação entre os amantes das Belas Artes»48. No texto do catálogo, Santiago Naud revela uma confidência da Pintora: que um dos seus primeiros desenhos observados por seu avô, Marquês de Belas, ele lhe dissera que ela acabara de desenhar um palhaço e, perante a sua admiração, já que nunca tinha visto nenhum, o Avô levara-a então ao circo49. Mais tarde, numa das primeiras vezes que expôs na rua em Roma, recorda que vendeu uma pintura representando um palhaço, por três dólares, a um turista50. As obras expostas são datadas essencialmente de 1980 e 1981, com excepção para «A Palhaça de Esperanças» e, em geral, a Artista atribui títulos em francês à maioria das obras, certamente influenciada pelas sua mundividência cosmopolita. Por ocasião desta exposição, disse à «Capital» que «a pintura deve ser cada vez mais selvagem e livre» apesar de referir também sobre as suas obras - «os meus quadros não são levianos, penso muito neles. A sua gestação é longa e dura»51. Reproduz-se o texto de Santiago Naud no catálogo: «… A pintora vê claramente o caminho transposto. Seguem-se as suas palavras: «Depois de muito me interessar pela Natureza – árvore, luz, bicho – a minha natureza pessoal apaixonou-se pela Natureza-Homem: pessoas que existem iguais e diversas, pessoas intemporais por não terem existência de passado, futuro ou presente». … Que vem a ser essa pintura? É ao resultado deste processo que se deve o melhor da pintura portuguesa actual, e Ana Maria Botelho nela ocupa definitivamente o seu lugar. A sucessão de telas o demonstra. … Como imagem, talvez o documento mais expressivo devia buscar-se entre os quatro iniciais, onde seguramente haverá menos pintura que provação. Muitos desses quadros reproduzem imagens de Palhaços. Esses Palhaços dolorosamente retratados desenvolvem-se a partir de importância e do vazio. (...) 48 In O Dia, 14 Maio 1981 49 In Catálogo da exposição Ana Maria Botelho, Grémio Literário D. Maria II, 1981 50 Idem 51 In A Capital, 11 Maio 1981
... Servida pela rigorosa técnica do desenho, firmada numa cultura europeia elaboradíssima, herdeira de memórias antigas e responsável pelo destino próprio voluntariosamente aceite, a pintora acrescenta a arte portuguesa.52 No mesmo catálogo, a Artista assina um texto confessional: «Eu fui a menina de uns olhos espantados. Já tive três anos. Fazia bonecos e bolos de lama. Falava pouco... Um dia apontei para uns bichos pretos pousados na vidraça. – E meu Avô, presença monumental da minha infância, respondeu urgente ao meu gesto curioso: Ana são moscas. Não tive medo e comecei a fazer retratos de moscas pretas com olhos brancos. Mais tarde, o meu avô ofereceu-me o primeiro sorvete. Gostei. Gostei de descobrir o prazer da cor: - era do limão, bem amarelo, um creme esbranquiçado cobria-o por cima com ares de cabeleira – tinha cara de gente. No prato de vidro transparente, estava ao lado da colher, solitária, uma cereja cristalizada, bem vermelha. Peguei nela e espetei-a no sorvete!... O meu avô então revelou-me o mais sublime dos segredos: Ana, tu fizeste um palhaço! Mas eu não sabia o que era um palhaço... E o meu avô levou-me ao Circo. Fiquei cheia de medo – medo das caras brancas, dos pés grandes; medo do mundo das estaladas fingidas e dos enormes narizes vermelhos. Os anos passaram e eu apaixonei-me perdidamente pelo meu próprio medo. Medo- terror, fascinante com o ruído da chuva caindo no telhado depois da meia- noite... Lobisomens rondando as casas e os quintais... As bruxas eram minhas irmãs de cabelos roxos, penduradas nos ramos da Árvore do nosso jardim... Gostei tanto do meu medo, que fui à procura dos medos de outrora, eco do medo misterioso dos Palhaços. Deitei-me, criança, no tapete dos saltimbancos, na rua 52 In Exposição de Pintura Ana Maria Botelho, 28 de Abril a 12 de Maio 1981, Grémio Literário, Lisboa.
Manuel Bernardes, toquei na pandeireta gasta e peregrinei pelos circos ambulantes, aqules das tendas de riscas laranja e azul ferrete, luz coada de catedral de manhãnzinha – até que um dia percebi que o Palhaço era «AUGUSTO» - , que «AUGUSTO» era eu - , que AUGUSTO» eras tu, que «AUGUSTO» era o Mestiço integral das Acções que são e das acções que parecem – das mentiras que são verdades que são mentiras. «AUGUSTO», meu encantamento e minha lágrima! Os meus primeiros quadros (quando então muito jovem estudava em Itália) retratavam Palhaços... Expuz nas rua de Roma com os meus colegas – vendi um Palhaço por três dólares a um turista incauto. Vendi o Palhaço – mas não vendi o «AUGISTO» - «AUGUSTOBRILHO», «AUGUSTO-CHORO» «AUGUSTO-RISO» porque «AUGUSTO» ficou a morar comigo – meu duplo, meu Amor de mim mesma e dos outros... E assim, ciclicamente, retomo o tema «HOMEM-AUGUSTO» - a sua tribu, as suas mulheres inocentes ou perversas - , halé-hop! «AUGUSTO» envia o seu recado. Recado transmitido entre angústia e o êxtase. «AUGUSTO», o inventor de Sonhos Lagariça, 17 de Março de 1981 Ana Maria Botelho53 Em Setembro de 1984, o Museu José Malhoa nas Caldas da Rainha apresentou a mesma exposição54. Nessa ocasião, o historiador de arte Lesly de Ville, fundador e director da revista «Arts and mouvements», escreveu: «Ana Maria Botelho, mulher-artista, humilde e altiva, prova que os grandes artistas ainda existem.»55. No catálogo, a própria Artista foi autora do texto, autoretratando-se, falando da sua infância, que diz ter sido difícil por ter nascido numa época em que, entre duas guerras, os adultos estavam essencialmente preocupados com a segurança e a paz, esquecendo-se de brincar com as crianças. De resto, havia a par uma moda da educação ser feita desde cedo em colégios internos de obrigação religiosa, tendo frequentado o Ramalhão, as Doroteias e, mais tarde, Mortefontaine, em Paris. Foi quando esteve nessa casa que viu os «Augustes» nos circos de aldeia. Tinha entre 15 e 16 anos. Encantava-se com os seus narizes vermelhos e tinha medo dos seus pés imensos. A fantasia do 53 In Exposição de Pintura Ana Maria Botelho, 28 de Abril a 12 de Maio 1981, Grémio Literário, Lisboa. 54 In Diário de Notícias, 26 Setembro 1984. Nesta ocasião, deu interessante entrevista à revista Preto no Branco, Outubro 1984. 55 In Preto no Branco, n.º 4, 12 Dezembro 1984
espectáculo impressionava-a, bem como a relação entre o palhaço rico e os «augustos» ou palhaços pobres, tantas vezes em Portugal chamados «faz-tudos». Esta série de Augustos começou após seis meses de interregno depois da morte do Pai, vindo a redescobrir estas figuras pintando uma mulher-palhaço grávida, de rosto ansioso, olhar brilhante e de mãos protegendo a barriga, como uma preocupação com o futuro – de resto, este quadro bem traduz uma preocupação patente na obra desta Artista, com a noção do passado mas virada para o que há-de vir ou, nas suas palavras, «Sempre pintei espreitando a minha infância a olhar para o futuro»56. Esse quadro veio a denominar-se «Palhaça de Esperanças». Alguns dos quadros desta exposição foram criados em Paris, onde à época Ana Maria fazia temporadas frequentes. Reproduz-se o texto que Ana Maria escreveu para a exposição: Augusto, o inventor de sonhos A infância não é apenas um tempo marcado num calendário social – a infância é o tempo total que persiste até ao fim de uma vida. Eu tive uma infância – uma infância difícil. Os meus gestos estendiam-se meigamente pedindo mimos que raramente estavam presentes. Nasci em 1936. Fui uma criança do tempo de guerra. Os meus brinquedos eram os meus lápis, as minhas bonecas recortava-as no papel desajeitadamente. As minhas mãos eram pequeninas e o dedão ficava sempre preso na argola da tesoura. Os adultos andavam preocupados ansiando a paz e sobretudo a segurança. Esqueceram-se de brincar comigo. Não me desencantei. Passou tempo, e um dia conheci os palhaços. Palhaços que me fizeram brilhara menina nos meus olhos. Mais tarde eu viria gratamente a descobrir (quando no início dos meus estudos no Instituto de Mortefontaine em Paris) que se chamavam Augustos. Depois no circo, a Circular da Vida, os narizes vermelhos. Os pés deles tão imensos faziam-me medo – mas um medo do outro lado da porta; um medo que 56 In catálogo da exposição «Augusto o inventor de sonhos», Exposição de Ana Maria Botelho, Museu José Malhoa, Setembro/Outubro 1984
eu tinha quando pela noite eu ouvia os cães a uivar a trovoada entre os pinheiros esgalgados da quinta – as paredes da casa eram muito grossas e as janelas eram limpas, sem grades. No circo eu ficava com a boca seca de emoção quando o som do serrote vibrante e vibrátil gemia. O saxofone, o clarinete, a concertina balética e fosforescente sob o foco de luz azulão e redondo mostravam-me um outro País fantástico que já era o meu: o da criatividade. Nunca me esqueci de transferir o real para o imaginário – suponho que nessa época estive próximo da efabulação. O cara Branca (ou palhaço rico) austero e burguês autoritário de poucas falas, a sobrancelha postiça arqueada – máscara orientalizada e estática, o seu traje assexuado enfeitado de lantejoulas, a meia de fio de escócia bem esticada sobre a canela nervosa (de andarilho dos bastidores), tão lindo o chapéu e as fivelas de “Strass” dos sapatos! O Cara Branca é o mote exacto que dá significado ao Augusto. Cara Branca, a Madrasta a circular. Assim me apaixonei pela figura de augusto, esse augusto Mimo na mímica que mimava o Mimo que eu não tinha. Personagem Mágica, nem Homem, nem Mulher, mas tão deslumbrantemente Maternal mimando e imitando os seus gestos, os meus gozos e as minhas recusas. Augusto criticando num riso desenhado e leal aos adultos muito compostos, acarinhando assim ainda mais os meus sentidos já virados para a cor e o movimento. Arquétipo de todos nós, símbolo de tantas situações e quando provoca o riso não usa apenas a graça primária, sabe utilizar uma subtil perversidade para melhor recriar o Homem e esquecer o boneco. Os Augustos são imitadores da Vida. Deram-me balões em vez de luas – sempre me fizeram reflectir na vaidade ridícula dos balofos, na modéstia da gente grande, no amor e no desamor, nas paixões que voam como as pombas selvagens e raramente são domesticáveis. É a minha inquietação que se inquieta por vezes – “Dualidade Agrilhoada” quadro nº4, resulta na aparente “Aceitação da dualidade” quadro nº 5. Augusto o provocador de lágrimas – o maquinista das gargalhadas, o alquimista do prazer e da tristeza, - o “voyeur” de angústias que atentamente proteje, “Auguste protèje le sommeille de sa femme enfant” (Paris) quadro nº24, as gaivotas a preta e a branca voam levando consigo a sua confidência intimista.
Há quase 25 anos que mostro a minha pintura sempre e cada vez mais com uma mistura de terror e de gosto e em todas as minhas exposições sempre aparecem Augustos embora tratados de maneira diferente. Meu Pai morre em 1979 – depois, seis meses sem chorar; estive ausente. Inesperadamente em 1980, iniciei o primeiro trabalho desta série, “A Palhaça de Esperanças” quadro nº1 (minha colecção) – este quadro é o meu Pai e a Mãe de todos os que pintei até esta data. Neste Museu estão agora presentes a última ninhada. Alguns são intitulados em francês porque os fiz em Paris onde passo alguns meses por ano, e a maioria das vezes penso em francês, naturalmente, pois foi em França que passei o meu tempo de estudo. Sempre pintei espreitando a minha infância a olhar para o futuro – o futuro bem longe à minha frente e já fora de mim. Ainda me balanço escancarada no cavalo cor de bronze do carrocel, onde Augusto cria na sua mão semi aberta de luva branca, “A mulher Ecuyère” quadro nº2. Em “L’amour fou” quadro nº22, ele enamora-se – e Holé-Hop!! É provocado pela companheira da circular, - Augusto exulta e acontece “Domingo” quadro nº18, faz-se homem, possui, mima os filhos e fez oferta da bola vermelha do adereço do seu nariz: no “Premier cadeau de l’enfant du cirque “ quadro nº3. Eu sou uma mulher muito crescida com sete anos de idade. Considero a Pintura um caso muito sério onde me encontro inteira, selvagem, sem preconceitos de modas, dotada de princípios de Liberdade irreversível, por ser uma liberdade desmaterializada. Mostro aqui o meu recado, ou melhor, eu própria aqui estou, reflectida, insatisfeita, sempre à espera que aconteço O Quadro. O meu sofrimento de artista é igual ao meu prazer de o ser. É um verso e um reverso, um veneno e um antídoto. Um dia, lá pra os anos dois mil e muitos verão que tenho razão, quando um Augusto astraunauta, “Mulher borboleta” quadro nº8, vier contar às pessoas santadas na Praça grande – que Ana Maria Botelho nunca existiu. Ana Botelho passou, - passou ansiosa por querer comunicar através dos seus quadros, e só conseguiu balbuciar algumas imagens que foram morar nas gotas de uma nuvem, lá no alto onde sempre procurou uma estrela insólita que não
encontrou – só a viu de longe. Acreditou em miragens – e não deixou de ser livre. Então um Augusto anónimo passará na rua – Sentirá uma gota de água a cair-lhe no rosto! – Ora, dirá, - “temos chuva” – mas sensível, intuitivo, à segunda gota de água, pensará: «Provavelmente é uma lágrima de um Augusto pintor que se esqueceu de chorar em vida». Ana Maria Botelho Agosto 1984»57 ---------------até aqui os palhaços
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Exposição de Ana Maria Botelho, Augusto, o Inventor de Sonhos, Museu José Malhoa, Setembro/Outubro 1984
«Entreténs Lágrimas e ao Acordar o Sonho» foi o título da exposição de Ana Maria Botelho com que inaugurou o espaço de António Clara no Clube dos Empresários, na Avenida da República e foi uma homenagem da Artista a seu Marido, Carlos Borges de Castro que, já bastante adoentado, vem a morrer no dia seguinte à inauguração58. A este respeito, o «Jornal de Letras» opina que «Ana Maria Botelho tem o raro dom de transformar grandes mágoas em grandes magias»59. A exposição foi inaugurada pelo Presidente da República, Mário Soares, na presença do Presidente da Fundação Gulbenkian, Azeredo Perdigão. Eram dezoito os quadros, cujos preços variavam entre quinhentos e mil e quinhentos contos60. Numa entrevista a Manuela Goucha Soares, no «Diário de Notícias», a Pintora diz que todos os artistas devem começar por expor na rua61. O Jornal «Êxito» fala da sua obra como um contar de «histórias de cor com objectos tais como as conchas, os pássaros, os tecidos, as penas, as borboletas, as flores, as pedras vulgares ou semi-preciosas»62. O jornal «O Diabo» opinava que «estes trabalhos impõem-se pela sobrecarga de elementos e pela sua conciliação contraditória, com a introdução de notas inesperadas, no meio de um caos e de um jogo de acaso que, aqui e ali, a artista submete a ritmos e a uma equilibrada concepção volumétrica (...)» concluindo que «Os seus quadros (...) mergulham em coisas da Natureza e para lhes dar um outro significado e para reedificar através de diversas proveniências um universo para onde o artista convoca mistérios do mar, da terra e do ar.»63. No catálogo, a Artista retrata-se: «Os entreténs vêm de longe. Menina – cores, papel, terra, água. Modelos? Bonecos, caras de pessoas, peixes e melros de bico amarelo, gatos, gaivotas – e sobretudo sonhos... (...) Todas as exposições que fiz até esta data têm a marca da infância. Também sei que o tempo formal não tem significado absoluto para mim. (...) ». E, no final do texto, Ana Maria confessa: «Com o Sonho abraçado a mim, encontrei a maneira mais sedutora de virar as costas às lágrimas.»64. 58 59 60 61 62 63 64
In Jornal Espaço Médico, 25 Março 1986 In Jornal de Letras, 7 Abril 1986 In Diário Popular, 20 Março 1986 In Diário de Notícias, 2 Abril 1986 In Êxito, 3 Abril 1986 In O Diabo, 29 Abril 1986 Entreténs lágrimas e ao acordar o Sonho, Exposição de Ana
Natércia Freire escreveu longo artigo sobre esta exposição no «Diário de Notícias» que, pelo grande interesse na explicação destas obras, se reproduz na íntegra: «O que sai destes quadros é a voz do impossível que a Arte fixou; a pujança luxuosa e dolorosa, de mudas vidas minerais e vegetais, tecidos sem memória, em altitudes da dádiva e espera»... Dia 19 de Março Os largos tempos que um dia tem Isto é arte A figura de João Baptista, o percursor de Cristo, é a voz mais abnegada de servidor e de fidelidade total ao Senhor que dele pôde dizer: «Encontrei um homem, segundo o meu coração, que faz tudo o que lhe peço». Mas como se processarão as misteriosas realizações que o Deus de todos os homens encomenda aos seus escolhidos, não raro fazendo-os viajar pelos domínios de um inconsciente superior que se reclama de formas concretas e até de vertiginosas e caóticas maravilhas que parecem tombar fora do mundo dos humanos e, a custo, se reúnem numa espécie de aparições? Na exposição de Ana Maria Botelho – inaugurada a 19 de Março, pela tardinha, que o filho de 11 anos, menino ainda em idade de profetizar, refere nestas palavras: «Nos entreténs da minha mãe eu sinto um mistério como se estivesse a viajar num conto de fadas». Cruzam-se e entrecruzam-se as mais espaciosas alianças que a Artista, peregrina enamorada e estupefacta de dormidas civilizações, dotada de um raro poder disciplinador, acorda nas criações involuntárias da sua imaginação. Enquanto os «deuses» do Islão, (os que endeusavam); dos Indús, dos oceanos ou dos infinitos desertos, a procuram num rutilante e amoroso desassossego. Ana Maria Botelho talvez se interrogue como Jung, quando, embevecido ao estudo da Alquimia, tenta identificar os fantasmas que o assistem. Acabando por descobrir que essa ciência não tem nada a ver com o que se liberta à sua volta, aceita, atento, a voz que nele próprio fala: Isto é Arte. Aqui, há que imaginar o tempo de criação de Ana Maria Botelho como uma espécie de campo de batalha onde Maria Botelho, Galeria de Arte António Clara, Clube dos Empresários, Lisboa, de 19 de Março a 7 de Abril de 1986
a grande artista pôde sobreviver, à força cósmica que a possuiu, porque as lágrimas lhe prometeram o Sonho e os entreténs obedeceram às mãos que conhecem misteriosamente a forma das coisas sem voz, o colorido e o brilho dos espaços cósmicos e ardentes. Ana Maria Botelho diz que gosta da Bíblia pela magia dos seus «contos». Realmente a Bíblia é um repositório maravilhoso de acontecimentos que, só aos descrentes, parecem ilógicos. O Islão nunca negou a Virgem Maria. Bizâncio, vestiu galas e pedras preciosas para louvar os santos cristãos. No nosso século, Teilard de Chardin, entronizou a matéria («Deus fez a matéria fazer-se» (Santo Agostinho) e amou-a como já Francisco de Assis ousara há mais de sete séculos. Ana Maria Botelho é a própria Poesia à desfilada num espaço das «Mil e Uma Noites». Que trazemos, que guardamos, que perdemos, que saudade e que nomadismo nos enreda e nos obriga a rever os quadros desta Exposição, duas, três vezes, envolvidos na atmosfera perturbadora dos relevos coloridos, que nem desejamos precisar? A cultura flexível da Artista, sem resistências, e também sem submissões, concertou, aqui, o mais labiríntico e harmonioso desconcerto do Universo. Seguir o deus Marguerite Youcernar refere muitas vezes a obediência ao destino que define com as palavras: «seguir o deus». O Deus a que o cristão chamaria Graça, o hindu carma. Para ela, só há um Deus, porém, que conhecerá e saberá já onde estará dentro de dez anos – se ainda existir… Com Ana Maria Botelho que seguiu o deus, estamos envolvidos numa encantação que embruxa os visitantes, ou entramos num palácio construído por magos, cujos tesouros podemos observar e são produto de viagens que mergulhadores submarinos trouxeram para isoladas praias atlânticas? O que sai destes quadros é a voz do impossível que a arte fixou, a pujança luxuosa e dolorosa, de mudas vidas minerais e vegetais, tecidos sem memória, em atitude de dádiva e espera. Os donos «do imenso invisível e do imenso incompreensível» (Margerite Yourcenar), enamoraram-se de Ana Maria e marcaram-lhe um itinerário, um Encontro num extenso Dia de lágrimas e pérolas, à beira de um mar azul, numa ilha açoriana, da sua infância sem outros habitantes. Naquele ponto encoberto onde começa o arco-íris? Nas cruzes de ferro (de elmos) das alianças, onde os 4 pontos cardeais
demandam todos os infinitos? Os títulos dos quadros são versos de poemas – que ficam a viver juntos dos quadros. Dir-se-ia que na elaboração de cada trabalho, a artista viveu centenas de vidas, acorrendo à chamada das mais íntimas lembranças e lugares, às mais depuradas dores das coisas em abandono, coisas que se quiseram brilhantes, brilhos e pérolas, e pássaros, e corais, e turquesas, e topázios nobres – oiros, pratas, ferro, cinza. Ou um amado relógio «entre novelos de brisa sobre um lago gelado» Ana Maria é um poeta, que ama tudo com o carinho de uma samaritana. É uma escultora de ignotos materiais. Às vezes esculpe, em gesso ou barro, figuras femininas. Esculpe em conchas de outras mãos de empolgante significado. Esculpe, desenha, pinta, quando ordena a arrumação das coisas que utiliza. E porquê, em talha dourada tantas asas da pomba do Espírito Santo? Que propostas? Que propostas faz Ana Maria a novas gerações? Profundas buscas psicológicas ao antropólogo, ao sonhador de mitos e de símbolos, ou uma chamada ao espírito colectivo das Mil e Uma Noites que dorme nas nossas noites? Que alquimia filosófica preside à busca harmoniosa de tão diversos objectos cujas vidas acordou e até criou? Não levou mesmo as suas pesquisas ao ocultismo, no cerne de várias religiões? Aquele «cérebro» de coral branco a que Tritão, a que ser pertenceu? A tridacas entre relevos que nos escondem os braços, como os rubis no corpo de Omar Kaein, solicitam a nossa imaginação, a música interior dos lumes do céu. «Quando o sonho era mais perturbante a emoção tornava-se barroca», descreve-se Ana Maria. «Então cortava com energia franjas e rosáceas em folha de latão, que para mim eram prata e oiro». Mais um pouco de luxo (o luxo dos brilhos e dos materiais fulgentes que iluminara esta manifestação de originalidade imparável) o seria o impossível. As lágrimas espreitavam-nos por todos os lados. Entre corações de nacar, como o da mestiça Zulaica, que podemos tocar e afagar, está o seu perplexo coração em transe… E aquela transfiguração entre luzes e sombras que a Artista escreveu, ao catálogo, como se fosse uma biografia, toda segura em marcos aéreos
de lembranças, ainda nos transporta, ainda nos envolve ….! Como lhe devem estar gratas, todas as coisas que Deus criou, jóias ou desperdícios, a que não deu voz e que Ana Maria Botelho chamou ao festim da sua arte para nele participar, orgulhosamente brilharem – e comunicarem recônditos recados e eternos silêncios? O que reflectiram – e nos dizem. O que pressentimos – e nos desvelam. Que histórias, tal a de uma borboleta sob o fascínio de um pássaro irreal, que as suas mãos inventaram, (o amor difícil entre um pássaro de Manizes e a borboleta imperial da Casa Blanca) nos conta e nos sugere a Beleza plástica e mágica desta original criação? Pela voz que a artista lhes deu, elas, as coisas sem voz, a bendirão, com voz eternamente.» Natércia Freire65 ---------------terminam aqui os entretens 65
O Século, 12 de Maio de 1986.
ver o que são os entretantos e colocar aqui um quadro
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No final do ano de 1986, expôs no Museu Municipal de Loures sob o mote «Três espaços na Obra de Ana Maria Botelho 1971-1980-1986»66. No texto de apresentação que assina, testemunha - «A este concelho só devo atenções. (...)» - referenciando a ternura, o carinho e o bem-estar que ao longo dos anos foi sentido por aquela região que adoptou para viver67. Nessa mostra apresentou quadros de três fases distintas, com um denominador comum – todos criados no seu atelier no alto do moinho. Na mesma cidade participou, ao longo de vários anos, nas colectivas organizadas pela Autarquia: em 198568.198669, 198770 e 198971. No ano seguinte, Ana Maria Botelho testemunha o seu apreço pelas instituições da região onde vive, homenageando o jornal «Vento Novo» de Loures e o seu Director, Humberto Bernardo Coelho Mattos72. Em 1986 ilustra a capa e é autora do prefácio do livro «Fados» de João Ferreira-Rosa73, que inclui também um desenho seu retratando o fadista. No ano seguinte, Ana Maria Botelho vem a casar-se com João Ferreira-Rosa, passando a viver no Palácio de Pintéus até ao divórcio, em 1992. Foram anos de grandes tertúlias e noites de fado em que, a Pintéus, várias vezes por semana acorriam inúmeros fadistas como Amália, Carlos Zel, João Braga, José Pracana, Tó Manel Pelerigo ou Luz Sá da Bandeira. De resto, as festas sucediam-se e a animação era uma constante. Por essa época, Ana Maria Botelho pintou diversas mesas de jantar e de encosto, antigas e também completou em trompe l´oeil alguns painéis de azulejos que estavam incompletos. Nesta altura pintou também o grande presépio a óleo sobre madeira em que a própria artista se autoretrata como Nossa Senhora, sendo João Ferreira-Rosa a figura de S. José. Após o seu casamento com João Ferreira-Rosa, o casal 66 In Três espaços na Obra de Ana Maria Botelho 1971-1980-1986. 67 Idem. 68 99.º aniversário do concelho de Loures, 2.ª exposição Artes Plásticas, Junta de Freguesia de Loures, 19 a 27 de Julho 1985 69 3.ª exposição Artes Plásticas, Catálogo, Câmara Municipal de Loures, 18/27 Julho 1986 70 IV Exposição de Artes Plásticas, em frente à Câmara Municipal de Loures, 24 a 26 de Julho 1987 71 Loures Arte, Arte Contemporânea, Paços do Concelho, 21 a 30 Julho 1989. Nesta exposição, incentivou os jovens expondo quadros seus junto de pinturas feitas por estudantes da Escola Secundária n.º 1 de Loures, da área E, de Artes. 72 In Vento Novo, 30 Abril 1990 73 Fados – Poemas para cantar, João Ferreira-Rosa, Lisboa, 1985
passa grandes teporadas em Alcochete, onde Ana Maria desenvolveu importante trabalho cultural. Em 1987, para além da sua participação numa colectiva com Helena San-Payo, Ribeiro Farinha e Rogério Amaral no Museu Tavares Proença Júnior em Castelo Branco74, também a Câmara Municipal de Alcochete recebeu uma individual sua75 intitulada «Da Pintura à Poesia de Ana Maria Botelho» inserida nas comemorações do Dia Internacional da Mulher76. Na ocasião, Ana Maria homenageou o povo de Alcochete com o poema que a seguir se transcreve: «Vi o Sol a pôr-se além sempre diferente. Vi o Luar O sorriso nas caras Das pessoas Que são gente Verdadeira. ...E assim fiquei mais Sonho menos Imperfeita.»77 Em Janeiro de 1989, recebeu a Medalha Dourada e a atribuição do título de Cidadã Honorária do Município de Alcochete das mãos do Presidente da Câmara Municipal, Miguel Boieiro, resultado de votação por unanimidade78. Em Março desse ano, integrou o núcleo de «Dez Mulheres Artistas», no Salão Nobre dos Paços do Concelho de Alcochete79 e, no mesmo ano, foi autora da capa do livro «Antologia de Poetas Alcochetanos», publicado pela mesma autarquia80. 74 Exposição Museu Tavares Proença Júnior, Pintura, Ana Maria Botelho, Helena San-Payo, Ribeiro Farinha, Rogério Amaral, Castelo Branco, Sala de Exposições do Museu, 6 de Junho a 5 de Julho 1987. 75 In Voz do Barreiro, 7 Março 1987. 76 In O Emigrante, 27 Março 1987. 77 Da pintura à poesia de Ana Maria Botelho, Serviços socioculturais da Câmara Municipal de Alcochete, 8 a 31 de Março de 1987 78 In Alcochete Informação Municipal, Câmara Municipal de Alcochete, Ano X, Jan/Fev 1989, n.º 56, p. 8. 79 Dez Mulheres Artistas, Salão Nobre dos Paços do Concelho, Alcochete, 5 a 31 de Março de 1989. 80 Antologia de Poetas Alcochetanos, Câmara unicipal de Alcochete, Alcochete, 1989.
Em 1992, o Suplemento de Domingo do jornal «O Dia» dedicou à sua obra um interessante artigo intitulado «A pintura e poesia como vórtice dum sentir» em que revela o seu lado generoso de galerista e promotora de artistas e, nesse sentido, a sua doação temporária de uma casa à vila de Alcochete, que a Câmara Municipal apoiou, chamada também «Casa de Arte Ana Maria Botelho». Nesse mesmo ano participa na colectiva «Alcarte, Distinção de Mérito Cultural 1992», no Salão Nobre dos Paços do Concelho de Alcochete81. A sua experiência em organização de eventos culturais, sobretudo, exposições, no tempo em que estivera casada com Carlos Borges de Castro leva Ana Maria Botelho a outras iniciativas similares ao longo da sua vida. Em 1987, organizou a exposição de arte contemporânea «Timor 87», no Espaço Poligrupo Renascença, integrada na campanha em favor dos refugiados de Timor promovida pelo Duque de Bragança. Participaram nesta iniciativa, entre outros, Pedro Cabrita Reis, Eduardo Batarda, Eduardo Alarcão, Cristina Ataíde, Eduardo Nery, Gerardo Burmester, Isabel Laginhas, Isabel Garcia, José Paulo Ferro, Maluda, Nikias Skapinakis e Lima de Freitas e Fernando Pinto-Coelho. No catálogo, Ana Maria salienta a generosidade dos artistas referindo serem os melhores também pelos sentimentos de ternura, constantando que «a Arte sem Amor é uma ruína espiritual.» 82. Na Galeria de António Clara organizou depois diversas exposições onde, em alguns casos, pela sua mão, vários artistas expuseram pela primeira vez. Entre essas mostras, contam-se as de Georges Lemonier83, João José Oliveira, Paul Mathieu, Onik Sahakian, Eduarda Filhó, Lucília Moita, Nuno de Santa Maria e sua filha, Ana Carlos. De Paul Mathieu, refere a um jornal que o Artista de nacionalidade belga lhe aparecera com um currículo na mão ao que retorquiu: «Apareça-me cá antes com os seus quadros!». E assim surgiu a sua primeira exposição, inaugurada na presença do Embaixador do seu país, Robert Von Overberghe, e do Duque de Bragança84. Este 81 Alcarte – Distinção de Mérito Cultural 1992, C. M. Alcochete, Alcochete, 1992 82 Exposição Arte Contemporânea, Espaço Poilgrupo Renascença, 1987. 83 Exposição de Pintura de Georges Lemonier, Galeria António Clara, Lisboa, 1990. 84 In ?????, 30 Novembro 1990
trabalho foi, conuntamente com outros, a mostra da generosidade da Artista que, ao longo de muitos anos, assinou inúmeros textos para catálogos de exposições85. A década de noventa vai presenciar a inauguração da Casa de Arte Ana Maria Botelho na sua própria casa em Loures. A primeira exposição foi de Luís Macieira e chamou-se «Androides Vintage». De resto, para além da promoção de talentos vários, esta galeria assumiu-se como um espaço de amizade corporizando o que alguns anos antes dissera numa entrevista a Rosário Hespanha, para a revista «Preto no Branco»: «A minha vida está sempre iluminada pela Amizade»86 sendo que, nestas inciativas, Ana Maria sempre cultivou a generosidade, com ausência de quaisquer rendas ou honorários. Em Novembro de 1991 expõe em Colares no Atelier Edmundo Cruz, sob o título «Recordações da Atlântida (e outras histórias para contar)». Carlos Amaral e Ribeiro Farinha escreveram sobre ela na ocasião, no mesmo catálogo em que João Ferreira-Rosa testemunha - «A Ana Maria Botelho pinta com a Alma. Os dedos são penas que o Mundo lhe deu. Que bom haver quadros seus! Têm a cor dos sonhos e tudo quanto é humano.»87. Ainda em 1991 ilustra um mini-poster alusivo ao Dia Internacional da Mulher com um desenho colorido em que a maternidade e a exuberância estão presentes. Em 1992 expõe na Galeria Escada 4, em Cascais, ao tempo dirigida por José Castelo-Branco, sob o mote «O Amor Impossível entre o Sol e a Lua». No catálogo, Ana afirma: «Nunca trai a minha Pintura – Nunca pintei que não fosse em total liberdade. (...) Passo pelos Anos, e pelas minhas fases com o Sol ou o Luar. E os barcos são o meu símbolo de Evasão – as árvores são as minhas certezas – e as Pessoas são os meus Amores e as minhas Mortes. (...) A Pintura é o meu amante preferido – o mais forte, o mais espiritual, o mais alegre e o mais triste, o mais sublime e exigente, - nunca é monótono ou fingido. E entre a Lua e o Sol continua infinitamente a mais dramática das Paixões – vêem-se de longe e nunca se tocam.»88.
85 Exemplo disso é o magnífico texto de 1997 Em 1997 que escreveu texto para o catálogo da exposição «Largar o cais do desconhecido» de Maria Sobral Mendonça, na Galeria Hexalfa, em Lisboa, sendo um dos vários depoimentos de análise que faz da obra desta Artista - in Largar o cais do desconhecido, Maria Sobral Mendonça, Galeria Hexalfa, 1997. 86 In Preto no Branco, n.4, 12 Dezembro 1984 87 In Ana Maria Botelho, Recordações da Atlântida (e outras histórias para contar), Atelier Edmundo Cruz, Colares, 1991. 88 O Amor Impossível entre o Sol e a Lua, Galeria Escada 4, Cas-
Em 1994 expôs sob o mote «O Desejado» na Galeria Conventual, em Alcobaça, numa colectiva em torno de uma figura da História que é também ela recorrente na sua pintura – D. Sebastião. Na mesma galeria, vem a expor em diversas mostras onde algumas vezes vem a incentivar novos talentos inclusive através de salões primaveris com estudantes de artes das escolas locais, a que não são alheios os laços de amizade criados com os proprietários, Luís e Maria do Céu Pereira de Sampaio. Nesse espaço de arte vem a expor, em Junho de 1997 com sua filha Ana Carlos, para além de outras colectivas desde a fundação desse espaço até à actualidade. Em 1998 expôs no Palácio da independência em Lisboa sob o mote «Viagem no Tempo». No texto do catálogo, mais uma vez Ana Maria confessa-se: «Não sei comunicar pela Fala sobre a minha pintura – sou muda; só os meus quadros poderão balbuciar o meu raciocínio e as minhas emoções. Pela escrita tento alinhar desajeitadamente o retrato dos meus impulsos plásticos, numa pálida imagem que eu própria desfoquei. Traineiras, botes, molisseiros. Bateiras, baleeiras e a modéstia das barcaças velhas na imensa grandeza do mar. O barco balança na Vaga e a prôa erguida parece furar o Céu. No porto de Ponta Delgada era dia de S. Vapor – as raparigas corriam pelo cais e olhavam com desejon inocente para os marinheiros bronzeados, cor de sol, e os outros, os fardados de branco – Ai, Jesus!, das mulheres casadas. Barcos de cascos pretos, pesados de carga, cheirava a betume, a pez, a alcatrão e a sal. -E nas Capelas lá longe, ouviram-se as vozes gritantes dos vigias, - Oh, baleia! – E lá estavam no mar azul cobalto, um punhado de pescadores munidos de arpóes e remos, valentes, pobres, inconscientes -, os Forcados do Oceano. Os Augustos, Nobres, Leais, agredidos pelo burguês traidor, o Palhaço rico ou cara branca. Augustos meus companheiros de riso e de lágrimas -, Pessoas de máscaras nos rostos; máscaras que todos usamos e não sabemos. Augustos com medos de crianças. E sonhos de adultos. Agonia de dor E êxtase de prazer.»89 cais, 1992 89 Viagem no Tempo, Ana Maria Botelho, Palácio da Independên-
Em 2005 foi incluído um quadro seu com a simbologia de um anjo da paz numa publicação feita em homenagem póstuma a Natércia Freire - «O Livro de Natércia»90. Em Março de 2006 expõs na Patriarcal/Museu da Água, ao Príncipe Real, em Lisboa. No texto do catálogo, a Directora do Museu, Margarida Ruas fala na magia do olhar, como símbolo e instrumento de revelação, prestando-lhe homenagem por «a ter acolhido no seu olhar» e, no caso, de alguém que tem promovido muitos e variados talentos nos espaços que tem dirigido91. Guilherme d´Oliveira Martins foi o primeiro a abrir o seu livro de honra da exposição. Nesse mesmo mês, a exposição recebeu a visita de Maria Cavaco Silva, mulher do Presidente da República, acompanhada pelo Assessor Cultural da Presidência, Pedro Rapoula. Em 2006 expôs a convite da «Grafe Publicidade» sob o mote «5 Tempos através dos Tempos», onde apresentou cinco quadros de fases diferentes da sua pintura, assinalando os 22 anos da empresa. A esse respeito, escreveu a Artista no catálogo: «(...) Quando fui convidada a encher de cor com algumas obras este espaço, fiquei surpreendida pois já expus em galerias, museus, fundações, institutos e também recordo há mais de 50 anos ter exposto na rua, nas ruas de St. Michel em Paris ou na Babuíno em Roma. Mas durante uns minutos fiquei admirada e depois rapidamente considerei fora de vulgar diria e por isso definidora de um diferente desafio – o aniversário de uma empresa, um esforço de uma vida comemorada com muita cor! – A um desafio não sei resistir. Toda a minha voda é feita de respostas a desafios; e, por isso, profissionalmente, tenho sido independenete, essa independência uma das cosias que me reserva é Liberdade e por ser tranquila e adquirida, uma grande lucidez. Estou na idade do comodismo merecido. Atingi o conhecimento da realidade das minhas habilitações e tenho o critério exacto desta minha conduta. Eu só me interesso por pintar e só existo pelas Artes...E gosto de Pessoas, todo no resto da minha vida é Amor! (...) Aqui estou em Amizade a comemorar os cinco elementos e os cinco sentidos!»92. Alguns anos antes, questionada por uma revista se é uma mulher feliz, cia, Lisboa, 1998 90 Cf. O Livro de Natércia, Quasi Edições, Lisboa, 2005 91 Ana Maria Botelho, Um olhar com muita gente dentro, Museu da Água – Patriarcal, Lisboa, 23 de Março a 15 de Abril de 2006 92 22 Anos Comemoração com Ana Maria Botelho, 5 tempos através dos Tempos, Grafe Publicidade, Lisboa, 2006.
Ana Botelho define - «Creio que felicidade é apanágio de quem tem carácter. Estar na vida é preciso ter coragem, ter os princípios e não ter preconceitos. Eu sou feliz e faço tudo para fazer os outros felizes»93. Em 2009, Ana Maria Botelho expõe sob o título «Un regard plein de mirages», no Centro Cultural Português no Luxemburgo. No catálogo, Simonetta Luz Afonso, Presidente do Instituto Camões, assina o texto de abertura, que se transcreve: «É para mim, quer na qualidade de Presidente do Instituto Camões, quer como admiradora pessoal da excelência da sua obra artística, um grande prazer e uma honra poder contar com a participação de Ana Maria Botelho nas Actividades Culturais do Centro Cultural Português no Luxemburgo, através da Exposição de pintura “Um olhar com muita gente dentro”, que será inaugurada, em 5 de Fevereiro, nas respectivas instalações. No cumprimento dos seus objectivos, o Instituto Camões tem como regra prioritária o desenvolvimento de acções regidas por padrões de qualidade e representativas da realidade e dos valores culturais portugueses, tanto na sua vertente histórica como contemporânea. A Exposição de Ana Maria Botelho, que esteve patente ao público em Portugal, no Museu da Água –Patriarcal em Abril de 2006, e que constituiu, para os portugueses, uma redescoberta desta pintora, é um excelente exemplo dessa nossa determinação. É também por essa razão que folgo que o Luxemburgo possa agora conhecer e apreciar a obra desta artista que está, há muito, representada em múltiplas colecções nacionais e estrangeiras. Obrigado Ana Maria Botelho.» 94
93 In Indiscreta, ........................... 94 Cf. Ana Maria Botelho, Un regard plein de mirages, Centro Cultural Português, Luxemburgo, 2009
INCURSÔES LITERARIAS A par da pintura, sempre a escrita teve igualmente lugar na vida de Ana Maria Botelho – seja prosa ou poesia, artigos de opinião na imprensa ou os imensos textos que sempre foi escrevendo sobre tantos outros artistas plásticos para os catálogos das suas exposições. Entre o final de 1963 e o início do ano seguinte, a «Folha de S. Paulo»95 e o «Estado de S. Paulo»96, publicam poemas seus que foram bastante apreciados, durante uma temporada brasileira e é precisamente no Brasil que surge o seu primeiro livro ao público. Em 1968, Ana Maria vê então publicado «Varanda sem casa», o seu primeiro título de poesia, editado por «Livros de Portugal» no Rio de Janeiro»97. Valeu-lhe uma interessante crítica de Matilde Rosa Araújo, n´ «A Capital»98. Deste livro transcrevemos um poema que bem retracta o inconformismo da autora:
«Não tolero mais este desporto incompetente de estar sentada na vida numa cadeira de baloiço. Não me resigno ao ondular da árvore que eu não plantei, e sinto que na primavera quando ela der seu fruto eu já estarei por força em outras terras olhando as outras árvores que nem vi nascer.»99 Em 1972 iniciou uma colaboração escrita no jornal «Açores», sob o título «Pontos no is»100 onde, ao longo de cerca de um ano, comentou as características insulares e a sociedade micaelense. A 9 de Fevereiro de 1973, «A Capital» noticiava o segundo livro de Ana Maria Botelho, «Céu de Linho»101, recordando as
95 In Folha de S. Paulo, 8 Novembro 1963 96 In Estado de S. Paulo, 8 Fevereiro 1964 97 Cf. Anna Maria Botelho, Varanda sem casa, Livros de Portugal, Rio de Janeiro, 1968 98 In A Capital, 5 Março 1969 99 Cf. Anna Maria Botelho, Varanda sem casa, Livros de Portugal, Rio de Janeiro, 1968, p. 14 100 In Açores, 20 Fevereiro 1972 101 Cf. Ana Maria Botelho, «Céu de Linho», Ed. da Sociedade de Expansão Cultural, Colecção Convergência, Lisboa, 1973
palavras de Matilde Rosa Araújo - «após a leitura do seu belo livro de estreia, entregamos fundos créditos à poesia de Ana Maria Botelho»102. O «Diário Popular» refere os «cinquenta e oito poemas, diferentes mas cheios da vida, profundamente vivido pela sua autora, confirmam o valor duma obra poética já conhecida devidamente apreciada pela crítica da especialidade e por todos aqueles que sabem ler, sentindo tudo o que um poema verdadeiro pode revelar ao espírito humano»103. O «Diário de Notícias» testemunha que «mais do que um volume de versos inspirados e do melhor quilate, é uma confirmação. Confirmação do temperamento da artista. Confirmação de um poeta»104. Por essa época, já o «Diário Popular», a par de se debruçar sobre os seus versos, desvenda a sua fase vermelha na pintura, que a Artista define como revelador de «sangue, luta e amor». Ao mesmo jornal, fala na sua solidão, que necessita para a concepção da sua obra - «Só saio quando se me torna de todo imprescindível, não acho que o contacto com outros artistas, as tertúlias, o grande mundo, seja agora de qualquer utilidade para mim»105. Nesse ano, Ana Maria Botelho foi entrevistada por José Mensurado no programa «Frente a Frente», na RTP, onde falou da sua Pintura mas também da sua Poesia106. De «Céu de linho», dedicado a Carlos, seu marido, «companheiro atento do meu tempo, espectador da minha poesia, presença de ternura e liberdade (...)», escolhemos dois poemas reveladores de um estado de auto-conscencialização: «Habituados a esquecer somos os vivos dos hábitos e dos medos. Habituados a esquecer até esquecemos que seremos esquecidos amanhã. As nossas vozes furtam-se na sombra o fogo aperta-nos a garganta fiel e o nosso mundo isolado no amor esquecerá tudo que nos seja útil. 102 103 104 105 106
In A Capital, 9 Fevereiro 1973 In Diário Popular, 1 Fevereiro 1973 In Diário de Notícias 22 Junho 1973 In Diário Popular, 25 Janeiro 1973 In Diário Popular, 27 Março 1973
Habituados a esquecer andamos volúveis nas montanhas que pertencem aos pastores. Passamos correndo nas estradas de giestas e voltamos pasmados para o calor dos nossos corpos.»107 e «Esta manhã os pássaros do meu telhado fugiram para outros verões - para outros fios de violino. Quando acordei os pássaros companheiros das minhas visóes nocturnas tinham-se ido embora sem dizer adeus. Para dizer adeus é preciso coragem, - por isso os pássaros do meu telhado e eu – éramos irmãos.»108 O inconformismo desta Artista sempre esteve presente e sempre o tentou demonstrar, mesmo em tempos difíceis para que tal acontecesse – em 1973, um ano antes da Revolução, publicou, graças à atitude de Raul Rego, o poema que se transcreve: «A criança chorava que queria mais pão. Era só mais pão que a criança queria. 107 Cf. Ana Maria Botelho, «Céu de Linho», Ed. da Sociedade de Expansão Cultural, Colecção Convergência, Lisboa, 1973, pp.9-10 108 Cf. Ana Maria Botelho, «Céu de Linho», Ed. da Sociedade de Expansão Cultural, Colecção Convergência, Lisboa, 1973, p. 24
Chamou-se o polícia, - senhor guarda, por favor mais pão para a minha criatura... - não proteste mulher ensine a criança a morder seus instintos um pouco de fome é bom para a sua criatura. Chamou-se o padre - senhor padre, por Deus mais pão para a minha criatura... - não se exalte santa, no céu terá pão todo o pão que quiser para a sua criatura... Chamou-se o homem rico - senhor rico, por sua fortuna mais pão para a minha criatura... - cale-se mulher se hoje tenho muito pão é porque tive no passado uma vida bem dura (semeia e colhe) ensine a sua criatura... Chamou-se a assistente – senhora assistente pelas almas mais pão para a minha criatura... - mulher boa tenha fé e uma vida decente e verá que vida lhe dará muito pão (e de ló) todo o pão que quiser para a sua criatura... - chamou-se o juiz
- senhor juiz tenha piedade mais pão para a minha criatura... - não sabe mulherzinha que a posso prender por mendicidade? - tenha dó da sua criatura... FOI UM BURBURINHO NA CIDADE NINGUÉM TINHA PÃO PARA A CRIANÇA QUE QUERIA MAIS PÃO. O jornal dias depois divulgou a notícia: «Encontradas misteriosamente mortas, uma mulher e uma criança num quarto alugado de um terceiro andar da Avenida Almirante Reis. Estavam trancadas as portas. A Senhora Fulana de Tal moradora no segundo andar do mesmo prédio, deu pelo triste sucesso, ao atender de manhã no patamar da escada o padeiro, por sentir um cheiro nauseoso que vinha de cima. Preveniu imediatamente a esquadra. O chefe Tal está procedendo a investigação para a esclarecer a origem deste acto tão desumano e tresloucado.»109. Da mesma obra, transcreve-se outro poema em que a contestação é uma realidade: I «No mundo aconteceu que as Messalinas sem pátria saíram para a rua e foram decapitadas para prazer dos homens. No mundo aconteceu que um presidente sem dentes fez referendos e referendos e perdeu nas urnas esborrachadas os votos de medíocres sujeitos. No mundo aconteceu que a lua desvairada saiu da sua órbita
109 Cf. Ana Maria Botelho, «Céu de Linho», Ed. da Sociedade de Expansão Cultural, Colecção Convergência, Lisboa, 1973, pp 80-83
e voou como os pássaros para raízes profundas à procura de poetas. II No mundo aconteceu sons de pianolas partidas um desejo de beijos de crianças indesejáveis sem armas e se bolos sem vitaminas azuis. No mundo aconteceu recusas a mendigos de vozes quebradas de esmolar necessidades nas estradas inocentes onde passam os bois e os palhaços. No mundo aconteceu areais enegrecidos de petróleo que esguicha no oceano imprudente Porque se deu às pessoas imoraisde decentes. III No mundo aconteceu um número sete em forma de cruz esgueirado num monte de Vilcabamba e ninguém reparou nem no set nem na curz miopes anadaram a olhar para o chão os homens vendidos a outros homens mais fortes. No mundo aconteceu a impossibilidade geométrica de uma circunferência achatada grávida de um lado de vícios escondidos e prenhe do outro de ódios de vitória. No mundo aconteceu as mulheres envelhecidas
de cedências e adultérios vividas de outras de orgulhos receptivos de vison de oiro e de cisnes sem Ledas. IV No mundo aconteceu todos os pecados que não eram pecados porque lúcidos se confessaram às consciências limpas das tempestades do sol, No mundo aconteceu as cidades trocadas os idiomas fingidos os credos desmentidos as árvores abatidas as planícies rasgadas as nuvens assopradas as paralelas cruzadas. E NO MUNDO ACONTECEU as lágrimas dos mortos que imploravam socorros e ninguém respondeu.110 110 Cf. Ana Maria Botelho, «Céu de Linho», Ed. da Sociedade de Expansão Cultural, Colecção Convergência, Lisboa, 1973, pp. 75-77
(EM JEITO DE CONCLUSÃO) Abstracção, figurativo, colagens, utilizando óleo, grafite, gouache ou mesmo lápis de cor ou terras húmidas de chuva, tudo se compõe na obra transversal de Ana Maria Botelho, ao longo de mais de cinquenta anos de um percurso artístico. Fazendo uma retrospectiva, vêm à tona a Mulher e a feminilidade em toda a acepção, seja como mulher-só, introspectiva, seja como mulher-amante e amada, seja como mulher-mãe. A maternidade está muito presente nos seus quadros como na sua vida, ou não se devesse a si a mão dada a tantos jovens talentos, sempre protectora dos Artistas como dos seus Amigos. O vermelho cobriu durante anos as suas obras. Noutras épocas foram as abstrações que tiveram lugar. Noutras ainda, criou grandes manchas explosivas de cores, que ligou à criação do Mundo. Inventou pinturas iluminadas formando transparências. Criou jóias mirabolantes com pedras preciosas, rendas, cordas e aplicou os mesmos materiais em quadros-caixa a que deu nomes árabes. Chamou-lhes «Entreténs». A insularidade marca também a sua pintura, desde sempre111 a que não devem ser alheias as suas raízes açoreanas. Ana Maria Botelho é introspectiva; nos seus retratos repassa o mundo interior das suas personagens ou dos seus modelos – já Alfredo Marques referia que, quer no abstracionismo quer no neofigurativo, ... «Ana Maria Botelho é uma imagem arrancada a um dos seus próprios quadros ou a um dos seus poemas» - escreveu Carlos Monteiro, em 1979112. E muitas vezes as próprias personagens são os palhaços ou «augustos», como prefere chamar-lhes, também eles reflexivos, como identificou Manuela Ramalho Eanes a propósito da sua exposição em 1981 - «O 111 A insularidade marcou a pintura de Ana Maria Botelho, conforme se atesta e a Artista testemunhou ao Boletim Municipal de Alcochete, em 1987 – cf. Alcochete, Informação Municipal, Ano VIII, Março/Abril 1987, n.º 43 112 In Época Feminina, 22 Janeiro 1979
Augusto que existe em cada um de nós... a ser-nos dado com uma grande força interior, com uma certa ironia, mas também com poesia e esperança.»113. A propósito da sua exposição dos «Entreténs», Ana Maria Botelho testemunhou a um jornal - «De toda a exuberância do cenário dos meus primeiros anos, ficou-me a certeza de que o Artista tem um caminho de solidão». Como registou por ocasião de uma das suas primeiras exposições, em 1968 – «Estou em posição de descoberta, o rosto levantado para o fim do risco, e no fim do risco a porta aberta.»114. 113 Manuela Ramalho Eanes, no Livro de Honra da Artista, 1981. 114 In Dinastia Galeria de Arte, Pintura de Ana Maria Botelho, 6 a 31 Maio 1968
inicio dos textos da Ana Maria BOltelho tentar colocar uma frase que mostre que se trata da maneira como a AMB ve as coisas
Conheci bem o ambiente familiar e estético em que decorreu a parte açoriana da infância e juventude da Ana Maria.
Fecho os olhos e vejo-a, destacada de brilho e alegria, sobre o fundo dos «Verões da Senhora da Vida». Eram célebres esses verões já há meio século. No antigo e belíssimo Paço dos Botelhos na Ilha de S. Miguel, os donos, - os Viscondes do Botelho, seus pais -, conjugavam, ano após ano, o requinte e a beleza do lugar e das coisas, feitas ou não pela mão do homem, com os fascínios das pessoas que acorriam dos mais variados horizontes ao convite dos donos da casa.
Rapaz calado, primo irrelevante da família, eu ia lá regularmente, por simpatia generosa dos donos da casa. E observava e sentia o espectáculo e o ambiente verdadeiramente extraordinários. As pessoas... Desde príncipes e cardeais romanos, a «grandes mundanos» internacionais e lisboetas, a professores universitários ou artistas, até obscuros primos, Botelhos quase populares... (Notário de mil caçadas e mil e uma mulheres... Pequeno autarca com a patroa gorda subindo a escada de honra pára no patamar perante uma fabulosa gravura da «flagelação» e, condoído, sincero, descomplexado, lamenta com melancolia «Eh! Maria! Porradaria da grossa»...)... A riqueza desta mistura era única, na sua «cruz» de inteligência, beleza, sucesso, sabedoria, e também vaidades ou «simplicidades» quase ingénuas... Com mão de mestre os Pais da Ana tudo reuniam, tudo articulava com um saber todo feito da experiência de bem receber, mas também de profundo conhecimento da humanidade, das suas reacções, sentimentos, atitudes várias... Naquele contexto rebrilhava a Ana Maria. E não tenho dúvida de que entre os seus inesquecíveis risos (quantas vezes irreverentes...) e a sua graça esfusiante, ela absorvia as lições daquela riqueza de ambiente. Provavelmente sem ter plena consciência, mergulhava e desenvolvia raízes de inteligência e sensibilidade, pelos quais haveriam de se alimentar maturidades, lucidez, conhecimento dos humanos nas suas mil facetas. E «as coisas», o quadro material em que se moviam as pessoas? Nem falo já, em geral, no mágico ambiente de S. Miguel. Mas lembro para sempre o quadro estético da Senhora da Vida. Por fora e por dentro perfeito de equilíbrio na decoração e no bom gosto. De dia aquela única piscina cavada na rocha do mar. Os almoços que, junto dela, avançavam pela tarde. As
noites estreladas de luar cá em baixo junto ao quebrar das ondas ou lá em cima nos terraços do Paço imersos, como havia séculos naquela magia, naquela paz. As minhas visitas à Senhora da Vida duraram anos e anos. E, às vezes, dava comigo a pasmar para a permanência intacta daquele clima, daquele brilho que, durante décadas, pareciam não ter fim. Um dia encontrei numa página de St. Exupery que reflectia um espanto análogo: a um emir do deserto em visita à Metrópole um funcionário da administração colonial mostrava Versailhes. Todas as maravilhas lhe deixavam intacta a mesma face e atitude de indiferença arrogante. Que só pareceu perturbar-se... quando parou, petrificado, perante os grandes repuxos de um grande tanque. E ao fim de tempo respondeu ao funcionário que propunha prosseguissem na visita. «Espere. Quero ver o fim»... A água e os repuxos sem fim eram para o homem do deserto... algo de impossível... Tinham de acabar... O meu espanto com a perenidade do clima em que mergulhávamos no ambiente da Senhora da Vida... era próximo do do emir... Seria possível que não tivesse fim? De certa forma, e para certas pessoas, não teve. Não teve, certamente para mim e ficou em todas as suas facetas estéticas e humanas entre as lembranças mais ricas. Não teve com redobrada certeza, para a Ana Maria. Algo de fundamental no seu talento, na força estética que a faz uma tão grande artista. Tem, estou absolutamente certo, profunda origem no mundo da Senhora da Vida. Outros escrevem e comentam aspectos diversos da sua criação, da sua obra, da sua arte. Eu opto, sem grandes intelectualizações, por lembrar este espantoso húmus das emoções e da sensibilidade em que ela, a mulher, a criadora, a esteta deitou as raízes mais ricas e que alimenta ao longo da vida alguns dos seus mais preciosos rios subterrâneos. Mas tu sabes, Ana Maria, que sou muito menos de teorias... e muito mais de emoções. Sinceras. Sai da piscina, Ana! O Gilberto está a tocar a sineta para o almoço! E o mar açoriano continua à volta do terraço e das mesas dos príncipes, dos meninos, de todos comovedoramente azul e cinzento com emoções reflectidas, múltiplas, e à dimensão de cada um... É só escolher. Como sempre. Augusto de Athayde
testo 1
2 Desde pequena, o meu avô Belas (Marquês de Belas) nos levava à Batalha, a Alcobaça e à Nazaré. Era com ele que eu passeava pois os Pais estavam muito ocupados e no fundo foi com ele que, mínima, comecei a estruturar o meu estado de alerta para a estética das coisas simples e belas, pois ele era um homem de grande parcimónia mas extremamente exigente. Eu adorava o meu Avô pois foi a primeira pessoa que me levou ao circo, deume o primeiro gelado e mostrou-me as moscas. O Avô contavanos histórias fantásticas da sua vida e eu julgava que ele era do tempo de Dona Mumadona. Descrevia-nos a Implantação da República, a sua prisão e a fuga para o Palácio do Quirinal, em Roma, onde foi recebido como um amigo e um herói. Numa certa altura, contava o avô que o Rei Vitor Emanuel lhe perguntou: «Amigo Marquês, conhece uma dança argentina que faz furor em Paris e se chama tango?» ao que ele respondeu «Conheço! E saiba Vossa Magestade que até já o dancei.». «Ora ainda bem» - disse o Rei - «Vamos ali para a sala de baile e você vai-me ensinar!». E assim dançaram o Rei e o Avô, o tango, enquanto o avô cantarolava «El caminito». Também esteve largos meses na Monarquia Romena. Foram anos antes de voltar para Portugal; contou-nos que na Romania ele achou que «les fleurs sans odeur, les fruits sans saveur et les femmes sans pudeurs» - só mais tarde vim a perceber este dito. Era um homem crítico e honesto. Dizia algumas vezes a seguinte frase - «Eu não aceito ir a casa de fulano ou cicrano porque depois não posso dizer mal dele».
3 Este meu auto-retrato foi pintado quando eu tinha dezanove anos numas férias a Portugal. Naquele tempo já estudava em Paris. O João Ferreira-Rosa era um grande Amigo desde a adolescência. Pintei o auto-retrato num dia, o João veio-me ver e ficou tão entusiasmado que eu peguei no quadro e ofereci-lho. Ficou muito contente e colocou-o na sua casa em lugar de destaque. Mais tarde vim a casar com o Carlos. Entretanto fomos os dois a casa do João onde havia uma fadestice. O Carlos viu o retrato e adorou-o; falou comigo e pediu-me que eu falasse com o João para me devolver o quadro. O João, muito a custo, assim fez. Entretanto o meu Pai foi a nossa casa, viu o quadro, ficou fascinado e pediu-nos para o levar e pô-lo em frente à sua mesa de trabalho. Não sabendo resistir ao seu pedido, dei-lho e, durante muitos anos, o retrato lá esteve. Quando o Pai morreu, ficamos de novo com o auto-retrato. Passados uns anos o Carlos também morreu. Foram dois grandes desgostos. E, dois anos depois, resolvi casar com o João Ferreira-Rosa. Assim, o auto-retrato voltou para o João, no Palácio de Pintéus. Quando, mais tarde, me separei do João, continuámos «amigos como dantes». Voltei para a minha casa da Lagariça mas o autoretrato deixei-o, por justiça, ao seu primeiro proprietário, João Ferreira-Rosa.
4 Pintei o retrato da minha irmã Margarida, a quem chamo ternamente «Guidinha», há muitos anos. O quadro está no monte alentejano que é uma casa muito bonita onde passo alguns dias de sossego com ela e o marido, o Óscar Montepegado. Gosto tanto do Alentejo! Tem uma paisagem tão rica e um lado austero que me encanta. Gosto das lareiras grandes onde a gente se mete lá dentro, com tijoleira no chão; a rusticidade da casa, as traves de madeira e a comodidade dos quartos é como um paraíso. A Guidinha e o Óscar são um casal que eu admiro e me fazem sentir bem. O Óscar também é pintor e muito interessante. Ele ama a arte. Para mim é uma honra terem quadros meus em casa deles pois sei que é por sincera admiração e por amor. A Guidinha tem menos sete anos do que eu. É a mais nova de nós cinco. Eu lembro-me tão bem do dia em que ela nasceu. Eu era muito infantil e não percebia nada da vida, mas nunca poderei esquecer daquela tarde em que me chamaram para ir ver a menina que nascera – entrei no quarto da minha Mãe e era tudo cor de rosa. A Mãe recostada nas almofadas, todas cor de rosa, com uma camisa de rendas cor de rosa e lençóis de seda natural, também cor de rosa. A Guidinha estava no berço. Era um bebé cor de rosa no meio de folhos cor de rosa. Estas imagens nunca as esqueço. O ar cheirava a sabonete.
5 Há muitos anos resolvi oferecer aos meus três filhos os quadros que eles mais gostassem. Dei de começo o quadro «O jogador», óleo de 1968, à Ana Carlos. Os meus filhos gostam da minha pintura e esse quadro e outros são uma ligação às pessoas que mais amo no Mundo – os meus filhos. Também dei à Maria da Piedade um quadro que foi exposto na Galeria Dinastia, óleo, de grandes dimensões, chamado «Fuga a Herodes», escolhido por ela. No meio de milhares de quadros pintados de repente sai um de que gostamos muito e em que os outros reconhecem talento e qualidade. «O Jogador» foi um desses quadros – um acidente. As tabernas inspiram-me. Os cafés não me inspiram nada! Um jogador da bisca. Uma visão que eu tive de um operário a jogar na esperança de arranjar dinheiro para a renda de casa. A minha filha não me deixou nunca vender este quadro nem mesmo depois de uma proposta verdadeiramente irrecusável, mas que por ela recusei. Logo após esta oferta mirambulante ofereci-lhe o quadro, agora sendo dela não há tentação que possa acatar. A minha pintura também é isso, é uma ligação incondicional de respeito pelos que amo.
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Este quadro esteve na exposição que fiz no Verão de 1970 na Junta de Turismo da Costa do Sol. Era seu director o pintor Oscar Pinto Lobo, que me escreveu um texto no catálogo. O encontro entre a família Pinto Lobo e eu começou com uma profunda amizade. O Oscar dava-se muito bem com o Carlos e também a sua mulher Ivone e a filha. Durante muitos anos jantávamos juntos lá em casa ou em casa deles. A minha filha Ana Carlos tem muitos desenhos repentistas feitos pelo Oscar. Infelizmente há anos o Oscar morreu. Tive um grande desgosto. Do seu primeiro casamento teve a sua filha, uma mulher extremamente criativa: Ana Salazar. É um grande valor da Moda. Nesta exposição da Junta lembro-me especialmente da minha irmã Maria Pia, que estava muito bonita e é uma mulher extremamente interessante e cheia de sensibilidade, linda por fora e por dentro.
7 A exposição que fiz em 1964 no Casino Estoril constava sobretudo de barcos, em óleo e desenho. Era o segundo ano que expunha. O Casino tinha já um certo prestígio e eu estava muito ansiosa na véspera mas, no dia, apareceu toda a gente que eu esperava. O quadro grande que está na fotografia foi comprado pelo então Ministro da Marinha, Almirante Quintanilha Mendonça Dias para o paquete Santa Maria. Na mesma imagem vêem-se também a Vera Franco Nogueira e a minha filha mais velha, Maria da Piedade, que hoje vive no Brasil e me deu dois netos, a Catarina e o Martim. Esta menina era tão linda e já naquela idade gostava de vernissages! Qual o meu espanto na época quando fui apresentada ao Ditador de Cuba, Fulgêncio Baptista, que me adquiriu um desenho também nesta exposição. Aí perto, em Cascais, viria a expor muitos anos depois na Galeria Escada Quatro, onde era director o José Castelo-Branco e, nessa exposição, os barcos estiveram outra vez presentes. Eu pinto barcos quando necessito de uma evasão, de fugir do mundo para o meu imaginário...
8 Era muito nova e estava com assuntos difíceis para resolver. Com a ajuda do Pére Jean Courtois fui para Paris onde eu queria estudar. Este homem era uma extraordinária personagem - dominicano inteligente e culto, formado em Teologia, com livros publicados e, sobretudo, um homem de grande coração. Andava sempre de hábito branco, era gordo, tinha dois metros de altura, uma cara grande e corada e era louro. O Padre Courtois sempre estivera ligado a mulheres presas na cadeia «La petite Roquette». Ia ver as prisioneiras, conversava com elas para lhes dar coragem e dizia missa para quem fosse cristão. Entretanto, com a ajuda de vários beneméritos e do Ministério da Cultura, o Padre Courtois tinha adquirido um palácio napoleónico de caça bastante arruinado, fez umas obras e aí instalou oitenta mulheres que tinham cumprido pena e não tinham para onde ir. Chamava-se «Obra de Santa Maria Madalena». Encontravamse todo o tipo de criminosas, mulheres que utilizaram armas de fogo, armas brancas, incluindo tesouras para cometer os seus crimes. Todas pertenciam a meios muito pobres e sem princípios de comunicação. Chegando a Paris, apanhámos o transporte e dirigimo-nos para a Fertée-Vidame, onde ficava a Obra. Nessa noite, num quarto grande e velho, no ex-palácio de Napoleão, fiquei. Era Agosto e estava calor. A cama era boa e eu estava cansada. Era quase meiodia quando acordei com um pequeno barulho. Era a Denise que me trazia uma caneca de café com leite e duas fatias de pão com doce de tomate. Vim a perceber mais tarde que o pão, o doce e mais coisas eram fabricadas naquela casa. Cada pessoa cumpria com as suas tarefas. O Padre Courtois tinha um escritório onde recebia qualquer mulher que estivesse com problemas e arranjavalhes uma ocupação. Era tão terno e meigo. Tinha uma capelinha adaptada de um quarto no rés-do-chão. Dizia missa às oito e não obrigava ninguém a ir. No entanto, tratava todas por igual. Era
um homem que dava amor a quem necessitava como um Santo, como um Profeta. Não pedia nada em troca. A sua vida foi viver para os outros até ao fim. Nesse mês de Agosto fui com ele à prisão de Petite Roquette buscar duas mulheres. Tinha então um citroen dois cavalos e nem se percebia como é que cabia lá dentro, com tanto calor e ele de botinas pretas com meia de lã e o hábito branco. Do rosto caiam-lhe bagas de suor. Nunca tinha uma queixa. Aprendi com ele como tratar das pessoas com bondade, desde as mais humildes a todas as outras e comecei a perceber que as mulheres que mataram outras pessoas tinham sentimentos bons e que a ocasião e a emoção fazem o prevaricador. O homem é sempre a sua circunstância. «La grosse françoise» - era assim tratada porque era grande – tinha envenenado com arsénico o seu homem, que lhe batia e a tratava mal. Françoise era a cozinheira de Sainte Marie Madeleine. Comecei a conhecer todas pelo seu nome e elas tratavam-me por «Madame Ana». Tinham medos terríveis. Às vezes, durante a noite, vinham bater à minha porta porque tinham sonhos e ouviam barulhos do lado da casa da porteira. Tinham terror de vinganças. A Antoinette estava encarregue do escritório, da capela e das casas de banho. Vivia com a velha Germaine numa casinha na mata. Passavam o dia a discutir. Tinham estado presas trinta e cinco anos. Todas tinham os seus quartos com as suas coisas e, se quisessem, fechavam-nos à chave. Talvez pela primeira vez na vida sabiam o que era a privacidade. Foi aqui que conheci o psiquiatra Henri Ez, mundialmente famoso, que era um dos benfeitores da casa assim como o meu Pai. Eu e o Henri Ez ficámos amigos por essa altura. Eu estava a começar a estar feliz pois ocupar-me de outros e ajudar é uma missão de reestruturação da alma. Com o acordo do Padre Courtois comecei a ocupar-me das mulheres. Dava lições de inglês, de desenho e de trabalhos manuais. De vez em quando havia um jantar de despedida de uma delas a quem tinha sido arranjado emprego. A certa altura já eram cento e nove, saía uma e entravam duas no dia seguinte. Nas horas vagas, cortava-lhes o cabelo porque todas queriam ter o meu corte e arranjava-lhes as unhas. A prisão é dramática, contavam-me histórias de arrepiar os cabelos. A Nisou disse-me que, quando esteve presa, quase que não dormia pois, durante a noite, nos dormitórios ouvia-se sempre alguma mulher que chorava ou outra que gritava com pesadelos, não havia silêncio. Entretanto, o Padre Courtois tratava da melhor solução para os
meus estudos. Passado uns quantos meses, disse-me que estava a tentar arranjar-me uma bolsa na Fundação Francesa de Artistas Estrangeiros. Era então Ministro um homem extraordinário – André Malraux. Eu conhecia bem alguns dos seus livros, tendo ficado fascinada com um deles, «Les voix du silence», um livro sobre pintura de cariz filosófico. Malraux foi realmente um génio do pensamento humano. Era então muito amigo do Padre Courtois. Passei aquele Natal de 1956 com muito gosto e muito frio. Nevou. Era uma época muito emocionante em que as ex-prisioneiras precisavam de mim. Santa Maria Madalena tinha direito a duas assistentes sociais. Já tinham passado por lá algumas mas não tinham formação carinhosa, eram frias e cheias de preconceitos. Chegou a Primavera. Os campos estavam cheios de flores brancas e amarelas e as árvores arrebitavam os seus ramos para o sol. Chegou Maio e o Padre Courtois informou-me que André Malraux nos receberia dentro de dias. Finalmente fomos recebidos pelo Ministro da Cultura. Era um homem informal, extremamente simpático. Cumprimentou-me com dois beijos que, nessa época, não era vulgar. Eu sorri mas quase não falei. Estava um pouco nervosa e não acreditava que estivesse a conversar com o André Malraux num gabinete com um jarro de flores. Disse-me que tinha conseguido uma bolsa de estudo na Escola Superior do Louvre, a partir do mês de Julho, altura em que deveria fazer as matrículas. Fiquei feliz e o Padre Courtois, quando saímos, deu-me um abraço. Estava comovido. Fomos festejar – comemos gelados e fomos à matinée da Comedie Française onde vimos «Édipo Rei» de Sófocles. Realmente o meu querido amigo Pére Courtois pareceu-me um santo milagreiro! Fiquei em Santa Maria Madalena até ao princípio de Outubro. Tive desgosto de me ir embora daquele ambiente em que me sentia útil mas voltava todos os domingos e ia de volta a Paris no autocarro das sete da manhã de segunda-feira.. Em Paris dormia no Convento das Dominicanas que eram encantadoras. Só voltei a Portugal durante quinze dias nas férias grandes. Todos os tempos que passei em Paris com o Padre Courtois foram um ensinamento para a vida. Ele dizia-me que o melhor que havia nas pessoas era a inteligência do coração. Fui de comboio para Lisboa. Cheguei num dia lindo sem nuvens que só existe em Portugal, com o coração e a alma plenos de felicidade e gratidão.
9 O quadro «Pai, porque me abandonaste?», da minha série encarnada, foi visto na Galeria Dinastia, no final da década de sessenta. Faz hoje parte da colecção do meu filho Carlos Maria. Foi o primeiro da fase dos encarnados. Este quadro lembra-me Roma, pelo seu misticismo e luminosidade. Tive oportunidade de passar uns tempos em Roma, onde fiz amizades e conheci pessoas interessantes. Aprendi nessa altura a falar italiano, o que me deu imenso prazer porque sempre gostei de línguas. Aproveitei para frequentar a Escola de Artes da Via Babuino. Aluguei um apartamento junto dos muros da cidade por detrás das termas de Caracala. Os meus pais iam constantemente ao Vaticano. O pai tinha sido nomeado Camareiro Secreto de Honra e Devoção de Pio XII. Era uma nomeação efectiva, durante toda a sua vida e, por esse motivo, conheceu vários Papas. Um ou dois meses por ano, os pais iam passar esse tempo a Roma e ficavam no Grande Hotel. Uma vez, fui com eles e fiquei lá uma noite. Na manhã seguinte, bem cedo, o Pai começa a vestir a farda com que o Vaticano o tinha distinguido. Era toda em veludo preto, com collarete branca, calção e meia preta, sapatos de veludo com fivela de gorgorão preta. Tinha também uns cordões e as suas condecorações. A sua função era receber Reis, Rainhas, Chefes de Estado e pessoas de prestígio que o Pai tinha que apresentar ao Papa. A minha mãe ficava tão vaidosa quando saía e dizia: «Olha, o teu Pai está tão janota!». Eram eternos apaixonados. Quando eles partiam, voltava para a minha casa. Nessa altura, já a minha mãe estava conformada com os meus estudos sobre pintura e então o Pai pagava-me as despesas, mas não era mãos-largas. Eu sempre me habituei a ter respeito pelo dinheiro oferecido pelos outros porque sei o que custa ganhá-lo. Ia quase todos os dias à escola de arte mas tinha longos tempos livres, que brevemente seriam preenchidos. Conheci e fiquei amiga do pintor Carl Polter e da mulher, Giselle. O Carl era alemão e a Giselle, francesa. Ia muitas vezes para casa deles, que era um apartamento pequeno e cheio de charme na Piazza Navona. Subia-se umas escadarias de mármore e era no primeiro andar. O Carl era um grande pintor e andava sempre distraído. As telas amontoavam-se por todo o lado e até no corredor as tinha no chão, e muitas penduradas. O atelier era também sala. Giselle pintava retratos bastante bem, quase sempre em casa de clientes. Ambos gostavam de cozinhar. Depois lavávamos todos a louça e ouvíamos bons trechos de ópera. Éramos seduzidos pela «Traviata» cantada pela Maria Callas. Toda a gente em Itália canta ópera, desde os taxistas às mulheres a dias.
Aos domingos, eu acordava com Angelo, meu vizinho, a cantar Verdi. Era uma delícia, até acordava mais bem disposta. No meu modesto apartamento também recebia amigos para jantar e fazia petiscos à portuguesa. O cozido era muito apreciado, com enchidos da Toscania. Nunca soube o que era fazer cerimónia. A Mãe dizia: «A pessoa de maior cerimónia na minha casa sou eu!». Um dia telefonou-me o Carl Polter a pedir que eu fosse jantar no dia seguinte pois precisava muito de estar comigo. Chego lá e estava o casal à porta à minha espera. Não esperaram muito tempo pois sou muito pontual. Começaram a falar nervosamente os dois ao mesmo tempo «Ana, calcula tu que fomos a uma recepção na Embaixada da Alemanha e conhecemos a Senhora Peggy Guggenheim, a benemérita e dona do Museu Guggenheim de N. Y.. Convidamo-la para vir a nossa casa daqui a três dias e ela aceitou. Imagina se ela me compra um quadro!». Eu achei fantástico e, ao jantar, quando chegou o colega Giovanni Bertini, meu grande amigo com quem aprendi a falar italiano, estavam muito ansiosos
pois tinham três dias para arrumar a casa e dar um jeito à sala-atelier. Não nos deitamos nessa noite. No dia seguinte fui comprar velas bonitas e lamparinas para por em cima da lareira. Pusemos mais um cavalete na sala onde coloquei um quadro muito interessante do Carl. A Giselle fez dois arranjos de flores e até a escada da entrada nós lavamos para ficar com bom aspecto. Fui para casa dormir e voltei no dia combinado antes da visita importante chegar. Nove e meia em ponto chega Mrs. Peggy Guggenheim. Era uma mulher reboludinha e baixa, muito bem vestida, com o cabelo loiro vivo, cheia de caracóis. Só me lembro que o fato era de cor esverdeada e que tinha uns brincos de meias-pérolas muito elegantes. Vinha muito bem pintada e tinha pestanas postiças, coisa que eu nunca vira e parece que estava em moda naquela altura – em 1962. Era uma senhora extremamente simpática e inteligente. Tomou um Porto e conversou muito com o Carl. Gabou a casa e disse que estava muito bem arranjada e disse uma frase que eu nunca me esqueço; «I like very much your paintings!». Estávamos em pulgas e assim ficamos mais um bocado na conversa. Peggy era muito comunicativa e gostei imenso dela. Talvez por eu ser tão nova pensei que ela era uma pessoa de certa idade. Vim a saber mais tarde que afinal tinha à roda de cinquenta e cinco anos. Já era tarde e Betty disse que era melhor ir andando mas eu convenci-a a ficar mais um bocadinho. Conversamos mais um pouco e, de repente, ela disse: «Já agora vou ver o que o Carl pôs nas paredes e no chão.». Foi vendo com um olhar entendido e perspicaz. Depois de ver os quadros pequenos que estavam escondidos atrás de uma grande tela, disse: «Este quadro é óptimo, vou leválo!». Pegou no quadro e mostrou-nos e, para nosso espanto, não era nenhum quadro do Carl, era meu e não estava assinado. Os meus amigos foram tão generosos e abraçaram-me, deram-me os parabéns e ficou combinado que ia no dia seguinte ao Hotel Excelsior na Via Veneto pelas seis horas entregar o quadro. Nessa noite, na Piazza Navona em casa dos Polter, ninguém dormiu. Ouviu-se ópera, bebericou-se, dissemos poesia de Mario Ungaretti, que amávamos. Eram nove da manhã quando tomamos café. E foi assim que, por engano, eu vendi não sei por que preço, um quadro a Peggy Gunggenheim. Naquela altura, não era hábito partilhar as despesas – Giovanni convidava-me para jantar quando tinha dinheiro. Tudo em Roma era caro e luxuoso, mas foi lá que eu aprendi a cultivar a minha humildade, talvez por ver em alguns meios sociais enormes fortunas a serem desbaratadas. De vez em quando ia ao Vaticano. Havia audiências em S. Pedro ao meio-dia e às três da tarde. Eu ia algumas vezes, pois encontrava o meu amigo Severino e sabia que ele me arranjava uma entrada. Quando lá ia vestia-me de preto, já não era obrigatória a mantilha. João XXIII retirou muitas vaidades da Igreja – era um homem simples e sensato. Sabia que a sua missão era de Amor. Fugia muitas vezes do Vaticano e foi encontrado frequentemente nas prisões e nos hospitais, vestido de batina preta. Ele queria estar perto dos que sofrem. Um dia em que cheguei ao Vaticano dirigi-me para a colunata, como era hábito, com entrada pelo lado direito; estava muita gente. Furei por entre as pessoas e dei de caras com o actor Jack Palance, que me pareceu muito nervoso e estava acompanhado de outro homem também americano. Não se conseguia entender com o italiano que estava a dizer-lhe que não poderia entrar. Pareceu-me aflito porque não falava italiano e o italiano não falava inglês. Dirigi-me a ele e perguntei-lhe qual era o problema; entretanto,
apresentou-me o amigo, Charles Fawcett, que era relações públicas de vários actores. Afinal, estavam à espera de uma senhora que lhes deveria trazer os bilhetes de entrada no Vaticano e que não havia meio de chegar. Falei então com o italiano e expliquei-lhe o assunto, mas ele foi intransigente. Sem os papéis não podiam entrar na audiência das três horas na Basílica. Entretanto disse-lhes para não saírem daquele lugar que eu iria ver se encontrava ajuda. Depois de muitos encontrões, ouço: «Contessina Ana!» - era o Severino, que estava muito bem fardado com uma espécie de casaca de veludo riço encarnada escura com guarnições de flores de liz em mais claro. Contei-lhe o que se passava e ele disseme - «Vá lá buscar os seus amigos de Holywood!». Fui então buscá-los, fiz-lhes sinais para virem para a porta e, assim que chegaram, o Severino praticamente nos empurrou, no meio dos embaixadores e das suas famílias. Ficámos na primeira fila no centro da bancada, ao meio da Basílica de S. Pedro. Os meus dois recentes conhecidos sentaram-se um de cada lado, eram católicos e estavam emocionados. De repente, o Severino trouxe-me um lenço branco, alvo, e pôs-me em cima dos meus joelhos, pois a saia ficara curta quando me sentei. Achei o caso inesquecível. De repente, tudo se calou. Do lado direito, vinha o Santo Padre com quatro homens a pegar-lhe no palanque e um deles era o Severino. Levaram-no ao centro da Basílica, debaixo das quatro colunas barrocas monumentais. O Papa disse umas palavras simples, que nos entraram no coração. Abençoou-nos. Toda a cerimónia levou um quarto de hora mas valeu a pena, foi deslumbrante. Havia gente atrás de mim que chorava de emoção. A presença de João XXIII era carismática. Os meus novos amigos ficaram gratos em admiração por lhes ter resolvido o problema. A partir daí, foi um mês de diversão. Levaram-me aos estúdios de Cinecitá, onde se estava a filmar Cleópatra, a grande produção que estava a ser feita em Itália com Elizabeth Taylor e Richard Burton. Foi neste filme que começou o amor louco entre estes dois monstros sagrados do cinema. Na visita a Cinecitá apresentaram-me o Richard Burton. Rosnou qualquer coisa que não percebi pois estava completamente bêbado. Foi uma desilusão porque o que eu gostava nesse grande actor era precisamente a voz, que quase não ouvi! O meu Pai tinha chegado a Roma nesse momento e desafiei-o para aceitar alguns convites para recepções e jantares com actores e actrizes de cinema. Estivemos na conversa com o David Niven, com a Elizabeth Taylor, com Sophia Loren e Carlo Ponti. Sophia era a mulher mais bonita que eu vira na minha vida. O Pai achou que a cara de Elizabeth Taylor era mais bonita mas não era completa porque tinha um corpo desastroso e era muito baixinha. Tivemos um jantar na Osteria del Orso, em Trastevere, com muita gente e fiquei sentada entre Jack Palance e Brigitte Bardot. Brigitte era encantadora, era esperta, não era só bonita, era sobretudo um fenómeno de fotogenia. Fiquei verdadeiramente amiga de Jack e Charlie. Quando voltei para Lisboa, tempos depois, Jack e a mulher vieram visitar-me. Eu tinha começado a namorar o Carlos e estávamos sempre juntos. Oferecemos-lhe um jantar na Junqueira. O Pai e o Charlie Fawcet trocaram correspondência durante anos e chegou a visitá-lo nos Estados Unidos. Passados uns anos, soube que tinha morrido e tive muita saudade. Ele era um grande excêntrico, detestava hotéis e andava pelo Mundo inteiro numa caravana enorme. Foi um óptimo encontro com amigos através de um destino divino!
10 O Museu de Loures na Quinta do Conventinho está instalado numa casa linda do século dezassete, no alto de um montinho. Numa exposição, esse Museu comprou-me um quadro chamado «Há fogo no barco». A Câmara Municipal de Loures foi sempre de uma grande gentileza comigo. Desde que lá vivo que tenho recebido a estima de todos os Presidentes da Câmara e também de Vereadores. Uma vez, vieram-me chamar cá a casa dizendo-me: «-Vá depressa ao fundo da rua que está uma banda a tocar!». Eu sempre adorei bandas, enfiei um casaco e fui depressa ao fundo da rua; estava uma grande multidão e, para surpresa minha, vejo o então Presidente da Câmara ao lado do meu marido Carlos, do meu Pai e da minha filha Ana Carlos, que teria então seis anos. Começo a ver toda a gente a bater palmas. Depois das palmas, o Presidente pediu silêncio e começou a falar de mim e disse: «-É uma honra para este concelho ter o nome da artista Ana Maria Botelho nesta Rua!». Pegaram na Ana Carlos ao colo e a minha filha descerrou uma lápide com o meu nome. Eu fiquei cheia de vontade de chorar, senti-me absolutamente «póstuma».... Dei um abraço aos presentes e fui para casa com um ramo de flores com a banda a marcar compasso atrás de mim. Foi uma enorme emoção. Uns anos depois, a Câmara reuniu e, por unanimidade, foi-me dada a Medalha de Ouro do Concelho. Gosto muito de morar aqui e penso que já não me habituaria a morar numa grande cidade, a não ser Paris, onde vou com frequência ver exposições e passar temporadas.
11 São Miguel e o Paço de Nossa Senhora da Vida são o meu ninho; ano em que lá não vou entristeço. Tenho sempre saudades das pastagens verdes, daquele mar azulão, das «Lapas à molho Afonso» e do «Polvo com vinho de cheiro»; Faz-me falta o cheiro adocicado da brisa do mar resultado de uma mistura especial com o aroma das conteiras e que me enche o peito de uma plenitude contente quase infantil. Nós íamos para a Ilha de barco pois o Pai era proprietário dos carregadores açoreanos; viajávamos para S. Miguel e também para Southampton e Boston. Também tenho saudades do cheiro da madeira dos camarotes daquelas inúmeras viagens da minha infância e do barulho rouco mas intenso e ritmado da casa das máquinas, que me ajudava a adormecer. Na Povoação, ao cimo da Lomba do Loução e passando pela rua Visconde do Botelho, espera-nos o Monte Simplício. É uma propriedade linda que foi herdada do meu Avô paterno pelo meu irmão José, que teve o talento de restaurar a casa de forma a ficar com o mesmo ambiente que tinha no tempo do nosso Avô Gustavo, assim como tem o talento de juntar e aproximar a Família tal qual o meu Pai ambicionava. . Vou para lá muitas vezes e regalo-me a ouvir o canto dos melros negros de bico amarelo nos pastos logo de manhã. Lembro-me de, quando muito pequena, ir visitar o Monte e vê-lo coberto de hidranjas brancas e flores das cameleiras. Ainda lá estão. Dormíamos em colchões de palha e montávamos a cavalo ajudados pelos empregados, com albardas de cores a substituírem as selas francesas. Um Verão o meu Pai convidou os parentes do Brasil para nos visitarem. Vieram num paquete especialmente fretado e estiveram lá em casa durante uns dias. Uma das convidadas era a minha prima Maria Candinha. O meu irmão José apaixonou-se por ela. Foi recíproco e casaram uns anos depois. Todos os anos lá passam o Verão com uma montanha de parentes e amigos de onde dá gosto fazer parte.
12 O primo Augusto Ataíde e eu conhecemo-nos desde muito novos. Ele ia para o liceu em Lisboa e a sua Mãe Graça, vinha ao cais despedir-se. Era escritora de livros policiais, extremamente agradável e inteligente, uma grande Senhora. O Augusto é um homem de muito valor. Reconstruiu a casa iniciada por seu pai nos Açores, uma obra difícil. Tratou do Jardim José do Canto como uma jóia preciosa onde existem muitas espécies raras. O conjunto de casas e jardins são uma beleza. Tem uma colecção de pintura dividida entre Lisboa e São Miguel muitíssimo boa, onde tem um quadro meu, «Lagoa das Furnas», o que é uma honra para mim. O Augusto e a Margarida Ataíde têm sido ao longo da vida, grandes amigos.
Quem também adorava os Açores era a minha prima Margarida de Jácome Correia (Marquesa de Jácome Correia), que me faz tanta falta. Foi uma grande Amiga que esteve sempre do meu lado quando precisei e me protegeu. Foi uma grande coleccionadora da minha pintura. É impossível não falar da Margarida quando se fala da ilha que ela tanta amava.. Era uma mulher linda, inteligentíssima, que tinha muito mundo e um coração de oiro. A ilha de São Miguel é uma constante na minha vida, com o mar sempre presente e aquelas nuvens misteriosas negras e brancas que se reflectem nos pastos e modificam os verdes.
13 Pintei o retrato de Carlos Borges de Castro (Visconde de Borges de Castro) muito antes de ter casado com ele – o Carlos foi um companheiro e marido excepcional. Era um grande pai para os dois filhos que tivemos. Adorava arte e foi ele que me impulsionou na minha carreira. Ele é que negociava os lugares onde devia expor, organizava o mailing e tudo o mais; eu só gostava de pintar. Deume bons conselhos e ensinou-me a guardar sempre dois ou três quadros de cada fase para que eu mais tarde não perdesse a minha identidade. O Carlos era também formado em História de Arte, era muito culto e comunicador. Era um Humanista, um homem alegre e encantador. Encontrei muitos anos a seguir à morte do Carlos, o Professor Joaquim Veríssimo Serrão, um dos maiores historiadores portugueses, no lançamento de um livro no Palácio da Ajuda. Falou-me com admiração do Carlos com lágrimas nos olhos e ficámos os dois muito emocionados. Realmente, quem conhecia bem o Carlos, admirava-o.
14 A minha filha Ana Carlos desde pequena que era muito especial; gostava de cozinhar e de ajudar na casa, era alegre e boa aluna. A Ana Carlos só me deu prazer, nunca me deu uma preocupação. Quando tinha doze anos, pintei-lhe um retrato com a sua boneca querida, a Mafalda. Pouco tempo depois, fomos para Paris onde eu ia muitas vezes. Paris para mim é a Pátria do conhecimento e lá vivi muitos anos quando estive a estudar. Ao chegar a casa com o meu filho Carlos Maria, que era ainda bebé, soube que haveria em breve uma grande exposição de retratos no Petit Palais. Telefonei então ao Carlos e pedi-lhe que trouxesse o retrato da minha filha dentro do carro. Assim foi. Dentro do prazo, mandei o quadro para o Petit Palais. Fiquei espantada quando, no fim da exposição, fiquei a saber que tinha recebido uma medalha de ouro. Muitas coisas na minha vida têm sido conseguidas com muito trabalho, mas desta vez tive sorte. Também pintei o retrato do meu neto Afonso, devia ter, na época, dois anos.
15 Entretanto, eu já tinha a «Galeria Centro - arte de ontem e de hoje». Estava em obras, era uma galeria dividida em duas partes, antiguidades e artes plásticas. Para mim e para o Carlos era o ideal pois começaríamos a expor artistas a quem não levaríamos comissões e compensaríamos com o que se realizava nas antiguidades. Através das antiguidades e dos leilões, conhecemos o Alexandre Fernandes e a Dolores. O Alexandre queria abrir uma galeria de arte na parte de trás do antiquário e sala de leilões e convidou-me para estreá-la. Era um espaço bonito com lambris de azulejos do século dezoito com amarelos e várias cores, quatro salas com janelas rasgadas até ao chão com vista para saguões e antigos quintais. Eu aceitei as condições que eram excelentes e todos ajudaram e assim se organizou. Foi nesta exposição que o meu querido amigo que já lá está, Francisco Sousa Tavares, levou à vernissage o António Champalimaud que, por coincidência, adquiriu um quadro a que dei o título «Siderurgia». Era um óleo grande, quase uma abstracção, com explosões de labaredas, inspirado na dita siderurgia que estava em laboração. Foi inesperado. Lembro aqui que o Francisco Sousa Tavares foi, para além de meu advogado, um grande amigo. No fim da exposição, os Fernandes convidaram-me para outra que se inaugurou daí a oito meses. As minhas mostras foram sempre apresentadas com quadros novos e, nesse espaço, procurei inovar – mas só se consegue inovar quando não se faz nada para isso... Depois de muito trabalhar sem grandes resultados, aconteceram as cheias no concelho de Loures, estávamos em 1967. Morreram cerca de quinhentas pessoas numa noite e centenas ficaram sem casas. Foi uma grande tragédia. Na minha casa da Lagariça nada aconteceu, era na parte alta onde ficavam as quintas. No dia seguinte, depois do temporal, estávamos bem mas sem luz,
sem água e sem telefone. Ao fim de dois dias, os nossos parentes e amigos apareceram com velas e garrafões de água entre eles o 29. O 29 esteve sempre presente em momentos importantes da minha vida – sendo meu primo direito e tendo casado com uma irmã da minha Mãe, a minha querida Tia Maria Amélia, era visita constante lá de casa; ganhámos todos os concursos de dança rock e eu mais nova olhava para o 29 com uma admiração pelo seu garbo e graça que faziam dele um ser único e de um talento imensurável - o primeiro casamento que fez foi o meu na Junqueira; testemunhou no Vaticano aquando do pedido da anulação do meu primeiro casamento; e neste dia de tragédia em Loures para onde «fugi» para ser feliz lá me apareceu o 29 com a Tia Constança e a Tia Alda de Castello Branco. Ficámos muito enternecidos. A nossa filha dormia com os anjos, inocente na sua caminha completamente alheia ao que se passava. Eu estava quase sem material de pintura e não podia sair de casa pois as estradas estavam extremamente perigosas. Como sempre, depois da tempestade, a bonança. Seguiram-se dias de céu azul e tempo ameno! Tinham sobrado umas latas de tinta acrílicas escuras e algumas cartolinas. O terraço estava coberto de terras e areias de várias cores que tinham ido ali parar trazidas pelo temporal. No terraço, estendi as cartolinas, pus as tintas e os pincéis no chão e comecei a desenhar com muita força, quase com violência umas formas. Também colei nas cartolinas pedaços de terra encarnada e areias claras. Às tantas, saí e dei sem querer um pontapé numa lata que se entornou e fui para dentro de casa. Tinha começado a trabalhar pelas onze da manhã e voltei pelo princípio da tarde. Levantei a cartolina contra a luz do céu e verifiquei que estava translúcida. Achei que era um caminho bom para pesquisar e mandei fazer um cavalete inclinado para trás com um vidro na parte da frente e, por dentro, com luzes. Assim eu orientei os meus translúcidos que, a partir daí, nada tiveram de acidental. A exposição correu muito bem e os translúcidos foram uma novidade. Críticos afirmaram que o meu caminho se virara para a cinética – mas tal não aconteceu. Recomecei a fazer os translúcidos mas meses depois verifiquei que pintá-los tinha um aspecto decorativo que me irritava. Não me dava luta. Voltei para os meus óleos. As minhas guerras plásticas existiram sempre, com sinceridade e desejo de acertar.
16 O meu Pai era extremamente amigo do Artur Cupertino de Miranda. Eu, embora muito nova, gostava imenso de conversar com ele. Era um homem de um valor excepcional e muito culto. Fundou várias empresas incluindo o Banco Português do Atlântico. Um dia telefonou-me a perguntar se eu poderia passar pelo Banco pois precisava de conversar comigo e a sua proposta interessou-me vivamente. Disse-me - «Já cheguei a uma altura da minha vida em que gostaria de ter o gosto e o prazer de fazer uma Fundação de arte e também casas de arte na Suiça e noutros países estrangeiros». Pediu-me ajuda para realizar essa ideia mas eu teria que viajar muito. Eu estava casada e tinha dois filhos e era-me impossível dedicar-me como gostaria a esse projecto. Ele ficou tristonho mas eu disse-lhe que o ajudava no que pudesse. Entretanto, inaugurei a Galeria Centro. Ele não ia às inaugurações. Telefonava, marcava uma hora e assim foi. Foi ter comigo e com o Carlos, conversámos de tudo um pouco e foi imediatamente sem qualquer hesitação escolher o quadro vermelho que estava do lado direito da Galeria, «A Família». «Este vai para a minha Fundação de Famalicão!». Tive um profundo desgosto quando ele morreu, eu admirava-o e gostava muito dele.
17 Há vários autores que me acompanham pela vida. Eça é um deles! Já li e reli vezes sem conta as suas obras, sempre actuais. Vitorino Nemésio foi um grande Amigo e é um espantoso romancista. Proust é outro autor que também marcou a minha vida… Mas aqui apetece-me recordar agora o Domingos Monteiro. Era um excelente contista, um grande conversador e tinhas uns olhos de água, muito azuis, que impressionavam. Tive o gosto de o retratar e de sermos grandes Amigos.
18 Quando o meu Pai morreu, o desgosto foi tão grande que, durante um ano eu não consegui pintar. Estava a tentar sair da fase encarnada que tinha durado doze anos. Um dia, no Algarve, fui para o atelier e saiu-me a «Palhaça de Esperanças», pintura em que, felizmente, perdi todo o preconceito da cor e misturei-as todas. Eu era muito amiga dos palhaços «Batatinha» (António Branco) e do «Soneca» (José Cantarinho) e desde pequena que gostava muito de palhaços, sobretudo do Palhaço Pobre ou Trapalhão. Foi uma grande mudança. «Pintor que não muda não é pintor», disse-me um dia Picasso. A primeira vez que encontrei Picasso foi em Paris. O meu Pai foi-me ver, ficámos juntos no Hotel Scrib e quase todos os dias íamos ao teatro. Na última noite depois do teatro fomos cear ao «Maxim´s», onde tínhamos um prato da nossa tradição, carnes frias com batata palha. Divertiamo-nos muito os dois. Devia ser cerca da uma hora da manhã quando entraram no «Maxim´s», Picasso com seis homens. Riam e falavam alto. Vi que estavam bem dispostos. Achei que Picasso era mais baixo do que eu imaginava e tinha o olhar mais negro e expressivo que eu jamais vira. Eu tinha uma enorme admiração por Picasso. Fiquei de repente como se não coubesse na cadeira. Já tínhamos comido e o Pai pediu a conta, levantámo-nos e eu só pensava como é que iria falar com o pintor! O Pai dirigiu-se para a saída e tínhamos que passar em frente à sua mesa. Entretanto, no grupo, estava um estrangeiro que conhecia. Cumprimentaramse e o Pai baixou a cabeça a Picasso e aos outros. Eu aproveitei e fui direita a Picasso e, sem saber como, estava sentada ao lado dele, o meu Pai sentou-se do outro lado da mesa e ficamos em conversa até às tantas! Logo depois de nos sentarmos chegaram dois jornalistas com máquina fotográfica e um deles perguntou a Picasso «Porque é que pinta?», ao que ele, zangado, respondeu: «Je peins comme je pisse!» e mandou-os embora. E fiquei nas
nuvens. Nos anos seguintes ainda vi Picasso duas vezes. Há muitos anos fui a Madrid de propósito para ver o último espectáculo do palhaço Charles Rivera, que tinha sido íntimo de Picasso, que adorava toda a filosofia circense e passava muitos serões nas suas casas. Talvez tudo isto me tenha impelido a pintar palhaços com simbologia e como metáfora.
19 Fiz uma grande exposição de augustos na Galeria do Grémio Literário. Tive uma ideia e, para a trabalhar e recriar, pedi ao meu primo 29 (Álvaro Pimenta da Gama) que me fizesse um cenário do meu atelier na ante-câmara da galeria. O 29 inventou um palhaço de trapos do tamanho de uma pessoa e pendurou-o num espaldar. Construiu em madeira as bancadas e os vidros das janelas do moinho onde eu pintava, espaço espectacular que serviu de sala de partos a alguns dos meus melhores quadros e que me foi emprestado pelo querido Manuel Leiria Fernandes que ao longo do tempo adquiriu alguns quadros meus. Tenho na minha vida um moinho, mais propriamente uma estação elevatória de água com uma vista de 360 graus sobre Loures. Aí era visitada pelas pombas e ouvia Tchaikovsky, e muito pouca gente era convidada a entrar pois o meu atelier é o meu santuário. Das poucas pessoas que aí entraram e que acabaram por o tornar ainda mais especial foram – o meu Pai, Marido e filhos, a minha irmã Guidinha e o Óscar Montepegado e o meu irmão Nuno, o Domingos Monteiro, o Francisco de Sousa Tavares, a Pincesa Simpatiziri da Tailândia, o Príncipe e Conde Lys Koslovsky, primo do Santo Padre João Paulo II, a Natércia Freire e a Margarida Jácome Correia. O tecto com vigas de madeira em forma de leque foi recriado então no Grémio Literário. O 29 foi buscar os meus objectos preferidos como um trombone em bronze e uma caveira de burro. A imitação do meu atelier ficou perfeita e mirabolante. Por cima da figura do palhaço de trapos era dirigido um foco azul e redondo como aqueles que se vêm no circo. Foi a minha primeira instalação. Sou, como toda a gente sabe, uma enamorada do mundo circense – não só dos palhaços como dos apresentadores, dos cavalos amestrados, das raparigas lindas, com bonitos corpos, vestidos de lantejoulas e flores na cabeça, os fabulosos voadores, os anões
mascarados de cowboys – é todo um mundo fascinante. Dos mais velhos aos mais novos, representam uma sociedade nobre e fantástica com princípios verdadeiramente éticos e belos. Esta exposição foi inaugurada pelo Presidente da República, General António Ramalho Eanes que foi com a Mulher e os filhos. A Manuela Ramalho Eanes é uma mulher extremamente inteligente e afectuosa que fundou uma associação em que trabalha há muitos anos, a «Associação de Apoio à Criança», que bem demonstra a sua vocação em ajudar os mais carenciados. Ficámos muito amigos e eles sabem que podem contar comigo para sempre, pela muita admiração e amizade, que é sagrada. A vida é feita de trocas afectivas. Sem amigos sinceros e sem a amizade eu nunca conseguiria viver em equilíbrio.
colocar um quadro
20 O quadro representa um tocador de violino mas, na realidade, foi-me dada a ideia quando, numa viagem minha a Londres, vi e ouvi um espantoso violinista chamado Itzhak Perlman que, no fim do concerto, foi levado em ombros porque era paralítico e estava numa cadeira de rodas. Eu fiquei muito impressionada porque achei transcendente tocar com tanta harmonia e força sem se poder levantar. Ofereci este quadro à minha filha Ana Carlos. Está no escritório dela, em minha casa. Quando passo por ele, lembro-me da tia Olga Robillan Cadaval, Marquesa de Cadaval. Muitas vezes fui convidada para as festas em Colares onde conheci grandes pianistas como Artur Rubinstein e gente da cultura portuguesa e estrangeira. Rosário e António eram um par de bailarinos espanhóis que lá dançaram uma vez e de quem gostei muito. Mais tarde, fomos vêlos em Paris e Madrid. A primeira vez que lá fui foi com o Pai a um concerto, devia ter doze ou treze anos. A Olga Cadaval recebia intelectuais de esquerda e nunca se preocupou com a situação de direita que se vivia em Portugal. É uma Mulher a quem rendo as minhas homenagens pois, no seu tempo, deu um grande impulso às artes em Portugal. Entre os vários italianos que os Pais receberam na Junqueira esteve o Cardeal Ottaviani, da Congregação do Santo Ofício, que foi «papabili» e era um político importante no Vaticano. Este tipo de jantares formais nunca me divertiram mas o que é verdade é que os pais levavam em gosto que eu estivesse presente.
21 Este quadro figurou na exposição que fiz no Grémio Literário. Esteve presente na inauguração o Rei Humberto de Itália. O Rei Humberto viveu uma parte da sua vida em Cascais na Vila Itália, pois entre o Rei e o meu avô Belas existia uma grande ternura e amizade. O avô tinha sido grande amigo do pai de Humberto, o Rei Vitor Emanuel. Assim foi fácil as nossas famílias conviverem. A Princesa Maria Pia, sua filha, era uma grande amiga da minha irmã, também chamada Maria Pia. Era um amor, simpática e bonita. Fui ao casamento dela e ela estava linda. Ainda há poucos anos a encontrei no aeroporto de Orly e, ao fim de tanto tempo, conheceu-me e abraçámo-nos como se fosse na véspera. O Rei Humberto foi várias vezes à minha casa da Lagariça, onde era recebido por mim e meu marido com o carinho que tínhamos por ele. Gostava dos nossos amigos e, a uma certa altura, conheceu a nossa filha Ana Carlos, que tinha cinco anos e estava muito excitada por conhecer um Rei. Só teve pena que ele não trouxesse coroa. Passados uns anos, estávamos na piscina do Hotel Estoril Sol, onde passávamos por vezes férias e apareceu o Rei Humberto. Cumprimentou-nos e deu um beijinho à Ana Carlos. Não a via portanto há anos. Foi à beira da piscina dar-lhe a mão para sair da água e disse-lhe: «Ana Carlos, como estás bonita e crescida!». A memória destas pessoas pertencentes a Casas Reais faz parte da educação que lhes dão. Fazem questão de se lembrar de datas, de nomes e são pessoas extremamente considerantes. O Rei Humberto foi a várias inaugurações de exposições minhas, era um encanto comigo e quando penso nele, é com muita saudade. Aqui há uns bons anos a receber gentilezas do Manel Ferreira Enes, ofereci-lhe um trabalho. Não éramos apenas bons amigos mas também eu era devedora ao Manel de imensas amabilidades; basta dizer que quando faço anos, a primeira pessoa que me
telefona a dar os parabéns é ele. Passado um tempo, o Manel telefona-me e ao Carlos para irmos jantar à casa dele da Lapa pois queria inaugurar a presença do meu quadro. Calhou ser um dia dos mais quentes dos últimos trinta anos. Ao jantar estavam presentes o Rei Umberto de Itália e os Embaixadores do Brasil e depois do jantar o Manel fez um pequeno discurso a explicar que aquela reunião tinha como finalidade inaugurar o meu (nosso) quadro. Bateram muitas palmas e deram-me abraços. O quadro ficou colocado na sala de jantar e logo depois para a sala onde tomámos café; o Manel pôs a casa toda em corrente de ar com as janelas abertas de um lado e de outro mas o calor não desaparecia, estávamos todos muito incomodados. O Rei Umberto vestia um fato azul escuro e uma camisa branca sem gravata e depois dos homens se porem em mangas de camisa eu insisti para que ele tirasse o casaco mas Sua Magestade serenamente disse-me que não era necessário, que estava muito bem. A bufar de calor, a beber água gelada e a conversar, nós acabámos por sair de casa do Manel pelas três horas da manhã. O Rei Umberto, sorridente, encantador, nunca tirou o casaco e toda a noite suportou a intempérie do tempo cheio de categoria. Este episódio mais me aproximou do meu querido Manel.
22 Há uns trinta e cinco anos conheci o Manuel Luís Goucha num circo em que ele fazia de mestre de cerimónias. Entretanto, fui algumas vezes ao seu programa de televisão no Porto e tive por ele um impacto de ternura. O Manuel Luís é um extraordinário profissional, é elegantíssimo e tem muito sentido de humor. Tenho tido várias experiências em televisão. Uma das que mais gostei foi um «Frente a frente» com o José Mensurado em que, durante cerca de uma hora ele foi desfiando a minha vida e a minha carreira com a maior amizade e sabedoria. Outra em que o entrevistador foi hábil e muito gostei foi com o Gomes Ferreira, que está nesta fotografia.
23 O quadro «Domingo» foi adquirido pelo Zé Serpa Valentim no Museu Malhoa nas Caldas da Rainha. Os primos Beatriz e Zé são pessoas fabulosas que vivem no meio de bons quadros, alguns meus. Eu adoro este casal; são uma espécie de meus irmãos, muito diferentes um do outro. A Beatriz é uma mulher especial, é doce, sensata, organizada e distraída; o Zé é extrovertido e enche uma sala a contar as suas histórias. Quando estou com eles, sinto-me no Céu. Que saudade eu tenho do Zé, que entretanto partiu...! Uma destas fotografias comemorou o dia em que saí do hospital, onde fui atendida nas urgências de Santa Maria pelo Dr. António Pais de Lacerda, que é o exemplo do que deve ser um médico. Todas as minhas irmãs me foram visitar e também a prima Beatriz e a Madalena que é, para mim, como uma irmã.
24 Os meus pais fizeram um casamento de amor. A minha mãe foi a companheira exemplar do marido. Era linda, vestia-se divinamente e tinha muito mundo. Falava várias línguas e tinha tanto charme que metia toda a gente no coração com sinceridade. Era a melhor anfitriã e dona de casa que alguma vez vi. No Paço de Nossa Senhora da Vida (S. Miguel, Açores) mostrou bem o seu bom gosto. Era uma arquitecta nata e uma óptima decoradora – a única pessoa de quem aceitava opiniões era de seu pai, o Avô Bellas. A Mãe não fazia nada directamente em casa mas sabia dar ordens ao seu pessoal com gentileza e autoridade. Lembro-me que quando entrava uma empregada de fora nova, a mãe sentava-a na casa de jantar e simulava um serviço de mesa. Elas nunca mais se esqueciam. Aliás, chamavam-se criadas e há gente que toma a palavra «criada» pejorativamente mas, na realidade, «criada» queria dizer «criada em casa de», como se fosse família. Organizar as casas era a especialidade da minha Mãe. Quando se davam grandes jantares ela recebia, na véspera, de manhã, no seu quarto, os criados, cozinheiras, etc. Por experiência de família e por intuição, era capaz de sentar na mesma mesa correctamente e com protocolo uma mistura de pessoas chamadas importantes. Eu vi jantares em que estavam presentes um rei, um príncipe, um presidente da república, um primeiro ministro estrangeiro e um cardeal... era realmente extraordinária! Em S. Miguel, a Mãe adoptou o jardim na parte de trás da casa, onde tomava chá, a que nós chamávamos o «jardim da Mãe». Era aí que todos tomávamos chá depois da sesta. Era acompanhado com torradas de massa sovada e scones à inglesa com manteiga e doce de morango ou laranja – ou mesmo com a compota regional, «doce de capucho». Parece que estou a ver a família muito unida, os meus quatro irmãos, muito amigos e diferentes: a Maria Pia, a mais velha; logo a seguir, eu; depois o Nuno, cheio de graça e sentido de humor; e depois, com maior diferença de idades vêm o José Honorato e a
Guidinha, que é a mais nova. Era tão bom! A Mãe aparecia na sombra dos arcos, perto do jardim, com uns roupões lindos, que comprava num costureiro em Nova York. A qualidade dos tecidos, os imprimés e os cortes eram tão bonitos que pareciam vestidos de noite e a mãe parecia uma aparição. O seu perfume preferido era Arpège. São lembranças e imagens que nunca mais poderei esquecer.
25 Quando eu era criança, com sete ou oito anos, já fazia os retratos das minhas colegas de carteira. O professor Castilho, que nos ensinava desenho, ficava espantado com a minha precocidade e lembro-me que o que mais me admirava era eu saber desenhar narizes em todas as posições sem nunca ter aprendido. No Ramalhão, a minha melhor amiga e colega de carteira era a Teresinha Belmonte Vilar. Ainda hoje, quando nos encontramos, rimo-nos muito ao lembrarmo-nos das nossas traquinices. Tínhamos uma nurse inglesa desde bebés. Chamava-se Daisy Laurence e foi uma espantosa segunda mãe. Esteve na nossa casa até ser muito velhinha e veio a morrer na Junqueira. Mas naquela altura era moda as meninas de boas famílias irem para colégios internos de freiras. Eu e a Maria Pia fomos para o Ramalhão com nove e dez anos. As freiras eram dominicanas. Eu embirrava com elas só porque representavam autoridade. Na realidade, a maioria das freiras que conheci comunicam felicidade e paz. Eu divertia-me imenso no colégio – havia festas constantemente e eu ficava encarregada dos cenários e cantava a vozes com a Maria Pia cantigas cheias de sucesso. A minha irmã fazia a primeira voz e tinha força e eu acompanhava como podia. Para os tempos de hoje, o colégio era terrivelmente duro. Ainda se estava na época em que algumas freiras nos faziam tomar duche de combinação. Os dormitórios eram imensos, as camas estavam divididas por cortinados verdes claros – havia muita pudicícia e hipocrisia. Cada dormitório tinha uma lâmpada encarnada no tecto. Tínhamos códigos para nos avisarmos umas às outras pois havia sempre uma freira que fazia o turno dos dormitórios a quem nós chamávamos «pinguim». Os retratos que eu fazia deram-me fama em casa. O meu Pai e o meu Avô ficaram fascinados e pensaram: «Esta pequena precisa
de lições». O Avô Bellas era amigo do João Reis e eu comecei a receber lições no seu atelier em Campo de Ourique e também recebi bastantes lições com o Eduardo Malta, sobretudo nas férias e lá fui aprendendo alguma coisa. Estou muito grata a estes dois pintores que me ensinaram a técnica das cores e do desenho, sobretudo a do retrato. Comecei a ter facilidades de apanhar a semelhança física e de retratar a alma de cada pessoa. Pintei o retrato do meu filho Carlos Maria quando ele tinha perto de catorze anos. Foi quase feito de memória pois era muito difícil de pô-lo a posar porque era muito irrequieto. O Carlos Maria é dinâmico e positivo e repete uma frase que me faz bem à alma - «Tudo se há-de arranjar!».
26 Em 1971 tive uma grande alegria, pouco antes da inauguração da minha exposição dos encarnados na minha Galeria, a Centro arte de ontem e de hoje. Estava no mês de Julho e os dias já eram compridos e, à tarde, aqui no campo, eram frescos. A Isabel Simões, da Quinta das Terras, minha vizinha, telefonou-me para me dizer que estava na sua casa a Maria Helena Vieira da Silva e o seu marido, Arpaad Szénes. A Vieira era sua prima direita e, sempre que vinha a Portugal, ficava em sua casa. Em tempos, os donos da Quinta das Terras tinham-me adquirido um pequeno quadro que representava uma confusão de cavalos pintados a prata e azul com dropings. Colocaram este quadro no quarto da Maria Helena, por cima de uma mesa de encostar, onde a pintora tomava o pequeno-almoço. E foi através deste quadro que despertou a curiosidade na Vieira em me conhecer. Foi um grande Encontro, a Isabel passou-me o telefone e eu fiquei encantada com a conversa e convidei a família para jantar no dia seguinte. Quando lhe perguntei qual o prato preferido, ela disse-me: «pastéis de bacalhau com arroz de tomate e vinho tinto!». No dia seguinte foi festa. Era um casal extraordinário! O Arpaad era extremamente simpático e eternamente apaixonado pela mulher. Falava mal português mas falava muito bem francês. Era muito louro e branco, quase albino, os olhos eram avermelhados e a pele rosada e era um encanto de pessoa e muito doce. «Bicho» era a maneira como carinhosamente ele tratava a sua mulher. Estou a vê-lo sentado aqui em casa com um copo de whisky na mão a gabar o Carlos e eu, o nosso amor que era visível, e a «menina» Ana Carlos que teria uns cinco anos. Maria Helena continuou no vinho tinto e também bebeu ginginha. Era uma mulher alta, com boa figura, com um rosto anguloso, especial e tinha uns olhos imensos, pretos, e uma maneira de se mexer única – tinha um «dengue», fazia gestos com as mãos, expressivas, vestia-se com saias compridas e xailes parecidos com a sua pintura. Tinha alguma coisa de cigana. Disse-me que eu era muito bonita e
gostou muito do Carlos e da Ana Carlos. Às tantas, já era tarde e a Maria Helena pediu papel, tirou um saco de pano de dentro da mala e, de lá, uma esferográfica preta, sombra de maquilhagem e lápis preto dos olhos. Começou a desenhar, a pôr cinzento com os dedos e assim encheu duas folhas e assinou. O serão foi inesquecível, de tudo se falou – comunicamos muito bem e, nessa noite do mês de Julho, fundou-se entre nós quatro uma profunda amizade. Entretanto, tornámo-nos a ver em Paris várias vezes e também em Portugal. Houve qualquer coisa de mágico neste encontro, ficou no ar uma atmosfera de Felicidade depois de eles saírem, nós só adormecemos já era dia, ficamos na conversa que era um estado que nos fazia sentir radiantes pois o Carlos, além do amor, também me ensinava coisas do Mundo...
27 O Pintor e Amigo Edmundo Cruz convidou-me a expor na sua galeria em Colares. Foi uma exposição bonita num ambiente acolhedor – o Edmundo e a Mulher são queridos amigos, que conheço do tempo em que o Padre Moreira das Neves ainda era capelão da Junqueira. Tem uma pintura muito bela, de raiz clássica. As suas aguarelas são de uma grande beleza. «Retrato de Família» é um óleo de uma mulher de capelina inspirada na minha Mãe, em mim própria e na minha filha Ana Carlos. Este foi o quadro usado no convite desta exposição.
28 Eu sempre tive a paixão das viagens. Durante anos andei de um lado para outro como uma nómada e, muitas vezes, com o meu querido Pai. Ainda hoje sou ambulante por temperamento, vou para casa de amigos, vou para casa da Ana Carlos ou vou para o Brasil, para casa da minha filha Piedade, do meu irmão José ou da minha prima Maria Amélia. Gosto e adapto-me a todos os lugares mas gosto especialmente de voltar para o meu atelier, ao bom cheiro a terebintina e a óleo que são uma espécie de vertigem de que eu preciso. A pintura é o meu feitiço. Viajar ou estar com o meu Pai, para mim, era uma sensação de felicidade total. Não era apenas bondoso ou inteligente, tudo nele interessava. Tinha um sentido de humor parecido com o meu e nada mais une duas pessoas do que uma boa gargalhada juntas. Quando estávamos em Lisboa, almoçávamos os dois uma vez por semana. O Pai gostava de comer bem, era um «gourmet». Escolhia sempre restaurantes que nos agradassem. Falávamos de tudo com entusiasmo. Falávamos sobretudo de política internacional que era a sua paixão e das suas memórias que estava a escrever chamadas «Um açoreano no Mundo». A sua terra, a ilha de S. Miguel, era o seu grande amor e, paralelamente a este grande amor, estavam os seus filhos e a sua mulher. Eu fui difícil de nascer, levei vinte e seis horas a vir ao Mundo e nasci de pés. Dizia o meu Pai que já recém nascida vinha decidida a cumprir as minhas vocações e a ser determinada. É difícil enumerar os muitos interesses do meu Pai mas gostava que, quem me ler, saiba o valor que este homem tinha. Fez vários cursos superiores em Gand e Paris e exerceu essencialmente Engenharia Naval. Fez pontes e navios, docas secas e muito mais coisas, como os desembarcadouros do Terreiro do Paço. O seu amor à Família e à Tradição levou-o a preservar e melhorar algumas casas e propriedades e a instituir a Fundação dos Botelhos de Nossa Senhora da Vida. Escreveu muitos livros, sendo alguns de pesquisa genealógica. Apetece-me aqui citar Renan numa frase de que o Pai gostava muito: «Os homens verdadeiros promotores do progresso são os que partem de um profundo respeito pelo passado». Esta realidade já foi bem explicada pelo Professor José Hermano Saraiva – homem comunicativo e brilhante com rasgo de grande actor que se tornou com a televisão das pessoas mais populares em Portugal. Uma vez fomos à Holanda para um congresso de armadores em Haia. Passámos três dias dentro de um hotel imenso. Eu secretariava o meu Pai. Nas enormes mesas onde almoçávamos ou jantávamos, eu sentava-me à
direita e, ao meu lado, sentava-se o armador grego Aristóteles Onassis. Por essa altura, estava muito apaixonado pela Maria Callas. Era extremamente sedutor embora convencionalmente não fosse um homem bonito. Foi considerada a sua opinião. Falava mal inglês mas tinha muito vocabulário, com uma pronúncia manhosa. Era muito expressivo. Tinha grandes conhecimentos da marinha mercante. Tinha muito charme e gostei de o conhecer.
Este foi um dos muitos encontros que a vivência com o Pai me proporcionou. Cada momento com ele em qualquer parte do Mundo era uma doce aventura.
Várias vezes pintei temas históricos. A figura de Camões sempre me seduziu… Os «Lusíadas» é um poema épico a que eu dou a minha especial atenção. A poesia é o paralelo da pintura, tem a mesma força. Embora eu as sinta de forma diferente, são ambas impressões digitais na minha vida.
29 D. Sebastião é um dos mitos Lusos que acho muito misterioso e é por isso que me interessa. O período do Estado Novo foi muito fértil no culto da História-Pátria, das efemérides nacionais e dos grandes heróis. Salazar foi o mentor desta vivência. Uma vez o Professor António Oliveira Salazar convidou-me para tomar chá em S. Bento. Levei a minha filha Piedade, ainda bebé. A Maria de Jesus, sua governanta, veio abrir a porta e encantou-se com a Pequena. Fomos para a esquerda, onde o Professor nos recebeu numa sala pequenina. Voltei a estar com ele mais duas vezes. Na última, falamos sobre o divórcio ao que ele disse que Portugal não estava preparado para tal fenómeno. Uma coisa que não gostei de lhe ouvir foi que as mulheres portuguesas não tinham que saber ler nem escrever porque quantos menos soubessem, melhor. Na época, era total a minha indignação por saber que, às seis da manhã, já muitas rapariguinhas novas trabalhavam por este país fora, carregadas com sacos de batatas à cabeça e não percebia porque não iam elas à escola. Passado um tempo, ao pensar neste diálogo que tivemos, deduzi que muito provavelmente ele deveria estar a provocar-me ou à divertir-se à minha custa! Li «D. Quixote de La Mancha» quando tinha dezoito anos e, mais tarde, tornei a lê-lo várias vezes. Todos nós lutamos muitas vezes contra moinhos de vento. Sancho Pança é uma personagem que vem dar entendimento à figura de D. Quixote, não podem passar um sem o outro e Cervantes, ao escrever este livro, retratou a Espanha de então e de agora. Deu-me imenso gozo pintar este quadro mas não foi o único, pois já pintei várias vezes esta figura. Muitas vezes a literatura inspira-me e inquieta-me. Eu sou muito dependente dos livros. A única altura em que me sinto completamente calma é quando leio. Pintar dói, embora dê prazer; escrever ainda dói mais.
30 Fiz três exposições na Galeria António Clara. A última chameilhe «Entreténs, lágrimas e sonho». Chamei-lhes também estivas porque eram materiais muito pesados e tive que arranjar maneira de tudo se segurar solidamente. A ideia surgiu-me de AlcácerQuibir e de D. Sebastião e também do mundo árabe. Foram muito úteis os poemas de Omar Kaien. Fui então procurar todo o tipo de materiais, rendas e sedas antigas, talhas, bocados de vidro, bocados de lustres, ferragens, conchas gigantes de mares exóticos. Esta exposição foi inaugurada pelo então Presidente da República, Dr. Mário Soares e sua mulher, Maria de Jesus. Deram-me muita alegria com a sua presença; sempre apreciei e gostei deste casal muito extraordinário. A Galeria de António Clara era propriedade do Clube dos Empresários que lhe pertencia. Pelos anos oitenta, o António convidou-me para dirigir a galeria que era no rés-do-chão. A sala era acolhedora. Chegámos a um acordo, o António comprometiase a oferecer as despesas pois não aceitei qualquer remuneração. O espaço passou a chamar-se, por minha vontade, de Galeria António Clara. Eu chegava todos os dias pelas duas e meia. Expus muito bons artistas nesta galeria como, por exemplo, Onik Sahakian, Paul Mathieu, Georges Lemonier, José João Oliveira, Ribeiro Farinha, as jóias de Nuno de Santa Maria e as obras dos fotógrafos Nicolas Lemonier e Isidoro Augusto. Foram muitas as exposições temáticas e colectivas. Na primeira individual que lá fiz apresentei paisagens metafóricas. Foi inaugurada pelo então Presidente da República, General António Ramalho Eanes e Sua Mulher. A segunda chamava-se «A Lua e o Sol nunca se encontram e por isso se amam eternamente». A experiência da Galeria, a amizade que nasceu entre mim e o António Clara, que é uma pessoa bondosa e muito humana, deixou-me mais rica.
foto do colar
31 Nos anos sessenta, a crítica de arte era muito diferente de hoje. Não havia os grupos que agora se formam fazendo muralhas contra valores essenciais à História da Arte. Funcionava tudo de outra maneira. Agora tem que ser tudo para amanhã – o que interessa é o amanhã – o passado está adormecido. Claro que tudo isto vai dar uma grande volta – porque estas questões são como os alcatruzes, a água vem sempre para cima novamente. E virão outros, do mesmo clube ou de outro. Nos meus quase cinquenta anos de pintura, já vi algumas voltas inesperadas. Eu tive a sorte de ter começado a expor numa época em que se contestava quase tudo mas havia consideração pelo trabalho e pelo talento. Natércia Freire, escritora e notável Poeta foi, durante muitos anos, directora da página literária do «Diário de Notícias» que saía uma vez por semana. Era um caderno importantíssimo que servia todas as artes. A Natércia era uma mulher com tantas qualidades e, pela sua coragem, tenho-a com ternura no meu coração. Era uma altura terrível, em que os jornais eram passados a pente fino, por causa da censura. Fiz um poema que se chamava «Era uma vez uma criança que queria mais pão» que foi considerado subsersivo pela PIDE, que o rasurou em vários jornais. Recebi cartas com ameaças até que consegui pô-lo num canto do jornal «A República». Nos anos setenta, Natércia Freire publicou, na editora do «Diário de Notícias», um livro intitulado «Os Lusíadas que fomos, os Lusíadas que somos». Convidou cinquenta dos melhores pintores da época para que, sobre o tema dos Lusíadas, escolhessem uma estrofe para fazer um trabalho. Esta exposição percorreu uma parte do Mundo e terminou em Tókio, no Japão. Eu escolhi duas estrofes em que Camões falava de Cristo e foi aí que pintei «Cristo a preto e branco». No fim das exposições, ofereci o quadro à minha querida Natércia. Não tenho nada contra o avant-garde, tenho visto instalações de grande qualidade mas a maioria são muito más.
Temos falta de uma Vera Lagoa que não perdia pitada para fazer troça a preto e branco no seu jornal «O Diabo». A crítica tomouse a si própria muito a sério, extremamente grupista o que, nos anos sessenta, não acontecia. Muita gente não percebia a minha pintura porque achava-a muito «para a frente...». É engraçado! Cristiano Lima e Alfredo Marques faziam o que eu sempre chamei «crítica jornaleira», que era muito útil, no «Diário de Notícias», no «Diário Popular» e em outros jornais. Mário de Oliveira, que também era pintor e sabia muito bem o que escrevia; João Gaspar Simões também publicava na página literária do «Diário de Notícias». Encontravamo-nos muitas vezes para almoçar no «Grémio Literário», onde o conheci. Era culto e inteligente. Foi uma honra conhecer estas pessoas. A critica era determinante e ao mesmo tempo estimulante. Logo na madrugada após às inaugurações imediatamente apareceria algum parecer sobre o apresentado… quantas vezes eu e o Carlos fomos ao Diário de Noticias buscar o jornal pelas 4 ou 5 da manhã para lermos o que dizia sobre a minha exposição inaugurada na véspera, depois desciamos até à Praça da Ribeira onde com o chocolate quente e uma bola de Berlim sentia-me que existia... Ligava-se importância ao Artista e à obra - ao menos falava-se e essa consideração tirava-nos o sono pelo reconhecimento de um trabalho árduo.
32 Quando estou muito cansada, junto determinados objectos e pinto uma natureza morta que dentro de mim acabo por chamar «natureza-viva». Uma destas «naturezas» lembra os interiores do palácio da Junqueira. Pintei azulejos inspirados na Junqueira que nos é tão querida. Era uma casa em festa – os pais gostavam muito de receber. Lembrome de um baile no jardim e lembro-me de Margot Fontaine e Rudolph Nureyev que dançaram um «pas-de-deux» divinamente. E também da Baté (Maria Teresa de Noronha, Condessa de Sabrosa) que era amiga querida da minha Mãe e que foi muitas vezes lá à noite cantar o fado. Entre os convidados que o Pai recebeu na Junqueira, num dos jantares, esteve o Cardeal Roncali, futuro Papa João XXIII. Agora o palácio é a sede da Universidade Lusíada e, há uns anos, fui lá fotografada e entrevistada pelo meu amigo Abel Dias que estruturou uma entrevista interessante e tirou umas fotografias estupendas.
34 O Senhor Dom Duarte foi a primeira pessoa a actuar no triste processo de Timor e, em 1987, começou uma campanha de angariação de fundos para construir casas para os timorenses refugiados no nosso país. Eu conheço os três Príncipes, Dom Duarte, Dom Miguel e Dom Henrique, de toda a minha vida. Os meus pais foram também muito dedicados ao Senhor Dom Duarte Nuno (pai) e à Senhora Dona Maria Francisca; iam algumas vezes visitar a Família Real à Suíça, onde residiam então e traziam fotografias dos príncipes. Fazia gosto ver uma família tão feliz. Numa das vezes em que o Senhor Dom Duarte Nuno e a Senhora Dona Maria Francisca passaram uma temporada em Nossa Senhora da Vida, em 1948, meu Pai mandou fazer um memorial em pedra negra da região assinalando a sua passagem. Lembra aqueles marcos que os nossos descobridores costumavam por nos lugares onde se aventuravam, com as Armas Reais em cima, em relevo. Quando o Senhor Dom Duarte me pediu para organizar uma exposição em 1988 (chamava-se «Timor 87», pois referia-se a um ano antes), foram expostos numa galeria do Chiado várias dezenas de quadros de bons pintores e bem cotados. O José Sousa Machado era o Director da Galeria e cedeu-nos o espaço gratuitamente. Foi encantador. O Senhor Dom Duarte confiou plenamente em mim. Esta exposição fez um dinheirão.
35 Os locais ou igrejas chamados de Nossa Senhora da Vida aparecem periodicamente na minha existência – o Paço de Nossa Senhora da Vida em S. Miguel, Açores; a igreja próxima da casa de Alcochete, também de Nossa Senhora da Vida; e a casa onde Picasso mais gostou de viver, Notre Dame de La Vie em Mougins. Numa das vezes em que estive com Picasso foi precisamente lá, num almoço que ele me ofereceu. Fui com uns amigos. Havia quadros, objectos e esculturas por todos os lados e, sobretudo, muita faiança. Comemos uma sopa de tomate à espanhola e um belíssimo peixe assado. Foi quando conheci a Françoise Gilot, sua mulher. Era linda, elegante e o tipo físico de que ele gostava, com aquele nariz aquilino. Vim a tornar a vê-la há poucos anos aqui em Portugal em casa de amigos comuns. É a mãe da Paloma e do Claude. Paloma Picasso, pelo seu rosto, seria sempre de autoria picassiana. Este encontro com Picasso veio transformar a minha vida pessoal e artística. A minha admiração por ele era enorme! Todos os pintores que encontrei naquela época em Paris achávamos que plasticamente éramos todos seus filhos. Tinha uns olhos negros brilhantes e um riso gordo e fácil. Tinha umas rugas fundas dos lados dos olhos que marcavam a sua personalidade de humor e inteligência. Fiquei absolutamente fascinada com as suas esculturas e cerâmicas. A massa das cerâmicas era grossa – parecia que as fazia para se entreter. Viam-se as marcas dos dedos e sobretudo do dedo grande. A pintura das cerâmicas tinha classicismo e todos os absurdos que se possa imaginar. Caras de mulheres, crianças, girassóis, espinhas de peixe. Enfim, ainda passados tantos anos, sinto o meu coração a bater mais depressa ao pensar nesses momentos. Eu era nova e inexperiente aprendiz de pintora. Tivera a felicidade de comunicar com o grande artista Pablo Picasso. Este grande homem era um intelectual sem se dar conta, tudo nele era intuitivo e violento. Voltei e Paris e nunca mais o vi.
Passei a ir mais a Alcochete na época em que estive casada com o João Ferreira-Rosa. A casa era tipicamente portuguesa, tinha muito caché e acrescentámos-lhe um andar numas obras que fizemos. O João tem muito bom gosto. Tinha uma lareira magnífica, cúmplice de serões com amigos, fados e guitarradas. Quando eu estava em Alcochete, sentia-me muito bem – as pessoas eram muito afectuosas, simpáticas e originais. Era a terra por excelência das corridas, dos forcados, de homens bonitos e de bom fado. As jantaradas de Gregório Bolota, Presidente da Sociedade, eram óptimas e comia os melhores rissóis que se pode imaginar feitos pela sua mulher. Também se comia bem no restaurante do António Carraça, que era um personagem, fadistão e neurasténico, que ameaçava que se havia de matar um dia. Matou-se mesmo, com veneno dos ratos. Coitado, tive pena, era muito meu amigo. Nessa altura, o Fernando Pessoa era o mais atencioso e melhor dos empregados de mesa – hoje, dá gosto ver o seu encanto como empresário e dono do melhor hotel da zona e não só. O pôr do sol em Alcochete é uma maravilha, sempre diferente. Olha-se o rio a brilhar e vêm-se as bateiras negras a balançar. O Miguel Boeiro foi durante muitos anos Presidente da Câmara de Alcochete. É uma pessoa honrada e preocupada com a terra que geria. Eu colaborei em muitos assuntos culturais com o Miguel, que é meu amigo. Fiz muitas exposições em Alcochete, individuais e colectivas, e organizei várias também de outros artistas, com a ajuda da Fernanda Zeferino. A Câmara ofereceu-me o diploma e a medalha de Cidadã
Honorária. Quando recebi esta honraria houve sessão solene. O Miguel Boeiro fez um discurso e leu o meu currículum. Estavam presentes os metais da banda, muito bem fardados, que tocaram um texto comovente. Fiquei contente. Durante uns anos, senti-me alcochetana de coração e passei a ser alcochetana de corpo e alma. O Paço de Nossa Senhora da Vida é uma das mais antigas casas de S. Miguel. Eu lembro-me que, por volta dos meus seis anos, fomos todos ver a casa de família. Estava muito arruinada mas o traçado da época, as pedras negras do calhau, que os canteiros adaptavam como aros e vergas à roda dos arcos, das janelas e das portas e assim continuam como antigamente, aquando da primeira construção da casa. A casa tem uma magnífica situação geográfica, está projectada no meio de jardins e o chão junto à fachada é todo de lages pretas e alguns lances de escada que se alargam em frente de um relvado enorme que cai por cima do mar. Temos vários mirantes cobertos de trepadeira patinha. Do lado esquerdo do Paço está a igreja. É muito bonita, tem um traçado sóbrio e o altar-mor é um explêndido trabalho de talha do século dezassete. Nela está o panteão de família onde, na cripta estão, debaixo de lages negras, os restos dos meus queridos Pais. Os jardins estão cobertos de espécies raras de flores e plantas, onde sobressaem os plátanos centenários. As criptomérias fazem parte da paisagem açoreana. É espantosa a quantidade de hortências que bordejam as estradas e dividem as pastagens como se fossem muros. Há uma altura em que está tudo azul e verde – numa certa época do ano, vê-se a explosão das azálias de todas as cores e hidranjas brancas, como as que existem no Monte Simplício. Há um sedutor aroma no ar. Da Senhora da Vida vemos os paquetes, enormes barcos de carga, lá ao longe, sentados no terraço onde costumamos ver o pôr do sol. Vêm-se os milhafres cortando o céu e, ao anoitecer, ouve-se o canto dos cagarros. Este ambiente é único e inesquecível, calmo e euforizante.
36 Na Nazaré, no princípio dos anos cinquenta, quase todas as mulheres se vestiam de sete saias e a maioria vestia-se de preto, com capa preta e um chapéu com pompom. Sempre inspiraram a minha pintura, ao longo da minha vida, pela carga dramática que carregam. Na década de noventa, conheci o meu querido Jorge Pereira de Sampaio e os pais. Fico na casa deles de Alcobaça e desfruto de um ambiente de amizade que eu muito aprecio. Nessa altura, tive uns quantos Carnavais, divertidíssimos em que, de novo, voltei à Nazaré com o Jorge, o Zé Eduardo Machado, a Paula Silva, a Guida Silva, o Luís Peças, a Sofia Ferreira, a Cami e o Zé Frutuoso, uns mascarados, outros não, para um bar simpático chamado «Amok» onde se ouvia música ao vivo e se dançava. A discoteca «Sunset» estava na moda. Nos anos noventa, todos estes amigos se juntavam, quando ia para lá. Assisti a festas fantásticas e, como fazia anos ao mesmo tempo que a minha amiga querida Dulce Varela, festejávamos os anos juntas. Era muito divertido. A Dulce tem muito charme e graça e é uma jornalista de muito valor. As festas foram animadas por várias personagens e a Maria Galhardo cantava e encantava. Por essa altura, desenhei o retrato do Jorge.
37 Este quadro de técnica mista foi exposto numa das muitas exposições que fiz na Galeria Conventual, em Alcobaça, propriedade dos Pereira de Sampaio. A Maria do Céu, Mãe do Jorge, gostava muito deste quadro. Passado um tempo, resolvi oferecer-lho de presente de Natal o quadro, que ficou muito contente e eu mais contente ainda por dar um gosto à querida amiga Maria do Céu. Através da Maria do Céu, conheci senhoras encantadoras e cheias de qualidades que vejo frequentemente quando lá estou – a Rafaela Sanches Branco, minha conterrânea dos Açores, e as Oliva Monteiro, a Celeste, a Bethy e a Maria do Rosário. A Piedade Neto é uma notável jornalista da rádio local, a Rádio Císter, que eu admiro. Alcobaça é um lugar belo e poderoso e as pedras do seu Mosteiro encantam-me. Faz parte da minha cultura infantil. A Dra. Maria Augusta Trindade Ferreira foi durante quase vinte anos Directora daquele Mosteiro, tendo lá desenvolvido importantes exposições de arte sacra dos antigos coutos, de cerâmica local e de colchas de chita de Alcobaça. Pintei um quadro com a nave central do Mosteiro de Alcobaça que está na colecção de Antero Campos, naquela cidade, grande apreciador de pintura. S. Bernardo é uma figura das mais interessantes na renovação da Igreja medieval. Tinha uma influência ímpar na Europa de então e, por altura dos seus Centenários, resolvi dedicar-lhe três quadros. São efemérides que me inspiram. Foi bastião da Ordem de Cister. Procurou fazer que a sua nova Ordem se dirigisse para a ascese e pregou no sentido que se fosse libertar a Terra Santa, impulsionando a Segunda Cruzada. Os seus escritos renovaram a espiritualidade ocidental e apoiou a vontade de Independência do Rei D. Afonso Henriques, na mesma época em que enviou para Portugal um grupo de monges que veio fundar o Mosteiro de Alcobaça, que veio a ser mais tarde um dos maiores da Cristandade. Em Alcobaça, no Mosteiro, trabalhavam homens de grande erudição e grandes artistas. Os frades são sempre figuras importantes na História de qualquer país. Este quadro pertence ao Dr. Jorge Araújo. O Jorge é médico e é um homem muito atencioso por quem me une uma grande amizade.
38 Assim como a Pintura, a Poesia esteve sempre ligada a mim. Publiquei dois livros de poesia. O primeiro foi publicado no Brasil pela mão de Rodrigo Leal Rodrigues, meu querido amigo. Começou a orientação do livro por Olegário Mariano, poeta brasileiro e Embaixador em Lisboa. O segundo livro foi compilado e dirigido pelo escritor e amigo querido Domingos Monteiro. Na apresentação dos meus livros, foram lidos poemas pela espantosa Maria Germana Tânger. Virgínia Victorino foi uma das mulheres mais notáveis das Letras em Portugal na primeira metade do século vinte. O seu primeiro livro de versos fez doze edições cá e duas no Brasil. Foi também autora teatral de grande êxito, com seis peças escritas, todas representadas no Teatro Nacional pela Companhia Rey Colaço/ Robles Monteiro. Foi Virgínia Victorino quem inspirou o «Café Tertúlia», lugar cheio de charme, dos Pereira de Sampaio, em Alcobaça, por ser a casa onde nasceu aquela poeta alcobacense e onde hoje acontecem convívios com poesia, lançamentos de livros, música, fantoches e, acima de tudo, muita alegria. Quando foi reaberto o «Tertúlia», depois das obras, o Luís Pereira de Sampaio encomendou-me as chícaras de café. Nessa altura haviam sessões de poesia onde me deliciava ouvir a querida Isabel Wolmar. São sempre momentos lindíssimos, em que a casa se enche de jovens que trazem também os seus próprios versos. No final do primeiro ano de sessões mensais, o «Tertúlia» editou um livro incentivando os mais jovens à escrita, com diversos poemas da sua autoria. Este quadro foi feito para a exposição «Imagens para a Poesia de Virgínia Victorino», em que a Galeria Conventual reuniu um grupo de gente da escrita para escolherem poemas que foram dados a artistas plásticos de diversas áreas para cada um os interpretar. Este meu quadro foi comprado por um casal de coleccionadores chamados Jorge e Teresa Arinto Godinho.
39
Este é um quadro em que a feminilidade está presente. Nos últimos anos, Portugal, à semelhança do resto do mundo, está cheio de revistas viradas para o público feminino. Aponto uma delas como exemplo de qualidade e categoria – a «Moda & Moda». É sua directora e proprietária, Marionela Gusmão, uma mulher notável, minha amiga e extremamente atenciosa com a minha filha Ana Carlos. É uma mulher de grande cultura e uma lutadora, com quem eu gosto de conviver e por quem tenho grande admiração. Os artigos que escreve são ensinamentos, baseados em pesquisas, com um estilo muito próprio.
Várias mulheres amigas e observadoras me têm ajudado. Eu sou muito trapalhona e a Graciete – uma amiga que é um Anjo da Guarda que tenho no Céu encontrava os papéis e as fotografias e resolveu pequenos problemas por que passei. Bendita seja! Também a Madalena Mata sempre me organizou os meus negócios e todas as burocracias e em tudo me tem ajudado como uma irmã. É uma grande mulher e uma grande amiga. Neste quadro da «Senhora de roxo» está presente a minha atitude de Mulher.
fotos de quadros de Manuel Leiria Fernandes
40 Desde sempre que a zona rural de Loures me encantou. José Leiria Fernandes tinhas umas óptimas casas perto da minha, na Lagariça. Depois de ele morrer, conheci o filho, Manuel Leiria Fernandes. Encantámo-nos um com o outro. A partir daí, passou a ser visita da nossa casa. E tornou-se um coleccionador da minha obra. Até hoje!
41 Depois da minha exposição no Palácio da Independência, tive o grande prazer de conhecer o Eurico Ribeiro Coutinho, sua mulher e filhos. Não os esqueço, são quatro pessoas que me encantaram e tenho-as no meu coração. O Eurico é um apaixonado por música, toca vários instrumentos como o piano e o violino. É um apaixonado pelos desafios da Vida, por pessoas bonitas e por pintura. É um garoto crescido com espírito de garoto pequeno. Um empreendedor, um Homem de carácter com um coração grande e uma Alma Linda; aliás toda a sua família tem uma Alma linda. Pessoas genuínas e com sentido de Humor! É uma Alegria cada vez que os vejo. Em cada olhar sinto Amizade presente. E a admiração é mútua. Dá-me a honra de ser um coleccionador dos meus quadros e encomendou-me, há uns anos, os retratos dos filhos.
42 Este quadro foi um dos muitos pintados no meu atelier feito num antigo moinho, anexo à minha casa da Lagariça. No final da década de oitenta, fiz obras em casa e resolvi ampliar uma sala para fazer uma galeria de exposições com o intuito de mostrar artistas novos e velhos. Alguns tiveram as suas obras vistas ao público aqui pela primeira vez. Fundei a «Casa de Arte Ana Maria Botelho». Aqui se viam estilos muito diferentes uns dos outros, sempre com qualidade. Ninguém pagava nada nem havia comissões. Nós fazíamos os convites, enviávamo-los pelo correio, fazíamos o catálogo e o coktail. O Manuel Leiria Fernandes, que é um dos meus coleccionadores e um grande amigo, cedia-nos os seus terrenos para os convidados deixarem os seus carros. Aqui, o trabalho transformava-se em prazer. A minha intenção era procurar servir os artistas. O Lima de Freitas, de quem gostava tanto, foi um dos que aqui expôs. Luís Macieira, Nuno de Santa Maria, França Ferrão, Teresa Coelho Baptista, Eduarda Filhó, Paul Mathieu, Onik, Ribeiro Farinha e muitos outros passaram por esta casa de arte com muito êxito. A minha filha Ana Carlos orientou e desenhou a obra desta sala mágica, onde a comunhão entre as pessoas proporcionava uma alegria enorme.
Um dia, ao fim da tarde, ouviu-se a campainha. A Mémi foi abrir a porta e era o Carlos Castro. Vinha para uma vernissage... só que era no dia seguinte. Acabou por ficar na galhofa connosco até às tantas e dei-lhe uma entrevista que foi apreciadíssima. O Carlos Castro foi sempre muito atencioso comigo. Admiro-o.
43 Este barco foi feito para a exposição que fiz no Palácio da Independência. Durante algum tempo, nesse Palácio lindíssimo localizado no centro de Lisboa foram expostos pela orientação de Jorge Pereira de Sampaio e de Isabel Figueiredo Paula, vários artistas. Pedro Pinto-Coelho, José Van Zeller, Ana Carlos, MABSA e Francisco Eça de Queirós foram alguns de que me lembro e cujas exposições não esqueço. Aí organizaram também uma excelente exposição cujo tema era o Amor de Pedro e Inês, com texto de apresentação do José Miguel Júdice, o grande entusiasta desse tema e dono da Quinta das Lágrimas, onde somos sempre tão bem recebidos. Também lá se apresentou uma artista e amiga para quem tenho escrito vários textos: Maria Sobral Mendonça.
44 Este quadro foi comprado numa exposição em Lisboa pela Manuela Birg. Conheci-a quando ainda era Directora do Panteão Nacional. Mais tarde, a Manuela deixou o Panteão para se dedicar totalmente , com a sua filha Daniela, à sua arte da ourivesaria. A convite de Manuela, escrevi para o seu primeiro catálogo. Eu própria fui modelo de um broche lindíssimo e muito grande na forma estilizada de uma flor de jarro, na Galeria Conventual e, mais tarde, na Galeria Vina Freitas, onde também usei umas peças suas. A minha paixão por jóias vem da minha cultura museológica acerca da Renascença Italiana. Encantam-me os colares, os anéis, os brincos e tudo o que seja de enfeitar que se vêem nos retratos daquela época. Na joalharia moderna há vários artistas que admiro em Portugal mas há uma que gosto particularmente, como Artista e como pessoa: a Kukas. E também o Nuno de Santa Maria Coelho Baptista.
45 Conheci a Ana Maravilhas numa inauguração de pintura há muitos anos. Nasceu imediatamente entre nós uma amizade sincera. A Ana é uma mulher cheia de graça, inteligente e sensível. Como eu, é uma pessoa que se interessa pela História do nosso País e, por isso, já fomos muitas vezes passear pela nossa terra, visitar lugares recônditos, olhar as tradições e apalpar as pedras antigas. A certa altura, ela mostrou-me uma colecção de versos que tinha escrito e eu estimulei-a a publicar um livro que teve o prefácio de António Alçada Baptista e ilustrei-lho com desenhos em sépia. Foi um grande êxito.
46 Este quadro está na colecção da minha prima Maria Amélia, pintora, escultora e escritora, que vive em S. Paulo, no Brasil. É uma Senhora espantosa; e aos 90 anos continua a criar, a imaginar e a comportar-se como uma grande Artista. Chama-se Maria Amélia de Arruda Botelho de Souza Aranha e, como tem um nome muito comprido, resumiu para MABSA, nome com que assina as suas peças. Creio que conheci a Maria Amélia por altura do casamento do meu irmão José Honorato com a Maria Candinha, há mais de quarenta anos. O meu irmão José é biólogo de vocação, tem um grande sentido poético da vida, sabe ser meigo como ninguém e, sobretudo, sabe pôr o Amor e a Amizade acima de todos os Valores. Eu gosto do José, não só por ser meu irmão mas por ser um grande amigo, carinhoso e atencioso. A Maria Candinha é a melhor das mulheres e considero-a uma verdadeira irmã. Passar uma temporada na Fazenda Paraguassu (no Estado de S. Paulo, Brasil) é um constante prazer. Tem uma casa antiga de estilo colonial recheada de peças muito bonitas. A casa está cravada numa enorme propriedade de cana de açúcar e café. As árvores, as borboletas de tantas qualidades e os arbustos perfumados de frutos exóticos e, sobretudo, o ambiente humano em casa do meu irmão é de bem estar e de ternura. Ao fim do dia, ouvem-se os insectos, os pássaros e ficamos tranquilos a beber um sumo gelado e a aproveitar a conversa. De facto, encontrei por essa altura Maria Amélia. Vivia numa casa em S. Paulo onde ofereceu à família uma recepção. Mais tarde tive o prazer de ver a evolução da sua pintura. MABSA renasceu para uma modernidade plástica que eu compreendi e admirei. Fez uma grande exposição em Lisboa organizada pelo Jorge Pereira de Sampaio no Palácio da Independência. Chamava-se «As Mulheres da Casa de Nod» e tive o gosto de lhe escrever um texto para o catálogo. Grandes telas inspiradas em mulheres primárias, terráqueas, envolvidas por cores fortes e cor de lama e pequenas esculturas imaginadas a partir de realidades femininas.
47 Houve uma altura na minha vida de pintora que me encantavam as pessoas, com profissões difíceis. Eu sempre gostei do povo e, em todos nós, por melhor que seja a genealogia, aparece sempre a palavra Povo. A varina faz parte de uma série que ainda aparece de vez em quando na minha pintura. Admiro a força da varina, do tocador de tambor, da mulher vendedeira nas feiras, de frutas ou flores. Há uma autenticidade nestas pessoas que me fascina.
«La beauté en art n´est pas une chose belle mais la belle representation d´une chose.» – Kant Como disse Gabriel Garcia Marquez, «a vida não é o que cada um viveu mas aquilo que se recorda e recorda-se quando se conta». Contei neste livro muitos episódios mas tenho que chegar à conclusão que o que mais me importou na vida foi a presença de pessoas. Deram-me força, persistência. Tenho tido sorte com as relações de amizade e muita gente me tem dado conforto e me tem dado alegria. A todos quero agradecer e lamento não poder citar todos mas também muitos mais estão no meu pensamento. Tenho uma família grande e linda e todos temos em comum, como se fizesse parte do nosso sangue, o sentido de humor. Quando temos reuniões de família falamos alto, contamos histórias e rimos muito! Eu não sinto diferença de gerações. Ainda há poucos anos fomos todos a uma grande festança dada pelos meus sobrinhos Gonçalo e Alexandre Botelho e estavam todos os irmãos, primos, parentes, sobrinhos, cunhadas e cunhados, mais velhos, muito velhos e menos velhos. Foi muito divertido, dançámos até às tantas. É nas pessoas que encontro inspiração, ideias e histórias; são elas que me dão o bem estar de viver e me obrigam a pensar – na verdade, a vida é um milagre e temos que a festejar até ao último minuto de lucidez. Há pessoas com quem tenho convivido e me apetece citar porque estão no meu coração. Lembro-me, por exemplo, de um jantar em casa da Manuela e do Luís Morales em que jantámos umas dez pessoas, estava presente uma embaixatriz dum importante país europeu que nos fez rir a todos às gargalhadas: a mulher não falava, não se mexia, não comia e fartei-me de a provocar até ao limite. Também me lembro de, há muitos anos, estar em casa da Maria e do Manuel Pinto Ribeiro, no Algarve, em que o Carlos e eu pusemos toda a gente e a nós próprios com dores de barriga de tanto rir! E como este episódio há muitos mais.
Como escrever um livro com recordações, memórias de assuntos, sem falar da Maria do Céu e do Luís Pereira de Sampaio? Há muito que através do Jorge os pais me convidam para passar uns dias na casa deles, em Alcobaça. Para mim é uma segunda família. Devo-lhes tanta ternura, ambos me enchem de mimos. A Maria do Céu faz um arroz-doce que é o melhor de Portugal, quando sabe que chego faz de propósito para mim que ela sabe que eu adoro. O «tio» Luís brinca comigo, damos abraços de manhã e à noite. Jorge, que sorte teres uma família como esta. Uma grande parte deste livro tem sido escrito em Alcobaça, à noite, entre as 10 e as 2 da manhã. Muito tenho conservado com o Jorge e com o «primo» Luís Afonso que nos tem dado uma óptima colaboração. Em 2006 fui convidada pela querida amiga Margarida Ruas para fazer uma exposição na Mãe d´Água da Patriarcal, ao Príncipe Real. A Margarida, com grande sensibilidade, escreveu um texto no catálogo que, por me emocionar muito, reproduzo parte dele: «A Ana Maria Botelho quando nos olha lentamente com toda a sabedoria da verdadeira viajante é como um sinal ritual de benção. Sentimos o afecto e a elevação de alguém que depois de uma longa e notável caminhada, na mais pura harmonia regressa ao seu céu, «à casa da Lagariça, o único lugar onde a rotina me dá prazer» depois de cruzar o mundo com tanta gente dentro. (...) A sua arte sempre cumpriu a harmonia que nasce da desordem das emoções e do sofrimento. A sua escolha foi sempre acertada com paixão, amor, devoção que emanavam das cores e das formas. Peremptória e firme jamais permitiu que mal o tocasse a sua pele. De tudo o que viveu, viu e sentiu guardou o lado belo. Por isso a sua obra é supra-bela, transcende-se na própria criação. «O que pinto fica longe até de mim própria. Nunca percebo bem porque e acontecem essas formas e esses vultos que são transformados ou transfigurados pelas minhas mãos» - diz-nos Ana Maria Botelho, consubstanciando a simplicidade mais pura, tão pura que nos faz chegar as lágrimas da inocência.». Aprendi com realismo a não ter medo da Morte: - nesse momento em que o meu coração quasi parou, senti uma união universal que resultou em Paz e alívio. Voltei rapidamente e com felicidade, aos afectos da Família e dos Amigos, A pouco e pouco tive a imperiosa vontade de pintar.
Nasceram ideias no meu corpo e na minha Alma. Procurei criaturas universais que se tocariam parcialmente no meu sonho e se olhavam como num sonho estático. A minha posição perante o que me rodeia, é oposta ao convencional. O que pinto fica longe até de mim própria. Nunca percebo bem porque me acontecem essas formas e esses vultos que são transformados ou transfigurados pelas minhas mãos. Qual é a mola real que provoca o fenómeno criativo? E provavelmente se eu me percebesse eu não pintaria. Tenho que agradecer às pessoas que tornaram este livro possível e a minha vida melhor. Deram-me força, persistência e inspiração. Tenho tido sorte com as amizades; muita gente me tem dado conforto e me tem feito sorrir. Lamento não poder citar todos mas estão no meu coração. Também tenho recebido carinho da família do meu marido, os Borges de Castro. Gosto muito, por exemplo, da minha prima Maria de Lourdes, grande poetisa e uma grande e querida amiga. Quando o meu marido adoeceu gravemente, o meu sobrinho José Borges de Castro deu-me todo o apoio possível com uma enorme ternura e uma presença constante. Terá para sempre a minha gratidão e nunca o esquecerei. Lembrei-me agora mesmo do meu Amigo de toda a vida, o José Cid. Gosto da inteligência dele, dos seus poemas, da sua posição como monárquico e no grande Homem generoso que é. Tenho a honra de ter como Amigo o grande actor Rui de Carvalho. O Rui é uma pessoa extraordinária porque é um ser com uma grande alma, uma enorme bondade, um grande pai de família, um marido espantoso e um grande, grande Amigo que me faz companhia por quem tenho grande admiração e carinho. Este livro é um desabafo confessional da minha vida artística e emocional. Sempre procurei encontrar a melhor forma de comunicar através do que pinto, e do Amor à vida. Pintar é um acto de dádiva total – Eu fui procurando com persistência e alguma dor misturada com uma imensa alegria. Escrevo com a espontaneidade que me é peculiar sempre acompanhada pelo meu carácter; Falta-me falar de tantas pessoas que eu quereria dar atenção na escrita, mas q essas vivem no meu coração e na minha saudade; mas este livro não é um Who´s who – é um trabalho de Arte.
Tenho lágrimas nos olhos ao pensar nos seres que mais amo e amei na vida – os meus filhos e o meu marido Carlos. Estou grata especialmente a estes seres q me estimularam e sempre me disseram « Continua… Continua… ».